Opsis: Dossiê Ensino de História e Formação de Professores
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OPSIS
Ensino de História e Formação de professores:
pesquisas sobre o Ensino de História
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PROAPUPEC – Programa de Apoio às Publicações Periódicas da UFG
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Caius Brandão (Inglês)
Bruna Mundin Tavares e Fabiene Riâny Azevedo Batista (Espanhol)
Projeto Gráfico
Dúnia Esper Pereira
Igor Oliveira Augstroze Aguiar
Luana Santa Brígida
Editoração
Luana Santa Brígida
Capa
Igor Oliveira Augstroze Aguiar
Luana Santa Brígida
Imagem de Capa
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Editora
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Rogério Bianchi de Araújo - Universidade Federal de Goiás/ Regional Catalão, Catalão, GO, Brasil.
Sumário
Dossiê: Ensino de História e Formação de professores:
pesquisas sobre o Ensino de História
Apresentação .............................................................................................................................................01
Júlia Silveira Matos
Artigos
Caminhos e reflexões: formação de professores e o estágio
supervisionado do Curso de História da Universidade
Estadual de Londrina (UEL) ...............................................................................................................215
Ana Heloisa Molina
Cláudia Regina Prado Fortuna
Traduções
O repúdio do culto ao passado, o dinamismo e o ativismo no
Movimento Futurista .......................................................................................................................292
Pär Bergman – Tradução Júlio Bernardo Machinski
Contents
Dossier: History Teaching and Teacher Education:
Research on History Teaching
Presentation .......................................................................................................................................01
Júlia Silveira Matos
Articles
Paths and Reflections: Teachers Training and Supervised
Internship in History Course at the Universidade Estadual
de Londrina (UEL) .................................................................................................................................215
Ana Heloisa Molina
Cláudia Regina Prado Fortuna
Translations
The Rejection of Worshipping the Past, the Dynamism and
Activism in the Futurist Movement ...............................................................................................292
Pär Bergman – Tradução Júlio Bernardo Machinski
Sumario
Dossier: Enseñanza de la Historia y de la Formación del Profesorado:
la investigación sobre la Enseñanza de la Historia
Presentación .............................................................................................................................................01
Júlia Silveira Matos
Artículos
Caminos y reflexiones: formación de docentes y las prácticas
Supervisadas del Curso de Historia de la Universidad
Estadual de Londrina (UEL) ...............................................................................................................215
Ana Heloisa Molina
Cláudia Regina Prado Fortuna
Traducciones
El rechazo del culto al pasado, el dinamismo y el activismo
en el Movimiento Futurista ...............................................................................................................292
Pär Bergman – Tradução Júlio Bernardo Machinski
Apresentação
1
para a diversidade, seja ela, religiosa, econômica, de gênero ou étnica, pois, de acordo com
Marc Ferro, “não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos,
está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para
toda a vida” (FERRO, 1983, p. 11). Um ensino de História que vise ao desenvolvimento de uma
consciência para a vida em sociedade, problematizador e engajado com as realidades do
presente, depende das formas como esses conhecimentos históricos serão trabalhados em
sala de aula. Ao encontro dessa afirmação, segundo Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky,
“queiram ou não, é impossível negar a importância, sempre atual, do ensino de História. (…) A
História é referência. É preciso, portanto, que seja bem ensinada” (2010, p. 19). Nessa citação,
os autores chamam a atenção de que o conhecimento histórico não se faz por ele mesmo, não
é a disciplina de História que contribui para a formação do sujeito pensante, mas o professor
de História que apresenta, reelabora e propõe os saberes Históricos de forma que estes
instrumentalizem seus alunos na arte de pensar.
Ainda segundo Ferro (1983), é preciso se levar em conta que o conhecimento do passado
não é apreendido de forma uníssona por todos, para cada sujeito ele promoverá múltiplas
significações e se transformará no mesmo ritmo das mudanças vivenciadas pela sociedade.
Nesse sentido, a terceira peculiaridade do ensino de história é sua “dependência” científica, pois,
conforme discorreu George Snyders (1995), o professor é o responsável pelo fornecimento de
uma espécie de matéria prima, nesse caso o conhecimento histórico, para o desenvolvimento
de habilidades para o raciocínio, da crítica e da reflexão e mais importante que isso, o docente
ensina ao educando que existe a possibilidade concreta de se raciocinar. Ainda nessa linha,
afirmou Jean Vogler que, a História enquanto disciplina tinha, no passado, como objetivo a
construção de uma memória social. Mas essa característica de promoção do pensamento
histórico é marcada pela dependência da aquisição dos saberes históricos, seja na sala de
aula ou no cotidiano social. No entanto, essa capacidade de influência e contribuição para a
formação das memórias coletivas da disciplina de História não ficou no passado. Para o autor,
“a escola e, mais precisamente, o ensino de História têm um papel importante neste domínio.
Toda a questão está em saber qual a memória social deve-se desenvolver hoje” (VOGLER,
1999, p. 6). O papel formativo dos saberes históricos deve, conforme apontado por Vogler,
ser trabalhado de forma consciente pelo historiador-docente, ou seja, esse deve projetar os
temas e valores que poderão ser depreendidos dos conhecimentos históricos ensinados.
O professor de História é o profissional que possui os saberes para propiciar aos
educandos condições, ou mesmo um espaço de reflexão, que o possibilite adquirir as
ferramentas necessárias para o trabalho. De acordo com Maria Auxiliadora Schmidt,
2
relação entre o passado e o presente, a refletir sobre os problemas vivenciados em seu tempo e
principalmente a criar novas problemáticas de reflexão que os possibilitem intervir no campo
social, transformando, como discorreu nossa autora na citação acima, temas da história e do
cotidiano em problemáticas a serem pensadas. Portanto, ainda segundo Schimidt,
Ensinar História passa a ser, então, dar condições para que o aluno possa participar do
processo do fazer, do construir a História. O aluno deve entender que o conhecimento
histórico não é adquirido como um dom – comumente ouvimos os alunos afirmarem: ‘eu
não dou para aprender História’ -, nem mesmo com uma mercadoria que se compra bem
ou mal (SCHMIDT, 2010, p. 57).
3
desta sociedade, sua visão de mundo. A visão de mundo de cada sociedade, seus dogmas, e
tabus são elementos pertencentes à ideologia. O Brasil neste caso não pode ser enquadrado
em uma única ideologia. Assim, em uma mesma cidade, seus bairros possuem realidades
diferentes e maneiras diferentes de encarar o mundo. Essa realidade nada uniforme, precisa
ser compreendia para ser superada pelo historiador-docente todos os dias.
Nesse espírito de reflexão é que apresentamos o Dossiê Ensino de História e Formação
de professores: as pesquisas sobre Ensino de História da Revista OPSIS, que reuniu treze artigos
de Historiadores que atuam e pesquisam a temática do Dossiê, mais quatro artigos livres, uma
resenha e uma tradução, compondo assim, uma revista bem recheada por dezenove ótimas
contribuições para a temática em questão. No artigo “Ação Educativa e Educação Patrimonial
em Arquivos: a oficina ‘Resistência em Arquivo: Patrimônio, Ditadura e Direitos Humanos’ no
APERS”, Clarissa Sommer Alves, Nôva Brando e Vanessa Tavares Menezes apresentam uma
reflexão sobre os resultados da oficina criada e oferecida a partir do Programa de Educação
Patrimonial UFRGS/APERS, desenvolvido em parceria entre o Arquivo Público do estado
do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal do estado. Tal análise contribui para que se
pense no papel educativo dos arquivos e como se pode trabalhar no Ensino de História com
documentos enquanto objetos para se ir além dos livros didáticos e dos textos, mas adentrar
a construção de saberes novos para o mundo da escola.
Nessa linha de reflexão, o texto de Carmem Zeli de Vargas Gil e Caroline Pacievitch
intitulado “Patrimônio cultural e ensino de história: experiências na formação de professores”,
analisa as relações entre formação de professores de história, o patrimônio cultural e o ensino
de história, a partir de experiências realizadas na disciplina de Estágio de Docência em História
III – Educação Patrimonial, no curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Seu cerne é pensar os espaços da cidade como recursos didáticos, de
forma a evidenciar que o ensino de história pode se realizar em diversos contextos, como o
dos arquivos, mas também, nas ruas, nos museus e de diferentes formas que transcendem
a sala de aula. Ainda sobre o uso de documentos e outros recursos em sala de aula, temos
o trabalho de Katani Maria Nascimento Monteiro intitulado “‘Lembra-te da primeira vez?’
Um processo de investigação de paternidade entre a escrita e o Ensino de História”, que
apresenta algumas conclusões obtidas a partir da análise de uma das atividades de ação
educativa desenvolvidas junto ao Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU/IMHC/
UCS) voltada à formação do professor-pesquisador, nomeadamente os acadêmicos do curso
de História da Universidade de Caxias do Sul. Sua proposta contribui também para que se
evidenciem os espaços arquivísticos como locais de guarda de memórias documentais que
podem contribuir para o Ensino de História e conjuntamente com os dois primeiros textos
apresentados aqui, forma um bloco de reflexões sobre os arquivos e os espaços da cidade
enquanto recursos didáticos e produção de saberes históricos.
Portanto, como se pode perceber iniciamos nossa apresentação a partir da temática
“arquivos e espaços na cidade como recursos para a aprendizagem histórica”, que é o primeiro
pilar do Dossiê que hora apresentamos. Ainda temos mais dois pilares para sustentar essa
reunião de especialistas do tema, que configura a complexidade temática do Dossiê, que
4
são: Recursos didáticos audiovisuais no ensino de História e por fim, o terceiro pilar que é a
formação de professores.
Assim, o segundo pilar é composto por mais cinco textos. Flávia Eloisa Caimi e Bárbara
Nicola contribuem com o artigo intitulado “Os jovens, a aprendizagem histórica e os novos
suportes de informação”, com o objetivo de apresentar os resultados do estudo sobre os
diversos modos como os jovens interagem com as novas tecnologias digitais e, mediante tais
informações, apontar possibilidades metodológicas para o trabalho com a história escolar.
O texto de Caroline Dall’Agnol e Eliana Rela com o título “‘Como me veem?’, ‘como eu me
vejo?’: Um olhar audiovisual para o reconhecimento da identidade do adolescente”, objetiva
apresentar uma análise a partir da produção audiovisual, como o adolescente reconhece sua
identidade diante dos estigmas instituídos ao seu redor e como romper com os estereótipos
que classificam moradores de zonas periféricas. Não diferentemente, essa temática do Dossiê
ainda conta com a contribuição de Nilton Mullet Pereira e Gabriel Torelly intitulada “O Jogo
e o conceito: sobre o ato criativo na aula de História” que se propõe a discutir o ensino de
conceitos nas aulas de história através do uso de jogos. A partir de um debate teórico sobre
o conceito, fundamentado em autores como Deleuze, Foucault e Bergson, a aprendizagem
conceitual como o elemento central de uma aula de história é apresentada.
Saindo do recurso jogos na sala de aula, mas ainda no campo da reflexão inovadora,
temos o texto de Júlio Ricardo Quevedo Santos, Aristeu Castilhos da Rocha e Michele Moraes
Lopes, intitulado “Ensinar e aprender histórias e cultura indígenas: repensando as práticas
pedagógicas”, que visa a apresentar as discussões historiográficas sobre a contribuição dos
“Povos Indígenas” na formação das diversidades cultural brasileira e, portanto, discute a
literatura, cinema e música como “linguagens alternativas” para o ensino de História. E por
fim, contamos com o artigo de Júlia Silveira Matos e Elisabete Zimmer Ferreira com título
“Telenovela: um elemento do cotidiano como fonte de aprendizagem histórica” que visa a
apresentar uma análise de como a telenovela “Gabriela” pode ser entendida como elemento
massificador de aprendizagem histórica no que tange à temática coronelismo/clientelismo. E
pensar também como os saberes históricos podem ser construídos pelos sujeitos em outros
espaços e através de novos recursos, para além da sala de aula.
O terceiro e último pilar temático desse Dossiê é a Formação de professores. Para esse
foco contamos com cinco textos; o primeiro tem autoria de Maria Beatriz Pinheiro Machado e
Lara Moncay Reginato sob o título de “Estágio supervisionado e o PIBID na formação docente:
experiências que se complementam”. Esse texto tem por finalidade traçar um comparativo
entre as práticas de ensino e de apreensão do contexto escolar, propiciadas por meio do
Estágio Supervisionado e da participação no PIBID. O texto de Roberto Radünz intitulado
“Mestrado Profissional em História: o desafio do trabalho de conclusão final do curso”, por
sua vez, evidencia temas como avaliação dos programas de pós-graduação com o objetivo de
problematizar possíveis formas de trabalhos finais para além da dissertação e problematizar,
com as experiências dos mestrandos do Programa de Pós-Graduação em História da UCS,
as possibilidades do conhecimento acadêmico ter uma maior função social. Em direção
semelhante contamos com o artigo de Cristine Fortes Lia e Jéssica Pereira da Costa, Marcello
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Paniz Giacomoni, Maiara Cemin Cagliari e Priscila Nunes Pereira intitulado “Laboratórios
de Ensino de História: refletindo e construindo com os professores”, que projeta pensarmos
outros espaços fundamentais para a formação docente que são os laboratórios no espaço
universitário. O texto de Marcello Paniz Giacomoni, sob o título de “O professor que cativa:
entre a narrativa da história e o cuidado de si”, apresenta uma força de potência provocativa de
reflexões e crítica sobre o papel do professor na sala de aula. Inicia com uma reflexão sobre o
Ensino de História e busca compreender quais estratégias são utilizadas pelos professores na
construção de suas aulas para perceber essa elaboração didática que “visa negociar a distância
entre o tempo passado e o momento do aluno, gerando momentos de encantamento ao poder
da palavra”. E por fim, mas não menos importante, temos o texto intitulado “A ressignificação
do ‘ensinar’ música através das memórias de professoras: Estudo sobre o conservatório de
música de Rio Grande/RS” de autoria de Gianne Zanella Atallah. Esse artigo apresenta uma
contribuição fundamental para o presente Dossiê por apresentar um olhar inviesado sobre a
docência, ao abordá-la dentro de um conservatório de música. Assim, se propõe a analisar a
representação e o poder simbólico através da categoria gênero e da subcategoria “professora”.
Entretanto, essa edição da Revista OPSIS, como não poderia ser diferente, supreende
pela qualidade e não se encerra apenas com esse grande e especialíssimo Dossiê, ainda
contamos com o artigo de Ana Heloisa Molina e Cláudia Regina Prado Fortuna, intitulado
“Caminhos e reflexões: formação de professores e o estágio supervisionado do Curso de
História da Universidade Estadual de Londrina (UEL)”, o texto de Elison Antonio Paim sob
o título “Proposta Curricular de Santa Catarina: ensino de História, memória e patrimônio
cultural”, a contribuição dos autores Lúcia Helena Oliveira Silva, Wilton Carlos Lima Silva
intitulado “Deus te preteje: a identidade e sentimento na música de Itamar Assumpção” e por
fim a contribuição de José D’Assunção Barros intitulada “As análises de Henri Pirenne sobre os
desenvolvimentos feudais e urbanos e sua recepção crítica na historiografia”. Para finalizar essa
edição duas sessões são fundamentais, as resenhas e as traduções, portanto, aqui recebemos
a resenha de Regma Maria Santos e Weber Abrahão Júnior: “Leituras do saber histórico nos
primeiros anos do ensino fundamental: diálogos possíveis” e a tradução apresentada por Júlio
Bernardo Machinski do texto “O repúdio do culto ao passado, o dinamismo e o ativismo no
Movimento Futurista”.
Dessa forma, o presente Dossiê nasceu da percepção de que o ensino de História vem
sofrendo nas últimas décadas uma crise de esgotamento. O mais comum entre alunos da
educação básica é ouvir que os mesmos não gostam de história. Mas por que isso ocorre? A
resposta é simples, por falta de sentido. Significar o ensino é a essência do processo de ensino
e aprendizagem, entretanto, o desafio é fazer isso. Superar os obstáculos do ensino de História
propostos pelo cotidiano escolar é uma tarefa difícil quando o aluno não percebe a significação
do que estuda e principalmente não se vê como agente desse processo histórico como busca
problematizar os artigos apresentados nesse Dossiê. Assim, o desafio do professor é:
[…] mostrar que, graças à cultura que nós, membros da espécie humana, produzimos,
temos tido talento para nos vestir mais adequadamente que os ursos, construir casas
melhores que o joão de barro, combater com mais eficiência que o tigre, embora cada
6
um de nós, seres humanos, tenha vindo ao mundo desprovido de pelos espessos, bicos
diligentes ou garras poderosas (PINSKY & BASSANEZI PINSKY, 2010, p. 21).
Alguns modelos e versões da História são mais atualizados do que outros, alguns temas e
escalas de abordagem adquirem mais relevância para responder a problemas da sociedade
de hoje do que outros. A adopção de um modelo de História narrrativa-explicativa, que
integre uma análise fundamentada de perspectivas diversas, que não esqueça a escala local
e global, parece ser mais consentânea com os debates sobre a ciência histórica e com as
exigências de desenvolvimento, no respeito por várias identidades (BARCA, 2007, p. 6).
7
de referência em pesquisa, orientações voltadas a questões patrimoniais e outros campos,
ainda é insipiente. A grande maioria dos egressos dos cursos de História, sejam licenciados ou
bacharéis, seguirão a carreira docente, seja em nível fundamental e médio ou superior. Nessa
perspectiva discorrer sobre o ofício do historiador sem perpassar profundamente por uma
reflexão sobre sua atuação na docência é ignorar seu maior campo de atuação.
Nessa direção, com três pilares temáticos: Arquivos e cidades como recursos didáticos;
Recursos audiovisuais; e, a Formação Docente, o presente Dossiê visa contribuir para pensarmos
o Ensino de História e as pesquisas realizadas nesse âmbito como propostas de mudança, de
construção do novo e de um ensino significativo para a sociedade brasileira.
Maio de 2015
Profa. Dra. Júlia Silveira Matos
8
DOI 10.5216/o.v15i1.34721
*
Arquivo Público do Estado do RS, Porto Alegre, RS, Brasil.
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Educational Action and Heritage Education in Arquives:
Workshop “Resistance in the Archive: Heritage, Dictatorship,
and Human Rights” in APERS
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Ações educativas no arquivo público do
estado do Rio Grande do Sul e seu contexto
Aproximar-te, leitora ou leitor, das atividades educativas realizadas pelo Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) significa para nós, ao mesmo tempo, um denso
exercício de sistematizar práticas e reflexões cotidianas em palavras escritas, como também
identificar e problematizar tais práticas e reflexões em relação ao contexto histórico e social.
O Arquivo Público foi criado em 1906, e a preocupação com a relação entre arquivo e
educação não está presente desde aquele momento. Assim sendo, essa é uma informação que
até parece óbvia, mas, na verdade, merece atenção. Afinal, os processos e desdobramentos que
fizeram que hoje nós, três historiadoras e profissionais de arquivos, estejamos dedicando tempo
e esforço na construção acerca do tema estão intrinsecamente ligados à história da instituição.
Podemos apontar que o primeiro corpo técnico, de arquivistas e historiadores,
constituiu-se apenas a partir da década de 1990, mesmo que o APERS seja centenário. Tal
informação explica em muito que as primeiras ações sistemáticas voltadas à difusão educativa
e cultural de seus acervos tenham começado a acontecer a partir desta década, com visitas
guiadas, ou com a primeira oficina educativa, já no ano de 2001. E a trajetória desse Arquivo
não está isolada. Está intimamente ligada às transformações sociais mais globais e à história
dos arquivos no Brasil, que passaram por amplas modificações desde o final dos anos 1980.
Com o processo de redemocratização, as discussões em torno da nova Constituição
Federal, dos direitos humanos, incluindo direitos sociais, culturais e de acesso à informação, e
com a promulgação da Lei nº 8159 de 1991, a chamada Lei de Arquivos, os papéis das instituições
arquivísticas passaram a ser mais debatidos, reconhecidos e consolidados. Ao lado do compromisso
com os processos de gestão documental, que vão desde a construção de instrumentos, como
planos de classificação e tabelas de temporalidade, passando pelo recolhimento, avaliação e
classificação de documentos, até a descrição e difusão de acervos, está o papel sociocultural
dessas instituições, que possuem grande potencial para a produção do conhecimento histórico,
e os debates em torno da(s) memória(s) e da(s) identidade(s) em nossa sociedade.
Com esse mesmo processo, a ampliação do acesso à Justiça e a serviços prestados pelo
Estado ampliou de forma significativa a produção de documentos públicos a partir da década
de 1980, trazendo a necessidade de novas compreensões e práticas em relação às massas
documentais acumuladas. Por outro lado, como nos aponta Andresa Barbosa a partir de Pierre
Nora, nesse contexto:
11
ALVES, C.; BRANDO, N.; MENEZES, V.
Ação educativa e educação patrimonial em arquivos...
inteiramente sobre o que há de mais preciso no traço, mais material do vestígio, mais
concreto no registro, mais visível na imagem... o que nós chamamos de memória é, de fato,
a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível
lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar”.
(NORA, apud BARBOSA, 2013, p. 22).
A partir da autora, falamos dos debates que no final dos anos 80 e ao longo da década
de 1990 deram origem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação e aos Parâmetros Curriculares
Nacionais que, ao que concerne ao ensino de História, evidenciam a importância da valorização
e da utilização dos bens culturais e das fontes históricas no processo de ensino e aprendizagem1.
Argumento com o qual coincide a formulação de Koyama (2008, p.1-2), para quem:
O interesse crescente pela memória e pela história local tem levado novos agentes sociais
a valorizar os arquivos e centros de documentação, que vêm ganhando visibilidade social.
[…] Também as ações de educação patrimonial têm crescido nos últimos anos, no bojo
da ampliação dos espaços educacionais abarcados pela escola. […] Concorrendo para a
ampliação do espaço educativo dos arquivos, está a valorização do ensino de procedimentos
de pesquisa na educação básica, que também aproxima a escola da pesquisa documental
nos arquivos, na esteira das reformas curriculares dos anos noventa.
a partir de 2009, têm ajudado a afirmar, dentro e fora do APERS, seu caráter como instituição
de memória, e como espaço potencial para o fomento à educação e à cultura. Neste sentido, é
importante notar que, mesmo com as referidas transformações ocorridas nas últimas décadas
na sociedade, na área de arquivos e na educação, o trabalho educativo em arquivos públicos
ainda é incipiente no Brasil, sendo recente ou inexistente na maior parte das instituições.
Embora no APERS ainda não tenhamos um organograma oficial atualizado que responda
à prática e às elaborações desse período, compreendemos que nosso fazer cotidiano vem
consolidando um núcleo educativo e cultural, que vem se estruturando para dar conta de
diversas ações educativas realizadas a partir dos acervos, ações de difusão da instituição e
de seus serviços, e do Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS. Como a ação que
provoca a escrita deste artigo faz parte desse Programa, nos deteremos mais a respeito dele
no próximo tópico.
Entre as ações educativas e de difusão podemos citar, além da realização e apoio a
eventos, como seminários, cine-debates e exposições, o serviço “Divulga APERS”, que mantém
o blog institucional, o twitter e a página do Arquivo no Facebook, produzindo conteúdos de
caráter histórico e educativo a partir do acervo, reflexões sobre gestão documental e conceitos
arquivísticos, e divulgando os demais serviços oferecidos pela casa, a formação e a participação
dos servidores em diferentes atividades, etc.; o Projeto “APERS? Presente, Professor! Propostas
Pedagógicas a partir de Fontes Arquivísticas”, que tem como objetivo central levar um pouco
do Arquivo Público para dentro das escolas, a partir da construção de propostas pedagógicas
que tenham como ponto de partida os documentos custodiados pelo Arquivo, disponibilizadas
quinzenalmente em formato PDF no blog Institucional do Arquivo; o Projeto ÁfricaNoArquivo:
fontes de pesquisa e debates para a igualdade étnico-racial no Brasil, que visa ao aprofundamento
da difusão dos documentos relacionados à escravidão no Rio Grande do Sul através da reedição
dos Catálogos de Documentos da Escravidão em formato CD, e a construção e distribuição
de caixas pedagógicas com reproduções de documentos do acervo, um vídeo informativo e
propostas de atividades pedagógicas, que incluem um jogo de tabuleiro especialmente criado
para a ação. São serviços e projetos idealizados e realizados por servidoras da instituição, muitas
vezes em parceria com a Associação dos Amigos do APERS, e sempre em sintonia com demandas
latentes na sociedade, como a modernização dos Arquivos e o uso de mídias sociais, por exemplo.
Como o nome já diz, esse Programa vem sendo construído e desenvolvido em parceria
com a UFRGS, em especial com o Departamento de História através dos professores Igor
Teixeira e Carla Rodeghero, e do Colégio de Aplicação, através do professor Vanderlei Machado,
contando com a contribuição de diversos outros professores e professoras, de estudantes de
graduação e pós-graduação ao longo dos anos, em diferentes momentos.
Nosso trabalho no Programa parte da aplicação da metodologia da Educação Patrimonial,
pensada como “o ensino centrado nos bens culturais, como a metodologia que toma estes bens
como ponto de partida para desenvolver a tarefa pedagógica; que considera os bens culturais
como fonte primária de ensino” (LUPORINI, 2002, p. 327) e aprendizagem. Valorizamos esse
conceito por acreditar que é possível educar e aprender a partir do patrimônio, aguçando e
qualificando nossas formas de perceber, ler e intervir no mundo ao redor, e, por perceber,
que as ações educativas levadas a cabo em arquivos têm potencial para extrapolar a relação
estabelecida com os documentos da instituição em si, conectando-se aos bens culturais
produzidos pela sociedade de forma geral, explorando e problematizando tais contextos
de produção, construindo conhecimentos e reflexões que podem ser utilizados de forma
interdisciplinar nos processos de ensino-aprendizagem, seja nas escolas ou em espaços não
formais de educação, caracterizados pela intencionalidade do educar/aprender.
Entretanto, buscamos superar o formato rígido muitas vezes associado a essa
metodologia, que estaria orientada por um “passo a passo” em etapas: observação, registro,
exploração e apropriação dos patrimônios, em geral os já consagrados, salvaguardados em
museus ou arquivos ou monumentalizados em praças e construções. Buscamos orientar
nossa prática cotidiana pela análise crítica dos bens culturais, relacionando o patrimônio
salvaguardado pelo Arquivo Público com os demais bens culturais produzidos pelos diferentes
grupos sociais que nos circundam, explorando os acervos da instituição ao longo de oficinas
e cursos sem engessar as problematizações em torno de etapas, e sem priorizar qualquer
discurso de valorização que possa enaltecê-los como detentores de verdades absolutas ou de
valores excepcionais em si mesmos.
O Programa chega ao ano de 2014 nesse formato a partir de um longo processo de
contato e troca de conhecimentos e experiências entre professores e estudantes da Educação
Básica e Superior, funcionários e gestores do Arquivo Público. Seu embrião foi semeado na
instituição entre 2001 e 2002, quando foi construída a primeira oficina para estudantes do
Ensino Fundamental, dentro do Projeto “Por dentro do Arquivo”. Ainda que tal atividade tenha
sido aplicada apenas naquele biênio, foi uma importante iniciativa para reconhecer o grande
potencial do APERS enquanto espaço de educação e cultura. Após este período, visitas guiadas
ainda foram oferecidas, mas sem foco nos estudantes da Educação Básica.
No final do ano de 2008, nasceu a parceria entre o APERS e a UFRGS, quando o arquivo
foi procurado pela Universidade no intuito de criar campo de estágio para estudantes de
graduação em História matriculados na então recente disciplina de Estágio em Educação
Patrimonial. A ideia foi abraçada e, logo em seguida, passou-se a elaborar, em parceria entre
servidores do Arquivo e professores da Universidade, a oficina “Os Tesouros da Família
Arquivo”, voltada aos estudantes dos 6º e 7º anos do Ensino Fundamental. Ela passou a ser
oferecida às escolas em abril de 20092 e aborda a escravidão e a luta por liberdade no Brasil a
partir de documentos do acervo que registram a vida de sujeitos outrora escravizados, sendo
representados por um inventário, um testamento, uma carta de compra e venda de escravos,
uma carta de alforria e um processo-crime.
Paralelamente, passou-se a oferecer também um curso de capacitação de oficineiros,
voltado aos estudantes de História e áreas relacionadas ao patrimônio, oportunizando
o contato com a metodologia da Educação Patrimonial, com o debate de conceitos como
patrimônio, memória, identidade e cidadania, e com a prática pedagógica nas oficinas,
atendendo a demanda da Universidade por campo de espaços para seus estudantes. Tal
O APERS é reconhecido pelo suporte que oferece à pesquisa em determinadas áreas como,
por exemplo: escravidão, genealogia e história do Rio Grande do Sul. Nosso acervo possui uma
documentação com vasto potencial para pesquisas que se proponham a escrever a história do
nosso estado e país. Nesse sentido, procuramos direcionar nossas ações para aquilo que define
o motivo de ser da instituição: dar suporte à construção da pesquisa histórica e o acesso às
informações públicas, colaborando para a construção da cidadania, que somente poderá
ser conquistada quando forem garantidos os direitos à memória, à verdade e à justiça. Nessa
perspectiva, para a criação da oficina destinada ao Ensino Médio e EJA, optamos por nos debruçar
sobre uma documentação que pode ser considerada especial quando se está tratando de verdade
e justiça: o acervo da Comissão Especial de Indenização, instituída pela Lei Estadual nº 11.042/97.
série de documentos, oriundos de diversos órgãos públicos, que não geram um processo de
indenização. Concluída esta etapa, a equipe definiu as informações que comporiam o verbete.
Dar acesso às informações públicas é uma obrigação do Estado, assim como é um direito
dos cidadãos garantido por lei. Desta forma, a publicação deste catálogo viabilizará a difusão e
democratização das informações constantes neste acervo de grande relevância histórica para
a sociedade brasileira.
publicizou, na forma de edital, os nomes dos titulares das informações pessoais contidas no
conjunto documental. Nenhum requerente solicitou a manutenção da restrição de acesso e o
acesso à documentação tornou-se efetivamente liberado.
Incitados pelos debates travados no país em torno de nossa tardia Justiça de Transição,
da memória, da história e da verdade relativas ao período da ditadura civil militar brasileira
e, por todo o contexto já mencionado, não havia mais dúvidas de que o tema a ser abordado
por nossa terceira oficina seria ditaduras e direitos humanos. Assim ampliaríamos o público
atendido pelo Programa de Educação Patrimonial, contribuindo para o ensino da temática nas
escolas e fomentando as discussões a respeito das marcas deixadas pela ditadura civil militar
em nossa democracia, iniciamos o processo de pesquisas e elaboração em março de 2013.
Para a execução desta tarefa, o Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS contou
com a colaboração de professores e pós-graduandos da UFRGS, professores da Educação
Básica, e membros da sociedade civil atuantes na área de Direitos Humanos. A partir de reuniões
quinzenais, em um processo de “planejamento participativo”, foram discutidos métodos, etapas,
materiais e conceitos que seriam utilizados na nova oficina. Nesse momento optamos por manter
uma metodologia semelhante às demais oficinas oferecidas pelo APERS, que prioriza o trabalho
com as fontes arquivísticas em pequenos grupos de estudantes conduzidos por oficineiros.
O primeiro passo foi selecionar, partindo dos processos já descritos e assinalados como
potenciais pela esquipe que construía o Catálogo, aqueles que poderiam ser trabalhados,
considerando a riqueza dos depoimentos, a diversidade das provas documentais, o contexto
em que as prisões aconteceram, a ocupação dos ex-presos políticos no momento de sua
detenção e a pluralidade das participações políticas... Paralelamente à escolha dos processos,
foi-se desenhando a metodologia de trabalho durante a oficina com as turmas e preparando
os materiais de apoio que auxiliam na compreensão do contexto histórico e da história de
vida dos personagens.
Sabíamos, portanto, que queríamos trabalhar com a temática da ditadura civil militar
e qual acervo tinha o potencial de responder a essa demanda. Por todas as características
descritas acima, os processos produzidos pela Comissão Especial de Indenização seriam
transformados em fontes promissoras para a construção, junto aos alunos do ensino médio,
de importantes conhecimentos acerca desse período em nosso país. Ainda que consideremos
que seja possível lançar perguntas sobre qualquer documento a respeito de sua produção e
da intencionalidade de que nele estivesse gravado determinado discurso, particularmente nos
documentos desse fundo, percebemos inúmeras versões disponíveis sobre acontecimentos
vividos nos anos de repressão civil militar. Por isso mesmo são, além de vestígios riquíssimos
para trabalhar conteúdos relativos ao contexto histórico da ditadura, fontes complexas para
uma abordagem pedagógica sobre a temática da construção do conhecimento. É também o
momento de olhar para o documento histórico, antes mesmo de tratá-lo pedagogicamente,
junto à Vanguarda Popular Revolucionária e à Aliança Libertadora Nacional. Foi preso em 1968
e foi exilado político no Uruguai. O terceiro é Eloy Martins, metalúrgico, comunista do PCB
de longa data, viveu na clandestinidade de 1964 até 1971 quando foi preso em São Paulo, já
aos sessenta anos de idade, e trazido para Porto Alegre. O quarto é Emílio Neme. Coronel
da Brigada Militar, ele foi o “braço direito” de Brizola durante a Campanha da Legalidade. Foi
posto compulsoriamente na Reserva e preso nove vezes durante os anos de 1964 a 1977. A
quinta personagem é Ignez Serpa, que tinha 21 anos e era estudante do curso de veterinária.
Morava em Porto Alegre e militou junto à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares que
era, assim com a VPR de Gutiérrez, uma organização de luta armada. Ignez foi presa em 1970,
um ano antes da nossa sexta personagem Nilce Azevedo, natural do estado de São Paulo, que
iniciou a militância na USP, formou-se professora e veio para o Rio Grande do Sul trabalhar
como operária a partir de sua militância junto à Ação Popular, organização política que atuava
junto aos trabalhadores na tarefa da conscientização da classe, entendida como a estratégia
para a derrubada da Ditadura.
Para construirmos estratégias de abordagens pedagógicas com os documentos que
nos colocam em contato com essas trajetórias, consideramos a advertência de Luporini
(2002), da necessidade de tratá-los didaticamente, de maneira que sirvam de estímulo para
que os educandos apreendam e aprendam a (re)significar o conhecimento histórico. E diante
da trajetória já percorrida pelo Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS, isso se
torna possível a partir da aplicação da metodologia da Educação Patrimonial, conforme
apresentado anteriormente.
aula, antes da vivência propriamente dita. Composto de um texto que apresenta informações
preliminares a respeito das trajetórias dos personagens, que serão conhecidos de maneira
mais profunda na oficina, e de Histórias em Quadrinhos de situações que os identifiquem, os
materiais são encaminhados para que o professor responsável pelo agendamento da oficina
inicie as atividades ainda na escola.
Em linhas gerais, portanto, as etapas serão as seguintes: a) preparação prévia à oficina,
realizada em sala de aula com mediação do professor; b) recepção dos estudantes: exibição de
um vídeo montado pela equipe a partir de imagens do contexto da ditadura e atuais, tomadas
de cena no APERS e audiovisuais com falas de ex-presos políticos, para contextualizá-los em
relação à temática; c) breve visita pela instituição, momento em que os estudantes poderão
conhecer a estrutura dos prédios onde são salvaguardados os acervos e compreender um
pouco mais a respeito de trabalho arquivístico de organização, preservação e disponibilização
do acervo ao público; d) já no espaço pedagógico do Arquivo, contato inicial com os processos
em versão digitalizada, reproduzidos na íntegra. Esse é o momento de reconhecimento dos
personagens com os quais entraram em contato em sala de aula e também de conhecer a
estrutura do documento em análise, entender como ele é tratado arquivisticamente, porque
foi recolhido ao APERS, entre outras informações gerais; e) intervalo para o lanche; f) análise
do processo com apoio de textos, verbetes de conceitos, imagens, poemas, reportagens de
jornal e outros materiais de apoio, de acordo com o conteúdo de cada documento – esse é o
momento no qual os grupos aprofundam as discussões acerca das trajetórias dos personagens
em questão e de problemáticas relativas à construção do conhecimento histórico; g)
fechamento, momento importante da atividade em que todos os grupos deverão encontrar-
se para compartilhar as experiências de pesquisa ao longo da oficina, relatando aos demais os
conhecimentos que puderam acessar e que produziram no decorrer da dinâmica.
E se, por um lado, consideramos a metodologia da Educação Patrimonial importante para
o desenvolvimento dessa ação educativa; por outro, também acreditamos, além da sistemática
empregada para a análise dos bens culturais, serem indispensáveis os sólidos conhecimentos
históricos assim como referenciais teóricos adequados aos objetivos que desejamos alcançar
com essa prática pedagógica. Seguindo nesse caminho, acrescentaríamos que mais que
sensibilizar o público escolar para as questões do patrimônio e da memória, o contato com os
arquivos e com as fontes neles custodiadas, por meio da metodologia da Educação Patrimonial,
permitem a instrumentalização para o entendimento das relações entre a construção e a
elaboração do conhecimento histórico como aponta Barbosa (2012, p. 04),
Entre setembro de 2013, mês em que aplicamos a primeira prática da oficina “Resistência
em Arquivo” com uma turma escolar, até o dia 23 de outubro de 2014, já foram realizadas
55 oficinas, atendendo cerca de 1.090 estudantes. Algumas escolas trouxeram mais de uma
turma, estabelecendo um vínculo maior com o Programa. Foram alcançadas 24 escolas. De
forma imediata e quantitativa estes são os resultados alcançados até aqui, porém, de longe
eles representam a qualidade daquilo que estamos conseguindo construir.
Desde o processo de produção da oficina, realizado ao longo do primeiro semestre de
2013, que culminou com realização das práticas pilotos a partir de setembro e seu lançamento
oficial em um evento realizado no Arquivo Público em novembro daquele ano, temos
alcançado diversos objetivos qualitativos, como a aproximação com ex-presos políticos e seus
familiares – inclusive contamos com a presença de muitos deles no evento de lançamento
e em outras atividades promovidas pelo APERS – e o fortalecimento dos laços com escolas
e educadores, que consolidam o Arquivo Público do Estado como um local de memória que
valoriza seu potencial educacional, e o Programa de Educação Patrimonial UFRGS/APERS
como uma referência na área. Neste sentido, também sublinhamos como excelente resultado
a consolidação da parceria com a universidade, já que a construção desta oficina se deu de
maneira ainda mais colaborativa do que havia ocorrido em relação às duas primeiras, e os
aportes oferecidos pela UFRGS através de seus professores e estudantes qualificou de forma
importante os debates históricos e teóricos aplicados.
Estamos satisfeitos também com a oportunidade de termos vivenciado as primeiras
experiências realizadas com turmas de EJA, algumas inclusive no turno da noite, para as quais
precisamos organizar toda a logística em função da formação da equipe de cinco oficineiros
em um horário que não é usual. Por enquanto, foram apenas três oficinas com tais turmas,
dado sobre o qual podemos refletir buscando compreender qual o papel socialmente atribuído
ao Ensino de Jovens e Adultos hoje e como podemos contribuir para qualificar essa formação.
Entretanto, algo liga essas oficinas: a evidente sede por saber e a abertura para novas
informações que os estudantes do EJA demonstraram. Podemos apontar entre as perspectivas
para o próximo período a necessidade de divulgar ainda mais este serviço entre professores
do EJA, para aumentar o acesso desse segmento à oficina.
Também estamos empenhados em difundir a oficina e o Programa de forma geral entre
nossos pares, nas áreas de Arquivo e instituições de memória, da História e da Educação. Para
tanto, desde que iniciamos a construção da mesma até o presente momento já participamos de
diversos eventos8 apresentando comunicações e reflexões que têm como objetivos partilhar
experiências, incentivar que outras instituições realizem ações similares, que mais e mais
educadores participem do Programa e se apropriem da metodologia da Educação Patrimonial
– que pode ser aplicada inclusive nas escolas – buscar formação e contribuições críticas para
que possamos qualificar nosso trabalho.
Como perspectiva, assinalamos também para a realização de reflexões acerca dos usos
da oficina “Resistência em Arquivo”, assim como da pesquisa em Arquivos e da produção de
materiais didáticos a partir de nossos acervos de forma geral – nos processos de ensino-
aprendizagem no Ensino Médio, hoje no estado do Rio Grande do Sul pautado pelo ensino
politécnico e o incentivo à pesquisa científica nessa etapa da Educação Básica. Acreditamos
que a metodologia da Educação Patrimonial e a exploração dos arquivos como espaços ricos
em registros de memória e história podem ser bastante profícuos como matéria prima para
essa nova leitura em relação ao Ensino Médio, por estarem pautadas na observação, análise e
problematização de bens culturais para produzir conhecimento por meio deles mesmos.
Também apontamos, tanto como resultado quanto como perspectiva, a contribuição
para a luta por memória, verdade e justiça, que é uma luta cotidiana e possui relação direta
com a educação e o acesso à informação a respeito do que ocorreu durante a ditadura civil
militar em nosso país. Nesse sentido, acreditamos que a cada dia alcançamos resultados, e
seguiremos alcançando, pois temos muita disposição para seguir travando discussões e
incentivando reflexões, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!
Notas
1 Segundo os PCNs: Os documentos são fundamentais como fontes de informações a serem interpretadas,
analisadas e comparadas. Nesse sentido, eles não contam, simplesmente, como aconteceu a vida no
passado. A grande maioria não foi produzida com a intenção de registrar para a posteridade como era
a vida em uma determinada época; e os que foram produzidos com esse objetivo geralmente tendem
a contar uma versão da História comprometida por visões de mundo de indivíduos ou grupos sociais.
Assim, os documentos são entendidos como obras humanas que registram, de modo fragmentado,
pequenas parcelas das complexas relações coletivas (PCNS, p. 55). Acesso em: 23 out. 2014. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro051.pdf>.
2 Ainda naquele ano o projeto foi transformado em ação de extensão universitária junto ao
Departamento de História da UFRGS e a parceria foi consolidada em 2010 através da assinatura de
convênio entre as instituições, trazendo, além de aporte teórico e qualificação às ações desenvolvidas,
a possibilidade de captação de recursos via universidade. Em diferentes momentos já fomos
contemplados com recursos dos editais PROEXT, dos Ministérios da Cultura e da Educação, e Novos
Talentos, da CAPES, viabilizando o oferecimento de transporte gratuito às turmas, contratação de
bolsistas, compra de equipamentos e materiais, entre outros subsídios.
3 A realização do curso para professores veio para suprir uma demanda que se evidenciou desde
2009, já que a continuidade e a qualidade do trabalho desenvolvido no APERS somente são possíveis
a partir da parceria e da sensibilização dos educadores e dos futuros professores. Além do curso de
formação mencionado, que em 2014 está na sua 4ª edição, realizou-se também o Seminário Aplicando
a Lei 10.639: Patrimônio, História e Cultura Africana e Afro-brasileira, em 2012, com planos para sua
reedição, respondendo a outra demanda dos educadores, que encontram pouco espaço para debate
e formação acerca do tema.
4 Lei nº 12.258, de 18 de novembro de 2011, que Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da
Casa Civil da Presidência da República.
5 Decreto nº 46.830, de 17 de julho de 2012, que Cria a Comissão Estadual da Verdade no âmbito do
Estado do Rio Grande do Sul.
6 Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informações previsto no inciso
XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera
a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; que revoga a Lei nº 11.111, de 05 de maio de 2005, e
dispositivos da Lei nº 8.159, de 08 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
7 Instrumento de pesquisa que será disponibilizado em formato digital no site do APERS e impresso
para distribuição em Escolas de Ensino Médio da Rede Pública, Universidades, Bibliotecas e Arquivos
Públicos, bem como Núcleos de Estudos voltados para a temática de Ditaduras e Direitos Humanos.
O Catálogo também será publicado em braile visando à inclusão social dos deficientes visuais, para
que tenham garantidos seus direitos e o acesso a essas informações que contam a história recente do
nosso país.
8 Entre os eventos dos quais participamos podemos citar: Seminário Internacional Documentar a
Ditadura: arquivos da repressão e da resistência, promovido pelo Arquivo Nacional (RJ, 2013), em
que apresentamos duas comunicações; Seminário Arquivos, Ditadura e Democracia, promovido
pela Casa de Osvaldo Cruz/FIOCRUZ (RJ, 2014), em que palestramos a respeito desse trabalho; XII
Encontro Estadual de História, promovido pela ANPUH-RS (RS, 2014), em que estagiários do APERS
apresentaram pôster e também apresentamos comunicação sobre a oficina; Salão de Extensão
UFRGS (RS, 2014) em que a oficina foi apresentada como uma ação de Extensão da Universidade.
Também participamos recentemente de um encontro em São Paulo em que apresentamos nossas
ações educativas para a equipe do Núcleo de Ação Educativa do Arquivo Público do Estado de São
Paulo e para outras instituições paulistas.
Referências
BARBOSA, Andresa Cristina Oliver. Arquivo e Sociedade: experiências de ação educativa em Arquivos
brasileiros (1980-2011). Dissertação (Mestrado em História). - PUC-SP, 2013.
BARBOSA, Andresa Cristina Oliver. Do arquivo para a escola: ação educativa e patrimônio documental.
In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA – ANPUH-SP, 21, 2012, Campinas. Anais... Campinas:
ANPUH-SP, set. 2012.
BRASIL. Lei nº 12.258, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito
da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>. Acesso em: 24 out. 2014.
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso
XXXIII DO ART. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a
Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; que revoga a Lei nº 11.111, de 05 de maio de 2005, e dispositivos
da Lei nº 8.159, de 08 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
19 nov. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.
htm>. Acesso em: 24 out. 2014.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: história, geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível
em:<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro051.pdf>. Acesso em: 24 out. 2014.
KOYAMA, Adriana Carvalho. Educação patrimonial em arquivos hoje: algumas propostas veiculadas na
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Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH/USP, 08-12 set. 2008. Disponível em: <http://www.anpuhsp.org.
br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Adriana%20Carvalho%20Koyama.
pdf>. Acesso em: 22 out. 2014.
LUPORINI, Teresa Jussara. Educação Patrimonial: projetos para a educação básica. Revista Ciências
& Letras, Porto Alegre, n. 31. p. 325-338, jan./jun. 2002.
PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de fontes
na sala de aula. Revista Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p. 113-128, dez. 2008.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 46.830, de 17 de julho de 2012. Cria a Comissão Estadual da Verdade
no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.
RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual nº 11.042/97. Reconhece a responsabilidade do estado do Rio
Grande do sul por danos físicos e psicológicos causados a pessoas detidas por motivos políticos e
estabelece normas para que sejam indenizadas.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a
educação política. 40. ed. Campinas: Autores Associados, 2008.
Resumo: Este artigo tem por objeto as relações entre formação de professores
de história, patrimônio cultural e ensino de história a partir de experiências
realizadas na disciplina de Estágio de Docência em História III – Educação
Patrimonial, no curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Trata-se de reflexões sobre aulas desenvolvidas em espaços
da cidade, compreendendo que o ensino de história pode ocorrer em diversos
contextos e de diferentes formas. As escolhas teóricas sobre formação de
professores estão ancoradas em AntonioNóvoa e Joan Pagès, que nos instigam a
buscar novos espaços e tempos para a aprendizagem dos futuros professores. Para
esta comunicação, optamos em discutir uma dessas experiências desenvolvida
em um bistrô-antiquário de Porto Alegre. O tema foi memória, patrimônio
e objeto gerador, pautado nos seguintes objetivos: discutir os objetos como
evocadores de memórias e dialogar com os conceitos estudados nos textos de
referência, de Francisco Régis Lopes e Ecléa Bosi. A experiência permitiu avaliar
as potencialidades dos espaços da cidade que ajudam a problematizar temas
relevantes do currículo da história na Educação Básica. Portanto, é fundamental
proporcionar aos licenciandos vivências com esses elementos, que acompanhadas
das contribuições de pensadores, podem se transformar em conhecimentos que
fundamentem práticas futuras.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
*
E-mail: [email protected]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
**
E-mail: [email protected]
Cultural Heritage and History Teaching:
Experiences in History Teachers’ Education
Abstract: This article focuses on the relations among history teachers’ education,
cultural heritage, and educational history, from experiences in the subject History
III Teaching Internship - Heritage Education in the Licentiateship in History from
the Federal University of Rio Grande do Sul. These are reflections on lessons
developed in city spaces, understanding that the teaching of history can occur
in different contexts and in different ways. Nóvoa Antonio and Joan Pagès served
as a base for the theoretical choices on teachers’ training, which encourage
us to seek new spaces and times for the learning of future teachers. For this
presentation, we have decided to discuss one of these experiences developed
in a Porto Alegre antique bistro. The themes were memory, heritage, and object
generator, based on the following goals: to discuss the objects as evocative of
memories and dialogue with the concepts studied in reference texts, Francis
Regis Lopes and EcléaBosi. The experience enabled us to evaluate the potential
of city spaces that helped us discuss relevant topics of the history curriculum in
Basic Education. Therefore, it is essential to offer undergraduates experiences
with these elements, which together with the contributions of thinkers, can turn
into knowledge to justify future practices.
Resumen: Este artículo tiene por objeto las relaciones entre formación de
profesores de historia, patrimonio cultural y enseñanza de la historia, a partir
de experiencias realizadas en la asignatura “Estágio de Docência em História III
– Educação Patrimonial” de la Licenciatura en Historia de la Universidad Federal
del Río Grande del Sur (Porto Alegre – Brasil). Se trata de reflexiones sobre clases
que se pasan en distintos espacios de la ciudad, bajo la comprensión de que la
enseñaza de historia puede ocurrir en distintos contextos y de distintas formas.
Las elecciones teóricas sobre formación de profesores están basadas en Antonio
Nóvoa y Joan Pagès, que nos movilizan a buscar nuevos espacios y tiempos para el
aprendizaje de los futuros profesores. En esta presentación, optamos en discutir
una de esas experiencias, desarrollada en un bistró-anticuario en Porto Alegre.
El tema de la clase fue memoria, patrimonio y objeto que generador, pautado
en los siguientes objetivos: discutir los objetos como evocadores de memorias y
dialogar con los conceptos estudiados en los textos de referencia, de Francisco
Régis Lopes y Ecléa Bosi. La experiencia ha permitido evaluar las potencialidades
de los espacios de la ciudad que ayudaron a problematizar temáticas relevantes
del currículum de historia en la Educación Básica. Por lo tanto, es fundamental
proporcionar a los licenciandos vivencias con esos elementos, que acompañado
de las contribuciones de pensadores, se pueden transformar en conocimientos
que fundamenten sus prácticas futuras.
Palabras-claves: Formación de profesores; patrimonio y educación; enseñanza
de la historia.
29
[...] Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada que
nem em sonhos sonhei...) [...]
Introdução
Este artigo tem por objeto as relações entre formação de professores de história, patrimônio
cultural e ensino de história a partir de experiências realizadas na disciplina de Estágio de
Docência em História III – Educação Patrimonial (EDU02X12), ministrada pelas autoras, no curso
de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A partir da publicação da Resolução do CNE/CP 02, de 19 de fevereiro de 2002, que
institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura de graduação plena, o Curso de
História da UFRGS tem sua carga horária reorganizada e passa a ter a seguinte configuração,
no que diz respeito às disciplinas da área de Ensino de História: Introdução à Prática e Estágio
de História: discute autores e temas relativos ao ensino da História. Estágio de Docência em
História no Ensino Fundamental, Estágio de Docência em História no Ensino Médio e Estágio
de Docência em História – Educação Patrimonial. Assim, a carga horária contempla dois
estágios em ambiente escolar, permitindo vivenciar a realidade do ensino de História também
com jovens, o que possibilita discutir expressões das culturas juvenis. A grande inovação,
nesse momento, foi a criação de um estágio em espaços não escolares.
A disciplina de Estágio III – Educação Patrimonial explora arquivos, memoriais, centros
culturais, museus, acervos particulares com acesso permitido, exposições permanentes ou
temporárias, bibliotecas históricas de visitação livre, prédios históricos abertos ao público,
etc. Também discute questões de ordem teórica, apoiada nas noções de memória, de ensino
de história e de patrimônio cultural. A carga horária dessa disciplina está distribuída em três
momentos: atuação nas instituições culturais, aulas presenciais na Universidade e orientação
individual ou em grupo. Nos espaços de atuação, o acadêmico realiza observações, monitoria
e docência em História, acompanhando as atividades cotidianas das instituições culturais,
em especial as ações educativas (acompanhar o mediador nas visitas guiadas, participar das
reuniões de estudos organizadas pela instituição e propor atividades com o acervo). Algumas
das instituições têm reservado uma parte da carga horária para a formação dos estagiários
promovendo debates, leituras e estudo das ações educativas que, em alguns casos, encontram-
se sistematizadas e publicadas (GIL; TRINDADE, 2014).
30
GIL, C.; PACIEVITCH, C.
Patrimônio cultural e ensino de história...
e tenham condições de trabalho para realizá-los. Porém, como garantir que esses objetivos
tornem-se comuns a todos os docentes? Entraria aí o papel da formação. Por isso, no fundo
das utopias do ensino de história, parece residir uma profunda esperança (BLOCH, 2005) no
poder da formação dos professores. Sabemos dos problemas e dos potenciais da formação
inicial. Porém, ainda sabemos pouco sobre quem é o agente dessa formação. Quem assume
a responsabilidade para preparar o professor? O currículo? As políticas públicas? A pesquisa
universitária? O professor universitário? O próprio licenciando? Talvez possamos indagar de
outra forma: que ensino de história é possível fazer nas condições que temos?
Não procuramos aqui por uma resposta única. Acreditamos que todos os aspectos
mencionados no parágrafo acima são relevantes e se concretizam na trama um com o outro.
É preciso lembrar que o professor e a professora iniciaram sua formação desde seus primeiros
contatos com a escola. As memórias do tempo de aluno, as representações sociais sobre ser
professor e as próprias utopias políticas e educacionais ajudam a forjar as escolhas que cada futuro
docente constrói ao longo de sua formação – que se estende por toda a vida profissional. Talvez
uma síntese interessante já tenha sido oferecida por Elison Paim (2005), com sua proposta da
formação de professores como um contínuo “fazer-se professor”. Tornar-se professor se refere,
em sua visão, a processos complexos em que memórias e saberes se amalgamam de forma sensível,
aos poucos constituindo a profissionalidade almejada. Assim, a tarefa de formar professores não
se restringe a transmitir conhecimentos, a oferecer modelos, ou a momentos de reflexão.
Nessa parte do artigo, nos concentramos sobre o papel da professora formadora
como aquela que personifica a instituição universitária, a pesquisa e a erudição acadêmica.
Somos aquelas que interpretam um currículo estabelecido por um colegiado de professores
num determinado tempo que, por sua vez, se embasa em resoluções nacionais (que também
se integram a tendências mundiais) e se adapta aos recursos e espaços de cada instituição.
Tentamos conhecer nossos alunos e programar uma disciplina adequada às suas expectativas e
necessidades e também às demandas sociais sobre o professor de história, principalmente na
região em que irão atuar. Selecionamos os referenciais teórico-metodológicos que orientarão as
leituras e, assim, privilegiamos uns aspectos e recusamos outros. Definimos as estratégias para
a rotina das aulas ao longo do semestre e formulamos os critérios para a avaliação que orienta
nosso trabalho. É impossível separar, aqui, afetos de sentimentos e ressentimentos; o “sonhar
desperto” do ceticismo de professoras e estudantes. Acompanhamos a hipótese formulada em
escritos recentes da historiadora Vera Lúcia Sabongi De Rossi (2010), para quem constituímos o
“eu” e o “outro” na troca de olhares e no encontro. Para De Rossi, é possível pensar a existência
da produção política de sentimentos em educação, quando “[...] a experiência educativa de
partilha de vida, de amor e de responsabilidade pelo mundo (conforme expressão de Arendt), é
negociada, segundo padrões de distância e de proximidade do outro” (DE ROSSI, 2010, p. 185).
Acreditamos que universidade, políticas públicas, tendências filosóficas, historiográficas
e econômicas regionais, nacionais e mundiais se encontram, nesse conjunto de tarefas, como
elementos que compõem a complexa trama de formar um professor. Não são influências que
se poderiam hierarquizar. A mirada, nesse caso, se dirige ao microcosmo da disciplina de
Estágio, considerada, por alguns, como o lugar privilegiado para a formação dos professores
(IMBERNÓN, 2010).
[...] até que ponto a valorização das memórias tem corroborado para movimentos sócio-
culturais inovadores (produtoras de rupturas do status quo) e/ou para o fortalecimento
da sociedade de mercado, produtora de imagens mercantilizadas, hierarquizadas
culturalmente, ou, mesmo, de simulacros? Para tal debate, voltamo-nos para a reflexão em
relação ao micro-cosmo da cidade – lugar complexo, multifacetado, polimorfo, polifônico,
da sociedade moderna/pós-moderna. Mônada concebida como a cristalização das tensões
(Walter Benjamin), onde se inscrevem práticas sócio-culturais, plurais, contraditórias,
Galzerani (2012) posiciona-se por uma apropriação do pensamento de Walter Benjamin que
favoreça a construção de projetos para o ensino de história que valorizem as memórias de todos
os grupos sociais na construção da história, tarefa que pode ser viabilizada pela manipulação da
ideia de mônada. Segundo Petrucci e Ramos (2008, p. 569): “[...] numa perspectiva benjaminiana,
mônadas são pequenas crônicas que guardam consigo fragmentos de histórias mas que, juntas,
exibem a capacidade de dar sentidos a um contexto maior”. Assim, recorrer a memórias individuais
não significa apenas valorizar cada visão pessoal, mas possibilitar a interlocução com outras
histórias e construir narrativas sobre a cidade que são sensíveis, porque emergem das experiências
e interrogações das pessoas envolvidas com o tema. Novamente na esteira de Galzerani (2012),
seria uma forma de tornar consequente o conselho que Benjamin ofereceu aos historiadores em
suas teses sobre o conceito de história: “escovar a história a contrapelo”. Privilegiar as memórias
dos que não estão nos livros didáticos nem nos monumentos oficiais é, certamente, uma forma
instigante de ensinar história. Outro aspecto de interesse no pensamento benjaminiano seria
pensar a cidade com seus passados, que parece ganhar atenção justamente quando mais se fala
em globalização e desterritorialização. Será uma incoerência? Para Sonia Miranda e Lana Siman
(2013), não. Hoje, o Brasil é um país urbano e a maioria dos estudantes da escola básica transita por
realidades urbanas. A cidade, que já foi tema na literatura como lugar de futuros perfeitos, é hoje
entendida como, no ensino de história, espaços com história e memória que ajudam a materializar,
de certa forma, relações entre presente, passado e futuro em seus distintos testemunhos: muros,
ruas, construções e habitantes. A cidade como palimpsesto, com camadas de tempo que podemos
destacar ou confundir, oferece balizas temporais e fontes de significados distintos, conforme os
espaços que se abrem ou se interditam aos cidadãos. A cidade é também ágora, lugar de disputa,
de ócio e de protesto. Identidades se mesclam e fluem pelas ruas. A cidade é problema: pobreza
e riqueza em encontros pacíficos ou não. Civilidade, cidadania, urbanidade, política: palavras
possíveis nos jogos entre cidade, ensino de história e patrimônio cultural.
Para aprofundar a relação entre cidade e ensino de história, ZitaPossamai (2010), no seu
artigo “Cidade: escritas da memória, leituras da cidade”, nos convida a caminhar no centro
da cidade de Porto Alegre e observar suas ruas, prédios, como o Paço Municipal, a Biblioteca
Pública, a Confeitaria Rocco, o Palácio Piratini, o Museu de Artes; também o imponente
viaduto da Borges de Medeiros, os sebos com seus belos livros, os cafés, o comércio de rua,
os ofícios antigos que resistem na Praça da Alfândega, como a movimentação dentro e fora
do Mercado Público. Inspiradas em Paul Ricoeur (2007), podemos observar o mesmo centro
e pensar nos abusos e esquecimentos da memória. Abusos nos nomes das ruas que remetem
ao barão, conde, duque, coronel, marechal ou nos suntuosos prédios que foram residência
de ilustres personagens ou centro administrativo de um determinado período histórico. Ao
mesmo tempo, os revides da memória que insiste que a Rua dos Andradas é a Rua da Praia.
Alunos e professores podem caminhar pela cidade como se ela fosse apenas a superfície
onde acontece a vida. Mas também podem ir até ela como o flaneur, juntando o ócio e o estudo,
a apreciação e a crítica, exercitando o estranhamento. Que tal olhar, para o lugar em que se
Após esse momento, cada aluno apresentou um objeto que trouxe de casa, considerado
um objeto biográfico, que, para Ecléa Bosi (2003, p. 26):
[...] são estes os objetos que VioletteMorin chama de objetos biográficos, pois envelhecem
com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias,
a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante... Cada um
desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva do morador.
Lembramos de alguns objetos trazidos pelos alunos na aula: boneco playmobil, Barbie
negra, pião artesanal, pote de açúcar, rádio de pilha, câmera fotográfica de filme, monóculos
com fotos na praia, chuteiras, bicicleta, livros de histórias infantis, manual de RPG... São
objetos que lembram episódios da vida de cada um e, por seu significado afetivo, têm valor
especial na história de vida. Por isso são insubstituíveis e suas marcas conduzem a perceber a
continuidade, justamente porque nos acompanham há tanto tempo.
A partir dessas apresentações, iniciamos um conjunto de reflexões sobre os objetos que
nos cercam; que povoam nossas casas e nossos ambientes de trabalho. Trata-se de seguir o que
sugere Francisco Regis Lopes (2004, p. 21) a respeito de uma pedagogia do objeto para ensinar
história: “[...] se aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler objetos, de observar
a história que há na materialidade das coisas”. O copo plástico tomado como fragmento do
tempo monetário; um certificado de conclusão de curso de datilografia evidencia mudanças
no mundo do trabalho; um disquete (objeto desconhecido para alguns alunos de 4º ou 5º
ano) atesta as rápidas transformações nos suportes de armazenamento de informações que
estamos vivendo. A sociedade de consumo favorece a aquisição constante de objetos.
Regis Lopes (2004) alerta ainda sobre o aumento dos objetos criados em desespero
contínuo, para alimentar o consumo, igualmente desesperado. Ou, como diz Jean Baudrillard
(1995, p. 15): estamos no tempo dos objetos, “os objetos viam o nascimento e a morte de
gerações humanas. Atualmente, são os homens que assistem ao início e ao fim dos objetos”.
E Beatriz Sarlo (1997, p. 26) indica que o consumidor da atualidade é um “colecionador às
avessas” que coleciona o ato de adquirir objetos. Objetos efêmeros, que nos escapam, porque
não podemos consegui-los ou porque já os conseguimos.
Assim, objetos como indícios de mudanças e permanências, potencializam problemáticas
para as aulas de história: discutir o presente como um tempo que nos desafia a mudar as
coisas que fazemos e a maneira como as usamos. Necessário, então, construir modelos de
vida mais sustentáveis, questionando procedimentos produtivos, necessidades de consumo
e valores em relação ao mundo físico. Certamente, o pensamento histórico tem a contribuir
também neste caso, como mostram alguns trabalhos de história ambiental articulados com
interesses pedagógicos (MARTINEZ, 2004). Questões socialmente vivas que tornam o ensinar
história mais próximo dos interesses dos estudantes e do compromisso social.
Outra discussão que foi potencializada com a atividade – aula no bistrô – diz respeito
à dimensão pedagógica do museu, espaço da cultura material. Mais especificamente,
discutimos os objetos no museu, o que implica debater escolhas: por que estes objetos estão
no acervo, na exposição, nesta sala, nesta posição, próximo a outros objetos, com mais ou
menos iluminação? Multiplicam-se as perguntas para pensar diferentes ligações entre ensino
de história, o museu e objetos. Em outros termos, instituir, com o estudo dos objetos, uma
pedagogia da pergunta (LOPES, 2004, p. 55) e pensar o tempo da cultura: como ferramentas,
roupas, máquinas, quadros, panelas, pratos, livros, entre tantas outras coisas, podem informar
sobre o que os seres humanos são capazes de fazer? Estudá-los, é, sem dúvida, compreender
nossa historicidade na feitura das coisas. O fazer do mestre e do aprendiz nas oficinas
medievais, a máquina industrial que opõe proprietário e operário na produção das coisas e,
hoje, tempos em que a máquina assume a produção.
Esse exercício com os objetos e as reflexões provocadas, suscitaram aprendizagens,
explicitadas pelos alunos nos depoimentos abaixo:
Sobre a experiência no Bistrô, foi bacana. Instigou a memória. Alguns objetos podiam ser
relacionados com a nossa história particular, o que provocou uma aproximação com o espaço
em que estávamos. Também devido ao ambiente não escolar ou universitário, possibilitou
outro tipo de diálogo com o conteúdo que estava sendo estudado, além de buscar em nós
parte da nossa trajetória que poderia ser contada através de objetos nossos ou semelhantes
aos nossos (Depoimento escrito por estudante da disciplina – turma 2014/2).
Achei a experiência de termos uma aula no Bistrô do Caminho muito positiva. Além dos
aspectos mais ‘óbvios’, relacionados ao fato de estarmos explorando um espaço que é diverso
da sala de aula, com suas dinâmicas próprias, foi interessante pensar o patrimônio em um
ambiente que também possui esse cuidado. Instigou-me muito a forma bastante pessoal
com que o proprietário do bistrô [...] lida com os objetos. Existe uma relação de afetividade
com eles, além da sua funcionalidade decorativa e do seu valor de venda. Parece-me que a
aula contribuiu para humanizarmos a relação sujeito-objeto que se discutia, para além dos
textos, o que também ocorreu enquanto fazíamos a dinâmica de apresentação com o que
cada um trouxe de casa (Depoimento escrito por estudante da disciplina – turma 2014/2).
a técnica estará sempre intimamente ligada à expressão” (SENNETT, 2012, p. 169). Como diz este
autor, “fazer é pensar”. Essa assertiva nos conduz a explorar o vínculo entre a mão e a cabeça. Dito
de outra forma: e os professores? Como pensá-los junto a cozinheiros e artífices?
As representações que temos da docência parecem residir na separação entre o fazer, o
pensar e o ser. Separação que não é de hoje, como mostrou Maria Cecilia Christiano de Souza
(2000, p.15).
Pouca atenção foi dada à irredutibilidade mútua existente entre o universo e a práxis e
suas complexas mediações. A percepção da educação como ‘aplicação de ciências’ levou
à ideia de que o olhar sobre a experiência docente necessariamente é objeto de crítica,
e por crítica entende-se uma desqualificação preliminar. [...] As descobertas chamadas
científicas, no fundo meramente técnicas, atropelaram a experiência das escolas, a história
de alunos e de professores.
A dicotomia entre teoria e prática tem a ver com a forma como a riqueza é produzida
hoje. Seguindo André Gorz (2005), sabemos que interessa aos detentores do capital o domínio
da produção do conhecimento e o controle de sua expansão. Em outras palavras, a tarefa
que é típica do professor – construir saberes que atinjam o maior número de pessoas e que
permita sua recriação constante – pode ser um ato de resistência (GORZ, 2005).
Por isso, nosso interesse em proporcionar aos nossos alunos elementos para que sejam
criadores de seus caminhos. Joan Pagès costuma comparar o professor de história a um cozinheiro.
Segundo ele, o cozinheiro precisa saber muito sobre os ingredientes que tem à sua disposição:
qual seu sabor, em que época do ano está disponível, qual é mais adequado para as primeiras
refeições ou para um lanche reforçado, que técnicas são as melhores para cada tipo de alimento...
Além disso, é ele que prepara o menu de forma equilibrada, sem salgar demais, nem deixar insosso.
Em síntese, o professor/cozinheiro oferece saberes em dose suficiente: não para empanturrar-se
de conteúdo, mas para saborear cada porção e nutrir-se adequadamente. Por isso, a aula no bistrô
revestiu-se de vários significados para nós, pois dialogou com nossa concepção de professor
e permitiu o contato direto com dois elementos fundamentais da discussão sobre patrimônio
cultural e ensino de história propostos na disciplina: a cidade e os objetos.
Ensinar história com a cidade, ocupando seus cantos e recantos nos fez pensar no
sentido da aula. Recorremos às palavras de Carlos Rodrigues Brandão (2002) para dizer que:
Quando Roland Barthes proferiu sua conferência de ingresso no College de France, ele
escolheu como tema de sua aula: a “aula”. Isso mesmo. Ele tomou o tema de seu ofício –
ser professor e “dar aulas” – como assunto de sua aula magna. Ao concluí-la, ele disse um
último parágrafo do que veio a ser mais tarde um de seus livros. Transcrevo do que ele
disse ao final de sua aula sobre a ”aula”, por agora, apenas a primeira parte: ‘Há uma idade
em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe;
isso se chama pesquisar’. (BRANDÃO, 2002, p. 68-69, grifo do autor).
A citação é interessante para pensar esse movimento de fazer a aula fora da “aula
convencional”, a sala. O estranhamento e a dúvida foram elementos impulsionadores para tal
atividade. Aí reside um dos fundamentos do ensinar e do aprender. Ou, nas palavras de Barthes,
a aula como pesquisa. Pesquisa como um movimento de busca, inquietude, curiosidade, tanto
sobre “o que” se ensina, quanto sobre “o modo” pelo qual se ensina. Em síntese, estamos
buscando religar a cidade e a sala de aula, propondo estratégias pedagógicas que instiguem a
formulação de perguntas, base para a pesquisa em sala de aula.
Há nestes escritos também a tentativa de valorizar a cultura material como fonte para
as aulas de história, marcadamente planejadas com a palavra escrita – os textos. Por que
não acreditar que podemos também ensinar e aprender com objetos? Entre textos e objetos
provocar leituras diversas da cidade e fazer das aulas palco de perguntas a muitas mãos, que, por
sua vez, podem estimular novas formas de ler e escrever na disciplina de história. Lembramos
aqui as palavras do personagem do filme “Sociedade dos poetas mortos”:
O que quer que lhes digam, palavras e ideias podem mudar o mundo... Subo aqui para me
lembrar sempre de olhar as coisas de outra maneira. Daqui o mundo parece diferente!
Quando pensam que sabem algo, procurem olhar de outra maneira. Mesmo que pareçam
tolo, ou errado, devem tentar. Não considerem só o que o autor pensa. Considerem o que
vocês pensam. (SOCIEDADE..., 1990).
Talvez um bom conceito para aula fosse pensá-la como um espaço que ajuda a ampliar o
“olhar” de quem pergunta ou, dito de outra forma, de quem pesquisa para se tornar professor e,
tornando-se, não deixa de ser pesquisador. Professor pesquisador é aquele que pensa sua profissão
de forma crítica. Ele reflete, estuda, cria e atua sobre os temas que envolvem os processos de
ensinar e de aprender e também sobre as relações entre sua profissão e a política (GIROUX, 1997).
Não se trata de fazer pesquisa acadêmica paralela às atividades cotidianas da docência, como se
existisse um saber “maior”, que é a pesquisa, com a qual o professor tivesse de se ambientar.
Ao concluir esse relato, reafirmamos a crença na escola como espaço-tempo da
ambivalência: da crise, da pobreza simbólica e do vazio a ilusão fecunda (SPOSITO, 1993). Lá,
onde se pode aprender o que não está no lugar comum e que não se torna tão rapidamente
ultrapassado quanto os conhecimentos de informática, por exemplo, pois é o lugar em que
abrimos as janelas para a entrada das utopias, com sua “brisa anárquica” que nos permite
seguir trabalhando (JACOBY, 2007).
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E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Do You remember the First Time?
A Paternity Investigation Lawsuit
between History Writing and Teaching
Abstract: In this article, we show some conclusions obtained from the analysis
of one of the educational activities of the Judiciary Regional Memory Center
(CMRJU/IMHC/UCS) focused on teachers’ and researchers’ education,
mainly history students, from the Universidade de Caxias do Sul. To this end,
through a case study, we present, discuss, and apply the methodology created
specifically to develop, in conjunction, the skills and competencies of research
and teaching. Thus, by examining a paternity investigation lawsuit, we carry
out some discussions on 1) the social position of the source and its characters;
2) the relations between the voices of people and institutions; 3) the central
and peripheral subjects; and 4) the educational appropriations arising for the
researcher. In this way, we demonstrate that the use of lawsuits in the classroom
is configured as a strong feature to mediate some renewed approaches on the
school and academic knowledge.
44
Considerações Iniciais
Este artigo surgiu a partir de análises feitas sobre ações educativas realizadas com fontes
judiciais no Centro de Memória Regional do Judiciário, vinculado ao Instituto Memória Histórica
e Cultural da Universidade de Caxias do Sul (CMRJU/IMHC/UCS). As especificidades das fontes
judiciais podem levar o pesquisador e o professor a acreditar que não é possível trabalhar
com elas em sala de aula ou na escrita da História. Então, nesse artigo vamos demonstrar
que o uso de processos é, de fato, uma ferramenta muito rica e que pode contribuir muito na
pesquisa e também na prática pedagógica. Visando integrar as atividades de pesquisa e ensino
na formação de professores de História, nossa análise é feita de modo recíproco: mostra o
historiador inquirindo uma fonte para ensino e o professor de história para pesquisa.
Para isso, apresentamos, discutimos e aplicamos uma metodologia criada especialmente
para o trabalho de desenvolver em conjunto as habilidades e competências de pesquisa e de ensino.
Ao analisarmos uma Ação de Investigação de Paternidade, conduzimos a algumas discussões
sobre: 1) o lugar social da fonte e de suas personagens, 2) as relações entre as vozes de pessoas
e instituições, 3) as temáticas centrais e periféricas e 4) as apropriações didáticas que surgem
diante do pesquisador. Todos os nomes dos envolvidos foram substituídos por pseudônimos,
respeitando o Termo de Convênio assinado entre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
(TJRS) e a Fundação Universidade de Caxias do Sul (FUCS) para o uso dessa documentação. Os
locais, as datas dos acontecimentos e a ortografia original da fonte foram mantidos.
A experiência e os experimentos do
Centro de Memória Regional do Judiciário
45
MONTEIRO, K.; BALÉM, W.
“Lembra-te da primeira vez?” Um processo...
O processo número 04, da caixa 49A é uma Ação de Investigação de Paternidade iniciado
em 1954 e findo em 1958, julgado na Comarca Caxias, sendo que em alguns momentos eram
encaminhadas cartas precatórias para questões pontuais a serem resolvidas na Comarca de
Porto Alegre. Ele foi levado a cabo no âmbito da 1ª e da 2ª Vara Civil e Criminal da Comarca
Caxias do Sul e da instância superior do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Encontra-
se em estado regular de conservação, com marcas de ferrugem dos excessivos grampos que
fixavam as páginas, com a capa e algumas contracapas avariadas e manchadas pelo tempo que
passou em condições de preservação precárias, antes de chegar ao CMRJU.
Os autos são formados por 220 folhas constituídas das mais diversas origens. Contêm
os documentos tradicionais de um processo, como a petição inicial, procurações, citações,
inquirições de testemunhas, etc. Também possui documentos que foram arrolados ao
processo e utilizados para “comprovar” as versões alegadas pela autora e pelo réu e que
passaram pela paginação oficial feita pelo escrivão, tornando-se parte do documento em si:
trata-se de fonogramas e telegramas para evidenciar que as partes se conheciam; o exame de
tipo sanguíneo, para comprovar a probabilidade do pai da criança ser o réu; fotografias que
foram usadas para encontrar semelhanças entre os supostos pai e filho. Tudo isso torna o
processo uma unidade orgânica, onde um documento não faz sentido sem o outro.
Os documentos reunidos que formam os autos de um processo são emitidos com
funções específicas para fins judiciais. Mas eles também permitem que sejam estabelecidas
as narrativas, as tramas que compõem a especificidade do processo. Durante o julgamento,
vence a narrativa que melhor convencer o juiz ou os jurados, em termos comprobatórios e de
jurisprudência, o que não tem a ver, necessariamente, com a verdade ou com a justiça. Somente
com essa documentação não é possível estabelecer qual é a narrativa mais verdadeira, mas
isso não é sempre necessário ou possível. Mais fecundo é buscar compreender quais são as
versões narrativas em disputa, seus discursos e intencionalidades. Isso permite um melhor
entendimento da sociedade e do tempo que esses documentos representam.
Helena Oliveira da Silva nasceu em janeiro de 1930 na cidade de Vacaria, RS. Possuía
irmãos, mas o processo não especifica quantos eram. Foi criada por uma tia e madrinha. Seu
pai trabalhava por jornadas, era um jornaleiro, e a ocupação de sua mãe não está clara na
documentação: o réu alega que ela era uma prostituta; a autora defende que era uma mulher
que vivia em padrões socialmente aceitos de moralidade, embora a família fosse muito pobre.
Este último fator, inclusive, é evocado pela autora como justificativa de deixar sua cidade natal.
O pai, querendo que seus filhos estudassem, enviou-os para viverem sob os cuidados de famílias
amigas, que tivessem condições de recebê-los. Assim foi com Helena, que aos 17 anos passou
a viver na casa da família de Sérgio Vetorazzi, em Porto Alegre. Vetorazzi costumava receber e
alugar quartos em sua casa para filhos de famílias amigas, especialmente de Caxias do Sul, para
que os rapazes pudessem estudar ou trabalhar na capital. Helena, em troca da possibilidade de
estudar e tentar uma vida melhor que a de seus pais, trabalhava como doméstica na casa dos
Vetorazzi. Ela permaneceu vivendo com essa família até, pelo menos, o final do processo.
Em agosto de 1948, aos 18 anos, chegou de Caxias do Sul para estudar na capital do
estado, Pedro Antônio Bernardi, que se hospedou na casa dos Vetorazzi. Ele nasceu no
primeiro semestre de 1930, sendo alguns meses mais novo que Helena. Era filho de Agnelo
Bernardi, uma família de comerciantes caxienses de classe alta, e viera residir em Porto Alegre
para terminar o nível de ensino “científico”.
Helena e Pedro tornam-se amigos e em seguida iniciam um namoro a contragosto da
família Vetorazzi. Trocam promessas de casamentos e começam a passar mais tempo juntos
e sozinhos. Em abril de 1951 têm sua primeira relação sexual, o que veio a se estender até
setembro ou outubro, quando Helena descobriu que estava grávida. No segundo semestre
de 1951, quando os fatos vêm à tona, Pedro é expulso da casa de Vetorazzi e volta a Caxias.
A criança nasceu em 1952. Os pais de Pedro, não aceitando que ele pudesse se casar com
uma mulher pobre, o mandam para uma viagem de alguns meses pelas Repúblicas do Prata.
Quando ele retorna dessa viagem, casa-se discretamente com outra mulher.
Helena tenta por pelos menos três vezes conversar com o rapaz para que ele assuma o
filho, mas, diante das repetidas negativas, em 7 de maio de 1954, quando a criança chamada
Luis Antônio tinha dois anos de idade, ela solicita um advogado público e entra com uma Ação
de Investigação de Paternidade contra Pedro Antônio, na Comarca Caxias do Sul. A petição
inicial da autora é um longo documento que desde o começo busca evidenciar que Helena
e Pedro se conheciam e que mantiveram um relacionamento conjugal por tempo suficiente
para a concepção de uma criança. O réu contesta a ação alegando que não é o pai da criança
e que o fato de terem mantido um relacionamento amoroso não significa que o filho seja dele.
Pedro alega que Helena se prostituía desde sua adolescência em Vacaria e que continuou a
fazê-lo enquanto viviam sob o mesmo teto em Porto Alegre.
Uma das “fontes dentro da fonte” mais importante desse processo é a carta enviada pelo
réu à autora em janeiro de 1952, antes do início da ação judicial. Nessa carta, Pedro Antônio
relata suas impressões sobre seu relacionamento com Helena:
Em tua 1ª carta escrevestes no final: “o primeiro amor não morre. 2 anos.” Helena, Helena,
tens razão. Mas, sempre êste mas, quando uma pessoa ama outra, como eu a ti, espera
tudo da outra. Helena, o nosso caso por exemplo: eu estava apaixonado por ti mas, tu não
eras o que eu desejava… não eras virgem. Lembra-te da primeira vez? Eu disse que tu não
eras virgem e que tu já tinhas sido de outro e, tu começaste a chorar dizendo que não e
eu contornei a situação tentando saber quem era o 1º mas, continuastes a negar pensando
que poderias me convencer e naquele momento eu tive a maior desilusão da minha vida.
Pensei, pensei a fundo e vi, que, a pessôa que eu mais amava não era virgem, já havia sido
de outro. (grifo nosso).
É em torno das alegações dessa carta, que possui três páginas, que ele tenta construir
a imagem de Helena como uma mulher desonesta e não mais virgem, posando ele de vítima
da mulher ardilosa.
As testemunhas da autora, entre as quais membros da família Vetorazzi, o médico da
família e vizinhos defendem que Helena era uma moça recatada e que sempre resguardou
a moral e os bons costumes. Só teria “se deixado deflorar” mediante as juras de amor e de
casamento que recebeu do réu. Este, por sua vez, prende-se em detalhes semânticos da
jurisprudência, talvez para alongar o processo, e na tese de que Helena e os rapazes que
residiam na casa de Vetorazzi viviam em uma espécie de concubinato, sendo Pedro só mais
um a integrar a “partilha sexual”. As testemunhas do réu, entre os quais alguns dos referidos
rapazes, nem quaisquer outros documentos nos autos puderam comprovar a tese de Pedro. Já
Helena conseguiu sustentar sua versão de forma bastante convincente e uniforme.
Os lugares sociais
uma pensão de alimentos através dos artigos 366, que permite, sendo a sentença favorável, a
criação da criança longe dos genitores, no caso, do pai; do artigo 396, que permite a exigência
de uma pensão alimentícia para a criança; do artigo 397, que prevê o pagamento dessa pensão
pelos pais ou parentes do réu, caso este não pague; e do artigo 400, que determina que a
pensão deva ser adequada aos recursos do pagante e das necessidades daquele que a recebe.
O processo tramita entre 1954 e 1958, sendo iniciado na Comarca Caxias, mas também
circula em Porto Alegre. No entanto, os autos fazem referência a diversos outros espaços e
tempos. Quando narra a trajetória de Helena, fala sobre sua vida empobrecida no interior de
Vacaria, fala do trabalho do pai, possivelmente um jornaleiro que se empregava nos campos
para o trabalho durante as safras ou na lida com o gado nas vacarias. Os autos também
mencionam, embora brevemente e sem muitos detalhes, da viagem de Pedro pelas Repúblicas
do Prata, onde ficou por alguns meses. Além dessas alusões aos espaços onde ocorreram as
ações, é importante ressaltar que esses eventos ocorrem nos anos de 1940 e principalmente
na década de 1950, um período de fortes transformações econômicas, sociais e culturais.
As vozes
A segunda etapa da análise tem como objetivo identificar as diferentes vozes sociais
do processo entendendo-o como uma fonte dialógica (BARROS, 2013). Com isso queremos
não apenas identificar as personagens (pessoas e instituições), mas entender seu lugar na
documentação, nas relações de poder e no discurso. Sobre o autor e o réu, que geralmente são
figuras externas ao Judiciário, torna-se relevante entender qual a importância de fatores como
gênero, profissão, nível socioeconômico, nível de instrução, entre outras categorias. Outras vozes
de fora do Judiciário, mas não fora das instituições de poder, são as personagens da delegacia.
Em processos-crime ou ações judiciais que se iniciaram mediante denúncia, costuma fazer parte
dos autos um inquérito policial, com a narrativa de uma investigação feita pela polícia. Tanto o
inquérito quanto os autos do processo costumam ter testemunhas que são oriundas dos mais
diversos meios sociais e culturais e, mesmo com o filtro de linguagem dos operadores da polícia e
do Judiciário, é possível identificar qual o discurso que perpassa os depoimentos, qual sua relação
com as outras personagens e instituições e como isso influencia no julgamento. Não é incomum
que depoimentos de pessoas indesejáveis aos olhos da sociedade moralizadora sejam refutados.
Finalmente, as figuras do Judiciário, os advogados, promotores e juízes, precisam ser vistos como
sujeitos que fazem uma dupla interpretação da situação representada pela fonte. Uma delas
é reprodução da racionalização jurídica e de seu discurso, a outra é a interpretação que suas
concepções pessoais, morais, discursivas e outras referências culturais imprimem na fonte.
No que se refere ao caráter polifônico deste tipo de fonte histórica, isto é, às diferentes
vozes que falam no processo, também se identifica uma série de questões que podem ser
exploradas. Primeiramente, é necessário entender como o Judiciário descreveu cada uma
das pessoas ou instituições que são citadas ou evocadas. A autoria do processo é ambígua,
pois ele inicia elencando como autora Helena, mas, ao observar a jurisprudência citada
pelo réu, constata-se que o autor da Investigação de Paternidade tem que ser Luis Antônio,
o filho. Helena é tida como uma moça pobre, criada em padrões aceitáveis de moralidade,
que encontrou na mudança para Porto Alegre a oportunidade de mudar de vida. Nota-se,
observando a categoria de gênero, a insistente tentativa de enquadrar Helena no padrão que
a sociedade paternalista considera como mulher ideal. Helena e seu procurador usaram essa
retórica como um ponto fundamental, pois uma mulher que não se enquadrasse nesse perfil
aceitável, teria sua ação negada com muita facilidade. Luis Antônio é constantemente citado
como sendo um “robusto menino”, indicando que ele nascera no período certo de gestação,
não sendo prematuro, impedindo a alegação do réu de que a criança teria sido gerada em um
período em que Pedro não estivesse junto à autora.
A mesma estratégia de gênero é aplicada na defesa de Pedro Antônio, o réu, que é descrito
como um jovem que se libertou da vigilância dos pais e, cujo comportamento libertino, era algo
esperado para um homem de sua idade. Isso é usado de forma a atenuar a possível culpabilidade
do réu. O seu procurador, todavia, não sustenta convincentemente esse aspecto. Pedro Antônio
é oriundo de uma família de classe média alta que trabalhava com comércio e exportação em
Caxias do Sul. Sua caligrafia na carta que envia a Helena em janeiro de 1952 indica alguém que
é muito familiar com a escrita e com a leitura, bem diferente da caligrafia da assinatura tremida
da autora, que indica alguém semialfabetizada. O principal estratagema do réu para suavizar
sua culpa é atacar a moralidade de Helena afirmando que tanto na sua infância e adolescência
em Vacaria, quanto no tempo que passara na casa dos Vetorazzi, ela teria se prostituído pública
e notoriamente. No entanto, a defesa não foi capaz de recolher evidências materiais nem
testemunhos que dessem sustentação a essa teoria, prevalecendo a versão da autora.
No rol das testemunhas estão, além de autora e réu, pessoas de diversas proveniências
socioeconômicas. A autora é defendida por testemunhas que faziam parte de seu cotidiano, como
o médico da família que constatou sua gravidez, os donos da casa onde residia, o proprietário
e o funcionário de uma mercearia que a conheciam. O réu, em sua primeira defesa, faz alusão
a uma prova que desbancaria a moral da autora, mas ela não aparece nos autos. Ele chama os
testemunhos de antigos moradores da casa dos Vetorazzi. Um deles deveria dar detalhes de um
relacionamento que teria tido com Helena na mesma época, mas acaba defendendo a versão da
autora. Não é possível identificar se as versões foram combinadas ou não. Só é possível perceber
que o escrivão relatou de forma muito coerente as versões dos testemunhos da autora. No caso
do réu, as contradições e omissões são mais claras. A isso se soma a possibilidade, no campo das
hipóteses, desse mesmo escrivão ter tomado partido da versão de Helena sobre os fatos.
O Judiciário, como instituição, também é uma voz no processo e é identificada no
vocabulário técnico de advogados, escrivães e os juízes. Ele pode ser analisado como uma voz
que exerce poder, particularmente no deferimento da sentença, que foi favorável a Helena
e seu robusto filho Luis Antônio. A voz do poder do Judiciário também aparece na própria
organização da documentação, na maneira de descrever as sessões de audiência e de dar
trâmite ao processo. Há também as instituições médicas que são elencadas por meio de
documentação, como por exemplo, o prontuário de internação de Helena, o exame de gravidez
e o exame de compatibilidade sanguínea. Por parte do réu, a escola onde teria estudado:
o diretor da instituição, um padre, fornece um documento que atesta que o réu estava em
Caxias de férias escolares no período da concepção. O réu apela para a instância superior,
o Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, o que pode ser entendido como uma busca por um
poder deliberativo maior. Embora esse apelo não tenha ido muito longe.
Os conteúdos
da trama. No entanto, a migração do interior para a capital aparece e está envolvida nesse
contexto migratório maior. O surgimento de tecnologias modernas, como o aparelhamento
dos meios de comunicação e da ciência são visíveis nos autos. Os exames de sangue e a
preocupação na coleta do material, a comunicação entre as comarcas, feitas principalmente
por fonogramas, telegramas, mas também cartas precatórias. O telefone também é citado,
ainda que rapidamente, no processo, quando a autora relata ocasiões em que foi necessário
utilizar o telefone da mercearia para ligar de Porto Alegre para Caxias do Sul. O cinema aparece
rapidamente. Helena costumava frequentar sessões entre as décadas de 1940 e 1950 e que não
escandalizaram ninguém.
Público e privado: Nessa investigação de paternidade, a autora teve que comprovar não
só que conhecia o réu, mas que também mantiveram um relacionamento sexual no período
da concepção. O réu, para se defender da acusação, também foi obrigado a remexer em sua
vida privada. A materialização da vida privada das duas partes envolvidas é verificável em
vários momentos do processo, tanto em depoimentos de testemunhas, quanto nos diversos
documentos anexados. Assim, é possível olhar para dentro das casas e para dentro do quarto
e ver como a vida cotidiana se organizava, como eram as relações entre os indivíduos e como
o Judiciário olhava tais questões.
Pouco sabemos da casa de Pedro Antônio em Caxias do Sul, além do que se pode
conjecturar sobre as famílias abastadas da época. Na antiga casa de Helena em Vacaria, podemos
visualizar um local bastante pobre. Se a observarmos da ótica do réu, veremos um lar envolto
em descaso com os filhos, desmoralização, vícios e prostituição da mãe e da própria Helena;
se a olharmos como a autora o via, notaremos um lugar onde, embora empobrecido, operava
a mais absoluta moralidade e amor paterno, sendo a mãe uma figura que não é mencionada.
Na casa dos Vetorazzi, em Porto Alegre, podemos visualizar um lugar muito movimentado,
especialmente na hora das refeições, onde as mulheres eram responsáveis pela limpeza e por
cuidar da casa; onde o réu via um lugar para além de moradia, mas também um espaço que ele
e seus colegas encontravam para saciar seus desejos sexuais; onde a autora via como um lugar
onde fora recebida como filha, embora, na prática, fosse empregada doméstica e onde receberia
a ajuda necessária para dar segmento a sua vida, se casando. A vida sexual, especialmente da
autora e do réu, é bastante exposta no processo, mas também são feitas alusões à vida sexual
dos familiares de Helena em Vacaria, e dos outros rapazes que moravam na casa dos Vetorazzi.
Autora e réu são inquiridos em juízo a falarem, não só do período em que mantiveram um
relacionamento, mas a estipular a média das vezes que tinham relações sexuais por mês e dos
locais onde ocorriam. A submissão das partes a essa construção normativa e analítica feita pelos
operadores do Judiciário pode ter sido uma experiência bastante constrangedora.
Acesso à justiça: Uma questão que é levantada logo na primeira etapa do fichamento
da fonte é a identificação de uma função do processo. Essa função pode ser entendida de
várias formas. Ele pode ser a materialização de um procedimento judicial e também pode ser
considerado como a documentação que mostra uma história de busca e acesso à justiça. As
situações econômicas do réu e da autora são muito diferentes. Pedro Antônio contratou um
advogado e Helena solicitou defesa por um defensor público. Os custos da acusação foram
muito mais elevados do que os da defesa. Helena estaria em apuros caso perdesse a causa.
Mesmo apelando para a instância superior, Pedro desiste do processo, mas ainda aproveita
algumas lacunas na sentença final do juiz para prolongar o cumprimento do deferimento.
Se considerarmos que uma função do processo é garantir acesso à justiça, não poderemos
afirmar que isso ocorreu de fato, pois não sabemos a verdade além do que ela é relatada e
disputada através das versões e das tensões que os autos narram. Não sabemos se Luis Antônio
é filho, de fato, de Pedro Antônio, pois as evidências, mesmo que tenham convencido o juiz,
não são tão inquestionáveis quanto a autora gostaria que fossem. É preciso cuidado para não
comprar uma versão ou outra do processo, mesmo que ela pareça muito convincente, a não
ser quando, talvez, o pesquisador possua outros documentos que apontem para uma possível
veracidade de uma ou de outra versão.
Ética: Por muitas décadas, a documentação produzida por instituições públicas guardada
em arquivos permanentes passou por diversos sistemas de organização que a classificavam como
reservada, confidencial, secreta ou ultrassecreta, estabelecendo, de acordo com seus conteúdos,
prazos depois dos quais ela estaria livre para ser consultada pela comunidade. O acesso a ela
era muito difícil e só era obtido mediante a administração de procedimentos burocráticos. No
entanto, a Lei 12.527 de 18 de janeiro de 2011, conhecida como Lei do Acesso à Informação, reitera
e regulamenta o acesso à informação pública que já era previsto pela Constituição de 1988. A
referida lei flexibiliza as classificações de sigilo e estabelece que o acesso facilitado é a regra e
o sigilo é a exceção. Nesse sentido, resguardando alguns casos, toda a documentação notória,
produzida em jurisdição pública, de interesse coletivo, é pública. As instituições responsáveis
pela sua produção e arquivamento devem garantir ao usuário o seu amplo acesso a ela.
Baseado nessa lei, todo o acervo do Judiciário que está em arquivo permanente deve
ter o acesso permitido. No entanto, ao ter um processo judicial como recurso didático-
científico, é preciso ter em mente que as personagens cujas histórias são representadas nos
autos são pessoas humanas. Algumas são conhecidas, outras são anônimas, umas podem estar
envolvidas em uma cobrança judicial ou em um pedido de indenização trabalhista, outras
podem estar arroladas em casos que causam desconforto, como homicídios, suicídios ou,
como no caso analisado, a investigação da paternidade de uma criança concebida fora do
casamento. Se observarmos o caso de Helena e Pedro, a intimidade deles e de outras pessoas
foram expostas durante as audiências e, agora, 56 anos depois, por meio desse artigo. Assim,
é muito importante levar em consideração e não perder de vista o objetivo, que é a produção
de conhecimento histórico e o seu ensino e não a mera exposição da vida de pessoas através
de um espetáculo exótico.
O CMRJU possui um acervo antigo, mas que também chega muito perto temporalmente
dos dias de hoje. Então, cabe ao pesquisador-professor examinar essa questão e julgar se o
uso de informações que permitam identificar os envolvidos estará acessível aos seus leitores
ou a seus alunos. O que interessa ao profissional de História é o potencial de uma experiência
de vida enquanto representativa ou como dissidente em uma época e em um lugar.
No entanto, a identidade das pessoas envolvidas pode ser relevante no caso de uma
pesquisa biográfica ou se essa identidade for determinante para os eventos tomarem os rumos
que tomaram. Caso seja a situação, é bom lembrar ao pesquisador-professor que os citados
ou seus descendentes se sentirem lesados pelo uso que se fez das informações pessoais,
possuem amplo direito de defesa, embora não possam impedir que um documento público
esteja acessível à comunidade.
Finalmente, em um quarto momento, que não está desvinculado dos três anteriores,
o modelo abre espaço para apontamentos mais diretos sobre o uso de documentos ou das
temáticas levantadas em sala de aula. Sem querer esperar demais de uma fonte em contexto
escolar, é necessário ter em mente que elas podem contribuir somente se o professor tiver
condições de conduzir uma aula que problematize o saber histórico ou a realidade social a
partir dessa fonte. No entanto, também pode ser prejudicial se o docente não conseguir fazer
senão uma espécie de tentativa de comprovar a história através de documentos. É necessário
ter em mente e fazer um julgamento honesto para estabelecer se é adequado ou não o uso de
determinadas fontes em sala de aula (SEFFNER, PEREIRA, 2008), ou mesmo se elas contribuem
para o problema de pesquisa que o historiador se propôs a resolver.
Esse é o campo do roteiro em que os estudantes têm encontrado maiores dificuldades.
Ao analisarmos os exercícios de aplicação da proposta junto ao CMRJU, constatamos que as
ideias dos acadêmicos de História, salvo algumas exceções, não têm conseguido superar os
problemas apontados por Seffner e Pereira (2008). Para outros, não se trata de dificuldades em
trabalho com fontes em geral em sala de aula, mas da fonte judicial em si, seja pelo seu formato,
pela sua linguagem ou pelas questões éticas e legais. Entretanto, visando a contribuir para o
aprimoramento das relações entre pesquisa e ensino por meio de fontes judiciais, demonstramos
que o uso dos processos em sala de aula, justamente por causa de sua temática, linguagem e
questões ético-legais, configura-se como uma ferramenta muito rica e que pode contribuir em
muitos aspectos contanto que o profissional consiga ver e explorar essa potencialidade.
Contudo, é preciso lembrar o lugar social do próprio CMRJU. Na atividade do Centro,
propomos que os acadêmicos se debrucem sobre o documento para desenvolver suas
habilidades científicas e pedagógicas. O acadêmico, por sua vez, faz isso enquanto propõe
análises e ideias didáticas para a educação básica. Então, partimos de alguns pontos teóricos
e os relacionamos com as possibilidades que dão conta de suprir as dificuldades apresentadas
pelos licenciandos, abrindo caminho para a elaboração de projetos didáticos de qualidade.
Não há nenhuma regra que diga quando um documento é mais ou menos relevante
para o uso em sala de aula. Todavia, ele se torna relevante se o professor puder fazer dele um
instrumento de análise efetivo. Isso é possível na medida em que o historiador-professor seja
capaz de fazer uma inquirição historiográfica ao documento. Se observarmos a proposta de
análise de processo que propomos acima, a Ação de Investigação de Paternidade foi capaz
de levantar inúmeros questionamentos sobre diversos tópicos em termos de conteúdo ou
abordagens. Foi capaz de suscitar questões que só podem ser respondidas por um processo
e aquelas que só podem ser aprofundadas se a pesquisa avançar para outras fontes. Também
foi capaz de mostrar a dimensão ética da História e que ela é feita por pessoas, sendo algumas
Considerações finais
Diante do apresentado por Helena, o juiz defere como procedente a ação da autora e
declara que Pedro Antônio é, de fato, o pai de Luis Antônio. O réu apela para instância superior,
o Tribunal de Justiça do Estado do RS, mas o juiz de direito reitera a decisão do magistrado
da instância inferior, reconhecendo Pedro como o pai da criança. O réu dá seu sobrenome a
Luis, mas, como já não é mais solteiro e não pode reparar o mal pelo casamento, é condenado
a pagar uma pensão de alimento ao filho até sua maioridade. No fim do documento, ele paga o
valor que ora estava atrasado e parcela o restante. Daí em diante, nos perdemos dos destinos
dessas personagens.
O estudo da História através de fontes judiciais permite dar um rosto e uma identidade
para os protagonistas esquecidos da história e, sobretudo, perceber que esses sujeitos poderiam
ser qualquer pessoa, poderia ser o professor, o aluno, um amigo ou um parente. No caso de
Helena, já não se fala somente nas levas de migrantes que se mudam do interior para a cidade
ou do interior do estado para a capital. Mostramos a complexidade da vida diária, do cotidiano
e das tensões decorrentes dali. Trata-se da Helena que tinha uma história de vida, do Pedro,
que tinha outra história. Fala-se, da relação do indivíduo com as pressões sociais e familiares,
sobre os ritos de sociabilidade entre os grupos afins e sobre as contradições que se verificam.
Assim, pensamos que conseguimos, dentro das condições em que trabalhamos, e na condição
de vencer as limitações do profissional e da fonte, dar conta do nosso questionamento inicial
e demonstrar que o uso de processos judiciais, tanto na pesquisa histórica quanto na sala de
aula configura-se como um fértil recurso intermediador de olhares renovados sobre o saber
histórico escolar e acadêmico.
Nota
1 Sobre isso, ver GOMES, F. R.; IOTTI, L. H. A paixão como atenuante: crimes passionais em Caxias do
Sul nos anos 30 (séc. XX). Métis: história e cultura, v.11, p.261-279, 2012; TESSARI, A. B. A fotografia e
o estatuto de prova na investigação de paternidade: processos da Comarca Caxias. Métis: história e
cultura, v.11, p.131-152, 2012; BALBINOT, E. C. F. Seduzidas e desonradas: o discurso nas fontes judiciais.
Métis: história e cultura, v.11, p.341-358, 2013; BALBINOT, E. C. F. Sob o olhar da justiça: família moral
e sedução. In: CAPOVILLA, E. (Org). A História da Imigração e sua(s) escrita(s). São Leopoldo: Oikos,
2012; LANGE, D.; IOTTI, L. H. Processos judiciais e práticas de gênero no Judiciário: estudo de caso a
partir de um processo de danos. Métis: história e cultura, v.23, p.139-153, 2013. Entre outros.
Referências
Fontes
CAIXIAS DO SUL. Ação de Investigação de Paternidade. - Processo 04, Caixa 49A, CMRJU/UCS.
BRASIL. Lei 3.071, de 1º de Janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 5 ago. 2014.
BRASIL. Lei 12.527, de 18 de Novembro de 2011. Lei de Acesso à Informação. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 5 ago. 2014.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: FUCS. Termo de Convênio. - Nº 227/01. Porto
Alegre, 12 dez. 2001.
Bibliografia
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GRINBERG, Keila. A História nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassanezi; DE
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SEFFNER, Fernando; PEREIRA, Nilton Mullet. O que pode o ensino de História? Sobre o uso de fontes
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SOARES, Paulo Roberto R. Do rural ao urbano: demografia, migrações e urbanização. In GERTZ, René
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- (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul).
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
The Youngsters, the Historical Learning,
and the New Information Basis
Abstract: This article is the result of a research conducted with 60 high school
students from a state public school, located in a little town in the North region of Rio
Grande do Sul, Brazil. The goal was to investigate the several ways in which young
students interact with new digital technologies and, through the results obtained,
indicate methodological possibilities to work with school history. The study has
also been constructed with a bibliographical research that aimed to identify the
characteristics of this generation named homo zappiens (VEEN e WRAKKING, 2009)
and the context of “informative obesity” in which they live (POZO, 2002). With the
results, it is possible to verify that there still exists a disturbing distance between
the youngsters and the work proposals for the teaching of history, regarding the
dominion and the use of these technologies as a learning support.
Keywords: Youth; digital technologies; scholar education.
61
Introdução
Vivemos num tempo e num tipo de sociedade em que a demanda por aprendizagem
é constante e diversa, requerendo formas de aprender distintas das que tradicionalmente
conhecemos. Desde a criação do primeiro sistema de escrita pelos sumérios, há cerca de
cinco mil anos, até aproximadamente a invenção da imprensa por Gutenberg, no século XV,
praticamente vigorou uma mesma cultura da aprendizagem. Tratava-se de garantir o domínio
do código escrito, por meio da aprendizagem reprodutiva e mecânica, uma vez que as
limitações tecnológicas em sua produção e conservação não permitiam “libertar a humanidade
da escravidão da memória do imediato” (POZO, 2002, p. 27). O exercício da memorização e
o uso de regras mnemônicas perpassaram tanto o contexto greco-romano clássico como o
mundo medievo, este último muito marcado pelo conhecimento religioso contemplativo.
No cenário renascentista, vê-se uma nova revolução na tecnologia da escrita, na medida
em que a imprensa favorecerá tanto a maior disseminação do conhecimento, quanto o seu
mais fácil acesso e conservação, “libertando a memória da pesada carga de conservar todo
esse conhecimento” (POZO, 2002, p. 28) e promovendo uma progressiva descentração desse
conhecimento, que afeta tanto os modos de produzi-lo quanto os modos de apropriar-se dele.
A ciência que se desenvolve nos tempos modernos exige muito mais do que memorização,
promovendo uma perda de prestígio da aprendizagem reprodutiva entre as elites intelectuais. As
sociedades industriais cada vez mais vão se definindo por uma crescente oferta de educação, por
uma formação permanente e massiva, bem como por um maior volume de acesso à informação.
Na segunda metade do século XX, mais especialmente nas últimas décadas, conhecemos
uma terceira revolução nos suportes de informação, que nos impõe uma espécie de “obesidade
informativa”, expressão cunhada por Pozo (2002, p. 35) referindo-se à imensa capacidade que
têm diversas sociedades, atualmente, de armazenamento e distribuição da informação, com
acesso instantâneo a grandes bancos de dados de caráter textual e audiovisual. Para esse
autor, a informação flui de modo bem mais dinâmico na nossa cultura, mas também de forma
muito menos organizada:
Enquanto que a aprendizagem da cultura impressa costuma ser uma viagem organizada
por quem produz o conhecimento [...], na sociedade da informação é o consumidor quem
deve organizar ou dar significado à sua viagem. É a cultura do zapping informativo, uma
cultura feita de retalhos de conhecimento, uma collage que é necessário recompor para
obter um significado. (POZO, 2002, p. 37).
Esse fenômeno que os autores classificam como uma terceira revolução nos suportes de
informação produziu importantes transformações na dinâmica das sociedades contemporâneas,
nas suas instituições, na vida das pessoas. Uma geração inteira, de modo mais ou menos silencioso,
adotou a tecnologia e desenvolveu novas estratégias de aprendizagem, de relacionamento, de
convívio social, constituindo um expoente das mudanças sociais relacionadas à globalização.
62
CAIMI, F.; NICOLA, B.
Os jovens, a aprendizagem histórica e os novos...
Marc Prensky (2001) define esses jovens como “nativos digitais”, uma vez que a tecnologia
digital é uma linguagem que “falam” e com a qual operam desde que nascem. Veen e Wrakking
(2009, p. 30), por sua vez, nomeiam essa nova geração de homo zappiens, “aparentemente uma
nova espécie que atua em uma cultura cibernética global com base na multimídia” e a distinguem
pelo fato de terem crescido acessando múltiplos recursos tecnológicos, desde os mais antigos,
como o controle remoto da TV, o mouse do computador, o minidisc, até os mais recentes, como
o telefone celular, o iPod, o mp3, o tablet e tantos outros. Consideram, ainda, que:
Esses recursos permitiram às crianças de hoje ter controle sobre o fluxo de informações,
lidar com informações descontinuadas e com a sobrecarga de informações, mesclar
comunidades virtuais e reais, comunicarem-se e colaborarem em rede, de acordo com
suas necessidades. (VEEN; WRAKKING, 2009, p. 12).
Os autores salientam que a relação desses jovens com a escola mudou, em relação ao
comportamento de outras gerações. Dentre os mais típicos comportamentos manifestados
pelo homo zappiens em relação à escola, destacam: a) reconhece a escola como um dos
interesses, dentre muitos outros, como redes de amigos, trabalho de meio turno, encontros
sociais; b) considera a escola desconectada do seu mundo e da vida cotidiana; c) demonstra
comportamento ativo, em alguns casos, hiperativo; d) concede atenção ao professor por
pequenos intervalos de tempo; e) quer estar no controle daquilo com que se envolve e não
aceita explicações do mundo apenas segundo as convicções do professor; f) aprende por meio
dos jogos, de atividades de descoberta e investigação, de maneira colaborativa e criativa.
Enfim, o uso intensivo das tecnologias digitais teria influenciado o modo de pensar e o
comportamento do homo zappiens, na medida em que:
[...] para ele, a maior parte da informação que procura está a apenas um clique de distância,
assim como está qualquer pessoa que queira contatar. Ele tem uma visão positiva sobre as
possibilidades de obter a informação certa no momento certo, de qualquer pessoa ou de
qualquer lugar. O homo zappiens aprende muito cedo que há muitas fontes de informação
e que essas fontes podem defender verdades diferentes. Filtra as informações e aprende
a fazer seus conceitos em redes de amigos/parceiros com quem se comunica com
frequência. (VEEN; WRAKKING, 2009, p. 30).
O desafio que se coloca aos educadores é a criação de respostas compatíveis com as mudanças
e novas demandas educativas e sociais, tomando os valores da geração homo zappiens como
fonte de inspiração para essa tarefa.
Mobilizadas por essas concepções acerca do papel dos novos suportes de informação no
cenário escolar, na sequência do artigo apresentaremos os achados de uma pesquisa realizada
com sessenta estudantes de ensino médio, em escola da rede pública estadual, num município
de cerca de três mil habitantes do norte gaúcho.
Fazendo uso de um formulário online, buscamos conhecer o grau de interação desses
estudantes com as diversas mídias disponíveis atualmente, no esforço de constituir um perfil
discente e de apontar potencialidades de trabalho mediante o uso da internet nas aulas de
história, de modo compatível com seus interesses, necessidades e experiências. Partimos
do pressuposto que, mesmo num pequeno município do interior do estado, desenvolve-se
uma geração homo zappiens (VEEN; WRAKKING, 2009), que compartilha do contexto atual
de “obesidade informativa” (POZO, 2002) e de forte “presentismo” (HOBSBAWM, 1995) das
sociedades contemporâneas.
O formulário online foi respondido pelos sessenta estudantes do 1º ao 3º ano do ensino
médio, no laboratório da escola. Suas idades variam entre 15 e 17 anos, sendo 36 do sexo
feminino (60%) e 24 do sexo masculino (40%). Inicialmente, procuramos identificar com quais
tipos de mídias os alunos são acostumados a interagir no seu dia a dia. Para tanto, oferecemos
uma lista de aparelhos eletrônicos e solicitamos que assinalassem quais estão presentes em
sua casa, obtendo-se os seguintes dados:
É curioso verificar que a percepção dos estudantes em relação aos seus professores é
bem mais positiva do que a que têm de seus pais, no que diz respeito ao domínio das ferramentas
de navegação na internet. Note-se que quase a totalidade dos estudantes reconhece ter
maior domínio que seus pais, ao passo que apenas 42% dos estudantes consideram ter maior
conhecimento que seus professores e 46% consideram que conhecem essa ferramenta tanto
quanto seus professores. O que se nota, efetivamente, é que os professores têm menos domínio
técnico dessas ferramentas, no entanto, os alunos conferem aos mestres a autoridade do
saber. Essa concepção da docência manifestada pelos estudantes parece ser um bom indício
de que é possível operar uma maior aproximação entre eles e seus professores no que tange
ao uso de tecnologias digitais no trabalho pedagógico escolar.
Há alguns meses, ao entrar numa sala de 6º ano do ensino fundamental de uma escola da
rede municipal para acompanhar um estágio curricular da licenciatura em História, uma das
autoras foi assediada por um grupo de estudantes que disputavam sua atenção e preferência
por visitá-los em seus blogs. Jovens entre dez e doze anos tinham seus próprios espaços de
visibilidade na web e se expressavam com desenvoltura fazendo uso da terminologia específica
desse cenário comunicativo. Novos tempos?!
Estudos têm demonstrado – e nossas vivências empíricas também – certo descompasso
entre o ritmo com que as tecnologias avançam em diversas atividades sociais, econômicas ou
mesmo na vida cotidiana e sua penetração no âmbito educativo. Essa suposta brecha entre
escola e sociedade no uso das tecnologias de informação, comunicação e interação, pode ser
entendida sob muitos aspectos: alguns de caráter financeiro, como o alto custo de instalação
e manutenção de equipamentos nas escolas; alguns de cunho educativo, como o apego a
formatos pedagógicos de maior tradição ou o predomínio de certos modelos de formação
dos professores; outros de natureza cultural e de mentalidade, como o receio da perda de
controle sobre o processo de ensino-aprendizagem, a falta de domínio dos professores no
manuseio desses suportes digitais, as mudanças que pressupõem nos papeis convencionais
de professor e aluno, para referir apenas alguns.
Não obstante a escassa inserção de tais tecnologias no ambiente escolar, nas situações
em que são utilizadas, observa-se o predomínio de rotinas metodológicas pouco inovadoras,
ora tomadas como panaceia didática, ora como um capricho pedagógico, mas poucas vezes
integradas plenamente na proposta histórica e no conjunto do fazer docente. Nesse sentido,
há que se diferenciar tecnologia e metodologia, uma vez que o uso por si só da tecnologia não
garante um melhor ensino nem uma melhor aprendizagem. A internet, por exemplo, quando
utilizada apenas como repositório de informações, favorece a aprendizagem tanto quanto
o faziam as antigas enciclopédias escolares ou fazem os livros didáticos. Por outro lado,
tratada no campo metodológico, a internet pode oferecer excelentes oportunidades para o
desenvolvimento da capacidade de comunicação, análise, resolução de problemas, gestão e
avaliação de informações, dentre outros.
Verónica Trejo (2011, p. 131-132) apresenta um conjunto de possibilidades educativas
propiciadas pelas tecnologias digitais em rede, sumarizadas em seis tipologias de aprendizagem1:
1) Aprendizagem distribuída: considera que o conhecimento não se encontra apenas no
livro-texto ou na exposição dos professores. Os alunos têm fácil acesso a novas fontes de
informação, novos materiais didáticos, assim, todos podem aprender e todos podem ensinar.
O professor não é o único que ensina e, por vezes, se converte em mediador do conhecimento.
2) Aprendizagem entre iguais: os estudantes aprendem entre eles mediante debates,
colaboração web, encontros virtuais, fóruns, chats etc.
3) Aprendizagem autônoma por indagação e projetos: viabilizada a partir da resolução de
problemas, estudo de casos, utilizando recursos da rede como webquest, miniquest, fontes
históricas digitalizadas, com participação e orientação dos professores.
Nota
Referências
FERRO, Marc. A manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Ibasa,
1983.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
MIRANDA, Sônia Regina. Ensino de História, tecnologias digitais e aprendizagens históricas: desafios
de formação em novas (e velhas) questões de reflexão. In: FONSECA, S.G.; GATTI JÚNIOR., D. (Org.).
Perspectivas do ensino de História: ensino, cidadania e consciência histórica. Uberlândia: Edufu,
2011.
POZO, Juan Ignácio. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed,
2002.
TREJO, Verónica Arista. Como se enseña la Historia en la educación básica. In: GUTIÉRREZ, L. F. e
GARCIA, N. Enseñanza y aprendizaje de la Historia en la educación básica. México:Secretaría de
Educación Pública, 2011.
VEEN, Wim; WRAKKING, Bem. Homo Zappiens: educando na era digital. Porto Alegre: Artmed, 2009.
Caroline Dall’Agnol*
Eliana Rela**
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
How do They See Me? How do I See Myself? An Audiovisual
Look at the Recognition of Teenager’s Identity
Abstract: This article aims at presenting the following study: How do they see me?,
How do I see myself? An Audiovisual Look at the Recognition of Teenager’sIdentity. Its
goal is the systematic development of a methodology, with the use of audiovisual
media, for the teaching of History. Among the various issues surrounding
adolescents, the poor community context is what motivates us as researchers.
However, it is important to make clear that the methodology can be applicable
in any context. Therefore, the research focuses on the various forms of listening
to students, including video production. How does the teenager recognize his or
her identity before imposed stigmas? How to break the stereotypes that classify
residents of periphery areas? The authors who guide us to achieve these answers
are Honneth (2003), Martín-Barbero and Germán Rey (2004), Bourdieu (2010;
1974; 1983; 1972), Tomaz Tadeu Silva (2005), and Goffman (1988).
Keywords: Subjectivity; identity; stereotype and recognition.
71
Um caminho: a produção de vídeo
No final do século XIX, a imagem parada, fotografia, começa a ganhar ação, movimento, vida.
Surge o cinema. O cinematógrafo – equipamento de projeção das fotografias animadas e criado
pelos engenheiros franceses Auguste e Louis Lumière1 – consegue se aproximar da realidade por
meio de uma lente. A partir daí, a leitura das imagens é vista e interpretada por outro ângulo.
Com o surgimento do cinema, o olhar muda, o significado se altera e a comunicação
ganha mais força através das imagens. A apropriação do cinema falado e do rádio, a criação da
TV transforma a sociedade em sociedade do espetáculo2. A ferramenta, que foi por muito tempo
distante, torna-se poder de construção de imaginário, e o audiovisual, imagem em movimento
mais áudio, torna-se acessível com a revolução tecnológica. Cumpre o papel da aproximação
do público com ele mesmo e da autonomia de contar histórias, inclusive, as próprias.
Assim, tendo em vista o poder que a produção de vídeo carrega em si mesma, optamos por
nos debruçar sobre a função que ela pode exercer dentro de sala de aula, além de possibilitar
a proximidade do aluno com o professor e, principalmente, a busca do reconhecimento pelos
adolescentes da própria identidade. Para que os adolescentes tenham voz, é preciso dar voz. O
audiovisual apresenta-se como metodologia para “enxergar” aquilo que não é visto e escutar
aqueles que querem falar.
Compreender como o adolescente reconhece sua identidade e cria a autoimagem é
uma preocupação de fundamental importância e há ainda muito que se pesquisar. Ter a noção
de identidade possibilita estabelecer relações entre identidades individuais e sociais. A partir
do pertencimento do local é possível oportunizar ao adolescente a ideia de participação social
e política, tendo como consequência estímulos de atitudes críticas diante à realidade que
o cerca, além da possibilidade de aproximação à transformação histórica e sociocultural da
localidade em que vive.
Por que um mundo tão desigual? Por que tudo sempre é tão atual? Porquês de realidades
repetidas. Direitos negados; julgamentos fáceis e estereotipados de territórios demarcados pela
desigualdade. Comunidades que convivem com a ausência de infraestrutura, de políticas públicas,
de reconhecimento. Construídas no estigma, na expansão da pobreza, na violência velada.
Toda pesquisa tem um ponto de partida. Algo que inquieta o pesquisador. Que move
pensamentos, sentimentos e reflexão. A temática social sempre esteve lado a lado no processo
72
DALL’ AGNOL, C; RELA, E.
“Como me veem?”, “Como eu me vejo?”...
O problema que nos apresenta e que nos inspira na investigação é de que forma os
adolescentes de comunidades carentes reconhecem a própria identidade e a do bairro em que
vivem por meio da subjetividade - “Como os outros me veem?”, “Como eu me vejo?”.
Em Caxias do Sul existem várias comunidades classificadas como reflexos dos
circuitos inferiores (SANTOS, 1979) assim como, em qualquer outro centro urbano. Não
obstante, dentre tantas, uma desperta a inquietação no desejo de pesquisa: comunidade
Reolon, composta por quatro bairros. Localiza-se em uma área denominada antigamente
como Travessão Thompson Flores, também chamada de Travessão Aliança, habitada no
fim dos anos de 1897. No entanto, somente após um século, o loteamento Reolon ganha os
primeiros moradores devido a políticas públicas de assentamento urbano da cidade, mais
precisamente em 1991.
Grande parte das famílias que compõe a figura da comunidade pertence ao histórico
de remoções de outros espaços; esses, considerados áreas de risco por se tratarem de
habitações irregulares.
A comunidade Reolon constituiu-se aos poucos. A ocupação deu-se primeiramente na
doação de terrenos pelo poder público, criando assim, o bairro Reolon. Em seguida, a constituição
do Condomínio Vale da Esperança e, posteriormente, os Condomínios Vale Verde e Matioda.
As cidades podem ser analisadas como símbolo de civilização e progresso que carregam
territórios imersos no espaço - as comunidades, aqui, classificadas: desiguais entre si. Toda
cidade organiza os habitantes, cria leis para manter a ordem, estrutura o espaço. Para Santos
(1979) a cidade não pode mais ser definida como máquina maciça, mas sim, categorizada em
dois subsistemas: “circuito superior” e “circuito inferior” (SANTOS, 1979, p. 16). Ele define
que circuitos econômicos são criados para explicar o processo econômico e o processo de
organização do espaço.
possui outros cinturões). Possui políticas públicas, tem infraestrutura, mas a negação de ser
reconhecida se mostra presente.
Portanto, desperta a vontade de pesquisar, pois se trata de um bairro, que a priori,
luta pelo reconhecimento de ser um bairro livre de estigmas. Para isso, o audiovisual torna-
se peça fundamental na possibilidade de tornar o que é invisível em visível, conquistando o
reconhecimento. Um reconhecimento que se dá na imagem captada pelo próprio adolescente
de si mesmo e do lugar em que vive. Para isso, o objetivo geral do estudo se propõe à criação
de uma metodologia utilizando o audiovisual para o ensino de História, na busca da análise das
identidades reconstituídas da comunidade pelos adolescentes.
Nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta
permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica
e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de
vida (HONNETH, 2003, p. 207).
[…] quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os
indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda
luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito
ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o
desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade
social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito
à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e
dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores (SALVADORI,
2011, p. 191).
“Não sou branco” ou “Não sou índio”. A identidade e a diferença possuem uma ligação estreita
de vínculo, no entanto, quando a afirmação: “Eu sou branco” é feita, a referência da identidade
recebe o valor de esgotamento em si mesma, escondendo a relação da diferença: “Não sou
branco”, pois “Sou índio”. “[...] como a identidade depende da diferença, a diferença depende
da identidade. Identidade e diferenças são, pois, inseparáveis” (SILVA, 2005, p. 75). O autor
analisa que essas afirmações, “eu sou”, “eu não sou”, fazem “parte de uma cadeia de ‘negações’,
de expressões negativas de identidade, de diferenças” (SILVA, 2005, p. 75).
Uma depende da outra, mas em geral, considera-se a diferença como um produto que
se origina da identidade. “[...] a identidade é a referência, é o ponto relativamente ao qual se
define a diferença” (SILVA, 2005, p. 76). No entanto, o autor afirma que o correto é considerar
a diferença em primeiro lugar, mas para isso seria necessário “a diferença não simplesmente
como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade
quanto a diferença (compreendia, aqui, como resultado) são produzidas” (SILVA, 2005, p. 76).
Além disso, a identidade e diferença não pertencem ao “mundo natural”, mas sim, ao “mundo
cultural e social” (SILVA, 2005, p. 76). Estão sujeitas a direções de forças e relações de poder.
Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente,
lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas. [...] estão, pois, em estreita
conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença
não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não
são, nunca, inocentes (SILVA, 2005, p. 81).
[...] se a percepção que as pessoas possuem dos outros grupos é construída através da
articulação entre as impressões sensoriais imediatas objetivas e o resto que foi acumulado
‘na cabeça’ durante anos, nada mais natural do que conceber os estereótipos como os
próprios elementos preexistentes ou acumulados (PEREIRA, 2002, p. 44)4.
Estudiosos da área psicossocial, Leyens, Yzerbyt e Schadron, citados por Pereira (2002)
consideram os estereótipos como crenças compartilhadas sobre as características de cada
indivíduo, principalmente pelos traços de personalidade.
Pereira (2002) cita Nesdale e Durkheim quando esses definem estereótipos como
forma de generalizar grupos de pessoas a respeito de suas características, para simplificar e
organizar as inúmeras informações existentes. Os estereótipos carregam a carga negativa do
pré-conceito do indivíduo, em que há o julgamento generalizado sem o aprofundamento nas
características de cada ser.
Martino (2009) compreende que estereótipos são imagens mentais criadas pelos
indivíduos a partir da abstração de traços comuns a um momento previamente vivido. “O
estereótipo é um conhecimento imediato e superficial, ganhando em tempo o que perde em
profundidade. Essa representação, quando utilizada por um grande número de pessoas, tende
a ganhar status de verdade” (MARTINO, 2009, p. 21).
Pereira (2002) completa com a ideia de que esse compartilhamento de crenças é
transmitido e reforçado pela intervenção dos pais, professores, amigos e também utilizam os
meios de comunicação de massa para colaborar com a difusão.
[...] na medida em que nas sociedades modernas os estereótipos, juntos com os demais
conteúdos informacionais, avaliativos e valorativos são transmitidos através dos meios de
comunicação de massa, podemos imaginar que eles atingem milhões ou mesmo bilhões
de pessoas, levando a constituição lenta e inexorável do que poderia ser denominado de
repertório coletivo dos estereótipos (PEREIRA, 2002, p. 53)
Hendryo Anderson André (2012), na dissertação “Venda nos Olhos, Legendas e Iniciais – A
notícia televisiva como ferramenta de estigmação e invisibilidade social”, investiga de que forma
a mídia constrói identidades estereotipadas que corroboram com a invisibilidade dos indivíduos.
Para Martín-Barbero e Gérman Rey (2004) a percepção de cidadania perpassa pela
visibilidade social, “[…] direito de ser visto e ouvido, uma vez que equivale ao direito de
existir/contar social, política e culturalmente, tanto na esfera individual quanto na coletiva;
das maiorias ou de minorias” (BARBERO; REY, 2004, p. 35).
O poder intrínseco da imagem externaliza as funções que acaba assumindo: a expressão,
a comunicação, o encantamento, a adivinhação. Um instrumento de manipulação e “persuasão
religiosa, ideológica, de sucedâneo, simulacro5 ou malefício” (BARBERO; REY, 2004, p. 15-16). A
mídia carregada de imagens recebe o mesmo poder. A mesma força de convencimento.
Ser visto, ser escutado. O ato de cidadania conceituado por Barbero e Rey (2004) é
praticado pelo Museu da Pessoa6. A campanha da instituição, “Cidadania é Ouvir o Outro”,
dá voz para aqueles que não são vistos. “O Museu da Pessoa transforma histórias de vida de
toda e qualquer pessoa em fonte de conhecimento, compreensão e conexão entre pessoas e
povos”7. Por que o enxergar o outro é tão importante?
Olhar é fitar, mirar, contemplar. É sondar, cuidar e ponderar. Admirar, julgar, estudar. Olhar
é apreender o mundo, as coisas, as pessoas e suas circunstâncias e considerá-las, guardá-
las de alguma forma nos escaninhos da memória. Olhar é encarar, pesquisar, examinar.
Olhar é lançar-se ao mundo e significá-lo, perceber seus sentidos plurais. Para além de um
fenômeno físico, olhar é captar, receber, ler o mundo. Lançar um olhar é deter-se sobre
algo. Na sua dimensão total, o olhar está próximo do entender, do saber, do conhecer.
Dessa forma, não é demais dizer que um olhar é uma forma de compreensão, um ensaio de
racionalidade e sensibilidade (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 78).
Quando falamos do enxergar e do reconhecer as identidades por meio das intenções dos
meios de comunicação, estamos falando da constituição da subjetividade desses indivíduos,
aqui, representados pelos adolescentes que serão analisados. As influências dessa construção
têm origem na Indústria Cultural, analisadas minuciosamente pelos teóricos da Escola de
Frankfurt. Bourdieu (2010) vai trazer a ideia do poder simbólico que os mass media exercem
sobre os indivíduos, oriundo do psíquico, não da razão, mas do inconsciente velado, que atua
como estruturas invisíveis da constituição da realidade. A subjetividade da construção de
maneira subjetiva.
Nossa hipótese é de que o reconhecimento da identidade dos adolescentes de
comunidades carentes se dá a partir das relações sociais e da subjetividade que eles possuem.
A teoria do habitus de Pierre Bourdieu dá margem para interpretações. Nos apropriamos do
conceito para compreender as relações sociais e a construção da subjetividade dos sujeitos.
O conceito auxilia para apreendermos as categorias de classificação - termo da Análise
de Conteúdo de Moraes (2001) – da identidade pelas relações sociais e culturais. Tudo isso
somando ao conceito de identidade, compreendida pela relação da diferença (Silva, 2005), e
pelo reconhecimento que cria a identidade (Honneth, 2003).
Segundo Bourdieu (1974), as relações sociais que criam a ideia de formação do habitus
[...] têm seu princípio na instituição escolar, investida da função de transmitir conscientemente
e em certa medida inconscientemente ou, de modo mais preciso, de produzir indivíduos
dotados do sistema de esquemas inconscientes (ou profundamente internalizados), o qual
constitui sua cultura, ou melhor, seu habitus (BOURDIEU, 1974, p. 346).
Setton (2001) analisa que o conceito de Bourdieu (1972) surge do desejo de compreender
as relações de compatibilidade entre o comportamento dos personagens e as estruturas e
condicionamentos sociais. Assim, o habitus é compreendido como
É no conflito que é possível perceber o habitus, afinal, ele é configurado como “princípio
mediador”, relacionado entre as “práticas individuais e as condições sociais de existência”
(SETTON, 2002, p. 62). O habitus é o elemento criado no sujeito a partir da repetição cultural.
Aplicando a ideia na pesquisa, podemos compreender da seguinte forma: o adolescente de
comunidade carente, que sofre com o estigma do marginalizado, reforça a repetição do
estigma quando usa o mesmo discurso, isto é, o habitus é a repetição do estigma que se dá
pelas relações sociais e culturais.
a sinalizar a importância da formação desta área. Até então, falamos somente dos estudiosos
portugueses, enquanto no Brasil, ainda é possível encontrar resistência do uso de ferramentas
tecnológicas no aprendizado em sala de aula.
No entanto, a resistência não é generalizada. Algumas iniciativas da apropriação dos
recursos midiáticos estão sendo realizadas por órgãos governamentais e não-governamentais.
Exemplo disso é o “Manual Básico de Vídeo: Mídia Jovem” 8desenvolvido pela Secretaria de
Comunicação Social do estado de Sergipe, nordeste do Brasil. O Instituto Claro também segue
com a contribuição, o “Miniguia de Produção de Vídeos de Curtíssima Metragem”9apresenta
orientações, curiosidades para o aprimoramento da produção de vídeo captado pelos meios
eletrônicos: celulares, câmeras fotográficas, filmadoras e outros dispositivos móveis. O
Ministério da Educação percebeu a importância da utilização dessas ferramentas, e com isso,
a TV ESCOLA, canal de educação, criou um manual “Oficina de Produção de Vídeos” 10, passo
a passo - ideia, roteiro, pré-produção, gravação, até chegar na edição - e, assim como os
demais citados acima, acesso gratuito e disponível na internet.
O caminho percorrido
O percurso realizado até aqui nos possibilita compreender quais serão os próximos
passos. O que propomos e que nos inspira é a vontade de investigar de que forma adolescentes
de comunidades carentes reconhecem a própria identidade e a do bairro em que vivem por
meio da subjetividade - “Como os outros me veem?”, “Como eu me vejo?”. Os questionamentos
levantados são nossa técnica metodológica para elaboração do vídeo. Como o adolescente
percebe o espaço ao redor, existem estigmas? O que os “outros” falam da comunidade? (Como
os outros me veem?) e como ele (re)cria e reconhece a própria identidade? (Como eu me vejo?).
O objetivo geral do estudo é o desenvolvimento sistematizado de uma metodologia, com
o uso do audiovisual, para o ensino de História. A temática é os adolescentes, especificamente
nesta pesquisa, das comunidades carentes. No entanto, é importante deixar claro que a
metodologia pode ser aplicável a qualquer contexto. Assim, a pesquisa se debruça sobre as
diversas formas de escutar o aluno, dentre elas: por meio da produção de vídeo. Como o
adolescente reconhece sua identidade diante dos estigmas instituídos ao seu redor? Como
romper os estereótipos que classificam moradores de zonas periféricas?
Para que a metodologia seja utilizada no Ensino de História e nas demais áreas, um
trabalho didático deve ser feito com os professores, pois as discussões do uso de ferramentas
tecnológicas associadas com a prática do ensino se prolongam há décadas. A resistência
manifestada por teóricos é vivenciada dia a dia por professores dentro da sala de aula.
Historiadores da linha positivista já manifestavam sua não aprovação do uso do filme
como fonte histórica e, muito menos, como material didático, limitando-se apenas o uso de
documentos como fonte histórica. O primeiro historiador a romper com a lógica do ensino
conservador é Marc Ferro (1922), da 3ª geração da Escola dos Annales. Ele abordou o filme
em outra dimensão de análise, criando a divisão: Conteúdo e Roteiro. Ou seja, ler imagens e
interpretar o filme pela sociedade da época representada nas cenas cinematográficas. Nóvoa
(2012) também faz o movimento precursor. Sinaliza a importância do uso do filme em sala de aula
como apoio didático e peça fundamental para despertar o espírito de pesquisa nos estudantes.
LeandroKarnal (2012), na obra “Conversas com um jovem professor” (2012) traz essa
discussão sobre as resistências dos professores ao uso das tecnologias:
[...] a melancolia de um passado perfeito que nunca existiu, estará presente na sala dos
professores e na direção das escolas. É quase uma atitude bizarra. Quem passou décadas
utilizando giz e quadro, falará que, “naquele tempo” é que se dava aula. Saíamos, às vezes,
cobertos com uma camada de pó tão onipresente que parecíamos um objeto arqueológico
escavado e trazido à luz após milênios numa tumba secreta. Provavelmente, quem diz a
você que “naquele tempo” é que se dava aula, não tolera que você a dê sem ter passado por
um sofrimento paleolítico do giz (KARNAL, 2012, p. 92).
identidade pelos professores do Ensino de História. É importante lembrar que não é restrito,
sendo aplicável em todas as áreas do conhecimento de forma interdisciplinar.
Depois de aplicado o projeto e as análises do vídeo concluídas, a sistematização da
metodologia, com o uso da produção de vídeo com adolescentes, será possível. Essa
sistematização tem como consequência, em anexo à dissertação, a elaboração de um material
interativo, passo a passo, de produção de vídeo para professores de História. Conclui-se
dessa forma, que o ensino de História cumpre com a função social ao preocupar-se com
a identidade e a luta por reconhecimento de adolescentes que vivem em comunidades
carentes, proporcionando transformação social, garantia do acesso à cidadania e incentivo do
pensamento crítico sobre a sociedade na qual estão inseridos.
Notas
1 Embora os irmãos Lumière sejam considerados os inventores do cinema, no mesmo período outros
cientistas também trabalhavam na descoberta do processo capaz de projetar as fotografias animadas.
Na França, o praxinoscópio reunia milhares de pessoas no teatro Grévin. Já nos Estados Unidos,
Thomas Edison experienciava na tentativa de determinar o kinetoscópio. Porém, desses, o único
que teve grande sucesso foi o cinematógrafo, apresentado pelos irmãos, que desenvolvia, projetava
películas e filmava. A primeira projeção pública ocorreu em 28 de dezembro de 1895 no Grand Café,
em Paris, com a obra La sortiedes usines Lumière (A saída das indústrias Lumière).
2 Entende-se aqui, “Sociedade do Espetáculo”, como teoria crítica de Guy Debord (1997), em que
“toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta
como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação.” (p. 13) . Segundo o autor não são as imagens que criam o espetáculo, “mas uma
relação social entre pessoas, mediadas por imagens” (p. 14).
4 Marcos Emanoel Pereira, autor do livro “Psicologia Social dos Estereótipos” utiliza os estudos de
Walter Lippman quando define os estereótipos como fotografias.
5 Simulacro implica a ideia de questionar: o que seria real? O simulacro constrói uma realidade,
distinta da que simula. É uma construção que se refere a si mesma. Diferente da simulação que
se compromete em reproduzir a realidade, o simulacro cria a ilusão que perpassa a ideia do real,
sendo assim, torna-se real pelo comprometimento de criar. Um real ficcional. BAUDRILLAR, Jean.
Simulacros e Simulação, Relógio D’Agua, França: 1981.
6 O Museu da Pessoa é uma Organização da sociedade civil de interesse público sem fins lucrativos.
É um portal de comunicação que disponibiliza 16 mil histórias e 72 mil documentos fornecidos pelo
cidadão. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/pt/home>. Acesso em: 13 de jul. 2014.
8 Disponível em::<http://www.midiajovem.se.gov.br/arquivos/94/manual_de_video_final_web.pdf>.
10 Disponível em:<http://curtahistorias.mec.gov.br/images/pdf/dicas_producao_videos.pdf>.
11 Para Sierra (1998 apud GODOI; MATTOS, 2006) a entrevista em profundidade é um tipo de entrevista
no qual o objeto de investigação está constituído pela vida – experiências, ideias, valores e estrutura
simbólica do entrevistado. Quanto ao número de pessoas entrevistadas, segundo Godoi e Mattos
(2006), a escolha de participantes no estudo é de competência do pesquisador que tem flexibilidade
com base no desenvolvimento teórico, se caso for necessário voltar a campo e ampliar o número
de participantes ou aprofundar a conversação com os mesmos. Godoi e Mattos (2006) observam
que há três modalidades principais de entrevista qualitativa: a) entrevista conversacional livre, sem
necessidade de perguntas padronizadas, onde haja a possibilidade de questionamentos no contexto
e conforme as interações naturais que possam ocorrer; b) entrevistas baseadas em roteiro, onde o
entrevistador ganha flexibilidade para ordenar e formular as perguntas; c) entrevista padronizada
aberta, caracterizada por abordar em formato de questionário, onde uma lista será distribuída com
perguntas iguais para todos os entrevistados, porém, com repostas abertas.
Referências
ALVES, Fernando Alberto Pinho. Educação para os media: As imagens como pedagogia socialmente
integradora. Dissertação (Mestrado em Educação Artística) - Universidade de Lisboa Faculdade de
Belas Artes, Portugal, 2008. Disponível: http://repositorio.ul.pt/handle/10451/646>. Acesso em: 09
de nov. 2013.
ANDRÉ, Hendryo Anderson. Venda nos olhos, legendas e iniciais: a notícia televisiva como
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Sites
O jogo e o conceito:
sobre o ato criativo na aula de história
*
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
E-mail: [email protected]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
**
E-mail: [email protected]
The Game and the Concept:
About the Creative Act in History Class
Abstract: This article discusses the teaching of concepts through the usage of
games in history classes. From a theoretical debate about the concept, based on
authors such as Deleuze, Foucault, and Bergson, it presents conceptual learning
as the central element of a history class and argues that the learning of the
concept occurs in a process of direct insertion in time, in a non-place of pre-
individual singularities, provided by the game and the fun. In this sense, this article
is a theoretical discussion that proposes to think the game and the concept by
considering the latter as a strategic medium to gain access to the former, in a
process of student displacement from the actual of history class, governed by
intelligence, to a virtual state, governed by intuition. The access to the place where
the concepts are not yet formed enables us to conceive the classroom with games
as a space filled with creative potential. It is in this place of creation that concepts
emerge and are formed, building themselves as elements of representation.
El juego y el concepto:
sobre el acto creativo en la clase de historia
89
Introdução
Sobre o conceito
90
PEREIRA, N.; TORELLY, G.
O jogo e o conceito: sobre o ato criativo...
Esses novos conceitos não explicam ou dão sentido a realidades que lhes são exteriores
e que estão à espera de uma doação de sentido, mas carregam consigo um corte realizado no
Caos, trazendo à tona formas e sedimentando estratos, numa junção singular entre o visível e o
enunciável. O conceito é irremediavelmente imanente à forma que trouxe a luz. Trata-se de uma
relação entre o mundo informal, uma espécie de fora em relação a todas as formas, e um mundo
formal, que duplica esse fora através de um corte, criando um mundo, uma coisa, uma forma.
O conceito é uma síntese dessa relação, é como um acontecimento que aponta para fora
e aponta para a forma; que deixa sempre um pé na reserva infinita do passado, na fonte da
“memória absoluta” (DELEUZE, 2005, p. 114-115), lá onde só se encontra o fluxo, e um pé na espera
do futuro, onde se formam novos presentes. Eis a razão da instabilidade dos conceitos. Uma vez
que cabe a eles dar expressão ao dilema relacional entre a obra da palavra e a dobra do silêncio
que compõe a cada vez a trama das atualizações da linguagem. Enquanto síntese relacional
entre a forma e a ausência de forma, o conceito carrega como que uma responsabilidade ética
e estilística de manter um nível de vínculo que expresse esse laço invisível de reciprocidade
entre a singularidade dos ditos e as terras incógnitas do “discurso sem fala” (COETZEE,
2004, p. 250). Eis os termos que indicam não apenas uma inadequação lógica ou um caráter
lamentavelmente lacunar dos conceitos históricos, porém, mais profundamente, a dimensão
estética da historicidade dos conceitos como fundamento que faz da flexibilidade não um sinal
negativo de incompletude, mas uma potência afirmativa de hesitação.
Tudo se passa como se os conceitos – esses abruptos recortes que criam sentido à
experiência histórica, fossem também flexíveis, na medida em que sua flexibilidade diz respeito
a essa tensão que é da sua natureza, da natureza de cada conceito: ser o acontecimento que
revela uma profundidade virtual e uma atualidade superficial.
Pois essa confluência, que é como um jogo, entre o virtual – plano do passado e da
memória – e o atual – plano do presente e do instante -, fez com que a cada nova formação os
conceitos e seus significantes tivessem que assumir outras roupagens.
Assim é o caráter flexível do conjunto de conceitos que chamamos História. Quer dizer
que eles conservam significantes, mas mudam de sentido, incorporam outros acontecimentos,
de modo que cada um possui um espaço-tempo específico, irrepetível e historicamente datado.
Tal flexibilidade se dá a partir de uma condição virtual que abriga em si mesma uma
potência de diferença, mas o que vemos e quando vemos a mudança é na formação histórica,
sempre atual.
É assim a vida dos conceitos e é assim que se desenha uma disciplina da qual a sina é
criar conceitos, rasgando o Caos e criando formações históricas.
A história ensinada na escola básica constitui, igualmente, um campo conceitual.
Entretanto, os conceitos assumem um caráter valorativo diverso, ainda que, como operadores
de sentido da relação espírito/matéria, o valor continue. O caso é que o valor aqui, o chamado
valor explicativo do conceito, reside no que chamamos de expansão da vida.
Esse valor de potência expansiva está relacionado aos estudantes da escola básica, sem
dúvida, à constituição de uma “consciência histórica e um pensar historicamente”, supondo
ser tanto um quanto o outro, o desenvolvimento de uma arte de viver que problematiza o
presente e olha para o passado. Trata-se de um sentido de olhar para o passado, buscando
uma compreensão do presente, que consiste em regular a ação e orientá-la com base num
pensamento histórico, na compreensão de um processo e no fim de uma conjuntura.
Mas não é somente aí que se pode encontrar o caráter expansivo da vida, que é o valor
mesmo que possuem os conceitos para aos estudantes e para as novas gerações. Há ainda, além
de uma “consciência histórica” e de um “pensar historicamente” - os quais implicam uma relação
determinada entre o passado e o presente -, outro valor, que explicitaremos mais adiante. Importa
complementar agora que a relação presente, passado e futuro, relativa à operação da “consciência
histórica” e do “pensar historicamente”, situa-se irrevogavelmente, sempre num plano atual,
quase como um “presentismo”, uma vez que é do presente que parte a “consciência histórica”
para a ele voltar. O presente é o limite do passado. Tudo se passa como se o passado fosse tudo o
que o presente pode dele tirar, por necessidade, por interesse, por meio da inteligência.
É nesse momento que pensamos que o valor expansivo dos conceitos ultrapassa a
constituição de uma “consciência histórica”, de um “pensar historicamente”, a necessidade
de compreensão e de orientação no presente. Ultrapassa ainda os problemas gerados pelo
presente e o estado permanentemente alerta e em vigília do presente atual.
Nosso argumento se situa no fato de que o passado é muito mais do que aquela parcela
que o presente pode tornar história. Há um mais no passado que não pode ser limitado
pelas necessidades do presente, como que uma reserva virtual que permite suspender toda
a definição absoluta sobre o que dele se pode dizer (BERGSON, 2010; DELEUZE, 2012). É
justamente nessa reserva virtual, num “há passado”, que se pode remeter o valor expansivo
dos conceitos na sala de aula de História da Escola Básica.
Tudo se passa como se ensinar história e os conceitos dessa disciplina fosse um modo
de limitar os usos do passado, mas também uma maneira de se expor diante da infinitude do
passado. É essa exposição ao passado que estamos procurando apresentar desde o início. Uma
maneira de encontrar a abertura por onde vazam todas as estruturas, por onde desfalecem
todos os modelos e por onde sucumbem todas as narrativas pretensiosas de verdade. Não se
trata de uma ode ao relativismo, de modo algum, mas de acompanhar as forças do processo
criativo da disciplina História. Pois, se estruturas não vazassem, se modelos não falecessem
e narrativas não sucumbissem, não teríamos história nem na forma de uma experiência, nem
na forma de narrativa disciplinar. Portanto, estamos no centro do problema da História como
disciplina e da natureza da produção do conhecimento histórico. Ou seja, expor-se diante do
passado é abrir-se ao ilimitado, a forças singulares, à matéria não formada, pois tal abertura e
exposição é que permitem pensar e criar novos conceitos.
Ora, a aula de História na escola básica trabalha no nível da compreensão do presente
pela vista ao passado, mas como já dissemos, essa é apenas uma parte do que faz o historiador
e do que pode o ensino de História, a constituição de uma “consciência histórica”. O que
pretendemos é que ao invés de apenas limitar o passado pela leitura do presente e pela
expectativa do futuro, o ensino de História possa ser um lócus de exposição do aluno diante
de um passado que é ilimitado em possibilidades de leitura e, sobretudo, de experiências.
É, pois, o plano da experiência que permite pensar o ilimitado do passado. Ter com o
passado é ter com um fluxo intenso de forças que oferecem experiências de vida. Logo, ao
ensinar história na escola básica, além do justo e adequado trabalho de constituição de uma
O jogo
Pensamos em que o jogo tem a ver com isso: com um passado que não é lista de fatos
acontecidos, mas potência para criação; com conceitos que são instáveis e flexíveis; com essa
brincadeira com o tempo – com o tempo puro, a origem do conceito e com o tempo cronos,
o lugar da explicação e da história; com a experiência como pura indeterminação. O que o
jogo tem a ver com isso tudo? Acreditamos que jogar em uma aula de História ou fora dela na
tentativa de aprender história é uma forma de brincar com a historicidade.
Uma ficção como um jogo dá um tom de brincadeira com a história, que nos reporta a
algo que excede o presente, pois que o estudante é levado a propor outros presentes, outras
configurações imaginárias que resultam do contato com o passado. Trata-se de um ensaio
de hipóteses sobre possibilidades de injunções históricas que não aconteceram na realidade
histórica, mas se apresentam com o que poderia ter sido ou o que a partir do conhecimento
do conceito é uma interpretação possível.
É da essência do brinquedo e do jogo “miniaturizar” o presente, criando um efeito de
coalescência ao reunir as perspectivas sincrônicas e diacrônicas numa mesma temporalidade.
Ao invés de se deter na explicação da sucessão entre o “antes” e o “depois”, o jogo é o que
presentifica a “temporalidade humana em si”, “o puro resíduo diferencial” que, na leitura de
Agamben (2005), é a qualidade própria do “Histórico em estado puro”. Como afirma o autor:
Tendo em mente tal perspectiva, o jogo deixa de ser somente sinônimo de uma imagem
negativa do “sério” ou da expressão de uma temporalidade privada de rigor conceitual.
Miniaturizar o presente não significa exatamente perder a linguagem, mas desobstruir
os caminhos que apartam a linguagem da duração. O jogo, portanto, pode ser lido como
brincadeira que desobstrui a passagem entre presente e passado, desde que jogar não seja
o equivalente de algo como ocupar um lugar de verdade, uma posição de juízo, e sim de uma
maneira de flutuar num espaço, ou melhor, numa espécie de espacialidade ideal, que não seria
outra coisa senão o correspondente exato da diferença potencial retida pelos conceitos.
A temporalidade do jogo é uma forma de dizer que não é somente pela subordinação
do aprendizado ao exercício de orientação temporal para a vida prática que se tem acesso
ao quadro complexo das diferenças e semelhanças desdobrado pelos conceitos históricos,
mas pela deliberada aceitação da brincadeira, muito cara às crianças, de ficcionalizar o
sentido do cogito, de arriscar, adentrar numa “zona de não conhecimento” onde é possível
dizer: “Eu é um outro”, onde as propriedades subjetivas que configuram o rito de adequação a
uma determinada ordem do discurso são invadidas e adensadas pela “paixão do outro”. Nesse
ponto, a subjetividade não é simplesmente suspensa, mas instalada num limiar de tensão:
No limiar da zona de não conhecimento, Eu deve abdicar de suas propriedades, deve comover-
se. E a paixão é a corda estendida entre nós e Genius, sobre a qual caminha a vida funâmbula.
O que nos maravilha e espanta, antes mesmo do mundo fora de nós, é a presença, dentro de
nós, dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente, que fica hesitante no início de
qualquer identificação. E é essa criança alusiva, esse puer obstinado, que nos impele na direção
dos outros, nos quais procuramos apenas a emoção, que em nós continuou incompreensível,
esperando que, por milagre, no espelho do outro, esclareça-se e se elucide. Se a emoção
suprema, a primeira política, é olhar o prazer, a paixão do outro, isso acontece porque buscamos
no outro a relação com Genius que não conseguimos alcançar sozinhos, a nossa secreta delícia
e a nossa nobre agonia. (AGAMBEN, 2007, p. 19-20).
intersubjetivos que nas tramas da história vivida e narrada formam o drama particular de uma
consciência histórica; não obstante, como num complemento necessário e salutar, significa
também expor as vértebras do sentido e as pretensões universais da linguagem representativa
a um efeito paradoxal, ao ocaso contingente do vazio do significado como uma reserva de
silêncio em que a experiência se mantém predisposta a recriar-se em novos futuros.
Descreve-se assim uma espécie de dualismo superior do ensino de História, menos
preso ao registro de oposições entre “o que de fato aconteceu” e “o que não aconteceu”
(registro esse que se serve de uma noção pouco sofisticada de acontecimento), e mais afeito
a uma prática de aprendizagem que explora de modo criativo as oposições entre o regime
do possível e a estrutura da potência. Trata-se, certamente, de uma tentativa de tensionar
a cena pedagógica pela produção e/ou provocação de uma superfície de contato entre a
linguagem expressiva das artes e a lógica representativa que compõe a tela da imaginação
científica. A combinação entre emoção criadora e capacidade representativa que preside o
processo de elaboração de um conceito não é apenas um prodígio da abstração analítica, mas
o envolvimento na trama inventiva do jogo.
jogo. Pensamos em jogos como estratégias pedagógicas, mas nunca limitadas pelas fronteiras
de uma prática pedagógica comum, que se vale da necessidade de resultados predefinidos
ou de uma organização que implique trabalhar no limite do recorte que o presente faz do
passado, ou seja, um trabalho no limite da verdade histórica já estabelecida pela pesquisa
histórica. Isso não quer dizer que o jogo permita modificar a verdade histórica ou mesmo
que o jogo ofereça falsidades como objetos de ensino. Ao contrário, o jogo trabalha sim com
a verdade histórica, mas se permite brincar com ela, jogar com outras possibilidades, sempre
hipotéticas de finais, de injunções, de vitórias ou de derrotas. Pois que é nessa brincadeira
com a verdade que o estudante pode aprender a densidade de um conceito, seu potencial
explicativo e sua operacionalidade. Essa brincadeira com a verdade histórica, muito comum
em jogos de estratégia, jogos de guerra ou jogos como o RPG, é o que permite não apenas
compreender a distância entre o relato histórico baseado na pesquisa e o que o cinema, os
jogos ou outras formas de representação do passado realizam ao contar uma história. Mas
também essa brincadeira possibilita uma imersão na origem de um relato, pois o estudante
vivencia a própria criação de um relato histórico, o levantamento de uma hipótese ou a
imaginação de como tudo poderia ter se passado.
O terceiro elemento é a imaginação. O jogo, ao seguir em frente justamente no próprio
limite da inteligência, trabalha com a faculdade da imaginação ou da fabulação. Desse modo, o
jogo permite não apenas um reconhecimento exteriorizado do passado, mas uma experiência
com o passado por meio da imaginação. E é essa experiência com o passado que permite
uma imersão direta no tempo e que joga o estudante no ato criador de qualquer conceito. A
faculdade da imaginação está presente no fazer histórico, o historiador ao selecionar e seriar
os documentos realiza um trabalho com rigor metodológico, mas nunca sem a faculdade
fabuladora que o auxilia a criar uma imagem do passado e a imaginar como as coisas se
passaram, face ao que dizem os documentos.
O estudante ao aprender história não pode ser apenas o receptáculo do conceito já
definido, mas precisa ter uma experiência com o passado para recriar o conceito no seu
espírito. Assim, compreender as relações hierárquicas e de poder na Idade Média jogando
“Domínio de Carcassone”, é um exercício de aprendizagem, enquanto fazer o mesmo por meio
de definições de poder e de vassalagem no quadro verde é um exercício de reconhecimento.
O quarto elemento diz respeito ao caráter de indeterminação carregado pelo jogo. O
tempo do jogo atrai por ser aquele em que as virtualidades ainda correm sem as atualizações
vitoriosas, tempo de imersão em uma história virtual, de desfecho incerto e indeterminado.
Inserido no tempo das virtualidades do jogo, é impossível saber de véspera quais serão os
resultados finais. Nisso reside sua maior atração. Esse quarto elemento relaciona-se diretamente
com os anteriores, uma vez que a indeterminação provoca a imaginação a intensificar-se e
interpela os jogadores com a necessidade de escreverem e reescreverem a história a cada
vez que o jogo recomeça. Em todos os casos, nos parece que o “temor” recorrente de muitos
professores em virtude da capacidade do jogo de “desvirtuar” a verdade histórica deve ficar em
segundo plano diante do potencial carregado pelo mesmo de nos fazer experimentar o sentido
mais forte da própria duração. Embora os jogos possam também servir para aprender a repartir
a parte do verdadeiro e do falso em relação aos fatos históricos, a força do jogo reside mesmo
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E-mail: [email protected]
Instituto Federal Farroupilha/Campus Júlio de Castilhos (IFFarroupilha), Júlio de Castilhos, RS, Brasil.
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Instituto Federal Farroupilha/Campus Júlio de Castilhos (IFFarroupilha), Júlio de Castilhos, RS, Brasil.
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Teaching and Learning Indigenous History and Culture:
Rethinking Educational Practices
102
Introdução
Desenvolvimento
Para empreendermos essa viagem sobre tão importante temática, é necessário inseri-la
no contexto da educação brasileira. Essa organização, por sua vez, ocorre articulada a um
momento histórico maior.
O processo de independência (1822) política brasileira e hispano-americano não significa
o rompimento dos laços identitários com os países europeus. O campo da educação também
continuou sob a hegemonia cultural europeia. No Brasil, as elites ligadas ao setor agrário e
escravista mantiveram relações com o universo cultural ocidental cristão eurocêntrico,
conservador, mas desafiadas a manter a unidade de um vasto território marcado por diferenças
e conflitos locais e regionais. Na verdade foi uma ruptura incompleta, pois saímos do domínio
lusitano e passamos para a hegemonia econômica inglesa. Para tornar essa realidade mais
complexa, as elites brasileiras adotaram o modelo francês de escolarização.
É nesse contexto que a disciplina de História é importada da França onde havia surgido
no final do século XVIII e início do XIX. No Brasil, a matéria escolar se insere no contexto de
103
SANTOS, J.; ROCHA, A.; LOPES, M.
Ensinar e aprender histórias e cultura indígenas...
A história divide-se em uma história universal profana e uma história sagrada constituintes
de uma identidade e com o cristianismo da igreja católica, além da história nacional
responsável pela criação do estado-nação integrado nos princípios “humanísticos
Clássicos”. A opção pelo currículo humanístico francês decorria exatamente dessa relação
com o cristianismo católico para identificar os jovens, futuros governantes e detentores
do poder, com a nação na qual estado e igreja se entrelaçam. (BITTENCOURT, 2007, p. 35).
Os povos indígenas, depois da expulsão dos jesuítas e da saga bandeirante, são relegados ao
total esquecimento. O século XIX, analisando sob a perspectiva politica ou social, incluindo
nesse período a série de estudos em torno da abolição da escravidão, nada informa sobre
os indígenas.
Com a Proclamação da República (1889) inaugura-se uma nova fase assimilada pelas
rupturas quando o romantismo, que elogiava o índio como “bom selvagem”, passa a ficar em
um plano secundário. Começa, de forma incipiente, a inclusão das camadas populares nos
grupos escolares e a produção de livros didáticos.
A República substitui, gradativamente, o índio pelas “figuras heroicas” dos bandeirantes
e Tiradentes. Se por um lado continuava a idealização romântica do gentio, por outro se
divulgava a imagem de um índio predador, bravio, que precisava ser combatido e escravizado.
A Marcha para o Oeste e os interesses econômicos provocavam a defesa do extermínio
dos povos indígenas. É nesse contexto que foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), 1910,
com o objetivo de manter os índios em suas culturas tradicionais.
A partir da República, de acordo com o pensamento de Funari/Piñon (2011,p.114), o:
No governo de Getúlio Vargas (1930-1945) foi assinado o decreto lei (nº 5540/1943),
declarando o dia 19 de abril como o Dia do Índio. Dessa maneira, a temática indígena,
praticamente inexistente nos currículos e manuais escolares, foi introduzida nas atividades
educativas, principalmente, no ensino primário.
No entanto, a contribuição dos povos indígenas na formação histórica e cultural
da América e do Brasil continuava a ser negada bem como a sua diversidade cultural. Por
outro lado, conforme Silva (2013, p. 145), “desconsiderava-se praticamente toda a trajetória
histórica dos índios marcada por resistências, fugas, capitulações, negociações, tentativas de
extermínio...” Isso sem contar aqueles grupos que se mantiveram isolados ou ocultados sob
uma identidade não indígena, a fim de evitarem perseguições e poderem, assim, se reproduzir
física e culturalmente, ainda que com grandes dificuldades.
Em decorrência de tudo isso, durante muito tempo, incorporou-se a ideia de que
os povos indígenas não tinham história, degenerados. Negava-se assim o direito à luta, à
autodeterminação e às escolhas, enfim, de se preservar enquanto etnias e culturas. Mesmo
(...) os movimentos de luta por direitos indígenas eclodiram no Brasil. Eles foram consequência
das políticas nacionais de interiorização nas décadas anteriores: nos anos 1940, no governo
de Getúlio Vargas (1882-1954), com a Expedição Roncador-Xingu1; depois, com a construção
de Brasília, no governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976); e, nos anos de 1960/70, ao
longo do regime militar, com a política de expansão da fronteira agrícola, envolvendo o
deslocamento de agricultores da Região Sul para ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia.
Lei que tornou obrigatório o estudo da história e da cultura indígena na escola é resultado
de um movimento nacional e internacional de reconhecimento e valorização da diversidade
– movimento que trouxe implicações para o campo da educação entendida como meio de
superar os preconceitos e a discriminação em relação aos povos indígenas.
É evidente que essa gama de acontecimentos acrescidos da nova legislação vai causar
importante impacto na Educação Brasileira. Ao estudar esse contexto, Bergamaschi (2010)
argumenta:
Essas reflexões e inquietudes vão gerir possibilidades, as quais poderão originar novas
situações que podem amenizar a dicotomia existente entre a teoria e a prática. Quando o foco
da abordagem recai sobre a presença ou “silêncio” a respeito destas temáticas, avaliamos as
circunstâncias em que ocorre a implementação da legislação na Educação Básica. Ao falar de
sua pertinência, recorre-se ao pensamento de Zarth (2010), quando ele ressalta:
O atual retorno do tema “etnorracial” não é, apenas uma volta metodológica ao passado,
e sim uma tentativa de reconsiderar, numa perspectiva crítica, as condições históricas
dos diferentes grupos etnoculturais na constituição da sociedade nacional, marcada
por inequívocas desigualdades com características étnicas. Certamente, a força das
teorias ligadas ao multiculturalismo ou à interculturalidade tem um papel importante na
reintrodução do tema no ensino de História. (ZARTH, 2010, p. 119).
A literatura é um texto que como outro texto qualquer é permeado pela subjetividade de
seu autor, mas também nem por isso ele deixa de ter importância e relevância. Pelo contrário,
reconhecidamente a subjetividade é algo a ser considerado e deve permear também os estudos
históricos. No ensino o uso da literatura pode, portanto, ser pensado como um importante
recurso de interpretação e reflexão sobre a História.
Entre tantas características desse uso, podemos ressaltar que os textos literários podem
trazer dimensões que os textos mais “históricos”, por vezes, podem não produzir. A história e a
literatura, nesse entendimento, representam formas diferenciadas de apresentar o ser humano
e as suas relações com a sociedade, a cultura, enfim, com o mundo. A literatura representa
o ser humano no tempo a partir de narrativas descompromissadas com os acontecimentos.
A história, por sua vez, vale-se do presente para recolher, selecionar e interpretar fontes do
passado e busca, dessa forma, construir narrativas comprometidas com a realidade vivenciada
pelos seres humanos em diferentes contextos e temporalidades.
Nessa caminhada, História e Literatura, conforme ABUD et. al. (2010, p. 45), “encontram-
se nesse intermezzo, pois a ficção produzida pela segunda, mesmo revestida do uso tradicional
do passado representado na história dos heróis, possibilita, indiretamente, a observação da
mentalidade de grupos excluídos”.
Nesta perspectiva, a História e a Literatura não podem ficar aprisionadas a uma narrativa
repleta de batalhas, heróis, mitos, símbolos, crenças, tradições ou à ótica de que os índios
são preguiçosos, as mulheres menos inteligentes, os negros supersticiosos... Defendemos
que ambas precisam abrir espaço para novas temáticas, nas quais negros, índios, mulheres,
desfavorecidos economicamente, etnicidade, diversidade, pluralidade cultural, cidadania,
direitos humanos, tenham asseguradas as suas presenças como objetivo de discussão. A
utilização de textos literários nas aulas de História, segundo FONSECA (2004, p.165-166):
[...] reservadas as suas especificidades artísticas podem nos oferecer pistas, referências do
modo de ser, viver e agir das pessoas, dos valores e costumes de determinada época. É uma
fonte de documento/evidência que auxilia o desvendar da realidade, as mudanças menos
perceptíveis, os detalhes sobre lugares e paisagens, as mudanças naturais, os modelos de
o homem relacionar-se com a natureza em diferentes épocas.
Os textos literários nos remetem a dimensões do cotidiano. Por outro lado, permitem
a sua interligação com o leitor e/ou estudante. Na realidade são produções que podem nos
ajudar na compreensão de contextos e sujeitos históricos. A literatura tem como pano de
fundo o contexto histórico e a realidade socioeconômica. É nessa linha que passamos a
propor alternativas com as seguintes obras literárias: o Uruguai (Basílio da Gama) faz apologia
à expedição imperial enviada às Missões, depois do Tratado de Madrid (1750), para desalojar
os índios e os jesuítas. Glorificação do homem natural que enfrenta os representantes da
civilização europeia. Caramuru: (Frei Santa Rita Durão), o poema narra a lenda do aventureiro
Diogo Álvares Correia, que naufragou na costa da Bahia, sendo recolhido por índios. Glorificação
do índio que se converte à religião do dominador luso e auxilia na conquista da terra.
Romantismo: Século XIX, Indianismo (reafirmação dos intuitos nacionalistas). Gonçalves
Magalhães (Confederação dos Tamoios ); Gonçalves Dias (Marabá, Canto do Piagá, Leito das
Folhas Verdes, I-Juca Pirama, Os Timbiras); José de Alencar (O Guarani, Iracema, Ubirarajara).
Pré-modernismo: Simões Lopes Neto (Boitatá, Salamanca do Jarau e Negrinho do Pastoreio).
Modernismo: Mário de Andrade (Macunaíma).
Romance de 30: Érico Veríssimo (Tempo e o Vento- A Fonte, Ana Terra; As Aventuras de
Tibicuera; onde o autor incorpora o seu pertencimento à cultura indígena e narra a história
do Brasil e os seus desencantos com a ditadura Vargas sob o olhar indígena)
Sugerimos a leitura de: Kurumi Guare’no coração da Amazônia (Yanguaré Yamã),
Noções de Coisas Crônicas (Darcy Ribeiro), Uala, O Amor (Frei Betto), Degradado em Santa
Cruz, romance histórico (Sônia Sant’Ana), Orlando Villas Bôas. História e causos, autobiografia
(Orlando Villas Bôas).
Sob essa ótica, recomendamos a utilização de obras literárias como ferramentas
imprescindíveis para a construção do conhecimento histórico. A leitura, a interpretação e análise
de romances, crônicas, poesias, contos, textos literários e/ou jornalísticos podem tornar-se
instrumentos e estratégias importantes para um ensino de História agradável e interessante.
História e cinema
uma cultura, uma época. Podemos afirmar que é um processo intenso, onde se aglutinam
ideias, sentidos, verdades, mitos, medos, crenças, imaginações, sonhos, emoções, amores.
Além disso, conforme destaca Guimarães (2013) a historicidade do filme:
Assim como de outras fontes, situa-se tanto em seu fazer, na sua lógica constitutiva, como
em seus temas, nas leituras, sensibilidades e olhares que suscita. Como produto cultural,
o filme, seja ficcional, seja documentário, tem uma história e múltiplas significações.
(GUIMARÃES, 2013, p. 265).
Cabe destacar, desse modo, que as relações pedagógicas que envolvem os filmes e o
conhecimento é o fato de ambos se constituírem em construções mentais, as quais precisam
ser produzidas de forma intensa e criteriosa. Para a utilização de filme em situações de ensino é
importante frisar que ele precisa estar em sintonia com os conteúdos abordados, ser escolhido
no coletivo da sala de aula. A sua projeção deve ser antecedida de uma orientação e/ou
contextualização por parte do professor, a atenção e concentração dos alunos são fundamentais
para sua compreensão. Após a projeção é importante que seja realizada uma análise oral seguida
do preenchimento de uma ficha teórica que contenha, inclusive, uma síntese sobre o mesmo.
Para sua análise é interessante que sejam observados os seguintes aspectos: contexto
histórico, temática, acontecimentos principais, personagens, cenários, lugares, tempo em
que ocorre a narrativa, linguagem, fotografia, sonoplastia, iluminação, figurinos, equipe de
produção, direção. No entanto, é pertinente lembrar que não basta assistir aos filmes. Como
diz Bittencourt (2004, p. 376): “é preciso preparar os alunos para a leitura crítica dos filmes,
começando por uma reflexão sobre os próprios a que eles assistem”.
Por sua vez, no que tange ao filme histórico, Miskell (2011, p. 290) argumenta que “o que
se torna importante não é tanto os detalhes factuais e sim o sentido transmitido pelo filme, ou
seja, a mensagem que envia aos espectadores e a autenticidade histórica daquela mensagem”.
Assim, se bem utilizados, os filmes podem tornar-se um recurso valioso e indispensável no
processo ensino-aprendizagem de História.
De acordo com esse olhar sugerimos filmes cujos temas estão ligados às questões da
história e cultura dos povos indígenas: Apocalypto, A Floresta das Esmeraldas, Brincadeiras
nos Campos do Saber, A Encantadora de Baleias, A Missão, Rapa-Nui, Brava Gente Brasileira,
Pocahontas, 1492 – A Conquista do Paraíso, O Novo Mundo, Dança com Lobos, O Último dos
Moicanos, O Caminho para Eldorado, Tainá I e II, Terra Vermelha, Caramuru, O Guarani,
Xingu. Sugerimos ainda: Como era Gostoso o meu Francês, Terra dos Índios, Índia, a Filha do
Sol, Rondon, O Sentido da Terra, Yndio do Brasil, Yâ Katu: O Brasil Villas Bôas, Estratégia X.
Com certeza a interpretação de um filme também tem algo de subjetivo e é resultado
de toda a bagagem de conhecimento que a pessoa construiu. A cultura visual de um filme
se insere em uma infinidade de linguagens como desenhos, pintura, caricatura, fotografia,
quadrinhos e cinema entre outras fontes para o ensino e pesquisa histórica. A incorporação
de filmes também é recomendada por Guimarães (2013, p.268-269) que esclarece:
História e música
[...] enorme e rico patrimônio cultural, uma das nossas grandes contribuições para a
cultura da humanidade. Antes de inventarem a palavra “globalização”, nossa música já era
globalizada. Antes de inventarem o termo “multiculturalismo”, nossas canções já falavam
de todas as culturas, todos os mundos que formam os brasis. Antes de existir o “primeiro
mundo”, já éramos musicalmente modernos. Além disso, nossa música foi o território de
encontros e fusões entre o local, o nacional e o cosmopolita, entre a diversão, a política e
a arte; entre o batuque mais ancestral e a poesia mais culta.
A música não é apenas uma combinação de notas dentro de uma escala, mas também
ruídos de passos e bocas, sons eletrônicos, ou ainda uma vestimenta e gestos do cotidiano
de determinados indivíduos que gostam de um tipo de som,. é tudo isso e mais o produto
de longas e incontáveis vivencias coletivas e individuais com as experiências de civilizações
diversas ao longo da história. Dessa, forma, a música como fenômeno cultural e social
apresenta várias facetas concretas e abstratas que estimulam diversas representações
sobre a linguagem musical e que, necessariamente, demandam uma integração teórica e
metodológica de diferentes áreas do conhecimento.
É pertinente lembrar que as letras das músicas também reforçam clichês, representam
evidências, registros de fatos, eventos sociais, manifestações culturais e conceitos que
devem ser analisados à luz de seu contexto sociocultural. Tal atividade, com certeza,
colabora para a elaboração de conceitos espontâneos, bem como em suas relações com os
conceitos científicos.
É enorme a potencialidade histórica e cultural da música no Brasil e no mundo. Convém
atentar para o fato de que a música, aliada a um conteúdo inovador, pode constituir-se
em um componente lúdico e cognitivo para a conscientização, indagação, inserção social,
sensibilização, experiências individuais e coletivas, bem como, estratégia didática para
um ensino de história inovador, valorativo e coerente com as necessidades da sociedade
contemporânea. Outro aspecto fundamental na reclamação entre a história e a música, o
processo de aprendizagem, de acordo com Duarte (2013, p.210-213) é a:
Articulação entre texto e contexto para que a análise histórica não seja reduzida e se limite
à própria importância da música, deixando em segundo plano sua contextualização. O
grande desafio do pesquisador é mapear os sentidos embutidos numa obra musical, bem
como suas formas de inserção na sociedade e na História.
Dessa forma, é possível afirmar que a música pode ser utilizada como importante recurso
didático em atividades criativas a serem desenvolvidas nas aulas de História, Geografia, Artes
e Língua Portuguesa, entre outras. Nesse viés, a música no cotidiano do espaço escolar precisa
ultrapassar os contornos de adorno e agregar-se aos estudos de História Cultural. Em meio
a esse processo abre-se um enorme espaço para a discussão da música popular Brasileira
(MPB), principalmente as ligadas a nossa ancestralidade indígena e africana. Elencamos
algumas músicas que tratam de temáticas sintonizadas com as questões indígenas: Cara de
Índio (Djavan), Um Índio (Caetano Veloso), Índio (Grupo Farofa Fina), Um Sonho (Gilberto Gil),
Canibal (Ivete Sangalo), Todo dia era Dia de Índio (Tim Maia/Jorge Bemjor/Baby Consuelo),
Índios (Legião Urbana), Baila Comigo (Rita Lee), Somos Todos Índios (Fagner), Os Brasiadas
(Beth Carvalho), Maracá (Flávia Bittencourt). Sugerimos ainda: Canoa, Canoa (Simone), A
Volta dos Trovões (Elba Ramalho), Saga da Amazônia (Elba Ramalho), Amor de Índio (Milton
Nascimento), Berzzeguim (Gal Costa), Bugre (Ney Matogrosso), Essa Alegria (Elba Ramalho).
A riqueza histórica, poética e melódica da MPB, principalmente nos gêneros que
guardam a ancestralidade africana e indígena se bem explorados metodologicamente,
podem construir-se em uma vertente fértil para o enriquecimento do ensino de História.
É necessário sublinhar que a práticas pedagógicas alicerçadas em linguagens mentais e
produções de saberes históricos por parte dos alunos. Esse processo, quando bem conduzido,
pode desencadear, conforme Duarte (2013), aprendizagens significativas, a saber:
Considerações finais
Ao tomarmos a história e cultura dos povos indígenas como temática de nosso estudo,
contribuímos, dessa forma, para a construção de políticas afirmativas no meio acadêmico,
esperando que seus reflexos possam ser percebidos a curto e médio prazo, nas atividades
O ponto de partida consiste na atualidade dos povos indígenas; ênfase na sócio diversidades
indígenas; evidenciar a participação dos povos indígenas nos diversos momentos históricos;
intercâmbios entre estudantes e os povos indígenas; apoio aos povos indígenas.(SILVA,
2012, p. 221-222).
Para que essa atitude seja possível é preciso identificação, articulação, consciência
crítica e planejamento. É evidente que tendo em vista a amplitude e multidimensionalidade dos
temas tratadas nesse texto, não foi possível abarcar todos os enfoques. Na prática, o grande
desafio foi chamar a atenção para a pertinência da abordagem destes temas estratégicos
e imprescindíveis para a compreensão da formação étnica e da contribuição indígena no
processo sócio-histórico-cultural.
O fato de estarmos engajados às questões sobre o ensino de História nos permite
questionamentos, teorizações e repensar das práticas. O desafio da construção de uma nova
práxis nos instiga a novas experiências quanto ao ensino de história.
Em meio a uma sociedade plural, complexa, diversa e desigual, acreditamos que as
universidades e as escolas básicas precisam, com urgência, constituírem-se em espaços
socioculturais onde sejam planejadas práticas pedagógicas inovadoras, essenciais para
eliminar ideologias, preconceitos, desigualdades sociais e discriminações étnicas. No trato
pedagógico, a perspectiva de um olhar deve ser substituída, o mais rápido possível, pela
perspectiva do múltiplo e coletivo, abrindo-se espaço para um ensino marcado por culturas,
diversidades e transversalidades. Esse outro olhar para o processo educativo é o que permite
interessantes oportunidades de relações humanas e de encontro de diferenças.
As práticas pedagógicas não podem ficar restritas a celebração, mas desencadear
momentos de produção/crítica/circulação de ideias, atitudes, posturas, valores e
conhecimentos que ensejem mudanças nos projetos Políticos Pedagógicos: inserção da
diversidade “racial” e cultural nos currículos; parcerias com instituições sociais, órgãos
governamentais, museus, bibliotecas, centros culturais, coordenadorias/secretarias de
educação: elaboração/divulgação de vídeos educativos e, principalmente, cursos, oficinas,
roda de conversas, seminários de formação inicial e continuada de professores.
Para o êxito do que se propõe, são fundamentais práticas pedagógicas investigativas,
problematizadoras, críticas reflexivas que provam à igualdade de oportunidades, a autonomia
responsável, a multiplicação de saberes, a cidadania e o desenvolvimento humano. As
discussões teóricas, sugestões e orientações didáticas que na nova realidade em acordo com
Oliveira (2013, p.225):
A aprovação da lei 11.645/2008 traz a história e a cultura indígena para o rol das
discussões. O seu advento coloca no centro de debates os conceitos de América, Brasil,
índio, povos indígenas, segregação, “raça”, etnia, identidade, diferença, racismo, pluralidade
cultural, genocídio, diversidade, ancestralidade, patrimônio cultural indígena, reservas
indígenas, cidadania, direitos humanos. Os dados revelados pelo censo de 2010, informações
do IBGE e FUNAI podem tornar-se importantes subsídios para um estudo crítico e apurado
das questões indígenas.
As abordagens ganham novas dimensões ultrapassando, inclusive, em alguns casos as
fronteiras das disciplinas. No caso do ensino de História, o mesmo passa gradativamente a
assumir novos contornos, o que requer novas práticas pedagógicas. No entendimento de
Fonseca (2013, p.259),
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E-mail: [email protected]
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Soap Opera: A Component of Everyday Life
as a Source of Learning History
118
Introdução
A televisão foi trazida para o Brasil em 1950, pelo jornalista Assis Chateaubriand. Desde
então ela ganhou tanta popularidade que hoje está presente em 97,2% dos lares brasileiros
(IBGE, 2013). Sua presença nas residências brasileiras está respaldada pela lei 8009/90, que
declara o televisor como bem impenhorável, visto como meio de divulgação de cultura e
educação (BRASIL, 1990). Dentre a programação televisiva estão as telenovelas com grande
popularidade na América Latina (TONON, 2005). São elementos constantes de discussão
entre a população telespectadora.
Diante dessa premissa, nesta pesquisa, objetivamos analisar a telenovela “Gabriela”
como elemento massificador de aprendizagem histórica no que tange à temática coronelismo/
clientelismo, pois consideramos que a educação histórica se processa em diferentes instâncias:
a acadêmica e de circulação massiva, sendo que nosso objeto se inscreve nesta última.
Em relação à especificidade do conhecimento, um dos primeiros pontos defendidos por
Rüsen é que a história não é unicamente propriedade do sistema escolar e, como tal, não se
finda nesse espaço, mesmo que tenha nele seu lugar de referência (MARTINS, 2012). Portanto, a
aprendizagem histórica se processa mediante três fatores: o primeiro diz respeito à consciência
histórica surgida no cotidiano, na práxis da vida, regida pela cultura do indivíduo, fato já
discutido; o segundo relaciona-se com a historiografia, ou seja, o modo como as informações
dos eventos históricos inscritos na mente dos homens é transformada em história oficial o que
envolve métodos de pesquisa, referenciais teóricos, argumentação e narrativa; o terceiro fator
é o próprio sistema escolar e como se ensina história (MARTINS, 2012).
Nessa perspectiva, ainda é preciso considerar que a consciência histórica é intrínseca
ao ser humano. Logo, é preciso acolher o que é pré-cognitivo para que operem formações
históricas de sentido, bem como o aprendizado histórico. É nesse ponto que surgem
os modelos interpretativos da consciência histórica classificando de forma sensitiva e
pré - racional as informações. Isso produz as primeiras orientações na história, as quais
em consonância as experiências de vida e sua racionalização são desenvolvidas de forma
parcialmente consciente (RÜSEN, 2012).
Assim, pautamos nossa pesquisa na narrativa histórica construída pelos telespectadores
da telenovela “Gabriela”, pois a forma de linguagem que os sujeitos expressam consciência
histórica e essa realiza sua função de orientação no tempo é a narração (RÜSEN, 2010).
Logo, a narrativa histórica é uma operação mental constitutiva, na qual particularidade e
processualidade são especificadas, demonstrando a construção de sentido sobre a experiência
do tempo (RÜSEN, 2010).
Posto isso, salientamos que o aprendizado histórico surge na narrativa histórica,
quando as operações mentais da experiência, da interpretação e da orientação são realizadas.
Situação em que a história é apontada como responsável pela orientação cultural na vida
prática dos sujeitos.
119
MATOS, J.; FERREIRA, E.
Telenovela: um elemento do cotidiano...
Considerações teórico-metodológicas
Resultados e discussão
A menção aos personagens e à história de cada um deles nas narrativas dos participantes
permitiu extrair as unidades de referência que evidenciaram os saberes construídos pelos
participantes por meio do acompanhamento sequencial e regular dos capítulos da telenovela
“Gabriela”. Os saberes obtidos foram: 1) Poder, mando e submissão, 2) O coronel e sua gente, 3)
Fragmentação do sistema, 4) Violência, 5) Política: clientelismo e alianças. Esses saberes foram
ilustrados em sua totalidade no gráfico a seguir.
Podemos perceber nas falas que, apesar dos temas da telenovela não terem sido
apresentados aos telespectadores centrados em discussões historiográficas, o diálogo
se estabelece de forma não fundamentada entre o aprendido e a historiografia. Ou seja,
os telespectadores da telenovela não sabem quais foram os marcos de fundamentação do
autor de “Gabriela” para veicular tais conceitos e ideias, apenas apreendem o sentido dos
temas como se os mesmos fossem definitivos e históricos. Esse fenômeno, experienciado nas
narrativas dos sujeitos, nos demonstra que eles próprios construíram sentido sobre o passado
a partir da recepção televisiva e, com isso, aprenderam história. Pois, segundo Rüsen (2010a,
p. 43): “o aprendizado histórico pode, portanto, ser compreendido como um processo mental
de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica, na qual
as competências para a tal narrativa surgem e se desenvolvem”.
Ao expressarem em suas narrativas os sentidos dados sobre suas experiências no tempo,
construída a partir da mediação da telenovela, percebemos seus processos de aprendizado e
como para cada sujeito se constitui de forma diferente. Nesse sentido, apesar dos entrevistados
perceberem a telenovela como uma ficção, entenderam o conteúdo histórico do tema discutido.
Em cidades pequenas onde o poder é muito grande, o poder é muito aflorado, onde o
estado não manda tanto, existem as leis. É o coronel que assume as responsabilidades e vai
mandar como se fosse o dono da cidade. Ele é aquele antigo senhor de escravos ou o dono
de terras, que acaba mandando no juiz, no delegado. Ele é o dono da cidade. (TURMALINA,
2013, grifo nosso).
Ambos apontaram que o mando era exercido sobre toda a população, atingindo todos os
indivíduos da sociedade. De acordo com Citrino, um coronel podia exercer o mando também
sobre os outros coronéis, o que acontecia em função das conquistas desse coronel. Essa
proposição nos levou a inferir que os participantes perceberam a existência de uma hierarquia
O coronel Ramiro Bastos era o grande coronel e tinha também o Dr. Mundinho Falcão,
acontece que eles eram rivais um do outro, mas o Mundinho não era coronel. Só que o
coronel é quem mandava na cidade. O Mundinho era diferente do Ramiro, ele veio do Rio
de Janeiro, tinha inteligência e poder. O Ramiro não tinha poder, quer dizer só na cidade
onde ele morava. Ele era bem dizer uma pessoa ignorante. Era coronel porque ele comprou
o nome de coronel. (PÉROLA, 2013, grifo nosso).
Observamos que Pérola manteve uma forte ligação com a telenovela em sua narrativa
histórica e nesse ponto surgiu a questão do título de coronel. Inicialmente, Pérola lembrou que
o coronel Ramiro (personagem) tinha um rival (Dr. Mundinho) e que ele não era coronel. De
acordo com Pérola, o coronel era o mandante da região tendo poder sobre o local, enquanto
seu rival era um jovem que apesar de não ter o título de coronel teria poder até mesmo
superior ao do coronel devido a sua inteligência.
Pérola pontuou um fato do período coronelista: as rivalidades políticas. Podemos
destacar que a experiência da participante por meio da telenovela lhe proporcionou uma
reflexão a respeito do poder do coronel, evidente na fala: “O Ramiro não tinha poder, quer dizer
só na cidade onde ele morava”, pois nessa fala Pérola demonstrou sua interpretação sobre o
alcance do poder do coronel, entendendo que mesmo no passado, o poder do coronel estava
circunscrito a uma determinada zona, não tendo alcance em outras. Esse entendimento sobre
o passado mobilizou uma ressignificação dos fatos do presente por meio da redução temporal
entre presente, passado e futuro, ou seja, a operação mental da interpretação (RÜSEN, 2010),
que pode incidir sobre a percepção da política na atualidade.
A participante comentou que o título de coronel foi comprado. De fato, o termo coronel
usado como identificação para alguns dos personagens na telenovela remeteu ao exposto pela
historiografia, ou seja, o termo veio do período imperial quando era utilizado por latifundiários
que haviam conquistado a patente por integrarem a guarda nacional. Porém, na república, os
coronéis deixaram de ser militares para serem patentes de integrantes das oligarquias, que
agrupadas passaram a dominar a política no período da primeira república lançando mão de
artimanhas como clientelismo e relações de compadrio (BARBALHO, 2007).
A partir disso, podemos entender que Pérola estabeleceu a construção de conhecimento a
partir da visão dos capítulos da telenovela, porém a mensagem posta no enredo da telenovela foi
decodificada e acrescida de conhecimentos prévios da participante, acréscimo e interpretação
essas que parecem estar intrinsecamente ligados à sua cultura, ou seja, motivados no seu
presente, pois a forma de aquisição do título de coronel não foi mencionada na telenovela.
Outro fato importante a ser salientado em relação à aprendizagem histórica de Pérola
está na interpretação do conteúdo veiculado na telenovela, que se deu em parte à atenção
dispensada por ela ao assistir aos capítulos de “Gabriela” (THOMPSON, 2009a). Pérola
demonstrou atenção ao título de coronel, bem como apresentou a construção de saberes
relacionados à forma com que a designação de coronel foi adotada pelos sujeitos que
foram figuras ativas do sistema coronelista. Isso evidenciou a realização em suas narrativas
da operação mental da experiência, que trata da integração entre presente e passado,
demonstrado pela interpretação e conclusão acerca do título de coronel.
Diante disso, é importante frisar que tanto a aprendizagem histórica como a consciência
histórica estão intrinsecamente ligadas à cultura histórica dos participantes, sendo seu
aprendizado histórico também determinado por pontos de vista emocionais, estéticos,
normativos e de interesses dos mesmos (RÜSEN, 2010). Os pontos de vista podem ser
observados como responsáveis pela apreensão do conteúdo, pela interpretação e orientação,
e, em se tratando da titulação do coronel, infere-se que houve um ponto desencadeador que
chamou a atenção de Pérola para esse conteúdo.
A organização parental do coronel também era observada, conforme se apresenta nas
narrativas a seguir:
Havia a necessidade de ter filhos, principalmente o filho homem, para ter um herdeiro
masculino e continuar perpetuando o nome da família. Essa parte era muito cobrada e
como ninguém nunca colocava quem era o infértil, se era o homem ou a mulher, a culpa
caia em cima da mulher, mesmo que o casal tivesse filhas, a culpa ainda seria da mulher.
(CITRINO, 2013, grifo nosso).
Citrino salientou a necessidade que o coronel tinha de ter filhos. Se pensarmos nos
relatos de Queiróz (1975), entenderemos o saber construído por Citrino, pois os filhos estavam
alocados o mais próximo do coronel em sua relação de parentesco. Logo, a família também
fazia parte de sua gente. Na hierarquização da família, o próprio coronel ocupava o lugar mais
alto da pirâmide e era imediatamente seguido por seus familiares, pois tinha um legado pessoal
que deveria ser deixado a alguém quando ele não pudesse mais exercer suas atividades. Desse
modo, construía-se a necessidade de um herdeiro, um varão, que pudesse dar continuidade
ao seu legado, já escolhido pelo próprio coronel a fim de evitar a fragmentação dos parentes,
por rivalidades em função do mando.
Seguindo a lógica do entendimento da formação da família do coronel, o extrato a seguir
destacou a presença de outros elementos dos parentes:
Era um grupo de coronéis, onde se tinha o chefão principal, depois os mais próximos a
ele que também eram dominantes e depois tinham aqueles que eram mais afastados e
que não vou me lembrar o nome, mas eram mais frágeis. Eu lembro também de um coronel
que se submetia ao coronel Ramiro, mas ele já tinha ideias contrárias (referência ao coronel
Altino), eu não lembro com clareza as situações, mas sei que existia uma fragmentação.
(ÁGATA, 2013, grifo nosso).
Observamos que Ágata percebeu que parte dos parentes era construída pelos amigos do
coronel, que podiam ser muito próximos ou mais afastados dele. Esses amigos mais próximos
eram outros coronéis da região e alguns comerciantes que ocupariam a faixa intermediária
da pirâmide, enquanto os integrantes mais afastados seriam os sitiantes e agregados, que
estariam na base da mesma pirâmide (QUEIRÓZ, 1975).
Ágata mencionou as diferenças de interesse dentro da própria família. Isso demonstrou
a aprendizagem sobre as possibilidades de rivalidades internas, assunto discutido por Queiróz
(1975), podendo ser responsáveis por rupturas dentro das casas.
Notamos que as narrativas destacaram a apreensão do conteúdo a respeito dos familiares
do coronel, compreendendo os personagens como figuras de um passado. Portanto, os
participantes realizaram a operação mental da experiência de interpretação, pois conseguiram
fazer a leitura dos papéis sociais dos personagens, bem como identificar a diferença em sua
postura de ação, fato que foi mais bem evidenciado na próxima narrativa, visto que mostrou
uma ligação com o presente.
[...] a gente vê a evolução da sociedade, as guerras, as lutas que as pessoas têm para ter um
pouco de humanidade, mas nunca a gente perde essa questão do coronelismo, do mando,
é cultural. Primeiro a gente foi súdito de reis, depois foi apadrinhado do coronel. Se tu
fores (sic) ver na cidade e observar a prefeitura, verás cargos de comissão. Tem o amigo do
fulaninho que consegue sempre ascender. Isso a gente viu na novela e continua vendo nos
dias de hoje, são os favorecimentos. (TURMALINA, 2013, grifo nosso).
Fragmentação do sistema
O coronelismo terminou, porque se tu fores (sic) ver não tem mais coronéis, mas isso
ainda ocorre. Por exemplo: hoje em dia nós temos a Dilma que é uma representação do
Lula, porque o ex-presidente trouxe mudanças, que seguem um pouco a linha da direita.
Ele teve que se vincular à linha da direita para poder se eleger, então isso foi troca,
também como foi relacionado com o Mundinho Falcão. O Lula se aliou à direita, formada
por grandes poderosos. Foi o mesmo que o Mundinho fez: cooptou os coronéis que eram
favoráveis ao Ramiro Bastos e acabou se dando bem, se elegendo, claro que de uma forma
diferenciada porque o tempo é outro, o espaço é outro, com acesso à informação, porque
é um período diferente, mas a essência é a mesma... Hoje é assim, um se alia a outro em
troca de favores, um exemplo disso é que quem está em cargo de confiança ganha, às
vezes, quatro vezes mais que os outros para ser os olhos e ouvidos de quem manda. Aqui,
na prefeitura, é assim. (GRANADA, 2013, grifo nosso).
O Mundinho veio de uma cidade grande com outra visão e então se deparou com uma
cidade à moda antiga. Ele quer mudanças, não aceita o que o coronel vinha impondo na
cidade, aquelas leis absurdas e nem era lei, era o mando mesmo. Então, eu entendi que no
fim haveria mudanças com a morte do Ramiro, devagar, mas haveria. Alguns coronéis
iam ser contra as leis que o Mundinho lançaria. As decisões que ele ia tomar porque iam
ser diferentes do eles tinham vivido, mas ia acontecer muita coisa ainda. (ZIRCÔNIA, 2013,
grifo nosso).
Violência
A violência era usada para tudo. No primeiro capítulo mostra uma família que morava na terra
e eles chegaram, tiraram, mataram e tomaram a terra e já se colocaram. E então, começa a
crescer aquela sociedade e um, que tem mais força, passa a mandar ali. Eles também usavam
a violência para impor a lei, só que a lei era do próprio coronel. (JADE, 2013, grifo nosso).
Jade afirmou que a violência era usada para tudo, principalmente como forma de
manter o poder de mando do coronel, saber que está de acordo com a historiografia, pois
tanto a violência, quanto os atos de crueldade e as práticas clientelistas foram artimanhas dos
coronéis para exercer seu poder de mando (QUEIROZ, 1975).
Já para Ágata: “Se o coronel queria alguma coisa não tinha o que impedisse, tu
tinha (sic) que ceder de alguma forma ou tu morria, porque era assim que funcionava, pela
questão da violência” (ÁGATA, ano, grifo nosso). Ágata entendeu que não havia nada que
impedisse o coronel de realizar sua vontade e para isso ele lançava mão da violência, sendo
que seu entendimento complementou a ideia de total domínio da situação lançada por Jade
anteriormente. O coronel era a própria lei, ou seja, nas regiões de sua atuação, a lei era o desejo
do coronel, sendo as penalidades somente aplicadas em conformidade com a sua vontade.
Nas falas das participantes notamos a construção de saber por meio da experiência com
o passado, ou seja, as participantes aprenderam o conteúdo histórico. No entanto, o conteúdo
aprendido não passou pela fase da interpretação, pela qual seria estabelecida uma ligação
com o presente. Com isso podemos dizer que sua aprendizagem não teve um efeito prático,
pois, sem realizar a operação mental da interpretação, não se realiza a operação mental da
orientação, que prevê uma ação na vida prática (RÜSEN, 2010).
A lógica da violência relacionada à posse da terra foi seguida pelos participantes
Citrino e Ônix:
Os coronéis, mesmo sem achar uma terra sem dono, em várias ocasiões, obrigavam as
pessoas a ceder a terra. Caso não cedessem, toda a família era exterminada . (CITRINO,
2013, grifo nosso).
A terra era um grande problema, naquela época era conquistada por meio de lutas,
barganhas. Tinha latifundiários e empregados, que eram colocados na ponta de uma parte
de terra e os latifundiários compravam a terra por ninharia das pessoas para forçá-las a
sair. Então, o que se via era o latifundiário empurrando o mais pobre para fora do terreno,
com um convite particular, sair ou sair. Por eu ter morado para fora, eu conheço bem essa
parte da terra. A quantidade de campo não era conhecida ao todo, não se tinha uma base
de distância, mas era o desejo de obter esse campo que fazia aumentar as propriedades,
quanto mais, melhor. Hoje, aquele espaço não é importante ou interessante para os filhos
e parentes de quem o conquistou, pois, geralmente, não se sabe como lidar com ele.
Acaba sendo vendido ou deixado de lado. Essa novela teve tantos anos e até hoje isso
existe. (ÔNIX, 2013, grifo nosso).
Ambos os participantes entenderam que a terra era o bem maior do período coronelista,
fato que está de acordo com a economia agrária da época. Eles entenderam que a terra era
conquistada de forma violenta, edificando seus saberes em torno dos casos de expropriação.
Citrino destacou o fato das famílias abandonarem suas terras como forma de preservar
suas vidas, enquanto Ônix acrescentou o caso de compras forçadas. Para Ônix, as pequenas
propriedades lindeiras aos latifúndios eram engolidas pelos latifundiários por meio de vendas
obrigadas, que tinham como pagamento quantias irrisórias.
Ônix acrescentou em sua narrativa que seu conhecimento teve como base sua
experiência de vida no meio rural, revelando que para o habitante do campo era importante
adquirir grandes quantidades de terra. Observamos que Ônix demonstrou transitar entre
temporalidades distintas no momento em que revelou sua infância no campo, o que promoveu o
desenvolvimento da aprendizagem histórica. Essa experiência de diferença de tempo aumenta
a aprendizagem histórica quantitativamente, quando se experimentam qualidades temporais
distintas e, qualitativamente no momento em que se percebem qualidades temporais próprias
dentro da diferença de qualidade temporal do passado (RÜSEN, 2012).
Salientamos que Ônix comparou presente, passado e o próprio presente histórico,
traduzido na forma de suas recordações da infância, estabelecendo uma ligação entre as
distintas temporalidades, expressando a operação mental da interpretação. A partir daí,
construiu sua orientação, concluindo que nem sempre a descendência atribui os mesmos
valores a terra que sua ascendência. Em outras palavras, Ônix, percebeu que pais e filhos
têm visões diferentes acerca da terra, as quais podem ficar improdutivas ou serem vendidas.
Notamos que Ônix revelou estar ciente da transformação da mentalidade entre as gerações,
ou seja, aceitou a mudança de valores, ao mesmo tempo em que destacou que o tema da posse
de terra abordado na telenovela é um problema de contexto atual.
A violência foi usada também como artifício eleitoral:
[...] a violência estava ligada ao fato de que quanto mais terras o coronel tinha, maior era
o seu poder. Então, a violência era uma forma de coação, uma forma de exercer ações
coercitivas sobre a população, também obrigando as pessoas a votar em quem o coronel
queria, porque senão podiam matá-las ou retirar suas casas. Então, muitos desses coronéis
se afirmavam justamente por meio da violência. (TURQUESA, 2013, grifo nosso).
Para Turquesa, a violência estava intimamente ligada ao poder do coronel, sendo usada
como uma forma de coagir a população, obrigando-a a votar em quem o mandante votasse, sob
pena de perder a vida ou os poucos bens materiais que possuía. Conforme Leal (2012), após o
advento da Proclamação da República, houve a concretização da violência e do mando. Assim,
mesmo que no decorrer do tempo houvesse sido estabelecido o voto secreto por ocasião do
governo provisório de Getúlio Vargas, o coronelismo político manteve-se, visto que os coronéis
adaptaram-se a esse novo momento, lançando mão da violência. O fato refletiu em denúncias
de práticas de violência tais como torturas cotidianas, execuções sumárias e trabalho escravo,
que em conjunto com a corrupção da máquina estatal, colocaram o país em posição negativa a
nível mundial no que tange os direitos humanos (SANTOS; CAPPARELLI, 2005).
Compreendemos que Turquesa experienciou o passado pela telenovela e construiu sua
interpretação associando a violência ao pleito eleitoral. Na novela foram mostradas cenas
referentes ao pleito eleitoral, porém a violência esteve relacionada à ação de eliminar o
inimigo, não estando voltada à população em geral, nem a situações de voto de cabresto.
Desse modo, entendemos que a participante interpretou o conteúdo da experiência de forma
a satisfazer seus próprios questionamentos, surgidos no presente e, para isso, associou seu
conhecimento prévio (RÜSEN, 2010). Com isso, a interpretação da experiência novelística em
associação com outras experiências puderam satisfazer sua necessidade de orientação.
Segundo Faoro (2012), os coronéis eram homens ricos, detentores de fortunas que
eram gastas com diversões legais e ilegais. Eram vistos como os “indivíduos que pagavam as
contas”. Logo, o coronel era primeiramente um líder econômico, para depois se configurar
como líder político. Sua fortuna, em geral, provinha da posse da terra, já que essa era a riqueza
da sociedade agrária brasileira, porém havia coronéis em uma situação financeira remediada.
O coronel exercia seu poder não só pela sua situação financeira, posição em que não
caberia um indivíduo pobre, mas por meio de seu reconhecimento de um pacto não escrito.
Ele tinha sua posição reafirmada na falha do estado para com a municipalidade, pois era
o coronel que assumia a responsabilidade de agir onde os serviços essenciais do estado
não chegavam. Logo, o coronel era o indivíduo que lidava com a polícia, os cobradores de
impostos, pleiteava obras públicas para o pobre cidadão que habita as regiões negligenciadas
pelo estado (FAORO, 2012).
Com isso, o coronel se sobressaiu como o indivíduo capaz de proporcionar o que a
população necessitava, fato que passou a ser um favor ao pobre indivíduo esquecido pelo
poder público. Sob esta perspectiva, deflagrou-se a relação de troca de favores, pois o coronel
realizava um favor ao pobre cidadão do mesmo modo que este passava a dever um favor
àquele, firmando assim a prática clientelista.
O clientelismo esteve presente em muitas culturas, não sendo exclusividade do coronelismo,
mas tanto no Brasil como em outros continentes manteve como base uma relação de troca,
onde “os seguidores procuram os líderes que lhe oferecem as maiores vantagens e confiança.
Em troca, oferecem serviços e lealdade. Ter bom número de seguidores dava ao líder honra (izat)
e o poder de humilhar os rivais” (BURKE, 2012, p. 117). Ocorria o mesmo no coronelismo, pois a
gente do coronel procurava o líder em busca de maiores vantagens e segurança, oferecendo a ele
serviços e lealdade. Assim, no sistema coronelista, a relação de compromisso se constituiu porque
o coronel garantia favores que supriam a falha do Estado e sua gente oferecia-lhe lealdade.
Seguindo a lógica clientelista da troca de favor, Jade construiu a seguinte narrativa:
O Ramiro captava os votos pelo poder que tinha na cidade até sobre os outros coronéis.
O Mundinho começou a captar aliados, oferecendo mudança que trariam vantagens para
a cidade e, por consequência, para quem se aliasse a ele. É uma troca de favor. A maneira
com que vai ser feito é diferente, mas chega ao mesmo ponto. O Ramiro oferece algumas
vantagens e quando não funciona ele impõe. Quem não trabalha no ritmo dele sofre as
consequências. Eu via todo mundo com medo dele. O Mundinho não usa a mesma coisa,
mas no final ele também usa a troca... Eu me lembro do Ramiro dizer que conhecia o
governador. Então, ele tinha aliança que ia além daquelas com os coronéis. O poder dele
ia um pouco mais além da cidade de Ilhéus e isso era uma forma dele também conseguir
se manter. (JADE, 2013, grifo nosso).
Para Jade, o coronel exercia o mando na região, estendendo-se também sobre os outros
coronéis e para cooptar votos. Sob a lógica de Faoro (2012), o coronel exercia o mando como
um direito que lhe era reconhecido. Da mesma forma, ele era o sujeito capaz de conquistar
benesses para a região. Logo, era visto como aquele que podia oferecer algo, mas que desejava
outra coisa em troca, o voto. Os outros coronéis se comportavam assim também com sua gente.
Ela percebeu que o favor prestado era um sustentáculo para as alianças políticas e destacou
o personagem Mundinho, opositor do coronel. Ele também teve a necessidade de cooptar votos
e, em troca disso, prometeu a realização de benfeitorias na municipalidade. Além das benfeitorias
apareceu o favor trocado em função de alianças políticas. Mundinho estava em posição de
superioridade ao coronel, visto que seus aliados ocuparam esferas de poder superiores.
As primeiras falas de Jade demonstraram que, de acordo com Rüsen (2010), a participante
apresentou em sua narrativa a operação mental da experiência, pois Jade assistiu as cenas da
telenovela e percebeu sua qualidade temporal, ou seja, entendeu-as como uma vivência do
passado. Ela apreendeu o conteúdo histórico que a cenas referentes à política coronelista
traziam, demonstrando o entendimento do que era fundamental e histórico.
[...] continuou tendo as mesmas trocas de favor, mas não usando tanto a força para
conseguir tudo o que queria. Então, hoje o que se vê nas eleições é venda de voto. Um
grupo de pessoas que não tem nada, troca o voto por uma televisão, um sacolão. (JADE,
2013, grifo nosso).
Jade compreendeu que mesmo o coronelismo tendo acabado, uma de suas artimanhas
políticas permaneceu até a atualidade. Isso nos levou a classificar sua consciência histórica
como crítico-genética, pois a participante viu a mudança no sistema político, ou seja, ocorreu
a mudança do que era ameaçador e abriu-se a possibilidade para que a atividade humana
criasse um novo mundo (RÜSEN, 2010). No entanto, permaneceu a relação clientelística, que
sustentava o coronelismo e norteou sua a orientação crítica à política atual.
Turquesa reforçou a ideia de Jade:
A gente tem algumas questões do país que não mudaram muito. É bem visível o quadro que
foi retratado na novela, que é o curral eleitoral. O que seria isso? Eu dou algo para alguém
de menor valor, não com boas características, mas para aquela pessoa receber e servir
como moeda de troca para voto ou outras coisas relacionadas à política... e a novela mostra
bem isso. Eu dou alguma coisa para ti, ou faço uma melhoria na tua casa, logo tu tens o
compromisso de me dar um voto, de estar comigo, ou de idolatrar a mim como alguém
que realmente pode fazer alguma modificação. Muitas vezes isso era só momentâneo e a
região passava a ser desvalorizada novamente. (TURQUESA, 2013, grifo nosso).
Um exemplo disso é o pleito eleitoral: eu tenho mais poder, então te dou um saquinho
de feijão; Aí tu ficas feliz, então tu votas em mim. Em algumas regiões essas questões
são escancaradas e em outras são veladas. Só que eu acho que isso a nível nacional é
tão escancarado que tomou outro formato: exemplo é o bolsa família. O Bolsa Família
é uma forma de manter o curral eleitoral, porque se estou no poder e dou R$ 70,00 e
apareço na televisão dizendo que dou 10% de aumento no bolsa família(usando uma mídia
que é vista nacionalmente), então, eu não estou dizendo diretamente vota em mim, mas
estou mostrando como sou bom. De certa forma, de forma indireta, digo: vota em mim, até
porque eu também sou candidato nas próximas eleições. É aí que a gente percebe que o
curral eleitoral e as antigas ações se mantêm. (TURQUESA, 2013, grifo nosso).
Turquesa citou uma prática do passado usada na atualidade. Essa prática caracteriza-se
pelas trocas de bens, onde o capital simbólico do que é trocado tem um valor inferior ao outro,
sendo que um dos bens tem seu valor legitimado pelo seu próprio legitimador (BOURDIEU,
1998), ou seja, bens de menor valor passam a ter o mesmo valor de outros ou até maior, em
função de quem está participando da troca.
Percebemos que Turquesa destacou também o papel da televisão, meio de comunicação
que tem capacidade de formar opinião devido à abrangência de sua audiência. Este fato é de
muita importância, pois ao mesmo tempo em que a TV pode gerar um debate, também pode
inibi-lo em função do campo cultural dos seus telespectadores. Ao mencionar as trocas de votos
por produtos alimentícios e o Plano Assistencial do Bolsa Família, Turquesa realizou sua crítica.
Pois, foi nesta fala que apareceu sua interpretação do presente, bem como sua posição indignada
frente às práticas governamentais assistencialistas divulgadas na mídia televisiva. Essa crítica
refletiu sobre sua consciência histórica mediante à operação mental da orientação, pois segundo
Rüsen (2010) é essa orientação que vai determinar suas ações tanto no presente como no futuro.
Considerações finais
Após a avaliação e discussão dos extratos das narrativas percebemos que os saberes
construídos mostraram-se interligados nas falas dos participantes com especial destaque ao
mando e à questão eleitoral.
Os participantes também construíram associações do clientelismo como sustentáculo
do parentesco e vice versa, que juntamente com a violência, sustentavam o poder do coronel
e o pleito eleitoral, construções essas que estão em acordo com a historiografia.
Os conteúdos aprendidos pelos telespectadores de “Gabriela” estiveram de acordo com
a historiografia. Além disso, eles compreenderam a telenovela como uma representação do
passado. Logo, entenderam as diferenças temporais entre o presente e as cenas exibidas em
“Gabriela” e processaram as operações mentais da experiência, interpretação e orientação de
formas distintas, fator que evidenciou a individualidade do aprendizado.
Referências
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de Brasília, 1998.
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8009.htm>. Acesso em: 10 maio 2012.
BURKE, P. História e teoria social. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
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THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
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YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.
*
Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS, Brasil.
E-mail: [email protected]
**
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Supervised Internship and PIBID in Teachers’ Education:
Experiences that Complement Each Other
137
A qualificação de profissionais para a prática docente é, sem dúvida, palco de
discussões e de planejamento teórico e metodológico dos cursos de licenciatura nas
diferentes universidades do país. O estágio supervisionado possui como objetivo a prática da
docência pelos acadêmicos de licenciatura, preparando-o para a atuação em sala de aula e
instrumentalizando essa prática por meio de diferentes metodologias e aportes teóricos que
envolvem o fazer docente. O Projeto Pedagógico do Curso de História da Universidade de
Caxias do Sul coloca como objetivo dos Estágios Curriculares:
O estágio supervisionado
138
MACHADO, M., REGINATO, L.
Estágio supervisionado e o PIBID na formação docente...
e da prática docente (Estágio I, II e III); já a quarta disciplina (Estágio IV) refere-se às questões
de preservação do patrimônio cultural propondo a atuação do acadêmico em instituições
dessa natureza.
A primeira etapa, ou disciplina de Estágio I, objetiva a observação do contexto
escolar como um todo (estrutura física da escola, organização administrativa e pedagógica,
comunidade do entorno e sua relação com a escola) bem como a observação da prática do
professor titular, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio (relação entre o
professor e alunos e aportes teóricos e metodológicos dos quais se utiliza). Perfaz um total de
16 horas de observação, divididas entre o ensino fundamental e o médio.
Nas disciplinas de Estágio II e III, os professores em formação vão a campo, planejam
e executam 16 horas-aula com a supervisão do professor - titular da escola e do professor
da universidade. O Estágio II objetiva a prática em sala de aula nas séries finais do ensino
fundamental e, no Estágio III, a prática docente no ensino médio.
Os estágios supervisionados visam à integração da teoria com a prática em sala em aula,
priorizam a execução de atividades devidamente planejadas e a avaliação constante delas, ou
seja, se mobilizam ou não os alunos para aquisição do conhecimento. Além disso, possui uma
dinâmica que propicia a troca de experiências entre os professores em formação e os que já atuam
no âmbito acadêmico e escolar, como Selma G. Pimenta e Maria Socorro L. Lima argumentam:
O estágio supervisionado para os alunos que ainda não exercem o magistério pode ser um
espaço de convergência das experiências pedagógicas vivenciadas no decorrer do curso
e, principalmente, ser uma contingência de aprendizagem da profissão docente, mediada
pelas relações sociais historicamente situadas. (PIMENTA; LIMA, 2004, p. 100).
Por meio da análise dos memoriais oriundos da prática docente nas disciplinas acima
expostas, é possível constatar um progressivo avanço em termos de apreensão do contexto
escolar e, principalmente, da prática docente. O planejamento das ações de cada aula
ministrada pelo professor estagiário é de fundamental importância e nota-se que aquele
se modifica na medida em que este se apropria da dinâmica da sala de aula, com suas
diversidades e problemáticas. O diálogo constante com os professores da escola básica e
da universidade realmente possibilita a reflexão da atuação docente por parte do professor
estagiário. Indica-lhe caminhos e meios pelos quais ele pode trabalhar, além de levá-lo à
reflexão sobre o perfil identitário do educador que almeja ser.
Há certas angústias, porém, de que o Estágio Supervisionado não consegue dar conta.
A primeira delas refere-se aos diferentes contextos com os quais o professor estagiário se
depara. O choque entre a realidade da universidade e da escola é uma constante. Enquanto o
acadêmico prepara e planeja a execução de suas aulas e reflete sobre as mesmas, os professores
das escolas não possuem tempo de planejamento. Esses precisam se adaptar às múltiplas
dificuldades que surgem diariamente, improvisando diante da exigência de respostas rápidas
a diversas situações. Isso acaba gerando um distanciamento entre o professor estagiário e a
realidade escolar, pois, ao mesmo tempo em que a observa e percebe as problemáticas dessa
realidade, existe a nítida sensação de impotência e de que a prática do Estágio Supervisionado
é uma ilusão, prazerosa de se realizar, mas irreal e fora de contexto.
O segundo fator que se faz necessário destacar é a dicotomia existente entre o professor
estagiário que chega à escola, cheio de ânimo e de vontade de experimentar o fazer docente,
e a desilusão profissional da grande maioria dos professores titulares das escolas de ensino
básico. Há um desânimo imperativo e contagiante na sala dos professores. Cansados da não
valorização profissional e de ter de responder a problemáticas que muitas vezes fogem do seu
controle, acabam engolidos por um sistema educacional arcaico e tradicional.
Ao professor estagiário fica a pergunta: o que fazer diante desse quadro? Podem modificar
esse contexto tão amplo ou serão restringidos em seu fazer docente ao convencionado?
Refletir sobre o contexto escolar é uma opção. O professor estagiário atua em sala de
aula, possui acesso aos documentos que norteiam a atuação pedagógica da escola, como o
Projeto pedagógico e o Regimento Interno, observa a atuação do professor - titular da turma
em que está estagiando e sua relação com os alunos, porém a reflexão, a percepção ou
mesmo os questionamentos por ele levantados ainda figuram dentro de uma esfera mental,
em que a ideação da prática e a realidade da mesma se chocam continuamente e acabam não
respondendo a primeira questão levantada: o que fazer diante desse quadro?
Flávia Eloisa Caimi (2008) elucida essa questão, problematizando a fragilidade da
reflexão dissociada da prática:
Conceber a formação profissional como prática reflexiva sobre a ação e como reconstrução
permanente de identidades-subjetividades implica reconhecer o seu movimento e
identificar o professor como um sujeito que constrói o saber ativamente ao longo do seu
percurso de vida, que não se limita a reproduzir os saberes traduzidos do exterior pelos
que supostamente detêm os seus segredos formais. Requer, sobretudo, que destaquemos
o valor da prática como elemento de análise e reflexão do professor, criando situações que
possibilitem a tomada de consciência dos problemas que dela advêm (García, 1995).
O contato com o cotidiano da escola possibilita aos envolvidos com os cursos de licenciatura
investir na produção de saberes diferenciados e na criação de alternativas pedagógicas
qualificadas para a educação escolar. Tal contato simultaneamente requer um exercício
de distanciamento e estranhamento tanto por parte dos sujeitos que se constituem nos
espaços universitários quanto por parte daqueles que vivem diariamente o ambiente
escolar. São processos de encontros, conflitos e diálogos que desacomodam a todos os
envolvidos. (MEINERZ et al, 2013, p. 7).
As universidades passam a interagir dentro das escolas de ensino básico que, por sua
vez, levam suas problemáticas para dentro da universidade através da atuação dos professores
em formação. Além disso, a presença constante dos pibidianos (os professores em formação,
bolsistas do programa) no ambiente escolar gera muitas vezes desconforto e curiosidade por
parte de alunos, professores e direção. A atuação dos mesmos repercute na comunidade no
entorno da escola e nas famílias dos alunos, possibilitando questionamentos, novas leituras
sobre o fazer docente, além de propiciar aos pibidianos a oportunidade de aprender-se
professor na teoria e na prática.
Em suma, tudo leva a crer que os saberes adquiridos durante a trajetória profissional, isto
é, quando da socialização primária e, sobretudo quando da socialização escolar, têm um
peso importante na compreensão da natureza dos saberes, do saber- fazer e do saber- ser
que serão mobilizados e utilizados em seguida quando da socialização profissional e no
próprio exercício do magistério. Desta forma, pode-se dizer que uma parte importante da
competência profissional dos professores tem raízes em sua história de vida [...].
Ou, ainda, “que a perspectiva da reflexão é insuficiente para a resolução dos problemas da
prática”. Nesse sentido, Pimenta (2008) destaca a importância da dimensão teórica na formação
do professor, a necessidade de reflexão coletiva e a apreensão crítica da realidade social.
No trabalho em grupo desenvolvido pelos pibidianos, que inclui os professores que atuam e
estão em formação, existe a possibilidade de compartilhar percepções, de se expor, experimentar
e errar. É claro que nem todas as ações são bem sucedidas, ou delas se extraem os objetivos
almejados, e é justamente isso que se apreende com o fazer docente. O processo de ensino e
aprendizagem é um constante refazer-se, é desenvolver um olhar investigativo que ultrapasse a
crítica pela crítica, manter-se aberto a novas possibilidades e ser capaz de gerar soluções.
É importante ressaltar que os professores, tanto das IES quando das escolas públicas
sempre se ressentiram da distância existente entre as mesmas. A percepção desse sentimento
mútuo se dá quando o professor em formação executa o estágio supervisionado. As
reclamatórias sobre essa distância ocorrem tanto do lado do professor universitário, que
gostaria de ir além e de propiciar aos seus graduandos uma maior integração com o contexto
escolar, mas que se percebe engessado pelas burocracias e impeditivos institucionais, quanto
dos professores de ensino básico, que se sentem abandonados e relegados a segundo plano,
como se o seu fazer docente fosse menor que o do professor acadêmico.
Desta forma, é possível concluir que o estágio supervisionado e a participação do
professor em formação do PIBID são experiências que se complementam, ainda que não
dialoguem diretamente entre si, contemplam velhas angústias e discussões problematizadas
por professores de todos os âmbitos, esteja ele em atuação ou em aprendizagem.
Referências
BARROS, José A. O campo da história: especialidades e abordagens. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
CAIMI, Flávia Eloisa. Estágio curricular e aprendizagem profissional: desafios presente na formação de
_____
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Roberto Radünz*
*
Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS, Brasil, e Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil.
E-mail: [email protected]
Professional Master in History:
The Challenge of the End of Course Paper
150
Mestrado Profissional
Art. 2º. O título de mestre obtido nos cursos de mestrado profissional reconhecidos e
avaliados pela CAPES e credenciados pelo Conselho Nacional de Educação – CNE e
validados pelo Ministro de Estado da Educação tem validade nacional.
Art. 3º. O mestrado profissional é definido como modalidade de formação pós-graduada
stricto sensu que possibilita:
I – a capacitação de pessoal para a prática profissional avançada e transformadora de
procedimentos e processos aplicados, por meio da incorporação do método científico,
habilitando o profissional para atuar em atividades técnico-científicas e de inovação;
II – a formação de profissionais qualificados pela apropriação e aplicação do conhecimento
embasado no rigor metodológico e nos fundamentos científicos;
III – a incorporação e atualização permanentes dos avanços da ciência e das tecnologias,
bem como a capacitação para aplicar os mesmos, tendo como foco a gestão, a produção
técnico-científica na pesquisa aplicada e a proposição de inovações e aperfeiçoamentos
tecnológicos para a solução de problemas específicos. (BRASIL, 2009, p. 1-9).
151
RADÜNZ, R.
Mestrado profissional em história...
De maneira mais específica, o documento da Área de História faz referência a uma série
de propostas que podem compor um Mestrado Profissional. Dentre elas estão: patrimônio
histórico; arquivística; serviços de pesquisa e documentação; museologia e museografia; artes;
turismo; organização de informações históricas; consultorias e pareceres históricos; ensino
e material didático. Salienta ainda que a área “possui vínculos fortes e responsabilidades com
a educação básica, inclusive tendo em vista que todos os seus docentes atuam nos cursos de
graduação, os quais formam, majoritariamente, professores que trabalharão nessa esfera de
atuação”. Apesar disso, o mesmo documento frisa que a “maior parte das teses e dissertações
sobre o ensino de História encontram-se na Área de Educação”3. Sem dúvida nenhuma,
os Mestrados Profissionais em História têm relevante contribuição a dar nesse sentido,
não somente os constituídos em rede, mas também aqueles que atendem demandas mais
específicas de natureza regional e/ou local.
Ao referir-se à produção docente, o mesmo documento salienta que a avaliação levará
em conta os itens que tradicionalmente compõem a produção intelectual do historiador (livros,
artigos acadêmicos, sobretudo), mas também levando em conta produtos e atividades que
indiquem sua qualificação e adequação, tendo em vista a(s) área(s) de concentração, tais como:
“consultorias e pareceres; produção de material didático; atuação no ensino fundamental,
experiência profissional em arquivística, museologia, museografia, turismo e assessoria de
produções artísticas”, entre outras.
Considerando-se a amplitude das possibilidades, os próprios documentos da Capes
utilizam, com referência a esse requisito final para a obtenção do título de Mestre, a expressão
“Trabalho de Conclusão Final do Curso”.
O presente artigo pretende problematizar a questão relativa a esse requisito final para
a obtenção do título de Mestre, analisando as experiências em andamento no Mestrado
Profissional em História da Universidade de Caxias do Sul (UCS-RS).
Criada em 1967, assumiu como função produzir conhecimento em todas as suas formas e
torná-lo acessível à sociedade, contribuindo principalmente para o desenvolvimento
integrado da região. Dessa forma, a Universidade de Caxias do Sul tem se preocupado em
produzir e difundir conhecimento, a partir de referenciais ético-políticos, epistemológicos,
educacionais, técnicos e sociais. Todos esses referenciais estão presentes nos princípios e
nas diretrizes das ações da Instituição. Desde 1990, assumiu um projeto de regionalização, já
que, em décadas anteriores, promovia ações integradas com os diversos municípios da Região
Nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Esse projeto deu impulso a ações que fortaleceram
sua natureza comunitária e regional. A Universidade de Caxias do Sul se estende a uma área
geográfica de 69 municípios, que compreendem uma população de mais de um milhão de
habitantes. Nesse contexto, a Universidade atende demandas regionais, contribuindo para
a formação de profissionais que atuam no mercado e, ao mesmo tempo, realiza pesquisas
voltadas ao desenvolvimento tecnológico, integrada ao crescimento regional.
O curso de História da UCS foi criado em 1959, ligado à Faculdade de Filosofia de Caxias do
Sul, instituição mantida pela Mitra Diocesana de Caxias do Sul. O curso de História formou, ao
longo de seus 54 anos, mais de dois mil alunos, que atuam de maneira representativa no sul do
país. O curso de História da UCS possui também uma longa trajetória na formação Lato Sensu.
Nas décadas de 70 a 90 do século passado, foram oferecidas doze edições da Especialização em
História da América Latina, contando com professores de outras instituições universitárias.
Nos anos de 2000, Lato Sensu mais focados nas demandas regionais foram oferecidos, por
exemplo: Especialização em História Regional, Gestão do Patrimônio Cultural e Ensino de
História: linguagens e fontes na prática pedagógica. Em 2009, foi aprovada a criação do
Núcleo de Pesquisa em História, Patrimônio e Região, congregando pesquisa e pesquisadores
que têm atuado na área. O Núcleo apresentava três linhas de pesquisa: Imigração, Cultura e
Identidade; Arqueologia e Patrimônio; Poder e Memória.
Esse lastro acadêmico seguramente foi considerado no processo de aprovação do
Mestrado Profissional em História na Capes no ano de 2012. O Programa tem como área de
concentração o Ensino de História. Segundo o site de divulgação do mestrado
O primeiro trabalho a ser apresentado tem como título “Educação patrimonial e ensino
público: ações e políticas públicas voltadas à inserção do patrimônio cultural nas práticas
docentes”. Apresenta como objetivo geral analisar as ações e as políticas públicas na esfera
federal, estadual e municipal (Lajeado – RS), que contribuem para a efetivação de uma educação
para o patrimônio. Na justificativa, o projeto salienta que, apesar do número de publicações
sobre o tema ter aumentado na última década, com o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) contribuindo intensamente através da criação de manuais,
cadernos técnicos e revistas, a produção acadêmica continua incipiente. Em sua maioria,
as publicações que discorrem sobre o tema ficam restritas a análises de casos particulares,
contribuindo para o cenário atual de ausência de políticas públicas, que apontem para o uso
da Educação Patrimonial dentro do universo escolar. Tendo como locus principal da pesquisa
o município de Lajeado, situado na região central do Rio Grande do Sul, o estudo pretende
contribuir para a complementação das discussões acerca do tema, a partir da análise de ações
e políticas públicas voltadas à implementação das práticas educativas patrimoniais na rede
pública de ensino, bem como propor políticas que venham contribuir para a efetivação do
uso do patrimônio como estratégia pedagógica, dentro dos muros das escolas públicas da
referida cidade. A proposta não se restringe a identificar as limitações do debate e das práticas
educativas, mas, após a análise e sistematização dos dados coletados, será feita a proposição
de ações possíveis de serem implementadas nas escolas estaduais e municipais de Lajeado –
RS. Tais ações têm como finalidade contribuir para a implementação de práticas de Educação
Patrimonial em instituições de ensino.
O segundo trabalho tem como título “Câmara na mão: uma metodologia de ensino de
história para adolescentes de comunidades invisíveis em busca de identidade”. A propositora
dessa pesquisa tem sua área de formação na Comunicação e se propõe a analisar as identidades
construídas, da comunidade invisível, pelo adolescente, a fim de propor uma metodologia para
projetos de ensino de história, cujo foco seja o trabalho com as identidades. Desde o início
de 2014, alunos bolsistas do Programa do Ministério da Educação (Pibid), da Universidade de
Caxias do Sul (UCS), estão criando projetos educacionais no ensino de História, na Escola
Municipal Machado de Assis, localizado no bairro Reolon. Com o objetivo de auxiliar os
bolsistas, a autora da pesquisa ministrou oficinas de produção audiovisual. A união entre o
conhecimento profissional (jornalismo televisivo) e o desejo de compartilhar conhecimento
e pesquisar o material produzido no local dá origem a esse estudo. A capacitação girou em
torno dos recursos do audiovisual (o poder da imagem, enquadramentos e significados,
elaboração de roteiro e criação de conteúdo de reportagem). A partir daí, os pibidianos
realizaram a primeira oficina de vídeo com 25 alunos, de 13 a 14 anos, do 7º ano do Ensino
Fundamental. Na análise desse material produzido, é possível visualizar e identificar o que os
adolescentes mais gostam no bairro e como se forma a identidade deles, a partir do local em
que estão inseridos.
O autor da pesquisa “A literatura como abordagem de ensino de história da arte no
ensino superior” é profissional da área do design gráfico. Apresenta, como objetivo da pesquisa,
produzir um material que sirva como uma introdução à História da Arte para acadêmicos
de cursos superiores de áreas do Design e das Artes, aproximando a disciplina da realidade,
numa linguagem mais abrangente, condizente com suas expectativas. O autor critica o que ele
chama de velha história, um conhecimento distante da realidade dos alunos. Assim sendo, os
alunos de cursos das áreas do Design e das Artes têm uma relação conturbada com a História.
Apesar disso, a História da Arte é uma disciplina constante em todos os cursos dessas
áreas e, muitas vezes, é encarada pelos alunos como uma disciplina teórica e não condizente
com sua realidade. É fato que o ensino de história vem mudando ao longo dos tempos,
mudanças que se refletem também no conceito de didática da história e suas ramificações. O
presente projeto busca seguir essa tendência contemporânea, utilizando-se de uma iniciativa
interdisciplinar, para propor um material de abordagem diferenciada, utilizando a literatura
como forma de aproximar história da arte da realidade desses alunos de cursos superiores,
das áreas das Artes e do Design, graças a sua linguagem artística, que pode ser mais envolvente
e atraente a um público menor, voltado às leituras da história acadêmica.
O projeto “Musicando a história e historiando a música em escolas da Caxias do Sul”
vem problematizar a aplicação da Lei 11.769, das Diretrizes e Bases da Educação, que dispõe
sobre a obrigatoriedade do ensino de música na Educação Básica. O presente projeto pretende
transitar por três principais áreas de pesquisa. Primeiramente, a disciplina de História, ou seja,
os acontecimentos históricos e seu ensino concernem o centro da pesquisa. A música, por
sua eficácia psicomotora e obrigatoriedade nas escolas, será a disciplina que criará relações,
com o objetivo de designar novas abordagens metodológicas. Por fim, agregar o estudo da
Semiótica, a fim de incrementar a análise no que diz respeito à funcionalidade do aprendizado
do aluno, sendo que a música pode ser considerada um signo.
no qual estão inseridos; construir um olhar crítico sobre ele, sentindo-se identificado. A
oficina contará com a participação de moradores, mediante gravação de relatos orais e da
socialização de fotografias.
O último trabalho da linha das linguagens tem como título “A construção da identidade
na RCI: o projeto de modernização e higienização como fator de memória e esquecimento do
Frigorífico Rizzo, em Caxias do Sul, 1938 e 1960”. O projeto propõe-se a refletir sobre as diversas
modalidades de apropriação, representação e construção da identidade social em Caxias do Sul
– RS. Para tanto, analisa a trajetória de vida do empresário Nestor Rizzo, dentro da perspectiva
do que se pode traduzir como do “herói civilizador”, ou seja, do empreendedor que marca a sua
existência para além das questões econômicas. O empresário do ramo alimentício fundou em
1940 o Grupo Escolar Frigorífico Desvio Rizzo, atendendo uma demanda local próxima a sua
empresa e teve uma inserção considerável no setor de comunicação. A partir da temática do
empresário pioneiro e do herói civilizador, pretende-se aprofundar a contribuição de Nestor
Rizzo no desenvolvimento da região, mas principalmente analisar a amplitude de sua visão
empresarial nos setores da educação e comunicação, pois ele foi um dos fundadores da Rádio
Caxias, primeira emissora da região, em 1946, e da TV Caxias, em 1969. A pesquisa pretende
utilizar principalmente o acervo documental e fotográfico do Frigorífico e da família Rizzo.
jogo pretende criar um cenário atual onde um grupo de famílias de políticos desaparecidos
se articula para encontrar pistas de seus parentes mortos. A questão norteadora será a de
refletir sobre o processo de negação dos desaparecimentos políticos durante o regime. Para
isso, os documentos escolhidos para dar sentido ao jogo, à trama, serão cópias de originais
ligeiramente alteradas, para que se preservem as pessoas envolvidas. O professor será
orientado a discutir aspectos relativos aos documentos do jogo e os seus respectivos originais
com os educandos, ou seja, as fontes documentais que aproximam o jogador do contexto
histórico. A construção do jogo será acompanhada pelo processo de validação feito por jovens
em escolas no contraturno de suas atividades.
Ainda no campo das fontes documentais, a pesquisa “Retratos da violência contra a
mulher através de fontes judiciais: analisando processos-crimes” pretende estudar a história
das mulheres caxienses, vítimas de violência, a partir de fontes judiciais com enfoque no
contexto social-econômico e cultural, com especial destaque para relações de trabalho e poder.
Serão analisados 23 processos do Centro de Memória do Judiciário (CMJU), da Universidade de
Caxias do Sul, da década de 30 do século XX. Nesses, 12 envolvem casos de defloramento, nove
de estupro e três são registrados como de violência sexual. Nesse sentido, analisa o contexto
histórico e as construções sociais na década de 30, procurando estabelecer especificidades,
rupturas ou padrões de recorrências nos discursos e nas práticas do Poder Judiciário,
relativos às disputas que envolvem homens e mulheres; analisando o contexto histórico de
transformações nas relações sociais de gênero. Por fim, discute como essas fontes podem ser
utilizadas no ensino de história, considerando-se a transversalidade do tema violência.
A análise de uma experiência concreta de ensino de história faz parte da pesquisa
“Proejando com os saberes: aprendizado significativo com a utilização da pesquisa
socioantropológica”. Valendo-se de políticas de incentivo do governo para o Programa de
Ensino de Jovens e Adultos (Proeja-FIC) e o Programa de Certificação Profissional e Formação
Inicial e Continuada (Certific), Arroio do Sal, município do Litoral gaúcho, observando suas
demandas sociais dentro da área de educação de jovens e adultos, bem como o número de
indivíduos que possuem saberes, mas não tinham a devida certificação, buscou-se alternativas
através dos programas federais.
A presente pesquisa objetiva analisar a experiência desse município, no que se refere
ao Proeja-FIC e ao Certific, e como esses programas foram lastreados por meio de pesquisas
socioantropológicas (PSA). A partir dessas PSA, foram montadas as redes temáticas e os
microprojetos que orientaram os estudos de área para os educandos. A proposta do trabalho
é analisar todo esse contexto socioeducacional e como trabalhar o ensino de história, a partir
das redes temáticas e dos microprojetos.
O penúltimo projeto tem como título “Ensino de história das religiões: cristianismo,
islamismo e judaísmo nas histórias em quadrinhos”. O ensino de história das religiões no Ensino
Médio e Fundamental é quase inexistente. O que existe é um apanhado de pequenos quadros
explicativos – que pouco ou nada explicam – sobre religiões do passado. Esses quadros e
comentários encontrados nos livros didáticos vão na contramão dos temas transversais como
a pluralidade cultural, pois não são utilizados para criar mecanismos de integração e aproximar
os diferentes credos; ao contrário, apenas reforçam visões de dominação, preconceito em
Considerações finais
Notas
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria normativa nº 17, de 28 de dezembro de 2009. Dispõe sobre o
mestrado profissional no âmbito da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamentode Pessoal de Nível
Superior - CAPES. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 dez. 2009. Seção
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(Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
E-mail: [email protected]
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
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History Teaching Laboratories:
Reflecting and Building in Conjunction with Teachers
Abstract: This article aims to present the History Course Teaching Laboratories’
importance and their forms of scope. We will seek to examine the importance of
such spaces in the education and training of future Elementary School teachers,
showing their value as places for the exchange of experiences in teaching and
learning, and assisting students in teaching courses’ mandatory internships.
In addition, we will discuss the importance that practical activities, offered by
teaching support programs, have in the theory and practice relation, as well as
their value for the training of history teachers. Lastly, we will propose a reflection
about the importance of the strategies put forth by the History Course Teaching
Laboratories from the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LHISTE) and
from the Universidade de Caxias do Sul (NAEH) to encourage new approaches in
the teaching of History.
Keywords: Teaching; History; laboratory; strategies; teachers.
Resumen: Este artículo tiene por objetivo presentar la importancia y las formas de
alcance de los Laboratorios de Enseñanza de los Cursos de Historia. Buscáremos
problematizar la actuación de estos espacios en la formación y calificación de
los futuros profesores de educación básica, demostrando su importancia como
lugar de intercambio de experiencias de enseñanza y aprendizaje, promoviendo
el auxilio a los alumnos en prácticas de docencia obligatorias. Discute, también,
la importancia que poseen las actividades prácticas ofrecidas por los espacios de
apoyo a la enseñanza en la relación entre teoría y práctica y su importancia para
la formación de profesores historiadores. Finalmente, proponemos una reflexión
sobre la importancia de las estrategias elaboradas por los laboratorios de
enseñanza de Historia de la Universidad Federal del Río Grande del Sur – LHISTE
y de la Universidad de Caxias del Sur – NAEH para estimular nuevos abordajes en
la enseñanza de Historia.
165
Laboratórios para o ensino de História
Com a inserção das Práticas como Componente Curricular para os cursos de licenciatura,
a necessidade de espaços que promovam o debate sobre as formas de transmissão e construção
do conhecimento ampliou-se. Pois a especificidade de conferir uma identidade para as
competências do professor como educador remete a busca por referenciais que auxiliem
na relação do saber e da transmissão do mesmo. “Por Prática como Componente Curricular
entende-se, no contexto do documento oficial, ‘uma prática que produz algo no âmbito do
ensino’, que deve acontecer desde o início do processo de formação, o que a distingue da
prática dos estágios supervisionados”. (LIA; COSTA; MONTEIRO, 2013, p. 42).
166
LIA, C.; COSTA, J.; GIACOMONI, M.; CAGLIARI, M.; PEREIRA, P.
Laboratórios de ensino de história...
O material didático para ter função significativa no aprendizado de história deve ser
concebido através de uma ação conjunta entre o professor e o aluno. Assim, este recurso
não deve ser apenas utilizado em sala de aula, mas produzido na mesma, gerando um
processo de interação entre o conteúdo e sua compreensão. (...) A prática, em geral, cativa
mais a atenção do discente do que a exposição oral, permitindo que o aluno descubra
novas interpretações para os fenômenos históricos, identificando suas habilidades e
competências dentro desse universo. (LIA; COSTA; MONTEIRO, 2013, p. 43).
Os materiais produzidos são, muitas vezes, doados aos núcleos de apoio constituindo
parte do acervo dos mesmos. Nestes acervos encontram-se, também, materiais de apoio para
a sala de aula, como mapas, jogos, revistas, filmes, entre outros. Ainda são disponibilizados
livros didáticos e paradidáticos, ampliando o potencial para pesquisa nestes locais.
sempre dão conta de oferecer os recursos dentro da dinâmica na qual são reformulados. O
NAEH também busca oferecer mapas específicos para o ensino de história; alguns produzidos
pelos próprios alunos e professores do curso, em parceria com o curso de Geografia.
[...] os mapas devem ser encarados como instrumentos que auxiliem na compreensão do
espaço, posto que, atualmente não são vistos como tal, sugere-se que o professor seja
um instrumentalizador e viabilizador na construção do conhecimento sobre os mapas e
que traga em suas metodologias uma propriedade teórica, no sentido de fazer com que
o aluno consiga perceber a real importância dos mapas, como por exemplo, o contexto
histórico em que foram confeccionados, a função político-estratégica para as delimitações
territoriais, sendo visualizado também como um instrumento de poder. (SANTOS; BENTO;
FERREIRA, 2006, p.178).
Também possui jogos confeccionados por alunos do curso em diferentes disciplinas, que
foram doados ao Núcleo e que são um grande auxílio aos que estão nos estágios obrigatórios
como estratégia de aprendizagem. NAEH busca melhorar o seu acervo de ferramentas didáticas
e pedagógicas com a ajuda dos próprios alunos do Curso de História, aceitando doações de
materiais didáticos confeccionados pelos próprios alunos. Entre esses materiais podemos
destacar alguns que ao serem doados auxiliaram muitos outros alunos na sua caminhada
docente. Um deles é o chamado “Baú da Pedra Lascada”, que consiste em uma caixa com pontas
de lança e outras imitações de objetos líticos feitos em argila e coloridos com tinta guache.
Junto a esse material, produzido por uma acadêmica, que fez seu estágio no ensino
fundamental com o sexto ano, foi doado também o filme “10.000 A.C.”, bem como algumas
lâminas sobre os povos neolíticos e paleolíticos. Esse material além de ser emprestado aos
alunos estagiários para ser usado em sala de aula também serve de inspiração para que cada um
possa construir o seu baú com a sua turma, estimulando a criatividade e a interação dos alunos.
Outro material interessante, que também foi doado por uma aluna do estágio em ensino
fundamental, consiste em um jogo da memória com os Deuses Gregos, onde além dos alunos
identificarem os deuses, eles devem relacioná-los com seus nomes e características.
Existem diversos banners no acervo do NAEH que estão disponíveis tanto para a utilização
em sala de aula, como estratégia de confecção dos mesmos, repensando a função educativa do
recurso didático, que é proposta do espaço. É oferecida consultoria para o entendimento de
como produzir e quais sentidos podem ser atribuídos aos mesmos. Entre os banners disponíveis
para empréstimo podemos destacar uma coleção de 16 confeccionados para um evento do
curso que visava rememorar o Golpe e a Ditadura Civil militar brasileira de 1964.
Com essa variada gama de materiais didáticos, o NAEH busca auxiliar o futuro professor
de História a elaborar suas aulas de forma criativa, proporcionando um ambiente propício à
aprendizagem. Obter acesso a esses materiais ainda na graduação faz-se importante para
demonstrar a importância de seu uso, considerando que o material didático não dá a aula por
si só e necessita do fluxo empregado pelo professor, que não pode se limitar apenas ao livro
didático e necessita de outros mecanismos para o ato educativo.
Para desempenhar, de modo satisfatório sua missão, o docente deve partir da experiência
cotidiana dos alunos, oferecendo elementos que lhes permitam ultrapassar as sempre
lembradas formas tradicionais de ensino de História, que parecem valorizar, principalmente,
o sentimento de pertencer (para servir) a uma grande nação, assim como fizeram os heróis
responsáveis pela sua construção. (MICELI, 2012, p. 37).
defende que o professor, ao ensinar, deve criar situações que levem o aluno a aperfeiçoar
os sentidos necessários para desenvolver conhecimentos históricos, que lhe possibilitarão
aprimorar seu senso crítico e sua cidadania.
Os alunos participantes dessas oficinas ganham a certificação com o número de horas
cursadas. O valor cobrado corresponde ao custo da emissão dos certificados. Os ministrantes
das oficinas são voluntários que buscam construir junto aos acadêmicos um momento de
experimentação e de reflexão do ato educativo. Entre as oficinas realizadas pode-se destacar:
“Arqueologia e Práticas educativas”. Além de propor uma reflexão acerca da relação entre
Arqueologia e História, desenvolve-se uma experiência de construção de um campo de
escavação simulado e o exercício de escavação, limpeza e catalogação de peças. A oficina
“Patrimônio e Ensino de História – Desvendando o patrimônio arquitetônico” leva os inscritos
para o centro de Caxias do Sul e, andando na rua, realiza-se um exercício de observação,
reconhecimento e crítica do patrimônio arquitetônico da cidade.
e Ciências Humanas (responsável pela maior parte das disciplinas do curso de Licenciatura
em História). Em ações específicas ocorre também a articulação com o Departamento de
Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), professores do Departamento de Música do
Instituto de Artes (IA) e algumas secretarias municipais de educação do Rio Grande do Sul.
Além dessas parcerias institucionais, o Lhiste pretende-se como um espaço que
congregue professores do Ensino Básico e Superior de diferentes redes públicas e particulares.
A construção dos espaços virtuais e físico segue essa premissa, mantendo locais de
hospedagem e produção de materiais pedagógicos, por meio de ações de compartilhamento
com professores e licenciandos da História e Pedagogia. Objetiva-se consolidar o Lhiste e seus
espaços como uma referência em que o professor encontre materiais didáticos diferenciados
para suas aulas, com o compartilhamento de produções, pesquisas e boas práticas pedagógicas.
Nesse sentido, os espaços virtuais4 atuam com dois direcionamentos claros, o primeiro
com a divulgação de eventos e materiais ligados ao Ensino de História, e o segundo, propriamente
como acervo digital para as produções do Lhiste e grupos ou instituições parceiras. Nosso
site possui sessões como Biblioteca digital, abrangendo todo o acervo online que está ligado à
prática de ensino; Produções Lhiste e pesquisa, agregando o material relacionado aos membros
do grupo; sites de apoio e ações educativas, indicando materiais de fácil acesso.
Com espaço físico no Colégio de Aplicação (UFRGS, Prédio 43815 – sala 226, Av. Bento
Gonçalves, 9500, Bairro Agronomia), o Lhiste visa a manter um acervo presencial e oficinas
didáticas que coloquem em diálogo professores e licenciandos da universidade e da escola.
Deste modo, trabalhamos com um conjunto de livros didáticos, paradidáticos, publicações
auxiliares à prática, planos de aula, filmes, documentários e jogos, que estarão disponíveis a
todos mediante um cadastro no programa de acervo digital do Lhiste.
Em termos institucionais, o Lhiste é registrado na UFRGS como programa de extensão,
declaradamente concebido e concretizado através do pressuposto da indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão. Nessa perspectiva, vivemos a criação de um grupo de pesquisa,
com as seguintes áreas de atuação: 1. Docência em História, currículos, ações educativas e
políticas públicas; 2. Teoria e metodologia da História, Historiografia e Ensino de História; 3.
Usos do Passado: memórias, patrimônios e narrativas; 4. História, cultura escolar e educação
para as relações socioculturais. A partir dessas premissas, as principais ações desenvolvidas
até o momento foram um curso de aperfeiçoamento com a temática dos Jogos e Ensino de
História, a criação de uma revista eletrônica, a construção de um acervo (físico e digital) de
materiais didáticos e demais produções sobre o Ensino de História, além de organização de
eventos e palestras.
Uma das primeiras ações empreendidas pelo grupo do Lhiste foi o curso de
aperfeiçoamento “Ensino de História: modos de pensar, modos de fazer, modos de avaliar -
Jogos e Ensino de História”, desenvolvido no segundo semestre de 2013. A proposta do curso
foi fortalecer o processo de formação continuada dos professores de História, através de
discussões teóricas acerca do Ensino de História e do aprendizado do jogo como ferramenta
pedagógica na disciplina de História. O curso foi oferecido em modalidade Educação a Distância
(EAD) para quatro municípios do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Picada Café, Santo Antônio
da Patrulha e Três Passos), totalizando 150h. Essa carga horária foi dividida em cinco módulos
(com 30h cada), abordando problematizações teóricas a respeito do ensino de História (módulo
I) e do uso de jogos na educação (módulo II), para em seguida instrumentalizar os alunos no
uso específico dos jogos no ensino de História (módulo III). Avaliações foram propostas aos
jogos construídos e aplicados (módulo IV), e os resultados foram apresentados no seminário
presencial e entregues no relatório final (módulo V).
O curso esteve inserido em um movimento bastante significativo que ocorre no campo
do ensino em geral e do ensino de História em particular, que é a utilização de materiais
lúdicos nas aulas de História. Nesse sentido, o uso de jogos ganha relevância e notoriedade
porque permite o envolvimento dos professores e alunos num processo de criação conceitual
com uma linguagem adequada à Escola Básica. Não é difícil verificar que o ensino de História
precisa ainda hoje de revisão constante, ainda porque, após 30 anos de intensa discussão na
área, o livro didático ainda aparece como a ferramenta vital da sala de aula, deixando de ser um
instrumento ou uma ferramenta para o ensino e se tornando o ator principal. O uso de jogos
é uma urgência, pois se compreende que os jogos podem ultrapassar o limite do marasmo
que as aulas de História, por vezes, assumem ao lidar apenas com textos e perguntas. Nesse
sentido, aprender história pode ser um processo cognitivo bem mais criativo e envolvente.
A primeira edição do curso findou com 62% de alunos concluintes (número considerado
bom na realidade do EAD) e com ampla repercussão nacional da publicação produzida
pelo curso, o livro “Jogos e Ensino de História” (GIACOMONI; PEREIRA, 2013). Mais de mil
exemplares foram distribuídos para professores de todo o país, enviados via protocolo da
UFRGS. No site do Lhiste foram cerca de dois mil downloads do livro em PDF, que se soma
ao material impresso distribuído para todo o Brasil. Esse livro é uma reflexão pioneira sobre
o uso de jogos no ensino de História, cumprindo o papel da Universidade como lugar de
produção de conhecimento. Essa repercussão prova que os professores estão procurando
novas alternativas para pensar e ensinar história.
Como lançamento oficial do Laboratório e reafirmação das ações setoriais conjuntas,
em março de 2014, promoveu-se um primeiro curso de extensão: Encontros com o Ensino
de História na UFRGS. Os encontros se voltaram para a discussão de temas caros à História
e à Educação como: patrimônio, fabulações, jogos, vídeos, América Latina, espaço e tempo,
conciliando falas de professores da área de ensino, História, licenciandos, estudantes e
professores da Educação Básica. A atividade de extensão contou com a participação média de
80 cursistas que, em sua maioria, eram licenciandos de História e professores da rede pública
de ensino, o que contribuiu muito para as conversas após a atividade, tornando-se por vezes
elemento central dos encontros.
Atualmente (outubro de 2014), está em andamento a segunda edição do curso “Encontros
com o Ensino de História na UFRGS”, com a proposta de produzir “diálogos com histórias
indígenas e africanas”. A demanda dessa temática surgiu em uma das reuniões do Lhiste, na qual
discutimos o papel do laboratório dentro da formação inicial e continuada no ensino de História.
A questão apresentada pelas estudantes bolsistas de extensão foi a apropriação da educação
das relações étnico-raciais e dos conteúdos referente ao artigo 26-A da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), ainda pouco tratado nos currículos das licenciaturas em
História. Tal artigo, através da lei 11.645/08 que altera a lei 10.639/03, especifica que:
Notas
1 CNE. Resolução CNE/CP 2/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de março de 2002. Seção 1, p. 9.
4 facebook.com/lhiste e www.ufrgs.br/lhiste
5 www.seer.ufrgs.br/revistadolhiste
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
- História e Cultura Afro-Brasileira‖, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm. Acessado em 07/07/2014.
_____ . Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em:
http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/93966/lei-11645-08 Acessado em 07/07/2014.
_____. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf Acessado em 07/07/2014
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Geografia. v. 16, fev 2006. p. 176 – 179.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
*
E-mail: [email protected]
Teacher Who Enchants:
Between the Narrative of History and Care of the Self
Abstract: This article presents and discusses the first steps of the research
“History Teaching and narratives: the teacher and persuasion in the classroom”,
developed in the Post-Graduate Program in Education from UFRGS, at doctoral
level, under the orientation of Professor Dr. Fernando Seffner. Starting from a
reflection on the Teaching of History and analyzing the narrative character of
history, through authors such as Hayden White, Peter Gay, Jörn Rüsen, Paul
Ricoeur, and Walter Benjamin, we want to understand what strategies are used by
teachers in building their classes. We are interested in understanding what style
and narrative elements compose a historical discourse able to get the support
from scholars, starting from New Rhetoric references. In this analysis, what we
propose is an art, the narrative on the creation and subjective lived experience (in
this case, historical experience), understanding how history teachers prepare the
historiographical knowledge in their classes. This development seeks to negotiate
the gap between the past and the time of the student, creating moments of
enchantment to the power of the word.
Keywords: History teaching; teachers; narratives; style; new rhetoric.
180
Senador Bell: - Qual o valor disso que
ensina para esses meninos?
Professor Hundert: - Quando leem
Platão, Aristóteles, Cícero, Júlio César,
eles entram em contato com homens
que foram exemplo de estadistas, que
tinham o mais alto padrão de cultura
cívica, caráter e convicção.1
Introdução
Ao ler esse diálogo, é possível remeter suas palavras a uma passagem de Paul Veyne
(1971, p. 62): “se os romanos maçam um pouco o público [por serem, na realidade europeia,
estudados em demasia], é porque se fez deles um povo-valor em vez de ver quanto eles eram
exóticos.” Mas no diálogo, esse caráter exótico não aparece. Existe a convicção na fala do
professor Hundert de que o conhecimento por ele ensinado relaciona-se diretamente com
a formação de seus alunos, no caso uma formação moral e ética. E por que não os romanos
“exóticos”, com seus mosaicos sensuais nas salas principais das residências? Ou as punições
absolutamente cruéis? Ou o poder ilimitado e despótico do pater familias2?
Porque aquele professor possui um objetivo que vai além da complexidade da história
e reside nessa própria complexidade; aquela história, conteudista e tradicional sobre vários
aspectos3, é por ele dotada de um valor que a confere determinada importância na intriga4
tecida em suas aulas. Assim agem, de certa forma, todos os professores (de História, ao menos).
Atribuímos valores diversos às diferentes temporalidades com que lidamos, conforme nossa
formação, crenças, valores, posições políticas, etc. Se as escolhas são presentes, e mesmo
inevitáveis, na prática docente, resta-nos compreender suas motivações e possibilidades,
entendendo o próprio professor imerso na historicidade do nosso tempo, nesse “mundo
vivido, do qual o aristotelismo permanece a melhor descrição; esse mundo real, concreto,
povoado de coisas, animais e homens, onde os homens fazem o que querem, mas não fazem
tudo o que querem [...]” (VEYNE, 1971, p. 126).
A discussão proposta por esse artigo situa-se exatamente nesse ponto: um professor
que escolhe, que intenciona resultados em suas aulas e em seus alunos. Escolhe conteúdos,
escolhe ênfases, escolhe fundamentos teóricos, escolhe argumentos e escolhe um estilo.5
Qual história?
O título acima inicia um livro famoso entre os professores de História do Rio Grande do
Sul, organizado pelos professores Fernando Seffner e José Alberto Baldissera (1997). Pergunta
181
GIACOMONI, M.
O professor que cativa...
cultura, localização e perspectiva geográfica, região, raça, sexo etc. Então, enquanto fragmentos
do passado podem ser verdadeiros, a narrativa como uma coleção ordenada desses fragmentos
é mais que sua soma (MUNSLOW, 1997, p. 10 apud SUTERMEISTER, 2009, p. 46).
Uma constatação presente também em Peter Gay (1990), quando analisa o estilo na
história, em especial na obra de Ranke, constatando que o lado “dramaturgo” desse historiador
era bastante desenvolvido: prestava atenção na velocidade, no colorido e na variedade,
elaborando clímax que tornam algumas passagens da sua obra absolutamente emocionantes.
Mesmo assim, Ranke era “um cientista, mestre na pesquisa sistemática dos documentos, sua
maior contribuição à História, não admitindo a História escrita a partir de outras histórias”
(ARAÚJO, 1991, p. 166). A análise que Gay (1990) desenvolve dos historiadores pesquisados6
ressalta uma contradição: se por um lado existem limitações em cada historiador, nunca
neutros, sempre ligados ao presente com uma finalidade concreta para suas obras (como
já apontado por White), por outro é apenas essa empatia do presente que possibilita aos
historiadores verem e narrarem realidades históricas inacessíveis a outros indivíduos.
Prosseguindo nessas referências, pensando especificamente no estilo da história, Peter
Gay (1990) desenvolve a tese (já apresentada acima, com outros pensadores) de que não existe
uma dicotomia plena entre ciência e arte no discurso historiográfico, sendo que estilo e verdade
não seriam apenas compatíveis, mas interdependentes. Nessa lógica, o estilo em sua acepção
escrita permite algumas formas correlatas de expressão, como o estilo emocional do historiador,
espelhado na pontuação, nos adjetivos preferidos, na escolha dos episódios ilustrativos, nas
tônicas e epigramas. Há também o estilo profissional, refletido no tipo de material escolhido
e na forma de usá-lo. Existe também um estilo de pensar, seus postulados mais básicos sobre
a natureza do mundo. “Os estilos compõem uma rede de indícios que apontam uns para os
outros e, somados, para o homem – o historiador em atividade” (GAY, 1990, p. 24).
Procuramos com essas reflexões evidenciar o caráter narrativo da História, como
constituinte do fazer histórico. Ao mesmo tempo em que não podemos dissociar os
procedimentos apontados acima, é importante apontar que pesquisa e narrativa historiográfica
são dois processos distintos de um mesmo procedimento amplo de constituição narrativa do
sentido da experiência histórica. Segundo Jörn Rüsen (2007, p.22):
Por mais que a pesquisa e a historiografia se entrelacem ou sejam lados de uma mesma
coisa, é perfeitamente plausível distingui-las como duas fases do processo histórico de
conhecimento. Essa distinção se baseia nos dois princípios já mencionados: no princípio
da relação com a experiência (que o conhecimento histórico mantém na pesquisa) e no
princípio da relação ao público-alvo (na apresentação histórica). Ambos os princípios
determinam aspectos formais do conhecimento histórico. Na pesquisa trata-se de uma
forma cognitiva, de uma estrutura de pensamento, baseada nas regras dos procedimentos
adotados para lidar com a experiência, ou seja, em princípios metódicos. Na apresentação,
trata-se de uma forma expressiva, de formatação lingüístico-literária, baseada nas regras
dos procedimentos adotados para lidar com o interesse histórico, ou seja, em princípios
estéticos e retóricos.
transformando passado em história. É apenas com o processo narrativo, como nos ensina
Ricoeur (2010, p. XI), que se oferece inteligibilidade ao vivido, ao articular a experiência no tempo
de forma lógica, tornando-o humano. É a intriga de uma narrativa que “‘toma juntamente’ e
integra em uma história inteira e completa os acontecimentos múltiplos e dispersos e, assim,
esquematiza a significação inteligível vinculada à narrativa tomada como um todo” (RICOEUR,
2010, p. 2). A partir do momento em que o historiador assume que narra, fabula, articulando
com coerentemente representações históricas, figuras e argumentos retóricos e enunciados
científicos, percebemos que essa articulação faz da historiografia muito mais do que uma
soma de textos específicos, mas uma intensa operação.
Walter Benjamin, em seu célebre texto “O Narrador” (1994), nos traz essa relação da
narrativa com o vivido, inscrevendo o próprio narrador em íntima relação experiencial com
os seus interlocutores. Para ele, o narrador é um homem comum, que relata sua experiência
na relação com a experiência coletiva: “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência
dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p. 201-202).
Não podemos nos esquecer da constatação pesarosa de Walter Benjamin (1994) em
relação a essa forma de narrativa apresentada. Diz-nos ele que, em um processo de longa
duração no mundo ocidental, a modernidade tem terminado com esse processo “artesanal”
de construção narrativa, daqueles indivíduos que viajavam e colhiam o estranhamento, e
daqueles que viviam, criavam e recriavam seus relatos em um amálgama comum. Nosso
tempo (e já era no tempo de Benjamin, em 1935) vive mais das informações e das notícias
do que das histórias surpreendentes, e nossas notícias e fatos já chegam repletos de
explicações, que não estão a serviço da narrativa. Para ele, metade da arte narrativa está
em evitar a explicação: “o extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão,
mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a
história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
informação” (BENJAMIN, 1994, p. 203).
O espaço da imaginação fechou-se nesse processo. A ciência ocidental, refratária do
positivismo, ensinou-nos a distanciarmo-nos dos objetos de pesquisa, sempre exteriores,
observando-os com um olhar racional, neutro e científico. Essa forma de olhar civiliza o
passado, retirando suas singularidades em nome de uma marcha evolutiva que chega aos nossos
dias. Um olhar que infantiliza o passado, pensando-o sempre na vinculação valorativamente
inferior em relação ao presente.7 Mas será que não podemos transformar a experiência
histórica em um discurso de proximidade com os alunos, mesmo que uma proximidade
pautada no estranhamento, na diferença e na singularidade? Apresentar o estranho como
objeto referencial para pensar o mundo contemporâneo, vendo simplesmente como o mundo
nem sempre funcionou dessa forma (PEREIRA, 2012). Pensar “essa concepção ressalta, entre
os diversos elementos que compõem a história, as ações dos sujeitos concretos, comuns, com
seus dramas e dilemas” (CORRÊA, 2011, p. 12). Ao engendrar essa experiência entre professores
e alunos, remetemos a uma diferenciação pensada por Benjamin (1994), quando nos relata
uma distância entre o que faz o historiador e o que faz o narrador:
[existe uma] diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o
cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com
que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da
história do mundo. (BENJAMIN, 1994, p. 209).
Mas será esta diferença absoluta? E ao pensarmos os professores de História, não poderão
esses criar narrativas incompletas, permeáveis, lacunares, prontas a serem significadas pelos
alunos de formas diferentes? E não poderão os alunos amalgamar suas próprias experiências
nessas lacunas? Interessa-nos perceber como os professores constroem oralmente suas aulas,
procurando compreender o estilo e a performance argumentativa mobilizada. Quais são suas
escolhas? Quais gêneros de argumentos? Que tipo de postura performática? E, especialmente,
quais passagens das aulas produziram mais eco nos alunos?
O que propomos então é uma arte, relacionando a narrativa com a criação subjetiva e
a experiência vivida (no caso, a experiência histórica). Cabe compreender, para além das
construções dos historiadores, como os professores de História elaboram o conhecimento
historiográfico em suas aulas. Aqui nos é cara a noção de intriga, uma construção narrativa que
sintetiza determinados objetivos, causas e vivências de certa unidade temporal, apresentada
como total e completa. Seu desenvolvimento encaminha-se para explicar, fazer compreender
as razões, opções e ações que conduzem a determinados desfechos. Mas, ao seguirmos Ricoeur
(2007), , este nos ensina que a inteligibilidade histórica não é apenas lógica, pois se refere ao vivido.
E retomando novamente os questionamentos suscitados por Benjamin, qual será o equilíbrio
entre explicação e incompletude? Entre a intencionalidade do professor e o momento do aluno?
A dificuldade na abstração dos processos históricos por parte dos alunos é um temor
sempre presente dos professores de História. Julgamos que um aluno terá dificuldades
de compreender grandes processos históricos desencarnados como o Renascimento e a
Reforma; ouvirá falar sobre Lutero e Leonardo da Vinci, mas certamente terá dificuldades
de compreender como aqueles processos mudaram muitas formas de pensar das pessoas.
Talvez, nessas condições, narrar a vida de um moleiro italiano do século XIV, que a partir da
invenção da imprensa e do Renascimento teve acesso a livros e escritos, que por sua vez o
fizeram construir um pensamento “herético” que o levou à fogueira da Contrarreforma, seja
mais vivo, mais experiencial (GINZBURG, 1987).
Assim, procedemos uma negociação da distância, entre o tempo passado e o momento
do aluno (MONTEIRO, 2011). Ora, como nos alerta Paul Veyne, citando um historiador não
referenciado, “qualquer proposição histórica onde não se possam colocar as palavras, as coisas
ou as pessoas, mas somente abstrações como ‘mentalidade’ ou ‘burguesia’, tem a possibilidade
de ser uma patranha.” (VEYNE, 1971, p. 132). Lidar com essa lógica de narrativa é pensar a
aprendizagem em íntima relação com os acontecimentos das vidas das pessoas.
Nosso interesse é compreender, dentro dessas narrativas “humanas”, que elementos
geram aqueles momentos de puro encantamento ao poder da palavra. Na sala de aula, o breve
instante em que todos os alunos acompanham cada palavra proferida pelo professor, ansiando
silenciosamente pela próxima, que conduz esse aluno para um local de suspensão do eu, da
própria identidade do aprendente, um local e momento da construção de um novo. Benjamin
nos ensina que, na construção oral de um bom narrador, o ouvinte se perde, pois “ninguém
mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo,
mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (BENJAMIN, 1994, p. 205).
Essa suspensão atrela-se a um processo ativo de imaginação criativa donde podemos
entender a narrativa como um lócus de expressividade que pode se valer do ensino da diferença
na história, dramatizando e oferecendo contornos dinâmicos às matérias a serem ensinadas.
Como nos diz Pereira (2012, p. s/n): “os estudantes podem debater-se com a diferença, com
uma série interminável de outros que se desenham na narratividade de um professor que
enseja imaginação, que sabe que o lugar da verdade é o conteúdo e a forma do seu discurso”.
No vislumbre de outros possíveis e diversos no passado, a história acaba por tornar-se um
lugar privilegiado para o exercício da liberdade. O processo de reflexão do “e se”, daquilo que
não foi e poderia (ou não) ter sido, em geral desprezado pelos historiadores e professores de
História, pode ser revelar um importante momento de reflexão, criando zonas de imaginação,
espécie de não lugares, onde reside o inusitado, a pergunta ainda sem resposta, o fato ainda
sem fechamento. Ou, como nos ensinam os escritos de Rolink (1994):
Dessa forma, apresenta-se como tarefa da arte (ainda que ‘sem arte’, isto é, prescindindo
de um objeto reificado) mobilizar o estado de arte no espectador, proporcionar o acesso ao
fora de si que o habita e o faz diferir de si mesmo. (ROLNIK, 1994 apud PEREIRA, 1996, p. 212).
Nossa ideia de arte relaciona alunos, narrativas e o próprio professor como um indivíduo
ativo na busca pelo seu estilo, pela sua marca na sala de aula. Pensamos na lógica do cuidar
de si, presente nas obras de Foucault (1999 e 2006), tomando nossa própria existência como
uma obra de arte. Dentre tantas contingências que escapam à agência do professor, como
as condições de trabalho, a valorização profissional ou as condições de vida, o professor
pode cuidar e construir seu estilo, diretamente ligado a uma ética da verdade. O professor
narra verdades, naquela que segue sendo a mais simples e plena definição da história: “os
historiadores narram acontecimentos verdadeiros que tem o homem como ator; a história
é um romance verdadeiro” (VEYNE, 1971, p. 10). Mas como serão ditas essas verdades? Como
nos ensina o professor Nilton Mullet Pereira (1996), essa verdade narrada não é nem o passado
dos documentos, nem o passado criado pela narrativa do historiador, mas sim um passado
recortado, refeito, remodelado pelo estilo professoral. E esse estilo é um modo de propor aos
alunos que eles recriem as verdades que lhes contamos, para melhor apreendê-las:
não simplesmente para encantar, mas para cortar, para ferir, para fazer imaginar, para
desestabilizar, para desacomodar, para respirar história – histórias. (PEREIRA, 2012).
Esse é o caminho, ainda em seus primeiros passos, que pretendemos trilhar nessa
pesquisa procurando compreender que elementos narrativos podem compor uma aula capaz
de obter o momento dos alunos, e assim ensinar-lhes história.
Como obter a adesão dos alunos da escola básica via a oralidade do professor? Tal
problema de início apresenta-se com desafios: o que significa adesão? Como identificar
quais elementos retóricos foram responsáveis pela adesão? Que elementos podem compor
a performance do professor, no sentido de mobilizar os elementos retóricos da narrativa
histórica?
Como ferramenta teórico-metodológica para compreender melhor a ação dos
professores de História, propomos a utilização da análise retórica, tendo como referências
maiores as obras de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005) e Olivier Reboul (1998),
além de visitar referenciais clássicos greco-romanos como Aristóteles, Cícero e Quintiliano.
Reboul (1998) argumenta que o interesse pela retórica tem retornado ao longo do século
XX com uma clara relação com o amadurecimento das democracias liberais. O poder em uma
democracia reside na palavra e na capacidade de utilizar essa palavra para o convencimento
dos concidadãos. Na sala de aula, mesmo com todos os expedientes, tecnologias e métodos
existentes (desde os livros didáticos e paradidáticos, até recursos eletrônicos, aplicativos,
jogos, uso de filmes, músicas, etc.), o lugar da fala do professor ainda é muito importante,
para não dizer absolutamente central. Extrapolando esse argumento, podemos afirmar com
tranquilidade que a centralidade da educação segue ancorada na relação professor-aluno.
Um professor que sente seus alunos, pesquisa, elabora e propõem conteúdos; que considera
marcadores de capacidade cognitiva, classe, raça, gênero, etc.. Entendemos essa relação
humana como o traço fundamental da educação8.
A fim de analisar esse caráter humano da sala de aula, seguimos à risca uma das definições
de Aristóteles, que entende “por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada
caso com o fim de persuadir” (Retórica, I, 2 – 1355b). Reboul (1998, p. 14), em uma definição
muito próxima, nos diz que a “retórica é a arte de persuadir pelo discurso”, apresentando logo
a seguir sua acepção de discurso: “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma
frase ou uma sequência de frases, que tenham começo e fim e apresente certa unidade de
sentido.” (REBOUL, 1998, p. 14). Prosseguindo, cabe definir “persuasão” como o processo de
levar alguém a crer em alguma coisa. Reboul (1998, p. 15) aponta outro detalhe importante:
levar a crer ou levar a acreditar é diverso de levar a fazer, e o objetivo primordial da retórica
é levar a crer. Caso leve-se alguém a fazer algo sem que ele acredite naquilo, não é retórica.
Partimos das três noções clássicas da retórica que constroem o caráter persuasivo do
discurso, também presentes em Aristóteles (2005, p. 96):
As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas que residem
no caráter moral do orador [ethos]; outras, no modo como se dispõe o ouvinte [pathos];
e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar [logos].
[Retórica, I, 2 – 1356a].
A professora Ana Maria Monteiro (2011), em seu artigo “Ensino de História: saberes em
lugar de fronteira”, analisa a capacidade dos professores em negociar as distâncias entre alunos
e o conhecimento histórico, lançando mão de estratégias que podem ser analisadas a partir
dos conceitos da retórica. Essa autora, baseada em Shulman (1987), insere os procedimentos
retóricos no próprio processo de construção do “conteúdo pedagogizado”:
[...] o auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico.
Mas achamos que ele pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador sabe
bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-
lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente
todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um
engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma
argumentação. (REBOUL, 1998. p. 93-94, grifo nosso).
Ora, um tênue momento entre o lugar onde estão os alunos (e cuja identificação,
sempre necessariamente imprecisa, depende da sensibilidade do professor), e o lugar para
onde queremos conduzi-los. Esse lugar-objetivo é sempre complexo, já que
O tempo na sala é exíguo. O professor precisa selecionar (seletividade cultural) o que vai
ensinar e explicar. Ele deve escolher, com base em seu saber da experiência (Tardif, 2002),
qual encaminhamento será mais eficaz nesse contexto para atingir os objetivos definidos
[...]. (MONTEIRO, 2011, p. 202). (grifos no original)
Esse saber da experiência não está vinculado necessariamente a leituras retóricas, mas
nasce de uma sensibilidade exercitada cotidianamente. Esse saber mobiliza vasta gama de
argumentos, como os de autoridade (quando o professor cerca-se da autoridade da ciência
histórica em enunciações como “os historiadores assim o dizem” ou “o livro que eu li chega
nessa conclusão”) ou de direção (quando o professor concatena determinados acontecimentos
para chegar a um fim esperado).
A relação entre entimemas (forma de argumentar baseada em premissas válidas, de
ordem dedutiva) e exemplos (que se servem de fatos para comprovar determinada premissa)
é também constantemente utilizada nas salas de aula de História. Remetendo às explicações
de Knauss (2005), entimemas e exemplos são articulados nas interpretações dedutivas e
funcionais (as premissas enquadram os exemplos), probabilísticas (os exemplos ganham uma
dimensão central) e genéticas (premissas e exemplos dialogam de forma complexa). Diferente
do exemplo, a ilustração não se relaciona à temática abordada. Ela é utilizada com o objetivo
de reforçar a adesão a uma regra já enunciada. Na sala de aula existe uma recorrência desse
tipo de figura argumentativa, especialmente quando utilizamos alunos como representando
personagens históricos, grupos sociais, nações, etc. Interessa-nos perceber que, em outra
diferença para com o exemplo, a ilustração não tem necessidade de ser real. Reboul (1998, p.
182) nos ensina que a função da ilustração não é provar a regra, mas sim dar-lhe “presença na
consciência e reforçar assim a adesão”. Esse caráter ficcional abre um campo de possibilidades
para a fabulação histórica, para a dramatização. O fio da narrativa histórica se estende,
incorporando sujeitos e atos, compondo um enredo/explicação que integra a própria escola e
seus alunos (MONTEIRO, 2011, p. 204).
Outra forma argumentativa é a comparação, identificando semelhanças e diferenças
entre dois fenômenos históricos semelhantes, de forma a negociar a distância entre aquilo
que é distante e aquilo que é familiar. Um exemplo desse processo é uma cena da série
“Cidade dos Homens”9, em que o personagem Acerola explica os conflitos napoleônicos, com a
consequente fuga da família real portuguesa para o Brasil, a partir de uma linguagem e modelos
do seu cotidiano (no caso, da vida em uma favela carioca), associando estados nacionais a
“morros”, produtos manufaturados a “bagulhos” e reis a “donos dos morros”, de forma que
a turma compreendeu aquela realidade. Nesse caso específico, além de uma comparação,
percebemos um processo de construção de metáforas, na lógica de uma “semelhança
de relações entre termos heterogêneos” (REBOUL, 1998, p. 122). A metáfora, como aponta
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 453-460), produz um encantamento na medida em
que possui um sentido não evidente, que requer certa inteligência para plena compreensão.
Quando essa percepção é alcançada, o auditório tende a focar a atenção, devido ao prazer
proporcionado pela descoberta: “metaforizar bem, como diria Aristóteles, é perceber o
semelhante” (RICOEUR, 2010, p. 2).
Por fim, cabe apontar algumas questões referentes ao ethos e ao phatos na sala de aula.
O professor, na medida em que reconhece as emoções do auditório com que atua, lança mão
de estratégias que diminuem a distância entre ambos. Monteiro (2011) nos atenta, com base
em suas análises, que alunos entrevistados identificam como bons professores aqueles que ao
mesmo tempo possuem habilidade de explicar bem e que estabelecem uma relação afetiva,
próxima e bem humorada com os mesmos. Ou seja, que conseguem reconhecer o phatos
da turma, estabelecendo relações pessoais e próximas com os alunos, conhecendo nomes e
histórias e reconhecendo suas participações em sala de aula.
Tal qual o narrador de Walter Benjamin (1994, p. 198-199), que viaja e tem muito a contar
ou que ganha a vida honestamente em seu país e conhece suas histórias e tradições, o professor
sensato (capaz de dar bons conselhos), sincero (não dissimula o que pensa e o que sabe) e
simpático (disposto a ajudar seu auditório) (REBOUL, 1998, p. 48) é um narrador que viaja nos
labirintos da História cuja ética resplandece em suas posturas e ensinamentos, constituindo-
se em um adulto de referência frente aos seus alunos, imprimindo uma marca pessoal no seu
trabalho (SEFFNER, 2010, p. 216). Recorrendo novamente a Walter Benjamin (1994, p. 200-201),
o conhecimento construído no tecido vivo da existência tem um nome: sabedoria. A arte de
narrar estaria definhando porque essa sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção.
Será mesmo?
Notas
1 Diálogo entre o professor de História, William Hundert, e o senador Bell, no filme “O Clube do
Imperador”, tratando da situação de Sedgewick Bell (filho do senador) e dos objetivos das aulas do
referido professor.
2 Poder, baseado na tradição romana, que dava ao pai da família poder ilimitado sobre sua mulher,
filhos e escravos, de tal sorte que era permitido vender ou mesmo matar os filhos.
3 Basta lembrar que o grande acontecimento das aulas do professor Hundert era o “Senhor Júlio
César”, basicamente um Quiz com perguntas diretas sobre indivíduos, leis, acontecimentos e outros
aspectos da história romana.
4 “A intriga é uma obra de síntese. Ela reúne objetivos, causas e azares em uma unidade temporal, total
e completa. Ao reunir o que era disperso, o que era sucessão e devir, essa síntese do heterogêneo,
que é a intriga, (assim como a metáfora) faz aparecer na linguagem o novo, o inédito, o ainda não dito”
(REIS, 2003, p. 135).
5 Não queremos com essas propostas e questões pensar que o professor faz absolutamente o que
quer. Ele tem, dependendo do local em que ocupa (rede pública ou privada, estadual ou federal, laica
ou confessional, etc.), diretrizes curriculares diferentes, um currículo comum, parâmetros nacionais,
etc. Além do próprio livro didático que, especialmente em colégios particulares, são obrigados a
utilizar. Ou seja, compreendemos que essa liberdade do professor é relativa, já que existe a direção
da escola, a secretaria de educação do município, do estado, os pais dos alunos, etc.. Parte da questão
está em compreender como o professor transita nesse campo e mantém sua autonomia ou como isso
se reflete em seu trabalho.
6 Além de Leopold Von Ranke, são analisados Edward Gibbon, Thomas Macaulay e Jacob Burckhardt.
7 Um bom exemplo desse olhar referencial é a forma como o Renascimento cultural e o Iluminismo
construíram uma visão altamente negativa das realidades medievais, pautada no atraso e no caos
da “Idade das Trevas”. Além dessas representações, o Romantismo do século XIX, em um processo
de positivação do medievo, lançou àquele período a ideia de infância das nações, berço da atual
disposição política da Europa. Nessa última construção, o medievo só ganha sentido em uma
posição acomodada em relação ao presente, o agora maior em relação ao passado menor (PEREIRA;
GIACOMONI, 2008).
8 Traço fundamental nem sempre valorizado ou exercitado. Fernando Seffner (2010, p. 215) aponta
que a busca por um “estilo docente” próprio não é costumeiramente exercitado pelo professor, que
sofre um amplo processo de homogeneização via livros didáticos, manuais, cadernos de exercícios,
diretrizes, PCNs, apostilas, métodos de grandes grupos empresariais, provas e exames nacionais, etc.
9 “Cidade dos Homens” é uma série de teledramaturgia exibida pela Rede Globo entre 15 de outubro
de 2002 e 16 de dezembro de 2005. A série ambientava-se nas favelas do Rio de Janeiro. O relato
apresentado faz parte do Episódio 1 da primeira temporada, chamado “A Coroa do Imperador”.
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Rede Municipal - SMED/Prefeitura Municipal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil.
*
E-mail: [email protected]
The Resignification of Music “Teaching” through
Teachers’ Memories: Study on the Conservatory
of Music from Rio Grande/RS
Abstract: This paper is part of a study on the Conservatory of Music from Rio
Grande (1922-1954), regarding the representation and symbolic power through
subcategories of genre divided into social roles: mother, wife, daughter,
teacher, student, and artist. The subcategory “teacher” will be our main focus
of study. Therefore, I highlight the family as the first generating means, since
it has produced the roles performance of daughter, wife and mother, making
reference to the value of the woman within the private space, and therefore a
code of conduct that she should exercise in public space, both personally and
professionally. It is the necessary detachment to stop being only polite to become
educated. So, the female musicians have in the Conservatory of Music their place
of memory. Their experience has as a reference the home. It is the extension
of the family and her desires. The Conservatory has become the result of such
extension, not only for the moments they have spent there during the teaching
and learning process, but also for the relationships they have built as students
or teachers. With these relationships we will identify some emotional ties that
remained during their experiences.
Keywords: Woman; teacher; musician; Music Conservatory of Rio Grande;
representation.
198
Introdução
Este artigo pretende apontar reflexões sobre o sentido de “ensinar” música através da
memória de professoras, musicistas, alunas e artistas, que ainda mantém-se compartilhada
entre o “eu” e o “tempo” e que tem como suporte principal a fragilidade da Memória Coletiva,
vivenciada dentro do Conservatório de Música de Rio Grande, atual Escola de Belas Artes
“Heitor de Lemos”.
A mulher musicista tem no Conservatório de Música o seu lugar de memória e a sua
vivência tem como referência o lar, que é a extensão da família e dos desejos dessa. A partir
das oralidades, buscamos construir uma veracidade de forma despretensiosa, mas autêntica,
que os documentos escritos não conseguem por si só. Trata-se de outro olhar sobre a
perspectiva mais do que histórica, e sim social, pois a memória coletiva de um grupo busca a
sua sobrevivência no espaço social.
199
ATALLAH, G.
Caminhos e reflexões: formação de professores...
limita-se ao poder de se fazer lembrar, como lembrar, e o que deve ser lembrado, muitas vezes
pela própria trajetória do indivíduo dentro do contexto em questão.
Walter Benjamin (2006), em 1940, em suas teses “Sobre o conceito da História”, declara:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente
foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo
(BENJAMIN apud GAGNEBIN, 2006, p. 40).
Importante ressaltar que não podemos confundir memória coletiva e memória histórica.
Com relação à memória histórica, Maurice Halbwachs (2006) nos diz:
A Memória Coletiva retrocede no passado até certo limite, mais ou menos longínquo
conforme pertença a esse ou aquele grupo. Além disso, ela já não atinge diretamente os
acontecimentos e as pessoas (HALBWACS, 2006, p. 133).
Cabe a isso dizer que a história, ou a ação da mesma, criou ao longo do tempo um
abismo quando se refere à memória coletiva. Suas ações solidificaram-se muito mais no campo
material, nos fragmentos que ‘contaram’ algo, num silêncio factual, e acabou por esquecer o
que ainda está ‘vivo’, os sentidos da coletividade. Apesar de haver um intenso trabalho em
História Oral, a memória histórica tem dificuldade para aceitar a memória coletiva, não como
fonte somente, mas como resgate de lembranças de um tempo real vivido.
A coletividade, como memória que compõe um mesmo espaço, deve contar sua história
através não só do material, mas do imaterial. A fragmentação de ambos pode propiciar espaço
para a monumentalização, fato preocupante, pois acaba por conceber ícones, no caso da
materialidade, completamente distintos do contexto a serem resgatados. Reforça-se assim a
complexa trajetória entre presente e passado.
Gênero e subcategorias
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da
dominação ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão
estruturadas de conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que
lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento,
de submissão. (BOURDIEU, 2009, p. 22, grifo do autor).
Realmente é preciso perceber que apontar essa dominação é muito confortável para
quem domina a estrutura do conhecimento, que é um campo racional, e as percepções desse
conhecimento só se encaixam para o feminino, pois a mulher concebe o conhecimento,
baseado nos sentido, ou seja, as percepções são o resultado do estímulo dado a eles. Mas ao
demonstrar essas percepções, a mulher não consegue anular a sua base de formação, ou seja,
a representação masculina que aprisiona a confirmação da representação feminina.
Gênero e família
O capital simbólico funciona como uma demonstração de poder que não pode ser
controlado, ele “se percebe e é percebido”. A partir do casamento, a construção da família, a
criação dos filhos, a vivência de seus integrantes, as trocas sociais, têm-se na figura do pai/
esposo a visão de uma instituição familiar perfeita, ou o mais aceitável possível socialmente,
e para que esse capital simbólico se confirme, e tenha credibilidade, a dominação não pode
vir como um instrumento de precisão. Ela está mascarada nos gestos, no comportamento da
família como um todo.
E a relevância da inferioridade e exclusão da mulher se deve ao fato da própria
negligência simbólica que esse capital adota, pois o excesso de poder, o controle na esfera
familiar e todos os segmentos com que ela se relaciona criam uma distância entre o homem,
a mulher e os outros membros da família.
São dois pontos extremos num mesmo segmento: o prestígio do chefe da família, e a
submissão da mulher, utilizada como troca simbólica, pois “as mulheres são valores que é
preciso conservar ao abrigo da ofensa e da suspeita; valores, investidos nas trocas, podem
produzir alianças, isto é, capital social e aliados prestigiosos, isto é, capital simbólico”
(BOURDIEU, 2009, p. 58). A partir do teor dessas trocas e dos resultados que se originam
dessa ação é que será atribuído um valor à mulher perante o(s) ambiente (s) em que transita.
E a medida da ação de troca é mediada pelo poder do homem, pois ele concentra uma força
invisível de poder, visível no momento de suas ações.
Apesar da amplidão dos processos de trocas simbólicas que envolvem as mulheres, nosso
recorte preocupa-se com os séculos XIX e XX, portanto não será feito um contraponto entre
as subcategorias de um período e de outro. Se olharmos a família, esta tem a sua formação na
casa, onde os papéis de esposa e mãe são ou devem ser o exemplo de retidão absoluta, ou seja,
desde o seu comportamento até a aparência são elementos essenciais para manter uma boa
reputação. Essa construção de conduta é na realidade a representação de um ideal de família,
que está muito mais focada no papel da mãe, do que do pai, pois como ela está plenamente no
lar, ela tem uma obrigação invisível, mas cobrada, de manter o bom exemplo, a educação, por
ser considerado o alicerce da família.
O pai, esposo, diferentemente, exerce as suas atividades fora de casa e isso o faz
ser tratado como indivíduo dentro da sociedade, um ser político, mantenedor quanto ao
sustento da família, e também um protetor, já que ele é reconhecido individualmente, tem
um papel diferenciado no conjunto. A mulher designava-se pelo grupo, não tendo um caráter
diferenciado. No momento em que é reconhecida, traz consigo os filhos. O seu papel não
está dissipado do papel do pai ou do marido. Se ela depende dele em termos financeiros, ele
depende dela para a sustentação moral.
O pai ou marido representa a razão lógica diante da emotividade demonstrada pela mãe.
Essa construção do papel do pai ou marido o coloca como dono da situação, que estende o seu
poder para fora de casa. Ele fortalece o poder do Estado político-econômico, centralizando o
patriarcado em detrimento da ordem. Quanto à mulher, ela estará ligada ao fortalecimento do
Estado sociocultural, onde ela é o alicerce da família, da educação dos filhos, incentivadora dos
modos de entretenimento, mas não é o centro. O seu papel está condicionado à ação masculina.
E por isso, as mulheres são vistas no grupo, pois esse remete ao papel do povo, do
conjunto, se fosse enquanto indivíduo, o poder seria algo natural, e assim, no conjunto, é
preciso desviar o poder que ela pressente ter enquanto alicerce da família. O casamento é o
vínculo entre a razão e a emoção, que se predispõe à formação social, por isso “a família requer
costumes, e o Estado requer leis. Reforçai o poder doméstico, elemento natural do poder
público, e consagrai a total dependência das mulheres e dos filhos, garantia da obediência
constante dos povos” (PERROT, 2010, p. 98-99).
É esse poder doméstico que no início do século XX passou por contradições e que
aparentemente tentaram ser disfarçadas pela harmonia familiar, pois ao mesmo tempo em
que a mulher tinha as atribuições do lar, ela passava por necessidades, em função da situação
econômica mundial e experimentava o trabalho fora de casa. Se antes, no século XIX, ela
passou por dois momentos em que o marido ou pai eram responsáveis pelo dinheiro, não só
em ganhar, mas em administrar, agora num segundo momento ela desfrutava da posição de
gerenciar o dinheiro para as despesas da casa, mas sob o olhar do marido.
Já no século XX, o trabalho fora, mas não abrangente em todas as classes sociais no
início, possibilitava um novo comportamento na mulher. Ela passava a tomar decisões, tanto
quanto o marido, mas essas decisões estavam relegadas a dois espaços anteriormente citados:
o público e o privado.
Enquanto havia a construção de uma família mais moderna, com a igualdade de direitos,
havia uma intenção de que ela continuasse a ser a mantenedora dos costumes, e aí a busca na
família, de uma vida mais reclusa, anônima.
Gênero e trabalho
[...] elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos
receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas”, isto é,
sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas.
E a pretensa “feminilidade” muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em
relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de
engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros (e não
só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser. (BOURDIEU, 2009, p. 82).
Isso nos faz perceber que no momento em que a mulher é vista pelo olhar do outro,
já nos deixa claro que o seu valor, entenda-se aqui sua trajetória de vida, estará agregado
aos conceitos e interesses do contexto em que vive, sendo que a sua submissão começa pela
família, na figura paterna, e após o casamento, na figura do marido.
A feminilidade como comportamento de aceitação não é pelo fato de ser agradável
visualmente para uma sociedade, mas o ser feminino implica em uma busca pelas suas próprias
ideias, ou melhor, questionamentos para antigos padrões. Essa busca constante fez com que a
dominação masculina, tivesse na mulher, um trunfo, o servir, o estar e o depender, se negados
por ela, seria negar a sua própria existência?
Essa representação feminina não sugestiona apenas um conhecimento racional,
mas existe outra preponderância da conduta feminina. O modo de agir não está apenas no
comportamento, mas na aparência física, que é suscetível à própria organização social. Esse
comportamento não está estabelecido pelo padrão de vontade, mas pelo padrão de aceitação
de conveniência, mais para o homem do que para a mulher, pois:
[...] a moral feminina se impõe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a
todas as partes do corpo, e que se faz lembrar e se exerce continuamente através da coação
quanto aos trajes ou aos penteados. Os princípios antagônicos da identidade masculina e
da identidade feminina se inscrevem [...] sob forma de maneiras permanente de se servir
do corpo, ou de manter a postura, que são como que realização, ou melhor, a naturalização
de uma ética. (BOURDIEU, 2009, p. 38).
O trabalho toma vigor a partir do papel da educação. A escola nos séculos XIX-XX
manteve um modelo de dominação patriarcal, claramente percebível pela disciplina imposta,
pela exigência nos conteúdos, pela postura rígida dos professores, pela imposição do uniforme
escolar, e dependendo do local (país, estado, cidade), a formação do currículo escolar, com
a determinação de conteúdos impostos. Mas mesmo mantendo essa estrutura, o acesso à
escola, o trabalho assalariado e contato com a vida pública proporcionaram um afastamento
do lar, não se referindo à moradia, mas com relação aos afazeres. (BOURDIEU, 2009, p. 107).
A mulher, ao adquirir tanta instrução escolar quanto o homem, passou a criar o seu
próprio espaço público fora do lar. Mesmo a família sendo a instituição mais importante,
ela também depende do novo comportamento feminino. Porque com o acesso ao ensino
e o trabalho assalariado, as mulheres passaram a conceber o casamento mais tarde e,
posteriormente, a chegada dos filhos passou a ser algo mais programado.
Heranças do século XIX ainda se mantiveram por um longo período, apesar dos
aspectos positivos já apresentados. A instrução passou a ser para ambos os sexos, mas
havia um condicionamento para que determinados cursos de nível superior fossem mais
adequados ao homem. Exemplo disso são os cursos de Direito, Medicina, Letras, Filosofia,
Sociologia, Psicologia e História da Arte, pois “é sabido que o mesmo princípio de divisão
é ainda aplicado, dentro de cada disciplina, atribuindo aos homens o mais nobre, o mais
sintético, o mais teórico e às mulheres o mais analítico, o mais prático, o menos prestigioso”
(BOURDIEU, 2009, p. 109), o que consequentemente propiciou, mesmo que indiretamente,
uma remuneração inferior.
No início tocar o piano era um peso, a Dona Edelvira Rasmussem era muito exigente, muito
exigente mesmo. Ela tinha uma régua e batia nos dedos da gente quando a gente errava,
ali foi um peso, mas depois que eu passei para o Conservatório, a professora Dona Nayade
era uma excelente professora, muito calma, muito boa. Ali eu fui pegando mais gosto.
(Entrevista realizada em 17/09/2010).
[...] a primeira vez que eu vim, e eu vim antes disso só pra fazer teoria, comecei com ela.
Naquela época o professor era o diretor e a escola levava o nome dele. Ele era uma pessoa
um pouco ríspida e também não tinha muita didática pra ensinar as pessoas, mas a gente ia
levando, Algumas professoras, por exemplo, de teoria, sempre foram muito ríspidas assim,
não tinham aquela paciência de ensinar. Achavam que a gente já sabia tudo e não é por aí.
(Entrevista realizada em 20/08/2010).
[...] a gente se relacionava bem, mas sabe como é o professor, mantinha aquela distância:
“Eu sou o professor” [...] Isso era visível, a gente não piava, não havia brincadeira, a gente
entrava para aula. Ele dava aquela aula: tudo, o que tinha que corrigir era corrigido, e
sempre com muita exigência. Isso sempre foi. (Entrevista realizada em 20/08/2010).
A postura rígida fazia parte do modelo de educação da época, o que nos dias de hoje
entenderíamos como metodologia questionável para ensinar, porque esse modelo baseava-
se nos limites dentro da sala de aula. Um comportamento ríspido significava respeito e em
momento algum o aluno poderia se igualar ao professor. Se a professora demonstrasse
mais proximidade ao aluno, não deveria ser entendido como cobrança, mas sim como uma
pedagogia mais adequada.
No relato da Sra. Dalzi Lempek, ela nos mostra seu olhar sobre o Conservatório:
Nós tínhamos um horário marcado, porque a aula era individual. Chegava lá, esperava um
pouquinho, que a outra aula atrasava. A professora sentava ao nosso lado e nos dava aula
durante mais ou menos uma hora. Dependendo do ano, quando você era iniciante, eram 30
minutos [...]. (Entrevista realizada em 17/09/2010).
No Conservatório havia muito mais que disciplina e rigor, tinha uma vida familiar. Era
extensão de casa. E isso se confirma pelas palavras da Sra. Arlete Fogaça: “eu gostava muito, era
a minha vida. Eu vivia no Conservatório, ali foi a minha vida. Eu me criei, depois saí do curso
particular, ingressei no Conservatório, eu vivia lá [...]” (Entrevista realizada em 27/09/2010).
A referência de estar lá cria o espaço para o capital simbólico, que são as ações das
mulheres musicistas, mesmo que em posturas diferentes dentro do campo musical e ligadas a
esse contexto que estamos tratando. Elas criam o seu meio e o recriam a partir de suas ações.
Se durante a formação de ensino as mulheres musicistas vivenciaram o modelo de
educação na figura do professor ou dos professores, que tinham um código de conduta baseado
no respeito, esse se mostrava de maneira ambígua, sob aspectos de rigidez, disciplina, afeto
maternal, e dedicação, que eram tidos como modelos normais para a época, aceitos porque
tinham na família o próprio exemplo.
Ao se formarem-se no Conservatório, seis de nossas entrevistadas continuaram ali
atuando, principalmente como professoras, tendo paralelamente carreiras artísticas que
mesclavam às atividades do Conservatório, elas vivenciaram o modelo de educação a que
foram submetidas.
E num primeiro momento era a própria dominação masculina do trabalho fora de casa
e, em contrapartida, havia o status que o Conservatório de Música vinha atingindo. Essa ideia
é clara nas palavras da Sra. Arlete Fogaça, que nos salienta:
[...] é muito interessante, ele me disse assim: “mulher minha não trabalha”. Naquele tempo,
era o homem que tinha que sustentar a casa. Ele mais que os outros, porque eu era muito
novinha. Em seguida, ele disse: “[...] ou eu ou o trabalho e a música”. Depois se conformou
e aceitou. O Conservatório de Rio Grande sempre foi assim, vamos dizer meio elitizado.
Uma coisa era ser professora do Conservatório de Música, outra era ser professora do
Lemos Júnior. Aí sim, então era uma coisa. Meu filho vai casar com uma professora do
Conservatório de Música, do Colégio Lemos Júnior. Hoje não é mais nada disso, se souber
que é professora, coitada (Entrevista realizada em 27/09/2010).
O fato de o marido se conformar com a atuação da esposa, a Sra. Arlete, talvez estivesse
fundamentado mais no ambiente do que na carreira musical em si, pois, como ela mesma nos
relatou, sempre desempenhou funções mais no âmbito administrativo da escola do que na
própria sala de aula.
E o próprio status que o Conservatório sugeria, estava também na cultura que se
propiciava mais clássica e que seguia os padrões europeus, por isso ele se referenciou como
Naquela época mais ou menos, o nível era elevado, até eu era uma das mais... inferiores,
mas era um nível mais ou menos. Acho que até porque comprar o instrumento era difícil.
Então, pessoas desse nível um pouco mais baixo tinham motivo para estudar só lá e assistir
às aulas e praticar só ali na aula. Não tinha, não dava, claro tinha que ter a prática em casa
[...]. (Entrevista realizada em 17/09/2010).
[...] a dona Inah era muito exigente, ela não tinha preferência. Claro, comigo era diferente,
porque a gente tinha amizade de família, mas todo mundo era tratado igual sim, todo
mundo levava uma “lambadinha” de vez em quando. Ela era bem, bem exigente, isso ela
era. (Sra. Glacy Domingues. Entrevista realizada em 27/09/2010).
Ela cobrava, mas também tinha os momentos de lazer, que a gente se entrosava mais,
[...] ela era disciplinadora, era costume alemão, era escola alemã, e acho que isso deu
boas cantoras ao Rio Grande, muito boas cantoras. Uma lástima poucas ficaram como
professoras. (Sra. Glacy Domingues. Entrevista realizada em 27/09/2010).
[...] eu ainda peguei a dona Inah, em banca de exame, e ela era diretora, tinha um medão
dela [...] (Sra. Sarita de Souza. Entrevista realizada em 11/09/2010).
[...] a Inah para mim foi um exemplo. Fui a única aluna que ela conseguiu levar até o final. Eu
fui a primeira formanda dela, ela tinha muita predileção [...]. Fomos muito amigas também,
muito amigas. (Sra. Eloah Amaral. Entrevista realizada em 17/08/2010).
[...] dona Inah, para mim, foi um exemplo de vida total, porque ela se doou totalmente.
Achava que ela era muito egoísta, ela nos queria sempre para ela. Não tinha família, não
tinha ninguém. Não tinha sábado, não tinha domingo, férias, nada. Ela telefonava nas férias:
“olha eu preciso de ti assim”. Ela fez parte da minha vida, me deixou meio parecido com
ela,[...] (Sra. Anna Maria Seifriz. Entrevista realizada em 10/11/2010).
Essa relação de adoração, no entanto, não permitiu que nossas entrevistadas fizessem
uma comparação espontânea entre a maneira de dinamizar o processo de ensino pela professora
Inah Martensen. Sabiam que, ao mesmo tempo ela era disciplinadora, mas protetora, e mesmo
justificando o modelo alemão, em referência ao estilo europeu, reconheciam a doação que
ela se permita em relação à escola. Ela remonta claramente o papel da professora que traz
consigo a figura da mãe e o seu lar, toda a disciplina exigida era uma forma de moralização
das alunas no contexto do Conservatório e fora dele, pois este também era a extensão do lar.
Encontramos também a referência de uma de nossas entrevistadas a uma figura masculina,
o professor. A oposição dessa referência em um meio onde a presença feminina prevalece,
constrói uma relação de proteção e idolatria, assim a Sra. Sarita de Souza nos conta:
[...] ele era um professor muito importante em Porto Alegre [...] ele foi por pouco tempo
meu professor, mas marcou muito. Ele entusiasmava a gente, era exigente, era, mas eu
não sei, [...], achava no fundo, no fundo, que eu tinha algum talento, só que eu não era
estudiosa, tinha algum jeito pra música [...]. (Entrevista realizada em 21/10/2010).
[...] mas eu gostava mais era mesmo de ensinar. Gostava de ensinar criança, pessoas que
não sabiam nada. Eu trabalhava geralmente mais com gente iniciantes até 4º e 5º ano, [...]
eu me entusiasmava muito de pegar uma pessoa, era totalmente cega naquele assunto e
daí depois de um ano, dois, tocando, apresentando. O prazer que eu tinha, não sabia nada,
claro, e eu soube transmitir... (Entrevista realizada em 17/09/2010).
Iniciei aula particular com a dona Edelvira Rasmussem, era de uma severidade tremenda,
então eu apanhava nos dedos com o arco do violino. Ela se doava totalmente para suas
alunas. Eu acho que herdei um pouquinho dela. Chegava em casa chorando, porque ela me
dava nos dedos [...] e minha mãe dizia: se ela te deu nos dedos é porque tu merecia (sic)”
[...]. (Entrevista realizada em 10/11/2010).
[...] eu acho que sim, e dando aula sabe, lecionando porque é como dizia a dona Inah: “te
esquece que tu é (sic) cantora, se tu quer ser professora, tens (sic) que esquecer que tu é
(sic) cantora”, e de fato é isso, porque a gente quando está dando aula para uma aluna não
pode interferir, tem que deixar que ela mostre a que veio [...] o sentimento dela, cantar,
interpretar...[...]. (Entrevista realizada em 22/09/2010.)
[...] foi pelos próprios professores, porque achavam que eu era... não ia dar certo, que eu
era uma guria muito nova. A turma já era velha e, uma menina entra como professora. Não
era como hoje, cedo começam [...] tinha sempre os conservadores; alguns, não foram todos
[...]. (Entrevista realizada em 27/09/2010).
[...] tirei Geografia e História. O piano era mais um hobbie, uma coisa que a minha mãe fez
questão também que eu me formasse, que eu não deixasse, porque teve uma época em que
quase desisti como muitos, porque as coisas ficam complicadas. Aí comecei a trabalhar [...]
ficou assim uma coisa para eu tocar de vez em quando, assistia, gostava muito de música,
mas não me dediquei [...]. (Entrevista realizada em 19/08/2010).
E ela justifica “ah, no tempo da minha mãe [...] elas não estudavam, não trabalhavam,
aquilo era mais um complemento da educação, estudar canto. [...] É, podiam se dedicar mais,
pois não tinham aquela vida profissional, era diferente” (Entrevista realizada em 19/08/2010).
Prepondera a questão das atribuições, que num primeiro momento estavam designadas ao
lar e, com a busca da mulher pela instrução fora de casa, o próprio contexto propiciava novas
opções de vida, dentre elas a profissionalização.
Considerações finais
desse contexto se cercam dessa proteção rígida, identificada em outros aspectos: dedicação,
doação, integração. Entre outros aspectos, é assim que se forma a construção de figuras que
protegem aquele pequeno mundo, preparando-as para a sua representação, mas que fique
claro, apenas para aquele contexto. A mulher, assim como o homem, está submersa em vários
contextos e, por conseguinte, há várias maneiras de “demonstrar” a sua representação. A
essência é sempre a mesma, mas a forma de contato é diferente.
Essa forma de variação foi amplamente percebível ao realizarmos as entrevistas com
as ex-alunas, professoras e artistas. A forma de representação de cada uma delas partia de
um determinado ponto, na maioria das vezes, a família, que tinha o gosto musical, e isso era o
tocante para a construção de suas trajetórias.
Buscar o ponto de referência entre a mulher, a música e os seus espaços de convívio foi
além de elementos referenciadores, pois, ao verificarmos a importância do espaço privado e
do público, podemos observar que, mesmo a referência estando na família, a figura da mãe
sobressaía-se acima da figura do pai com um modelo de formadora, o que confirma a teoria
positivista, que aponta a mulher como o sustentáculo da sociedade.
E, sobressaindo a postura de sustentáculo, podemos observar que ela desempenha uma
relação de modelo para os anseios de nossas mulheres musicistas. Elas apresentam essa relação
com os seus alunos, quando demonstram disciplina; quando reverenciam alguns professores
como modelos negativos ou positivos dentro do Conservatório; quando escolhem o magistério e
seguem os preceitos de seus mestres, e quando escolhem a vida artística, tendo os seus mestres
como referência, e ao mesmo tempo, mantendo na música a construção do seu próprio “eu”.
Nota
Referências
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E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Paths and Reflections: Teachers Training and
Supervised Internship in History Course at the
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Abstract: This paper aims to reflect on the paths taken in the training of history
teachers and the role of supervised internship, starting from the students’
experiences. The transformations imposed by the Brazilian legislation on
education and the curricular changes in debate within the teaching undergraduate
course, which are experienced in the History Department at the Universidade
Estadual de Londrina, will guide this discussion.
Keywords: Teachers training; supervised internship; History; higher education.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre los caminos
recorridos en la formación de profesores de Historia y la función y el espacio de
las prácticas supervisadas desde las experiencias de los estudiantes. Los cambios
impuestos por la legislación educacional brasileña y las alteraciones curriculares
en debate en el interior del curso de licenciatura, del Departamento de História
de la Universidad Estadual de Londrina, serán los puntos fundamentales de
discusión.
Palabras-clave: Formación de profesores; prácticas; Historia; educación superior
216
Estágio supervisionado: revisitando trajetórias
217
ATALLAH, G.
Caminhos e reflexões: formação de professores...
“repensando o ensino de História”, organizado por Marcos Silva em 1984, um dos primeiros
livros acadêmicos a propor a discussão em e para a sala de aula, sobre o ensino de História),
a importância da discussão sobre os fazeres e saberes dos professores e a distância da
universidade em relação às escolas.
Na década de 1990 (entre outros estudos, ver Fenelon, 1994; Molina, 1995; Fonseca, 1996),
convivemos com um sistema de formação inicial de professores bastante diversificado, que
acomodou diferentes dimensões e interesses, mas que como um todo, alimentava a lógica do
sistema. Isto é, em geral as instituições formadoras não buscavam ou não conseguiam romper
com a dicotomia teoria/prática, com a desarticulação entre a preparação para a sua ciência
de referência e a preparação pedagógica e com a separação ensino/pesquisa, existentes no
interior dos próprios cursos de licenciatura e entre licenciaturas e bacharelados.
Nos anos 2000, nos contextos de reformas curriculares, em todos os níveis no Brasil,
temos o trabalho de Cerri (2004) apresentando as permanências das discussões acerca das
dicotomias entre bacharelado/licenciatura e ensino/pesquisa que perpassam, naquele
momento, as reformas estruturais a serem promovidas nas licenciaturas.
Pesquisa mais recente, realizada por Muniz (2011), ao investigar a produção acadêmica
do programa de pós-graduação em História da Universidade de Brasília entre 2006 e 2008
também aponta a permanência das dicotomias ensino/pesquisa nos currículos organizados
para a pós-graduação e a graduação.
Com efeito, a pesquisa feita revelou-nos que essa lógica da divisão social do trabalho
permanece referenciando o pensamento e ação no que concerne à formação de
professores, em duas modalidades. Ela se expressa, significativamente, no distanciamento
existente entre os currículos da pós-graduação e os da graduação. Enquanto aquele volta-
se para a formação especializada em área de conhecimento histórico, com ênfase na
pesquisa de ponta e na história como um campo de múltiplas possibilidades, na graduação
opera-se justamente o contrário. No caso específico da licenciatura, a estrutura curricular
que organiza o curso e orienta as práticas docente e discente ainda privilegia a visão de
uma história eurocêntrica e globalizante. A historiografia dita tradicional continua sendo
reiterada por força, inclusive, desse aprisionamento curricular aos “quadros de ferro” do
esquema quadripartite francês [...]. (MUNIZ, 2011, p. 260).
Pereira (1999) propõe uma imagem muito significativa acerca desse modelo de
formação docente (três mais um, ou seja, três anos destinado aos conhecimentos da ciência
de referência e um ano final para as disciplinas pedagógicas e realização de estágio), em que
pode ser descrito, segundo a conhecida analogia, com o “curso de preparação de nadadores”
criada por Jacques Busquet, em 1974:
Imagine uma escola de natação que se dedica um ano a ensinar anatomia e fisiologia da
natação, psicologia do nadador, química da água e formação dos oceanos, custos unitários
das piscinas por usuário, sociologia da natação (natação e classes sociais), antropologia
da natação (o homem e a água) e, ainda, a história mundial da natação, dos egípcios aos
nossos dias. Tudo isso, evidentemente, à base de cursos enciclopédicos, muitos livros, além
de giz e quadro-negro, porém sem água. Em uma segunda etapa, os alunos-nadadores
seriam levados a observar, durante outros vários meses, nadadores experientes; depois
dessa sólida preparação, seriam lançados ao mar, em águas bem profundas, em um dia de
temporal. (PEREIRA, 1999, p. 2).
[...] A ênfase excessiva do que acontece na sala de aula, em detrimento da escola como um
todo (Freitas, 2000), o abandono da categoria trabalho pelas categorias da prática, prática
reflexiva, nos estudos teóricos de análise do processo de trabalho, naquele momento
histórico da abertura política e da democratização da escola, recuperavam a construção
dos sujeitos históricos professores como sujeitos de suas práticas. (FREITAS, 2002, p. 142,
grifo da autora).
escolas, sem passar pelos estados e municípios; criação do Sistema Nacional de Educação
a Distância, com a instalação de aparelhos de TV em cada escola, com o objetivo de
“preparar os professores para que eles possam ensinar melhor”; a melhoria da qualidade
dos 58 milhões de livros didáticos distribuídos anualmente para as escolas; a reforma
do currículo para melhorar o conteúdo do ensino, com o estabelecimento de matérias
obrigatórias em todo o território nacional; e a avaliação das escolas por meio de testes,
premiando aquelas com melhor desempenho. (FREITAS, 2002, p. 143).
Quais são os saberes profissionais dos professores, isto é, quais são os saberes
(conhecimentos, competências, habilidades etc.) que eles utilizam efetivamente em seu
trabalho diário para desempenhar suas tarefas e atingir seus objetivos? Em que e como
esses saberes profissionais se distinguem dos conhecimentos universitários elaborados
pelos pesquisadores da área de ciências da educação, bem como dos conhecimentos
incorporados nos cursos de formação universitária dos futuros professores? Que relações
deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitários, e
entre os professores do ensino básico e os professores universitários (pesquisadores
ou formadores), no que diz respeito à profissionalização do ensino e à formação de
professores? Esses conhecimentos exigem também autonomia e discernimento por parte
dos profissionais, ou seja, não se trata somente de conhecimentos técnicos padronizados
cujos modos operatórios são codificados e conhecidos de antemão, por exemplo, em forma
de rotinas, de procedimentos ou mesmo de receitas. Ao contrário, os conhecimentos
profissionais exigem sempre uma parcela de improvisação e de adaptação a situações
novas e únicas que exigem do profissional reflexão e discernimento para que possa não só
compreender o problema como também organizar e esclarecer os objetivos almejados e os
meios a serem usados para atingi-los. (TARDIF, 2000, p. 5).
No caso do ensino da História existe uma especificidade inerente ao seu próprio campo,
sua escrita e sua constituição enquanto disciplina autônoma e, quanto a sua organização
como disciplina destinada a ser ministrada na escola. Dessa forma, o professor de História
terá que lidar com conhecimentos específicos da disciplina, os saberes curriculares (objetivos,
conteúdos, metodologia e materiais destinados ao ensino), os saberes pedagógicos (concepções
sobre a atividade educativa) e os saberes práticos da experiência.
Os mecanismos de produção de conhecimento histórico perpassam a prática do
historiador em sua “operação histórica” na assertiva cravada por De Certeau (1982), na escrita
da historiografia, sendo necessária, também, sua dessacralização e reconstrução. Cabe
ao professor no decorrer de sua aula discorrer o lugar de suas fontes, com a finalidade de
construir um conhecimento escolar e estabelecer as relações necessárias a esse circuito
de conhecimentos, da mesma forma que o historiador organiza sua carpintaria teórica na
exploração de evidências de um fato histórico.
Se as disciplinas escolares reorganizam o conhecimento científico em outras divisões,
concordamos com Chevallard (1991) quando indica o conhecimento escolar como dotado de
características e lógicas próprias3 no interior do sistema didático estabelecendo relações com
o saber de referência e que “[...] embora tenha sua origem no conhecimento científico ou
em outros saberes ou materiais culturais disponíveis, não é mera simplificação, rarefação ou
distorção deste conhecimento” (CHEVALLARD, 1991, p. 14 apud MONTEIRO, 2001, p. 23).
Nesta perspectiva, pensamos o espaço da escola como o lugar onde as relações entre os
saberes (docentes, dos alunos, oriundos da sociedade) circulam e tensionam frente aos novos
saberes, como também, diante da complexidade dos fenômenos educativos e das incógnitas
postas pelo cotidiano. No caso do professor de História essa responsabilidade é ainda
maior, pois, “[...] o objeto do ensino de história é constituído de tradições, idéias, símbolos e
representações que dão sentido às diferentes experiências históricas vividas pelos homens
nas diversas épocas” (FONSECA, 2003, p. 71).
Destacamos aqui, que o sistema de formação inicial de professores ganha novas
dimensões e adequações no decorrer dessa primeira década do século XXI, mas, mantém a
finalidade essencial do trabalho docente que consiste em garantir aos alunos acesso ao que
não é reiterativo na vida social.
O que leva, porém, o professor a realizar seu trabalho? Este motivo não é totalmente
subjetivo (interesse ou vocação), mas está relacionado à sua ação, captada por sua consciência
e interligada às condições materiais ou objetivas em que sua atividade se efetiva. Essas
condições referem-se, entre outros, aos recursos físicos das escolas e sua organização, aos
materiais didáticos, as possibilidades de trocas de experiência, estudo coletivo, à duração da
jornada de trabalho, ao tipo de contrato de trabalho.
Outros dados podem ser acrescentados a essa mistura: a mídia e suas ações e as
conseqüências para o estabelecimento de novos padrões cognitivos “[...] mudanças na forma
de pensar e relacionar saberes e raciocínios; ao considerar a complexidade podem promover
a experiência singular, valorizando a estética e o subjetivo” (ARRUDA, 2011, p. 135), tanto para
o ensino como para a formação inicial de professores. Sabemos que a formação da postura
Não fazendo parte do cotidiano dos cursos de formação inicial, de modo a sustentar
alternativas teórico-metodológicas em condições de produção adequadas, as tecnologias
não perdem o caráter de “novidade”. Mais ainda, a sua disponibilidade real, na maioria das
escolas, ainda constitui exceção e, via de regra, é acompanhada por instruções de uso
muito precisas (porque inflexíveis/fechadas, e não porque aperfeiçoadas/corretas), tanto
técnica quanto pedagogicamente. (BARRETO, 2002, p. 72).
A partir de meados da década de 1990 temos um conjunto de leis que intentam promover
reformas curriculares em todos os níveis, apontando rumos teóricos, metodológicos e
apresentando perfis de profissionais e alunos a serem alcançados.
A Lei nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional propõe referências
teóricas para todos os níveis, enquanto a Resolução CNE/CP nº1, de 18 de fevereiro 2002,
institui as diretrizes curriculares nacionais para a Formação de Professores da Educação
Básica, em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena; e a Resolução CNE/
CP nº 2, de 19 de fevereiro de 2002, institui a duração e a carga horária dos cursos de
licenciatura, de graduação plena, de Formação de Professores da Educação Básica, em
nível superior.
Temos também a Resolução CNE/CES nº 13, de 13 de março de 2002, que estabelece
as Diretrizes Curriculares para os cursos de História, sinalizando o ano de 2004 para as
adequações dos cursos de licenciaturas às mudanças curriculares, com acréscimos à carga
horária prática, outra concepção de escola como campo de estágio; a realização de estágio e
a efetivação de estágio supervisionado.
Um conjunto de fatores marcou o currículo de História na rede pública estadual do
Paraná. Em 2003, iniciou-se uma discussão coletiva envolvendo professores da rede estadual,
com o objetivo de elaborar novas Diretrizes Curriculares Estaduais para o ensino de História.
Não é possível falar de uma prática de estágio - não há nem uma prática idealizadora,
nem uma prática meramente instrumentalizadora - sem pensar nas questões relativas à
teoria. Nesse processo das práticas de estágio, concebemos o ensino de História como um
campo de produção de conhecimento tanto na área de Educação, como na área de História,
campo voltado para questões postas pela historiografia, pela esfera educacional e pelas demais
ciências sociais. Concebemos as atividades propostas pelo e durante o estágio supervisionado,
como um momento de integração entre teoria e prática e, neste processo, teoria e prática
constituem o núcleo articulador do currículo, permeando todas as disciplinas e fortalecendo
a escola como espaço dinâmico de circulação e produção de saberes.
Hoje os diversos aportes teórico-metodológicos das diferentes áreas das ciências humanas
nos ajudaram avançar na direção de novos conceitos tais como cultura escolar, saber escolar,
saber docente e, desde a década de 1990, intensificaram-se os estudos relativos à cognição
histórica. Nesta trajetória, a didática da história constrói o conceito de consciência histórica
definido por Rüsen (2006) enquanto categoria geral que abarca todas as formas de pensamento
histórico e não só as questões de ensino e aprendizado da história. Muitas pesquisas também
se voltam para o campo do simbólico, das representações, do discurso, trazendo abordagens
mais plurais na construção do conhecimento histórico e nas propostas teórico-metodológicas
elaboradas pelos licenciandos em suas atividades preparatórias para o estágio.
Com a ampliação do campo de estudo e de reflexão na formação do professor de História,
tornou-se fundamental que todos os licenciandos tenham clareza sobre a quais demandas
contemporâneas respondem quando ensinam história. Não é possível desconsiderar que
vivemos em uma sociedade saturada de imagens que são manipuladas intensivamente; que
jornais e revistas vendem às nossas ilusões objetos de consumo sem sentido e sem necessidade
interior, nos tornando muitas vezes impossibilitados de estabelecer relações significativas
com o mundo e com os outros. De acordo com Severino Antônio (2002):
Com essa abordagem, várias questões vinculadas a uma nova didática da História
são problematizadas e significadas na experiência do estágio: como posicionamos o ensino
da História nas práticas sociais e tendências culturais, trazidas pela modernidade, que
impedem relações significativas entre os acontecimentos, saberes e sensibilidades? Como
problematizamos as nossas práticas educacionais com uma noção mais ampla de sujeito
histórico entendido como racionalidade e sensibilidade?
Consideramos, portanto, que todo o processo de reflexão e de tessitura do tornar-
se professor deve ser vivido como experiência dotada de sentido - na concepção dada por
Larrosa (2002) - experiência tecida na relação entre conhecimento e vida humana, e ao modo
como os sentidos dados ao conhecimento vão sendo elaborados. Sentidos que permitem
revelar sujeitos concretos e singulares. Nas palavras do autor:
A prática não se restringe ao fazer, ela se constitui numa atividade de reflexão que enriquece
a teoria que lhe deu suporte. O estágio é um processo criador, de investigação, explicação,
interpretação e intervenção na realidade (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE PERNAMBUCO,
1989, p. 13 apud PIMENTA, 2012, p. 85).
Depoimento 1:
[...] Comecei meu trabalho de estágio no primeiro semestre com a matéria de Metodologia
e Prática de Ensino de História, através de atividades, [leitura de] textos que me ajudaram
Depoimento 2:
A experiência em sala de aula foi muito relevante para a nossa formação enquanto futuros
professores, pois entramos em contato direto com o universo escolar enfrentando,
mesmo que de forma reduzida, a rotina de estar em sala de aula. Vivemos a experiência
de observação, na qual conhecemos o espaço físico do colégio, como se dá a realidade do
aluno e o modo de inserção deste na escola. Também nos foi possível estabelecer contato
com outros professores da rede escolar. Durante a regência, enfrentamos vários desafios,
pois tivemos que preparar aula, dominar o assunto que iríamos aplicar e fazer um estudo
aprofundado do tema. Também tivemos que contornar diversas situações complicadas,
como falta de atenção dos alunos, desinteresse e problemas de disciplina [...]. Pelo fato
de o colégio ser de bairro periférico, nos foi possível notar uma realidade diferenciada
em relação aos colégios mais centrais. Logo, foi muito importante enquanto futuros
profissionais da educação esse momento de estágio, nos proporcionando um aprendizado
que veio a complementar as aulas e discussões teórico-metodológicas do curso. (ANA;
LARISSA, 2013).
Notas
1 [...] o processo de constituição do campo de formação de professores, com base em cinco critérios
propostos por Garcia (1999): existência de objeto próprio, metodologia específica, uma comunidade
de cientistas que define um código de comunicação próprio, integração dos participantes no
desenvolvimento da pesquisa e reconhecimento da formação de professores como um elemento
fundamental na qualidade da ação educativa, por parte dos administradores, políticos e pesquisadores.
(ANDRE, 2010, p. 174).
2 Educação para Todos, Plano Decenal, Parâmetros Curriculares Nacionais, diretrizes curriculares
nacionais para a educação básica, para a educação superior, para educação infantil, educação de jovens
e adultos, educação profissional e tecnológica, avaliação do SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica), Exame Nacional de Cursos (Provão), ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio),
descentralização, FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
de Valorização do Magistério), Lei da Autonomia Universitária, novos parâmetros para as IES, são
medidas que objetivam adequar o Brasil à nova ordem, bases para a reforma educativa que tem na
avaliação a chave-mestra que abre caminho para todas as políticas: de formação, de financiamento,
de descentralização e gestão de recursos. (FREITAS, 2002, p. 143).
3 A discussão sobre o termo “transposição didática” realizada por autores como Monteiro (2001) e Ciampi
(2005) apesar de pertinentes não serão aqui analisadas para não estender em demasia este texto.
a internet estava disponível a apenas 500 mil navegadores brasileiros, localizados, principalmente,
nas grandes universidades. Hoje, o que se vê é a ampliação do acesso à rede de jovens de diferentes
classes sociais, que transformam por completo as relações que estabeleciam entre si, com seus pais
e com a escola, por meio das redes sociais, dos microblogs e SMS. (ARRUDA, 2011, p. 132).
5A pesquisa de Carlos Augusto Lima Ferreira em 2004 aponta as tensões e os embates na formação de
professores de História e sua relação com as novas tecnologias nas escolas públicas e privadas da Bahia.
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SCHÖN, Donald A. The reflective practitioner. New York, Basic Books, 1982.
E-mail: [email protected]
Curricular Proposal of Santa Catarina:
Teaching of History, Memory, and Cultural Heritage
Abstract: We will address the historical aspects of the construction and changes
of the Curricular Proposal for Santa Catarina State’s Primary Education. This
proposal is the result of a collective process that started in 1988 with the
implementation of systematic study groups coordinated by the Ministry of
Education. The first version was presented in 1991 and the second in 1998. In
2012, the earlier documents were revised and new documents were published,
titled Pedagogical Books. This article describes the study carried out in order to
examine and discuss the official documents of curriculum policies for teaching
history in the Santa Catarina State Public School Network. At this time, we focus
on the memory and heritage topic. Methodologically, we work with document
review from different versions of the guiding documents for the teaching of
history, since they are treated as dated and contextualized documents.
Keywords: Memory; heritage; curricular proposal; History teaching.
236
Introdução
Das discussões realizadas entre 1988 e 1990 resultou um texto denso, publicado em 1991 pela
Imprensa Oficial do Estado, que contém os princípios filosóficos e os pressupostos teórico-
metodológicos da primeira versão da proposta. Das discussões realizadas entre 1995 e
1997 resultaram três cadernos, publicados em 1998 com os seguintes títulos: Disciplinas
curriculares da Educação Básica; Formação docente: magistério e Temas multidisciplinares.
237
PAIM, E.
Proposta curricular de Santa Catarina...
Das discussões realizadas entre 2000 e 2001 resultou mais um caderno, que foi publicado
em 2001 com o título Diretrizes 3 […] e contém a proposição de um conjunto de conceitos
essenciais dos quais, em cada disciplina, os alunos deverão se apropriar, ao longo das séries
e etapas da Educação Básica. Esse é único dos documentos que não discute abordagens
teóricas, tão-somente organiza uma orientação no âmbito dos conteúdos. Das discussões
realizadas entre 2003 e 2005 resultou o último caderno pedagógico, que foi publicado em
2005, com o título Estudos temáticos [...] e contém um conjunto de textos com abordagens
teórico metodológicas para as diferentes especificidades da Educação Básica e profissional.
(grifos do autor)
O filósofo Walter Benjamim, em seus diversos escritos, nos dá uma gama de ferramentas
para percebermos que a produção historiográfica e, por extensão, o ensino de História
é um campo de lutas, no qual diferentes concepções disputam espaço. Nessa perspectiva,
conhecendo as lutas do passado, entendemos o presente. Esse conhecer acontece pela
inversão de tempos, em que o ponto de partida são os agoras – dos problemas – buscando
dialogar com o passado.
A interface entre o patrimônio cultural e a construção de conhecimento histórico
educacional é um processo político de produção coletiva de significados, gestado por
subjetividades, intencionalidades e relações de poder. (PAIM, 2012).
Em boa parte do tempo, vivenciamos uma educação das sensibilidades (GALZERANI,
2002) que nos estimula a esquecer, apagar e silenciar as memórias e as histórias plurais, o que
significa excluir de nosso horizonte qualquer possibilidade de trazer para a seara da política de
preservação do patrimônio cultural e de construção do conhecimento histórico educacional
a compreensão que “[...] o campo patrimonial [...] é palco hoje de um combate desigual e
incerto, no qual, o poder dos indivíduos permanece grande e em que a ordem de um [sujeito...]
pode mudar o destino de um monumento ou de uma cidade antiga” (CHOAY, 2001, p. 213).
A emergência da noção de patrimônio como algo pertencente ao coletivo de uma
nação deu-se como uma extensão da construção do sentimento de nacionalidade. Dessa
forma, “não designa verdadeiramente um conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma
instância explicativa particular para pensar a articulação entre cultural, social e político”
(POULOT, 2009, p. 12). Ou ainda, “o patrimônio nacional, além de constituir uma referência
para a construção de uma identidade comum a um povo que compartilha o mesmo território
nacional estaria também referido ao que de melhor a humanidade produziu” (ABREU, 2009,
p. 36). Desse modo, o patrimônio foi entendido durante muito tempo como algo excepcional.
Portanto, estava distante das pessoas comuns, como explicitou Marcos Silva (1995, p. 49) ao
problematizar como as elites brasileiras se referem às moradias populares, ignorando que
“há uma materialidade dessas edificações que funciona, então, como justificativa para a
desqualificação social de seus habitantes e delas mesmas”.
A Constituição brasileira de 1988, integrada às problematizações mundiais, ampliou em
muito a noção de patrimônio, incorporando a perspectiva de bem cultural, pois “o bem cultural
tem matrizes no universo dos sentidos, da percepção e da cognição, dos valores, da memória e
das identidades, das ideologias, das expectativas, mentalidades, etc.” (MENESES, 2006, p. 37).
Muitas dessas mudanças aconteceram em virtude de os estudos históricos passarem a trazer
no seu bojo preocupações com as questões culturais.
Nesse cenário, o patrimônio deixou de ser algo com o foco na construção identitária da
nação e passou a configurar-se “como uma estratégia de construção identitária por meio de
cenários e simulacros” (POSSAMAI, 2013, p. 92), tendo como cenário privilegiado a cidade. Ou,
ainda, como espaço para a “consolidação das identidades regionais mesmo frente a cenário de
globalização” (ACEVEDO, 2013, p. 184). Portanto, “[...] passamos hoje de um patrimônio nacional
a um patrimônio identitário, de um patrimônio herdado a um reivindicado, de patrimônio
visível a um patrimônio invisível, de um patrimônio ligado ao Estado a um patrimônio social,
étnico ou comunitário” (GIL, 2013, p. 160).
A ampliação também acontece na definição de patrimônio como tudo o que tem um
sentido para uma determinada pessoa ou grupo, isto é, patrimônio passa a ser todo bem “[...] do
mais modesto ao mais notável, tudo o que tem um sentido para nós, o que herdamos, criamos,
transformamos e transmitimos é o patrimônio tecido de nossa vida, um componente de nossa
personalidade” (VARINE, 2012, p. 43). Dentre as muitas possibilidades de caracterização, Poulot
(2009, p. 15) argumenta que “o patrimônio elabora-se em cada instante, com base na soma de
seus objetos, na configuração de suas afinidades e na definição de seus horizontes”.
O patrimônio está intimamente relacionado às memórias. Conforme o movimento das
memórias, o movimento do patrimônio acontece. Esse é “menos um conteúdo que uma prática
da memória obedecendo a um projeto de afirmação de si mesma. Este projeto está destinado
a permanecer sempre inacabado; ele pode mesmo se esgotar na esperança de chegar a uma
memória total” (CANDAU, 2011, p. 163).
Nos últimos tempos torna-se cada vez mais evidente a necessidade de considerarmos
a dimensão imaterial do patrimônio. Para tanto, foram criadas categorias para classificar
além dos bens de excepcional valor cultural aqueles aparentemente menores, como festas,
espetáculos, alimentos, lendas, mitos, ritos, saberes e técnicas entre uma infinidade de
outros (PACHECO, 2012; FONSECA, 2009). Portanto, ao considerarmos a dimensão imaterial
ou intangível do patrimônio, passamos a trabalhar numa perspectiva em que a noção de
patrimônio a ser preservado, como afirma Chagas (2006, p. 99), será não apenas os objetos,
mas “seus sentidos e significados”.
Lembro aos leitores que foram produzidas três versões da proposta em 1991, 1998 e
2012. Na versão de 1991, o específico para o ensino de História é apresentada no interior do
documento da página 24 a 30 com textos distribuídos em três colunas, as letras possuem
fonte dez. Ele é composto por um título geral “História” e, logo na sequência, o título em letras
também em fonte maior negritada: “Conteúdo Programático de História para a Educação Pré-
Escolar”3, com breve texto e listagem do que deverá ser trabalhado em tal nível de ensino.
Na segunda coluna da página 24 está o título “Proposta Preliminar de Conteúdos
Essenciais de História” – 1º Grau, composto pela Concepção de História; Conteúdo
Programático de História 1º grau, quando então passa a elencar o que deverá ser trabalhado
em cada uma das séries da primeira à oitava, com indicação de quatro temas e subtemas para
a 1ª e 2ª séries. A partir da 3ª série há a apresentação de uma unidade anual com quatro temas
e subtemas. Após a descrição do que trabalhar em cada série é disposto os Encaminhamentos
Metodológicos para cada tema em sua correspondente série. A coluna finaliza as orientações
para o primeiro grau, elencando uma bibliografia básica para o grau de ensino.
A página 27 inicia o Programa Geral de História para 2º Grau. Apresenta: História do
Capitalismo, com um título geral, e quatro subtítulos para uma das três séries. Logo a seguir,
vem o título Conteúdos Programáticos de História – 2º grau, com apresentação de unidade
anual, temas, subtemas e alguns conteúdos para cada uma das séries. Na sequência, está
exposto o Encaminhamento Metodológico – 2º grau, para cada série. Logo após, há o título
“Como Trabalhar a Proposta?”, indicando o que os professores devem fazer. E, ainda, traz um
texto: “Proposta de Avaliação em História”, com lista de bibliografia básica para o 2º grau.
Finalizando o texto, há o Grupo de Trabalho, composto por três nomes indicados como
SEE/CODEN e 19 nomes de representantes das Unidades de Coordenadorias Regionais
(UCRES). Indica ainda a consultoria de Judite Maria Barbosa Trindade, Luis Felipe Falcão,
Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt e Maria Cândida Delgado Reis.
Em relação ao conteúdo para a pré-escola, a PC/SC defende que o ensino de História
deverá possibilitar elementos para a compreensão e análise da realidade, pressupondo que
a criança desenvolve as noções de “(...) tempo, de espaço, de produção, de necessidades e
transformação” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991, p. 24). Ou ainda que “(...) as relações entre
homem e os elementos da natureza, dos homens com outros homens através do trabalho, bem
como as transformações, ocorrem no tempo e no espaço” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991,
p. 24). Sugere ainda que seja necessário considerar a própria criança como ponto de referência
para o desenvolvimento dessas noções, as quais deverão se concretizar fundamentando-se em
quatro eixos temáticos: relações de trabalho, relações com o meio ambiente, relações individuais
e coletivas, relações com o cotidiano. Ou ainda, “(...) resgatar a História Ciência, com um método
e objeto próprio de estudo. O ensino desta História Científica requer um modo específico e uma
nova organização dos conteúdos” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991, p. 24).
No texto, faz-se um discurso apologético do novo, de fazer um novo ensino, uma nova
História4. Cabe perguntar se tal aposta na “novidade” não estava desqualificando o que se
realizava nas escolas? Com o intuito de negar o que já vinha sendo efetivado, afirma-se na
proposta um novo método que,
Determina um caminho renovado para a produção, e a transmissão do conhecimento
histórico significa um relacionamento crítico com a bibliografia, com o livro didático e com as
fontes de obtenção do conhecimento. Com respeito à transmissão do ensino, estabelece uma
nova relação com a organização curricular, com os conteúdos e com o educando. (ESTADO
DE SANTA CATARINA, 1991, p. 24). Segundo os autores da proposta, seria a nova história
“preocupada com outros agentes, com outros personagens, buscando uma relação diferenciada
com a memória coletiva, uma história na qual assumem papel de destaque o homem comum,
o trabalhador anônimo, as estruturas econômicas e sociais, a vida cotidiana” (ESTADO DE
SANTA CATARINA, 1991, p. 24). São conceituadores dessa nova história os objetos, temas e
métodos, com base na trilogia organizada por Jacques Le Goff, evidenciando-se vinculação
estreita com a Escola dos Analles.
Apresenta-se uma série de argumentos questionando a suposta neutralidade da História,
sobre o que deve ser ensinado, como são selecionados os conteúdos, dentre outros aspectos.
Os professores são convocados a se posicionarem criticamente em relação aos conteúdos,
que devem ser significativos, ou seja, “conteúdos que se vinculem direta ou indiretamente
com o entendimento do aluno e sua vida; o ser brasileiro, o ser rotulado de subdesenvolvido,
o ser morador de uma favela ou um bairro rico, isto é, o entendimento de sua posição na
sociedade, sua vida e sua cultura.” (ESTADO DO RIO DE JANEIRO apud ESTADO DE SANTA
CATARINA, 1991, p. 25).
Para a 6ª série, após discorrer porque não é privilegiado estudo do Brasil República, o
documento justifica que o trabalho é proposto “[...] em três momentos, a saber: a modernização
e crises decorrentes de sua implantação, a análise da sociedade brasileira na conjuntura
da sociedade do capitalismo liberal e, finalmente, questões fundamentais que compõem a
contemporaneidade da sociedade brasileira” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991, p. 27).
O distanciamento dos conteúdos no que diz respeito aos alunos acentua-se quando são
propostos conteúdos de História da Antiguidade e Medievo, para a 7ª série, justificando que
Deve levar o aluno a compreensão de que as mudanças na sociedade não obedecem a uma
linha evolutiva e de continuidade, mas supõem rupturas entre formas de compreensão,
de mundo, relações de poder e formas de ordenação da vida material. São introduzidos
Prosseguindo, apresenta que para a oitava série o trabalho deve ser de forma que:
Para o segundo grau, são postos alguns elementos levemente diferenciados, apontando
que “alunos e professores são sujeitos da História”. A fim de que ocorra a concretude, o ensino
de História deverá ter como eixo norteador “a construção da sociedade burguesa desde
sua emergência até o momento da estruturação de uma nova ordem econômica mundial”
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991, p. 28). Merece destaque a forma como são apresentadas
as orientações metodológicas específicas para a terceira série do segundo grau: “a reflexão
sobre o mundo contemporâneo na visão crítica da proposta deve privilegiar temas tais como:
crescimento e condições de vida da população, ecologia, ameaça nuclear e movimentos
pacifistas. Temas [...] que contribuem para a inserção do aluno na discussão contemporânea,
ou seja, o momento histórico atual” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1991, p. 29).
Após a exposição geral do que e de como cada conteúdo deve ser trabalhado em cada
série, é apresentada a seguinte questão: Como Trabalhar a Proposta? Para tanto são expostas
uma série de justificativas, defendendo que “não privilegia nenhuma das sequências tradicionais
[...] A História é tratada como um todo que permite recortes, destacando, por exemplo, em
determinada conjuntura, momentos significativos de uma determinada realidade” (ESTADO
DE SANTA CATARINA, 1991, p. 29).
A partir de 1991, assumiu o governo do estado um grupo ligado aos partidos conservadores
que, embora afirmasse que manteria o processo de construção da proposta curricular, pouco
fez para tal. As condições mínimas para a efetiva implementação da proposta não existiram.
Os cursos foram poucos, os debates nas escolas foram morrendo lentamente, os grupos de
estudo, pela correria do dia a dia das escolas, não continuaram. A proposta estava mantida,
mas as condições para sua efetivação não foram concretizadas.
Em 1995, o grupo que construiu a PC/SC chegou novamente ao poder estadual e então se
retomaram as tratativas para sua reestruturação e aprofundamento. O grupo político que havia
iniciado a discussão e a sistematização da primeira versão da proposta reiniciou a construção
de uma segunda versão da proposta. Naquele momento, procuraram envolver de maneira mais
sistemática um grupo de professores. Dessa forma, instituiu-se um grupo multidisciplinar
envolvendo “cerca de 200 professores do quadro das escolas púbicas, que foram escolhidos
em virtude da formação acadêmica e da experiência acumulada. [...] Esse processo, de alguma
forma, envolveu cerca de 40.000 professores, os quais tiveram participação indireta, por via
da capacitação, dos encontros regionais e das discussões realizadas no interior das próprias
escolas” (THIESEN, 2007, p. 48).
O importante é o enfoque que é dado para as disciplinas visto que, é através deste que
os professores poderão efetivamente melhorar a qualidade da relação pedagógica
estabelecida com seus alunos. [...] recorrendo apenas aos conteúdos explicitados, sem o
recurso aos textos que tratam da abordagem teórica acerca desses conteúdos, o professor
nada encontrará de novo que lhe auxilie a melhorar a qualidade de seu trabalho. (ESTADO
DE SANTA CATARINA, 1998, p. 8).
Sendo assim, a escola estará se abrindo para que os professores pensem outras
possibilidades de seleção de conteúdos, de temáticas que valorizem aqueles sujeitos que até
então foram relegados pela história. Os saberes do aluno são tomados como ponto de partida
para a construção de outros conhecimentos. “numa perspectiva universal significa saber
lidar com a realidade proximal dos alunos [...] mas, expliquem ao mesmo tempo o mundo.
Exemplificando: a história da vida individual de cada aluno pode adquirir um caráter universal,
se for compreendida a carga da história universal que determina essa história individual”
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 1998, p. 10).
No tocante à disciplina História, os avanços foram significativos em relação à versão
anterior. É proposto um trabalho conjunto de todos os membros da escola, partindo-
se de projetos e temas que sejam significativos para os alunos nos quais “os professores
identifiquem os conhecimentos que os alunos trazem, determinadas informações históricas,
temas e problemas. Desse conhecimento dos alunos, o professor organizará seu projeto de
curso visando a alterar, modificar e completar os conhecimentos que ele julgue necessário”
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 1998, p. 153).
Com o intuito de atender aos objetivos propostos na concepção norteadora do ensino
de História, adaptou-se a proposta para permitir o “entendimento da sociedade em suas
diversidades histórico-culturais, cujas singularidades devem ser referenciadas tanto no
âmbito das dimensões macroestruturais, quanto cotidianas” (ESTADO DE SANTA CATARINA,
1998, p. 153).
Já para a terceira e a quarta série primária, expõe que deve ser trabalhado fixando-se na
“recuperação histórica do Município e do Estado no presente e que as dimensões pretéritas
sejam referidas por estudos do meio, do patrimônio cultural e de grupos étnico-culturais,
através da história oral, da fotografia, ou mesmo de documentos escritos (jornais, revistas e
documentos oficiais).” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1998, p. 158).
No que se refere às séries finais do primeiro grau, explicita-se a linearidade e o
positivismo da proposta anterior ao apresentar um rol de conteúdos e, para reparar o equívoco
cometido, propõe “um redimensionamento radical, na abordagem eurocêntrica e colonizada
desta dimensão. Desse modo, consideramos que as abordagens da história europeia e mundial
devam ser referidas para possibilitar o entendimento das relações Brasil e América no mundo
e não o inverso” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1998, p. 158).
Como a proposta encaminha-se para uma perspectiva metodológica calcada em nuances
de uma história temática, apresenta exemplos de alguns temas que poderão ser trabalhados em
cada uma das séries. Ou seja, na 5ª série, “Diversidade étnico-cultural de Santa Catarina”; na 6ª
série sugere como tema central a “Ocupação territorial e os vários conflitos fundiários”; na 7ª
propõe o tema “Cultura” e, finalmente, para a 8ª série, o tema das “Relações sociais de produção”.
Destacamos que naquele momento iniciaram ou se intensificaram as perspectivas que
passaram a enfatizar as questões da memória. Quer pela centralidade nas questões da história
local ou pelo incentivo ao desenvolvimento nas escolas de atividades que possibilitassem o
uso de depoimentos orais. Podemos inferir que embora o foco fosse a relação entre história
local, memória e depoimentos orais, a problemática do patrimônio, especialmente o imaterial,
acabava aflorando na condução das atividades pelos professores. Sem ter presente o sentido
e significado, a categoria patrimônio acabava participando de suas atividades, especialmente
em sua dimensão imaterial.
Para o ensino médio, apresenta como tema inicial “A nova ordem mundial do ponto
de vista do Brasil e da América Latina.”, especialmente a geopolítica da globalização em seus
níveis político e cultural (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1998, p. 159).
uma semana. Nesse processo, cuja data não é informada no texto, professores, consultor e
tutores propuseram leituras e tarefas a serem realizadas tanto no curso quanto fora dele.
Outro encontro foi realizado – dois meses depois do primeiro – e nele foram apresentadas as
tarefas anteriormente propostas. Foram formados cinco grupos que sistematizaram o material
e propuseram a organização apresentada no caderno.
O conteúdo proposto nesse processo de trabalho foi de modo geral mantido. Para a
publicação, foram apenas inseridas ilustrações, lista com material de apoio e bibliografia
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 2012, p. 16). O único item que sofreu uma intervenção maior
foi à unidade destinada ao Conteúdo Programático. Hentz destaca que a ideia inicial e proposta
aos professores era partir de quatro temas: globalização, geração de riqueza, relações de
poder e o fenômeno religioso. A proposta era começar pela temática e por intermédio dela
trazer os conteúdos aos quais se relacionavam. Segundo o consultor, houve uma “rejeição”
da parte dos professores que participavam da discussão e eles consideraram importante
manter a linearidade temporal que o esquema proposto extrapolava. Desse modo, no Caderno
Pedagógico de História, encontramos na Unidade V – destinada aos Conteúdos Programáticos
– uma lista de 28 grandes tópicos que se iniciam com Pré-História e terminam com Tendência
do Mundo Atual.
A primeira unidade do caderno traz o título “Para onde aponta a Proposta Curricular
de Santa Catarina” e procura estabelecer um debate com o documento referência. Nesse
sentido, a versão de 1998 é utilizada para subsidiar a metodologia de trabalho dos professores
de História.
A avaliação é apresentada a partir da leitura da PC/SC. No trecho citado da versão
anterior, podemos ler que a avaliação deve ser um “instrumento auxiliar do processo de
ensino-aprendizagem” e que pode aferir tanto o início quanto o fim da aprendizagem. No
mesmo caminho, fala-se na seleção dos conteúdos. Ainda realizando citações do que aparece
na Proposta, é escrito que “nem sempre é necessário passar toda a matéria, mas fazer os
recortes necessários para a compreensão necessária do nosso tempo” (ESTADO DE SANTA
CATARINA, 2012, p. 21). Ainda nessa primeira unidade, são citadas as categorias apresentadas
no documento de 1998 e que os autores entendem que “devem estar presentes em cada
projeto de estudo ou pesquisa, bem como na abordagem de cada processo histórico junto aos
alunos para que sua aprendizagem possa se dar de uma forma complexa” (ESTADO DE SANTA
CATARINA, 2012, p. 22). Essas categorias são as seguintes: tempo, espaço, relações sociais,
relações de produção, cotidiano, memória e identidade.
“Definindo uma concepção de História” constitui-se a Unidade II. Os autores partem
dos seguintes entendimentos: “que a história é um dos discursos acerca do passado” e que
“a história é uma reconstrução do passado que depende da opção teórico-metodológica
do historiador, de seu posicionamento político-ideológico, posição social, etc. (ESTADO DE
SANTA CATARINA, 2012, p. 25). Tais conceituações são mobilizadas para estabelecer alguns
pressupostos para a construção do conhecimento histórico e igualmente para que questões
como identidade sejam problematizadas em sala de aula. Finalizando a unidade em foco, os
autores concluem que é importante
A história tem por objetivo proporcionar ao aluno uma determinada leitura de mundo,
relacionando presente, passado, presente. O historiador vai ao passado para coletar
aquilo que lhe interessa e volta para o presente, apresentando um paralelo entre ambos
que lhe permite problematizar uma realidade específica. (ESTADO DE SANTA CATARINA,
2012, p. 46).
A unidade traz também um plano de aula cuja unidade de ensino é: “Por que e para que
estudar história e seus conceitos?”; um texto complementar: “Por que um aluno do terceiro
milênio necessita aprender história?”; e uma sugestão de atividade.
A Unidade V do caderno é destinada aos “Conteúdos programáticos”. O texto informa que
as propostas de conteúdos apresentadas foram elaboradas “à luz” da Proposta Curricular de Santa
Catarina e que também houve a inserção de temas da atualidade. Uma das preocupações iniciais
dos autores é afirmar que “esta proposta seja interpretada como uma possibilidade de construção
do conhecimento histórico e não um modelo a ser seguido” (ESTADO DE SANTA CATARINA,
2012, p. 49). Cabe destacar quais pressupostos e ideias alinhavam a escolha desses conteúdos: são
utilizadas diferentes correntes historiográficas (seguindo o que aponta a PC/SC, materialismo
histórico); os conceitos mobilizados para trabalhar os diferentes conteúdos são: relações de poder,
relações sociais, relações de produção, gênero, etnicidade, cotidiano, imaginário, identidade
(Estado de Santa Catarina, 2012: 49). Os conteúdos são apresentados em 28 quadros divididos em
três itens: o tema (“onde são sugeridas situações vivenciadas na realidade social atual para que
possam ser problematizadas em relação a outras realidades temporais e espaciais”); a abordagem
teórica (“conceitos a serem trabalhados na temática proposta”) e, finalmente, os conteúdos.
A sexta e última unidade é destinada à sugestão de Planos de Aula. De acordo com
os autores, o objetivo não é trazer modelos, mas sim que eles sejam “demonstração de
possibilidades e como orientações possíveis para os professores que querem inovar sua
prática pedagógica” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2012, p. 64).
Nesses anos todos de discussões sobre a PC/SC, verificamos que houve uma série
de mudanças, apesar de todos os obstáculos colocados pela SEC, quer quanto às condições
de trabalho ou quanto às condições propiciadas para que os professores entendessem
e desenvolvessem o proposto. Por outro lado, há que se considerar a descontinuidade no
processo de estudos, aprofundamento e compreensão do que realmente foi indicado, pois, os
professores, em suas condições “normais” de trabalho, conseguiram viabilizar parcialmente a
proposta na forma de experiências pontuais.
Nas análises documentais da proposta curricular de Santa Catarina podemos perceber
certo distanciamento do que vem sendo preconizado em diferentes espaços relativo às
relações entre ensino de História, memória e patrimônio. Pois, são esparsas as referências
diretas à memória.
Na versão de 1998, no tópico categorias fundamentais da história apresenta breves
considerações sobre memória e identidade. É um texto de pouco mais de uma página em que
conceitua memória e identidade.
Na bibliografia apresentada para os fundamentos teóricos e metodológicos, há quatro
produções que tratam do tema memória. Os livros Memória e sociedade: lembrança de velhos,
de Ecléa Bosi; História/Memória, de Jacques Le Goff; e História oral e memória, de Antonio
Torres Montenegro; e o artigo História Cativa da Memória, de Ulpiano Bezerra de Menezes.
O texto conceitual sobre memória e identidade expressa que:
A memória é um atributo pessoal e absoluto. Ela indica como o homem se relaciona com o
passado e quais os elementos significativos deste passado. Ela indica níveis de comparação,
No Caderno Pedagógico de História (2012), na unidade I com o título “Para onde aponta
a proposta curricular de Santa Catarina”, são reapresentadas as formulações sobre memória já
apresentadas na PC/SC versão de 1998. A exceção é a introdução na qual o consultor afirma
que “vivemos um tempo em que a memória histórica está sendo perigosamente esquecida
pela população, principalmente pelos mais jovens” (HENTZ, 2012, p. 9).
Na página seguinte, defende que a perda da memória histórica comporta vantagens
para alguns e desvantagens para outros. Problematiza a não utilização do sobrenome pelos
jovens na contemporaneidade destacando que “[...] a omissão dos sobrenomes como a ponta
de um iceberg de processo deliberado de destruição da memória histórica nas gerações de
nosso tempo, para que elas se insiram sem dor e sem revolta num processo de destruição
de direitos e de conquistas dos seus antepassados, e para que aceitem esse processo sendo
totalmente normal e natural”.
Após a introdução, não há mais qualquer menção direta à memória ou ao trabalho
com os lugares de memória (NORA, 1993), na relação com a História. Apenas na unidade VI
Sugestão de Planos de Aula, na página 64, há um exemplo de trabalho tangenciado pelas
questões da memória. Assim, em Choques culturais na América Colonial através do filme
“A Missão” e os conflitos entre os Xokleng e os bugreiros na região de Águas Mornas – um
estudo comparativo, na problematização do tema, menciona-se que o assunto está vinculado
à memória e à história local.
Na estratégia de ação, afirma que “ao valorizar a memória local, através de depoimentos
de pessoas idosas, pretendemos levar os alunos a perceber que eles têm coisas importantes
para nos dizer. Pela mediação do professor, a memória dessas pessoas transforma-se em
possibilidade de conhecimento histórico” (NORA, 1993, p. 65). Um dos objetivos propõe
“investigar como a memória local conserva a lembrança destes conflitos” (NORA, 1993, p. 66).
Já em relação às questões do patrimônio cultural não há alusão em nenhuma das versões
da proposta curricular de SC, quer seja nos documentos, nos textos, ou nas orientações
metodológicas ou exemplos de atividades a ser desenvolvidas pelos professores.
Podemos levantar possíveis respostas para o patrimônio cultural não ser contemplado
nos documentos norteadores do ensino de História. Uma delas é que talvez o não tratamento
de forma direta das temáticas relativas ao patrimônio cultural ainda não esteja presente
na própria formação dos consultores da Proposta Curricular de Santa Catarina em suas
diferentes versões. Nesse sentido, tomamos como exemplo que os consultores da versão de
2012 formados na Universidade Federal de Santa Catarina provavelmente não tiveram em sua
formação disciplinas específicas que abordassem o patrimônio, pois até a matriz curricular do
curso de História em vigência não são contempladas em disciplinas as problemáticas em foco.
O que existe no referido curso são algumas discussões pontuais a partir de um laboratório o
Laboratório de Memória, Acervos e Patrimônio (LAMAP)10 e o trabalho de duas professoras
vinculadas a ele e algumas atividades relacionadas aos estágios que alguns professores
vêm provocando a discussão das temáticas relativas ao patrimônio cultural. Portanto, a
circularidade de ideias ainda é pequena e se a propria universidade recentemente despertou
para a problemática do patrimônio cultural as discussões na rede pública de ensino também
são iniciais, pois a rede pública é composta de professores oriundos das universidades.
Considerações finais
Tenho presente que não é a listagem ou definição de uma temática nos documentos
oficiais ou a existência de uma disciplina nos cursos de graduação que garantirá o efetivo
trabalho na escola com os alunos. Em tese, considera-se pelos documentos oficiais analisados
até este momento que as temáticas memória e patrimônio pouco chegam às salas de aula da
rede estadual do estado de Santa Catarina.
Diante do breve tratamento da memória ou do não tratamento direto da temática patrimônio
cultural, evidencia-se que há um longo caminho a ser percorrido na construção de relações
entre ensino de história, memória e patrimônio na rede pública estadual de Santa Catarina,
especialmente, se levarmos em consideração as diretrizes oficiais para a Educação Básica.
Por outro lado, em contatos informais nos estágios, cursos, palestras, dentre outros,
constata-se que muitos professores desenvolvem experiências de ensino relativas às
questões da memória e do patrimônio. Portanto, a julgar pela análise desse documento
em suas diferentes versões, a busca de informações diretamente com os professores será
fundamental para registrarmos as experiências realizadas no cotidiano das escolas. Para que
então possamos registar as experiências que efetivamente acontecem nas escolas para além
ou aquém do que determinam as proposições oficiais.
Como pontuei durante o artigo, ele é o resultado de um estudo inicial no qual analisamos
apenas um documento a Proposta Curricular de Santa Catarina em suas três versões 1991, 1998
e 2012. O estudo prevê analise de outros documentos, como por exemplo, Projeto Político
Pedagógico de Escolas, Planos de Ensino e entrevistas com professores para buscar o que
efetivamente acontece nas escolas no tocante a memórias e patrimônios culturais.
Notas
na memória dos professores” financiado pelo CNPq na Chamada 43/2013 - Ciências Humanas,
Sociais e Sociais Aplicadas.
Essas mudanças também vão sendo percebidas na perspectiva teórica presente na organização
das equipes de consultores contratados para acompanhar e conduzir o trabalho de produção dos
professores das escolas que compuseram a equipe nos três momentos.
3Na época da publicação da primeira versão, 1991, usava-se a nomenclatura “pré-escolar” para o que
corresponde hoje à Educação Infantil. Da mesma forma, a denominação “série” era usada para os
anos finais do Primeiro Grau, hoje Ensino Fundamental e, ainda, Segundo Grau para o Ensino Médio.
Em nossa análise seguiremos a nomenclatura da época.
4 Aqui, lemos a referência como sendo relativa às concepções de História Social e História Cultural,
que no início dos anos 1980 após a Ditadura Civil-Militar, vinham se colocando nas universidades
brasileiras como algo novo. Podemos inferir que essa hipótese é verdadeira se considerarmos que
dos quatro consultores indicados no texto, pelo menos três eram vinculados à Universidade Federal
do Paraná (Judite Trindade e Maria Auxiliadora Schmidt) e Universidade do Estado de Santa Catarina
(Luis Felipe Falcão). A vinculação dos consultores não é explicitada no texto, essa informação deve-se
ao conhecimento pessoal dos referidos professores.
6A concepção de resgate do passado ainda estava muito presente. Mais uma vez, “O texto
metodológico” está desvinculado da fundamentação teórica proposta.
7 Naquele momento, os cursos eram oferecidos em módulos de 40 horas. Como havia concluído
o mestrado e escrito a dissertação “Fala Professor (a): o ensino de História em Chapecó (1970-
1990)”, tratando de temática relativa ao ensino de História, fui convidado pela 11ª Unidade de
Coordenadoria Regional de Educação com sede em Chapecó para trabalhar com vários grupos de
professores de História.
9 Esses professores, consultores ao que tudo indica, foram graduados e defenderam teses em um
momento posterior aos trabalhos da primeira versão da Proposta. Portanto, pelo menos em tese,
experenciaram em seus estudos aquilo que em 1991 foi anunciado como sendo o novo ensino de
História calcado na Escola dos Analles e na História Social Inglesa. Sabe-se que Evandro André de
Souza era graduando da UFSC enquanto a proposta chegava até as escolas e defendeu mestrado em
2000 pela mesma universidade. Enquanto Paulo Hentz cursou Mestrado e Doutorado em Educação
na UFSC, tendo como objeto de estudo a Proposta Curricular de Santa Catarina. Paulo Rogério
Melo de Oliveira possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (1993),
mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996) e doutorado em História
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
10 O LAMAP foi criado tendo como objetivos: criar um espaço acadêmico interdisciplinar estudo,
discussão e pesquisa que promova a interseção entre memória, patrimônio e acervos; promover a
interelação entre pesquisa, ensino e extensão por meio do diálogo interdisciplinar entre professores
e estudantes de graduação e pós-graduação em áreas como História, Pedagogia, Museologia,
Arquivologia e Antropologia; colaborar para a consolidação das temáticas relacionadas ao patrimônio
na Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências
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Adriana Fraga da; GASPAROTTO, Alessandra; AL-ALAM, Caiuá Cardoso; FERRER, Everton de Oliveira;
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E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
May God Make You Black: Identity and Feelings
in the Music of Itamar Assumpção.
Abstract: This paper aims to reflect on the musical work, the identity and the
sense of belonging present in the lyrics of the songs of singer and composer
Itamar Assumpcão. Artist of Brazilian popular music that emerged in the 1970s,
he produced from his immense creativity by developing works that reflect on
his view over his context, the human and marginal conditions, sometimes
uncomfortable, sometimes assumed. This situation regarded both his social and
ethnic origin and his refusal to the dictates of the music industry. Connected to
multiple independent artists of Brazilian popular music, he eventually died when
he was only 53 years old (1949-2003).
Resumen: Este texto tiene como objetivo reflexionar sobre el trabajo musical,
la identidad y el sentimiento de pertenencia presentes en las letras de las
canciones del cantante y compositor Itamar Assumpção, artista de la Música
Popular Brasileña que surgió en los años 1970. Él produjo a partir de su inmensa
creatividad, que refleja su mirada sobre su contexto, la condición humana y la
condición marginal, a veces incómodo, a veces asumida. Esta situación se refería
tanto a su origen étnico social como su postura contraria a los dictámenes de
la industria de la música. Conectado a múltiples artistas independientes de la
música popular brasileña, murió de forma precoz a los 53 años (1949-2003).
258
Introdução
Paul Gilroy (2001) foi um dos principais intelectuais que deu à música o reconhecimento
de característica fundamental e simbólica da identidade negra. Pensada a partir do conceito
da diáspora atlântica, ela acompanhou os mais diversos contextos da experiência afro-
americana na qual se criaram as mais diferentes formas. A música representou o discurso da
memória das sociedades escravas e pós-emancipadas e expressou o processo de construção
e reconstrução das identidades pós-escravidão. Em suas palavras:
Através de uma discussão da música e das relações sociais que a acompanham, desejo
esclarecer alguns atributos distintivos das formas culturais negras que são, a um só tempo,
modernas e modernistas. São modernas porque têm sido marcadas por suas origens
híbridas e crioulas no Ocidente; porque têm se empenhado em fugir ao seu status de
mercadorias e da posição determinada pelo mesmo interior das indústrias culturais; e
porque são produzidas por artistas cujo entendimento de sua própria posição em relação
ao grupo racial e do papel da arte na mediação entre criatividade individual e a dinâmica
social é moldado por um sentido da prática artística com um domínio autônomo, relutante
ou voluntariamente divorciado da experiência da vida cotidiana. (GILROY, 2001, p. 159).
Assim, ela é um discurso identificador, mas também universal porque alcança a todos e
foi a expressão de comunicação possível em um mundo onde a alfabetização era proibida ou
privilégio de poucos. Mas este discurso também exige sensibilidade e talento e tais qualidades
se assentam claramente ao refletirmos sobre o trabalho de Itamar Assumpção. Bisneto de
escravos angolanos Francisco José Itamar de Assumpção nasceu na pacata cidade de Tietê
(SP), no dia 13 de setembro de 1949 e passou boa parte de sua infância ouvindo os tambores
dos terreiros de candomblé no quintal de sua casa. No começo da adolescência, aos 12 anos,
mudou-se para Arapongas (PR) onde, sob um esforço em que negava seus reais talentos, cursou
até o segundo ano de um curso técnico de contabilidade. Abandonou os estudos e passou a
se dedicar ao teatro e à música em Londrina (PR) – ocasião em que conheceu seu amigo e
parceiro em diversas criações musicais, Arrigo Barnabé. Observa-se que a mescla cultural
sempre esteve presente em sua vida e sua apurada qualidade musical o levou a traduzir suas
raízes na sua obra.
Violonista e baixista autodidata, transferiu-se em 1973 para São Paulo, com o objetivo
de se tornar músico profissional, mas sem grandes oportunidades, vive de trabalhos eventuais
na noite paulistana. Em 1975, ganhou um Festival de Música em Campinas (SP), com “Luzia”,
canção que já mostrava sinais da criatividade rítmica e poética do autor. A partir de 1979, com
a sua própria banda, Isca de Polícia, passou a marcar presença no cenário paulistano com
sua música que trazia elementos do rock, reggae, samba, funk e Música Popular Brasileira
(MPB), combinada com letras que misturavam crítica social, sátira e boa poesia. Destacou-se,
juntamente com outros novos músicos e grupos, como Arrigo Barnabé, Rumo, Premeditando
o Breque e Língua de Trapo, entre outros, em shows no Teatro com o grupo Lira Paulistana,
259
SILVA, L.; SILVA, W.
Deus te preteje: a identidade e sentimento ...
Sou compositor de música popular, mas a nossa música não atingiu a maioria, as pessoas
não conhecem a própria história.” Sentir-se livre para criar, compor e tocar é fundamental
para Itamar Assumpção. “Conheço Cartola, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga, mas fazer
música é uma coisa sempre nova.
É na forma de long plays ou LPs independentes que Itamar Assumpção lança seus
três primeiros trabalhos: “Beleléuleléu eu” (1980), “As Próprias Custas S.A.” (1983) e “Sampa
Midnight” (1986), nos quais o autor expõe sua criatividade sonora e poética, em um caminho
que o distancia do apelo comercial e do sucesso fácil e imediato. As qualidades estéticas de
seu trabalho, presentes desde o início de sua obra, podem ser comprovadas pelos prêmios
conquistados, como Revelação do Ano, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte
em 1981 e Pesquisa de Música Popular Brasileira, concedido pela Shell em 1982.
Em 1988, lançou seu único LP produzido por uma grande gravadora, a Continental
(posteriormente comprada pela Warner), com o título “Intercontinental! Quem diria! Era só o
que faltava...”, em que mantinha as características de sua obra, marcada pela alta qualidade e
distanciada dos apelos comerciais. Tais elementos o identificavam como artista maldito, um
rótulo que sempre recusou e que classificava músicos de reconhecido talento, mas que não
se enquadravam nos meandros do mercado e seu consumo conspícuo. Cabe lembrar que seu
trabalho, tal como de outros músicos e escritores autodidatas foi transversal e anti-hierárquico
e como afirma Gilroy (2001), se espalha para fora através do Atlântico. Parafraseando C. L. R.
James, pessoas comuns não necessitam de vanguarda intelectual para ajudá-las a falar ou
dizer a elas o que dizer(GILROY, 2001, p.169).
As qualidades da sua obra permitiram-lhe apresentar-se na Alemanha, participando da
Dokumenta de Kassel. Conquistou na oportunidade um público fiel que lhe possibilitou gravar
naquele país alguns de seus discos.Em 1991, teve uma grande alegria e uma grande tristeza. Ao
mesmo tempo em que o reconhecimento pelo seu trabalho permite o lançamento de um vídeo
produzido pela Aleph Comunicação (Filmart) sobre suas músicas, com depoimentos de Arrigo
Barnabé, José Miguel Wisnick, Susana Salles e Zuza Homem de Mello: também desfaz a banda
que o acompanhava desde o início de sua carreira, Isca de Polícia, embora, posteriormente, o
grupo tenha voltado a se reunir para alguns shows (entre 1996 e 1997).
O ano de 1994 marca a sua união com a banda Orquídeas do Brasil (formada somente
por mulheres), lançando a série “Bicho de Sete Cabeças”1, agraciada com o Prêmio Sharp de
Música, na categoria Pop Rock de melhor disco do ano, pelo seu volume I.
Em 1995, ao invés de trabalhar composições suas, lança “Ataulfo Alves por Itamar
Assumpção Pra Sempre Agora”, fruto de um show que ficou dois anos em cartaz e no qual o
autor revisitava a obra de um dos grandes mitos da MPB, e que pela qualidade do trabalho lhe
valeu o prêmio de melhor disco do ano pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Mais uma vez, o reconhecimento da qualidade de sua produção musical lhe coloca como
participante na série de documentários “Mapas Urbanos”, sob a direção de Daniel Augusto,
exibido em agosto de 1998 na TV paga GNT. Nesse mesmo ano lança lançou um novo trabalho,
“Pretobrás, Por Que Não Pensei Nisso Antes...”
Em setembro de 2000, submeteu-se a três cirurgias para extração de um tumor no
intestino. Sem convênio médico, foi internado no Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo onde
iniciou então um tratamento de quimioterapia, que se estendeu até julho de 2001, quando
lançou um novo CD “Pretobrás 2 – Itamar Vasconcelos e Naná Assumpção – Isso Vai Ter
Repercussão”. Após esse trabalho, em uma entrevista de divulgação do mesmo, fez um balanço
de sua proposta artística:
Sou um revolucionário. [...] Nunca quis me dar bem, quero mais é ser dono do meu trabalho.
[...] Não recebi herança, minha música é meu patrimônio e eu mando na minha carreira. [...]
Quando a gente assina um contrato com a gravadora, perde a autonomia da obra e eu não
vejo sentido em continuar com esse sistema. (LEAL, s/d).
Seu discurso era comum a diversos artistas do período que tinham a mesma proposta de
independência em sua produção, porém, na voz de Itamar, assumiu o caráter de compromisso,
uma mistura de postura e impostura que lhe renderam o reconhecimento do talento e o
estigma de maldito. No dia 12 de junho de 2003, Itamar faleceu na cidade de São Paulo, vítima
de complicações causadas pelo tumor, aos 53 anos.
Sob a influência das obras de Adoniran Barbosa, Cartola, Clementina de Jesus, Jimi
Hendrix, Miles Davis e Ray Charles e do convívio com Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Arrigo
Barnabé, Chico César, Jards Macalé, Paulo Leminski, Ná Ozzetti, Paulinho Le Petit, Susana
Salles, Rita Lee, Mônica Salmaso, Jane Duboc, Vange Milliet, Virgínia Rosa, Zizi Possi, Zélia
Duncan entre outros músicos, a obra de Itamar Assumpção, para além dos rótulos de maldita,
underground ou marginal, se afirma pela sua força poética, ao mesmo tempo em que, a partir
de doses regulares de lirismo e ceticismo, expõe dores de amor, dramas urbanos, comédias
cotidianas. Além disso, expõe a identidade negra do autor, que é nosso interesse nesse trabalho.
Entender a música de Itamar Assumpção somente como uma música militante seria não
só algo falso, mas desonesto com a riqueza de sua obra, embora seja inevitável que a temática
da identidade negra transpareça em diversos momentos de seu trabalho, ora discutindo
a condição social do negro, ora expondo vivências e percepções de um descendente de
escravos. O trabalho de Assumpção é um das formas contemporâneas da cultura negra e
deve ser pensada dentro de seus deslocamentos e rede de trocas culturais. Em uma de suas
entrevistas contou que, aos 21 anos ficou preso por cinco dias em Londrina, onde morava.
Vítima do preconceito racial, foi detido para averiguações porque carregava um toca-fitas
nas mãos. Talvez tenha sido esse episódio que tenha inspirado seu personagem do primeiro
trabalho, que o acompanhou por toda carreira como um alter ego, Benedito João dos Santos
Silva Beleléu, o Nego Dito e o irônico nome de sua banda, Isca de Polícia.
A experiência da prisão, pelo simples fato de ser negro e, portanto, potencialmente
suspeito, não devia ser para Itamar Assumpção algo desconhecido ou novo, pois possuindo
ancestralidade africana sabia que a suspeição policial sempre rondara os seus. Mas sua longa e
inexplicada permanência por “suspeita” (mais de 15 dias) doeu fundo e marcou o espaço como
um lugar de sofrimento, mas também de solidariedade. À medida que ficou sendo conhecido
pelos demais companheiros de cela, ele passou a cantar canções sertanejas e de solidão a
pedido dos outros presos. A motivação da prisão podia diferir, porém, a condição vivida dentro
das celas era igual.
A vida artística e a marginal foram cantadas por diversos cantores e compositores
negros. Em dois trechos de canções de compositores negros são eloquentes a experiência
da condição marginal e a experiência de prisão. A letra da canção do sambista paulista
Geraldo Filme, “Vai cuidar de sua vida”, que provavelmente fala de sua experiência pessoal
como sambista e filho de sambistas e “Silêncio no Bexiga”, sobre o assassinato de seu amigo
e compositor Pato N´Água, da Escola de Samba Unidos do Peruche, executado por grupo de
extermínio, ambas gravadas na década de 1980 explicitam a condição:
Com cerca de 150 músicas, desafiou os rótulos ao misturar elementos sonoros distintos
e criar letras irônicas e irreverentes, sob arranjos complexos e cheios de referências e citações
em ritmos variados. Ao mesmo tempo em que poderia ser uma música de conteúdo e de difícil
aceitação comercial, por outro lado, se mostra suficientemente rica em seu discurso universal
sobre a condição humana e questões da vida como amor, decepção, sofrimento e atenção para
o contexto sócio histórico.
Poesia e identidade
Em um mercado musical em que a afirmação do artista se dava não só no seu talento, mas
também no plano simbólico e mercantil, objetos, costumes e comportamento eram entendidos
como elementos formadores de um estigma ou como sinais de mobilidade e sucesso. Tais
elementos são percebidos, em meio às polêmicas sobre suas reais dimensões, como vinculados às
duas instâncias de afirmação de gênero e mercantilização. Itamar se definia livremente: musical
e esteticamente se destoava das pretensões do consumo ostentoso por parte de diferentes
grupos (SANSONE, 2000). Era negro, mas não cantava apenas samba ou músicas como soul e
gêneros afro-americanos, sendo, portanto, difícil de identificar com os gêneros de época. Além
do mais, compartilhava do intenso trânsito de referenciais pólos de produção e trocas simbólicas
e materiais das versões locais da cultura negra com as culturas negras de outras regiões do
mundo. Seu universo enquanto artista passava pela cultura negra, pela cultura urbana “branca” e
estava em constante ampliação de símbolos nos quais se podia buscar inspiração.2
Em termos melódicos, certamente se influenciou das matrizes culturais que
influenciaram a tomada de consciência negra na música brasileira nas décadas finais do século
XX. A onda musical de origem norte-americana, africana e jamaicana era de seu contexto
(GUERREIRO, 2000). Essa influência se manifesta mais claramente, a partir dos anos 1960 e 70,
com a soulmusic e o blackpower, que chegou ao Rio de Janeiro e migrou para diversas regiões
como Salvador. Na Bahia, o termo black se redefiniu como afro em um discurso afirmativo da
negritude3e se espalhou pelo país. Nas décadas de 1980 e 90 viu-se a ampliação da influência do
rap e do hip-hop, em São Paulo e do funk no Rio de Janeiro4. Itamar foi influenciado e passeou
por estes ritmos, mas tinha suas próprias sonoridades mescladas a esses gêneros. Segundo
o próprio Assumpção, ele se influenciou de uma fusão de “vozes que assombram a música
popular desde a lendária Casa da tia Ciata” passando por Jimi Hendrix, Miles Davis, Geraldo
Pereira, Clementina de Jesus, Luiz Melodia, Macalé, Ataulfo Alves entre outros(CHAGAS;
TARANTINO,2006, p.42-43).
A análise da obra musical de Assumpção apresenta os desafios da tentativa de
mapeamento dos diferentes e dispersos recursos documentais, pois o trabalho dele além
de possuir, possibilita a reflexão sobre as relações entre sociedade, música e interpretação
acadêmica.O artista é protagonista de um modo próprio de discutir temas como o amor,
cotidiano, identidade étnica sem, contudo fazer um discurso moral,embora atentoà condição
marginal do negro.
No primeiro disco“Beleléu, leléu, eu”, que no encarte central há uma foto de seu título
eleitoral sob uma navalha, há uma identificação de seu documento e a arma branca colocada
sobre ele. Essa alusão se ligava ao personagem Nego Dito cantando na canção, mas também
representava um lugar social de grupos à margem. O uso da navalha como arma de defesa,
o codinome cuja sonoridade podia também lembrar os sons de tiro, traziam a ideia de
identificação com um lugar ligado ao submundo.
Aliás, Itamar criou a partir deste trabalho, um personagem que se tornou longevo ao qual
foi associado por diversas ocasiões. Beleléu, vulgo nego Dito tornou-se alter ego identificado
nos versos da vinheta de abertura (em um trecho da música do mesmo trabalho, Beleléu)
“Benedito João dos Santos Silva, Beleléu, vulgo Nego Dito, Nego Dito Cascavel”. Na primeira
faixa, “Luzia”, ouve-se o questionamento de sua identidade: “que black navalha é você, Beleléu?
tá mais parecendo chamariz de turista ou isca de polícia! onde tá tua malícia, meu?”, o que é
respondido na última faixa, Nego Dito:
a música seria para ele a tradução da “invisibilidade” da experiência negra e, ao mesmo tempo,
universal da dor e sofrimento humano.
As canções de Itamar trazem a experiência singular de homem negro em uma sociedade
conservadora e racista. Também expressam sua polifonia sua herança para a brasilidade, sua
forma de afetividade e rara sensibilidade. Na composição, que não é sua no CD “Bicho de sete
cabeças”,vol. 1, chamada “Balaio”, e cuja inclusão demonstra ao mesmo tempo uma deferência
ao trabalho alheio e uma valorização de sua mensagem, diz:
Crioulo cantando samba era coisa feia / esse negro é vagabundo joga ele na cadeia / hoje
o branco tá no samba quero ver como é que fica / todo mundo bate palmas / quando ele
toca cuíca [...] / negro jogando pernada negro jogando rasteira / todo mundo condenava
uma simples brincadeira / e o negro deixou de tudo acreditou na besteira / hoje só tem
gente branca na escola de capoeira [...] / negro falava de umbanda branco ficava cabreiro
/ fica longe desse negro esse negro é feiticeiro / hoje o preto vai à missa e chega sempre
primeiro / o branco vai pra macumba e já é Babá de terreiro.
Bom Crioulo (Dizem que o bom crioulo no samba é professor / bate crioulo bate bate no
seu tambor / nunca fez arruaça não sabe ser valentão / mas não nega a sua raça quando
pega o violão)[ou na brasilidade do]Requebro da Mulata(quando ela samba na pontinha da
chinela / se requebrando no terreiro a noite inteira / é tão bonito minha gente salve ela /
é coisa nossa a mulata brasileira).
Zé Pelintra desceu Zé Pelintra baixou / é ele quem chamega quem penetra / em cada
fresta e rompe o cadeado [...] / é ele quem abre uma brecha / acende uma mecha no breu
/ desparafusa a rosca / e seu cavalo sou eu.
Esse “cavalo” equilibrou-se entre seu compromisso com a estética e sua vivência racial,
não sendo panfletário ou alienado, mas autor de uma obra inevitavelmente marcada por sua
negritude, como seus contemporâneos Milton Nascimento, Gilberto Gil ou Luis Melodia,
cheias de criações poético-musicais que explicitaram a sua identidade de raça em meio à
busca da originalidade e beleza. Ou seja, confirma o retorno do músico a visão positiva sobre
a identidade negra.
As composições de Itamar Assumpção se afirmam como expressão sensível de uma
percepção da condição humana, ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, para um bisneto
de escravos, também reflete a sua negritude. Sua proposta artística e estética se diferencia
claramente da produção simbólica e musical de um grupo afro como a Timbalada, um exemplo
já analisado por diversos autores, cujos objetivos centrais são, a partir da produção de sua
expressão artística, rearticular o discurso sobre o mito da democracia racial e sobre a Bahia
como reserva de autenticidade cultural no Brasil, mobilizando uma consciência racial atrelada
a uma consciência corporal, e conferir à música negra valor simbólico e econômico.
Em Itamar, a negritude convive com diversos temas do cotidiano urbano. Não há
uma postura atitudinal envolvida, mas sim, a centralidade da criação poética e a busca pela
qualidade artística queo afasta do mercado de consumo.
O uso simbólico de sua música é dado na medida em que ela é validada como discurso de
afirmação, de identidade, como a oralidade foi no passado africano e componente da híbrida
identidade brasileira. Ele se insere em um contexto maior por se afirmar dentro da expressão
das canções de origem afro-brasileira e por desejar e ir além dessa rotulação. Seu desejo
firme de liberdade de criação e sua recusa de pertencer ao esquema ditado pelas grandes
gravadoras, procurando outras formas de divulgação, trouxeram-lhe a pecha de maldito,
condição também extrapolada ao recriar interpretações de canções clássicas da música
popular brasileira, como as canções do sambista Ataulfo Alves.
Possivelmente, Assumpção se insira naquilo que Paul Gilroy chamou de pérolas
do Atlântico Negro6, uma das formas culturais de expressão ricamente produzidas pelos
descendentes da diáspora dos africanos nas Américas. Sua música assim reflete a condição
singularmente vivenciada por ele e pelos ancestrais ao mesmo tempo em que é também
universal. Suas preocupações também se voltam para a preservação da natureza em uma
época em que pouco se falava disso. Eduardo Cardoso ao realizar um estudo sobre a obra de
Itamar Assumpção e a sua relação com a Geografia urbana da cidade de São Paulo, aponta seu
pioneirismo em tematizar as preocupação com a preservação ambiental (CARDOSO, 2009)7.
Cardoso também fala de outra canção, “Reengenharia”, que trata do contexto de privatizações
que ocorriam no país em 1998 do trabalho Petrobrás. Nele se faz presente um olhar crítico
sobre o contexto de ações globalizadas da política mundial e que estava aqui. O autor aponta
a criatividade e preocupações mostrando sua relação com o espaço e a identidade.
A música de Itamar Assumpção é o resultado da apreensão sensível de um ser humano
que vive sob “céu de chumbo”, disfarçado “de carne e osso, de velho e de moço”, de uma
sociedade que, ao longo do processo de reconhecimento e visibilidade dos afrodescendentes,
resgata a sua própria história. Para além das ambiguidades de sua conotação enquanto produto
cultural e mercadoria, em que pese o rótulo de “maldito”, ele criou um canal de expressão
polifônico no qual foi preservado o espaço para a afirmação da condição negra, através da
defesa de posturas, valores e ideias que remetem tanto identidade e seu caleidoscópio étnico-
cultural como a questões universais.
Notas
1A série pode ser encontrada na forma de três LPs ou de dois CDs, pelo selo Baratos e Afins.
2 Tais pólos foram criados pelas mesmas estruturas transnacionais que criaram a diáspora africana para o
mundo Atlântico negro, que dinamicamente influenciou e moldou as culturas populares (GILROY, 2001).
3 Termo cunhado por AiméCésaire em 1938 e Leopold Senghor, negritude surgiu como definição
de um conjunto de valores culturais do mundo negro e apropriado pelos movimentos de luta de
libertação da África e direitos civis nos Estados Unidos.
4 O hip-hop surgiu nos Estados Unidos, no final da década de 1960, no bairro do Bronx, em Nova York,
e teve com influências o movimento reggae, da Jamaica, com cantores como Bob Marley. Suas letras
discutiam questões sociais e políticas, assim como elementos da identidade política negra como
Marcus Garvey, Martin Luther King, Malcom X, etc. O Hip-Hop é composto pelo rap e quer dizer ritmo
e poesia (tradução do inglês rythymandpoetry), resultando da combinação entre linguagem verbal e
musical. Já o funk, embora tenha uma similaridades com o rap, a música negra norte-americana e
guetos, possui características próprias. Suas letras falam de festa, prazer e coletividade das festas
juvenis negras em sátiras e paródias de letras de canções norte-americanas (DAYRELL, 2005).
5 Essa música de Wilson Batista e a produção de diversas canções de Noel Rosa no mesmo período
renderam uma vasta produção de canções temáticas da malandragem como“Rapaz folgado” (“Deixa
de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália” [...] / E “guarda essa navalha /Que só te
atrapalha”), originando a réplica Mocinho da Vila, de Wilson, a tréplica Feitiço da Vila, de Noel Rosa e
Vadico, além de “Conversa fiada”, de Wilson, “Palpite infeliz”, de Noel, e “Frankenstein daVila”e “Terra
de cego”, ambas de Wilson Batista.
6 Segundo Paul Gilroy, a obra “O Atlântico Negro” buscou desenvolver um trabalho onde “os negros
percebidos como agentes, como pessoas com capacidades cognitivas e mesmo com uma história
intelectual – atributos negados pelo racismo moderno” (GILROY, 2001, p. 40).
7 Cardoso destaca a canção “Adeus pantanal”. Nela, Assumpção fala do pantanal matogrossense e faz
uma crítica à destruição desse espaço.
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E-mail: [email protected]
The Analysis of Henri Pirenne about the Feudal Developments and
Mediaeval Urbanism and its Critical Reception in Historiography
Abstract: This article aims to describe, analyze, and discuss the classical theses
of the Belgian historian Henry Pirenne about the formation and decline of the
feudal worlds, the cities development in this period, and the renewed increase of
long-distance trade. Next, it studies the great debate, carried out in the following
decades, about some of the Pirenne’s proposals to understand the medieval
period. The analysis of Pirenne’s theses supports the employed methodology, in
the light of some of the author’s works, the elaboration of synthetic schemes
of his central ideas, and the general description of the critics put forth by the
historiography against such propositions. This is an introduction article to the
classical contribution of historiography, and its outputs show a historiography
in movement.
Keywords: Pirenne; historiography; medieval debates; Middle Ages; Economic
History.
272
A terceira década do século XX foi marcada por uma importante polêmica em torno da
transição do mundo antigo para o ocidente medieval, do papel histórico do comércio e das
cidades medievais e da transição da medievalidade para um novo mundo que prenuncia a
idade moderna. A polêmica teve como centro de gravidade algumas teses bastante instigantes
propostas por Henri Pirenne. As teses desse historiador belga sobre a transição da antiguidade à
Idade Média e a interação entre o comércio e a Cidade Medieval a partir do século XI causaram
tanto impacto nas terceira e quarta décadas do século XX, que suscitaram inúmeras adesões
de primeira hora e, particularmente nas décadas posteriores, muitas críticas provenientes
de diversos lados. O problema de pesquisa abordado por este artigo – ao enfatizar uma obra
historiográfica específica como a de Henri Pirenne – refere-se ao estudo dos movimentos e
contra movimentos de uma historiografia medievalista que tem se preocupado em compreender
simultaneamente as origens medievais das sociedades europeias e a sua posterior transição
para a modernidade, elencando as mudanças no padrão de desenvolvimento das cidades, e as
variações no comércio de longa distância, como pontos chave e sintomas importantes para a
compreensão do período, entre outros aspectos relevantes que incluem as relações entre as
sociedades europeias e a expansão islâmica como redefinidoras de uma nova territorialidade
política e econômica.
Antes de abordarmos as questões específicas propostas pelas teses medievalistas
de Pirenne, será oportuno recuperarmos alguns aspectos biográficos e historiográficos
relacionados ao autor. Henri Pirenne nasceu em Versviers (Bélgica) em 1862, tornando-se mais
tarde um dos mais importantes historiadores europeus das últimas décadas do século XIX
e primeiras décadas do século XX. A importância de sua obra se desdobra em três aspectos
principais: sua contribuição para uma nova História da Bélgica, em sua própria época; sua
contribuição para o desenvolvimento da historiografia em geral nas gerações seguintes; e
sua contribuição específica como medievalista. Como já foi indicado, este último aspecto nos
interessará mais neste artigo. É importante destacar, entrementes, que Pirenne influenciou
importantes historiadores da geração seguinte e não apenas com relação ao âmbito de estudos
da Idade Média. Em particular, a primeira geração de historiadores da Escola do Annales,
liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre, deve muito a Pirenne, que trouxe novas propostas
para pensar e fazer a História.
A possibilidade de desenvolvimento de uma História Comparada, que receberia maior
continuidade com o trabalho de Marc Bloch, e o destaque para a importância primordial
da História Econômica como campo a ser considerado mais sistematicamente pela nova
historiografia que começava a se desenvolver na França e em outros países, são certamente
contribuições mais gerais a serem destacadas. Além disso, o historiador belga contribuiu
para o estabelecimento de um olhar mais complexo sobre a redefinição dos limites entre as
grandes fases da história europeia. Apenas para citar um aspecto, podemos lembrar que, à
época de Pirenne, era comum enfatizar quase que exclusivamente o desaparecimento político
do Império Romano do Ocidente (após o impacto das invasões germânicas), quando se buscava
273
BARROS, J.
As análises de Henri Pirenne sobre os desenvolvimentos...
Com relação às teses de Henri Pirenne sobre a Idade Média, podemos hoje registrá-
las em suas principais linhas, com o devido distanciamento permitido por um já longo
desenvolvimento historiográfico que atualmente permite enxergar com maior clareza as
contribuições efetivas de Pirenne para os estudos medievais.
Em primeiro lugar, (1) não há dúvidas de que foi primordial para a historiografia posterior
o destaque atribuído por Pirenne à função econômica da Cidade Medieval, em contraste com
a maior parte da historiografia de sua época, que então se concentrava apenas na análise
institucional do fenômeno urbano. Em segundo lugar, (2) Pirenne foi um dos primeiros
historiadores a valorizar, para o período medieval, o papel do mercado como elemento
de fixação urbana. Nesta direção, seu trabalho rivaliza com o de Max Weber (1958), que,
embora não tenha se dedicado apenas ao estudo das cidades medievais, também possui uma
contribuição importante neste âmbito temático. Por fim, (3) foi particularmente importante
a análise elaborada por Pirenne acerca do papel dos grandes mercadores na vida urbana
medieval e na transformação do mundo feudal, além do historiador belga ter demonstrado a
importância dos próprios meios rurais para o fornecimento de um contingente importante de
indivíduos que se integraram à dinâmica comercial. Por outro lado, é preciso reconhecer que,
para além destas contribuições indubitavelmente significativas, algumas das teses centrais de
Pirenne não resistiram às críticas e investigações historiográficas encaminhadas nas décadas
seguintes. Resumiremos a seguir o conjunto de teses de Pirenne, para pontuar a seguir outras
indicações autorais, inclusive as mais críticas, relativas a essa grande polêmica da primeira
metade do século.
As instigantes ideias de Pirenne ganharam projeção na década de 1920 a partir de duas
obras principais, e também em alguns artigos elaborados e publicados na mesma época. De
um lado, Pirenne apresentou suas impactantes teses sobre a renovação do comércio medieval
no célebre artigo denominado “Maomé e Carlos Magno” (PIRENNE, 1922, p. 77-86). Este
artigo também rediscute a fronteira historiográfica entre o mundo antigo e a Idade Média, ao
colocar como centro do problema histórico a ascensão do Islamismo e a formação do Império
Carolíngio. Mais tarde, em 1936, Pirenne incorporou as ideias apresentadas neste artigo a um
tratado mais amplo, denominado “História Econômica e Social da Idade Média” (PIRENNE,
1982), e na própria década de 1920 continuou produzindo artigos dentro do mesmo circuito
de proposições (PIRENNE, 1923, p. 223-235).
A segunda obra que polarizou a polêmica em torno das teses de Pirenne foi um
pequeno, mas marcante livro intitulado “As Cidades na Idade Média”, publicado em inglês em
1925 (PIRENNE, 1962)1. As propostas dessa obra para uma compreensão das cidades medievais
remontam, na verdade, a alguns artigos anteriores, que Pirenne publicara ainda no final
do século XIX (PIRENNE, 1898, p. 111-122). Além disto, posteriormente o historiador belga
acrescentou a seu estudo original sobre a Cidade Medieval alguns artigos mais específicos,
publicados nos primeiros números da Revista de História Econômica e da Revista dos Annales
(PIRENNE, 1905, p. 18).
Quando a invasão islâmica fechou os portos do mar Tirrênio ... a atividade municipal
rapidamente se extinguiu. Salvo no sul da Itália e em Veneza, onde foi mantida graças ao
comércio com Bizâncio, ela desapareceu em toda a parte. As cidades continuaram a existir,
mas perderam sua população de artesãos e mercadores e, com eles, tudo o que sobrevivera
da organização municipal do Império Romano. (PIRENNE, 1936, p.40).
Diante deste novo momento histórico, o “Estado” (expressão utilizada neste caso pelo
próprio Pirenne (1936) teve de se adaptar a uma realidade que já não contaria mais com a
mesma dinâmica comercial e com a mesma rede urbana. Para este aspecto particular, algumas
colocações do historiador belga podem ser retomadas:
As teses de Henri Pirenne (1922) sobre as modificações no âmbito comercial, a partir das
mudanças políticas e econômicas que ocorriam com a expansão islâmica e com a consolidação
do mundo carolíngio, levaram o historiador belga a repensar mais especificamente a história
e o papel das cidades no mundo medieval. Essas proposições aparecem colocadas com muita
clareza no livro “As Cidades na Idade Média” (PIRENNE, 1962), publicado em 1925. Podemos
sintetizá-las esquematicamente:
Essas teses, apresentadas por Henri Pirenne com uma escrita fluente e argumentativa,
provocaram de imediato grande entusiasmo, mas também críticas (ainda na sua própria
época, mas, sobretudo, nas décadas subsequentes). Com o tempo, as críticas foram superando
claramente o entusiasmo que as teses de Pirenne (1925) haviam despertado em um momento
inicial. Essas críticas também podem ser indicadas esquematicamente. O nome de alguns
autores entre parênteses é meramente exemplificativo e objetiva apontar obras que poderão
ser consultadas com relação às críticas encaminhadas.
2. Críticas a um conceito demasiado estreito de cidade, que teria sido utilizado por
Pirenne (Lewis Mumford).
Não queremos discutir aqui em detalhes o fato de que, como demonstrou Max Weber,
a economia de troca constituiu uma dessas utopias eruditas que não só não existem
e nunca existiram na realidade, mas que, ao contrário de outras ... que são também
generalizações utopistas devido ao seu caráter lógico, jamais podem ter qualquer
aplicação à sociedade concreta.
Mais adiante, Petrusevski (1928) demarca seu ponto de vista em oposição à tese
de que o “feudalismo” e a “economia de troca” foram duas esferas ou patamares; a última
correspondendo à infraestrutura que produziu e causou a primeira. Para Petrusevski (1928),
ao contrário, os dois fenômenos nada têm a ver entre si, correspondendo isto a “ideias que
se chocam inteiramente com o fato histórico, tal como o de subordinação do feudalismo
à economia de troca ou sua incompatibilidade com uma organização estatal abrangente”
(PETRUSEVSKI, 1928, p. 488).
Outros historiadores, nesta mesma grande polêmica instigada por Henri Pirenne (1925),
empenharam-se em identificar aspectos que haviam sido negligenciados pelo historiador
belga na sua generalização da história comercial e urbana do ocidente medieval. O historiador
russo Rostovtzeff (1930, p. 197), por exemplo, chama atenção para um aspecto importante que
havia sido desprezado por Pirenne (1922) na sua análise das transformações econômicas na Alta
Idade Média: as alterações do gosto e suas implicações comerciais. De igual maneira, surgiram
os questionamentos acerca dos fatores que deveriam ser considerados prioritariamente com
relação à passagem para um modelo econômico mais fechado na Alta Idade Média. H. Moss
(1936), por exemplo, critica nas teses de Henri Pirenne a negligência com relação a fatores
de maior duração e interpreta a “economia de casa fechada” da Europa Ocidental nos anos
800 como “diretamente provocada pelo colapso do governo romano, das comunicações e do
comércio” (MOSS, 1936, p. 209-216).
Nas décadas posteriores aos anos 1920 foram cada vez mais se estabelecendo críticas
bastante consistentes a algumas das proposições de Henri Pirenne (1925), e particularmente
em relação ao questionamento da visão do mundo medieval como uma “economia de casa
fechada” – o que, aliás, representava uma visão historiográfica bem típica das primeiras
décadas do século XX, e que era compartilhada até então por diversos historiadores. A partir
de fins da década de 1940, essa visão foi sendo relativizada cada vez mais e, naturalmente, isso
contribuiu para que se acelerassem as críticas a certos pontos colocados por Pirenne em suas
formulações. Podemos dar dois exemplos entre outros tantos que seriam possíveis. Em um
artigo datado de 1938, François Ganshof (1938) discute muito objetivamente a afirmação de
Pirenne de que o comércio teria decaído drasticamente no Ocidente após a invasão sarracena
(GANSHOF, 1938, p. 28-37).
Críticas relacionadas à mesma questão são desenvolvidas em um artigo da década de
1940 por Roberto Sabatino López (1943, p.14-38). Posteriormente, ainda no campo da História
Econômica, as críticas dirigidas às formulações de Pirenne foram se tornando cada vez mais
sistemáticas. Podemos dar como exemplo uma sequência de críticas elaboradas por Guy
Fourquin (1969) em relação às teses de Pirenne sobre o desenvolvimento econômico e urbano
medieval (FOURQUIN, 1991, p. 239-265), que podem ser resumidas adequadamente em três
grupos fundamentais.
(1) O modelo proposto por Pirenne para a revitalização urbana a partir do comércio das
cidades de Flandres, e a sua descrição do modelo de crescimento urbano daí resultante, não
pode ser generalizado para a maior parte da Europa Medieval. A este respeito, Guy Fourquin
(1991, p.240) avalia objetivamente o mapa urbano da Idade Média central:
Este quadro é indiscutivelmente válido para a região flamenga que Pirenne tomou para
base de sua teoria, ainda que alguns portus sejam mais antigos, datando dos tempos
carolíngios ou pós-carolíngios. Com efeito, por volta do ano 1000, havia poucas cidades
nesta região. (...) o quadro esboçado por Pirenne é igualmente válido para as cidades ¾
forçosamente novas ¾ dos países novos, como as cidades hanseáticas da Alemanha. Mas
Pirenne, e mais ainda os seus discípulos, pretenderam alargar a sua aplicação a todo o
Ocidente, por exemplo, a toda a parte norte da França (Vercauteren) ou a Inglaterra.
(2) Nem sempre, considerando as várias regiões da Europa, teria ocorrido o tal “hiato urbano”
proposto por Pirenne. Assim, segundo Fourquin (1991), “a continuidade urbana encontra-
se quase sempre provada, mesmo na Flandres (Arras, Saint-Omer, Gand), desde a época
carolíngia, e por vezes até desde os tempos merovíngios (como no vale do Mosa)” (1991, p. 240).
(3) Para Fourquin (1991), o comércio desenvolve-se com a expansão agrícola e populacional,
situação que Pirenne desconsidera.
(4) Por fim, Pirenne teria ignorado outros tipos de cidade, igualmente presentes na
medievalidade europeia: cidades com dominância do artesanato; cidades semi-rurais (com
mercadores e artesãos cultivando o campo). Fourquin (1991) encerra seu bloco de críticas
com uma indagação: “Mas, vamos um pouco mais longe. Terá sido realmente a economia a
desempenhar o primeiro papel em todas as cidades?” (1991, p. 243).
As críticas às propostas de Pirenne para a origem das cidades medievais também
estiveram amplamente representadas nas décadas posteriores. De um lado, estas críticas
partem da ideia de que não é possível reduzir o surgimento das novas cidades, e a revitalização
das antigas, meramente a desdobramentos comerciais ou a aspectos derivados do âmbito
econômico. Os historiadores da segunda metade do século XX tenderam a focar, para além da
história econômica, aspectos diversos relacionados à religiosidade, às mentalidades, à cultura,
ou a história social de maneira geral. Podemos dar como exemplo as críticas de Lewis Mumford
(1965) às teses de Pirenne sobre a origem das cidades medievais, que são basicamente de duas
ordens (MUMFORD, 1991, p. 279). Em primeiro lugar, ele defende a ideia de que a origem da
cidade medieval esteve associada à necessidade de uma nova forma de segurança, necessidade
que foi atendida pela cidade-murada. Foi a revivescência da cidade protegida que assegurou
a retomada comercial e não o contrário (MUMFORD, 1991, p. 280). Em segundo lugar, critica a
definição estreita de cidade abordada por Pirenne. “Todo esse fenômeno foi mal interpretado por
Pirenne, porque ele recusava o título de cidade a uma comunidade urbana que não incentivava
o comércio a longa distância, nem abrigava uma grande classe média mercantil – uma definição
inteiramente arbitrária” (MUMFORD, 1991, p. 279).
Conforme vimos, algumas das principais teses de Henri Pirenne sobre a Idade Média não
resistiram ao desenvolvimento posterior da historiografia. Boa parte das suas generalizações
não resistiu à complexidade histórica encontrada pelas gerações seguintes de medievalistas,
e diversas formulações conceituais tornaram-se não-operacionais ou inadequadas (como a
noção de “renascimento comercial”, por exemplo, ou a de “fechamento do Mediterrâneo”).
Tampouco resistiu ao tempo a busca pirenniana de um modelo único de “ressurgimento
urbano medieval”, do mesmo modo que inúmeras outras explicações históricas totalizantes
e unilaterais, em diversos autores da primeira metade do século XX, foram revistas por uma
historiografia que iluminou mais a diversidade e complexidade de situações históricas do que
a homogeneidade de modelos unificadores2. Devemos nos perguntar, nestes momentos finais,
sobre as razões para o inquestionável sucesso de Henri Pirenne em permanecer na galeria dos
historiadores mais lembrados do último século. Sobre isto, de fato, ainda há algo mais a dizer.
Quando pensamos no fato de que o tempo revelou a inadequação das respostas mais
específicas dadas por Pirenne às grandes questões sobre a Idade Média, não podemos nos
esquecer que suas maiores lições ao mundo historiográfico se referiram precisamente à sua
habilidade de propor novos problemas – em uma palavra, à sua capacidade de olhar para a
história de maneira problematizada. O importante não é definir de uma vez por todas se a
Idade Média começa no século VII com a ascensão do Islamismo e com uma nova configuração
da Europa, mas sim entender, com Pirenne, quais são os problemas propostos que redefinem
as fronteiras sempre móveis entre os períodos históricos. Pirenne (1936) mostrou que havia
uma nova historiografia a ser escrita: não se tratava apenas de contar os fatos ou de descrever
sociedades historicamente localizadas; era preciso pensar novas conexões de modo a enxergar
a história de novas maneiras. Conectar a ascensão islâmica e a interiorização carolíngia, ou
o crescimento rural e a reintensificação do comércio medieval, são exemplos pirennianos
de que as sequências históricas de fatos ou processos não falam por si mesmas, e que, ao
contrário, adquirem novos sentidos quando contrapostas umas às outras no interior de uma
análise historiográfica problematizada.
Se considerarmos que Henri Pirenne ofereceu novas formas de enxergar a história a
seus contemporâneos, novas perguntas a serem feitas e novos problemas a serem colocados,
tornam-se menos importantes as respostas específicas encontradas pelo historiador belga a
esta ou àquela questão. Não é de se estranhar que os jovens historiadores que iriam formar
o movimento dos Annales – tais como Lucien Febvre, Marc Bloch e depois Braudel – tenham
situado Pirenne na sua galeria de precursores. A nova historiografia que iria cunhar a noção
de História-Problema não poderia deixar de reverenciar um historiador que surpreendeu a
sua época com novos problemas. Além disto, Henri Pirenne também foi um dos historiadores
que mais contribuíram para alargar definitivamente o horizonte historiográfico predominante
para além dos limites mais estreitos da historiografia política tradicional. Ao trazer a Economia
para o centro do cenário historiográfico, Pirenne integrava-se a uma nova tendência que
definitivamente gestava algo de novo, e que teria no movimento dos Annales e nas realizações
historiográficas do materialismo histórico contemporâneo duas de suas maiores expressões.
Considerações finais
Notas
1 Esta obra, publicada em francês em 1927, pela editora Lamertin, acrescenta textos ao livro publicado
em inglês em 1925.
2 De todo modo, vale lembrar que, apesar da rejeição das grandes generalizações de Pirenne para o
período medieval, diversas contribuições do historiador belga para a história da Idade Média foram
assimiladas. J. F. Verbruggen lembra que, “depois do artigo de Pirenne sobre ‘As cidades flamengas
antes do XII século’, o conceito de castrum passou a ser o termo técnico para designar os castelos do
condado de Flandres” (VERBRUGGEN, 1950, p. 147-155).
3 Sobre esta passagem de Pirenne pelo período da Primeira Guerra, ver VIOLANTE, 1997 e LYON, 1974.
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O repúdio do culto ao passado, o dinamismo e o ativismo...
O futurismo foi, acima de tudo, um movimento de recuo que reagiu contra o estado
das coisas no início do século XX em todos os domínios. O nascimento do futurismo foi a
contestação mais violenta do homem moderno contra todos aqueles que não eram de sua
época, os passadistas (“passatisti”). O movimento é antipassadista (“antipassatista”), isto é,
a rigor, contra tudo aquilo que poderia causar entrave às tendências modernas e ao livre
florescimento do homem moderno. Parece-nos apropriado esboçar em algumas palavras,
neste capítulo preliminar, a atitude do homem moderno futurista diante da situação que
reinava na Itália nos domínios da vida e da arte.
A violência iconoclasta dos futuristas contra todas as espécies de passadismo foi sem
igual naquela época. Igualmente, os críticos qualificaram Marinetti de Heróstrato moderno,
de Bakunin literário, de Marat e Babeuf da revolução artística, e o futurismo, de barbárie
e vandalismo.1 Uma nota do pré-guerra no Paris-Journal, relatava que um monastério
franciscano havia sido incendiado, pôde ter como título “Sr. Marinetti está alegre”, sem que
se tenha feito qualquer outra menção a Marinetti nem ao futurismo.2 “O Futurismo é uma
declaração de guerra ao passado; e que declaração de guerra!”, escreveu um crítico numa
resenha do livro marinettiano Le futurisme.3 O movimento foi a criação de uma juventude que
se sentia estagnada pelo legado da tradição, pela atmosfera italiana “dos museus”, pela “era
paleontológica” e pelo clima “de múmias” – foi só depois do nascimento do futurismo que
Marinetti olhou sob essa perspectiva.
Pode ser muito bem que a diferença de atmosfera artística e literária entre Paris e
a Itália, em geral, tenha tido algo a ver com a reação violenta de Marinetti, que qualificava
a estagnação italiana de “cidade da Paralisia”, de Reumática [“Podagra”],4 de letargia etc.
“Dormir! Dormir! Esta é a única e execrável imoralidade”, exclama o herói de Le monoplan
du pape.5 Talvez Marinetti visasse mais precisamente à poesia simbolista, sonhadora e
nostálgica? No seu “nascimento”, Gazourmah exclama: “Aff! esse cheiro de múmias, esse fedor
de séculos mortos me dá náuseas! Subir mais alto!”6 Em uma entrevista, Marinetti (1911) afirma
acreditar que o italiano moderno sinta-se vivo estando dentro de um museu e que se encontre
acorrentado pela hereditariedade da antiguidade greco-romana assim como pela Grande
Muralha da China.7 Ele quer, a todo custo, acordar a Itália de seu sono de múmia “sem olhos
sem orelhas sem unhas”,8 “país de todas as tiranias intelectuais e morais”,9 a fim de libertar os
prisioneiros do passado. “Nós vamos libertá-la (a Itália) dos inumeráveis museus que a cobrem
toda de cemitérios inumeráveis. Museus!; cemitérios!... Idênticos, na verdade”, pode-se ler no
primeiro manifesto.10
A tendência destrutiva, assim como a glorificação da guerra e da revolução assustou
diversos dos contemporâneos dos futuristas. Muitos títulos de poemas, como “Destruição”,
“Demolição”, “Revolução”, “Fogo”, “Incêndio”, falam por si mesmos. A personagem principal
de Le monoplan du pape, que carrega de seu pai, o Etna, seu “sangue devastador”, proclama:
“Destruir! Temos de destruir!... devemos destruir sem fim!”11 Analisemos as tendências
passadistas às quais os futuristas mais atacavam.
Primeiro, o culto pela beleza das obras de arte da antiguidade é exposto a uma dura
crítica. Às vezes, essa beleza é mesmo negada, sobretudo quando é confrontada com as
Aqui estão eles! Aqui estão eles!... Venham! Incendeiem as prateleiras da biblioteca!...
Desviem o curso do canal para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver boiando à deriva,
rasgada e desbotada sobre a água, a velha tela gloriosa!18
O caráter nocivo das bibliotecas e a destruição destas foram temas poéticos bastante utilizados
pelos poetas futuristas.19
Em um artigo intitulado “O passado não existe”20, Papini tentou encontrar as razões
teóricas para negar esta “potência senil, / o vil passado”, do qual fala Folgore,21 mas, em geral,
os futuristas não tinham necessidade de especulações filosóficas para cortar as ligações com
o passado. “Nós não temos quase mais nada em comum com nossos ancestrais. Neguemo-los,
então, corajosamente!”, escreveu Marinetti.22 Buzzi canta: “Estou mais distante do meu Avô /
que o meu Avô de Noé.”23 Auro d’Alba quer “Em uma noite em uma hora em um átimo / liberar-
se de todo o passado”.24 Folgore vê-se como um “Heróstrato iluminado” que deseja queimar
todo o passado, como Heróstrato o Tempo de Éfeso.25 Boccioni, enfim, declara: “Nós, italianos
modernos, somos sem passado”.26
A atmosfera romântica e sentimental que se encontra seguidamente ligada às tradições
históricas é exposta à crítica futurista. O romantismo e o sentimentalismo detestáveis pesam,
segundo Marinetti, em particular sobre Veneza, “cloaca máxima do passadismo”,27 e sobre as
ilhas da lagoa veneziana, “essas pilhas de esterco que o mamute deixou cair aqui e ali ao
atravessar a vau suas lagoas pré-históricas!”28
Os futuristas empreendem uma verdadeira campanha contra Veneza. Em julho de 1910,
eles lançam panfletos do alto da Torre do Relógio sobre a Praça São Marcos – 800.000, segundo
Marinetti. Nos manifestos “Contra Veneza passadista” os venezianos são convidados a queimar
suas gôndolas.29 Como comentários poéticos a tais manifestos podemos considerar, por
exemplo, “À Veneza elétrica”, de Govoni,30 uma passagem de um poema de Folgori intitulado “À
pátria”31 e “A Veneza”, de Mazza: “E teus canais são esgotos / tuas casas, latrinas”(MARINETTI,
ano, p.365). As tiradas retóricas do discurso futurista de Marinetti (ano) aos venezianos em
nono do primeiro manifesto termina com algumas palavras lacônicas e categóricas que
exprimem o desprezo pela mulher,51 e o parágrafo dez do mesmo manifesto condena, entre
outras coisas, “o feminismo”.52 Ainda assim, os futuristas, e em especial Marinetti, não são
misóginos. Já tocamos no papel de primeiro plano desempenhado pela mulher na obra poética
de Marinetti.53 Mas os futuristas, à maneira do homem moderno que descrevemos em nossa
introdução, são antissentimentais e antinostálgicos. Em primeiro lugar, Marinetti ataca “o
horrível e pesaroso amor que desordena a marcha do homem”,54 “a tirania do amor”55 e a
maneira sentimental e romântica de enxergar a mulher e o amor que predomina na literatura
e na poesia decadente e simbolista – por exemplo, no jovem d’Annunzio.
Como alvo da crítica futurista encontra-se, por conseguinte, a mulher que poderia
paralisar “as forças dos criadores e dos homens de ação”,56 aquela que poderia retardar o
marido ou o amante “na manhã da partida”.57 É a concepção da mulher ideal que deveria ser
destruída. Papini (ano) ampliou o horizonte dessa campanha contra as mulheres e escreveu,
em Lacerba (1914), um artigo cujo título fala por si, “O massacre das mulheres”,58 mas esse
artigo traz poucas características do futurismo em seu conjunto. Marinetti (1914) reconhece,
claro, “todas as admiráveis qualidades animais da mulher59” e deseja reduzir o amor a uma
função física. Os poetas e os artistas futuristas lutam contra o amor como fonte de inspiração
exclusiva ou, ao menos, dominante. A mulher futurista deve corresponder a sua época, no caso
específico, à época moderna. Elas devem despertar o dinamismo e o heroísmo do homem,
devem dar-se ao homem, que é mais forte e mais corajoso. Valentine de Saint-Point requer,
em seu “Manifesto da mulher futurista” (1912),60 que a mulher futurista seja brava, cruel e viril,
e a poeta dá como exemplo Catherine Sforza. No ano seguinte, Valentine de Saint-Point (1914),
chefe de ação da mulher futurista, considera, em outro manifesto, que “a luxúria” é uma força
eterna, enquanto que “a sentimentalidade” segue a moda.61
Constatamos também que o futurismo é antidemocrático, anticlerical, antipacifista e
antihabsbourg. Na qualidade de discípulos de Nietzsche, “o verdadeiro modelador da alma
de nosso século, o profeta da grande saúde espiritual”,62 os futuristas e, acima de tudo, os
futuristas de Lacerba, visam a operar “uma Reavaliação de todos os valores” (“eine Umwertung
aller Werte”), uma reversão dos valores estabelecidos em todos os domínios, tanto artísticos
como morais. O debate sobre os problemas éticos tem lugar, sobretudo, em Lacerba, onde
Papini e Tavolato, “imoralista” futurista notório por seus artigos “Elogio da prostituição” e
“Contra a moral sexual”,63 dardejam suas invectivas contra aqueles que apoiam os preceitos
da moral cristã sobre a sexualidade, elogiando, no sentido oposto, aqueles que são livres: “e
creio, creio, creio que uma pia de vícios valha uma centena de igrejas e mil redações, creio
que o ato sexual seja ação intelectualmente e moralmente superior à criação de uma nova
ética (...)”.64 A prostituta, o cafetão, o pederasta, o homossexual são glorificados em prosa e
verso pelos futuristas que claramente se assemelham, pelas tendências antiburguesas, aos
poetas decadentes.65 Soffici e Papini criticam de maneira violenta a família como instituição e
propõe diversas soluções para esse problema, ainda que não recomendassem explicitamente
os hábitos de certas tribos que comiam seus antepassados.66 O bandido e o rebelde são
exaltados67 e o criminoso é considerado por Papini, desde antes de seu período futurista, como
um dos raros traços do homem verdadeiro.68 Os outros traços seriam o selvagem, o infante, o
tragédias clássicas de um modo cômico e que as obras de Bach e Beethoven poderiam ser
animadas com a ajuda das canções napolitanas ou tocando-as de trás-pra-frente. Ele propunha,
também, encenar toda a produção dramática de Shakespeare em um ato e de fazer Hernani
ser declamado por atores vestidos com sacos.87 O monólogo de Hamlet, o ciúme de Otelo, a
demência de Lear etc., deveriam, segundo Palazzeschi, suscitar violentas risadas e vaias em
um público inteligente. Segundo Boccioni, Tristão e Isolda, Paolo e Francesca e outros casais
dessa categoria davam náuseas a um verdadeiro futurista.88 Mesmo Nietzsche, sem nenhuma
dúvida, um dos pais intelectuais do futurismo, era renegado, visto que ele era “um passadista
que marcha sobre os cumes dos montes tessálios, com os pés lamentavelmente agrilhoados
por longos textos gregos”.89
Os manifestos artísticos eram impregnados de um ódio e de um desprezo pela arte
anterior e pela “velharia artística” da época. Os futuristas achavam que o gosto artístico do
período poderia ser resumido pelas multidões de espectadores que se aglomeravam no Louvre
diante da “Monalisa” recém-descoberta – “O ícone do passadismo. O paradigma do lugar-
comum. A cloaca da imbecilidade internacional.”90 Em Lacerba, os futuristas queixam-se, de
comum acordo, que aquele quadro foi redescoberto, enquanto Soffici exprime seu grande
contentamento que um laxativo italiano fosse denominado “La Gioconda” e que, dessa maneira,
mesmo na Itália, um crítico de arte tivesse nascido saudável.91 Lacerba fez propaganda desse
laxativo92 e de seu Almanacco Purgativo, onde a Arte, os Mestres e as obras-primas foram
sujeitas a zombarias de toda espécie.
Em contraste com a beleza da antiguidade, uma página inteira de Lacerba é preenchida
com um desenho de Rosai intitulado “Latrina”.93 Carrà, numa composição em “parole in libertà”,
qualifica a arte italiana da época de “cacaca de mosquito sobre a lousa”.94 Marinetti, aliás,
declarou: “O petróleo e a dinamite não pertencem exclusivamente à política, eles poderão
também nos livrar um dia da tirania das glórias do passado artístico”.95 A luta dos poetas
futuristas contra o culto dos grandes “Mestres” assemelha-se àquela dos artistas. Vimos que
o título de Lacerba faz alusão a um poema escrito por um herético que crivou Dante com
suas afrontas. Aos olhos de Marinetti, a “Divina Comédia” era, em primeiro lugar, “a Caixa
de Pandora dos glosadores”.96 Já durante a era pré-futurista, Marinetti, em duas coletâneas
de ensaios, havia sido bastante irônico por conta de d’Annunzio. Em Almanacco purgativo,
encontramos seu nome também entre “os nossos mortos”.97 Conforme Soffici, d’Annunzio
seria lembrado como “o bidê das Musas”.98 Aliás, os futuristas não estavam sozinhos em fazer
campanha contra o grande Gabrièle. Os ataques de Thouvez são bastante conhecidos. De
grande interesse parece-nos a batalha de G. P. Lucini contra d’Annunzio.99
Em diversas ocasiões, por conta de futuristas particulares, abordamos de passagem
o interesse mínimo que os futuristas manifestavam pela filosofia. Vimos que Lacerba, sob
a égide de Papini, toma decididamente posição contra Croce. É claro que, sobretudo a
filosofia alemã, é exposta a ridicularizações futuristas. Soffici declara que o absoluto, para um
futurista, é menos interessante que o Moulin Rouge.100 O movimento faz-se deliberadamente
antiintelectualista, e os futuristas pregam repetidas vezes o papel desempenhado pelo instinto
e pela intuição, à custa da inteligência. “Poetas futuristas! Eu vos tenho ensinado a odiar as
bibliotecas e os museus, para prepará-los a ODIAR A INTELIGÊNCIA, despertando em vós
a divina intuição, dom característico da raça latina” (MARINETTI, 1914, p.96), onde algumas
passagens testemunham, por parte do autor, o conhecimento ao menos superficial das teorias
antiintelectualistas de Bergson, bastante na moda por aquela época. Orestano (1941) vê o
futurismo e o papel que ele dá ao instinto como uma terceira possibilidade ao lado das duas
tendências eternas, classicismo (“razão”) e romantismo (“sentimento”).
Em nossa apresentação do movimento futurista destacamos que havia muitas contradições
nas ideias futuristas, mas que o futurismo em si implica as contradições. Diversas vezes Papini
(1914) reivindica o direito de contradizer-se,101 aliás, um dos primeiros princípios estabelecidos
pelos fundadores de Lacerba.102 Todos aqueles que marcham à frente, todos os movimentos de
vanguarda correm o risco de encontrar soluções prematuras e de cair, por consequência, em
contradição consigo próprios. Os futuristas pregavam abertamente um “dinamismo ideológico”:
Ele (Marinetti) rasga, ele corta-se esta noite, esta que deu à luz esta manhã. Avante! Assim
Michelangelo pinta o Juízo final sobre um afresco de Perugin. Assim Raphael pinta seus
afrescos do Vaticano sobre os afrescos do mesmo Perugin e de Sodoma. O respeito ao ontem
dá torcicolos. Atropelemos o que quer que seja. Calcemo-nos do que será – e a galope!103
Naturalmente este desejo de penetrar na realidade, com toda a simpatia de ser, e de querer
identificar-se no objeto por meio da intuição, não poderia encontrar melhor justificação
do que na filosofia de Bergson.111
É evidente que as pesquisas dos artistas futuristas que tendiam a capturar os objetos
em seu movimento, de tornar a realidade em devir, oferecem analogias com as grandes linhas
da filosofia de Bergson.
No que se refere a Marinetti, as analogias com Bergson são, contudo, bastante vagas e
corremos sempre o risco de atribuir uma atitude muito filosófica a ele sempre que nos referimos
a Bergson a esse propósito. Marinetti tinha, sem dúvida alguma, conhecimento sobre as grandes
linhas da filosofia em voga.112 Ele cita, às vezes, slogans do tipo “A vida transcende o intelecto”, e
fala muito frequentemente da poesia, da língua, da inspiração e da intuição em termos que se
assemelham, um pouco, aos de Bergson para exprimir suas teorias sobre a intuição e a “duração”.
Marinetti escreve em Le futurisme (1911) que o verso livre futurista, “perpétuo dinamismo do
pensamento”, exprime “o dinamismo de nossa consciência”.113 No manifesto técnico da literatura
futurista (1912) ele defende “a continuidade variada de um estilo vivo que se cria por si só, sem
a interrupção absurda da vírgula e do ponto”.114 Podemos ver que as analogias com Bergson
são bastante vagas. Somos levados a crer que Marinetti conheceu Bergson, sobretudo, por
intermédio do dilúvio de artigos de vulgarização sobre a filosofia que encontramos nas revistas
mais ou menos literárias da época. Em nossa opinião, há uma evidente tendência a superestimar
a importância de Bergson para o futurismo literário. Os pontos de partida são muito diferentes.
A fonte principal da noção de dinamismo para os futuristas extrovertidos deve ser buscada em
sua “modernolatria”. Bergson, ao contrário, sem sombra de dúvida um introvertido, olha antes
com desdém para as invenções mecânicas da época. Constatamos, enfim, que os críticos do
pré-guerra não fazem, senão raramente, a aproximação em questão. Aqueles que estabelecem
o paralelo são sempre “antibergsonianos”, assim como Benda.115
Aquilo que distingue, em primeiro lugar, o homem dinâmico e futurista do homem
estático e passadista é precisamente que ele está em constante movimento. Marinetti fala
em sua carta aberta a Mac Delmarle da “necessidade de andar sempre em frente, não desistir
jamais”.116 Sobre tal ponto os futuristas estão claramente de acordo com d’Annunzio, de quem
puderam aplicar o slogan “marchar, não apodrecer” (“marciare non marcire”). Devia-se ser
ativo sempre, devia-se criar a todo preço. Pittura Scultura Futuriste, obra monumental
de Boccioni, termina com as palavras “Única necessidade, única vontade: SAIR”,117 e Soffici
finaliza seu Giornale di bordo com a seguinte frase: “entre a grandeza ou a imbecilidade, o
que importa? – Navegar.”118 A poesia futurista abunda em temas relacionados ao homem que
viaja, que marcha adiante. Até mesmo os pedestres poderiam, a tal respeito, aprender alguma
coisa de muito essencial em relação ao passadista. “Levanta e muda o passo, / mexa o pé
reumático, / balança a paralítica mão, / e caminha veloz, caminha”, canta Folgore, fazendo
alusões evidentes ao manifesto de abril (1909).119
Toda atividade criativa é celebrada. “Não existe nem pintura, nem escultura, nem música,
nem poesia, não existe nada além de criação!”, escreveu Boccioni, que adota, às vezes, essa
perspectiva monista ao observar a arte e a literatura futuristas.120 “Em nós há febre de criar”,
canta Armando Mazza,121 enquanto Soffici entusiasma-se pela “loucura criativa”.122 Defendendo
Marinetti dos ataques póstumos, Benedetta escreveu que a ideia-força do chefe futurista foi
sempre “criar”.123 Nessa perspectiva, a definição do futurismo como “a nova fórmula de Arte-
ação”,124 feita por Marinetti, torna-se plena de significação. Sem dúvida, havia um élan místico
inerente à febre de atividade que caracteriza a maioria dos futuristas. Também Marinetti
apreciava muito aqueles que qualificavam os futuristas de “místicos da ação”.125
A atividade criativa deveria ser comum também a todos que entrassem em contato com
uma obra futurista. O público devia participar da ação de uma peça por meio de improvisações
de toda espécie,126 o que aconteceu, sem nenhuma dúvida, durante muitas das “noites
futuristas”! Se os espectadores não eram ativos, podiam tornar-se agressivos de muitos modos.
Podia-se vender a mesma cadeira no teatro a uma dezena de pessoas, podia-se colocar cola
sobre as cadeiras, podia-se recorrer ao pó de espirro ou ao pó-de-mico etc.127 Os futuristas
acreditavam manifestamente que o valor estético de uma obra era devido precisamente ao
trabalho que presidia ao seu nascimento, a sua criação. O esboço valia mais que a composição
acabada; o fragmento era preferível à estátua feita, a proposição curta à longa dissertação. De
modo categórico, Marinetti proclama em seu pequeno livro, intitulado Le futurisme: “Nada é
mais belo que o andaime de uma casa em construção.”128 Evidentemente, a casa em construção
seria também mais bela que a casa acabada.
Não é de surpreender que os futuristas, que nutriam um culto pela atividade nela mesma,
tenham adotado imediatamente uma atitude agressiva no plano político. Nos manifestos de
abril de 1909, Marinetti faz frente contra “o eterno inimigo que se deveria inventar caso não
existisse!”129 Mas, os inimigos do futurismo eram abundantes.
Citamos, na Itália, sem contar os passadistas em geral: o Vaticano, o clero, o giolitismo130
– índice extremo da democracia, vista pelos futuristas, na esteira de Nietzsche, como um
regime de homens fracos, como uma forma de governo adequada aos pobres passadistas.
Além disso, o socialismo e o pacifismo – “a imunda raça dos pacifistas, agora escondidos nos
porões profundos de seu ridículo Palais de La Haye [Palácio da Paz, em Haia]”.131 Esses grupos
foram expostos, em primeiro lugar, à crítica severa das primeiras declarações políticas dos
futuristas que são, antes de tudo, um manifesto eleitoral (1909), os discursos de Trieste feitos
por Marinetti, seu manifesto “Trípoli italiana” (1911) e, sobretudo, “Programa político futurista”,
lançado em 1913 por Marinetti, Boccioni, Carrà e Russolo.132
Entretanto, os inimigos dos futuristas encontravam-se também fora da Itália e
compunham-se de todos aqueles que se opusessem ao “orgulho, à energia e à expansão
nacional”.133 Os futuristas proclamavam obstinadamente o irredentismo, o imperialismo e o
Panitalianismo, do qual o segundo manifesto político, aquele consagrado à “Trípoli italiana”,
preconiza o nascimento. Em seus parágrafos segundo e terceiro, podemos ler: “A palavra Itália
deve brilhar bem acima da palavra liberdade. É preciso que a lembrança odiosa da grandeza
romana seja enfim atropelada por uma grandeza italiana cem vezes maior.”134 (O último
parágrafo acabaria por tornar-se um ponto litigioso entre o fascismo e o futurismo!)
Em diversas ocasiões e, sobretudo a respeito de Le monoplan du pape, mencionamos
os ataques futuristas dirigidos contra a Áustria e os Habsbourg, “esses cães dos austríacos”.135
Era preciso, também, atribuir importância ao problema triestino. Trieste, “nossa bela pólvora”,
“a face roxa e violenta da Itália, voltada para os inimigos”,136 era, como já destacamos, um
dos lugares de nascimento espiritual do movimento futurista. Marinetti, que tinha vivido em
Paris na época da Ação Francesa e da Liga dos Patriotas, nos dias de Dérroulède, de Barrès e
de Maurras, fala desde 1909 da Trieste do Adriático como “o mar tricolor”.137 Posteriormente,
os futuristas qualificaram o Adriático de “grande lago italiano” e de “nosso mar” (“mare
nostrum”138). Ao visitar Trieste, Marinetti deposita, de modo simbólico, flores sobre a sepultura
da mãe de Oberdan, irredentista conhecido, enforcado pelos austríacos.139 As primeiras “noites
futuristas” (“serate futuriste”) tiveram um caráter bastante irredentista e grande número de
livros e de poemas foram dedicados a Trieste.
Para a realização de tal programa político, era preciso, segundo os futuristas, homens
“dinâmicos”, ativos, os heróis criados no movimento futurista, “escola de heroísmo”.140 Os
futuristas desejavam uma juventude “ávida de originalidade temerária e ansiosa por uma
vida aventurosa, enérgica e quotidianamente heróica”.141 O primeiro dever do futurista era
o de aperfeiçoar-se através de um “heroísmo metódico e quotidiano”.142 Mafarka-el-Bar
enxerga precisamente esse heroísmo como o essencial de seu credo futurista. Aos seus
olhos o futurismo era, antes de tudo, “a religião da Vontade exteriorizada e do Heroísmo
quotidiano”.143 Do mesmo modo, o Etna, em Le monoplan du pape, exige aos homens que
eles estejam “em erupção contínua de heroísmo / contra os céus!”.144 O mesmo era previsto
para a mulher futurista.145 Também os poetas futuristas e os compositores dos manifestos
futuristas prestam, diversas vezes, homenagem aos homens ativos de toda espécie, tais como
os correspondentes de guerra, os soldados,146 os alpinistas e os exploradores, por exemplo, os
heróis dos pólos: Luigi di Savoia, Peary, Andrée e muitos outros ainda. Os Versi liberi de Buzzi
(1913) são dedicados a “Scott / Oates, Bower, Wilson, Evans / estátuas do Humano-Heróico
em marcha / esculpidas pela Morte / no gelo imortal da Natureza / extremamente” (isto
é, aos mártires da expedição fúnebre de Scott). O parágrafo quinto do primeiro manifesto
celebra o homem ao volante,147 e os poetas futuristas foram excelentes em cantar a glória
de Wright, de Chavez e de outros pioneiros da aviação, que eles olham como os primeiros
homens ativos do tempo presente e que opõem aos passadistas e ao passado:
Notas
1Cf., por exemplo, GALLETTI, A. Storia letteraria d’Italia: Il Novecento. Milão: Vallardi, 1951. p. 351;
VACCARI, op. cit., p. 9; BILLIET, J. Du futurisme au primitivisme. L’Art libre, nov 1909, p. 62-63.
4 Ver MARINETTI, F. T. et al. I manifesti del futurismo, prima serie. Florença: Lacerba, 1914. p. 11 ss.
(Uccidiamo il Chiaro di Luna 1909 – “Matemos o luar”). O título dessa obra será referido daqui em
diante como Manifesti, 1914.
5 MARINETTI, F. T. Le monoplan du pape: roman politique en vers libres. Paris: Sansot, 1912. p. 219. Ver
esse capítulo em geral, p. 215 ss. (L’exécrable sommeil).
10 Manifesti, 1914, p. 7.
12 Manifesti, 1914, p. 6. No casamento de Severini, Max Jacob esmagou uma miniatura em gesso da
estátua célebre. Cf. SEVERINI, G. Tutta la vita di un pittore. I - Roma. Paris; Milão: Garzanti, 1946, p.
190.
14 ARNYVELDE, A. Une conference futuriste à la Maison des Étudiants. Gil Blas, 10 fev 1912.
15 Ver MARINETTI, F. T. L’unica soluzione del problema finanziario. Manifesti del futurismo. IV. Milão:
Istituto editoriale italiano, 1919. p. 52 ss. O título dessa obra será referido daqui em diante como
Manifesti, 1919.
17 Manifesti, 1914, p. 7.
18 Ib., p. 8.
19 Ver, por exemplo, CAVACCHIOLI, E. Cavalcando il sole: versi liberi. Milão: Edizioni Futuriste di
“Poesia”. 1914. p. 131; _____. Le ranocchie turchine. Col. manifesto del futurismo di F. T. Marinetti.
Milão: Edizioni di “Poesia”, 1909. p. 20. Boccioni escreveu os “versos maltusianos” que dizem o
seguinte: “O museu é aquela coisa / que assola a nação, / Mas onde se sentem bem / Os cupins, os
tolos e os professores”. PAPINI, G.; SOFFICI, A. et al. Almanacco purgativo 1914. Florença: Edizioni di
“Lacerba”, 1913. p. 36.
21 FOLGORE, L. Il canto dei motori. Milão: Edizioni Futuriste di “Poesia”, 1912. p. 191.
23 No poema “Il canto della città di Mannheim”. MARINETTI, F. T. I poeti futuristi. Milão: Edizione
Futuristi di “Poesia”, 1912. p. 173 ss.
24 D’ALBA, A. Baionette: versi liberi e parole in libertà. Milão: Edizioni Futuriste di “Poesia”, 1915, p. 97.
26 BOCCIONI, U. Pittura Scultura Futuriste: dinamismo plastico. Milão: Edizioni futuriste di “Poesia”,
1914. p. 143.
27 Manifesti, 1914. Ver, em geral, p. 32 ss. (Contro Venezia passatista – Discorso futurista di Marinetti
ai Veneziani, 1910).
28 Ib., p. 35.
29 Ib., p. 32.
33 Ib., p. 11 ss.
34 CAVACCHIOLI, E. Cavalcando il sole: versi liberi. Milão: Edizioni Futuriste di “Poesia”. 1914. p. 66 ss.
35 MARINETTI, I poeti futuristi, p. 173. – A mesma antipatia pela lua encontra-se às vezes em Nietzsche.
Cf., p. ex., Also sprach Zarathustra, Zweiter Teil: Von der unbefleckerErkenntis; p. 118 na edição da
Reclams Universalbibliothek, Sttugart, 1951. [ed. bras.: Assim falou Zaratustra: um livro para todos e
para ninguém. Tradução, posfácio e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2011].
37 PAPINI; SOFFICI, et. al. Almanaco Purgativo 1914, p. 67. Aí encontramos, entre outros, os seguintes
“versos maltusianos”: “Veneza é a única coisa / Que deságua na merda / Merda nova, merda antiga
/ Merda, merda ao infinito.” (p. 48).
38 É assim para Tavolato. Cf. Lacerba, 1 jun 1914, p. 168 (Zibaldone). Palazzeschi também pensa assim;
cf. VIVIANI, A. Giubbe Rosse (1913-1914-1915). Florença: Giunti Barbera, 1933, p. 119. Há diversas
descrições de cidades passadistas nas coletâneas “futuristas”; cf. os poemas seguintes de Govoni:
“Venezia”, “La città morta” e “Io e Milano” (Lacerba 1915, 15 de julho, p. 155; 15 mar, p. 52; 1º de
dezembro, p. 247). Cf. também os seguintes poemas de Buzzi: “Notturno veneziano” e “Grande elegia
romana”, BUZZI, P. Aeroplani: canti alati col Il Proclama futurista di F. T. Marinetti. Milão: Edizione di
“Poesia”, 1909, p. 145, p. 71.
42Cf. PAPINI, Contro Firenze (Esse discurso encontra-se em Lacerba, 15 dez 1913, p. 284 ss. Ver
também Almanacco Purgativo 1914, p. 35, p. 48).
45 Em Prometeo (Madri), 3º ano, n. 20, p. 517-531. Cf. Le futurisme, p. 207 ss. (Proclamation futuriste
aux Espagnols). Manifesti, 1914. p. 52 ss. (Contro la Spagna passatista).
47 MARINETTI & NEVINSON. English Art. Lacerba, 15 jul 1914, p. 209 ss.
49 Lacerba, 15 ago 1913, p. 173-174. Cf. GUINCHARD, G. Il faut tuer Montmartre. Comœdia, 18 jul 1913.
51 Manifesti, 1914, p. 6.
52 Ib., p. 7.
61 Manifesti, 1914, p. 118 ss. (Manifesto futurista della Lussuria). Sobre a maneira futurista de olhar a
mulher – mas, acima de tudo, sobre a maneira particular de Goretti, ver GORETTI, M. La donna e il
futurismo. Verona: La Scagliera, 1941. Sobretudo, p. 81-86. Em alguns pontos, Marinetti e Valentine
de Saint-Point concordam claramente com Nietzsche. Cf. Also sprach Zarathustra, Erster Teil: Vom
alten un jungen Weiblen (p. 61 ss.).
62 SOFFICI, A. Giornale di bordo. Florença: Libreria della “Voce”, 1915 (ed. de 1921), p. 83; cf. p.6.
Destacamos em nosso capítulo introdutório que Nietzsche exerceu uma forte influência sobre a jovem
geração em torno de 1900. O manifesto “Il controdolore” de Palazzeschi é característico dessa tendência
nietzschiana mais do que o é o seu autor. Mas há, claro, grande número de pontos em Nietzsche sobre
os quais os futuristas não estão de acordo com o seu “pai intelectual”. Cf., por exemplo, Manifesti, 1919,
I, p. 124 ss., Le futurisme, capítulo nove (Ce qui nous sépare de Nietzsche). Sobre Nietzsche na Itália, v.
SCHIORTINO, G. Esperienze antidannunziane. Palermo: Ciclope, 1928, p. 15 ss.
63 Lacerba, 1 mai 1913, p. 89 ss. – aliás, uma das obras futuristas sobre a qual foi movido um processo
por pretenso atentado ao pudor – e Lacerba, 1 fev 1914, p. 27 ss. Soffici tinha, ainda, a intenção de
publicar uma “revista de pura poesia e de alta cultura” intitulada “O bordel espiritual”. Cf. Giornale di
bordo, p. 108.
64 TAVOLATO, Glossa sopra il manifesto futurista della lussuria. Lacerba, 15 mar 1913, p. 59.
66 Ver SOFFICI, Appunti su famiglia. Lacerba, 15 jul 1914, p. 211 ss.; PAPINI, I cari genitori. Lacerba, 15
maio 1913, p. 97 ss.; Almanacco Purgativo 1914, p. 29.
67 Ver, por exemplo, TOMMEI, Elegia per il povero teppista. Lacerba, 15 jun 1914, p. 185-186; MARINETTI,
F. T. Le monoplan du pape, p. 225 ss.
71 TAVOLATO, L’anima di Weininger. Lacerba, 1. jan 1913, p. 5-6.; BUZZI, Versi liberi, p. 16-17.
78 Lacerba,1 jun 1913, p. 110 ss. Até mesmo o arcebispo de Florença condenou esse artigo. Cf. Rivistta,
settimanale d’arte, di scienza e di vita. Florença, 15 jun 1913.
79 Lacerba, 1 abril 1914, p. 111 (Caffè). Observemos também que Papini presta homenagem ao porco,
que se atreve a ser ele mesmo. Cf. PAPINI, G. Viva il maiale. Lacerba, 15 maio 1914, p. 145 ss.
80Por exemplo, Brandes. Cf. TAVOLATO, Giorgio Brandes. Lacerba, 15 jan 1913, p. 13 ss.; Ruskin, cf.
Le futurisme, p. 33 ss. Os críticos literários que davam o tom na Itália foram “definidos” por SOFFICI,
Giornale di bordo, p. 138-139. – Lembramos com frequência a atitude desdenhosa adotada por
Nietzsche em relação aos eruditos. Cf., por exemplo, Also sprach Zarathustra, Zweiter Teil: Von den
Gelehrten, p. 122 ss.
82 Papini fez um resumo de suas querelas com Croce em Stroncature. Florença: Libreria della Voce,
1916, p. 3-56. (B. Croce).
83SOFFICI, Giornale di bordo, p. 70. Encontramos os brocados lançados a Croce, sobretudo nas
páginas 23, 34, 43, 91, 114, 124 e 229.
90 SOFFICI, Giornale di bordo, p. 257. Cf. também alguns “versos maltusianos” em Almanacco
Purgativo 1914, p. 37.
92 Lacerba, 15 jan 1914, p. 31 (Caffè). Cf. Manifesti 1914, p. 166 (Il teatro di varietà).
97 Almanacco purgativo 1914, p. 141. Cf. os “versos maltusianos” (“versi maltusiani”) na página 47.
99 Ver LUCINI, G. P. Il verso libero. Milão: Edizioni di “Poesia”, 1908. Sobretudo p. 505-518;
Antidannunziana.
101 Ver, por exemplo, PAPINI, G. Anch’io son borghese. Lacerba, 15 abril 1914, p. 115; Prefácio de PAPINI,
G. Ventiquatto cervelli. Ancona: Giovanni Puccini, 1913. [Reed.: Roma: Edizioni dell’Altana, 2007.]
103 ARNYVELDE, A. Durante uma conferência futurista na Maison des étudiants (Paris).
105 ORESTANO, Gravia Levia, p. 208. – A versão de Orestano não está de todo correta, mais ela se
presta muito bem para caracterizar a atitude de Marinetti e de Nietzsche. Cf. Also sprach Zarathustra,
Erster Teil: Vom Baum am Berge, p. 37.
107 SANT’ELIA, A. L’architettura futurista. Lacerba, 1 ago 1914, p. 230. Cf. CARRÀ, La mia vita, p. 178.
108 PAPINI, Ventiquattro cervelli, p. 291. É óbvio que os futuristas aprovavam a filosofia que proclamava
que a realidade era móvel. Cf., por exemplo, “Não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se
fazem; não estados permanentes, mas somente estados cambiantes”. (BERGSON, Introduction à la
Métaphysique, p. 25.)
109 Ver VIVIANI, A. Il poeta Marinetti e il futurismo. Turim: Paravia, 1940, p. 122.
110 O que já fez FLORA, F. Dal romanticismo al futurismo. 2. ed. Milão: A. Mondadori, 1925, p. 104 ss.
112 Ver Manifesti, 1914, p. 96 ss. (Risposte alle obiezioni, 1912) onde Marinetti defende-se das tendências
bergsonianas que lhe são atribuídas.
113 MARINETTI, Le futurisme, p. 90. Cf. ib. “O eu integral canta, pinta, esculpe indefinidamente em seu
pérpetuo devir. Uma sucessão de estados líricos, excluindo toda ideia parnasiana de exterioridade
recíproca de compreensão (...).” (Il s’agit de vers libre futuriste).
115Ver BENDA, J. Une philosophe pathétique. Cahiers de la quinzaine, Paris, 1913, n. 41, p. 54; GOTH,
M. La peinture pure. Les Hommes du Jour, 13 de dezembro de 1913; Jacques Maritain considera
o futurismo como “uma caricatura do bergsonismo” (La philosophie bersonienne: études critiques.
3.ed. Paris: Téqui, 1948, p. 302-303). Wyndham Lewis (Time and Wester Man. Nova Iorque: Harcout
Brace, 1928, p. 207) vê Marinetti como um “puro-sangue bersoniano”.
116 Archivi del futurismo, p. 26. Cf. Lacerba, 15 ago 1913, p. 174.
123 MARINETTI, B. Benedetta difende Marinetti. Il Giornale d’Italia, Roma, 11 out 1948.
124 MARINETTI, F. T. Guerra sola igiene del mondo. Milão: Edizioni Futuriste di “Poesia”, 1915. p. 5.
125 Essas palavras encontram-se como lema na capa do livro MARINETTI, F. T. Futurismo e Fascismo
(Foligno: F. Campitelli, 1924).
130Relativo a Giovanni Giolitti (1842-1929), político italiano que foi primeiro-ministro de seu país em
cinco diferentes mandatos. [N.T.]
131Introdução não paginada de MARINETTI, F. T. La bataille de Tripoli (26 octobre 1911): vécue et
chantée par F. T. Marinetti. Milão: Edizioni Futuriste di “Poesia”, 1912. (La Tripoli italiana). O ódio
dos futuristas pela democracia é testemunhado, entre outros, por um artigo de Tavolato intitulado
“Bestemmmia contro la democrazia”. Lacerba, 1 fev 1914, p. 44.
133 Poesia 1909, n.s 3-6, abril/jul, p. 35 (Il manifesto politico dei futuristi).
MARINETTI, Le monoplan du pape, p. 154. Ver esse livro em geral. [N.T.: A expressão francesa possui
135
uma sonoridade original que se perde na tradução para o português: “ces chiens d’Autrichiens”.]
138 “Mare Nostrum (‘nosso mar’, em latim) era o nome dado pelos antigos romanos para o Mar
Mediterrâneo. Nos anos após a unificação da Itália, em 1861, o termo foi revivido por nacionalistas
italianos que acreditavam que o país era o sucessor do Império Romano e devia procurar controlar
os territórios que pertenceram a Roma por todo o Mediterrâneo. O termo foi utilizado novamente
por Benito Mussolini na propaganda fascista, de maneira similar ao lebensraum de Adolf Hitler.”
Cf. Mare Nostrum. In: Wikipédia: a enciclopédia livre.
141 Ib., p. 7.
145 Cf. Manifesti, 1914, p. 69 ss. (Manifesto della donna futurista 1912).
146 Cf. as descrições que Marinetti faz do lugar-tenente Franchini (p. 25 ss.) e do capitão Piazza (p. 45
ss.) em La bataille de Tripoli.
148 Lacerba, 1 abril 1914, p. 105 (Essas são as palavras com as quais termina “Looping the loop”, poema
do poeta futurista Bétuda).
150 Manifesti, 1914, p. 13 (“É preciso que os homens eletrizem a cada dia os seus nervos de um orgulho
destemido”); p. 57 (“o amor ao perigo e à luta, a coragem ousada”); p. 134 (“amor ao perigo e a atitude
de heroísmo quotidiano”), passim. As passagens citadas encontram-se nos manifestos: “Matemos o
luar”, “Contra a Espanha passadista” e “Destruição da sintaxe”.
157 Manifesti, 1914, p. 135, p. 168 (Distruzione della sintassi 1913 e Programa político futurista 1913).
Nevinson exige em seu manifesto Vital English Art: “O esporte deve ser considerado um elemento
essencial na Arte”. Cf. Lacerba, 15 jul 1914, p. 210. Gustave Fivé, “parolibriste” francês e fundador do
“vivantismo”, compôs um poema em palavras em liberdade sobre o tema do esporte. Cf. Lacerba, 1º
de feverreiro de 1946, p. 46 (Sports).
158 Ver, sobretudo, MARINETTI, Le futurisme, p. 99; MARINETTI, F. T. La necessita della violenza.
L’Internazionale, Parma, 26 jun 1910, p. 3. Trata-se de um extrato da conferência que Marinetti fez em
26 de junho de 1910 na “Bourse des ouvriers” (“Bolsa dos trabalhadores”) de Nápoles (Il cittadino eroico,
l’abolizione delle polizie e le scuole di coraggio, em MARINETTI, “Futurismo e fascismo”, p. 56 ss.).
161 Ver, por exemplo, a introdução de Marinetti (p. 19) a PALAZZESCHI, A. L’incendiario. Milão: Edizioni
futuriste di “Poesia”, 1910, e o discurso de Marinetti acima mencionado (em Nápoles).
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