LIMA, Paulo Butti de+OrienteInventadoDemocracia

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Teria o Oriente inventado a democracia?

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Paulo Butti de Lima

Simon-Nicolas-Henri Linguet, autor da Teoria das leis civis ou princpios fundamentais da


sociedade, escreve nesta obra, em 1767: a sia a verdadeira escola, onde devemos buscar todos
os nossos conhecimentos em poltica. A afirmao podia parecer paradoxal, no mundo da
ilustrao. Linguet era um defensor sui generis do despotismo, forma ideal de organizao do poder
poltico, dada a incapacidade humana de se governar. A partir desta posio, aderiu aos apelos
revolucionrios, com a esperana de que os mais fracos entre os cidados fossem melhor protegidos
por um governo desptico e paterno. Revolucionrio convicto, Linguet morreu guilhotinado, em
1794, por sua glorificao do despotismo.
Com sua afirmao sobre a sia escola de poltica, Linguet oferece uma veste moderna para um
paradoxo antigo. Pois tambm no mundo das poleis o mundo no qual se forma a palavra t
politik, as coisas que dizem respeito cidade, e em que os homens tomam conscincia de que
existe um saber prprio a estas coisas, uma episteme ou uma tekhne da poltica , tambm a se
olhava para o Oriente, para um mundo sem poleis, para poder falar de t politik. Que a reflexo
poltica grega nascesse no Oriente no por contraste, mas por transposio podia parecer um
paradoxo para os gregos antigos, mas no era sem fundamento nas suas obras principais.
No se tratava, neste caso, somente da considerao das formas despticas de dominao:
mesmo o que parecia ser propriamente grego a teorizao do governo popular pde ser
observado na Prsia. Em tal modo, lendo as fontes antigas, podemos perguntar: teria o Oriente
inventado a democracia?
Provavelmente sim, segundo Herdoto, que inseriu no terceiro livro de suas Histrias (cap. 80-
82) um debate entre os conspiradores persas que conquistaram o poder no ano 522 a.C. O tema do
debate era: qual forma de governo adotar para o maior imprio ento existente? Lembremos
rapidamente os fatos: com a morte do rei persa Cambises, no retorno de sua expedio contra o
Egito, o poder foi assumido por um usurpador, que dizia ser Smerdis, irmo do rei, quando, na
realidade, o verdadeiro Smerdis fora assassinado pelo prprio Cambises. Um grupo de
conspiradores conseguiu, no entanto, retomar o poder, assassinando o usurpador e os magos (a casta
sacerdotal que estava por trs desta falsa sucesso) e recolocando o problema dinstico nas mos
dos persas. Mas no se tratava somente de estabelecer uma sucesso real: os sete conspiradores
tinham decidido debater sobre como distribuir o poder entre os persas. Otanes, nobre persa e um dos
conspiradores, props que se instaurasse o governo que possu[a] o nome mais belo, isonomie, o
que correspondia, como dito posteriormente, demokratie ou seja, dar-se-ia o kratos, o poder, ao
demos. Tomaram em seguida a palavra Megabizo, que exps as razes da oligarquia, e Dario,
defensor da monarquia. A votao por parte dos sete conspiradores conduziu, como era de se
prever, escolha da monarquia. Este debate teria ocorrido em 522 a.C., antes, portanto, das
reformas do ateniense Clstenes, de 508-507 a.C., as quais deram a Atenas a sua constituio
democrtica.
Foi sugerido por alguns estudiosos em particular por David Asheri, em O Estado persa (2006)
que, referindo este debate, Herdoto implicitamente criticasse a pretenso arrogante e etnocntrica
de os gregos serem os inventores da democracia. O prprio Voltaire, definindo o verbete
democracia para o Dicionrio filosfico, d uma roupagem moderna e irnica para esta crtica,
partindo do preconceito comum: Hoje se pensa que somente na Europa haja democracias. Se no
me engano, eu tambm o disse em algum lugar; mas seria uma enorme impreciso.

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Professor na Universidade de Bari (Itlia) e autor, entre outros, de Plato: Uma potica para a
filosofia (Perspectiva, 2004).
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Voltaire encontra repblicas na Amrica pr-colombiana e na Amrica ainda no subjugada em
seu tempo, o que prova, at certo ponto, que o governo republicano o mais natural. Precisa ser
muito refinado, e ter passado por tantas provaes, para se submeter ao governo de um s.
Encontra tambm democracias entre as tribos negras da frica e nas populaes da ndia. Lembra,
enfim, o sentimento republicano dos janzaros no Imprio Otomano. A questo da poltica parece
sempre se repetir: pergunta-se a cada dia se um governo republicano prefervel ao de um rei. A
discusso leva sempre a convir que bem difcil governar os homens. Voltaire parece lembrar-se
aqui de Xenofonte, que chegara, no incio da Ciropedia, a uma concluso semelhante: to mais
difcil a dominao entre os homens, quanto mais fcil o governo dos animais.
Herdoto defendia com vigor a veracidade do seu relato que suscita interrogativos semelhantes
aos de Voltaire diante de um pblico grego que j ento parecia incrdulo. Poderiam as idias
democrticas ter circulado na Prsia e ter sido vistas como uma proposta concreta de governo, antes
mesmo de sua aplicao nas cidades gregas? Esto de acordo com as dvidas dos ouvintes de
Herdoto geraes de comentadores contemporneos, que desconfiam do historiador e procuram
individualizar a fonte grega desta que uma das primeiras atestaes de um ponto capital da
reflexo poltica grega, o debate sobre as diferentes formas de governo, as diferentes politiai.
Tratar-se-ia de um debate sofista, transposto pelo historiador numa moldura narrativa oriental?
Seria uma inveno de Herdoto? Parece certo, para todos, ou quase, que os termos da questo so
gregos: democracia, oligarquia, monarquia mostram-se como modos gregos de considerar o que
comeava a ser indicado como t politik e que dizia respeito gesto das atividades comuns dos
cidados. Se o debate, no fundo, era grego, Herdoto seria aqui um inventor, um falsrio ou, na
melhor das hipteses, uma vtima do engano de sua fonte.
A discusso se insere em um momento de ruptura na sucesso monrquica na antiga Prsia. A
seqncia genealgica dos reis aquemnidas sofrera ento uma interrupo. Se a interrupo fora
causada pelo precedente usurpador do trono o falso Smerdis, segundo uma seqncia dinstica de
certo modo restabelecida pelos conspiradores ou se foram os conspiradores, e o novo monarca em
primeiro lugar, que interromperam uma sucesso legtima, no podemos sab-lo com certeza.
Ficou-nos a verso do vencedor. As inscries de Dario, em particular a inscrio na rocha de
Behistun, corroboram a histria oficial, com o rei, descendente dos primeiros aquemnidas e
protegido pela divindade, Ahura Mazda, restabelecendo um poder injustamente tomado pelo
usurpador. Herdoto parece estar de acordo com esta verso: Dario, no fundo, era tambm um
aquemnida, podia legitimamente ocupar a posio real entre os persas. Mas a revolta e a
reorganizao do poder insuflavam uma ocasio para se considerarem as formas de governo e de
dominao entre os homens. Uma ocasio de reflexo poltica, mesmo que a constatemos em um
mundo sem poleis, um mundo, portanto, estranho natureza do que era propriamente denominado
poltica entre os gregos, e que, como tal, entrou no nosso vocabulrio e na nossa reflexo.
Pode-se tentar defender a plausibilidade do relato de Herdoto. Foi lembrado que os persas no
tinham sempre vivido sob uma monarquia, que o despotismo no era o modo inevitvel do governo
oriental. Formas primitivas de comunidade poderiam ter permitido a este povo de pastores a adoo
de procedimentos coletivos de deciso. Alm do mais, este no foi o nico momento em que os
gregos olharam para o Oriente como lugar de possveis idias democrticas. No terceiro livro das
Leis, Plato contrape o modelo monrquico persa ao modelo democrtico grego, conforme a
opinio corrente entre os gregos. Todavia, falando de Ciro de uma poca, portanto, anterior de
alguns decnios ao debate referido por Herdoto , diz que naqueles tempos os que detinham o
poder faziam participar da liberdade os governados e os conduziam igualdade. Ao governo de
Ciro Plato atribui uma qualidade essencial da cidade democrtica: a parrhesa, a liberdade de
palavra, a possibilidade de se pronunciar a prpria opinio contra quem detm o poder. Mesmo
Dario, como vimos, monarca por convico, teria introduzido uma certa igualdade entre todos
(Leis, 695 C). Partindo da tradicional contraposio entre gregos e persas, Plato acaba por
relativiz-la, indicando, no quadro do despotismo oriental, as virtudes igualitrias de Ciro e Dario.

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Podemos tambm lembrar que a crtica ao despotismo no era exclusiva do mundo grego. Um
caso concreto de reao monarquia encontra-se, por exemplo, em algumas narraes bblicas,
como a que referida no livro de Samuel (cuja redao difcil datar: no mais tardar, nos anos do
exlio, portanto anterior ao imprio dos reis aquemnidas). O povo pretende um rei como
acontece em todas as naes e isto no do agrado de Samuel, que, por sinal, nomeara seus
filhos juzes. Somente a interveno divina leva Samuel a aceitar o pedido popular, enunciando,
porm, de forma drstica e contundente, o direito do rei: o qual convocar os vossos filhos,
como soldados, lavradores e operrios, tomar vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e
padeiras. Tomar os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais e os dar aos seus
oficiais. E ainda: cobrar o dzimo das plantaes, tomar para o seu servio os servos e os animais
dos hebreus, exigir o dzimo dos rebanhos e, por ltimo mas, certamente, no menos grave ,
vs mesmos vos tornareis seus escravos. Ento, naquele dia, reclamareis contra o rei que vs
mesmos tiverdes escolhido, mas Iahweh no vos responder, naquele dia! (I Sam, 8:1-22).
Outros elementos podem ainda nos conduzir a um contexto oriental para a narrao de Herdoto.
Podemos lembrar uma interpretao original do debate dos conspiradores no que concerne
natureza da reflexo sobre as formas de governo. Todo o relato sobre a ascenso de Dario ao poder
evoca prticas religiosas e rituais. Assim acontecia no momento anterior ao debate: disse Herdoto
que o assassinato dos magos pelos conspiradores dera origem festa dos magophnia, que era
celebrada ainda no seu tempo. Assim tambm acontecia no momento sucessivo ao debate, quando
se decidiu que seria escolhido rei aquele, dentre os conspiradores, cujo cavalo fosse o primeiro a
relinchar ao amanhecer. O cavalo era particularmente importante nos rituais iranianos e mesmo seu
relincho foi mencionado em frmulas dos poemas vdicos. Georges Dumzil sugeriu que tambm o
debate sobre as formas de governo corresponderia a um elemento ritual. Entre os poemas vdicos
encontra-se a indicao de uma corrida de cavalos em que tomaram parte o rei e representantes da
aristocracia ou um campons livre, em meio a outros carros que simbolizavam as divises do ano:
uma corrida que era, naturalmente, sempre vencida pelo rei. Ou seja, uma disputa em que estavam
presentes diferentes grupos sociais e que servia, enfim, para confirmar a supremacia de um deles
algo semelhante discusso entre os conspiradores, que confirmariam o que j vigorava: o regime
monrquico. Esta aproximao da prtica ritual ao nosso exemplo, um dos mais antigos, de reflexo
poltica, com uma discusso cujo resultado desde o incio evidente a vitria da posio
monrquica, independentemente da validade das argumentaes apresentadas pode ser
significativa para a interpretao da reflexo normativa sobre o poder, distante de sua efetiva
aplicao. Levaria, como conseqncia, a desvincular as palavras sobre a poltica, que se trate de
conselho ou deliberao, das aes dos homens que comandam.
Na representao grega da histria medo-persa, so pelo menos trs os momentos de forte
ruptura na forma de organizao poltica, ou de ruptura na sucesso do poder, que se tornam ocasio
de reflexo poltica: no somente a sucesso de Dario, mas j a instaurao da monarquia, no sculo
VII a.C., e o incio do poder imperial persa, com o governo de Ciro.
Herdoto observa em sua narrao o momento mais remoto da histria das dinastias medo-
persas: ou seja, o primeiro rei dos medos, Deioces. Se Deioces era o primeiro rei, como se
governava antes o seu povo? podiam perguntar os crticos da monarquia, vendo a partir deste
momento uma seqncia inexorvel de monarcas e de dspotas. Como um povo pde abdicar do
prprio poder e da prpria liberdade para conced-los a um s indivduo? Quando todos no
continente eram livres autnomoi , eis como caram novamente sob o governo de um s es
tyranndes, disse Herdoto (I, 96). Uma perplexidade, tambm agora, aparentemente grega, mas
plenamente inserida em narraes de provenincia ou tom oriental. Como observado, no caso do
livro de Samuel, a narrativa da instaurao do poder monrquico um lugar propcio para a
incluso de elementos crticos da monarquia, e no somente entre os gregos.
A histria de Deioces, narrada por Herdoto no primeiro livro de suas Histrias, contm uma
mistura equilibrada de consideraes positivas do narrador sobre a sabedoria e a justia de seu
personagem e, ao mesmo tempo, de desmascaramento dos ardis por ele utilizados para se tornar rei.

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A figura do futuro primeiro grande soberano medo apresenta-se como a do justo rbitro, chamado a
dirimir disputas na sua comunidade, e cuja forma de sabedoria se difundia em toda a regio.
Almejando o governo monrquico, Deioces parou em certo momento de dar conselhos, provocando
a desordem social e levando a populao a exigir que um s fosse o detentor do poder: abdicando,
pois, pode-se supor, do que era at ento compartilhado. Da situao de anarquia passou-se
eleio do rei, habilmente guiada pelo prprio Deioces, o qual, assim que eleito, estabeleceu as
medidas necessrias para a imposio e preservao de seu poder: criao da capital o que
significava restringir o poder das demais comunidades , construo do palcio real, isolamento do
rei, determinao de procedimentos que levaram ao cancelamento da antiga situao de igualdade.
Os amigos de Deioces, que foram educados junto a ele e que no lhe eram inferiores por nascimento
e virtude, no mais o vendo, no sofriam pela distncia criada e no se revoltavam, mas o
consideravam heteroos, na sua alteridade.
Tambm aqui surge a suspeita de que as questes de fundo, neste relato de Herdoto, fossem
essencialmente gregas: como se afirma a dominao de um indivduo sobre toda a comunidade?
Como um grupo de cidados abdica do prprio poder para conced-lo a um s dentre eles, tornando
os demais cidados sditos ou escravos? A figura do tirano, recorrente em toda reflexo grega
antiga, encontra aqui seu lugar, e pode-se pensar que Deioces fosse somente um a mais entre os
tantos exemplos gregos de governo desptico. Mais uma vez, porm, preciso ter cautela na
determinao da origem de relatos e reflexes que deviam ser fruto de uma grande contaminao,
em que os elementos por assim dizer polticos no eram somente uma peculiaridade helnica.
Seria, no entanto, a figura do fundador do imprio aquemnida, Ciro, a marcar mais
profundamente a reflexo dos gregos sobre a poltica, e desta vez atravs de um elemento tpico da
representao monrquica: a figura do rei como pastor. O poder da dinastia meda, fundada por
Deioces, seria interrompido na sucesso de um seu descendente, Astages, aps o qual se imps a
dominao dos persas. A passagem do poder no fica clara, e a relao de subalternidade a que
esto destinados os medos explicada de diversas maneiras pelas fontes. De qualquer forma, a
expanso do imprio medo-persa sob Ciro deixa seus traos na literatura das populaes
conquistadas ou de fronteira. A submisso de Babilnia est na origem da narrao e dos elogios do
clero babilnico, assim como dos profetas hebreus. A conquista da Ldia oferece concluso s
narraes que faziam do rei ldio Creso um elemento central de reflexes sobre a sabedoria, em
supostos encontros com personagens gregos como Slon, Bias ou Tales de Mileto. Como foi dito,
a glria e a fama de Ciro so um produto de culturas no-persas.
Histrias de Ciro foram narradas por Herdoto e por Ctsias, um mdico grego da corte de um
rei persa e escritor fantasioso de histrias persas e indianas. Mas as histrias de Ciro foram tambm
elemento de reflexo para vrios dentre os discpulos de Scrates. A comear por Antstenes, que
escreveu um dilogo intitulado Ciro ou sobre a realeza. Um dilogo do qual quase nada sabemos,
alm do ttulo, assim como possumos somente em parte a tradio narrativa e de reflexo poltica
sobre a qual ele devia basear-se.
Deste mundo narrativo podiam emergir algumas das principais reflexes gregas que so, para
ns, momentos significativos na constituio de uma filosofia poltica (uma expresso que podia
parecer contraditria na poca de Plato). No , pois, casual que o primeiro grande soberano persa
que Plato viu luz de seu governo liberal permitisse a Xenofonte compor seu tratado-
romance sobre o governo dos homens, a Ciropedia, uma obra que j os antigos punham em relao
com a Repblica. Tambm Plato demonstrava admirao pela representao do poder em sua
forma pastoral: na cidade justa, os filsofos seriam pastores, pastores da cidade, ou seja, pastores
de homens, como j os heris homricos, mas, principalmente, como Ciro, segundo Xenofonte ou o
profeta bblico do Segundo Isaas. O mesmo Ciro que, conforme relatam as Leis de Plato, era
promotor de igualdade e liberdade de palavra, mesmo sob um comando desptico. Entre virtudes
democrticas e excelncia do governo, o Oriente dava lies para quem declinasse o vocabulrio da
polis e seus derivados. Tambm Plato, antecipando Linguet, parece nos lembrar que a sia a
verdadeira escola de poltica.

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