Educacao Do Campo MST

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EDUCAÇÃO POPULAR E OS

MOVIMENTOS SOCIAIS
NA ATUALIDADE:
CONTEXTOS E DEBATES

Organizador
Ivanio Folmer
Editor Chefe Diagramação e Projeto Gráfico
Ivanio Folmer Gabriel Eldereti Machado
Bibliotecária Imagem capa
Aline Graziele Benitez www.canva.com
Revisora Técnica Revisão
Gabriella Eldereti Machado Organizadores e Autores(as)

Conselho Editorial

Prof. Dr. Adilson Tadeu Basquerote Silva -Universidade para o Desenvolvimento


do Alto Vale do Itajaí
Profa. Dra. Alicia Eugenia Olmos - Universidad Católica de Córdoba
Prof. Dr. Astor João Schönell Júnior - Instituto Federal Farroupilha
Prof. Dr. Alan Ricardo Costa - Universidade Federal de Roraima
Prof. Dr. Camilo Darsie de Souza -Universidade de Santa Cruz do Sul
Prof. Dr. Carlos Adriano Martins - Universidade Cidade de São Paulo
Prof. Dr. Christian Dennys Monteiro de Oliveira - Universidade Federal do Ceará
Profa. Dra. Dayse Marinho Martins - Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Deivid Alex dos Santos - Universidade Estadual de Londrina
Prof. Dr. Dioni Paulo Pastorio -Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Prof. Dr. Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos - Faculdade Sesi-Sp
de Educação
Profa. Dra. Elane da Silva Barbosa - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Profa. Dra. Francielle Benini Agne Tybusch - Universidade Franciscana
Prof. Dr. Francisco Odécio Sales - Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará
Prof. Dr. Gilvan Charles Cerqueira de Araújo - Universidade Católica de Brasília
Prof. Dr. Leonardo Bigolin Jantsch -Universidade Federal de Santa Maria
Profa. Dra Liziany Müller Medeiros -Universidade Federal de Santa Maria
Profa. Dra Marcela Mary José da Silva - Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia - UFRB
Prof. Dr. Mateus Henrique Köhler - Universidade Federal de Santa Maria
Prof. Dr. Michel Canuto de Sena - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Profa. Dra. Mônica Aparecida Bortolotti - Universidade Estadual do Centro-Oeste
Prof. Dr. Rafael Nogueira Furtado - Universidade Federal do ABC
Prof. Dr. Roberto Araújo Silva - Centro Universitário Lusíada
Prof. Dr. Sidnei Renato Silveira - Universidade Federal de Santa Maria
Prof. Dr. Thiago Ribeiro Rafagnin - Universidade Federal do Oeste da Bahia
Prof. Dr Tomás Raúl Gómez Hernández - Universidade Central “Marta Abreu” de
Las Villas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação popular 370.115
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

10.48209/978-65-5417-150-2

Esta obra é de acesso aberto.


É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte
e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.

ARCO EDITORES
Telefone: 5599723-4952
[email protected]
www.arcoeditores.com
APRESENTAÇÃO

A Educação Popular (EP) constitui uma orientação teórico-metodológica


para as realizações de práticas e ações educativas, configurando-se enquanto
um importante paradigma do pensar e do agir enquanto sujeitos críticos e ativos
na sociedade.
Sabe-se que a EP nasce em meio às perspectivas críticas de pensar a Edu-
cação na América Latina, no entanto é no final da década de 1950 que se con-
solida enquanto teoria e prática social, através de uma ação pioneira do Serviço
de Extensão da Universidade de Pernambuco com ações de alfabetização com
jovens e adultos.
Dito isso, essa obra, no ano de 2023 torna-se uma obrigatoriedade no
sentindo de pensar e refletir sobre as práticas acerca das ações da Educação Po-
pular e sua importância para a emancipação do sujeito frente as problemáticas
contemporâneas.
Convido à tod@s que tenham interesse pelo tema a lerem, absorverem e
multiplicarem o conteúdo desta obra.

Boa leitura.
Ivanio.
Sumário
CAPÍTULO 1 - PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO POPULAR EM
RORAIMA: FORMAÇÕES DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE
NO CONTEXTO DA PANDEMIA...........................................................8

Maria de Nazaré da Silva Nunes


Eduardo Gomes da Silva Filho
doi: 10.48209/978-65-5417-150-0

CAPÍTULO 2 - FATORES EXTRAJUDICIAIS QUE INFLUENCIAM


A INTERVENÇÃO DO OPERADOR DO DIREITO: UMA
ANÁLISE PARCIAL E LOCALIZADA DO SETOR DE
ATENDIMENTO AO PÚBLICO DA DPU EM VITÓRIA/ES......23

Sidnéia Bento Duque


doi: 10.48209/978-65-5417-150-1

CAPÍTULO 3
- EDUCAÇÃO QUILOMBOLA, AMBIENTAL
E ALIMENTOS DO CAMPO: UMA AÇÃO
PSICOPEDAGÓGICA.................................................................................38

Eunice Simões Lins


Denyo de Freiras Pereira
Maria Eduarda Alexandre Galvão
Sara Rebeca Souza Ramos
Ademar Cândido S. Lins Filho
Josyara Florencio Ferreira
Roberta Bezerra da Silva
doi: 10.48209/978-65-5417-150-3
CAPÍTULO 4 - EDUCAÇÃO CRÍTICA E PRÉ-VESTIBULAR: A
DISCUSSÃO SOBRE EDUCAÇÃO BANCÁRIA E EDUCAÇÃO
DIALÓGICA E O VESTIBULAR COMO INSTRUMENTO DE
REPRODUÇÃO DA EXCLUSÃO..........................................................54

Renan de Abreu Cruz Arruda


doi: 10.48209/978-65-5417-150-4

SOBRE O ORGANIZADOR...........................................................68

SOBRE OS AUTORES......................................................................69
Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

CAPÍTULO 1

PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO
POPULAR EM RORAIMA:
FORMAÇÕES DA CAMPANHA
DA FRATERNIDADE NO
CONTEXTO DA PANDEMIA1
Maria de Nazaré da Silva Nunes
Eduardo Gomes da Silva Filho
Doi: 10.48209/978-65-5417-150-0

Resumo: A campanha da fraternidade é uma ação evangelizadora proposta pela Con-


ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), acontece no Brasil desde 1964,
tendo como objetivo trabalhar nas comunidades/igrejas temas diferenciados voltados
para as garantias dos direitos sociais, considerando o princípio da dignidade da pes-
soa humana. Sendo assim, este estudo dedica-se à escrita sobre as práticas de edu-
cação popular em Roraima, desenvolvidas pelas pastorais da igreja católica. Entre
as suas práticas, destacam-se às formações e capacitações realizadas no contexto da
campanha da fraternidade. Soma-se a isso, as articulações e formações da campanha
da fraternidade da Diocese de Roraima no contexto pandêmico. Como parte destas
ações, apontar-se-á à importância da educação popular e a suas formas. Utilizou- se
como método uma revisão de literatura, a partir do fichamento e análise de livros
específicos acerca da participação popular e educação popular, além de documentos
da Igreja Católica que deram embasamento à prática da equipe de formação da cam-
panha da fraternidade da Diocese de Roraima. As discussões dos resultados foram

1 Uma versão inicial deste trabalho foi publicada nos Anais do III Congresso Internacional e V
Congresso Nacional de Movimentos Sociais e Educação, em 2021.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

pautadas em tópicos da participação popular na CF/88, além de questões inerentes à


educação popular no Brasil e no Estado de Roraima, com base nas ações das práticas
da equipe de formação da Diocese.

Palavras-chave: Educação Popular, Campanha da Fraternidade, formação.

Introdução

Este trabalho refere-se às práticas de educação popular em Roraima, de-


senvolvidas pelas pastorais sociais da Igreja Católica. Entre tais práticas desta-
cam-se as formações e capacitações que são realizadas no contexto de campa-
nha da fraternidade.
A campanha da fraternidade é uma ação evangelizadora proposta pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), acontece no Brasil desde
1964, tendo como objetivo, trabalhar nas comunidades e igrejas temas diferen-
ciados voltados para as garantias dos direitos sociais da população brasileira,
considerando o princípio da dignidade da pessoa humana.
No ano de 2019, a campanha da fraternidade apresentou como temática
principal Fraternidade e Políticas Públicas. Isso ocorreu, mediante à urgência
de se trabalhar uma forma concreta desse tema nos espaços comunitários da
Diocese de Roraima. A ação contou com 19 voluntários, que atuaram como
educadores populares, com a realização de estudos e formações no Estado de
Roraima, sendo alcançadas mais de mil pessoas na capital e demais municípios.
Explica-se à necessidade de estudar sobre as atividades desenvolvidas
pela equipe da Diocese de Roraima, a partir da perspectiva da importância da
educação popular junto a essas bases, que buscou através dos encontros reali-
zados, promover o protagonismo social, zelado pela cidadania, participação e o
bem comum dos cidadãos.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

A equipe baseou-se na lógica Freiriana de que “[...] ninguém educa nin-


guém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados
pelo mundo” (FREIRE, 1981,
p. 79). Nesse sentido, a relevância do estudo para a sociedade, justifica-se
na partilha das experiências que serão descritas no decorrer do artigo.
Considerando o contexto da pandemia, a equipe precisou se reinventar a
partir da utilização de espaços virtuais para discussões remotas. Diante desse
contexto, viu-se à necessidade de ratificar neste trabalho, as práticas e ativida-
des laborais adotadas pela equipe de articulação e formação da campanha da
fraternidade da Diocese de Roraima no contexto pandêmico, a fim de eviden-
ciar e socializar isso à comunidade acadêmica e à sociedade civil.
Tal inspiração, partiu das inquietações provocadas pelas leituras feitas
por membros integrantes da equipe do Movimento de Cultura Popular (MCP),
que tinha como um dos seus principais idealizadores o educador Paulo Freire.
A esse respeito, podemos observar uma discussão feita na Dissertação
defendida por Juscimar Maria de Paula na Universidade Federal de Uberlândia
em 2014:

A Educação Popular, na versão em que a conhecemos no Brasil e na Amé-


rica Latina, ao longo dos últimos cinquenta anos, inspirada, originalmente,
na obra e na prática política de Paulo Freire, vem passando por marcan-
tes transformações. Seu caráter militante e engajado, seus fortes vínculos
iniciais com o Movimentos de Cultura Popular (MCP) e o Movimento de
Educação de Base (MEB) da Igreja Católica, entre outros que emergiram
na década de sessenta, vão sendo nuançados por outras aproximações po-
líticas – como, por exemplo, do Movimento dos Sem Terra (MST) – mis-
turando-se aos matizes dos mais diversificados movimentos sociais popu-
lares deste final de milênio. Com manifestações em vários continentes, a
Educação Popular continua se caracterizando por suas vinculações com
grupos populares, entendidos, estes, como segmentos populacionais mar-
cados por discriminações, por diferentes formas de exclusão e marginalida-
de social. Trata-se, assim, da educação que tem se ocupado dos “pobres” e,
como diria Freire, dos oprimidos. (COSTA, 1998, pp. 9-10 apud PAULA,
2014, p. 45).

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Como método, utilizou-se pesquisa bibliográfica, pois foram utilizados


livros específicos acerca da participação popular e educação popular, além de
documentos da Igreja Católica que deram embasamento às práticas da equipe
de formação da campanha da fraternidade da Diocese de Roraima. Nesse senti-
do, Gil (2002), menciona que a abordagem bibliográfica favorece ao pesquisa-
dor a possibilidade de compreensão e investigação dos fenômenos estudados,
utilizando-se de referências diversas.
Os resultados dos estudos foram organizados em tópicos, no primeiro,
foram feitas considerações acerca da legitimação da Participação Popular pre-
vista na Constituição Federal de 1988, já no segundo momento, foram feitas
menções a respeito da Educação Popular no Brasil, considerando os primórdios
da educação informal no país, por último, foram apresentados os principais
documentos que embasam às práticas da equipe de formação da Diocese de
Roraima.

Direito à participação popular

A Constituição Federal de 1988 legitimou a participação social, tornan-


do-se essencial atuação da sociedade civil na elaboração, execução e fiscaliza-
ção das políticas públicas, através dos espaços destinando ao controle social.
O texto constitucional também nos aponta para a necessidade de proteção do
Estado frente às manifestações culturais populares, “O Estado protegerá as ma-
nifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.” (BRASIL, Art. 215, §
1º).
Outrossim, é preciso que as ações que visam à educação política corro-
borem para a efetivação da democracia, de modo a superar o analfabetismo
político. Logo, é preciso entender que os conceitos democracia e sociedade

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

civil, passaram por transformações motivadas pelas mudanças societárias de


acordo com o sistema político vigente, nesse sentido, o termo sociedade civil
vem sendo ampliado.
Dessa forma, o que é denominado de democracia não pode ser ligada aos
privilégios políticos de uma determinada classe ou pessoa, e, sim, o bem co-
mum dos cidadãos, utilizando- se da descentralização dos poderes e escolhas,
ao passo que a democracia dever se participativa, e usar de mecanismos políti-
cos para descrições e legitimação. (AVRITEZE, 2009).
Portanto, é possível verificar que estes conceitos não são exclusivamen-
te do contexto atual, eles se perpassaram na história, onde adquiriu uma nova
roupagem no decorrer dos anos, certo disto, cabe-nos fazer algumas ressalvas,
onde a sociedade civil, possa ter conhecimento de qual é o seu papel democrá-
tico no país.
Com tudo GOHN (2008), reafirma que a cidadania no Brasil vem sofren-
do alterações decorrentes do processo sócio-político do país, a sociedade em
sua suma vem construído novos ideais.
Pari passu, a Constituição Federal de 1988, legitimou os espaços destina-
dos ao controle social, diante a isto, cabe ressalta que:

A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos di-


reitos sociais, apontado, claramente, para a construção de um ‘ESTADO
DE BEM ESTAR’, promovendo da universalização dos direitos sociais.
Além disso introduziram-se instrumentos de democracia direta (plebiscito,
referendo e iniciativa popular), regulamentados pela Congresso Nacional
de forma limitada, abrindo a possibilidade de se criarem mecanismos de
democracia participativa (os conselhos de políticas públicas) (BRASIL,
1988, apud AVRITZER, 2009, p. 110).

A afirmativa acima, legitima o direito da participação cidadã no âmbito


da nossa Carta Magna, utilizando-se diretamente de meios democráticos. Po-
rém, a falta de informação prejudica e fragiliza à sociedade civil na busca dos

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

seus direitos constitucionais. Após o momento da redemocratização no Brasil,


onde a instância governamental e municipal passou a ter responsabilidade e
autonomia, surgiu a necessidade de uma maior assistência social, através de
ações públicas.
A Constituinte, passou a englobar cinco novas dimensões, dentre elas
Avritzer (2009, p. 123) ressalta: “formulação, deliberação, monitoramento,
avaliação e financiamento das políticas públicas (orçamento público).” Logo,
a relevância da participação cidadã na sociedade civil pode ser observada na
participação política, administrativa e social.
Portanto, mediante o exposto, foi possível verificar brevemente, como
se deu a construção de uma legislação que favorece e legitima a participação
da sociedade civil no Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de
1988, considerando suas atribuições e prerrogativas legais. Diante disto, se faz
necessário, compreender como a Educação Popular pode contribuem para a
participação cidadã.

Princípio da educação popular

A educação popular surgiu no Brasil na década de 1920, por meio do Ma-


nifesto dos Pioneiros da Escola Nova. O grupo tinha como finalidade a forma-
ção da sociedade para lutar pelos interesses da educação pública. No entanto, a
prática da educação não formal foi moldando um formato mais sólido a partir
aa década de 1960.
Piccin e Betto (2018, p. 18), esclarece que o advento da educação popular
somente nesta época pois: “no início dos anos 60, cerca de 40% da população
brasileira com mais de 15 anos era analfabeta [...]”. Observou-se então à ne-
cessidade de um método que pudesse favorecer a alfabetização da sociedade,
que respeitasse os saberes e experiencias da população vulnerável do país, por-

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

tanto: “[...] a alfabetização popular se tornou um instrumento de luta política e


de busca de direitos, tendo como ferramenta uma popularização da cultura do
próprio povo, através do qual surgem diversos movimentos favoráveis à educa-
ção popular” (Idem, p. 18).
Contudo, podemos compreender a educação popular como:

[...] Práxis social é compreendida como aquela que não está institucionali-
zada, ocorre dentro e com os grupos populares; é determinada pela realida-
de e sua perspectiva é histórica. Desenvolve-se na sociedade para se con-
trapor ao projeto educacional dominante. Por isso, é adotada em diferentes
contextos, principalmente pelos movimentos sociais do campo e da cidade.
(PINI,2019, p. 1).

Todavia, a educação popular é uma prática indispensável nos processos


de lutas sociais, pois, permite à sociedade contato com suas realidades a par-
tir do materialismo histórico-dialético. No Estado de Roraima temos um bom
exemplo disso, pois a metodologia utilizada para o processo de formação é
voltada à realidade da local.
Desta forma, Conceição Paludo esclarece que:

A educação popular, em sua origem, indica a necessidade de reconhecer


o movimento do povo em busca de direitos como formador, e também de
voltar a reconhecer que a vivência organizativa e de luta é formadora. Para
a educação popular, o trabalho educativo, tanto na escola quanto nos es-
paços não formais, visa formar sujeitos que interfiram para transformar
a realidade. Ela se constituiu, ao mesmo tempo, como uma ação cultural,
um movimento de educação popular e uma teoria da educação (PALUDO,
2021, p. 86).

Brandão (2014), descreve que a educação popular no Brasil, pode ser


identificada em cinco momentos: 1º) iniciativas populares que visavam à edu-
cação para os povos do campo e da cidade; 2º) durante o processo de migração
externa com a chegada dos imigrantes europeus (criação de projetos de edu-
cação, pequenas escolas de trabalhadores); 3º) a partir da década de 60 com
os movimentos de democratização do ensino; 4º) a presença da influência de

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Paulo Freire, houve uma luta por uma educação que valorizasse a cultura, con-
trapondo-se à cultura colonialista; e 5º) marcado pela organização dos diversos
grupos sociais, a criação de espaços de educação não-formal.
Durante a década de 60, aconteceu o I Congresso Nacional dos Traba-
lhadores Agrícolas, assim como o processo que legitimou o Estatuto do Traba-
lhador Rural em 1963, com o crescimento das organizações estudantis. A esse
respeito, Igor Natusch comenta:

Primeira legislação brasileira a ter efeito concreto nas relações de trabalho


no ambiente rural, a Lei 4214/63 foi promulgada em 2 de março de 1963,
passando a ser conhecida desde então como o Estatuto do Trabalhador Ru-
ral. Fortemente inspirado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de
1943, o texto foi decisivo para introduzir e efetivar direitos como salário
mínimo, férias, descanso semanal, indenização, aviso prévio e participação
sindical – todos, até então, ainda distantes para a grande maioria dos ho-
mens e mulheres do campo no Brasil (NATUSCH, 2021, p. 01).

Esse período foi marcado por momentos de incertezas, porém, foi um


momento em que a sociedade civil passou a se organizar para militar a fa-
vor dos interesses coletivos, contraponto ao regime imposto. “Todos unidos
pelo anticomunismo, a doença infantil do antirreformismo dos conservadores”.
(NAPOLITANO, 2014, p. 44).
Contudo, Gohn (2008), esclarece que a cidadania no Brasil passou por
alterações decorrentes ao processo sociopolítico do país, na década de 1970 ela
foi reconhecida como berço da participação social no Brasil. Devido às gran-
des manifestações ocorridas no território brasileiro, com intenção de resgatar à
democracia.
Logo, o período que correspondeu ao regime civil-militar ocorreu à cas-
sação de mandatos de deputados, aposentadorias de funcionários públicos, ex-
tinção de partidos políticos, perseguição aos grupos organizados e movimentos
sociais. Na década de 1970, evidenciou-se então, o descontamento da popula-
ção com o governo brasileiro, motivado sobremaneira pela crise econômica.
A partir daí, iniciaram-se os movimentos que visavam à redemocratização do

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

país, que posteriormente, contribuiriam com a promulgação da Constituição


Federal de 1988, o marco legal que corresponde ao direito e a participação ci-
dadão no processo democrático.
Em relação aos direitos educacionais, Pini esclarece que:

Os contextos da Educação Popular ampliam-se como forma de enfrenta-


mento ao modo de produção capitalista, tendo em vista, que a estrutura
social vigente é promotora da desigualdade, violência, individualismo e
barbárie. Por isso, que no documentário intitulado “Utopia ou barbárie”, o
diretor e escritor, Lincoln Secco retrata o quadro de violências que vivemos
durante o século XX e aponta como contraponto as diversas lutas no campo
e na cidade, em diferentes períodos da história que pudessem impulsionar
as atuais gerações para pensarem quais as utopias que temos hoje para su-
perar a barbárie (PINI, 2019, p. 2).

Dessa maneira, é notório que a concepção de Educação Popular passou a


ser ampliada ao longo dos anos, sendo reconhecida como instrumento de luta
social, tornando-se indispensável no processo de formação de base, e emanci-
pação social da classe trabalhadora. Nesse sentido, Paludo adverte:

A educação popular vai se firmando como teoria e prática educativas al-


ternativas às pedagogias e às práticas tradicionais e liberais, que estavam a
serviço da manutenção das estruturas de poder político, de exploração da
força de trabalho e de domínio cultural. Por isso mesmo, nasce e constitui-
-se como “Pedagogia do oprimido”, vinculada ao processo de organização
e protagonismo dos trabalhadores do campo e da cidade, visando à trans-
formação social. (PALUDO, 2012, p. 283).

Destarte, a organização dos espaços da educação informal é de extrema


importância, como os propostos pelos movimentos sociais, grupos populares
e sindicados, tais como a Comissão Pastoral da Terra, Comunidade Eclesial
de base, Movimento dos Trabalhadores sem Terra, etc. Nestes espaços, são
utilizadas metodologias e práticas alternativas, que buscam contribuir para a
formação critica da realidade.
A Igreja Católica no Estado de Roraima busca alinhar-se politicamente às
formas da educação popular, por meio de programas de formação continuada

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

de lideranças em políticas públicas e da participação cidadã em parceria com


Instituto Agostin Castejon – IAC, apoiado pela Misereor,2 - cooperadora alemã
-, Curso de Polinizadores em Mudanças Climáticas, Grito dos Excluídos, or-
ganização de seminários e equipe de articulação e formação da Campanha da
Fraternidade da Diocese de Roraima.

Embasamento teórico

O trabalho desenvolvido pela equipe da articulação e formação da cam-


panha da fraternidade da Diocese de Roraima, objetiva a formação social dos
membros das comunidades, nas atividades que buscam promover espaços de
criticidade, tendo como documentos de referências a Doutrina Social da Igreja,
Concílio Vaticano II, encíclicas, Aparecida, Documentos da CNBB 105 - Cris-
tãos Leigos e Leigas na Sociedade, etc. Cabe-nos mencionar os documentos
(base) para as Campanhas das Fraternidades, com ênfase nas transformações
societárias ocorridas no País, e na temática escolhida para ser trabalhada em
cada ano corrente. A Doutrina Social da Igreja (DSI), é reconhecida pela Igreja
Católica, no sentido de orientações teológicas e filosóficas, no que tange às di-
retrizes éticas para a participação política. Isso favorece uma organização eco-
nômica e política das ações de base da Igreja Católica, fundamentadas nas tra-
dições aristotélica-tomista, contendo como princípios: a Destinação Universal
dos Bens, o Princípio da Subsidiariedade, o Princípio da Solidariedade, Princí-
pio do Bem Comum, Participação Social e o da Dignidade da Pessoa Humana.
No que tange ao Princípio da Subsidiariedade, configura-se na urgência
de promover a dignidade da pessoa humana, compreendendo a sociedade civil
como ator primordial na garantia e acesso aos bens de consumo como: moradia,
trabalho, terra e teto. Vale ressaltar que este princípio visa a proteção das pesso-
as de práticas abusivas, cometidas por instâncias sociais superiores.
2 MISEREOR é a Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvol-
vimento.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Em torno do Princípio da solidariedade, observa-se que ele é atrelado à


igualdade e ao direito à dignidade humana. Considerando a superação das desi-
gualdades, o combate à todas as formas de exploração, combate à opressão e à
corrupção. Vale menciona que o princípio do bem comum é entendido em fazer
o bem em sua plenitude. Portanto, entende-se que a “práxis” do bem comum,
busca gerar espaços de equidade social, através de práticas coletivas, em vista
da superação de pensamentos individualistas.
Na Exportação Apostólica o “Verbum Domini” enfatiza a necessidade de
práticas que visem à prevenção e a defesa dos direitos humanos, no documento
é mencionando a necessidade de ações que sejam voltadas para a construção de
uma sociedade justa e solidária.
Júnior (2016), descreve que as ações desenvolvidas pela Igreja Católica
devem ser de cunho permanente, atuando na formulação de estratégias que
visem à compreensão das mudanças sociais. Logo, é necessário construir e for-
talecer processos sociais, atuar nas articulações dos processos socais distintos e
ter convicção nas lutas sociais locais.
Portanto, à prática vivenciadas pela equipe de formação e articulação das
Pastorais Sociais, busca por meio das ações desenvolvidas proporcionar aos
membros das comunidades conhecimentos diversos, acerca das transformações
societárias, tendo como finalidade a formação de lideranças e sujeitos compro-
metidos com a justiça social.
Um dos focos do estudo objetivou estudar às práticas da equipe de for-
mação da Campanha da Fraternidade (CF) frente à pandemia, para tanto, foi
preciso elucidar o que elas representam, assim como seu conceito. De modo
geral, as Campanhas da Fraternidade, são atividades permanentes que são arti-
culadas e pensadas pela Conferências Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
desde 1964, sendo realizadas anualmente, tendo como finalidade despertar os
cristãos para a urgência do compromisso com o “Bem Comum”, a educação

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

para a vida em fraternidade e a renovação da consciência e da responsabilidade


de todos na promoção humana, visando uma sociedade justa e solidária. Desse
modo, faz-se necessário mencionar que:
[...] os temas da CF, inicialmente, contemplaram maus a via interna da
igreja. A consciência sempre maior da situação de injustiça, de exploração
e de crescente miséria levou à escolha de aspectos bem determinados da
realidade socioeconômica e política brasileira (CNBB, 2017, pp. 102-103).

A CNBB, familiariza-se com as temáticas propostas pelas Campanhas


das Fraternidade que são elaboradas a partir de materiais de estudos e trabalha-
das nos diversos espaços, grupos de jovens, orações e catequeses, além de ma-
teriais direcionados para escolas formais. Os materiais apresentam em suma,
aspectos a respeito da realidade brasileira, propõem discussões baseadas em
vivências, experiências e ações.
No material disponibilizado, é possível identificar a metodologia de tra-
balho proposta, a partir de encontros para a formação do método “Ver, Julgar e
Agir”, onde o primeiro, visa propor discussões sobre a realidade, considerando
aspectos sociais e culturais, já o segundo momento é destinado ao processo de
discernimento da realidade para compreender os fatores que contribuem com
aumento das desigualdades sociais, por último, são elaborados ações pontuais,
visando a execução de atividades que vão contribuir para a redução das seque-
las sociais.

Considerações finais

Conclui-se através do estudo a grande relevância e legitimação da parti-


cipação da sociedade civil no controle social das políticas públicas, neste es-
tudo foram utilizados alguns autores de suma importância para compreensão
da sociedade civil no processo político brasileiro, com ênfase nas liberdades
individuais e acesso à educação.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Portanto, é mister que durante processo histórico do Brasil é de grande


relevância a participação da sociedade como mediadora dos direitos sociais,
ocorrido gradativamente, mas com uma maior intensificação a partir da rede-
mocratização nos anos 80. Isso proporcionou uma maior organização da so-
ciedade e de categorias específicas, como nos casos dos sindicatos e dos mo-
vimentos estudantis, reforçando desta maneira o slogan “a união faz a força”.
Dessa forma, a Igreja Católica através de orientações contidas nos do-
cumentos Eclesiásticos, buscou provocar nos cristãos católicos à necessidade
da participação na Doutrina Social da Igreja, como um elemento capaz de po-
tencializar a organização política e social nos espaços destinados ao controle
social à época.
Assim sendo, as Campanhas da Fraternidade, desde a gênese, tornaram-
-se essenciais para a formação de lideranças, além da participação social nos
espaços de controle social. As ações desenvolvidas pela equipe de formação
buscaram por meio do método “Ver, julgar e Agir”, favorecer os espaços de
criticidade e construção de saberes.
Mediante a problemática deste estudo, foi possível perceber a necessida-
de de nortear e reforçar a relevância dos movimentos sociais na participação
democrática no Estado de Roraima. Logo, as ações desenvolvidas pela equipe
de formação da Diocese e Roraima, no foram voltadas para a efetivação da par-
ticipação social nos espaços de controle social, além dos conselhos de direitos,
audiências públicas, plebiscitos e de trabalhos desenvolvidos na perspectiva da
efetivação dos direitos sociais.
Todavia, é preciso escrever sobre as ações desenvolvidas pelos membros
voluntários das equipes de formação e articulação da Campanha da Fraternida-
de. Isto posto, este estudo objetivou provocar curiosidades e inquietações, que
poderão ser sanadas posteriormente, através de questionários e entrevistas que
serão desenvolvidas junto aos membros das equipes participantes das ações.

20
Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

CAPÍTULO 2

FATORES EXTRAJUDICIAIS QUE


INFLUENCIAM A INTERVENÇÃO
DO OPERADOR DO DIREITO: Uma
análise parcial e localizada
do setor de atendimento ao
público da DPU em Vitória/ES
Sidnéia Bento Duque
Doi: 10.48209/978-65-5417-150-1

Introdução

A Defensoria Pública da União foi instituída pela lei complementar nº 80


de 12/01/1994, regulamentando o artigo 134 da Constituição Federal de 1988,
sendo o 1º concurso público para defensores públicos federais realizado apenas
em 2001. A DPU é incumbida da orientação jurídica e defesa do direito dos
assistidos1, população com vulnerabilidades socioeconômicas e socioculturais,

1 Assistido é a nomenclatura utilizada pela Defensoria Pública da União para designar o público
alvo da instituição, pessoas com renda familiar limitada à faixa de isenção do imposto de renda,
limite médio de 02 salários mínimos mensais, com um olhar diferenciado para as minorias sociais
e para os grupos sociais mais atingidos pelas vulnerabilidades socioeconômicas e socioculturais,
tais como: crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiências, pessoas em situação de rua,
encarcerados, imigrantes, indígenas e quilombolas.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

que de alguma forma tiveram seus direitos negados e seu acesso cerceado às
políticas públicas no âmbito federal.
Na última pesquisa nacional das defensorias públicas realizada em 20212
contabilizou-se que haviam 679 defensores públicos federais, sendo 57,6% de
homens, 42,4% de mulheres; 76,3% declarados brancos e 15,4% declarados
pardos e negros. A DPU em Vitória/ES conta atualmente com um corpo profis-
sional de 97 elementos humanos, sendo 12 defensores públicos, 08 servidores
públicos concursados, 32 funcionários terceirizados e 45 estagiários. Nota-se
que grande parte desta inserção profissional (79,38%) se dá através da presta-
ção de serviços por estagiários e terceirizados, que não possuem uma identidade
de pertencimento à instituição de forma mais consolidada, apenas de natureza
transitória e operacional.
A justiça federal é dividida em 279 subseções judiciárias, mas a DPU está
presente em apenas 71 subseções judiciárias, o que corresponde a 26,4% do
quantitativo total3. Ante a ausência de quantitativo de defensores públicos para
a prestação de assistência jurídica gratuita, o papel dos estagiários de direito
torna-se fundamental, tendo em vista uma demanda cada vez mais crescente
por este serviço. Com o desmantelamento do estado provedor, a inserção da
mão-de-obra de jovens em formação, permite que o aspecto técnico educacio-
nal seja minimamente preservado em detrimento do aspecto social e trabalhista.
Dentro dessa perspectiva, encontra-se o presente estudo, com o intuito
de identificar a existência de fatores extrajudiciais que influenciam no aten-
dimento ao público da DPU em Vitória/ES realizado por estudantes de direi-
to, distinguindo os elementos referentes ao corpo/imagem (sexo/gênero/etnia/
raça) dos elementos pertencentes à mente/consciência (classe social/formação
educacional).
2 In: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/pesquisa-nacional-2020/analise-nacional/ Acesso
em: 07 set. 2023.
3 In: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/pesquisa-nacional-2020/analise-nacional/ Acesso
em 07 set. 2023.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Como tradicionalmente o direito é reconhecido como campo do saber


positivo iluminista, os esforços serão no sentido de identificar se este espírito
absoluto das leis possui uma dimensão corpórea parcial e tendenciosa. E as-
sim através da observação participante verificar se há interferência de fatores
extrajudiciais, seja do corpo ou da consciência, quando o operador de direito
estabelece relações sociais com o público alvo de uma defensoria pública no
âmbito federal.

A Questão Sexo/Gênero e Etnia/Raça pela Ótica dos


Estagiários de Direito: Uma Observação Participante no
Setor de Atendimento ao Público da Defensoria Pública da
União em Vitória/ES

O pensamento moderno cartesiano é conhecido por criar linhas bem de-


marcadas entre a natureza e a cultura, cindindo o pensamento em ciências hu-
manas, naturais e tecnológicas. Assim, as humanidades através do saber posi-
tivo ganharam status de ciência, se desvencilhando das amarras com o saber
especulativo filosófico, com o misticismo mágico-religioso e com as habilida-
des artísticas.
Neste sentido, foi importante delimitar este território específico dos espe-
cialistas em ciências humanas. Nas décadas de 60 e 70 do século XX, gênero
passou a designar o universo feminino, como um constructo cultural, dentro
dos marcos do existencialismo filosófico e do feminismo humanista. Em opo-
sição ao sexo, como uma categoria biológica que era inata e colocava o ser
humano numa posição fixa e incômoda, equiparando-o a uma espécie animal
dada pela sua natureza.

Esse modelo particular de sociedade utiliza_ como ocorre com versões si-
milares na história do pensamento europeu (Lloyd, 1984) _ uma distinção
entre macho e fêmea para simbolizar essa relação. O modelo não pode
manter a polarização estável e oscila entre sugerir que a sociedade é a fonte

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

de criatividade e energia ou que é o indivíduo quem o é, ou entre ver as


fêmeas como seres naturais instintivos ou vê-las como produtos refinados
da civilização. Tais conceitos têm profundas consequências para a maneira
pela qual os europeus ocidentais pensam sobre relações entre homens e
mulheres. Por grande que seja a determinação aplicada no sentido de rever-
ter os termos da avaliação ou para ajustá-los mais em favor de um sexo que
do outro, o fato da avaliação persiste. Isso, nas palavras de Rubin (1975), é
a nossa economia política do sexo (Strathern, 2006, p. 154)

Então, apesar da boa intenção das feministas humanistas e existencialis-


tas da Europa ocidental em criar a categoria gênero em oposição ao sexo. Na
prática esta substituição semântica, apenas reforçou a oposição natureza/cultu-
ra, criando uma hierarquia entre as fêmeas naturais dos territórios do sul-orien-
tal em contraste com as mulheres civilizadas do hemisfério norte-ocidental.
A mesma divisão é notada nas categorias raça e etnia. O termo raça, foi
utilizado inicialmente pelo naturalista Conde de Buffon para distinção das es-
pécies biológicas. No século XVIII, intelectuais racionalistas, como o filósofo
francês Conde de Gobineau foram responsáveis por trazer esse conceito das
ciências naturais para as ciências humanas com o intuito de criar uma escala
evolutiva entre seres humanos. O antropólogo Kabengele Munanga (2004) faz
esta reflexão ao apontar que o problema não está na distinção das raças, mas na
hierarquização. Desta forma, ao importar uma categoria das ciências naturais
para as ciências humanas, fizeram uma correlação fictícia de fatores biológicos
(cor da pele, formato capilar, traços morfológicos) com qualidades psicológi-
cas, morais e intelectuais.

Além da essencialização somático-biológica, o estudo sobre o racismo hoje


deve integrar outros tipos de essencialização, em especial a essencialização
histórico-cultural. Embora a raça não exista biologicamente, isto é insu-
ficiente para fazer desaparecer as categorias mentais que a sustentam. O
difícil é aniquilar raças fictícias que rondam em nossas representações e
imaginários coletivos. Enquanto o racismo clássico se alimenta na noção
de raça, o racismo novo se alimenta na noção de etnia definida como um
grupo cultural, categoria que constitui um lexical mais aceitável que a raça
(Munanga, 2004, p. 10-11).

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Não se superou as desigualdades de sexo/gênero e raça/etnia substi-


tuindo uma terminologia natural-biológica por um vocábulo histórico-cul-
tural. Essa permutação linguística apenas reforçou a cisão natureza/cultura,
debitando nos aspectos naturais a responsabilidades pelas desigualdades so-
ciais e culturais. Ao invés de colaborar com a superação de estigmas, esse
tipo de substituição semântica revitimiza os povos colonizados do hemisfério
sul-oriental, que são aqueles identificados como povos onde os aspectos da
natureza e da tradição são mais marcantes em oposição com o multicultura-
lismo humanista individualista do hemisfério norte-ocidental reconhecidos
pela cultura e erudição.
Deste ponto que parte as reflexões presentes neste estudo, ao se propor
a analisar a existência de fatores extrajudiciais que influenciam na intervenção
prática do operador do direito. Tendo como cenário uma instituição jurídica que
atua na defesa dos direitos lesados no âmbito federal, foi realizada uma obser-
vação participante no setor de atendimento ao público da Defensoria Pública
da União em Vitória/ES. Com a intenção de verificar se no momento que este
corpo representativo do aparato institucional ao entrar em contato com o corpo
representativo da sociedade civil dá indícios de que sua forma corpórea externa
interfere nos conteúdos produzidos.
A DPU/ES, no momento da realização da pesquisa (26/09/2022 à
14/11/2022), contava com 40 estagiários de direito, sendo 67,5% (27) mulheres
e 32,5% (13) homens. 52,5% (21) dos estagiários se autodeclararam brancos,
40% (16) pardos e 7,5% (03) negros. O público é bem jovem, 67,5% (27) com
menos de 25 anos, 27,5% (11) jovens adultos de 26 a 39 anos e 5% (02) adultos
na faixa etária de 40 a 59 anos. Deste montante, apenas 5% (02) se declara-
ram portadores de algum tipo de deficiência. Mesmo que haja um percentual
significativo de bolsistas, seja integral ou parcial, 80% (32) são provenientes

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

de faculdades privadas e apenas 20% (08) procedentes da única universidade


pública do Estado do Espírito Santo.
Em primeiro lugar, quanto à perspectiva da etnia/raça, num olhar superfi-
cial, contando com um percentual de 40% (16) de pardos e 7,5% (03) de negros
poderia se concluir que a defensoria pública estaria atendendo aos parâmetros
de inclusão quanto à etnia/raça. Contudo, o termo pardo é uma categoria pro-
blemática que já gerou uma série de controvérsias administrativas e judiciais
quanto ao direito às cotas raciais4.
Estudioso das questões raciais, Munanga (1999) fez uma análise minu-
ciosa do uso do termo mestiçagem na sociologia brasileira, assinalando a pre-
sença de uma miríade de posicionamentos neste debate. Em resumo, o autor
situa o discurso de Oliveira Viana, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha como
representantes de uma corrente teórica de negação e crítica da mistura de raças,
enquanto Sílvio Romero, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro teriam um discurso
assimilacionista de integração social e romantização da miscigenação.

No nosso entender o modelo sincrético, não democrático, construído pela


pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente foi assimilacio-
nista. Ele tentou assimilar as diversas identidades existentes na identidade
nacional em construção, hegemonicamente pensada numa visão eurocên-
trica. Embora houvesse uma resistência cultural tanto dos povos indígenas
como dos alienígenas que aqui vieram ou foram trazidos pela força, suas
identidades foram inibidas de manifestar-se em oposição à chamada cultura
nacional. Esta, inteligentemente, acabou por integrar as diversas resistên-
cias como símbolos da identidade nacional. Por outro lado, o processo de
construção dessa identidade, na cabeça da elite pensante e política, deveria
obedecer a uma ideologia hegemônica baseada no ideal de branqueamento
(Munanga, 1999, p. 101).

4 A lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, “lei de cotas do ensino”, define que 50% das vagas das
instituições de ensino federais deverão ser destinadas a estudantes de escolas públicas, sendo que
estas vagas deverão ser preenchidas preferencialmente por pretos, pardos, indígenas e pessoas com
deficiência na proporção deste público por unidade da federação conforme cálculos estabelecidos
pelo IBGE. A lei 12.990 de 09 de junho de 2014, “lei de cotas do serviço público”, estabelece que
20% das vagas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos no âmbito da adminis-
tração pública federal deverão ser preenchidas por pretos e pardos.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Diante da expectativa de miscigenação que esteve presente no discurso


oficial brasileiro, o pardo, o moreno, o mulato, seja qual for o tom da mistura
era preferencial ao preto, escuro, retinto, que não tinha como disfarçar a sua ne-
gritude. Então, para demarcar a especificidade do racismo à brasileira e reforçar
a importância da política de cotas temos que fazer a distinção entre os conceitos
de preto e pardo e que foi o preto de pele escura que foi mais discriminado e
sempre teve o acesso restrito às políticas públicas e ascensão barrada às esferas
do saber e do poder da sociedade brasileira.
Quanto à questão sexo/gênero, poderia se concluir que tendo 67,5% (27)
na composição do corpo de estagiários da DPU/ES de que as mulheres atin-
giram a tão sonhada igualdade e até mesmo superaram os homens na carreira
jurídica. Contudo, isto não é uma realidade, apesar de serem maioria nas facul-
dades de direito e com formação e aprovação superior na Ordem dos Advoga-
dos do Brasil (OAB), a presença feminina vai diminuindo com a escalada aos
cargos da promissora carreira dos portadores de um diploma em direito.
Dados do diagnóstico da participação feminina no judiciário do Conse-
lho Nacional de Justiça de 20195, indicaram que 61,2% são homens e 38,8%
mulheres. Nos tribunais superiores esta representatividade é ainda menor, sen-
do de 19,6% de mulheres e 80,4% de homens. Na justiça federal, há também
uma grande disparidade de gênero, sendo 68,8% de homens juízes e apenas
31,2% de mulheres juízas. Há algum tempo as feministas perceberam que
essa desvantagem quanto ao acesso ao mercado e aos direitos trabalhistas das
mulheres se deve ao papel natural atribuído a elas, como produtoras biológicas
de seres humanos que carregam dentro de si o instinto natural da maternidade.
Mas como a procriação é tida como um fato natural, deposita-se na mulher,
tanto a naturalidade do seu papel de mãe dado; como a responsabilidade de
fornecer um pai aos seus filhos por meio do relacionamento com o homem
com quem mantém relações sexuais. Deposita-se nas mulheres a imagem
de guardiãs do ideal que a procriação biológica deve estar vinculada a um
5 Dados disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/cae277dd017bb4d-
4457755febf5eed9f.pd. Acesso em: 21 fev. 2023.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

relacionamento social (Strathern, 1995, pp. 314-315). Supõe-se que os re-


lacionamentos devem ser criados, construídos por obra humana sobre um
mundo natural, dado, de indivíduos cujos corpos determinam sua diferença
sexual (Strathern, 1995, p. 317). Assim, nossa ideia de procriação talvez
seja a metáfora mais poderosa para a forma como concebemos as relações
de gênero (Maizza, 2017, p. 113).

O que a antropóloga britânica Marilyn Strathern pontua ao estudar o povo


Hagen, sociedades das terras altas da Papua Nova Guiné, é que esta separação
entre espaço privado/doméstico como lócus do feminino versus espaço públi-
co/político como masculino não é uma dualidade universal. O povo Hagen não
traça fronteiras tão rígidas de separação entre privado/público, indivíduo/so-
cial, natureza/cultura, homem/mulher, como fazem os ocidentais. Esse tipo de
hierarquização se faz necessária para uma sociedade capitalista, onde a riqueza
é produzida da exploração do homem pelo homem. Para isso é preciso criar es-
pécies humanas de segunda categoria, como mulheres, negros, homossexuais,
pessoas com deficiência que possam ser exploradas por homens brancos hete-
ronormativos, considerados como um constructo cultural “intelectualmente”
evoluído, que se distingue dos demais.
Assim, o direito positivo como campo de inscrição ao domínio do espaço
público da lei e da ordem é tido como lócus de masculinidade. A mulher tipifi-
cada como pertencente ao mundo da natureza e dos afetos não teria a tendência
à disciplina e à coerção necessária para exercer a força necessária para coibir
seus súditos cumprirem às obrigações devidas ao poder soberano do Estado.
O corpo dessa mulher com formação superior em direito também é fruto
de suas relações sociais. Com todos os atributos necessários para ascender pro-
fissionalmente, esse poder é minado tanto socialmente como individualmente.
A pressão social que ela sofre para ocupar seu lugar “natural” de mãe e esposa,
faz com que muitas delas optem por se dedicar exclusivamente ao mundo do-
méstico, onde acredita que poderá desfrutar da segurança e da proteção ofere-
cida pelo poder patriarcal.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Resultados Obtidos

Com os dados iniciais do perfil destes estagiários de direito obtidos no se-


tor administrativo da DPU/ES, elaborei um formulário no Google Forms* para
questioná-los sobre a existência de fatores extrajudiciais que influenciam no
trabalho do operador do direito no atendimento ao público de uma defensoria
pública no âmbito federal.
Do total entrevistado, 66,7% (10) eram mulheres e 33,3% (05) homens.
53,3% (08) se declararam pardos, 40% (06) brancos e 6,7% (01) negro. A faixa
etária na sua maioria (53,3%) era de menores de 25 anos (08); 40% (06) de 25
a 39 anos e 6,7% (01) de 40 a 59 anos. 40% (06) pertenciam à classe social D;
33,3% (05) à classe C; 13,3% (02) à classe E, apenas 13,3% (02) dos entrevis-
tados pertenciam a classe B. 80% (12) estavam matriculados em faculdades
privadas, sendo que 53,3% (08) tinham algum tipo de bolsa de estudos.
Do universo de 40 estagiários de direito da DPU/ES, 15 (37,5%) respon-
deram à pesquisa. 80% (12) concordaram com a existência de fatores extraju-
diciais que influenciam no trabalho do operador do direito. Cada entrevistado
assinalou dois fatores preponderantes. Os fatores mais citados foram: classe
social/condição socioeconômica (06); formação escolar/qualidade do ensino
(06); consciência política/engajamento social (05); condição física/mental (04);
faixa etária (02); etnia/raça (02) e sexo/gênero (02).
Percebe-se que a grande maioria optou por qualidades do espírito e da
consciência social (classe social/formação escolar/engajamento social) como
fatores externos que influenciam na atuação profissional. Os fatores do corpo
(sexo/gênero/etnia/raça/condição física e mental) foram preteridos em compa-
ração aos fatores da consciência. O fator ser portador de algum tipo de defici-
ência teve maior repercussão do que os fatores de sexo/gênero e etnia/raça. O

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

corpo para os estudantes de direito é algo que deve ser superado, quando eles
destacam uma característica corporal é para dizer que ela pode ser um impedi-
tivo ao trabalho e não uma potência transformadora.
Os estudantes de direito lotados no setor de atendimento em regime de
plantão dividem o espaço com os funcionários terceirizados do setor. É notável
o contraste entre os guichês da esquerda dos terceirizados formado principal-
mente por mulheres negras e pardas oriundas dos bairros periféricos com os
guichês da direita ocupados pelos estudantes de direito, onde há uma presen-
ça masculina maior e uma espécie de cultura de branqueamento mesmo entre
aqueles pardos e negros de origem periférica.
Os estudantes de direito são reconhecidos por sua indumentária, trajes
tipicamente europeizados que marcam uma estética especial. Homens vestem
terno, gravata e sapato social. Mulheres tailleur, saia longa e sapato alto. É
notório que no direito roupa é poder. A maneira como você se apresenta publi-
camente, a sua imagem precisa expressar descrição, decoro, respeitabilidade
e tudo isso se traduz numa estética branca, europeia e ocidental. Então como
manda a máxima da moda aristocrática europeia, esse corpo precisa ser cober-
to e este jovem precisa travestir de velho. Enquanto entre os povos indígenas,
conforme assinala Viveiros de Castro (2002), os xamãs se travestem de seres
da natureza. No direito, os trajes, o corte de cabelo austero, o olhar circunspec-
to, o comportamento compenetrado precisa expressar que aquele jovem tem
maturidade suficiente para distinguir o justo do injusto, a verdade da mentira, a
inocência da culpa.
Não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do cor-
po, por uma redefinição de suas afecções e capacidades. Vestir uma roupa-más-
cara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal do que
ativar os poderes de outro corpo. As roupas de animais que os xamãs utilizam

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

não são fantasias, mas instrumentos, dotados das afecções e capacidades que
definem cada animal. Ela manifesta que a permutabilidade objetiva dos corpos
está fundada na equivalência subjetiva dos espíritos. Se o multiculturalismo
ocidental é o relativismo como política pública. O perspectivismo ameríndio é
o multinaturalismo como política cósmica (Viveiros de Castro, 2002).
No multiculturalismo ocidental, a categoria tempo é aquela linha que de-
marca a distinção de “civilizados” e “primitivos”. Para os multiculturalistas, ao
fazer melhor uso do seu tempo com a transformação da natureza pelo avanço
da técnica eles são capazes de ditar as regras de comportamento, modos de vida
e normas sociais. Os ditos “primitivos” ao ficarem presos num tempo passado,
são seres da natureza, uma massa homogênea coletivista, limitada a um holis-
mo metabólico, inapta a fazer abstrações teóricas e de compreender os aspectos
sociais em sua totalidade.
Mesmo que haja este pensamento hegemônico de trajes e comportamen-
tos típicos, é possível notar que alguns jovens fogem a esta norma. E esta mu-
dança é mais notada naqueles com um estilo de vida não convencional, que
possuem satisfação em expressar sua identidade e consciência negra e aqueles
de orientação sexual não normativa que questionam os papeis sexuais dados
socialmente.
Para Giddens (1993), a revolução liberal burguesa e os ideais de amor
romântico levaram a mulher se libertar das uniões patrimonialistas. E esta so-
ciedade autorreflexiva liberada sexualmente vincula automaticamente a luta
das mulheres ao florescimento dos direitos dos homossexuais. Strathern (2006;
2014) e Haraway (1995; 2004) vão além porque reconhecem que a luta das
mulheres não se limita à liberdade sexual. As feministas lutam por ser hege-
mônicas em todos os campos, seja da economia, política, justiça, educação e
cultura. Não há um vínculo automático entre direitos das mulheres e direito dos

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

homossexuais, isto é uma construção social, de que mulheres, negros, homos-


sexuais, oriundos dos países colonizados do sul oriental encontrem igualdade
na diferença. É um esforço conjunto construído por meio das relações sociais
que estes grupos se unam conjunturalmente para deliberarem por uma agenda
comum. Nada está dado e inato, apenas o ato inaugura o fato novo.

Considerações Finais

A opção deste estudo foi fazer um contraste entre questões referentes ao


corpo (etnia/raça/sexo/gênero) em oposição às questões referentes à consciên-
cia (condição de classe/formação educacional) para trazer à tona ao debate de
que este conflito é fruto de uma modernidade que tem como projeto instaurar o
domínio da cultura sobre a natureza, da racionalidade sobre a subjetividade, da
transcendência sobre a imanência.
A modernidade não tem nada a ver com a invenção do humanismo, com
a irrupção das ciências, com a laicização da sociedade ou com a mecanização
do mundo. Ela é a produção conjunta destes três duplos de transcendência e
imanência. O ponto essencial desta constituição moderna é o de tornar invisível
o trabalho de mediação que constrói o híbrido (Latour, 1994).
A expressão antropomórfica (forma humana) subestima nossa humani-
dade. Deveríamos falar em morfismos. Nele se entrecruzariam tecnomorfismo,
zoomorfismo, teomorfismo, sociomorfismo, psicomorfismo. São suas alianças,
trocas como um todo que definem o antropos. Ele seria um permutador ou re-
combinador de morfismos. Quanto mais próximo dessa repartição, mais huma-
no ele será. Quando tentamos isolar sua forma daquilo que ele mistura, não o
protegemos, o perdemos (Latour, 1994).
Com isso não se pretende substituir a forma pelo conteúdo, o significan-
te pelo significado ou o fenômeno pela essência como se postula o projeto da

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

pós-modernidade. Mas uma hiperdialética nos termos de Merleau-Ponty, de


restaurar uma filosofia interrogativa do devir em oposição a uma filosofia es-
sencialista metafísica. De desvelar esse suposto saber-poder neutro, objetivo e
imparcial. Que para restaurar a credibilidade das instituições representativas do
saber-poder devemos explicitar suas tendências, contradições e ambiguidades.
Merleau-Ponty desenvolveu a ideia de uma hiperdialética, ou seja, de uma
dialética sem síntese. Uma dialética que não se volta nem para o “ser em si”,
nem o “ser para si”, evidenciando a unidade do mundo com o mundo sensível.
Institui a intersubjetividade, onde corpo e mundo são “campos de presença”
onde emerge todas as relações da vida perceptiva. Um campo de significações
sensíveis constituintes do corpo e do mundo (Peixoto, 2012).
Assim, não se pretende com esta análise parcial e localizada estabelecer
verdades absolutas, sínteses conclusivas e evidenciar realidades, mas de instau-
rar o gosto pela dúvida, a incerteza e o contingente. O exercício da democracia
exige corpos que se deixam envolver pelas mudanças de ambiente e pelos con-
tatos intersubjetivos. Somos seres em construção com potencialidade de afetar
o outro e o mundo circundante.
Aqueles que estão à frente das instituições do saber e do poder precisam
entender este momento e estarem dispostos a mudanças. E perceber que a pre-
sença de mulheres e negros em espaços do saber e do poder não ameaça a “mo-
ral e os bons costumes”, mas institui uma nova moral e novos costumes. Esse
amálgama intergeracional é responsável por ativar um movimento de questio-
namentos das práticas de encarceramento e julgamento criminal, como uma
necropolítica de aniquilação de corpos jovens negros. Também revolucionou
os julgamentos de violência doméstica e contra minorias sexuais e de gênero,
dando maior importância a uma violência que era banalizada por estar circuns-
crita no âmbito da sagrada família judaico-cristã.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Estamos a anos-luz de atingir parâmetros aceitáveis de igualdade de sexo/


gênero e etnia/raça, mas estes jovens que participaram desse movimento de re-
novação que tiveram como marco as cotas raciais instituídas nas universidades
em 2012 não estão dispostos a retroceder. É visível que as estruturas do saber
e do poder estão sendo mobilizadas para a transformação, e isso não se dará de
forma passiva e conciliadora.
Há uma disposição de corpos que estão adentrando nas universidades
e nos órgãos públicos de renunciar ou questionar os privilégios como prono-
mes de tratamento, vestimentas específicas, foro privilegiado, prisão especial,
condecorações, os benefícios extras, as chamadas regalias dos ocupantes de
cargos na justiça brasileira. Por conseguinte, seguindo o princípio básico da
física, toda ação provoca reação. Esta corrente contra-hegemônica que traz este
discurso de transformação social enfrenta um establishment de uma ordem ins-
tituída e legitimada socialmente. Logo, muito embora, sejam muitas as vozes
da resistência, caso este canto não ecoe coletivamente corre o risco de que al-
gumas vozes sejam silenciadas pelo caminho.

Referências
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Edi-
tora Unesp, 1993.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica.


Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

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-rede. Tradução Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru: EDUFBA/
EDUSC, 2012.

MAIZZA, Fabiana. De mulheres e outras ficções: contrapontos em antropolo-


gia e feminismo. Ilha. Vol. 19, Nº 01, Florianópolis, p. 103-135, junho de 2017.

36
Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade


nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, ra-


cismo, identidade e etnia. Programa de educação sobre o negro na sociedade
brasileira. Niterói: EDUFF, 2004.

PEIXOTO, Adão José. Os sentidos formativos das concepções de corpo e exis-


tência na fenomenologia de Merleau-Ponty. Revista da abordagem gestáltica.
Vol. 18, Nº 01, Goiânia, 2012.

STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: Problemas com as mulheres e


problemas com a sociedade na Melanésia. Tradução André Villalobos. Campi-
nas: Editora Unicamp, 2006.

STRATHERN, Marilyn. Uma relação incômoda: O caso do feminismo e da


antropologia. Mediações. Londrina, volume 14, número 02, p. 83-104, jul./
dez. 2009.

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. Tradução: Ira-


cema Dullei, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosaic Naif, 2014.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspec-


tivismo ameríndio. Mana. Volume 2. Número 2. Rio de Janeiro: p. 115-144,
outubro de 1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São


Paulo: Cosac Naif, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: Elementos para


uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosaic Naif, 2015.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

CAPÍTULO 3

EDUCAÇÃO QUILOMBOLA,
AMBIENTAL E ALIMENTOS
DO CAMPO: UMA AÇÃO
PSICOPEDAGÓGICA
Eunice Simões Lins
Denyo de Freiras Pereira
Maria Eduarda Alexandre Galvão
Sara Rebeca Souza Ramos
Ademar Cândido S. Lins Filho
Josyara Florencio Ferreira
Roberta Bezerra da Silva
Doi: 10.48209/978-65-5417-150-3

Introdução

No cenário atual desde o ano de 2019/2020, o mundo está vivendo um


momento atípico e imprevisível, devido à pandemia do Covid-19. A humanida-
de foi obrigada distanciar-se e adaptar-se a um novo comportamento de vida,
tendo como consequência o isolamento social evitando sérios riscos à saúde e
condições higiênico-sanitárias insatisfatórias.
Este novo estilo de vida trouxe novas formas de estudar, trabalhar, se
relacionar e de viver procurando um modo saudável. Como recorte de nos-
so estudo, selecionamos a escola campo/quilombola. “Escola Municipal de

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Educação Infantil e Ensino Fundamental José Albino Pimentel” localizada no


município do Conde-PB para realizar nossa pesquisa até porque por diversas
vezes o campo é retratado a partir de um enquadramento repetido, associando
o território ao clima, pobreza, calamidade, êxodo rural, dando espaço para de-
terminadas fontes de exclusão.
O nosso objeto de estudo são os alimentos ingeridos pelos alunos da
Educação Infantil, partindo do pressuposto de que é possível perceber que os
alimentos possuem propriedades que são essenciais para o funcionamento do
organismo e favorecer uma alimentação saudável primordial para a saúde. Para
que a alimentação seja segura, faz-se necessário conhecer mais sobre os ali-
mentos, tanto no aspecto nutricional, como no âmbito higiênico sanitário, e
ainda os processos que os envolve como valorizar e conhecer o meio ambiente.
Nosso objetivo consiste em desenvolver na escola orientações psicopeda-
gógicas com os alunos da educação infantil na comunidade quilombola, visan-
do permitir uma orientação sobre a educação ambiental, os produtos produzi-
dos no campo e a necessidade de fazer uma boa alimentação a partir da própria
merenda oferecida na escola bem como enfatizar sobre a utilização da higieni-
zação dos alimentos de forma segura para evitar que sejam contaminados com
microrganismos patogênicos e possam obter orientações de conhecimentos de
técnicas de manipulação higiênica fazendo uma articulação com os cursos de
Educação do Campo, Psicopedagogia e a Nutricionista da Secretaria da Educa-
ção do Município do Conde-PB visando proporcionar uma ação psicopedagó-
gica interdisciplinar.
Selecionamos como metodologia a pesquisa descritiva, de campo e pes-
quisa-ação com abordagem qualitativa, para desenvolver juntamente com a
equipe pedagógica da escola e a nutricionista do município ações visando pro-
porcionar uma alimentação diversificada, com higienização e utilização dos
produtos que a terra oferece e estudos sobre a educação ambiental valorizando
o espaço quilombola e a merenda escolar.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Partimos do reconhecimento de que as pessoas que vivem no campo têm


direito a uma educação diferenciada daquela oferecida a quem vive nas cidades
este reconhecimento ganhou força pelo Conselho Nacional de Educação, das
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo1. E vai
além da noção de espaço geográfico compreendendo as necessidades culturais,
os direitos sociais e a formação integral desses indivíduos.
Entendemos que a Escola forma o ser humano como cidadão consciente,
critico, participante e responsável, mas também como pessoa única, situada no
mistério da abertura à transcendência, que se manifesta nos sinais do sagrado
presentes na diversidade cultural e religiosa. A escola é espaço de pesquisa,
construção de conhecimento, apropriação do legado cultura da humanidade e
reflexão sobre a vida atual, em vista da educação integral e cidadã.
Partimos do pressuposto de que a Escola forma o ser humano como cida-
dão consciente, critico, participante e responsável, mas também como pessoa
única, situada no mistério da abertura à transcendência, que se manifesta nos si-
nais do sagrado presentes na diversidade cultural e religiosa. A escola é espaço
de pesquisa, construção de conhecimento, apropriação do legado cultura da hu-
manidade e reflexão sobre a vida atual, em vista da educação integral e cidadã.

Sobre Educação do Campo

A história da educação do campo é marcada por lutas e conquistas impor-


tantes na busca pela garantia do acesso à educação para os indivíduos que vi-
vem no campo. Durante muito tempo, a educação no Brasil foi focada nas áreas
urbanas, e as comunidades rurais ficaram à margem das políticas educacionais.

1 Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Conti-


nuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica.
Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.
Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Foi somente a partir da década de 1960 com os movimentos sociais que


se deu início a reivindicação da educação como um direito para as populações
do campo. Nesse período, as lutas pela reforma agrária e pela melhoria das
condições de vida no campo se intensificaram, e a educação foi vista como uma
ferramenta fundamental para uma transformação social.
Em 1981, foi criado o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrá-
ria (PRONERA), que teve como objetivo garantir o acesso à educação para os
pobres que vivem no campo, especialmente os trabalhadores rurais sem terra. O
programa financiava projetos de educação para jovens e adultos, alfabetização,
ensino fundamental e médio, além de apoiar a formação de professores.
Com a Constituição de 1988, a educação passou a ser um direito de todos
e dever do Estado. A partir daí, foram criadas políticas públicas específicas para
a educação do campo, como o Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONACAMPO) Decreto nº 7.352/2010, o Programa Nacional de
Apoio à Educação do Campo (PRONACAMPO) e o Plano Nacional de Educa-
ção (PNE), que incluíram medidas para garantir o acesso à educação de quali-
dade para as populações rurais.
Ainda há muitos desafios a serem enfrentados na educação do campo,
como a falta de infraestrutura, a baixa remuneração dos professores e a falta de
políticas específicas para a educação dos indígenas e quilombolas. No entanto,
a luta pela garantia do acesso à educação no campo continua, e é fundamental
para a promoção da justiça social e a construção de um país mais igualitário.
O termo “ educação do campo” refere - se atualmente ao sistema edu-
cacional voltado para áreas rurais e agrícolas que leva em consideração as pe-
culiaridades, dificuldades e necessidades das populações que residem nessas
áreas. A necessidade de incentivar a inclusão social e o desenvolvimento em
áreas rurais historicamente chamou a atenção para o campo da educação.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

O objetivo da educação do campo é garantir que as comunidades rurais


tenham acesso à educação de qualidade, valorizando a cultura local, a agricul-
tura familiar e os saberes tradicionais. Isso inclui não apenas a educação for-
mal nas escolas, mas também a formação técnica e profissional para atender às
necessidades e demandas do agronegócio e do meio rural.
Houve avanços significativos na concepção e implementação da educação
do campo nas últimas décadas. Os países implementaram políticas e programas
específicos para promover a equidade educacional nas áreas rurais, incentivan-
do o estabelecimento de escolas com currículos adaptados às realidades locais
e à agricultura sustentável. No entanto, ainda persistem desafios como a falta
de infraestrutura inadequada, escassez de professores qualificados, evasão edu-
cacional, distância geográfica e falta de recursos educacionais adequados, além
disso, a educação voltada para o campo enfrenta o desafio de acompanhar os
avanços tecnológicos e as mudanças no setor agropecuário.
Para enfrentar esses desafios, é fundamental que as políticas educacio-
nais continuem focadas na melhoria da qualidade da educação do campo, na
valorização das culturas locais e na preparação dos professores para lidar com a
diversidade, é sim possível abordar conceitos como economia solidária voltada
para a orientação de agriculturas mais sustentáveis, “orientar estratégias de
desenvolvimento rural mais sustentável e de transição para estilos de agriculturas
mais sustentáveis, como uma contribuição para a vida das atuais e futuras gera-
ções neste planeta de recursos limitados” (CAPORAL, 2009, p. 897).
Os sujeitos do campo podem ser representados como pequenos agricul-
tores, quilombolas, povos indígenas, pescadores, camponeses, assentados, re-
assentados, ribeirinhos, povos da floresta, caipiras, lavradores, roceiros, sem-
-terra, agregados, caboclos, meeiros, boias-frias, entre outros. Tal população
possui uma identidade própria, que, devido à industrialização e urbanização,
foi aos poucos expropriada.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Historicamente a educação é reconhecida como importante ferramenta


no processo de conservação ou de transformação de uma sociedade, por se
constituir em mecanismos institucionais que asseguram a transmissão da cul-
tura social entre gerações. Desse modo, a educação passa de mera transmissão
de conhecimentos ou de cultura de uma geração para outra, a instrumento re-
produtivo da cultura, da política e da economia de determinada sociedade. Por
outro lado, a educação também pode ser uma importante ferramenta de luta
social, capaz de resultar em mudanças nas condições objetivas de reprodução
e criar uma nova ordem.

Sobre a Educação Infantil

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018), a


Educação Infantil é entendida como início e o fundamento da educação, sendo
a base sólida importante para que outras aprendizagens sejam construídas.
Enquanto as instituições de ensino complementam a educação que as
crianças trazem de casa, o seu foco é especialmente nas aprendizagens sobre a
socialização, autonomia e comunicação, enfatizando assim a importância da fa-
mília/escola neste processo. Ressalta ainda, que as instituições devem acolher
as vivências e os conhecimentos construídos previamente, respeitando-os e os
reconhecendo, assim como a pluralidade cultural neste contexto.
A BNCC (2018) é um documento elaborado pelo Ministério da Educação
do Brasil que estabelece os conhecimentos, competências e habilidades que to-
dos os estudantes brasileiros devem desenvolver ao longo da Educação Básica.
Ela é dividida em etapas e modalidades, sendo uma delas a Educação Infantil.
A Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e atende crianças de
0 a 5 anos de idade, dividida em creche (0 a 3 anos) e pré-escola (4 e 5 anos).
A BNCC (2018), para essa etapa tem como objetivo promover o desen-
volvimento integral da criança nos aspectos físico, emocional, social e cog-

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

nitivo, considerando suas particularidades e necessidades. Ela não se limita


apenas a preparar a criança para o Ensino Fundamental, mas sim a proporcionar
experiências que favoreçam o seu crescimento como ser humano, contribuindo
para a formação de indivíduos críticos, autônomos e capazes de lidar com os
desafios do mundo contemporâneo.
De acordo com a BNCC (2018), a Educação Infantil deve se pautar por
alguns princípios fundamentais: * Direitos da criança: sendo o reconhecimento
da criança como sujeito de direitos, que deve ser respeitada e ter suas necessi-
dades atendidas. * Respeito à singularidade: levando em conta a consideração
das características individuais de cada criança, respeitando suas diferenças e
potencialidades. * Autonomia: com estímulo à autonomia da criança, permi-
tindo que ela tome decisões, faça escolhas e desenvolva sua capacidade de agir
no mundo. * Brincadeiras: havendo o reconhecimento das brincadeiras como
forma privilegiada de aprendizagem e expressão das crianças. * Interação e
participação: promovendo interações entre as crianças, com os adultos e com o
ambiente, para que possam se desenvolver socialmente. * Currículo integrado:
proporcionando experiências diversificadas que envolvam diferentes áreas do
conhecimento de forma integrada. * Cuidado e educação: realizando a integra-
ção entre cuidar e educar, reconhecendo que ambos são fundamentais para o
desenvolvimento infantil.
A partir dos eixos estruturantes da educação infantil, que são as intera-
ções e as brincadeiras, a BNCC (2018), estabelece seis direitos de aprendiza-
gem e desenvolvimento: Conviver, Brincar, Participar, Explorar, Expressar e
Conhecer-se. Nesta perspectiva, ela também é organizada para com campos
de experiência, que são grandes áreas de aprendizagem: * O Eu, o Outro e o
Nós: que trata das relações sociais, do respeito à diversidade e do desenvolvi-
mento da identidade e da autonomia; * Corpo, Gestos e Movimentos: enfatiza

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

o desenvolvimento físico, a consciência corporal e a expressão por meio do


movimento; * Traços, Sons, Cores e Formas: que explora a percepção visual,
a sensibilidade estética e as expressões artísticas; * Escuta, Fala, Pensamento
e Imaginação: que engloba a linguagem oral, a comunicação, o pensamento
lógico e a criatividade; * Espaços, Tempos, Quantidades, Relações e Trans-
formações: que aborda noções matemáticas, como espaço, tempo, números e
relações lógicas; *Natureza e Sociedade: que introduz conceitos relacionados à
natureza, aos fenômenos naturais, à vida em sociedade e à cultura; Ocorre que
dentro dos campos de experiência da Educação Infantil, a BNCC apresenta os
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, que descrevem o que se espera
que as crianças alcancem em cada etapa dessa fase.
Esses objetivos são organizados em faixas etárias, levando em conside-
ração as características e possibilidades de cada grupo. Referente aos educado-
res da Educação Infantil, a BNCC concorda que eles têm um papel essencial
no planejamento e desenvolvimento das atividades pedagógicas e devem criar
ambientes estimulantes, seguros e inclusivos, que possibilitem às crianças ex-
plorar, experimentar e se expressar.
A abordagem pedagógica neste nível deve ser lúdica, envolvendo a brin-
cadeira como elemento central de aprendizagem, e assim as instituições de en-
sino ampliam o universo de experiências, conhecimento e habilidades dessas
crianças, diversificando e consolidando novas aprendizagens.
É importante ressaltar que a Educação Infantil vai além da mera trans-
missão de conhecimentos. Ela visa a estimular a curiosidade, a criatividade, a
imaginação e as habilidades socioemocionais das crianças. E que através de ati-
vidades como jogos, brincadeiras, contação de histórias, experimentos senso-
riais e interações sociais, as crianças desenvolvem suas capacidades cognitivas
e emocionais de maneira integrada.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Sobre Educação Ambiental

Segundo Carvalho (2006, p. 71), a Educação Ambiental é considerada


inicialmente como uma preocupação dos movimentos ecológicos com a prática
de conscientização, que seja capaz de chamar a atenção para a má distribuição
do acesso aos recursos Naturais, assim como ao seu esgotamento, e envolver os
cidadãos em ações sociais ambientalmente apropriadas.
Desta forma, a Educação Ambiental é um tema muito discutido atual-
mente devido ao fato de se perceber a necessidade de uma melhoria do mundo
em que vivemos, pois é facilmente notado que estamos regredindo cada vez
mais em nossa qualidade de vida de um modo geral, nos deixando levar por
nossas obrigações diárias. Nosso tempo nos parece cada vez mais curto porque
temos cada vez mais compromissos (Guedes, 2006).
A Educação Ambiental caracteriza-se por adotar a gestão ambiental como
princípio educativo do currículo e por centrar-se na ideia da participação dos
indivíduos na gestão dos seus respectivos lugares: seja a escola, a rua, o bairro,
a cidade, enfim, o lugar das relações que mantém no seu cotidiano. Entendemos
que o papel principal da educação ambiental é contribuir para que as pessoas
adotem uma nova postura com relação ao seu próprio lugar.
A espécie humana, desde a sua origem, buscou formas de influir no meio
ambiente e de transformá-lo no sentido de atender às suas necessidades, mes-
mo que em certas ocasiões essa transformação tenha se mostrado desfavorável
(NUNES, 2009).
Os inúmeros impactos ambientais aconteceram principalmente em fun-
ção do tipo de relação que o ser humano estabelece com o meio ambiente. Ao
longo de sua evolução enquanto espécie biológica, o homem desenvolveu sua
organização social e, junto com ela, criou sua cultura, gerando novas formas de
relacionamento com a natureza.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Em nosso país a educação ambiental foi regulamentada pela Política Na-


cional de Educação Ambiental (PNEA), instituída pela Lei 9.795, de 27 de abril
de 1999. Esta lei estabelece e define seus princípios básicos, assim a Educação
Ambiental foi incorporada nos sistemas de ensino (MORGADO, 2006).
Os primeiros registros da utilização do termo “educação ambiental”
aconteceram em 1948, no encontro da União Internacional para a Conservação
da Natureza (UICN) em Paris, onde os rumos da educação ambiental foram
definidos a partir da Conferência de Estocolmo, na qual se recomendou o esta-
belecimento de programas internacionais.
Em 1975, lança-se em Belgrado o Programa Internacional de Educação
Ambiental, no qual são definidos os princípios e as orientações para o futuro.
Desde então, três momentos marcam a trajetória do processo de institucionali-
zação e pactuação da necessidade da inserção da educação ambiental no nível
planetário.
Cinco anos após Estocolmo, em 1977, acontece em Tbilisi, na Geórgia,
a Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental. Isto inicia um
processo global orientado para criar as condições para formar uma nova cons-
ciência sobre o valor da natureza e para reorientar a produção de conhecimento
baseada nos métodos da interdisciplinaridade e os princípios da complexidade.
Durante a Rio-92 foi redigido o Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, que estabelece dezesseis
princípios fundamentais da educação para as sociedades sustentáveis, enfati-
zando a necessidade de um pensamento crítico, de um fazer coletivo e solidário,
da interdisciplinaridade, da multiplicidade e diversidade. Estabelece igualmen-
te um conjunto de compromissos coletivos para a sociedade civil planetária.
Em Tessalonika, no ano de 1997, o documento resultante da Conferência
Internacional sobre Meio Ambiente e Sociedade: Educação e Consciência Pú-
blica para a Sustentabilidade reforça os temas colocados na Eco-92, e chama

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

a atenção para a necessidade de se articularem ações de educação ambiental


baseadas nos conceitos de ética e sustentabilidade, identidade cultural e diver-
sidade, mobilização e participação, além de práticas interdisciplinares. O que
os pesquisadores observam é que as recomendações são vagas e sem maiores
efeitos práticos, sendo que muitas delas apenas servem para alimentar a lógica
de mercado e as políticas liberais.
A educação ambiental apresenta-se como uma ferramenta desafiadora
para a promoção da manutenção e conservação da biodiversidade, diante de
um cenário de elevado nível de perturbações antrópicas sobre os diversos ecos-
sistemas naturais. Sendo assim, os trabalhos relacionados à educação ambiental
precisam orientar os indivíduos a compreenderem que são parte constituinte do
meio ambiente e, ao mesmo tempo, responsáveis pela manutenção e equilíbrio
do mesmo, promovendo ações e possuindo responsabilidades que podem aju-
dar a erguer um melhor ambiente para a vida.
Para muitos, segundo Adams (2005), a EA se prende apenas em traba-
lhar assuntos relacionados à natureza: lixo, preservação, paisagens naturais,
animais, etc. Dentro desse enfoque, a EA assume um caráter basicamente na-
turalista. Porém, para Adams, atualmente, a EA assume um caráter mais real,
embasado na busca de um equilíbrio entre o homem e o ambiente, com vista à
construção de um futuro pensado e vivido numa lógica de desenvolvimento e
progresso (pensamento positivista).
Neste contexto, a EA seria uma ferramenta de educação para o desenvol-
vimento sustentável (apesar de polêmico o conceito de desenvolvimento sus-
tentável), tendo em vista ser o próprio “desenvolvimento” o causador de tantos
danos socioambientais.
Entretanto, para Sauvé (2005), a Educação Ambiental não é uma “forma”
de educação, não é “ferramenta” para resolução de problemas ou de gestão do
meio ambiente. É uma dimensão essencial da educação fundamental, base do

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

desenvolvimento pessoal e social, relação com o meio em que vivemos, com


essa “casa de vida” compartilhada. Visa introduzir dinâmicas sociais em redes
mais amplas de solidariedade, promovendo abordagem colaborativa e crítica
das realidades socioambientais. O objeto da EA é nossa relação com o meio
ambiente.

Resultados de Nossa Pesquisa

A princípio procuramos estabelecer um vínculo com a equipe pedagógica


e entender a realidade da instituição. A observação foi necessária para registrar
como se encontra a estrutura da cozinha quanto a higienização e segurança dos
alimentos armazenados e que a escola não possui um refeitório onde as crian-
ças possam fazer sua refeição, restringindo ao espaço da sala de aula.
A escuta foi fundamental, para identificar que os alunos dispõem de pou-
co tempo para ingerir a alimentação e que o cardápio escolar sofre alteração
sendo a utilização de biscoitos a mais oferecida para os alunos e que boa parte
dos pais enviam a alimentação como refrigerantes e pipos como merenda para
as crianças. Após leitura e fundamentação teórica desenvolvida no grupo de
estudo e análise sobre os dados coletados foram traçados três momentos. Tra-
balhar com as cozinheiras da escola e oferecer proposta de lanches com os pro-
dutos locais da região como coxinha sem fritura de inhame, batata, macaxeira
e carne.
Desenvolver atividades com os pais/responsáveis pelos alunos conscien-
tizando para não enviarem merendas pelos filhos e por último trabalhar na sala
de aula com alunos e professoras sobre o uso e importância de uma alimentação
saudável.
Buscamos conversar com os responsáveis pela alimentação dos alunos
(nutricionista, equipe pedagógica e cozinheiras) e percebemos que não existe

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

o refeitório na escola e que a alimentação é oferecida na sala de aula com um


espaço de tempo destinado a alimentação muito curto. Desse modo traçamos as
atividades a serem desenvolvidas cuidadosamente para três grupos: cozinhei-
ras, pais e alunos.
Para as cozinheiras, marcamos nosso encontro especificamente com elas
e escutamos como preparam a alimentação. Levantamos as dificuldades que
elas comentaram como a falta de equipamentos e como preparam a alimen-
tação para todos os alunos da escola. Através de um workshops oferecemos
uma capacitação as cozinheiras com o objetivo de aperfeiçoar as habilidades de
armazenamento e manuseio dos alimentos, além de propor alterações no car-
dápio, em busca de algo mais nutritivo e atrativo para as crianças levando em
consideração os alimentos produzidos no local como por exemplo macaxeira,
inhame, batata doce, preparando coxinha sem fritura com recheio de frango
para ser servido aos alunos. O que a princípio não foi fácil existindo certa re-
sistência das cozinheiras.
Para auxiliar os pais, foram produzidas cartilhas informativas promo-
vendo a alimentação saudável para as crianças. As cartilhas contaram com su-
gestões de lanches saudáveis que as crianças poderiam levar para a escola,
proporcionando, assim, orientações práticas e úteis para melhorar as escolhas
alimentares.
Por fim, para as crianças, foi pensado em atividades mais lúdicas, que
juntassem o aprendizado de uma alimentação saudável com uma dinâmica que
desperte o interesse e engajamento sobre a importância da educação ambiental.
Sendo assim, foi pensado em uma atividade prática de preparação de salada
de frutas com alimentos que são produzidos na comunidade quilombola, como
banana, mamão, melancia, abacaxi, manga... favorecendo o ensino da higie-
nização e os produtos do campo. Ressaltamos que esta foi a primeira parte de
nossa pesquisa.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Conclusão

Desenvolvemos orientações, informações e conscientização sobre edu-


cação ambiental e sobre os alimentos produzidos na comunidade quilombola.
Enfatizamos sobre a necessidade da higienização e preparo dos alimentos a
serem oferecidos, quanto na importância da ingestão de alimentos saudáveis,
compreendendo que a construção de hábitos de alimentação saudável na Edu-
cação Infantil é necessária para desempenhar um papel fundamental no desen-
volvimento físico, cognitivo e emocional das crianças.
Identificamos que na escola campo se faz necessário um refeitório digno
para os alunos, assim como, o cardápio deve ser seguido como tal se planeja e
um trabalho voltado para combater a resistência das cozinheiras no preparo e
momento de servir as refeições para os alunos. Nossa pesquisa vem ressaltando
a relevância de nosso objetivo de estudo e a necessidade de contribuir ainda
mais na comunidade escolar quilombola buscando uma parceria com a ONG
de mulheres quilombolas para oferecer as cozinheiras receitas saudáveis com
os produtos da região.

Referências
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53
Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

CAPÍTULO 4

EDUCAÇÃO CRÍTICA E
PRÉ-VESTIBULAR: A DISCUSSÃO
SOBRE EDUCAÇÃO BANCÁRIA
E EDUCAÇÃO DIALÓGICA E O
VESTIBULAR COMO INSTRUMENTO
DE REPRODUÇÃO DA EXCLUSÃO
Renan de Abreu Cruz Arruda
Doi: 10.48209/978-65-5417-150-4

Resumo: Esse trabalho faz parte do projeto de extensão “Pré-vestibular Dr. Luiz
Gama” e tem como objetivo a discussão sobre a educação bancária e dialógica no
âmbito do pré-vestibular. Na introdução, abordaremos sobre o surgimento do ves-
tibular no Brasil e como passou a ser um projeto de exclusão. No desenvolvimento,
é trabalhado o significado de escola e ensino para a sociedade e como a educação
bancária apresenta-se como instrumento de opressão. No resultado com discussão,
trabalhamos a educação dialógica conforme Paulo Freire, e nas considerações finais,
a forma como o pré-vestibular Dr. Luiz Gama vai ao encontro da ideia de educação
dialógica no processo de conhecimento entre o educador eo educando.

Palavras-chave: Pré-vestibular Dr. Luiz Gama; Educação Bancária; Educação Dia-


lógica;Paulo Freire.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

Introdução

O vestibular surge no Brasil, de forma obrigatória, em 1910, levando as


instituições educacionais a realizarem provas admissionais para a entrada no
ensino superior. Com o passar dos anos, e o aumento na busca pelas universida-
des, ocorreu a criação da lei número 5.540 (BRASIL, 1968), que implementou
um sistema classificatório para tentar resolver esse impasse. O ENEM (Exame
Nacional de Ensino Médio), por sua vez, é criado em 1998, utilizado inicial-
mente para avaliar o ensino do país durante mais de dez anos este exame foi
usado única e exclusivamente para avaliar as habilidades e competências de
concluintes do Ensino Médio.
Os exames de seleção, os concursos vestibulares ao ensino superior, eram
formulados por equipes locais país afora, e formatos diferentes ocorriam nas
diversas universidades. A partir de 2009 medidas governamentais estimularam
o uso do ENEM não apenas como um processo de avaliação do Ensino Médio,
mas como forma de acesso ao ensino superior no Brasil. O Sistema de Seleção
Unificada (Sisu) passou a operar em larga escala no processo de alocação dos
candidatos às vagas.
No entanto, o que era para ser um processo de inclusão em instituições de
ensino superior passa a ser um projeto de exclusão, uma vez que se baseia em
uma prova que avalia o treinamento dos estudantes para a sua realização e não
testa o real conhecimento dos alunos. Inicialmente no processo de mobilidade
acadêmica nacional que é a ideia principal do Sisu em seu discurso oficial, a
adoção do ENEM/Sisu contribuiu para a democratização das oportunidades de
acesso às vagas oferecidas por Instituições Federais de Ensino Superior (IFES),
favorecendo de fato a mobilidade acadêmica e induzindo a reestruturação dos
currículos do Ensino Médio. Ainda assim o sistema só passou a ter maior par-

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

ticipação de indivíduos de classes sociais mais baixas a partir de 2012 com a


ampliação dos perfis com direito à gratuidade, segundo INEP:

Estreou mais um critério de isenção da taxa de inscrição do Enem. Inte-


grantes de família de baixa renda com Número de Identificação Social
(NIS), com renda de até meio salário mínimo por pessoa ou renda familiar
mensal de até três salários mínimos, passaram a ter isenção da taxa de ins-
crição em função do Decreto 6135/2007. Os isentos somaram 70% do total
de 5.791.066 inscritos. A aplicação em 1.619 municípios ocorreu em 3 e 4
de novembro.

Assim a democratização do Enem começou a acontecer de fato a partir


de 2012 como a possiblidade de inserção da cidadãos que antes eram coloca-
dos à parte desse sistema por não ter condições de pagar a taxa de inscrição por
exemplo. E os mecanismos de exclusão não ficam restritos a fatores econômi-
cos, por exemplo, ainda hoje parte majoritária da mobilidade dos estudantes
entre os estados é representada por estados “mais ricos”, enviando alunos para
universidades de outros estados, e esse fato apresenta dois desdobramentos, os
estudantes que costumam fazer essa mobilidade, em sua grande maioria tem
condições financeiras elevadas e acabam ocupando vagas em estados que já
tem um grande número de indivíduos no processo de vestibular.
Esse processo escancara outro problema, o nosso sistema educacional,
o Enem e o vestibular (para algumas universidades), são sistemas de seleção
já que não há vagas para todos os indivíduos que prestam os exames, logo, o
acesso à universidade está baseado em uma prova que não exprime a real situ-
ação da diversidade dos saberes aprendidos em todas as regiões do país, onde a
formação do indivíduo em um cidadão crítico perde espaço para a formação de
um cidadão moldado para responder a esses sistemas de seleção.
A partir disso, estamos trazendo uma discussão com a percepção do Pré-
Vestibular Social Dr. Luiz Gama: a forma que o modelo atual se reflete em um
projeto de educação bancária, onde o educador detém de todo o conhecimento

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

e apenas o armazena nos educandos. E em contrapartida a educação dialógica,


onde ambos falam e escutam, no processo de aprendizado.
A construção desta pesquisa consistiu num levantamento bibliográfico.
Para tal, optou-se pela abordagem qualitativa por essa possibilitar uma com-
preensão mais aprofundada da temática investigada, e também apresenta uma
maior abrangências dos objetivos a serem observados. A pesquisa qualitativa
trabalha um universo amplo de significados, motivos, aspirações, crenças, va-
lores e atitudes, logo, “Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível que
não pode ser quantificado” (MINAYO, 1994, p. 21).
O diálogo entre as obras de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, FREI-
RE, 1987), Henry Lefebvre (Estrutura social: a reprodução das relações sociais,
LEFEBVRE, 1977), José Willian Vesentini (Para uma geografia crítica na esco-
la, VESENTINI, 2008), e outros textos fundamentam nossa reflexão, e foram
de extrema importância para compreender e suscitar os questionamentos com
relação aos conceitos de “educação bancária” e “educação dialógica”.

Da educação bancária à educação dialógica: uma


construção de indivíduos críticos

É essencial entendermos o que significa a escola e o ensino para a socie-


dade em que vivemos, a sociedade capitalista. Em um breve apanhado histórico
discutiremos sobre à instituição da escola na sociedade. Surgida após a revolu-
ção industrial e fruto das reformas pedagógicas do século XIX, a “escolarização
da sociedade” foi um intenso esforço para efetivar a educação do ponto de vista
nacional, onde se apresenta uma “necessidade de cuidar da educação” por par-
te do Estado (nação). Mas o que significa educar? Sabemos que se educa para
alguma coisa, que cada sociedade estrutura seu sistema educacional para suprir
suas necessidades e interesses da classe dominante, já que em uma sociedade

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

de classes (nosso modelo de sociedade) não existe necessidades coletivas e


nem comunidade. Na realidade, o domínio da educação tem uma função muito
bem definida no sistema capitalista: o domínio1 das massas. Dominar o grande
contingente de pessoas das cidades do século XIX era extremamente importan-
te para a burguesia, pois dessa maneira se conseguiria assegurar a hegemonia e
a reprodução do capital. Ou, nas palavras de Bourdieu e Passeron,

Tal sistema [o escolar] contribui de maneira insubstituível para perpetuar


a estrutura das relações de classe e ao mesmo tempo para legitimá-la ao
dissimular que as hierarquias escolares que ele produz reproduzem hierar-
quias sociais (BORDIEU; PASSERON, 1975, p. 213).

Para além disso, ela contribui de forma direta para a reprodução do ca-
pital. Segundo Vesentini (1992), ela [escola] habitua os alunos a um sistema
disciplinar necessário ao trabalho na indústria moderna, transformando os in-
divíduos em maquinas programadas para “realizar tarefas novas sem discutir
para que servem, respeitar e nunca desobedecer a hierarquias” (VESENTINI,
1992, p. 10). Segurando ou liberando parte do exército de reserva de tempos em
tempos para o mercado de trabalho.
Lefebvre (1977, p. 226), vai além e nos sugere:
O espaço pedagógico é repressivo, mas está “estrutura” tem um significado
mais vasto do que a repressão local: o saber imposto, “engolido” pelos alu-
nos, “vomitado” nos exames, corresponde à divisão do trabalho na socie-
dade burguesa, serve-lhe, portanto, de suporte. Esta análise desenvolveu-se
desde a descoberta da Pedagogia ativa (Freinet) até às investigações da
crítica institucional que prosseguem nos nossos dias.

O ensino bancário apresenta-se como instrumento máximo desse sistema


de opressão. Dialogando a partir de Paulo Freire, podemos observar que quan-
to mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, ou fora dela,
1 Segundo Bourdieu, a dominação não é o efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto
de agentes sobre outros (dominantes “versus” dominados), mas o efeito indireto de um conjunto
complexo deações que se engendram na estrutura do campo por meio do qual se exerce a domina-
ção frente aos demais (BOURDIEU, 1996). Tal dominação não é evidente, e sim camuflada, a tal
ponto que muitas vezes os quea sofrem não a percebem.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

temos a confirmação dos fatos explicitados nos parágrafos anteriores, e temos


a confirmação do que se tornou “educar” em nossa sociedade: relações funda-
mentalmente narradoras, dissertadoras. A narração dos conteúdos por parte dos
educadores, que tende a petrificar ou matar os valores ou dimensões concretas
da realidade e os objetos pacientes, os ouvintes – os educandos. E assim temos
a tônica da educação da sociedade contemporânea – narrar, narrar, sempre nar-
rar.
Temos que ressaltar que “falar da realidade como algo parado, estáti-
co, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre
algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo,
realmente, a suprema inquietação desta educação” (Freire, 1987, p. 37). Os
conteúdos passam a ser retalhos da realidade desconectados da realidade dos
educandos, ao invés de se comunicar, o educador faz “comunicados” e trans-
forma os educandos em meros depósitos, que recebem pacientemente, memo-
rizam e repetem os conteúdos. Daí a concepção “bancária” da educação, onde
o espaço de atuação do educando é o de receberem os depósitos, guarda-los e
arquiva-los e não de construir junto do educador o próprio conhecimento.
Assim, o educador e o educando tornam-se escravos desse sistema que
mantém as posições fixas e invariáveis. A rigidez dessas posições, por sua vez,
nega à educação e ao conhecimento o processo de busca e construção entre
educador-educando do saber. Na concepção “bancária” que estamos criticando,
existem alguns pressupostos básicos que refletem o caráter opressor da socie-
dade, onde a “cultura do silêncio” é extremamente estimulada. Freire (1987, p.
38), define como pressupostos:

a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o edu-


cador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que
pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os
educandos, os que a escutam docilmente; e) o educador é o que discipli-
na; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; g) o educador é o


que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do
educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos,
jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica
a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonica-
mente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações
daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos,
meros objetos.

Para alcançar uma educação problematizadora e liberadora precisamos


humanizar o processo de educação, um educador humanista é revolucionário,
sua ação busca a identificação, desde logo, com os educandos e busca a huma-
nização para ambas as partes. Da construção do pensar de forma autêntica e
não no sentido da doação. Sua ação deve ser baseada na profunda crença que
o homem tem poder de criação. Logo, o educando pode criar o saber junto do
educador. Nesse sentido, o educador cria o saber com o educando e aprende
com ele também, assim a educação não mais estaria a serviço da opressão, mas
a serviço da libertação. Portanto, o diálogo é o encontro dos homens, não é no
silêncio que se fazem as relações de saber, mas nas palavras, no trabalho e na
troca de conhecimento. A educação dialógica apresenta-se como prática de li-
berdade, frente a educação bancária, que nos oprime.

A educação dialógica como processo libertário de ensinar

Vimos que o estudo, o mérito escolar e o diploma são produtos desse


sistema de ensino bancário que foram utilizados para legitimar privilégios que
não mais estavam baseados na nobreza, mas sim em uma falsa meritocracia
que tinha como falácia educar a todos, mas que, na verdade, hierarquizava o
conhecimento e restringia o acesso à educação de níveis elevados a quem tinha
capital. “É evidente que a escola não produz, mas apenas reproduz as desi-
gualdades sociais” (Vesentini, 2008, p.10). Logo, o ensino bancário reproduz
as opressões do sistema capitalista nas relações educador-educando causando
prejuízos imensuráveis no processo educacional.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

A educação dialógica, conforme Paulo Freire, está alicerçada num pro-


fundo amor ao mundo e aos homens. Não há dialogo se a relação entre as partes
se dá por meio da opressão, somente com a supressão das situações opressoras
que será possível restaurar o amor nas relações de saber. Para a formação de ci-
dadãos críticos, e para haver dialogo nas relações educacionais, precisamos ter
“uma intensa fé nos homens” (Freire, 1987, p. 52). Fé no poder que a relação
educador-educando tem de fazer e desfazer, criar e recriar, fé na vocação que
o homem tem de sempre querer saber mais, que isso não é privilégio de alguns
poucos eleitos, mas direito de todos os homens. Para o educador crítico, a trans-
formação permanente da realidade do educando e a permanente humanização
do homem é primordial para alcançarmos uma sociedade que visa combater a
opressão e as desigualdades sociais. Diria Pierre Furter (1966, p. 26-27):

a meta não será mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se


ao espaço garantido, mas temporalizar o espaço. O universo não se revela
a mim no espaço, impondo-me uma presença maciça a que só posso me
adaptar, mas com um campo, um domínio, que vai tomando forma na medida
de minha ação.

A experiência do Coletivo Direito Popular: A educação


dialógica como prática de ensino no Pré-vestibular

O Pré-vestibular Social Dr. Luiz Gama, fundado pelo Coletivo Direito


Popular (Coletivo de alunos da Faculdade de Direito da UFF) no dia 11 de
agosto de 2018, se apresenta dentro de um projeto político pedagógico decolo-
nial pautado pela educação jurídica popular e inserção de pessoas periféricas na
Universidade, através da presença física de pessoas periféricas no curso dentro
da universidade e ainda na preparação destas para o ingresso na Universidade
através do vestibular. Tem como princípios (I) materialização dos discursos
críticos, (II) defender de maneira irrestrita os interesses dos povos periféricos e
(III) garantir um olhar e uma prática interseccional.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

A proposta pedagógica do curso é pensada a partir da educação jurídica


popular. Além de oferecer disciplinas regulares do Ensino Médio e Fundamen-
tal, que são cobradas no ENEM, o curso conta com aulas de Direito Popular
e com atividades denominadas “círculos de cultura”, onde os alunos debatem
temas de relevância social, sendo protagonistas de toda a discussão. Nas ativi-
dades de Direito Popular são ministradas aulas com temáticas do Direito que
os educandos e educadores entendam mais próximas de suas realidades. A ideia
é que o pré-vestibular seja um espaço de formação e empoderamento para su-
jeitos de origem periférica em sua formação como cidadãos, que podem inserir
na sua realidade a possibilidade de ingresso na universidade e ocupação do
ambiente universitário, e também dos educadores, que podem, na prática edu-
cacional, crescerem como profissionais e como pessoas.
Os diversos espaços formativos do pré-vestibular contribuíram para que
os educadores, em seus diversos campos de atuação, ultrapassassem os muros,
simbólicos e físicos, da universidade, e colocassem suas experiências à disposi-
ção da educação da periferia. Quanto aos discentes de Direito, estes se integra-
ram às aulas de Direito Popular, aos Círculos de Cultura, e nas aulas das áreas
de humanidades, de modo a se formarem como profissionais do campo jurídico
abertos à realidade social e à potencialidade transformadora do Direito, em sua
concepção crítica. Os discentes dos cursos de licenciatura puderam também ter
a experiência de sala de aula, em uma perspectiva interdisciplinar e dialógica,
adquirindo experiência como educadores em formação e como pessoas.
O Pré-Vestibular Social Dr. Luiz Gama é constituído como um espaço
formativo, tanto para seus educandos quanto para seus extensionistas, que em
comunhão constituem uma prática educativa. O projeto possibilita também a
superação dos muros da universidade, e notadamente, da Faculdade de Direito,
através da prática extensionista, ao permitir que centenas de pessoas de perife-

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

ria, almejando participarem da prática educativa para o vestibular, adentrassem


na Faculdade de Direito, antes para eles um espaço distante, para passarem a
ver aquele espaço com um espaço inclusivo e a serviço da comunidade.
Foi estabelecido como referenciais teóricos para o projeto concepções
de educação que ajudassem a entender a educação como um espaço real de
transformação social, através do protagonismo de educandos e educadores, em
conjunto, na prática educativa. Neste sentido, a principal inspiração do projeto
é o referencial à pedagogia de Paulo Freire (FREIRE, 1987, 1992, 1996, 2000,
2013; SOUZA, 2015; KOHAN, 2019; STRECK, REDIN; ZITKOSKI, 2017),
que propõe que a educação pode ser estabelecida em práticas dialógicas hori-
zontais, que não veem o aluno como um mero “depositário” do conhecimento
passado pelo professor, e sim como o principal sujeito da própria educação,
considerando a pedagogia como um processo que envolve educadores e edu-
candos na conscientização crítica das contradições da realidade social e seu
engajamento em um processo de mudança e superação destas contradições.
Leva-se em conta aqui, uma própria crítica à atividade de extensão (FREI-
RE, 2013), em que o essencial na atividade extensionista é o seu entendimento
enquanto comunicação, com a utilização dos conhecimentos do educando em
pé de igualdade com o conhecimento do educador, de modo que a extensão
seja, antes que uma atividade de mera transmissão de conhecimentos, uma tro-
ca entre extensionistas e a comunidade.
Esse processo de construção de conhecimento é benéfico e enriquecedor
para todos os envolvidas na pratica de ensino-aprendizagem. As aulas das dis-
ciplinas regulares (português, matemática, física, química, biologia, redação,
literatura, sociologia, filosofia, geografia, história, inglês e espanhol) são mi-
nistradas segundo a divisão das turmas, conforme o número de alunos matricu-
lados, nas salas das dependências da Faculdade de Direito. Somam-se a elas as

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

aulas de Direito Popular, e os Círculos de Cultura. As aulas de Direito Popular


são ministradas pelos discentes do curso de Direito, com auxílio de professores
da Faculdade de Direito e professores convidados, especialistas nas temáticas
trabalhadas. Elas têm como foco temas jurídicos relevantes para vida das pes-
soas, como temas ligados ao direito constitucional, direitos humanos, acesso à
justiça, violência doméstica, combate ao racismo, direito do trabalho, direito do
consumidor, dentre outras temáticas.
O espaço do círculo de cultura é realizado como um espaço formativo,
onde os educandos são os principais protagonistas do espaço. São realizados
debates com base em temas geradores desenvolvidos por educandos e educa-
dores, que são utilizados como base para a reflexão. A ideia é que sejam abor-
dados temas sociais, ligados principalmente aos direitos humanos e combate
a opressões, de modo a construir, entre educadores e educandos, uma troca de
vivências e um aprendizado acerca da vida deles em sociedade, no contexto
individual onde cada um vive, em diálogo com os outros que compõe o espaço.
Assim, o desenvolvimento desse projeto que é o pré-vestibular no Coleti-
vo Direito Popular Dr. Luiz Gama tem como ponto gerador a educação dialógi-
ca, é inconcebível para nós enquanto educadores uma educação que não troque
conhecimento e discuta o aprendizado a partir da perspectiva dos educandos,
entendemos o ato de ensinar como uma ato de amor e esse ato de amor só é
possível a partir do diálogo, como Freire (1987) diz:

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja


essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de
dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domi-
na; masoquismo nos dominados. Amor, não, Porque é um ato de coragem,
nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que
estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua
causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoro-
so, é dialógico.

Temos o compromisso de auxiliar no desenvolvimento crítico de todos


os atores envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem que são desenvol-

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

vidos no espaço de convivência do Coletivo, tendo sempre como premissa que


todos são importantes e que a construção do conhecimento se dá somente no
diálogo, o ensino “bancário”, vertical e que apresenta que o saber deve ser pas-
sado do educador para o educando como se o indivíduo fosse uma casca vazia,
pronta para ser preenchida. E sabemos que a construção do conhecimento não
acontece dessa maneira os educandos aprendem no ato do ensinar do educador
a partir do seu próprio conhecimento sobre a realidade, o saber encontra-se no
diálogo entre os pares e só assim ele acontecerá.

Considerações Finais

Mais do que nunca devemos exaltar a obra Paulo Freire. Enquanto patro-
no brasileiro da educação, ele conseguiu pensar a educação brasileira a partir
do ponto de vista dos oprimidos. A construção social desumaniza o indivíduo e
somente a partir de uma educação libertaria poderemos diminuir as opressões
e as desigualdades sociais, humanizando-o a partir de uma educação crítica e
política.
Ao apresentar o conceito de “educação bancária”, o autor mostra como a
formação do sistema escolar é prejudicial e privilegia uma formação de conhe-
cimento hierarquizada onde os educandos são vistos como recipientes vazios a
serem enchidos com o saber do educador. E, ao apresentar o conceito de “edu-
cação dialógica”, nos mostra que é possível construirmos juntos o saber, que o
processo de formação do conhecimento está na interação educador-educando e
que todo esse processo está alicerçado no “dialogar”, precisamos dialogar em
como a classe dominante hegemoniza o saber, precisamos dialogar que todo
homem tem conhecimento e que esse conhecimento não deve ser despreza-
do no processo de ensino-aprendizagem, precisamos dialogar que o processo
educacional se dá em conjunto com todos os indivíduos inseridos no contexto
educacional.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

O processo de construção de conhecimento entre educador-educando do


Pré- vestibular Dr. Luiz Gama vai ao encontro das ideias de “educação dialógi-
ca”, pois acreditamos que somente a partir da formação social e política dos ci-
dadãos os educandos e educadores conseguem subverter a situação de oprimi-
dos, e a partir do momento que eles compreendam que a educação é liberadora,
ele nunca sonhará em ocupar o papel de opressor. Acreditamos que a educação
sozinha não mudará a sociedade, mas se tivermos um grupo de pessoas que
eduquem com amor, não precisaremos temer o debate, poderemos analisar a
realidade, e buscaremos por discussões criadoras pois estamos buscando uma
educação que foge da farsa que nos vendem desde a institucionalização da es-
cola na sociedade. Pensar Paulo Freire é refletir sobre a possiblidade concreta
de uma realidade educativa.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

FURTER, Pierre. Educação e Vida. Petrópolis: Vozes, 1966.

KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica.
Belo Horizonte: vestígio, 2019.

LEFEBVRE, Henri. Estrutura social: a reprodução das relações sociais.


Sociologia e sociedade, Rio de Janeiro: v. 13, p. 219-254, 1977.

MINAYO, M. C. S. (org.); DERLANDES, S. F.; NETO, O. C.; GOMES, R.


Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 6 ed.


Petrópolis-RJ: Vozes, 2014.

SOUZA, Ana Inês. Paulo Freire: vida e obra. 3. ed. São Paulo: Expressão Popu-
lar, 2015. STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (org.).
Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

VESENTINI, Jose William. Para uma geografia crítica na escola.


VESENTINI, JW, 1992.

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

SOBRE O ORGANIZADOR

Ivanio Folmer

Graduado em Geografia Licenciatura pela Universidade Federal


de Santa Maria (2014). Mestre em Geografia pelo Programa de
Pós Graduação em Geografia-PPGGEO/UFSM (2018). Doutor em
Geografia-PPGGEO/UFSM (2022). Especialista em Coordenação
Pedagógica - FCE - (2023). Participante de diversos projetos En-
sino, Pesquisa e Extensão, com as temáticas de Educação no cam-
po; Território; Sujeitos do Campo; Educação Ambiental; Gênero e
sexualidade. É professor da Rede Estadual do RS na Área das Hu-
manas - Componente Curricular: Geografia. Foi Tutor EAD no
Curso Licenciatura em Educação do Campo UAB/UFSM 2018-
2023. É professor Formador da Universidade de Caxias do Sul/
PARFOR 2023. Especializando em Supervisão Escolar - FCE. In-
tegrante do Grupo de Pesquisa Girassol - Grupo de Pesquisa em
Agroecologia, Educação do Campo e Inovações Sociais - UFSM;
Grupo de Pesquisa em Educação e Território- GPET - UFSM e
Agricultura e Urbanização na América Latina - USP. É integrante
da Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio Grande do Sul

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Educação Popular e os Movimentos Sociais na Atualidade: Contextos e Debates

SOBRE OS AUTORES

Ademar Cândido S. Lins Filho


Professor do Instituto de Tecnologia da Paraíba- IFPB. Especialista em Direi-
to Administrativo. Professor de Lógica e Programação; Empreendedorismo e
Informática Básica. Pesquisador do grupo GEPAI.

Denyo de Freiras Pereira


Graduando do curso Pedagogia em Educação do Campo na Universidade Fe-
deral da Paraíba-UFPB, pesquisador do grupo GEPAI.

Eduardo Gomes da Silva Filho


Professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Eunice Simões Lins


Profª Drª no Programa de Pós-Graduação de Comunicação-PPGC na linha de
Pesquisa Mídia Cotidiano e Imaginário da Universidade Federal da Paraíba-U-
FPB. Profa. Lotada no Centro de Educação-CE da UFPB. Líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Antropologia do Imaginário -GEPAI.

Josyara Florencio Ferreira

Maria de Nazaré da Silva Nunes


Licenciatura em Educação do Campo (LEDUCARR) pela Universidade Fede-
ral de Roraima – UFRR, mestranda em Educação – UFRR.

Maria Eduarda Alexandre Galvão


Graduanda do curso Psicopedagogia na Universidade Federal da Paraíba-U-
FPB, pesquisadora do grupo GEPAI.

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Renan de Abreu Cruz Arruda


Formação (licenciado/ pós-graduando) em Geografia pela Universidade Cas-
telo Branco - UCB/ em Teorias e Práticas da Geografia Escolar pelo Colégio
Pedro II - CPII.

Roberta Bezerra da Silva

Sara Rebeca Souza Ramos


Graduanda do curso Pedagogia em Educação do Campo na Universidade Fe-
deral da Paraíba-UFPB, pesquisadora do grupo GEPAI.

Sidnéia Bento Duque


Assistente social na Defensoria Pública da União em Vitória; mestre em polí-
tica social pela Universidade Federal do Espírito Santo

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EDUCAÇÃO POPULAR E OS
MOVIMENTOS SOCIAIS
NA ATUALIDADE:
CONTEXTOS E DEBATES

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