Tese de Doutorado - Marcello Paniz Giacomoni - Final PDF
Tese de Doutorado - Marcello Paniz Giacomoni - Final PDF
Tese de Doutorado - Marcello Paniz Giacomoni - Final PDF
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LINHA DE EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Fernando Seffner - UFRGS
(Orientador)
À sociedade brasileira, que através de seu trabalho e de seus impostos mantém as instituições
públicas de ensino, pesquisa e extensão.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual me sinto sempre orgulhoso de fazer
parte.
Aos professores e professoras de História que participaram desta pesquisa, que gentilmente
abriram suas salas de aula para minhas observações, tornando estas reflexões possíveis.
Ao meu orientador, Professor Fernando Seffner, pela importância que teve ao longo de toda a
minha formação, especialmente como professor, por ter acreditado na proposta dessa
pesquisa, e pela sensibilidade em reconhecer que a Pós-Graduação é também um espaço para
aqueles que trabalham e vivem seus objetos de estudo na concretude do cotidiano.
Aos membros da banca, cuja presença nesta tese foi para além da própria avaliação:
Ao Professor Nilton Mullet Pereira, cuja parceria foi central em minha formação como
pesquisador no ensino de História, e cujas reflexões perpassam boa parte destes escritos.
E ao professor José Alberto Baldissera que, mesmo sem saber, ensinou-me a valorizar e
buscar a construção de aulas que encantem seus ouvintes.
À Professora Clarice Salete Traversini, que gentilmente cedeu-me materiais de pesquisa
inéditos que embasaram parte de minhas reflexões sobre a importância da palavra do
professor.
Aos meus alunos e alunas, desde o Ensino Fundamental até o Ensino Superior, com quem as
práticas e os diálogos levaram às questões que animaram estes escritos.
Aos meus pais, pelo amor, pelo exemplo, que nunca mediram esforços para garantir-me uma
privilegiada vida de estudante, ao longo de todo o ensino básico e da graduação.
À Tanara, amor que a vida me trouxe, cujos esforços, não sem renúncias, tornaram possível
que a escrita de uma tese e uma família saudável coexistirem em harmonia. Além, é claro, de
ter sido a primeira leitora destes escritos.
A educação sempre tem a ver com uma vida que está mais
além de nossa própria vida, com um tempo que está mais
além de nosso próprio tempo, com um mundo que está
mais além de nosso próprio mundo... e como não
gostamos desta vida, nem deste tempo, nem deste mundo,
queríamos que os novos, os que vêm à vida, ao tempo e ao
mundo, os que recebem de nós a vida, o tempo e o mundo,
os que viverão uma vida que não será a nossa e em um
tempo que não serão o nosso e em um mundo que não será
o nosso, porém uma vida, um tempo e um mundo que, de
alguma maneira, nós lhe damos... queríamos que os novos
pudessem viver uma vida digna, um tempo digno, um
mundo em que não dê vergonha viver.
(LARROSA, 2015, p. 36-37)
GIACOMONI, Marcello Paniz. Ensino de História, retórica e narrativas: o professor-orador
na sala de aula [tese]. Porto Alegre: Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. 2018.
RESUMO
ABSTRACT
The purpose of this research is comprehending an actor and a place as central for education:
the teacher and the History classroom. I understand that the teacher works with an specific
truth regime which I nominate historical-didactic truth, whose nature stays in the relational
character which congregates the teacher (as an individual which signifies his practice from his
values), his students (with their interests, desires, and knowledge) and the historical
knowledge (validated both by the historiographic knowledge of reference and the teacher’s
own experience). Aiming to comprehend this relation, I make use of the formulations of the
rhetoric, from the ancient classical ones to their modern interpreters, as Reboul (1998),
Perelman and Olbrechts-Tyteca (2005) and Meyer (1998, 2007 e 2013). Such reflections
allow us to think the rhetoric simultaneously as a tool of analysis and as a projective
theoretical referential, reflecting about an ideal-type of teacher, which I define as an orator-
teacher. I defend that thinking the teacher as an orator means to situate him in the delicate
intersection of the discourse proves, as Aristotle constituted in is Rhetoric: the ethos, the
pathos and the logos. The ethos is the orator, the way he constitutes and works on a projection
of the self, gifted of authority, and the way this image is appropriated by the auditorium. The
pathos means to recognize that the other to whom the discourse is addressed (the auditorium)
have values, beliefs, meanings and emotions, which must to be taken in consideration. The
logos is the historical knowledge, or the historical-didactic truth itself understood as a
relational form with the other proves of the discourse. Moreover, the dimension of the prove
(pisteis) of the rhetoric is pricey to the historical discourse, relating the argumentativity to the
evidence in an ethical dimension. The orator-teacher is an individual aware of his place in this
delicate balance. In order to theoretically search this issue, besides the references of the
rhetoric, I reflect about the following ways: 1) the conception of History as a producer of
narratives about the past, related to scientific practices and to a social place (CERTEAU,
2008); 2) the notion of didactic transposition (CHEVALLARD, 1997), which allows us to
identify a movement within the historical knowledge produced in the academy, the prepared
knowledge aiming the teaching process and the effectively taught knowledge, in each specific
classroom, brokered by epistemological, cultural and political decisions; 3) the teacher’s
accumulated experience as one of the practices of validation of the historical-didactic truth,
with the discourses coming from historiography and from the educational field, which allows
him or restrains him from some decisions. In order to comprehend these premises in action, I
directly analyze classes of five History teachers (men and women), collecting data from
classroom observations, interviews, questionnaires answered by students and recording
materials used in class, and understanding a varied set of observations made as purely
rhetorical, once they make use of expedients which aim to negotiate the distances between the
historical knowledge and the students. In this process, teachers project themselves as adults of
reference, articulate values and intentionalities to their practices, arrange their classes in
structured forms, animated by problematicities and permeated by rhetorical argumentative
forms. In the relationship with the students, the importance of the word and the meanings of
the students is emphasized in the narratives built in the classrooms.
Da introdução .......................................................................................................................... 13
Capítulo 2.4 – Dos saberes juvenis na dialética com o professor .................................................. 310
2.4.1 – O Lugar da palavra ............................................................................................................. 311
2.4.2 - Pathos que desvia e a retórica que responde: as narrativas em diálogo ............................... 317
2.4.2.1 – Dispositio dialógica: possibilidades e limites .............................................................. 319
2.4.2.2 – Colagens na narrativa .................................................................................................. 323
2.4.2.3 – Eixo hermenêutico do diálogo ..................................................................................... 324
2.4.2.4 – Visões políticas dos alunos .......................................................................................... 326
2.4.2.5 – Problematicidades em diálogo ..................................................................................... 329
2.4.2.6 – Figuras e os imprevistos dialógicos ............................................................................. 332
Da conclusão .......................................................................................................................... 336
Figura 3 - Quadro montado pela professora Isadora a partir da palavra "Luz" ...................... 260
Figura 4 - Gravura “El sueño de la razón produze monstruos”, de Francisco de Goya, utilizado
pela professora Isadora ........................................................................................................... 270
Figura 5 - Desenho de uma balança clássica, durante a aula 2 -201 da professora Renata .... 274
Figura 6 - Texto para reflexão, entregue pelo professor Juliano ao final da aula 3 - C33 ..... 278
Figura 8 - Mapa do Brasil em 1821, utilizado pela professora Isadora na aula 6 - 92 ........... 309
13
Da introdução
Este andar intelectual problematiza uma figura e um lugar centrais para a educação
escolar: o professor1 e a sala de aula, entendidos como um ator (que podemos chamar de
adulto de referência, além de professor) e um lugar político e pedagógico. Podemos dizer que
em educação, para além de planos, currículos, diretrizes, teorias educacionais, o lugar onde
tudo acontece (ou não acontece) é a sala de aula, e a figura central nestas proposições é o
professor. Um professor que lança mão de variados expedientes. Em especial, ele narra, fala,
conta histórias. Não apenas narra; quer também convencer o outro de que aquilo que narra é a
verdade, fazendo que este outro a compreenda. Esta é a essência do ensino.
Parto da ideia de que os professores de história, no processo cotidiano de construção e
execução de suas aulas para variados grupos de alunos, engendram uma operação
historiográfica escolar (PENNA, 2013), que relaciona um lugar social (que congrega a escola
e a sala de aula, e também outras esferas de produção do conhecimento historiográfico, como
a universidade, a produção de livros didáticos, e cetera), um conjunto de práticas científicas
(que validam determinada visão do passado como verdade) e uma escrita (no caso da aula,
essa escrita se materializa pela fala do professor e nos demais materiais por ele utilizados).
1
Por “professor” entendendo professores e professoras, mas por economia textual farei uso, na maior parte das
vezes, da forma no masculino, assumindo que se refere a professores e professoras. Quando for necessário
evidenciar o gênero, procurarei diferenciá-los na escrita.
14
Outros elementos entram nessa equação, como os saberes dos alunos e as marcas das culturas
juvenis.
A partir disto, o problema central que percorre esta tese é como os professores,
entendidos como professores-oradores, constituem suas aulas para auditórios escolares
específicos, transitando em processos de escolha de conteúdos, caminhos argumentativos,
figuras de estilo e a construção de um ethos específico para o professor-orador em sua relação
com o auditório. Neste trânsito, lançam mão de estratégias narrativas puramente retóricas, que
visam uma negociação de distâncias entre a verdade histórico-didática e o conjunto de alunos
para os quais ela se destina. Entendo a aula expositiva e a capacidade de tomar a palavra
como um componente essencial para a sala de aula, momento singular de explicação,
persuasão, encantamento e convencimento dos alunos, além de projeção do professor como
um indivíduo digno de confiança2.
O processo de resolução desta problemática constitui alguns caminhos, teóricos e
práticos. Primeiramente é necessário apresentar e desenvolver noções da historiografia, como
o entendimento da História enquanto narrativa do passado, como construção (que relaciona o
as dimensões do social e do individual) e como uma busca pela verdade. O ensinar e o
aprender da História são desenvolvidos, e na sequência problematizo a Nova Retórica
enquanto ferramenta teórica e de análise dos dados empíricos coletados. Tais formulações
permitem construir as duas formulações teóricas principais desta tese, a noção de verdade
histórico-didática3, enquanto produto específico da operação historiográfica escolar em
consonância com os recursos retóricos, e o professor-orador, compreendendo que os docentes
2
Esta tese carrega, com a evidência dos processos de convencimento, uma relação com aqueles que veem a
História (ou as humanidades de forma mais ampla) como perigosa justamente por seu potencial persuasivo,
tomado como doutrinação. O pânico moral funda-se no receio de que um conjunto de valores, entendidos como
ameaçadores aos valores do grupo que reage, pudesse, a partir de processos de convencimento, tornar-se
presente àqueles que os recebem, especialmente na sala de aula. A reação não se dá apenas na sala de aula: ações
como a que resultou no fechamento da exposição Queermuseu no Santander Cultural de Porto Alegre, em
setembro de 2017, ou na campanha que rotulava a Rede Globo como “satanista”, também em 2017, evidenciam
que este pânico encontra-se disseminado pela sociedade, muitas vezes manipulado de forma oportunista por
grupos políticos conservadores ou reacionários. Este pânico estimulou o surgimento de movimentos tais como o
“Escola Sem Partido”, que defende desde 2004 o fim da “doutrinação ideológica de esquerda” nas escolas,
propondo projetos de lei que desejam proibir que os professores emitissem opiniões que contrariem os valores
familiares e defendendo um ensino “neutro”. A este movimento soma-se a “ideologia de gênero”, termo utilizado
por críticos da ideia de que os gêneros são, na realidade, construções sociais, defendendo que os gêneros
masculino e feminino são imutáveis, ora recorrendo a argumentos biológicos, ora a argumentos religiosos.
Ambos movimentos percebem a escola e as salas de aula como lugares privilegiados para a luta política que
estimulam.
3
Agradeço ao professor Anderson Zalewski Vargas pela sugestão deste conceito. Mesmo que Perelman não
venha a ressuscitar, acredito que será produtivo para compreender as dinâmicas exploradas nesta tese.
15
cultura escolar, de André Chervel (1990), que aponta grande autonomia das disciplinas
escolares em relação aos seus saberes de referência.
Por estar imersa em relações de poder, essas escolhas são fruto de uma complexa
disputa política. Chevallard denominou o espaço social em que estas disputas acontecem
como noosfera, congregando pesquisadores, professores, gestores públicos, políticos, editores
e autores de livros didáticos e outros materiais, entidades de classe, organizações não
governamentais, pais de alunos, e cetera. Convergências e divergências nos jogos de poder
executados na noosfera acabam por produzir parâmetros (nunca completamente estáveis) que
definem como o saber será ensinado.
O processo de transposição acarreta em duas etapas diversas: a primeira, tratada
acima, estabelece quais recortes devem ser ensinados nas escolas, e de quais formas; a
segunda é produzida diretamente pelos professores no cotidiano de suas salas de aula,
tomando os referentes e adaptando-os, a partir de seus saberes da experiência, para alunos e
alunas sempre específicos. É este segundo processo de transposição que encontra-se ligado
intrinsecamente aos objetivos desta tese: compreender o que os professores e professoras
efetivamente fazem em suas salas de aula, a partir dos referencias da retórica. O professor de
História, na escola básica, é um indivíduo que diz verdades, e esse é o compromisso básico de
sua prática. Todavia vê-se envolvido em contextos de enunciação mais amplos, que
demandam escolhas, em que seus valores transparecem em práticas consideradas
significativas.
Desta forma, utilizo as conceitualizações da Nova Retórica, adaptando-as à realidade
da educação, especialmente para a análise das aulas de História. Estas leituras constituem-se
simultaneamente em um método de leitura – permitindo-me constituir uma taxonomia de
argumentos, uma compreensão das figuras retóricas e a identificação de aspectos ligados aos
oradores e aos auditórios – e uma construção teórica que permite projetar nas professoras e
professores observados, bem como em suas aulas, um tipo-ideal de orador, constituindo assim
a segunda construção teórica desta tese: o professor-orador. Além disso, procuro relacionar a
retórica à constituição das narrativas históricas bem como à educação como um todo.
A construção do professor-orador situa o professor, e sua eficácia como orador, na
intersecção das provas do discurso, conforme Aristóteles constituiu em sua Retórica: o ethos,
o pathos e o logos. Esse caráter de prova da retórica é retomando por Perelman e Olbrechts-
Tyteca, que se posicionam em uma perspectiva cara ao discurso histórico: restituem a
dimensão que concebe a aliança entre prova e técnicas argumentativas, e com ela a
18
O delicado equilíbrio entre o ethos, o pathos e o logos é o centro da retórica, sem que
um aspecto reduza os outros dois, de forma que ao longo dos discursos eficazes as três
dimensões deslizam-se e misturam-se. Assim conceberei o professor-orador, não como
alguém que apenas profere um discurso de forma autocentrada, mas como um indivíduo capaz
de dimensionar estas três categorias visando negociar distâncias entre os conhecimentos a
serem ensinados e seus alunos, concebendo as narrativas em sua dimensão problematológica,
ou seja, centradas em perguntas e na busca das respostas (tão ou mais importantes do que as
próprias respostas). Além disso, projeto um profissional que pensa a aula expositiva em uma
dimensão que vai muito além da passividade e do tédio. Procuro produzir, como grande linha
que atravessa essa tese, uma defesa da aula expositiva como momento privilegiado no
processo de ensino-aprendizagem. Aberta à problematização do presente, do passado e do
futuro, além da própria narrativa constituída por este professor ou professora.
Os princípios teóricos apresentados acima serão desenvolvidos na Parte I desta tese,
relacionando-os com a escola e com a sala de aula sempre que possível. A Parte II tem como
objetivo analisar diretamente aulas de professores e professoras de História e, a partir dessa
análise, aprofundar e relacionar os dados observados com os marcos teóricos da Parte I.
A metodologia desenvolvida caracteriza-se como uma observação participante, com
análise qualitativa de dados. A observação torna-se participante em duas dimensões: tanto na
minha presença direta nas salas de aula, observando as aulas, quanto como professor de
História. A subjetividade do pesquisador/historiador, como abordarei no decorrer desta tese,
não o abandona ao longo dos processos de sua pesquisa. Para o pesquisador desta tese, não foi
diferente. A mesma inscreve-se diretamente em minha trajetória implicada como aluno,
historiador e professor de História. Paulo Freire (2002, p. 9) lembra o quanto sua trajetória
nunca o permitiu ter uma observação “acizentadamente imparcial”; partiu sempre de um
ponto de vista, o que não significa situar o observado no erro. O erro surge apenas quando o
pesquisador toma esse ponto como absoluto, despindo-se de uma posição rigorosamente ética
em relação ao outro. É esta posição cuidadosa em relação aos outros implicados nessa
pesquisa que procurei constituir.
A observação é parte essencial para a resolução dos questionamentos da pesquisa,
primando pela análise das aulas expositivas, sem descartar as demais formatações. Observei
de forma sistemática cinco professoras e professores, distribuídos conforme os marcadores de
gênero, geração e mantenedora escolar (se pública ou privada), cumprindo os seguintes
passos: observação e gravação de áudios das aulas; questionários respondidos pelos alunos
(ver Apêndice A); entrevistas com os professores (ver Apêndice B) e análise dos materiais
20
diretamente mobilizados pelos professores (livro didático, textos, imagens, esquemas e textos
no quadro e apresentações de slides).
Procuro com esta metodologia estabelecer, com os devidos parâmetros teóricos
apresentados na Parte I, um mapa do que acontece. Isso porque, como aponta Javier Marrero
Acosta (2013), os questionamentos em torno do que os professores de fato ensinam é sempre
nebuloso, sendo mais fácil falar sobre o que eles devem ensinar. Esta tese percorre este
caminho nebuloso, procurando compreender como os professores e professoras ensinam
História para seus alunos e alunas, percebendo quais são os conhecimentos, o saber fazer, as
competências e habilidades, que os professores mobilizam cotidianamente (TARDIFF, 2010).
Em outros termos, apreender a verdade histórico-didática em ação, a partir de uma leitura
retórica da sala de aula. Perceber que as estratégias de manejo do conhecimento histórico em
sala de aula lançam mão de procedimentos e artifícios retóricos, visando uma negociação de
distâncias e apontar que a sala de aula não pode ser reduzida ao conteúdo de História, mas sim
à uma tríade que envolve o professor, os alunos e os saberes da disciplina, cada um
interferindo sobre o outro. Minha tese pretende perceber esta relação, descrevendo ações por
parte dos professores de forma a contemplar esse processo. Não é pretensão saber o que
efetivamente os alunos aprenderam, mesmo que eventuais manifestações destes serão
problematizadas.
Interessa-me também problematizar o conceito de gênero como um elemento que atua
de modo transversal nessa operação, indagando se a construção do masculino e do feminino
pauta a mobilização de determinados argumentos, uso de figuras ou o ethos do
orador/professor, além de compreender a ligação do conceito de experiência com o cotidiano
das salas de aula, pensando a prática do professor relacionada a um saber da experiência.
Além disso, o caráter dialógico das aulas de História, permeadas por interrupções à narrativa
do professor a partir das questões feitas pelos alunos, transforma estes momentos em espaços
excelentes para compreensão de como os saberes juvenis dialogam com os saberes formais, e
como as respostas dos professores agem diretamente em um processo de negociação de
distâncias entre estes saberes.
Por fim, optei por apontar com mais acuidade os detalhes de cada capítulo e
subcapítulo nas respectivas apresentações da Parte I e Parte II desta tese.
21
Jango Jorge é nosso personagem. Vive nos entremeios, nos não-lugares. Vive na
fronteira, e dela faz sua vida; cruza-a habitualmente como um contrabandista, buscando
sempre o que o outro lado pode lhe oferecer, e o seu não pode. Fruto da pena de Simões
Lopes Neto, é ele mesmo uma fronteira, entre a literatura e a História; não existiu, mas
poderia...
É nesse caminho, seguindo a conceitualização desenvolvida por Ana Maria Monteiro
(2011), que penso o Ensino de História: uma fronteira. Fronteira entre a educação e a
historiografia; entre a intencionalidade do professor e os interesses dos alunos; entre o valor
de determinados acontecimentos e processos (conferidos por aqueles que os ensinam) e a
elaboração da historiografia acadêmica. O professor de História, meu objeto de reflexão e
inquietação, transita por essa fronteira, e pode por vezes assumir o papel de um
contrabandista; atravessa fronteiras nem sempre amistosas e toma de outras áreas aquilo que
lhe agrada; caminha entre a História e entre a Educação, mas também entre a Geografia, a
Arte, o Teatro, o Cinema, a Oratória, as fábulas; Percorre também a distância nem sempre
nítida entre a historiografia acadêmica e a História ensinada. Mas conhecerá tão bem esses
caminhos quanto Jango Jorge conhecia os seus?
4
LOPES NETO, Simões. O Contrabandista. In: LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9ª ed., Porto
Alegre: Globo, 1976. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000121.pdf. Acesso
em: 03/12/2015.
22
Ao pensar essa fronteira me indago das possibilidades que a metáfora oferece. Se por
um lado marca distâncias entre dois pontos que se encontram, por outro marca o próprio
encontro. Quiçá este encontro, tortuoso e complexo como qualquer encontro, possa
representar mais do que isso; quiçá surja deste encontro um novo, algo inesperado àqueles que
se encontraram.
Para construir essa novidade sigo a tese defendida por Fernando Araújo Penna (2013),
que concebe o processo de construção do saber a ser ensinado em sala de aula como uma
operação historiográfica5 que, por estar nesta fronteira, aproxima-se e distancia-se do fazer
historiográfico da academia. Aproxima-se pois pauta-se em processos de conceituação, busca
por objetividade e criticidade das narrativas construídas; mas afasta-se pois os objetivos e
valores dos saberes são mutáveis conforme as realidades das salas de aula, e a constituição
argumentativa das narrativas varia conforme esses valores e objetivos.
Desta forma, lanço os caminhos que nortearão a escrita desta primeira parte desta tese.
O conhecimento histórico é construído através de uma operação historiográfica, e materializa-
se na forma de narrativas sobre o passado. Tanto o conhecimento acadêmico quanto o
conhecimento escolar lançam mão de estratégias argumentativas (que serão devidamente
analisadas a partir de referenciais da Nova Retórica). Estas estratégias, que visam negociar
distâncias entre os saberes e àqueles a quem esses saberes são destinados constroem-se a
partir de um saber da experiência, exercitado permanentemente no movimento “trinitário”
entre saber histórico – professor – alunos, ou entre o logos, o ethos e o pathos.
Primeiramente, no capítulo 1.1, desenvolvo alguns matizes do conhecimento
historiográfico em amplo diálogo com seu caráter narrativo, problematizando autores como
Raymond Aron, Paul Veyne, Hayden White e Luiz Costa Lima. O entendimento do
conhecimento historiográfico em uma tripla operação (que envolve um lugar, práticas
científicas e uma escrita) leva até Michel De Certeau. Por fim, recorro a Carlo Ginzburg para
pensar a noção de prova dentro da historiografia, em relação próxima com a retórica
filosófica.
5
A tese de doutorado do professor Fernando Penna (2013) situa-se em um lugar chave nas minhas reflexões. A
descoberta dessa tese teve, em um primeiro momento, uma dubiedade. Por um lado demonstrou que os caminhos
de pesquisa que congregavam retórica, narratividade e ensino de História, sobre os quais eu já vinha refletindo,
tinham produtividade; e por outro criou uma necessidade de diferenciação em relação ao caminho de pesquisa e
às conclusões da mesma. Portanto, alguns caminhos são compartilhados, especialmente no entendimento da ação
pedagógica do professor como uma operação historiográfica que opera um processo de transposição didática
entre os saberes acadêmicos e os saberes escolares. A diferença maior, presente ao longo dos meus escritos, será
no foco específico da operação historiográfica executada pelos professores e professoras, em uma postura
essencialmente retórica na busca pelo convencimento de seu auditório, ou seja, de seus alunos.
23
Roger Chartier, logo ao início de seu livro À beira da falésia: a história entre certezas
e inquietudes (2002), problematiza a imagem a partir da qual Michel de Certeau caracterizava
a obra de Michel Foucault: à beira de uma falésia. Ele parecia problematizar o quão instáveis
e inseguras estavam as disciplinas que pensavam as relações entre os discursos e as práticas
sociais. Cânones da então historiografia triunfante, aceitos pela maioria dos historiadores até
pelo menos os anos 60 do século passado, passaram a ser colocados em questão após o
linguistic turn:
obra del historiador mismo.” (ARON, 1946, p. 151). É impossível fugir das incertezas dos
significados já que esta incerteza é inerente aos seres do passado que o historiador se esforça
por captar, selecionando, analisando e recriando, o que derroga qualquer autonomia do
documento. Por exemplo, interpretações racionais e interpretações psicológicas são
complementares, e muitas vezes contraditórias umas em relação às outras; um historiador que
se inquieta quanto a um “motivo que no coincide com el acto” buscará suprir as insuficiências
da interpretação racional. Como diz Aron (1946, p. 162), isso se dá pois “en todos estos casos,
la pluralidad y la incertidumbre son, por decirlo así, datos en los documentos, en la vida
misma.” Nesta relação da vida com a complexidade reside o desfecho da pretensão positivista
de alcançar a verdade una. Por tratar-se do humano, a realidade histórica é potencialmente
equívoca e inesgotável, e sua provisória reconstrução depende da ação de seleção e
interpretação do intérprete.
Interessa também tomar a categoria de causalidade histórica desenvolvida por Aron. A
perspectiva filosófica de Kant compreende a causa como uma antecedência constante e
geradora que determina certa ordem no tempo (seja anterior ou simultâneo) e imprimindo a
esta sua lei de sucessão. Esta ordem é inflexível, pois não é produzida pela experiência, mas
impõe-se a ela, sendo assim necessária e universal. Não havendo essa ordem subjacente,
segundo Kant, não há como denominar qualquer disciplina como verdadeiramente científica
(LIMA, 1989, p. 28-29).
Aron aproxima-se da perspectiva weberiana que divide as ciências entre ciências da
explicação e ciências da compreensão, sendo que esta última estaria atrelada diretamente aos
valores daqueles que a operam. Esse historiador “profeta voltado para trás” opera uma
interpretação que é, ela própria, histórica, na medida em que abre uma perspectiva do passado
que deriva do seu presente, ou seja, do futuro do passado. Não mais nomotética, criadora de
leis, mas sim compreensiva das probabilidades do futuro do passado. A indagação causal do
historiador tem por sentido menos desenhar os grandes traços do relevo histórico do que
conservar ou restituir ao passado a incerteza do futuro, tendo como qualidade nos fazer
escapar da “ilusão retrospectiva da fatalidade”.
sobre o relato, que esse associa com o “gosto pela anedota” (LIMA, 1989: 31)), Aron
constitui um quadro de “relatividade histórica” que destaca uma multiplicidade de filosofias
pessoais travestidas de historiadores onde antes se via uma totalidade histórica (CERTEAU,
2008, p. 67).
O clássico livro de Paul Veyne chamado Comment on écrit l'histoire (Como se escreve
a História, 1971) foi sem dúvidas um dos mais polêmicos do século XX para a historiografia
(ao menos de tradição francesa). Recheada de frases diretas, provocativas e mesmo grosseiras,
Veyne avança nas questões propostas por Aron deslocando-se deste na questão do estatuto da
História, que para Veyne não passa de um relato:
A intriga é uma obra de síntese. Ela reúne objetivos, causas e azares em uma
unidade temporal, total e completa. Ao reunir o que era disperso, o que era
sucessão e devir, essa síntese do heterogêneo que é a intriga (assim como a
metáfora) faz aparecer na linguagem o novo, o inédito, o ainda não dito
(REIS, 2003, p. 135)
6
“uma indução que consiste em estabelecer uma verdade universal ou uma proposição geral com base no
conhecimento de certo número de dados singulares ou de proposições de menor generalidade.” (VEYNE, 1971,
p. 167-168)
7
“(...) duma página à outra, o historiador muda de tempo sem prevenir, segundo o tempo das fontes, que
qualquer livro de história é, nesse sentido, um tecido de incoerências e que não pode ser de outro modo; este
estado de coisas é certamente insuportável para um espírito lógico e suficiente para provar que a história não é
lógica, mas não há remédio para isso e não pode havê-lo.” (VEYNE, 1971, p. 26-27)
8
O próprio acontecimento não é uma coisa, mas um corte que o historiador opera na realidade, em um agregado
de processos que agem e padecem substâncias em interação, homens e coisas. (VEYNE, 1971, p. 49)
9
“(...) no nosso mundo situado abaixo da lua, reina o devir e tudo aí é acontecimento. Deste devir não pode
haver ciência segura; as leis não são mais que prováveis porque é preciso contar com as particularidades que a
‘matéria’ introduz nos raciocínios que fazemos sobre a forma e os conceitos puros. O homem é livre, o acaso
existe, os acontecimentos têm causas cujo efeito parece duvidoso, o futuro é incerto e o devir é contingente.”
(VEYNE, 1971, p. 40)
31
Na sequência, Chartier se pergunta se seria possível pensar que tal modelo formalista
tropológico poderia ser aplicado sem levar em conta os lugares e contextos intelectuais.
Parece-nos que tais modelos dependem de que a retórica clássica seja de tal forma
disseminada que acabe por constituir esse a priori. E nesse ponto reside uma grande questão:
a vasta pluralidade do mundo intelectual ocidental (que engloba todo o espaço ocidental em
um recorte temporal que vai da Renascença ao século XX) poderia singularizar-se (ao nível
da consciência e do discurso a respeito do próprio discurso) em poucas categorias que
rementem à retórica clássica e neoclássica, que não são hegemônicas nesta vasta pluralidade?
Porém, o pânico moral suscitado por White deveu-se a outra de suas conclusões. Seus
textos contém uma crítica radical à historiografia, pondo em questão as pretensões de verdade
e objetividade do trabalho dos historiadores. Na medida em que as narrativas históricas vêm
de fatos ou eventos empiricamente válidos, precisa-se necessariamente de passos
‘imaginativos’ para colocar esses ‘fatos’ em uma história coerente, sendo que as narrativas
somente representam uma seleção de eventos históricos. (SUTERMEISTER, 2009, p. 45).
Esses passos, para ele, degeneram qualquer pretensão de estabelecer um saber “científico”
sobre o passado:
a história tal como escrita pelo historiador não depende nem da realidade do
passado, nem das operações próprias à disciplina. A escolha que ele faz de
uma matriz tropológica, de uma modalidade de mise em intrigue, de uma
estratégia explicativa é totalmente semelhante àquela do romancista (...).
Deve-se aceitar a evidência segundo a qual quando se chega a apreender o
documento histórico, não há nenhuma razão no próprio documento para
preferir uma maneira de interpretar sua significação em detrimento de outra.
(CHARTIER, 2002, p. 111)
A História passa a ser compreendida como uma ficção, que compartilha com a
literatura as mesmas estratégias e procedimentos, e sem um regime de verdade que lhe seja
próprio. Uma série de questionamentos advém dessa compreensão, sendo os principais
relacionados ao lugar das operações historiográficas e da polêmica em torno dos historiadores
revisionistas e negacionistas.
34
Para Chartier (2002, p. 112), não é possível falar da História sem levar em conta suas
operações próprias, como a construção e o tratamento dos dados em um corpus documental,
produção de hipóteses, verificação crítica dos resultados e validação da coerência e
plausibilidade da interpretação. Se o conhecimento é idêntico à ficção, por que seria preciso
executar tantas e tão complexas operações? E se essas operações não são necessárias, como
enfrentar posições altamente relativistas como a negação do holocausto?
White procura responder a estas questões de algumas formas. Primeiramente ressalta
que existe uma verdade na ficção, e que considerar a narrativa histórica como a fiction-
making operation significa que pode existir nela uma potência de força e lucidez atinente ao
tropo poético. Ao deparar-se com os relatos de historiadores revisionistas, que pretendiam
minimizar ou negar a existência das câmaras de gás, dos grandes deslocamentos forçados da
população judia e cigana, do número de mortos e do próprio projeto da “solução final”, White
responde da seguinte forma:
10
Como aponta Chartier (2002, p. 101), a obra de Paul Veyne Como se escreve a história foi publicada na
França em 1971 e o ensaio de Michel de Certeau em 1974. Nesse meio tempo, em 1972, Hayden White publica
Meta-história, que, apesar da proximidade temporal, não entra na rede de discussões desses autores.
36
Pensar a historiografia como uma operação que articula um lugar, uma prática e uma
escrita significa reconhecer essa narratividade, mas sem negar sua pretensão à cientificidade,
definida por Certeau (2008, p. 109, nota 5) como a possibilidade de um grupo estabelecer um
conjunto de regras que permitam controlar operações destinadas à produção de objetos
determinados, cuja pertinência das operações também dizem respeito a temporalidades e
processos estruturais das sociedades.
1.1.2.1 – Um lugar
11
Dialoga com a obra de Paul Veyne, mas também com Serge Moscovici (Ensaio sobre a história humana e da
natureza) e Michel Foucault (Arqueologia do saber), autores aos quais Certeau credita atestarem um “despertar
epistemológico” da disciplina da História (2008, p. 66).
37
Partindo do corpo social, a história define-se por uma relação ao nível da linguagem,
simultaneamente com uma relação com os limites impostos por este corpo, seja do lugar
específico de onde se fala, seja pela natureza do objeto histórico de que se fala.
Se por um lado o lugar social condiciona que algo possa ser dito (e consequentemente
recebido) com validade epistêmica e pertinência, esse mesmo lugar não explica todo o
funcionamento de um discurso histórico. O que de fato explica os processos de fabricação
deste discurso são as suas práticas científicas.
40
Mas, o que faz o historiador? Pensar esta pergunta significa colocar em evidência seu
verbo: o historiador faz. Parte do mundo, das materialidades que restaram dos tempos
passados (“de resíduos, de papéis, de legumes, até mesmo das geleiras e das ‘neves eternas’”,
como diz o próprio Certeau (2008, p. 79)) para fazer outra coisa: a História, essa
“artificialização da natureza”, que todavia obedece a certas regras. Certeau afirma que seria
demasiado dizer que o historiador trabalha com o tempo, enquanto mais correto seria dizer
que trabalha com objetos físicos que distinguem, no continuum do percebido, as diferentes
realidades passadas.
A História enquanto prática desloca discursivamente os objetos, no bojo de uma ação
humana que transforma a natureza em símbolos (uma floresta transformada em local a ser
explorado, ou uma montanha transformada em paisagem) ou instituições que tem o seu
estatuto modificado (uma igreja transformada em um museu). Como afirma Certeau (2008, p.
80) “desde a sua documentação [onde ele introduz pedras, sons, emoções, entes variados, e
cetera] até o seu livro [onde plantas, micróbios, geleiras, adquirem o estatuto de objetos
simbólicos], ele procede a um deslocamento da articulação natureza/cultura”.
Não se pode pensar o passado como um dado passivo, que o historiador recebe de
forma dada. A cientificidade da História pressupõe um movimento entre os polos da natureza
e da cultura, entre o passado e o presente, de forma que “a operação (...) transforma o ‘meio’ –
ou (...) faz de uma organização [social, literária, e cetera] a condição e o lugar de uma
transformação” (CERTEAU, 2008, p. 80). Aqui penso o historiador acadêmico, sediado nas
universidades e centros de pesquisa, mas também os professores nas escolas básicas como
meio e lugar que transforma um conhecimento em outro.
Como primeiro ato criativo o historiador constitui suas fontes. Separa, reúne e
transforma em documentos objetos distribuídos de outra maneira, produzidos pelo simples
fato de que foram copiados, transcritos ou fotografados. Certeau remete aos colecionadores
dos séculos XVI e XVII, que no ato de colecionar fabricam os objetos e as categorias dos
mesmos, em processos de cópia, impressão, reunião, classificação, e onde a própria
linguagem destinada a organizá-los deve ser criada. A relação do lugar e das técnicas cria e
também desloca a constituição das fontes. Se na lógica positivista havia uma predominância
de fontes oficiais escritas, novas pertinências sociais fazem com que novos objetos (utensílios,
composições literárias, cantos, topografias urbanas, e cetera) sejam movidos de seus lugares e
41
funcionamentos primeiros para serem outras coisas. Outro exemplo é a ressignificação pela
qual passam as coleções de erudições, transformadas em arquivos, o lugar de enunciação
central para a nova História. Em suma, “um trabalho é ‘científico’ quando opera uma
redistribuição do espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo
‘estabelecimento das fontes’ – quer dizer, por uma ação instauradora e por técnicas
transformadoras” (CERTEAU, 2008, p. 83).
O alargamento do processo de constituição das fontes (para além dos arquivos) leva à
necessidade de separar um processo antes uno: a acumulação de “dados” e a arrumação destes
em lugares onde possam ser classificados. Essa arrumação é um processo eminentemente
intelectual, cujos pressupostos alteram-se historicamente. Certeau (2008, p. 85-86) aponta
uma mudança significativa no trabalho do historiador: enquanto a história do passado partia
dos vestígios necessariamente diversos para chegar a uma compreensão coerente de certo
recorte do passado, a história serial, a partir de combinações informáticas, constitui modelos.
Todavia não são estes modelos o foco do historiador; ele parte deles (e da relação entre eles)
para encontrar a diferença, o desvio, o heterogêneo12. Não é mais a história ontológica que
procurava exprimir um espírito de época, espaço ou grupo. É antes um lugar de “controle”,
onde são evidenciados “os limites de significabilidade relativos aos ‘modelos’ que são
‘experimentados’, um de cada vez, pela história, em campos estranhos ao de sua elaboração”
(CERTEAU, 2008, p. 88). O historiador que antes buscou e esperou uma totalização do
passado, conciliando diferentes tipos de interpretação, depara-se agora com as manifestações
complexas destas diferenças.
Como forma de compreender essas diferenças, lanço mão da análise efetuada por
Paulo Knauss (2005). Alinhado aos modelos perspectivistas e processualistas do
conhecimento científico moderno, para este autor as lógicas de construção do conhecimento
histórico podem ser relacionadas a quatro grandes premissas do conhecimento científico
moderno: explicações dedutivas; explicações probabilísticas; explicações funcionais ou
teleológicas e explicações genéticas.
As explicações de ordem dedutiva são recorrentes em análises formais de sociedades,
que possuem como objetivo formar modelos gerais que articulem os níveis econômico,
político, social, cultural e simbólico. Mesmo que Certeau aponte um abandono das pretensões
totalizantes, essa linha de interpretações forma imagens ditas “generalistas” sobre
12
“a ‘interpretação’ antiga se torna, em função do material produzido pela constituição de séries e de suas
combinações, a evidenciação dos desvios relativos quanto aos modelos.” (CERTEAU, 2008, p. 85)
42
(...) a epistemologia das ciências parte de uma teoria presente (na biologia,
por exemplo) e reencontra a história sob forma daquilo que não era
esclarecido, ou pensado, ou articulado outrora. O passado surgiu ali,
inicialmente, como ‘ausente’. O entendimento da história está ligado à
capacidade de organizar as diferenças ou ausências pertinentes e
hierarquizáveis porque relativas às formalizações científicas atuais.
(CERTEAU, 2008, p. 90)
43
Este imperativo crítico leva Certeau (2008, p. 91) a três conclusões sobre as práticas
científicas na disciplina histórica. Inicialmente, as pesquisas historiográficas do século XIX
(mesmo que narrassem objetos diversos como a biologia, a economia, a politica, e cetera)
mantinham uma regularidade na lógica da evolução, um devir que costurava as
descontinuidades em um processo (muitas vezes teleológico) dotado de um sentido. Na
atualidade (de Certeau, ao menos), o conhecimento histórico interessa-se mais pelos desvios
que possam haver em um modelo formal, seja quantitativo (curvas de população, salários,
publicações, e cetera), seja qualitativo (diferenças estruturais). As palavras iniciais presentes
em textos históricos do século XIX (sejam literalmente, sejam como lógica) eram “outrora
não era como hoje”, colocadas como postulado a partir o qual toda a pesquisa se desenvolvia.
A historiografia que Certeau problematiza transformou esse postulado no resultado da
pesquisa, eliminando o sentido e fazendo aparecer as exceções, produzidas nos cruzamentos
entre a documentação.
Próximo a esta lógica insere-se o lugar do particular, como um lócus de tensão
permanente com as regularidades já que se encontra nos limites do pensável, na fronteira das
regularidades seriadas. Certeau defende que “a ‘compreensão histórica’ (...) terá como
característica, não primordialmente tornar pensáveis séries de dados triados (ainda que isto
seja a sua “base”), mas não renunciar nunca à relação que estas ‘regularidades’ mantém com
‘particularidades’ que lhe escapam” (CERTEAU, 2008, p. 92). Cabe a essas particularidades
a inserção da interrogação, não apenas de si, mas de toda a realidade que permanece exterior
ao saber e ao discurso.
Ao combinar os modelos com os desvios, a história acaba por criar uma falha da
coerência científica no presente, que ao objetificar o passado marca uma significação de
alteridade. Ao encenar o outro, o passado torna-se uma forma de representar uma diferença; o
presente e as questões do presente constituem o seu outro, marcando no discurso a distância
que possibilita o distanciamento. O efeito, segundo Certeau (2008, p. 93), é duplo: historiciza
o atual, presentificando uma situação vivida, o que obriga a razão do presente a
simultaneamente estabelecer esta razão (definida por um movimento de alteridade), e tornar o
passado inteligível a partir desta razão, representando “aquilo que falta”.
44
1.1.2.3 – A Escrita
13
“É também o instrumento por excelência de todo discurso que pretenda ‘compreender’ posições antinômicas
(basta que um dos termos em conflito seja classificado como passado), ‘reduzir’ o elemento aberrante (que se
torna um caso ‘particular’ que se inscreve como detalhe positivo num relato) ou a considerar como ‘ausente’
(num outro período) aquilo que foge a um sistema do presente e nele assume um aspecto de estranheza.”
(CERTEAU, 2008, p. 97)
45
que se situa no lugar social, a escrita é ela própria uma prática social, didática e magisterial14,
que confere performaticamente ao leitor um lugar de aprendente (CERTEAU, 2008, p. 95).
Por fim, Certeau (2008, p. 103) problematiza as noções de acontecimento e fato,
ligando-as ao processo da escrita: enquanto o acontecimento é uma abstração que recorta e
organiza o caos do passado, os fatos são os significantes que, dentro da narrativa, preencherão
os espaços com seus significados. Na medida em que são possíveis organizações prévias aos
fatos, torna-se pensável uma “razão” histórica: “os fatos a enunciam, fornecendo-lhe uma
linguagem referencial; o acontecimento lhe oculta as falhas através de uma palavra própria,
que se acrescenta ao relato contínuo e lhe mascara os recortes” (CERTEAU, 2008, p. 104).
São essas ordens que formam as categorias históricas, ou os conceitos, ordenados e mesclados
em níveis e lógicas variáveis.
Regras situadas no nível do discurso constituem um edifício conceitual que, mesmo
não sendo igual às práticas científicas, constitui um “conjunto coerente de grandes unidades,
uma estrutura análoga à arquitetura de lugares e de personagens numa tragédia” (CERTEAU,
2008, p. 105). Todavia esse texto é o lugar onde os conteúdos trabalham sobre a forma, e não
o contrário. A baliza do conhecimento historiográfico como prática científica reside no
trabalho de construir um edifício conceitual para em seguida desconstruí-lo, combinando
permanentemente processos de construção e erosão das unidades, relacionando o “discurso
com aquilo que ele designa perdendo, quer dizer, com o passado que ele não é, mas que não
seria pensável sem a escrita que articula ‘composições de lugar’ com uma erosão destes
lugares” (CERTEAU, 2008, p. 106).
14
Funciona como discurso didático, e o faz tanto melhor na medida em que dissimule o lugar de onde fala (ele
suprime o eu do autor), ou se apresente sob a forma de uma linguagem referencial (é o “real” que lhes fala), ou
conte mais do que raciocine (não se discute um relato) e na medida em que tome os seus leitores lá onde estão
(ele fala sua língua, ainda que de outra maneira e melhor do que eles). Semanticamente saturado (não tem mais
falhas da inteligibilidade), “comprimido” (graças a “uma diminuição máxima do trajeto e da distância entre os
focos funcionais da narrativa”), e fechado (uma rede de catáforas e de anáforas assegura incessantes
remetimentos do texto a ele mesmo, enquanto totalidade orientada), este discurso não deixa escapatória.
(CERTEAU, 2008, p. 102-103)
48
Ao fazer uso da metáfora de um espelho deformado, Ginzburg não nega que exista um
reflexo referencial da realidade narrada pelo historiador, mesmo que a deformação deva ser
mediada e ressalte o caráter construtivo do ato do historiador. A noção de prova é
desenvolvida por ele como um caminho para negociar essa distância entre as palavras e a
coisas. Mais que isso, ele se indaga: “como foi possível dar por certo a ideia, profundamente
ingênua, de que a noção de prova é uma ilusão positivista?” (GINZBURG, 2002, p. 74).
Ginzburg recupera a Retórica de Aristóteles por um motivo bastante simples: porque ela
permite não só compatibilizar a noção de retórica com a de prova, mas, mais do que isso,
transforma a segunda no núcleo racional da primeira. (PENNA, 2013, p. 39-40)
Essa aproximação da retórica com a História terá grandes implicações para o
desenvolvimento desta tese. Por hora é pertinente introduzir as noções de prova resgatadas e
desenvolvidas por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em sua clássica obra Tratado da
Argumentação – a Nova Retórica (2005):
Com efeito, conquanto não passe pela cabeça de ninguém negar que o poder
de deliberar e argumentar seja um sinal distintivo do ser racional, faz três
séculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adesão foi
completamente descurado pelos lógicos e teóricos do conhecimento. Este
fato deveu-se ao que há de não-coercivo nos argumentos que vêm ao apoio
de uma tese. A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à
necessidade e à evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do
plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do
calculo. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 1)
Novamente há uma divisão entre aquilo que é necessário a uma lógica formal do
conhecimento e o verossímil, já que as coisas humanas (por suas incontáveis variáveis) não
são suscetíveis à necessidade do cálculo. Argumentar e, por fim, persuadir tem como
significado levar alguém a crer em uma tese que não é aceita de antemão, e argumenta-se pois
entre a certeza lógico-matemática da evidência e o caos da irracionalidade e da violência
existe um largo campo de possibilidades. Possibilidades estas que são “controladas” pelas
provas retóricas, marcando uma prioridade dos argumentos objetivos. A conjugação da
capacidade de persuadir a outrem com a necessidade de provas formam o edifício da retórica
filosófica de Aristóteles, apropriada tanto por Perelman quanto pelo próprio Ginzburg:
Estes meios de prova utilizados para obter a adesão haviam sido estudados
por Aristóteles, que fala em dois tipos de prova: as atekhnai – traduzido
como extra-retóricas, extrínsecas ou não técnicas – e entekhnai – intra-
retóricas, intrínsecas ou técnicas. As provas não técnicas são aquelas das
quais o orador obterá as informações para produzir a sua argumentação:
testemunhas, confissões, documentos escritos, leis, contratos, etc. As provas
técnicas são os argumentos criados pelo orador e Aristóteles cita duas: o
51
***
Qual História?
Assim inicia, logo ao título, um livro famoso entre os professores de História do Rio
Grande do Sul, organizado pelos professores Fernando Seffner e José Alberto Baldissera
(1997). Pergunta simples e, ao mesmo tempo, repleta de implicações. Libertamo-nos dos
fantasmas da História sagrada e da formação da nacionalidade, que buscava constituir a
memória do povo e da nação, bem como sua herdeira direta, a História dita positivista, que
comemorava as datas e os heróis. Não são mais essas as nossas preocupações (mesmo que
ainda persista esse modelo, em variados espaços, e mesmo dentro de muitas escolas). Qual é
então, a “nossa História”?
Se tomarmos por base alguns dos elementos constantes nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, especialmente da área de História, perceberemos as seguintes preocupações:
análise das relações de trabalho, bem como os processos de lutas de classes e movimentos
sociais; diferenças culturais, étnicas, geracionais, econômicas e cetera; relações dos homens
com a natureza, em uma perspectiva histórica; construção da cidadania; história da
sexualidade e do corpo. Em termos de constituição do conhecimento histórico, os PCN
propõem que aos alunos sejam oferecidos os processos pelos quais a História é construída
pelo ofício do historiador, problematizando fontes, referenciais teóricos e buscando
explicações através de conexões causais.
A História linear é tensionada, surgindo recomendações para uso de eixos temáticos
desdobrados em subtemas como: as histórias locais e do cotidiano; as histórias das
organizações populacionais, suas lutas e deslocamentos; as histórias das relações sociais, da
cultura e do trabalho; e a história das representações e das relações de poder, no nível das
nações e das cidadanias. Somam-se também os temas transversais, tais como saúde, meio
ambiente, sexualidade, trabalho e consumo (GUIMARÃES, 2012, p. 62). Este documento, em
consonância com desdobramentos acadêmicos e dos movimentos sociais, reforçou a História
como local privilegiado de problematização da identidade, cidadania, (re)conhecimento do
outro, respeito às pluralidades e defesa da democracia (SILVA e FONSECA, 2010, p. 18).
Nessa “nova História”, formulada especialmente a partir do processo de luta contra a
ditadura civil-militar e o processo de redemocratização no Brasil, o foco parece ter migrado
para a questão da aprendizagem com intensos contatos entre a historiografia acadêmica e o
53
Um título autoevidente! Parece-nos claro que se aprende nos mais variados espaços, e
não apenas no espaço escolar. Construir valores, posturas, comportamentos, visões de mundo
ou práticas prescinde os espaços escolares. Nascem na interação com a família, amigos,
mídias, redes sociais, grupos variados, muitas vezes em franca contradição com os
ensinamentos dos professores. Entre tantos caminhos tortuosos, fronteiras e desvios, pretendo
nesta reflexão galgar outro, problematizando como estudos/conceitos/problematizações
advindos do campo dos Estudos Culturais podem ser mobilizados para compreender o ensino
de História.
Os Estudos Culturais se caracterizam como um campo híbrido e articulador, que
relaciona diversas áreas do conhecimento e objetos de estudo com o objetivo de mapear as
redes de práticas e relações sociais que constituem e significam a vida cotidiana. Existe uma
ênfase específica na comunicação e na recepção, de onde emana o interesse pelo texto e pela
textualidade. Ao optar pelos processos de recepção cultural, a dimensão etnográfica dos
processos metodológicos de pesquisa passa a ser central. É preciso, a partir de descrições
densas, captar os detalhes, aquilo que é mais trivial e costuma, justamente pela naturalidade,
não chamar a atenção. Ou, como aponta Ana Escosteguy (1998, p. 90):
15
Conceito que aparece pela primeira vez na obra de Richard Darwins – O Gene Egoísta, de 1976 (publicado no
Brasil pela Companhia das Letras, em 2007). Memes seriam unidades de informação que se propagam de
cérebro em cérebro, e podem ser ideias ou fragmentos de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores
estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade
autônoma.
55
Partindo destas considerações, múltiplas são as vozes que narram o passado, e lutam
discursivamente para estabeleceram verdades. Suponhamos um jovem que frequenta a escola
e constrói sua consciência a respeito do passado humano a partir de uma série de discursos,
provenientes de locais de produção muito variados. Ele assiste canais de televisão como o
History Channel ou Discovery Channel onde acessa determinados conteúdos históricos,
grandemente relacionados com história política e militar, além de fortes apelos a aliens,
sociedades secretas e ocultismos variados. Na internet, especialmente a partir de redes sociais
e grupos de whatsapp, existe uma grande troca de informações a partir de memes, textos
curtos, notícias de meios de comunicação duvidosos e muitas informações falsas ligadas a
interesses políticos variados. Muitas destas informações tocam em temas históricos, como em
debates sobre a Ditadura Civil-Militar brasileira ou sobre conceitos das ciências políticas. Este
jovem, eventualmente, pode ler publicações do tipo “politicamente incorreto” que visam
desconstruir certos conhecimentos históricos hegemônicos, como o Guia politicamente
incorreto de História do Brasil”16. Para além da verdade histórica contida (ou não) nesses
discursos, opera-se um processo com clara intencionalidade política, que visa atacar uma
historiografia “dos de baixo”, desconstruindo conceitos caros especialmente ao marxismo
(mesmo que vulgar) como de luta de classes, opressão, ideologia, e cetera. Uma das
consequências possíveis dessa pedagogia cultural pode ser mesmo diminuir a autoridade do
professor de História como detentor e articulador dos conhecimentos históricos, associando-o
a um “doutrinador”, ou “ideólogo”. Em outro movimento, esse mesmo jovem (e não apenas
ele) assiste novelas de época, que vão desde o Brasil Colônia até os anos 80/90, e nessas
16
NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto de História do Brasil. São Paulo: LEYA, 2009.
56
narrativas constrói imagens do cotidiano, dos casamentos, dos comportamentos, nem sempre
verossímeis às épocas em questão.
Levar em conta as pedagogias que agem na construção dos conhecimentos históricos
fora da sala de aula não significa abandonar a ideia de uma pedagogia institucionalizada. Não
se abandona, mas claramente abre-se uma tensão, onde múltiplas vozes passam a ser ouvidas.
Podemos inserir esse momento no estado da cultura que advém com a condição pós-moderna
e a virada linguística. Como afirma o professor Alfredo Veiga-Neto (2003), uma das
principais consequências destes processos foi o estilhaçamento e pluralização de termos antes
empregados de forma una, como a linguagem, a cultura ou a História. É importante apontar
que tal mudança
legitimidade; 3) que posições o sujeito ocupa em relação aos domínios ou grupos de objetos?;
como estes percebem, observam, descrevem, ensinam, e cetera.; Estes três questionamentos
põem o discurso em um jogo de relações, uma prática que articula status, lugares e posições e,
em plena expressão discursiva, produzem um campo de regularidades para as diversas (e
dispersas) posições de subjetividade (FOUCAULT, 2009, p. 60-61).
Um exemplo, para não sairmos da nossa temática, é pensar que apenas poderia falar
sobre o passado humano aquele que estudou e apropriou-se dos conceitos e práticas da
historiografia, sendo que os demais indivíduos que falam sobre história não estariam no
mesmo nível dos historiadores. O historiador ou professor de história fala a partir da
universidade e da escola: qual a sua formação? Quantos livros ele publicou? Qual a sua
trajetória acadêmica ou profissional? São questões deste tipo que criam posições-sujeito com
uma fala legítima ou não legítima.
Isso não significa que Foucault compreenda esse processo como estável. Ele próprio
trabalhou de forma destacada com conceitos como “(...) descontinuidade, ruptura, limiar,
limite, série, transformação, em um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira,
o tema da continuidade” (2009, p. 23). Menciona ainda o quanto os conceitos são atingidos
por deslocamentos e transformações (sendo, portanto, cingidos, descontínuos, dispersos,
apontando para a diferença e não à unicidade). A movimentação de cada conceito estaria
associada à história de seus múltiplos campos de constituição e validade, bem como das
sucessivas regras de uso e dos meios teóricos variados que serviram para a sua elaboração.
Nessa lógica, a ilustração do nosso jovem sugere que as transformações na esfera dos
saberes e nas tecnologias vêm cada vez mais desalojando as certezas e as permanências,
provocando, também, que os sujeitos fluam entre as diversas posições-sujeito que lhes são
oferecidas a ocupar. O saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram
na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna (CAMOZZATO, 2014, p.
578). Como aponta Lyotard (apud CAMOZZATO, 2014, p. 578),
Figura 1 - Memes políticos sobre o governo da ex-presidenta Dilma Roussef, criados no contexto político de 2016.
Essa discussão, a meu ver, dialoga diretamente com a noção ampla de currículo, não
apenas o escolar, mas todo um conjunto de saberes e práticas que tem por fim constituir
sujeitos. Neste sentido, Maria Lucia Wortmann (2005), define três níveis para a formulação
de uma intencionalidade pedagógica, ou um currículo: epistemológico, político e estratégico.
17
Memes postados na página do Facebook TV Revolta. Os dois primeiros estão disponíveis em:
http://consciencia.blog.br/2014/05/60-perolas-de-paginas-de-direita-facebook-13-especial-tv-
revolta.html#.Vp2ocvkrJD8. Acesso em: 17/01/2016. O terceiro está disponível em:
https://www.facebook.com/prof.leandrokarnal/photos/a.1603727593202940.1073741829.1603132246595808/16
71005249808507/?type=3&theater. Acesso em 18/01/2016.
60
seres do mundo”. Se hoje nossos alunos aprendem na escola básica o evolucionismo ao invés
do criacionismo, isso se deve a uma complexa luta que envolveu a capacidade de um discurso
impor-se sobre o outro. Esse currículo envolve um conjunto de conteúdos, conhecimentos e
saberes, mas também um conjunto de posturas, valores, significados que circulam na escola.
Metodologias, avaliação, objetivos, arquitetura escolar, políticas de ensino e aprendizagem
fazem parte das teorias tradicionais do currículo, como questões internas ao espaço escolar.
Todavia existem outras teorias que pretendem analisar os currículos que permeiam a
escola, provenientes do meio externo e pautadas pelo poder em uma perspectiva mais ampla:
as teorias críticas e as teorias pós-criticas. As teorias críticas, grandemente ligadas a correntes
marxistas de análise, tendem a observar a escola como uma reprodutora das desigualdades
existentes na sociedade, reforçando a ideologia do sistema capitalista e a dominação de classe.
Em contraponto a essa leitura, estes teóricos propõem que esse mesmo espaço, através de uma
inversão ideológica das práticas, possa ser um espaço de conscientização, emancipação,
libertação e resistência.
Mais recentemente, e alinhada com processos pós-estruturalistas, surgem as chamadas
teorias pós-críticas, que alargam o poder para além das classes sociais (ainda que não as
neguem). Para essas teorias existem diversos outros marcadores e conceitos, como identidade,
alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação,
cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo, dentre outros. Como a lista acima
torna evidente, é nesta perspectiva que se enquadram os Estudos Culturais, especialmente em
seu componente multicultural de dar visibilidade e voz para minorias muitas vezes ocultadas e
silenciadas.
Os currículos podem ser entendidos como um entremeio destas teorias, que se
materializam em práticas muitas vezes contraditórias que ocupam um mesmo espaço escolar.
Por exemplo, em uma mesma escola pública onde o evolucionismo é ensinado como um saber
cientificamente aceito podemos ter imagens de santos Católicos espalhadas pela escola em
conflito com uma pretensa laicidade da escola pública. É nessa tentativa sempre tensa de
capturar e controlar o sentido das coisas que os professores, dentre os quais me situo,
procuram constituir suas práticas; um contrabandista como Jango Jorge, que mesmo
habilidoso nem sempre controla os efeitos do que produz. Viviane Camozzato novamente traz
uma soberba contribuição:
Larrosa (2001, p. 286) nomeia como “[...] nossa relação com aquilo que não
se pode antecipar, nem projetar, nem prever, nem predizer, nem prescrever”,
bem como “[...] com aquilo que não se fabrica, mas que nasce [...], com
61
Nossa fala, via de regra, é ouvida. Também esse lugar de destaque do professor pode ser
completamente desconstruído e até ser invertido caso esse seja associado como um
“esquerdista”, frente a alunos conservadores. Trata-se também de uma estratégia discursiva
minar a capacidade do outro falar, como tenta fazer o terceiro meme apresentado
anteriormente.
Não me parece que devamos abandonar a pretensão de significar o passado em nossas
salas de aula. É, contudo, importante termos clareza de que o (re)conhecimento do modo
como a consciência histórica dos nossos alunos é construída pode auxiliar neste processo de
ensino. A sala de aula continua, com cada vez mais intensidade, a ser uma fronteira, um
campo de lutas discursivas...
1.2.2 – As aprendizagens significativas; ou por que ainda vale a pena ensinar História?
Ao ler esse diálogo, é possível remeter suas palavras a uma passagem de Paul Veyne
(1971, p. 62): “se os romanos maçam um pouco o público [por serem, na realidade europeia e
também estadunidense, estudados em demasia], é porque se fez deles um povo-valor em vez
de ver quanto eles eram exóticos.” Mas no diálogo esse caráter exótico não aparece. Existe a
convicção na fala do professor Hundert de que o conhecimento por ele ensinado relaciona-se
diretamente com a formação de seus alunos, no caso uma formação moral e ética. E por que
não os romanos “exóticos”, com seus mosaicos sensuais nas salas principais das residências?
Ou as punições absolutamente cruéis aos nossos olhos? Ou o poder ilimitado e despótico do
pater familias19?
18
Diálogo entre o professor de História William Hundert e o senador Hiram Bell, no filme “O Clube do
Imperador” (Título original: The Emperor’s Club, direção de Michael Hoffman, EUA, 2002), tratando da
situação de Sedgewick Bell (filho do senador) e dos objetivos das aulas do referido professor.
19
Poder, baseado na tradição romana, que dava ao pai da família poder ilimitado sobre sua mulher, filhos e
escravos, de tal sorte que era permitido vender ou mesmo matar os filhos.
63
Porque aquele professor possui um objetivo que vai além da complexidade da história,
e reside nesta própria complexidade; aquela história, conteudista e tradicional sobre vários
aspectos20, é por ele dotada de um valor que a confere determinada importância na intriga
tecida em suas aulas, que busca na antiguidade determinados fragmentos que mais interessam.
Assim agem, de certa forma, todos os professores (de História, ao menos). Atribuímos valores
diversos às diferentes temporalidades com que lidamos, conforme nossa formação, crenças,
valores, posições políticas, e cetera. Se as escolhas são presentes, e mesmo inevitáveis, na
prática docente, resta-nos compreender suas motivações e possibilidades, entendendo o
próprio professor imerso na historicidade do nosso tempo, nesse “mundo vivido, do qual o
aristotelismo permanece a melhor descrição; esse mundo real, concreto, povoado de coisas,
animais e homens, onde os homens fazem o que querem, mas não fazem tudo o que querem
(...)” (VEYNE, 1971, p. 126).
A proposta deste subcapítulo é compreender quais escolhas podem ser lançadas pelos
professores de História, visando à construção de aprendizagens significativas para seus
alunos. Isso porque, mais do que outros saberes disciplinares, as referências científicas sofrem
da concorrência das finalidades sociais, cívicas, educativas em amplos sentidos (LAUTIER,
2011, p. 41); ensina-se a partir de uma questão de fundo: para que, por que e para quem esse
ensino pode ter algum tipo de serventia (MICELI, 2012, p. 48).
Esses questionamentos demandam um conjunto de procedimentos tais como: saber
selecionar fatos importantes para a compreensão do presente; capacidade de situar os fatos no
tempo e no espaço; na leitura das narrativas e documentos destes fatos, interpretar e
questionar suas conclusões; na medida em que a História comporta espaços de interpretação,
abre-se a possibilidade de construção de explicações autorais sobre as relações do passado
com o presente; compreender a dimensão narrativa da História, onde a explicação dos
fenômenos passa por analisar e narrar ações, agentes e contextos; a partir destas narrativas,
relacioná-las interpretando e ressignificando o presente, oferecendo ferramentas e recursos
referenciais para orientar-se e agir na realidade social (adaptado a partir de SCHMIDT e
CAINELLI, 2009, p. 67-68). Ressalto que, em relação às explicações autorais eventualmente
constituídas pelos alunos, cabe também o cuidado para que não se reforcem explicações
preconceituosas ou francamente inverossímeis em relação às verdades históricas aceitas. Em
tempos de guerras de narrativas envolvendo história e política, não podemos nos dar ao luxo
20
Basta lembrar que o grande acontecimento das aulas do professor Hundert era o “Senhor Júlio César”,
basicamente um Quiz com perguntas diretas sobre indivíduos, leis, acontecimentos e outros aspectos da história
romana.
64
(PEREIRA e GIACOMONI, 2008, p. 46 e 62). É bom lembrar que muitos desses livros foram
publicados até a década de 1950.
Do período republicano em diante a História reforçou seu pertencimento como
disciplina escolar especialmente por ser legitimadora da tradição nacional, de sua cultura,
crenças, artes e formação do território (BITTENCOURT, 2012, p. 53), movimento este que
esteve no cerne da própria constituição da História como disciplina acadêmica na Europa, ao
longo do século XIX (NADAI, 2012, p. 28). Como afirma Laville (1999, p. 126), o ensino da
História nas escolas não era mais que uma educação cívica (mesmo que com uma noção de
civismo mais próxima da de súdito) destinada a legitimar o estado e a nação segundo a
conjuntura social e política do momento, inculcando nos cidadãos valores como orgulho,
respeito e dedicação à nação:
O aparelho didático desse ensino era simples: uma narração de fatos seletos,
momentos fortes, etapas decisivas, grandes personagens, acontecimentos
simbólicos e, de vez em quando, alguns mitos gratificantes. Cada peça dessa
narrativa tinha sua importância e era cuidadosamente selecionada.
(LAVILLE, 1999, p. 126)
Estas narrativas eram construídas pela própria historiografia oficial, com papel
relevante desempenhado pelo Instituto Histórico e Geográfico no processo de adaptação da
historiografia oficial para a criação das disciplinas escolares (ZAMBONI, 2001, p. 109). Tais
histórias, entendidas como um espaço de perpetuação e preservação da memória nacional,
procuraram garantir a criação de uma identidade comum, na qual os grupos étnicos brasileiros
(brancos, negros e indígenas) apresentavam-se de forma harmônica e não conflituosa na
criação da nacionalidade brasileira (NADAI, 2012, p. 29). A ênfase recaía sobre os grandes
vultos da constituição da nação: heróis da guerra e da política, presidentes e senadores, além
de verdadeiros mitos como Tiradentes ou Bento Gonçalves. Uma História feita por outros,
enquanto a massa é excluída de qualquer protagonismo, restando apenas a participação
sempre obrigatória nas festas cívicas.
Perpetuaram-se um conjunto de mitos nessa historiografia: o mito da união nacional
(que remete à Varnhagen) que construiu uma coerência histórica em experiências variadas
como a invasão dos holandeses não resiste à crítica das fontes; também o mito das origens
raciais, a partir de Gilberto Freire, teorizando que a escravidão na América portuguesa, ao
contrário da anglo-saxônica, tivera um caráter benigno graças ao espírito integrador dos
portugueses, o que permitiria a construção da nação com a possibilidade de convivência entre
66
negros e brancos. Uma imagem de um Brasil sem preconceitos raciais, um caldeirão de raças
que ferve em harmonia (PINSK, 2012).
Como aponta Zamboni (2001, p. 116), o caráter de exaltação nacionalista tendeu a ser
mais forte nos períodos autoritários, como as ditaduras de Vargas e a Civil-Militar de 1964. A
história que glorificava heróis e feitos tornou-se uma forte aliada desses regimes, uma vez
que, por um lado, seguia afirmando o valor da nação e da unidade nacional e, por outro,
impossibilitava que o ensino de História fosse um espaço de reflexão e crítica social
(PEREIRA e MARQUES, 2013, p. 86). Nesse sentido, a disciplina da História, no contexto
de pânico moral em relação às “ameaças comunistas”, conforme fomentado pela doutrina de
segurança nacional durante o período da Ditadura Civil-Militar, sofreu um conjunto de
alterações. A criação da disciplina de Estudos Sociais, que congregava História e Geografia,
reforçou o seu ensino como uma “cruzada cívica” (FONSECA, 1993 apud ABUD, 2016, p.
301). A legislação como um todo retomou “aos mesmos princípios históricos dos primeiros
programas escolares, reforçando as imagens dos heróis da unidade nacional, a cronologia e o
fato histórico” (ABUD, 2016, p. 301), além da concepção linear e quadripartida do tempo.
Além disso, esta nova disciplina também perdeu espaço para outras criadas naquele
momento, como Educação Moral e Cívica (EMC), Organização Social e Política do Brasil
(OSPB) e Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB). Os saberes disciplinares específicos
acabavam sendo dispersos por essas novas disciplinas, que funcionavam como um mosaico de
conhecimentos gerais tratados de forma superficial em relação à realidade social
(GUIMARÃES, 2012, p. 25). Esse ensino acabava por reduzir os conceitos de moral,
liberdade e democracia aos de civismo, subserviência e patriotismo (GUIMARÃES, 2012, p.
28).
Sob muitos aspectos, uma verdadeira doutrinação: narrativas acabadas, lineares, não
problematizadas, baseadas nos feitos de grandes vultos via de regra pertencentes a uma classe,
gênero e raça privilegiadas e que através de suas ações movem a história da nação. Não
espanta que muitos que foram (e ainda são, em muitos espaços) educados a partir dessa
perspectiva se assustem frente às novas perspectivas historiográficas, que de forma ou outra
chegam à escola e à cultura de forma mais ampla. Jaqueline Moll (2011, p. 10-11), quando
problematiza a Educação de Jovens e Adultos cita um dado interessante: os alunos que
tiveram de abandonar os estudos na juventude apontavam o formato tradicional (rigidez, cópia
e memorização, especialmente) como um dos principais motivos para terem abandonado a
escola; paradoxalmente, é justamente este formato de aula que eles esperam que seja
ministrado pelos professores e professoras, que sofrem resistências ao propor metodologias
67
inovadoras: “não adianta ficar só falando, a gente tem que escrever, encher caderno”, diz um
destes alunos.
Com o fim da Ditadura Civil-Militar, pouco a pouco o Ensino de História foi se
desvinculando das pautas nacionalistas, ao menos no campo das discussões. No decorrer dos
anos 1980 um conjunto de explicações baseadas no marxismo ortodoxo passou a pautar
currículos e novos livros didáticos. A ênfase recaía no determinismo econômico e na
ordenação de conceitos que explicam o desenvolvimento de forças produtivas a partir do
sistema linear de modos de produção, analisando suas características, transições, crises e
projeção de superação para o modo de produção socialista. As histórias do Brasil e da
América eram compreendidas como exemplos desse progresso, ou, mais especificamente, da
falta dele. Uma história do “progresso como redenção” e também, reconhecidamente,
eurocêntrica (GUIMARÃES, 2012, p. 149). Como aponta Pinsk (2012, p. 23), na busca das
razões econômicas, do processo histórico e da lógica do sistema, o homem, razão última do
estudo de história engajado, é esquecido. Em grande medida substituiu-se o positivismo – com
sua série de causas/efeitos associadas aos grandes vultos – pela teleologia, em que há uma
causa primordial para todos os fenômenos e a tendência deles para um fim necessário. Como
ressalta Guimarães (2012, p. 49), esse modelo de explicação esgotou-se no meio escolar e
curricular devido especialmente à crise do marxismo pós-desagregação dos países do Bloco
Socialista.
De qualquer forma, a apropriação desse formato do marxismo demonstra a ideia
compartilhada por muitos professores de que era necessário “indicar” aos alunos caminhos
para transformação da sociedade brasileira, formando politicamente o jovem,
conscientizando-o e dando a ele condições de exercer uma cidadania efetiva (GUIMARÃES,
2012, p. 150), fomentando a criticidade e descentrando o processo histórico da ação de
grandes vultos para a análise das contradições sociais (englobando especialmente o povo
comum nessas análises). Laville (1999, p. 134), ao analisar as relações da História escolar
com a política, situa a perspectiva marxista em uma proposição de luta contra o Estado, que
parte de militantes de oposição aos programas oficiais, em contraposição a uma história
nacionalista. Tratava-se, sobretudo, de substituir uma narrativa por outra.
Ampliando um pouco essa discussão, Laville (1999, p. 131-134) elenca um grande
número de exemplos ilustrativos de como o ensino de História está sempre ligado às
instâncias de decisão política, ou em confronto com elas (como foi o caso específico das
análises marxistas da História no Brasil): na Alemanha ocupada após a vitória dos aliados,
uma das primeiras decisões foi suspender o ensino de História; na Alemanha Oriental, durante
68
Neste fim de século, é possível que a narrativa histórica não tenha mais tanto
poder, que a família, o meio ao qual se pertence, circunstâncias marcantes no
ambiente em que se vive, mas sobretudo os meios de comunicação, tenham
muito mais influência. O que deveria nos levar a não perder de vista a função
social geralmente declarada hoje a respeito do ensino da história: formar
indivíduos autônomos e críticos e levá-los a desenvolver as capacidades
intelectuais e afetivas adequadas, fazendo com que trabalhem com conteúdos
históricos abertos e variados, e não com conteúdos fechados e determinados
como ainda são com freqüência as narrativas que provocam disputas. Senão,
essas guerras de narrativas desencadeadas em todo o mundo vão acabar
71
Isso serve como alerta, de que talvez a chave do ensino da História não se encontre
nos fatos específicos a serem narrados, mas nos procedimentos que significam esses fatos.
Forquin (1992, p. 36-37), apoiando-se em Pierre Boudieu, sublinha o quanto a escola cumpre
um papel de integração lógica e ao mesmo tempo de integração moral e social, o que
possibilita aos seus frequentadores a formação de um conjunto de esquemas de comunicação e
cumplicidade que constituem um inconsciente operativo. Ou seja, a escola forma, na condição
de espaço público, em suas práticas cotidianas, um conjunto de valores operatórios que
transcendem narrativas ou conteúdos pontuais e estabelecem formas de ler e agir sobre o
mundo que divergem da sociabilidade experimentada no interior da família. A eficácia desses
valores não se encontra em seu caráter declarativo, mas sim na medida em que alternativas
pedagógico-didáticas construam esses mesmos valores em ato e de modo vivencial (ESPAÑA
e GENTILETTI, 2007, p. 58). Não significa criar um mundo à parte da sociedade, mas sim
reconhecer que a escola produz a partir de uma autonomia relativa e uma eficácia própria.
Mesmo afinadas com a perspectiva democrática, é possível dizer que estas propostas
de ensino de História elencadas acima são grandemente contra hegemônicas em relação a um
conjunto de valores conservadores ou reacionários, donde se explica a reação por parte de
movimentos tal qual o Escola Sem Partido. Um ensino que aponte o largo espectro de lutas de
homens e mulheres em prol de mais direitos e melhores condições de vida é sempre contrário
ao status quo, ou à manutenção de determinada tradição, o que produz reações.
Paradoxalmente, um ensino que estabeleça uma educação para a paz, necessária para a vida
democrática, também gera reações em um país grandemente racista e violento, e que reage
muitas vezes com esta mesma violência.
Claro que fica uma dúvida, conforme apontada por Guimarães (2012, p. 47): essa
história mais aberta, democrática, flexível, passou a ser ensinada nas escolas, em detrimento
de propostas memorialísticas ou baseadas em um marxismo vulgar? Parte do objetivo desta
tese é recolher indícios que permitam responder, mesmo que parcialmente, essa questão.
72
1.2.2.3 – Problematicidade
as mudanças no tempo: antes de conhecer o que aconteceu, eles desejam entender o “caminho
causal”, a sequência da história que lhes permite reduzir o “desconhecido que toda a mudança
introduz sobre o curso das coisas”. O processo que coloca o conjunto de fatos “em intriga”
(muitas vezes abandonado em nome do caráter científico do entendimento de processos)
encontra-se no seio da leitura da história. Na medida em que oferecemos a História para
nossos alunos, historiadores, professores e alunos passam a habitar um lugar comum: todos
serão convidados a compreender os homens e mulheres do passado através de operações
cognitivas similares, mobilizando e constituindo narrativas e conhecimentos do mundo
vivido.
Assim sendo, os primeiros processos de apreensão da História aproximam o novato do
especialista, cujas diferenças residem especialmente no grau de criticidade e distanciamento.
Um historiador critica fontes, elabora periodizações, dá sentido às diferentes temporalidades e
constrói entidades da História (a Burguesia, os Trabalhadores, os Ricos, e cetera). No
processo de ensino, estes procedimentos atuam no processo de controle do que Lautier
denomina “pensamento natural”. Não se intenta transformar o aluno em um pequeno
historiador, mas sim que ele domine parte destes procedimentos para assim problematizar o
lugar essencial da História: o presente, e não o passado.
Abrir os próprios procedimentos da História à problematicidade pode se mostrar um
processo rico. Os conceitos históricos, por exemplo, na medida em que são desenvolvidos,
podem ser historicizados e reposicionados em outras perspectivas. Em muitos casos, como
nos ensina Paul Veyne (1971, p. 154-155), esses conceitos pertencem ao senso comum e
carregam um paradoxo: sabemos intuitivamente o que é um comunista, por exemplo, mas não
conseguimos definir com substância esse conceito pois não passam de imagens genéricas a
respeito da realidade. Levando em conta a diacronia desses conceitos, o professor pode
identificar a temporalidade de que eles fazem parte, capturando seu valor polêmico: “os
conceitos adquirem sentido em uma configuração herdada do passado, por seu valor
performático anunciador de um futuro e por seu alcance polêmico no tempo presente”
(PROST, 2008, p. 131).
Outra grande problematicidade do ensino de história é a sua abertura para a dimensão
do futuro, não tão evidente na historiografia acadêmica. Levstik e Barton (apud PAGÈS,
2015, p. 309) situam justamente as finalidades do Ensino de História em uma perspectiva
sociocultural que dialogue e problematize passado, presente e futuro, a partir das seguintes
características: a) ajudar a pensar quem somos; b) ajudar a desenhar futuros possíveis; c)
74
passivamente, mas atuam criando os sentidos, que não podem ser definidos como um depósito
ou uma replicação da intensão autoral:
Dessa forma, o caráter dialógico tanto da leitura quanto da escrita dão condições do
saber escolar disciplinar se acomodar aos tipos de problemas e colaborar com os
conhecimentos e as habilidades que ajudam os alunos a pensar os problemas e apropriar-se
dos saberes que os convertem em compreensíveis e solucionáveis (PAGÈS, 2015, p. 321).
Por fim, analisar a escrita, mesmo de um jovem estudante, envolve utilizar recursos
conceituais, fontes, possuir uma problemática construída com certo estilo narrativo
(SEFFNER, 2006). Na medida em que ler é compreender o mundo, escrever é ensejar intervir
em sua modificação. Quando desejamos que um aluno leia o mundo a partir de um conceito,
desejamos uma leitura autoral, que não caiba em uma resposta única e dogmática, mesmo que
não descure dos procedimentos disciplinares. Ao escrever, que desenvolva uma capacidade
argumentativa própria, relacionando vivências e conceitos em um ambiente democrático de
troca de ideias e convívio possível de opiniões diferenciadas. Portanto, compreendo a
emergência dos conceitos históricos em sala de aula como um movimento absolutamente
central.
Darei espacial ênfase a questão conceitual, tomada como elemento central do ensino
de História, sejam com conceitos específicos das temporalidades estudadas (república,
democracia, humanismo, despotismo esclarecido, imperialismo, e cetera), sejam conceitos
estruturantes para a historiografia (tempo, fontes, narrativas, estrutura, acontecimento,
processo, simultaneidade, e cetera). Segundo Moniot (apud SCHMIDT e CAINELLI, 2009,
p.84) os conceitos podem ser considerados possibilidades cognitivas, um arcabouço de
ligações articuladas, muitas vezes condensadas em apenas uma palavra, existentes na
memória (de todos os indivíduos) e cujo arranjo auxilia-nos a organizar, reconhecer e
78
Como aponta Citelli (apud SEFFNER, 2006), a constatação inicial que devemos ter é
que todos estamos em constante processo de leitura de mundo, e aprendemos ao longo de
nossas vidas as chaves para efetuar estas leituras. A História tem uma atuação central no
processo de alargamento e complexificação deste processo de leitura, na medida em que
oferece novos conceitos e problematiza outros do senso comum. Como nos ensina Bittencourt
(2008, p. 189), a aprendizagem conceitual não pode prescindir de estabelecer relações com
aquilo que o aluno já sabe (como de resto valeria para toda a educação), sob risco de que os
conceitos acabem sendo apenas mecanicamente repetidos. Memorizar que a democracia é um
governo exercido pelo povo não significa conseguir observar variados sistemas políticos reais
e compará-los com o conceito e entre si. Definição de palavras e domínio conceitual são
coisas distintas.
Koselleck (apud PROST, 2008, p. 116) afirma ser possível estabelecer uma distinção
entre dois níveis de conceitos: aqueles que já existiam na realidade histórica estudada (como
feudo (fief) ou tributo (ban)) ou aqueles criados posteriormente visando reconstruir as
realidades do passado (como estamentos ou classes). A História, a partir dos conceitos,
simultaneamente faz e é feita pelo processo histórico. Muitas dessas criações tornam-se
verdadeiras entidades (como burguesia, revolução, povo, rei, e cetera.), criando a sensação de
sempre terem existido em todos os espaços (BITTENCOURT, 2008, p. 193), criando a
necessidade de serem problematizados ou historicizados, sob risco de cometermos
anacronismos. Todavia essa distinção não acarreta uma diferença de ordem lógica, já que
ambas categorias de conceitos emergem da mesma operação intelectual: a generalização ou o
resumo (PROST, 2008, p. 118).
Estes processos, longe de serem neutros, implicam um recorte na realidade
(econômico, social, político ou cultural) e um modo de pensar a História. É impossível para
um historiador fornecer certa ordem ao passado sem lançar mão dos conceitos. Não são nem
79
exteriores, nem o próprio real; mantendo-se adequados às coisas eles mantêm uma distância e
uma tensão a partir das quais se faz a História; refletem a realidade e lhe dão forma, ao
nomeá-la (PROST, 2008, p. 131). Trata-se de uma atividade intelectual por excelência,
sempre parcial e contingente já que o real teima em não ser reduzido completamente ao
racional: a bela ordem que os conceitos criam é sempre tumultuada pela realidade que eles
permitem descortinar. Dotados de sentido, os conceitos transitam pelas dimensões do tempo:
a configuração é herdada do passado, seu valor performático anuncia um futuro e seu alcance
é polêmico no tempo presente (PROST, 2008, p. 131). Esse trânsito entre o virtual (o passado
e a memória), o atual e a projeção de futuro opera como um jogo, em que a cada nova
formação os conceitos e seus significados tenham que assumir outras roupagens (PEREIRA e
TORELLY, 2015, p. 91).
Essas palavras devem sempre incluir, por si só, uma pluralidade de significações e de
experiências. Quando pensamos o conceito de cidade, pensamos um processo de organização
sedentária de indivíduos em um espaço delimitado, vivendo sob um conjunto de normas e
valores diversos ao meio rural. Conforme os usos tornam-se necessárias também as
adjetivações: cidade antiga, cidade medieval, cidade industrial, e cetera.
Por serem ferramentas de comparação (podendo suscitar assim uma “inteligibilidade
comparativa”), os conceitos são mais que uma descrição resumida: incorporam uma
argumentação e referem-se a uma teoria, criando-se assim “tipos-ideais” (na terminologia de
Max Weber), cujo trabalho do historiador será justamente a testagem, determinando o quanto
cada caso particular afasta-se ou aproxima-se desse modelo. O processo de testagem faz
ressaltar, na comparação entre realidades, diferenças e similitudes, ressaltando ao mesmo
tempo aquilo que é específico e aquilo que é geral (PROST, 2008, p. 121-123). Além disso,
os conceitos sempre ligam-se em rede, seja por concordância, seja por oposição. O conceito
de fascismo, por exemplo, só tem sentido quando relacionado a outros como democracia,
liberdades, direitos humanos, nação, racismo, e cetera. Os sentidos atribuídos aos conceitos
dentro dessas redes comparativas é que, em um processo sempre parcial e relativo, organizam
o caos do passado em uma explicação minimamente coerente.
80
Dessa forma, a sala de aula aparece como um lugar privilegiado também para atuar
sobre essas memórias (com suas narrativas, seu passado, seus heróis, suas referências e seus
pertencimentos), na sua dimensão de lugar de trânsito e de encontros. Tais grupos desejam
que suas narrativas possam tornar-se públicas a partir da legitimidade que a disciplina escolar
81
lhes confere. Além disso, narrar a vida de homens e mulheres, com seus sofrimentos, alegrias
e dúvidas, cria identidades entre esses seres do passado e os do presente, na medida em que as
experiências podem despertar empatia com os fatos e podem criar afinidades
(BITTENCOURT, 2008, p. 143). Também pode criar repulsa, tanto a indivíduos, grupos ou
práticas.
Situo então a sala de aula em uma dupla perspectiva: ao mesmo tempo em que lida
com a identidade e o pertencimento daqueles que historicamente foram alijados das narrativas
que circulam na escola, por outro lida com um desenraizamento pela diferença. Coloca-se
assim mais um campo de complexidade para a ação dos professores. Lidar com os temas
sensíveis não é como lidar com um tema convencional. Trata-se de um processo formativo
para a própria identidade do professor. Como ressalta Laville (2011, p. 54), o trabalho com
esses assuntos carrega um conjunto de desafios: como gerir os contrários? Como gerir o rigor
científico? Como referir-se aos valores? Como gerir o diálogo entre o procedimento formal e
o procedimento compreensivo? Questões que se encontram também no âmago da ação de um
historiador, como os debates entre a história e a memória, o explicar e o compreender, as
funções científicas e as funções éticas, são constantemente articuladas pelos professores
diretamente nos contextos de sala de aula.
Pereira e Marques (2013, p. 91-94) apontam desafios na recriação de uma História-
memória, mesmo que pautada em agendas identitárias legítimas: risco de contar-se novamente
uma história referencial, tomando o passado a partir dos nossos valores de referência, vendo
naqueles silenciados que narramos apenas projeções desses valores (por exemplo, a visão
construída dos povos indígenas como “comunistas primitivos”, lançando sobre eles anseios
políticos dos anos 1970); limitação da ideia pedagógica de que o conteúdo estudado deve
sempre identificar-se com a realidade do estudante, privando-o assim da surpresa, da
diferença, da singularidade ou do estranhamento produzidos pelo contato com realidades
diversas à sua, problematizado inclusive sua identidade na medida em que a confronta e
aprende com outras: “a experiência alheia e distante pode muito bem ensinar a olhar para si
mesmo e, sobretudo, a olhar para o outro sem valorar, sem se referir a um conceito do
presente ou de uma cultura determinada.”; por fim, o problema da generalização e do
julgamento a partir dos valores do presente, que podem sufocar a singularidade (e
consequentemente aquilo que o passado tem de mais original).
Aprender História é um movimento que carrega em si esses desafios, já que se dá
justamente em um encontro conflituoso: a sala de aula, o professor, os alunos, os homens e
mulheres do passado. Encontro esse que permite um “misto de encantamento e de
82
A narrativa pode então ser considerada como operação capital da consciência histórica
onde por meio da constituição narrativa a experiência do passado ganha sentido,
transformando passado em história. É apenas com o processo narrativo, como nos ensina
Ricouer (2010: XI), que se oferece inteligibilidade ao vivido, ao articular a experiência no
tempo de forma lógica, tornando-o humano. É a intriga de uma narrativa que “‘toma
juntamente’ e integra em uma história inteira e completa os acontecimentos múltiplos e
dispersos e, assim, esquematiza a significação inteligível vinculada à narrativa tomada como
um todo” (RICOUER, 2010: 2). Para Rüsen, o conjunto de narrativas que dão sentido ao
tempo pode aparecer a partir de quatro formas de aprendizado da consciência histórica: 1)
tradicional: a totalidade temporal é apresentada como um modelo de vida e cultura do
passado, que deve ser repetido e validado para todos. Defende-se a estabilidade dos processos,
especialmente pela moralidade; 2) exemplar: as experiências do passado são casos que
representam regras gerais ou sistemas de valores, generalizando de forma atemporal a partir
desses casos escolhidos; 3) crítica: permite formular pontos de vista históricos,
problematizando os modelos culturais e de vida atuais. Constrói-se outro sistema moral com
base nessa crítica a valores ou ideologias anteriores; 4) genética: diferentes pontos de vista
podem ser aceitos porque se articulam em uma perspectiva de mudança no tempo, aceita
inclusive como baliza de relativização da moralidade, e a vida social é vista em toda sua
complexidade (RÜSEN, 2011, p. 63).
A consciência histórica é também responsável pela criação de significados em relação
à existência de um grupo no tempo (de onde viemos, quem somos, para onde vamos), ou seja,
de identidades. Na medida em que essa construção passa por imagens, ideias, objetos ou
85
21
Poema “Contrabando”, de Aparício Silva Rillo. Disponível em:
http://www.juntandorimas.com/poesias/apparicio/contrabando.htm. Acesso em: 13/05/2018.
87
Se há um trânsito, então existem lugares (ao menos dois deles). O presente capítulo
pretende problematizar a existência de dois regimes de produção do saber histórico (o
acadêmico e o escolar), entendidos como lugares de produção distintos, e compreendendo
como professores (e outros atores) transitam entre os mesmos.
Certeau nos auxilia a pensar o quanto o lugar social onde o conhecimento
historiográfico é produzido (ou seja, a academia) determina esta construção. Mesmo sua
reflexão tendo ficado restrita à dimensão do conhecimento acadêmico, a ideia de operação
(um trabalho, uma ação) torna possível pensar outros formatos de construção deste
conhecimento, situando o ensino de História como outro lugar de produção do conhecimento
histórico, que responde a questões diversas e possui balizas de validação também diversas.
Nesse sentido, concordo com a tese de Fernando de Araújo Penna (2013, p. 100-111)
que compreende a dimensão escolar do conhecimento histórico como não possuindo os
mesmos objetivos e não seguindo as mesmas regras do conhecimento histórico produzido na
academia. A fim de evitar um possível rompimento do conhecimento historiográfico, Penna
recorre a Paul Ricouer, mais especificamente no conceito de intencionalidade do
conhecimento histórico, para incluir regimes de produção do conhecimento diferentes sem
perder uma unidade do campo. Para não irmos tão longe, basta lembrarmos da “simples”
definição de história que nos oferece Paul Veyne (1971, p. 10): “os historiadores contam os
acontecimentos verdadeiros (...) que têm o homem como ator”. Por um lado os historiadores
empenham-se na busca e construção desta verdade, seguindo a complexa operação detalhada
nos capítulos anteriores; por outro, também os professores empenham-se em ensinar essa
verdade, elaborando-a conforme os públicos frente aos quais se depara. A verdade é o
referente, elemento último e singularizador do conhecimento histórico acadêmico e do
conhecimento histórico escolar, e que não permite que este campo de conhecimento dissolva-
se na relação com outros campos de saberes.
Aceitando este princípio, de que os lugares de produção do conhecimento histórico são
vários, creio ser pertinente retomar uma citação de Chartier (2002, p. 102):
historiografia mais recente e o conhecimento dos livros didáticos. Como aponta Penna (2013,
p. 107-108), a instabilidade do saber a ser ensinado pode gerar desgastes, como o
para as salas de aula. Para ela, a concepção de transposição didática consolida a existência de
uma hierarquia entre os saberes, sendo o escolar de segunda classe; é o saber acadêmico que
oferece legitimidade às disciplinas escolares, o que colabora com o demérito dos anos iniciais,
já que lhes faltaria uma “ciência-mãe” (poderíamos nos perguntar onde fica a Pedagogia nessa
leitura). Aqueles que defendem estes conceitos pensariam a escola como lugar de recepção e
reprodução de conhecimentos externos, mais ou menos bem transpostos, e o professor como
mero intermediário nesse processo.
O conceito de transposição didática é contraposto especialmente a partir das
teorizações de André Chervel (1990). Esse autor historiciza o nascimento das disciplinas
especialmente a partir do final do século XIX, na medida em que a escola deixava de ser
apenas para a formação de uma cultura humanista para a elite, com o ingresso de outras
parcelas da população. Conhecimentos ditos de “exatas” (física, química, botânica,
matemática) passaram a configurar juntamente com os tradicionais, o que possibilitou a
organização mais sistematizada do conhecimento em disciplinas. Neste processo coube
também identificar, classificar e organizar os objetivos e finalidades de cada disciplina,
explicitando conteúdos e métodos escolhidos, em uma relação entre os objetivos instrucionais
(leitura e escrita, comparação, dedução, argumentação, habilidades técnicas) e os objetivos
educacionais mais amplos (disciplinar corpos, socialização, incutir valores religiosos, cívico):
“as disciplinas escolares estão no centro desse dispositivo. Sua função consiste em cada caso
em colocar um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa.” (CHERVEL,
1990, p. 188). Esse processo define também os conteúdos explícitos, os métodos de ensino de
aprendizagem e as avaliações. Processo que, como vimos nos subcapítulos anteriores, segue
vivo em nossos contextos.
Chervel defende a existência de uma grande autonomia das disciplinas escolares,
sendo que a escola, mesmo que obedecendo às lógicas das quais participam agentes internos e
externos, produz seus próprios saberes em uma cultura escolar. As disciplinas formam-se
nessas culturas, tendo objetivos próprios muitas vezes distantes das “ciências de referência”.
Produzindo suas reflexões especialmente com base na história da Gramática escolar na
França, concluiu que essa disciplina teve origem a partir de um conjunto de necessidades da
escola, que precisava organizar um ensino da língua a todos os franceses. Desse movimento
surgem as “regras gramaticais” e todo conjunto de normas da língua francesa
(BITTENCOURT, 2008, p. 39), que posteriormente tornou-se um estudo acadêmico. Da
mesma forma é possível pensar a Geografia (a partir dos estudos de Goodson apud
FORQUIN, 1992, p. 40): de um saber escolar elementar e utilitário, a ação eficaz da
93
Concordo com Chervel quando nos diz que os saberes escolares não podem ser
entendidos como meros reflexos dos saberes de referência; são sim entidades culturais
próprias e criações didáticas originais, fruto de um lugar (a escola) que efetivamente produz
saberes. Todavia mesmo que entendamos a escola e os professores como seres de criação, não
podemos negar que aquilo que se ensina nas escolas passa por processos de referencialidade
por parte de profissionais ligados ao saber acadêmico, sendo que os conteúdos acabam
herdando as condições de atribuição de verdade e validade das produções científicas. Em
muitos casos percebemos um processo de vigilância a esses saberes escolares. Em verdade,
um duplo processo, advindo tanto do saber sábio quanto de setores da sociedade, lutando
discursivamente na noosfera.
Recentemente, o movimento “Escola sem partido” tem procurado, através de
movimentos nas legislaturas (municipais, estaduais e federal), aprovar projetos de lei que
criem restrições e punições a professores, bem como procura transitar em outras esferas, como
a dos gestores da educação, além de fomentar círculos de pais e alunos que temem a
“doutrinação”. Podemos dizer que estes movimentos gestam-se no entorno do sistema de
ensino, mas através da noosfera acabam por agir (ou tentar agir) sobre o sistema didático, já
que é ali que vai se definir a seleção de elementos do saber sábio a serem ensinados e assim
submetidos ao trabalho de transposição.
Mas o processo de vigilância também acontece internamente. Como lembra Monteiro
(2003, p. 15), o processo de transposição didática não é realizado diretamente pelos
professores como um todo. Ele acontece na medida em que especialistas em educação e das
áreas específicas, técnicos, representantes de associações e professores militantes (dentre
outros) definem uma proposta de seleção e estruturação didática a partir de um saber
acadêmico. Dessa forma, o professor não se encontra na primeira linha de decisão sobre o que
será recortado para o ensino escolar. A consequência desse processo é dupla. Por um lado,
conforme a produção de novos conhecimentos pela ciência tornou-se um fim em si mesma, de
forma quase indiscutível, as atividades de formação e educação paulatinamente passaram para
o segundo plano:
(...) aquilo que se poderia chamar de uma dimensão formadora dos saberes,
que os aproximava tradicionalmente de uma Cultura (Paideia, Bildung,
Lumières) e cuja aquisição implicava numa transformação positiva das
95
Mesmo esta distância se tornando cada vez maior, Chervel (1990) aponta como os
produtores dos saberes acadêmicos sempre almejam que as produções desses ambientes sejam
replicadas nas escolas, sendo que seu currículo deveria acompanhar o saber de referência na
perspectiva de uma permanente atualização. Aponta também o quanto a escola e os docentes
são críticos ou refratários (dependendo da situação) às mudanças, ligados a outras demandas
sociais impostas pelo espaço escolar. Tardiff, Lessard e Lahaye (1991, p. 222) ressaltam o
quanto esse distanciamento cria uma relação de exterioridade entre os saberes e os
professores, com uma “nítida tendência de desvalorizar sua própria formação profissional,
identificada com a ‘pedagogia e com as teorias abstratas dos formadores universitários’”.
Entende-se nesse processo, por exemplo, a grande resistência e dificuldade em executar as
propostas constantes nos PCN, que na maioria das escolas possibilitaram poucas mudanças
nas práticas.
Acosta (2013, p. 190, a partir de BERNSTEIN) atenta que, no momento em que o
conhecimento é convertido em conteúdo para a escola, ocorre o “princípio da
descontextualização”, indicando o novo posicionamento ideológico do saber nos campos de
reprodução, especialmente ligados à produção dos textos didáticos impressos. Mesmo não
sendo foco desta tese, é importante apontar a importância dos livros didáticos na ordenação
prática do currículo da maioria das escolas brasileiras e o quanto o controle sobre o conteúdo
dessas publicações esteve, até pouco tempo atrás, nas mãos de equipes ligadas às instituições
públicas de ensino superior (no caso da História, com a participação majoritária de
historiadores acadêmicos) que atuavam no Programa Nacional do Livro Didático. Também os
planos oficiais, os debates sobre a qualidade do ensino e as medidas para avaliar o
desempenho de alunos e professores advém de profissionais majoritariamente estabelecidos
no ensino superior (MICELI, 2012, p. 41), que exercem tanto a formatação dos planos quanto
a vigilância epistemológica dos saberes a serem ensinados. Ou seja, não apenas a ciência de
referência (o discurso historiográfico), mas também as decisões primeiras relativas à sua
transposição são grandemente estabelecidas por indivíduos distanciados da escola básica.
Desta forma, pontualmente sobre os livros didáticos, nunca se viveu um período em
que houvesse tanta “vigilância” acadêmica sobre o que é dito e feito na sala de aula. Em
96
Saberes, no plural. A educação básica transita entre muitos formatos de saberes, que
dimensionam conteúdos, recortes, metodologias, práticas disciplinares e formatos de
relacionamentos. A aula é composta por um feixe de fatores, um lugar sem fim onde dialogam
de forma complexa saberes provenientes de várias fontes: saberes profissionais transmitidos
pelas instituições de formação dos professores, comumente chamados de pedagógicos
(metodologias, tecnologias educacionais, conhecimentos psicológicos ou neurológicos, e
cetera); saberes das disciplinas, específicos da área de formação (em nosso caso, História):
conceitos, estruturas de pensamento, métodos, crítica a fontes, procedimentos de escrita,
teorizações, e cetera; saberes curriculares, correspondendo aos discursos, objetivos, conteúdos
e métodos selecionados como modelo de cultura a ser ensinada na escola, materializada em
programas escolares que professores e professoras devem aplicar; saberes da experiência,
fundados no trabalho cotidiano das professoras e professores nas relações com seu meio.
Dentro deste feixe de fatores está o professor ou a professora, alguém que deve
conhecer a sua matéria (com seus procedimentos, teorizações, conceitos), deve possuir
conhecimentos da área da educação, sem deixar de cultivar um saber prático fundado em sua
convivência cotidiana com alunos e alunas. (TARDIFF, LESSARD e LAHAYE, 1991, p.
221). Um professor que age e cria, mesmo que não de forma livre; circula entre saberes que
ao mesmo tempo em que lhe oferecem possibilidades, lhe colocam limites. Esse processo
criativo também tem uma relação direta com o lugar social onde esses saberes são produzidos:
não são nos laboratórios ou gabinetes, mas nas escolas e salas de aula.
Retomo aqui o conceito de operação historiográfica escolar, conforme desenvolvido
por Fernando de Araújo Penna (2013) a partir de Michel de Certeau e Paul Ricouer.
Compreendo que essa operação historiográfica produz um regime de verdade específico, que
denominarei como verdade histórico-didática, na medida em que se situa na intersecção de
dois lugares (a escola e a sala de aula), congrega procedimentos de análise ou práticas
científicas (que situarei na intersecção entre o saber historiográfico de referência e os saberes
da experiência) e materializa-se em textos e modos de escrever narrativas (planejadas,
programáveis, em condições de incerteza, limitadas no tempo, dotadas de sentidos atribuídos,
socialmente controladas, híbridas e retóricas) (CERTEAU, 2008, p. 66).
98
Estando nestas bordas, a escola ao mesmo tempo em que possui permeabilidade para
as determinações que são fruto do embate na noosfera, é constantemente produzida pelo peso
da tradição e pelo sucessivo ingresso de estudantes e professores. Os sentidos daquilo que é
ensinado pela escola dependem desses sujeitos. Professores e professoras, formados em
instituições laicas de produção ou reprodução do saber acadêmico, adentram à escola e às
salas de aula produzindo um novo processo de transposição didática.
Tardiff (2010, p. 11-14), ao procurar conceituar o saber do professor, pensa-o em uma
interface entre o individual e o social, entre a atuação e o sistema simultaneamente. Seu
caráter social advém de algumas características: 1) o saber é social pois é compartilhado por
um grupo de agentes com formação comum (atualmente, no Brasil, os professores que atuam
com a disciplina de História são em sua maioria formados na área22), trabalham em um
mesmo espaço sob condições similares. Dessa forma, as práticas de um professor, por mais
original que sejam, só ganham sentido quando colocadas em contraste em relação à situação
coletiva de trabalho; 2) é social pois estrutura-se em um sistema de referencialidade que
legitima e orienta sua definição, a partir da noosfera. Ou seja, o professor nunca define
sozinho seu saber profissional; 3) é definido ao longo de uma carreira profissional em que o
professor aprende progressivamente a lidar com os variados atores das escolas. Por envolver
um grande número de atores e atrizes, é preferível falar em saberes, no plural, levando em
conta que a escola é um lugar de fronteira que mantém vínculos com outros espaços, como a
universidade, a produção acadêmica, o mundo editorial, o mundo da mídia, questões
socioeconômicas variadas, e cetera.
Só compreendemos o complexo processo que ocorre na escola e nas salas de aula na
medida em que ligamos de forma indissociável o componente do saber transposto, a atuação
de professores e professoras e a relação com alunos e alunas dos mais variados. Um
amálgama que Chervel (1990, p. 25) chama de sistema didático, e que podemos associar ao
logos, o ethos e o pathos, segundo as formulações da retórica que serão desenvolvidas no
próximo capítulo.
22
Segundo o portal CultivEduca, que organiza e divulga os dados do censo dos professores e professoras de todo
o Brasil (cultiveduca.ufrgs.br), no ano de 2016 havia um total de 110.199 professores e professoras de História
para os anos finais do Ensino Fundamental, sendo que destes 52.734 (47,8%) possuíam formação superior
específica em História, e 14.515 (13,1%) não possuíam formação superior. Já na etapa do Ensino Médio, de um
total de 58.599 professores ministrando História, 32.980 (56,2%) possuem formação na área, e apenas 3.954
(6,7%) não possuíam formação superior. Em ambas as etapas a maior parte dos professores e professoras não
formados na área provém da Pedagogia, Geografia, Bacharelado em História, Ciências Sociais, Filosofia e
Letras.
100
Dessa forma, pensar neste sistema significa pontuar as diferenças entre a História
acadêmica e aquela ensinada nas escolas: 1) lida-se com diferentes capacidades de abstração
intelectual, levando em conta as idades dos alunos (que em geral acessam a disciplina de
História no 6º ano, com 10 ou 11 anos); 2) existem diferenças estruturais nos objetivos da
formação: enquanto a História acadêmica forma historiadores, a escola preocupa-se em
instrumentalizar cidadãos capazes de ler e interagir de forma crítica com textos e com o
mundo (como apresentado no capítulo 1.2.1); 3) ao contrário do ensino superior, onde a
adesão às aulas é voluntária, os alunos da escola básica são obrigados à frequentá-la, muitas
vezes pouco motivados para isso; 4) o saber recortado é disposto conforme uma
programabilidade. Diferenças marcadas, ressalto, pois o lugar social de produção desta
verdade não é a academia, e sim a escola, com seu conjunto de valores e necessidades
específicos.
Como diz Forquin (1999, p. 29-30), os processos de como uma sociedade representa
seu passado e gere essa relação, especialmente a partir da seleção cultural do que merece ser
ensinado, constitui uma dinâmica altamente conflituosa a partir de fatores sociais, políticos e
ideológicos. Opera-se tanto pela escolha do que será ensinado quanto pelo que será esquecido,
lembrando que aquilo que é ensinado não passa de uma parte ínfima da experiência humana
acumulada e das experiências do presente. Dessa forma, a natureza da escola e tudo aquilo
que ela transmite é fruto desta seleção: é preciso que aquilo que é escolhido efetivamente
valha a pena (FORQUIN, 1992, p. 44) como essencial para a cultura.
Mas isso não se dá de forma monolítica: diferentes escolas podem fazer diferentes
tipos de seleções no interior da cultura, e também os professores podem ter diferentes
prioridades, aproximando-se ou se distanciado destes recortes. Forquin (1992, p. 31-32)
denomina este conjunto de seleções como currículo, ressaltando que o processo de escolha
dos professores (no recorte dos temas, nos materiais utilizados ou nos modos de apresentação)
cria o potencial de que cada sala de aula possua seu próprio currículo real. Seffner (2016, p.
50-51), inspirando-se em Tomás Tadeu Silva, ressalta a relação entre currículo e escola como
uma “zona de produtividade” em que não apenas atuam os mais variados atores sociais, mas
que carrega marcas destas atuações muitas vezes conflituosas. Dotada de dinâmica própria
(saberes, hábitos, valores, modos de pensar, estratégias de dominação e resistências, critérios
de seleção constitutivos da cultura escolar), a escola (ou as escolas) realiza com relativa
autonomia um trabalho de seleção, reorganização, produção e difusão dos saberes
(GUIMARÃES, 2012, p. 67). Por ser um organismo vivo, composto por gestores, professores,
funcionários, alunos e familiares dos alunos, expressa também um amplo espaço político
101
O estilo do professor dialoga diretamente com os significados que ele atribui à sua
prática, em um processo experiencial de buscar sentido à prática. Os professores, ao
formarem-se partem para a sala de aula com os saberes desenvolvidos na academia. Ao se
depararem com a sala de aula (e aqui faço uso também do meu saber de experiência)
percebem que aquilo que eles farão é outra coisa em relação ao que foi desenvolvido durante
sua formação acadêmica. A partir deste momento a ação do professor advém de uma
racionalidade cultivada pela experiência, fruto de um ambiente complexo e incerto que
demanda intervenções cotidianas.
Os saberes da experiência relacionam-se com três objetos: as relações dos professores
e professoras com os demais atores no campo da prática (alunos, colegas, gestores,
funcionários, responsáveis pelos alunos); as diversas obrigações e normas às quais seu
104
trabalho se submete; à instituição como meio organizado. Por sua vez, as interações com esses
objetos geram algumas consequências: 1) a constatação de que existe uma distância entre
esses saberes da experiência e os saberes adquiridos na formação, o que pode levar à rejeição
dessa formação, entendendo que o professor aprende apenas sendo professor. 2) Conforme ele
domine esses objetos-condições, o professor inicia um rápido processo de aprendizagem (que
iria até os 5 anos de prática) que pretende cobrir as defasagens entre formação e prática, e
opera na construção do estilo do professor, que se fixaria nos anos subsequentes. 3) O
regulador final do sucesso dos saberes do professor é a sala de aula:
Na medida em que o foco migra para o educando, o ato de aprender ganha mais
significado que o de saber. Não adianta um professor saber muito, se não for capaz de
estabelecer uma relação pedagógica com seus educandos. Procurarei desenvolver essa
preocupação com o aprendizado a partir de formulações da retórica. Isso porque, tal qual a
eficácia da retórica liga-se ao adequado equilíbrio entre o reconhecimento do caráter daquele
que profere o discurso (ethos), do reconhecimento das emoções, sentimentos ou crenças da
plateia (pathos) e da coerência do discurso proferido (logos), também a sala de aula lida com
condições similares.
considerados legítimos, para na sequencia criar as verdades como sistemas mais complexos
(como nas teorias científicas ou nas concepções filosóficas e religiosas). Tanto os fatos quanto
especialmente as verdades demandam processos de organização e clarificação dos
enunciados, de forma a torna-los compreensíveis àqueles com quem se deseja comunicar, ou
também defendê-la, caso um adversário recuse a qualidade dos fatos ou os sistemas de
verdade. O conhecimento é então resultado de um objeto posto à prova, e que conseguiu
resistir às críticas, opiniões e faltas de compreensão. Em suma, a verdade sempre depende da
sua operacionalidade frente aos mais variados auditórios; no caso da sala de aula, essa
operacionalidade depende do processo de transposição interna do professor; e esse processo
depende centralmente da sua experiência.
A experiência não é apenas um recurso a mais na sala de aula. Compreendo-a como
um fator essencial na legitimação do saber escolar. Jorge Larossa (2015) problematiza a
experiência, situando inicialmente o ranço tanto da filosofia clássica (que a associa a
binarismos como doxa versus episteme¸ ou o singular versus o universal) quanto da ciência
moderna (que converte a experiência em experimento, de forma controlada e
homogeneizada). Para ele, esses processos agiram para eliminar
preciso também evitar transformar a experiência em um conceito; melhor seria pensá-la como
algo que acontece, situando-a em proximidade com a palavra vida e, mais proximamente
ainda, da palavra existência; 5) cuidado para não tornar a experiência um fetiche, ou um
imperativo; ela não deve ser uma necessidade; 6) mesmo sem transformá-la em um conceito,
é preciso dar certa precisão à palavra experiência, para que não se perca sua força; essa
precisão passa mesmo por dizer o que ela não é, como nos pontos 1 a 5 acima dispostos.
Mas não nos basta apenas dizer o que ela não é. É preciso, minimamente, definir a
noção. Entendo então experiência como um acontecimento vivido por alguém e que mobiliza
certa intensidade, certo estado de inquietude. Algo que transcende o fato, o acontecimento, o
processo que nos atinge, nos toca, para além de um estado de normalidade. Como disse a
Professora Rosa Maria Bueno Fischer, em uma das aulas que tive a oportunidade de
participar, “uma experiência não se tem... se elabora, se vive, se sangra, se transmite, se
chora”. Não é algo fixo... é vivo, manuseado de forma ativa e criativa e inscrito no tempo,
guardando uma linha com o ócio, já que não se trata apenas de intensidade, mas passa
também por uma elaboração cognitiva, intelectual. Este processo diferencia a experiência da
simples vivência. Enquanto o vivido refere-se a uma vida, e por tal é necessariamente finito, a
experiência, em suas dimensões de memória e repetição, é potencialmente infinita. E a
experiência pode associar-se ao outro através da narração, guardando sempre um
componente do sensível e um componente de partilha.
Uma boa aula, como qualquer experiência, é um fluxo que retira momentaneamente o
indivíduo de seu estado “normal”. Pode ser uma experiência emocional e cognitiva ao mesmo
tempo. Emocional pois acessa (ou pode acessar) locais em seu cérebro que o mobilizam a
sentir compaixão, ira, alegria, nojo, tristeza, e cetera. Cognitivo, pois há aprendizagem, no
sentido ético de uma evolução pautada na verdade, palavra esta que nos acompanha
grandemente nesta tese, e que segue um jogo ambivalente de ser uma palavra forte e repleta e
ao mesmo tempo frágil e vazia. Um discurso emocional sem o cognitivo é frágil,
potencialmente mentiroso, perigoso; um discurso cognitivo sem o emocional é possível, mas
as marcas que ele deixará não serão as mesmas. Uma aula que gera uma experiência é uma
aula que transborda, que excede o comum e o cotidiano; ela não acontece o tempo todo, e nem
o pode ou o deve, sob o risco de tornar-se um fetiche vazio. Qual é então a implicação do
ensino de História com a vida, que por sua vez passa pela inteligência, mas também pela
emoção, pela intuição, pelas sensações? Selva Guimarães (2012, p. 66), ao refletir de forma
análoga a respeito do ensino de História, questiona-se: o ensino massificado, com explicações
109
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma
amplitude que não existe na informação. (BENJAMIN, 1994, p. 203)
Todas as coisas do mundo tem uma dimensão de presença, para além da linguagem e
da interpretação e do sentido. Essas presenças, vivas, juntamente com a ideia de
contemporâneo, oferecem-nos uma interessante reflexão: penso que a aula de História pode
situar-se nesses interregnos. Situar outros tempos como presenças que dialogam diretamente
com as presenças do presente (ou os múltiplos agoras que povoam o presente, como nos
ensina Benjamin) significa retirar nosso aluno da imersão do presente, tornando-o
potencialmente um contemporâneo de si próprio, de sua própria vida. Penso então a presença
diretamente como vida.
Pensar “essa concepção ressalta, entre os diversos elementos que compõem a história,
as ações dos sujeitos concretos, comuns, com seus dramas e dilemas” (CORRÊA, 2011, p.
12). Ao engendrar essa experiência entre professores e alunos, remetemos a uma
diferenciação pensada por Benjamin, quando nos relata uma distância entre o que faz o
historiador e o que faz o narrador:
tradicional de verdade, mas sim com a veracidade, indo ao encontro das problemáticas
desenvolvidas anteriormente nesta tese.
O que proponho então é uma arte, relacionando a narrativa com a criação subjetiva e a
experiência vivida passível de ser narrada (no caso, a experiência histórica). Cabe
compreender, para além das construções dos historiadores, como os professores de História
elaboram suas aulas. Aqui me é cara a noção de intriga, uma construção narrativa que
sintetiza determinados objetivos, causas e vivências de certa unidade temporal, apresentada
como total e completa. Seu desenvolvimento encaminha-se para explicar, fazer compreender
as razões, opções e ações que conduzem a determinados desfechos. Mas, ao seguirmos
Ricouer, este nos ensina que a inteligibilidade histórica não é apenas lógica, pois se refere ao
vivido. E retomando novamente os questionamentos suscitados por Benjamin, qual será o
equilíbrio entre explicação e incompletude? Entre a intencionalidade do professor e o
momento do aluno?
A dificuldade na abstração dos processos históricos por parte dos alunos é um temor
sempre presente dos professores de História. Julgamos que um aluno terá dificuldades de
compreender grandes processos históricos desencarnados como o Renascimento e a Reforma;
ouvirá falar sobre Lutero e Leonardo da Vinci, mas certamente terá dificuldades de
compreender como aqueles processos mudaram muitas formas de pensar das pessoas. Talvez,
nestas condições, narrar a vida de um moleiro italiano do século XIV, que a partir da invenção
da imprensa e do Renascimento teve acesso a livros e escritos, que por sua vez o fizeram
construir um pensamento “herético” que o levou à fogueira da Contrarreforma, seja mais vivo,
mais experiencial (GINZBURG, 1987). Assim procedemos uma negociação da distância,
entre o tempo passado e o momento do aluno. Ora, como nos alerta Paul Veyne, citando um
historiador não referenciado, “qualquer proposição histórica onde não se possam colocar as
palavras, as coisas ou as pessoas, mas somente abstrações como ‘mentalidade’ ou ‘burguesia’,
tem a possibilidade de ser uma patranha.” (1971, p. 132). Lidar com essa lógica de narrativa é
pensar a aprendizagem em íntima relação com os acontecimentos das vidas das pessoas. Uma
história aberta cujo fechamento está no social, em um sentido coletivo e em uma memória
coletiva. Cada história é o ensejo para uma nova história.
É também interessante compreender, dentro dessas narrativas “humanas”, quais
elementos geram momentos de puro encantamento ao poder da palavra. Na sala de aula, o
breve instante em que todos os alunos acompanham cada palavra proferida pelo professor,
ansiando silenciosamente pela próxima, que conduz esse aluno para um local de suspensão do
eu, da própria identidade do aprendente, um local e momento da construção de um novo.
113
Benjamin nos ensina que, na construção oral de um bom narrador, o ouvinte se perde pois
“ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si
mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (BENJAMIN, 1994, p. 205). A
sensação de cumplicidade com o que é narrado, segundo Benjamin (1994, p. 215), produz
uma sensação de felicidade no ouvinte. Essas experiências estéticas, produzidas pela
linguagem, criam esses momentos atônitos em que se produzem aprendizagens. Quem narra
não faz um relatório, não informa, mas mergulha o que diz na (sua) vida, para logo sair dele
mesmo e voltar-se para o outro.
Essa suspensão atrela-se a um processo ativo de imaginação criativa donde podemos
entender a narrativa como um lócus de expressividade que pode se valer do ensino da
diferença na história, dramatizando e oferecendo contornos dinâmicos às matérias a serem
ensinadas. Como nos diz Pereira (2012), “os estudantes podem debater-se com a diferença,
com uma série interminável de outros que se desenham na narratividade de um professor que
enseja imaginação, que sabe que o lugar da verdade é o conteúdo e a forma do seu discurso”.
No vislumbre de outros possíveis e diversos no passado, a História acaba por tornar-se um
lugar privilegiado para o exercício da liberdade. O processo de reflexão do “e se”, daquilo que
não foi e poderia (ou não) ter sido, em geral desprezado pelos historiadores e professores de
História, pode se revelar um importante momento de reflexão, criando zonas de imaginação,
espécie de não lugares, onde reside o inusitado, a pergunta ainda sem resposta, o fato ainda
sem fechamento. Ou, como nos ensinam os escritos de Marcos Villela Pereira:
Os saberes docentes escrevem-se de variadas formas. Estão nos livros didáticos (e nas
apropriações deles feitas), nos textos e materiais produzidos pelo professor e, especialmente,
em sua fala. Esses “textos” constituídos a partir dos saberes dos docentes transitam a partir de
um conjunto de características: 1) são referenciados pela historiografia acadêmica, em
práticas de validação (como explorado no capítulo anterior); 2) são planejados; 3) possuem
programabilidade; 4) são limitados no tempo; 5) suas aprendizagens são socialmente
115
Como obter a persuasão ou a adesão dos alunos da escola básica através da narrativa
do professor? Tal problema, de início, apresenta-se com desafios: o que significa persuasão ou
adesão? Como identificar quais elementos retóricos foram responsáveis pela persuasão ou
pela adesão? Que elementos podem compor uma performance do professor, no sentido de
mobilizar os elementos retóricos da narrativa histórica?
Na medida em que lidamos com narrativas e linguagens, devemos perceber, como
aponta Lineide Mosca (2001, p. 27), que ambas não são apenas instrumentos de informação, e
sim, basicamente, de argumentação, que por sua vez se dá na comunicação e pela
comunicação. Desta forma, a argumentação é sempre situada, levando em conta um diálogo e
um contato entre sujeitos (em muitos momentos situados em lugares sociais específicos).
Dessa forma, como ferramenta teórico-metodológica para essa leitura das narrativas dos
professores de História, em íntimo diálogo com seus alunos em suas salas de aula, proponho a
utilização da retórica, tendo como referências maiores as obras de Chaïm Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca (2005), Olivier Reboul (1998), Michel Meyer (1998, 2007, 2013) além de
visitar referenciais clássicos greco-romanos, com Aristóteles, Cícero e Quintiliano.
Reboul (1998) argumenta que o interesse pela retórica tem retornado ao longo do
século XX, em uma forte relação com o amadurecimento das democracias liberais. O poder
em uma democracia reside na palavra, e na capacidade de utilizar esta palavra para o
convencimento dos concidadãos (sejam nos períodos eleitorais, sejam nas atuações políticas
nas assembleias). Michel Meyer (1998, p. 11) situa o dinamismo da retórica em três
momentos da história (na antiguidade, no renascimento italiano e a partir da segunda metade
119
do século XX), sempre ligado a espaços abertos à discussão e, de maneira geral, à liberdade e
à escolha do discurso frente à força. Por outro lado, períodos como das monarquias feudais ou
dos impérios (cristãos ou não) tornaram-se lugares pouco propícios para a livre discussão,
sendo que nesses espaços e tempos a retórica teve a ver cada vez menos com a argumentação,
e mais com a linguagem do cortesão, das belas fórmulas ou da ornamentação (MEYER, 1998,
p. 20). Este processo colaborou com a fragmentação da retórica, bem como seu descrédito em
muitos espaços sociais e culturais.
Na sala de aula, mesmo com todos os expedientes, tecnologias e métodos existentes
(desde os livros didáticos e paradidáticos, até recursos eletrônicos, aplicativos, jogos, uso de
filmes, músicas, dinâmicas e gamificação, e cetera), o lugar da fala do professor ainda é
muito importante, para não dizer absolutamente central. Extrapolando este argumento, é
possível afirmar com tranquilidade que a centralidade da educação segue ancorada na relação
professor-aluno. Um professor que sente seus alunos, pesquisa, elabora e propõe conteúdos
que considera marcadores de cognição, classe, raça, gênero, e cetera. Entendo essa relação
humana como o traço fundamental da educação, tomando a ação do professor via palavra
como central.
A fim de analisar esse caráter humano da sala de aula, sigo uma das definições de
Aristóteles, que entende “por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso
com o fim de persuadir” (Retórica, I, 2 – 1355b). Reboul, em uma definição muito próxima,
nos diz que a “retórica é a arte de persuadir pelo discurso” (1998: XIV), apresentando logo a
seguir sua acepção de discurso: “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma
frase ou uma sequência de frases, que tenham começo e fim e apresente certa unidade de
sentido.” (1998: XIV)23. Prosseguindo, cabe definir “persuasão” como o processo de levar
alguém a crer em alguma coisa. Reboul (1998: XV) aponta outro detalhe importante: levar a
crer ou levar a acreditar é diverso de levar a fazer, e o objetivo primordial da retórica é levar a
crer. Caso leve-se alguém a fazer algo sem que ele acredite naquilo, não é retórica. E o
movimento de levar alguém a crer em algo, remetendo novamente a Aristóteles, pode ser
dividido em três noções clássicas:
23
Apesar dessa definição, não descarto a noção mais alargada de discurso ligada à escola da Análise do discurso,
que leva em conta não apenas os elementos textuais na construção dos sentidos, mas também outros como a
ideologia, os gestos, as emoções, e cetera. Esses elementos, digamos pré-textuais, serão problematizados no
ethos do orador e no pathos do auditório.
120
Servirão ou não? E por que seria melhor lê-los? No presente subcapítulo abordarei
autores da Antiguidade Clássica, especialmente Aristóteles, Cícero e Quintiliano, situando
suas retóricas em diálogo com os objetivos desta tese. Também será problematizada a retórica
sofística e as relações entre Aristóteles e a História.
As definições básicas da retórica, resgatadas na contemporaneidade por Perelman,
Reboul, Meyer e outros tantos nascem no contexto da antiguidade clássica, respondendo a
urgências específicas do mundo das polis gregas e, posteriormente, da res publica romana.
Espaços e tempos onde a palavra era meio de poder (deliberações públicas) e meio de defesa
(tribunais). Esse princípio, como aponta Reboul (1998, p. 1), faz nascer uma “técnica
retórica”, um conjunto de procedimentos que independe dos seus conteúdos e permite a
qualquer um defender qualquer tese. Posteriormente é que se inventou a teoria da retórica, um
conjunto de reflexões sobre os procedimentos retóricos. Esse sistema, criado e pensado nos
séculos V e IV a.C. pouco modificou-se até o século XIX da nossa era.
Quintiliano, professor de retórica em Roma durante o século I d.C., vivendo em um
contexto de variadas teorizações sobre a oratória, produz a obra Institutio Oratoria, manual
que versa sobre a formação do orador, desde o nascimento até a maturidade. Em certa
passagem do livro II (15.1-38), disserta sobre estas teorizações, apontando quatro convenções
retóricas como as mais representativas existentes até então: a definição atribuída a Córax e
Tísias, Górgias e Platão, da retórica como geradora de persuasão; a definição de Aristóteles,
que compreende a retórica com a busca pelos meios de persuasão relativos a cada assunto;
uma das definições de Hermágoras, que associa a retórica ao falar bem relativo aos assuntos
públicos; e a própria definição de Quintiliano, definindo-a como a “ciência de bem falar”,
com claro componente ético. A partir do que ensina Manuel Alexandre Júnior (2005, p. 23),
estas quatro perspectivas possuem uma essência comum, já que todos concordam que a
retórica dedica-se a criação e a elaboração de discursos com fins persuasivos.
123
Reboul (1998, p. 1) aponta que, por mais que diversas sociedades antigas fizessem uso
da linguagem como ferramenta de persuasão, foram os gregos antigos que inventaram uma
“técnica retórica”, como um conjunto de procedimentos que, independente da temática,
possibilitasse defender qualquer causa ou tese, e uma teoria da retórica, um conjunto de
reflexões com vistas a compreender os meios de persuasão. É importante nesse momento
situar novamente os objetivos desta tese: não se trata de buscar uma técnica retórica para os
professores de História (mesmo que possam, obviamente, inspirar-se nas análises realizadas),
mas sim compreender como, a partir de uma prática da experiência, essas técnicas são
produzidas, operadas e, no limite, obtém sucesso persuasivo.
Situa-se o início da retórica em um contexto social da Sicília antiga. Por volta de 465
a.C. dois tiranos, Gélon e Hierão, atuaram em Siracusa deportando, transferindo e
expropriando populações locais, em favor dos mercenários a seu serviço. Quando da expulsão
destes tiranos por uma sublevação democrática, seguiram-se inúmeros processos populares
em que a população expropriada viu-se na necessidade de defender-se a partir da palavra. Tal
necessidade inspirou a criação de uma arte que mais tarde seria ensinada em escolas,
habilitando os cidadãos a defenderem as suas causas e lutarem por seus direitos. Nesse
contexto Córax e seu discípulo Tísias publicaram uma “arte oratória” (tekhne rhetorike),
conjunto de preceitos práticos voltados para pessoas que recorressem à justiça. É deles a
primeira definição de retórica, como “geradora de persuasão”. Até esse momento a retórica
estava restrita ao âmbito jurídico.
A mudança dá-se com outro siciliano, Górgias Leontinos, que instala-se em Atenas em
427 a.C. como professor de dialética e retórica. Tal qual os primeiros, reconhecia a força
persuasiva da emoção e a magia da palavra, desde que escolhida e manuseada com esmero.
Porém avançava valorizando não apenas a análise das partes do discurso (dispositio), mas
também o estilo e a composição que se relacionam com a elocução do mesmo (elocutio).
Como aponta Reboul (1998, p. 6), a ideia de Górgias de que a prosa poderia ser “tão bela
quanto a poesia” acabou impondo-se a todos os escritores gregos (como Platão e Tucídides,
por exemplo), colocando a retórica a serviço do belo. Mas, estará essa relação com o belo
também relacionada com a verdade?
124
24
A questão em aberto se dá na possibilidade de acesso a esse mundo das ideias. Platão e outros dogmáticos
defenderão que esse acesso é possível mediante estudo sistemático e disciplinado da lógica, em especial a partir
do método dialético. Outros, como os céticos, argumentarão que essa verdade existe, mas não pode ser
alcançada.
125
Ora, segundo Reboul (1998, p. 9) devemos aos sofistas a ideia de que a verdade é um
acordo entre subjetividades, tanto ao final da discussão quanto (especialmente) ao acordo
inicial, com os interlocutores dispostos ao diálogo. Sem esses acordos o diálogo nem sequer
existiria. Lembro-me de uma conversa com um aluno, há alguns anos: este aluno partilhava de
várias ideias conservadoras a respeito de certos acontecimentos históricos, especialmente
sobre as ditaduras nazi-fascistas e do regime stalinista da URSS na comparação entre os
números de mortos por cada regime. Em uma das nossas conversas, já quando eu não era mais
seu professor, o mesmo enunciou que não havia problema do nazismo ter matado tanta gente,
já que “esses comunistas tinham mais que morrer mesmo”. Lembro também que a minha
reação foi de acabar com a conversa, dizendo que partíamos de premissas completamente
diferentes, e que eu não aceitaria dialogar tendo por base a possibilidade de eliminação física
de grupos políticos, fossem quais fossem. E assim terminamos a conversa. O acordo inicial,
que sustenta a própria possibilidade da conversa, não existia mais.
É sabido que a tradição retórica, em especial a partir de Platão e Aristóteles, dedicou-
se arduamente a combater os sofistas. Por que exatamente? A primeira grande acusação, a
partir de Platão, é de que os sofistas se movem no terreno das aparências e dos fenômenos,
desvirtuando o critério da verdade, fixando-se na doxa em detrimento da episteme,
argumentando com falácias visando o sucesso imediato. O fim de uma argumentação sofística
não seria a verdade (como o era na filosofia), mas unicamente o poder exercido pelas
palavras. Este seria o seu propósito. Essa acusação era acompanhada de outra, que pretendia
atacar diretamente a ação de educadores exercida pelos sofistas: na medida em que
manipulavam e ensinavam simulacros, ou técnicas do engano, contribuíam para a
desagregação ético-política da comunidade, corroendo as verdades que fundamentavam a
justiça e o culto dos deuses. Aristóteles reforça essa crítica, atacando o que ele considera um
“saber aparente” dos sofistas, desinteressado de qualquer verdade referente, que poderiam
proferir discursos opostos sobre as mesmas coisas e afirmando que essas coisas poderiam ser
e não ser algo simultaneamente, de forma a iludir os interlocutores (PINTO, 2005, p. 16-17).
Se a concepção filosófica destes oradores era perigosa, o potencial desse perigo era
amplificado na medida em que eles atuavam como professores, mediante volumosos
pagamentos25. Protágoras, por exemplo, era conhecido por ser riquíssimo, vivendo
25
Esse caráter aparece em algumas definições da sofística que chegaram até nós: “o [sofista] é um caçador
remunerado de jovens ricos (...); em segundo lugar, um comerciante por grosso dos saberes relativos à alma (...);
em terceiro lugar, não se mostra também um comerciante a retalho dos mesmos saberes? (...) Em quarto lugar,
aparece-nos como um vendedor dos saberes por ele próprio produzidos.” (PLATÃO, Sofista, 231). Xenofonte
126
basicamente dos seus ensinamentos. O cerne desse conhecimento era uma técnica, a tekhne
rhetorike, que visava a excelência (arete), especialmente na arte política (tekhne politike).
Seja em Górgias, seja em Protágoras,
O perigo apontado pela maior parte dos comentadores dos sofistas é de que esse é um
mundo sem verdade, sem realidade objetiva capaz de criar consenso entre os espíritos.
Privado completamente do logos, o discurso humano não teria nenhum outro referente que o
próprio sucesso persuasivo, independente da disposição das palavras na relação com as coisas.
Uma retórica que não estava a serviço da verdade (ou mesmo do verossímil), mas sim da
eficácia em vencer a qualquer custo (seja persuadindo o interlocutor, seja vencendo uma
discussão a partir da erística). Como afirma Reboul (1998, p. 10), as palavras para esses
sofistas não estavam devotadas ao saber, mas sim ao poder26.
No contraponto entre os sofistas e a perspectiva de Platão, ficamos no tudo ou nada.
Enquanto para os primeiros ela pode convencer a todos sobre qualquer coisa, fazendo uso dos
recursos da argumentação e da controvérsia vazia, Platão relega a ela tão somente o nada, a
partir do Diálogo com Górgias:
também se posiciona associando o caráter mercantil do saber sofístico com o engano: “os que vendem a
sabedoria por dinheiro aos que o desejam são denominados ‘sofistas’, que é o mesmo que dizer indivíduos que se
prostituem” (Memoráveis, 11, 11); “Os sofistas falam para enganar e escrevem para seu próprio benefício e não
são úteis de forma alguma a ninguém. (Cinegético, 13,8). Aristóteles, por fim, relaciona esse negócio com a
aparência: “A sofística é uma sabedoria aparente, mas não real; e o sofista é um negociante de sabedoria
aparente, mas não real” (Refutações Sofísticas, 1165 a 21). (In: SOFISTAS, 2005, p. 52 e 53).
26
Todavia é bom lembrar que conhecemos os sofistas (como se observa na nota acima) praticamente pela pena
de Platão, Aristóteles e da tradição formada a partir deles, e de seus escritos restam somente fragmentos. A
modernidade produzirá certa reabilitação da sofística, em especial com Hegel (que enquadrará os sofistas como
filósofos, em um momento necessário da história da filosofia) e Grote (tomando-os como profissionais do
ensino, inocentes em relação a uma decadência moral de seus conterrâneos) (PINTO, 2005, p. 20). Serão
tomados como um movimento de pensamento, e não apenas um movimento enganoso. Não cabe à minha
problematização de pesquisa avançar nessa seara, mas fica o alerta de que, nesse caso em especial, não podemos
ser tão categóricos nas acusações.
127
verdade é apenas fraco e infeliz, mais digno de lástima que suas vítimas. [...]
E a retórica, com todo o seu prestígio, sofre da mesma impotência; não passa
de técnica cega e rotineira que, longe de proporcionar aos homens aquilo de
que eles de fato precisam para serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade
e agrada-os sem ajuda-los, prejudicando-os mesmos. A onipotência não
passa de impotência. (In: REBOUL, 1998, p. 17)
Sem a vinculação com a verdade, a linguagem dos sofistas possui uma força apenas
aparente e circunstancial. Não que esta linguagem seja completamente refutada por Platão.
Atribuímos a ele (como herança de seu mestre, Sócrates) a dialética, uma procura
intersubjetiva dialógica da verdade a partir da controvérsia, porém com fundamento racional
que opera como referência de verdade.
Essa vinculação com o racional com vistas à verdade é a nossa distância em relação a
uma sofística da argumentação. Nossa verdade histórico-didática, mesmo passando por
processos complexos de narrativização visando a comunicação com os alunos, não perde (ou
ao menos não deveria perder) o referente da historiografia acadêmica. Dessa forma nos
aproximamos muito mais da Retórica de Aristóteles. Esse, por sua vez, dedicou boa parte de
seu esforço em reabilitar a retórica em resposta aos questionamentos filosóficos lançados
pelos sofistas.
Aristóteles nasceu em Estagira, norte da Grécia, em 384 a.C.. Foi aluno de Platão na
Academia e, após a sua morte, não podendo sucedê-lo, acabou por fundar sua própria escola,
o Liceu. Foi também tutor de Alexandre da Macedônia. Sua vasta obra filosófica possui
grande impacto nas mais variadas áreas do conhecimento, em parte por seu grande esforço de
sistematização dos conhecimentos em disciplinas e em conjuntos de conceitos, desde a
biologia até a poesia. Em um desses esforços desenvolveu um texto fundamental: a Retórica.
Mas o que diferencia Aristóteles, e o seu sistema retórico, dos sofistas aos quais ele se
opunha? Ou também, o que existe na retórica de Aristóteles que retira dela a suspeição
lançada por Platão? Ou, mais ainda, qual a conciliação possível da retórica com a dialética?
O primeiro deslocamento é a própria existência da verdade e da justiça, dotadas de
“mais força natural que os seus contrários” (Retórica, I, 1355a). Produzir a vitória da verdade
e do justo em uma contenda nada mais seria que a obrigação do orador, e o contrário
128
mereceria censura. Tal qual na discussão dialética, o bom orador deve saber os prós e os
contras de cada caso, não para persuadir fazendo uso de argumentos desonestos, mas para
poder refutá-los, se for o caso. Desta maneira, antes de celebrar seu poder, Aristóteles celebra
a utilidade e o caráter de “bem” (agathon) da retórica (mesmo que relativo, já que, como
qualquer bem, ela pode ser pervertida27).
A positividade da retórica ancora-se também em uma outra concepção de verdade.
Entre o tudo dos sofistas e o nada de Platão, ou entre o mundo Supralunar da Verdade e o
Sublunar da mentira, Aristóteles distingue níveis de verdade, diferentes da demonstração pura
e simples: no mundo humano, permeados pela doxa, a aproximação da verdade reside nos
raciocínios dialéticos, ou nos verossímeis:
Reboul (1998, p. 24-27) lança mão de quatro argumentos que reforçam esse valor
positivo atribuído por Aristóteles à retórica: 1) o argumento verdadeiro é naturalmente mais
forte; 2) mesmo que o argumento verdadeiro seja mais forte, é sabido pela experiência que
uma causa injusta ou mentirosa pode ser vencedora, caso a arte “torne mais forte o argumento
mais fraco”. Dessa forma é preciso que a arte retórica suplemente a força da natureza; 3)
dessa forma, é necessário ser capaz de defender igualmente o contra e o pró, assim
compreendendo o mecanismo de argumentação do adversário para refutá-lo; 4) por fim, liga-
se a retórica à própria condição humana, já que, sendo a palavra a característica maior do
homem, é mais desonroso ser vencido por ela do que pela força física.
Estes argumentos ampliam a retórica para todos os ramos da vida humana. Como dito
acima, Aristóteles problematiza que mesmo a ciência mais exata não possui, para muitos
homens e mulheres, uma clareza de apreensão, sendo que as noções do útil e do nocivo, do
justo e do injusto, do nobre e do desprezível, só operam a partir de um processo de persuasão.
Isso torna a retórica não apenas importante, mas indispensável, já que, para ele, o discurso
enquanto ciência pertence ao ensino, e seria impossível operá-lo em outros espaços, como as
27
Com exceção da virtude moral, bem absoluto em que não há possibilidade de mau uso, todos os demais bens
(força, saúde, riqueza, poder, família, e cetera) podem ser utilizados com fins injustos. (REBOUL, 1998, p. 23)
129
(...) no que toca à persuasão pela demonstração real ou aparente, assim como
na dialética se dão a indução, o silogismo e o silogismo aparente, também na
retórica acontece o mesmo. Pois o exemplo é uma indução, o entimema é um
silogismo e entimema aparente é um silogismo aparentemente. Chamo
entimema ao silogismo retórico e exemplo à indução retórica. E, para
demonstrar, todos produzem provas por persuasão, quer recorrendo a
exemplos quer a entimemas, pois fora destes nada mais há. De sorte que, se é
realmente necessário que toda a demonstração se faça ou pelo silogismo ou
pela indução, então importa que esses dois métodos sejam idênticos nas duas
artes. (ARISTÓTELES, Retórica, I, 1356b)
Essas provas são as ligadas ao raciocínio, e operam da mesma forma (seja em termos
de estrutura, seja em termos de conteúdo) tanto na dialética quanto na retórica, a partir da
indução e do entimema. Ambas apoiam-se nos prováveis (nas endoxa), nas opiniões mais
relevantes sobre determinado assunto e às quais se deve dar crédito (seja para aceitar, seja
para refutar).
Na indução o orador parte de um ou mais exemplos para aferir uma regra maior.
Citando dois exemplos de casos de corrupção durante o Brasil colonial, o orador conclui que
estas práticas eram muito presentes naquele espaço e tempo. Essa indução é mais próxima da
sensação, já que produz o caminho dos semelhantes e parciais para a totalidade da tese a que
se deseja persuadir, onde aquilo que é semelhante é mais conhecido e sensorial, enquanto os
universais são inteligíveis em si, e mais distantes do mundo sensível. Esses exemplos podem
ser provenientes tanto de fatos do passado, quanto criados pelo orador em parábolas ou
fábulas.
28
“Chamo provas inartísticas a todas que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como
testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que
se podem preparar pelo método e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar
as segundas.” (ARISTÓTELES, Retórica, I, 1356a).
131
29
“O entimema [é] formado de poucas premissas e em geral menos do que o silogismo primário. Porque se
alguma dessas premissas for bem conhecida, nem sequer é necessário enunciá-la; pois o próprio ouvinte a supre.
Como, por exemplo, para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como prêmio da sua vitória, basta dizer: pois
foi vencedor em Olímpia” (ARISTÓTELES, Retórica, I, 1357a)
132
visando à persuasão. Mas não significa que essa ação dispense os instrumentos afetivos da
retórica, ou as provas ligadas ao ethos e ao pathos.
O ethos trata-se de um termo moral, que define o caráter que o orador deve ter ou deve
parecer ter. Aristóteles desenvolveu três componentes fundamentais para que o orador
persuadisse seu auditório, mesmo sem a necessidade de demonstrações: a prudência
(phronesis), virtude intelectual caracterizada pela qualidade do bom senso, da cautela e da
ponderação; a virtude (arete), qualidade moral da franqueza e da sinceridade; e a
benevolência (eunoia), como comportamento moderado e respeitoso perante o auditório
(ARISTÓTELES, Retórica, II, 1, 1378a):
30
Mesmo que apenas duas, a narração e a prova, eram por ele consideradas inteiramente obrigatórias
(ARISTÓTELES, Retórica, III, 13, 1414a).
133
Oratore, I. 15, 64). Essa necessidade de ação, que remete diretamente a uma ideia de nobreza,
é explicada por Frederich Nietzsche em seu célebre “Curso de Retórica” (1999, p. 30), na
medida em que situa a diferença entre a eloquência grega e romana: enquanto os grandes
oradores gregos via de regra vendiam sua arte, atuavam para outros, ou falavam em nome dos
partidos ou facções, os oradores romanos eram, habitualmente, eles mesmos poderosos
dirigentes partidários, ou patroni. Dessa forma, a “consciência da dignidade individual é
romana, e não grega” (NIETZSCHE, 1999, p. 30)
A perspectiva de Crasso é contraposta por Antônio, mesmo que as duas não sejam
antagônicas. Ele defende que a oratória possui conhecimentos distintos às demais artes.
Mesmo que um governante possa ser simultaneamente um bom orador, isso não significa uma
automaticidade entre ambas; segundo ele, não bastaria conhecer os assuntos (leis, governança,
filosofia, e cetera) se não houvesse o domínio dos procedimentos oratórios, já que muitos que
dominam esses assuntos nem sempre os desenvolvem com eloquência. Dessa forma, um
indivíduo não é um orador a menos que possua esta arte, autônoma, e com ela produza
discursos eloquentes sobre os mais variados assuntos. Não prescinde desses assuntos, mas
aprende-se à parte deles, com técnicas específicas do bem falar. Na própria educação, esse
orador deve antes aprender essas técnicas, para apenas depois buscar os demais assuntos,
conforme cada situação o requerer.
Em suma, Antônio toma a ars oratoria como uma técnica que pode ser adquirida à
parte, independente de outros ensinamentos, enquanto Crasso defende o doctus orator, cujos
bons discursos só serão possíveis na medida em que o orador domine assuntos variados. No
andamento da sua obra percebe-se que as duas posições não são inconciliáveis. Cícero afirma
que o orador necessita ter uma grande quantidade de atributos e conhecimentos, pois é de seus
estudos que surge sua capacidade de falar com fluência, agrado e abundância. Não de forma
artificial, mas de forma natural (De Oratore I, 5, 17). Isso porque Cícero vê a retórica tanto
como uma arte (conjunto de técnicas sistematizadas que podem ser ensinadas a qualquer um)
quanto como uma formação longa que não envolve apenas técnicas oratórias, mas o estudo do
direito, da filosofia, da história, das ciências, e cetera. Apenas receitas prontas não cabem ao
verdadeiro orador, que se torna tal substancialmente pela experiência.
Ao focar em uma construção do orador ao longo de um processo experiencial, Cícero
desenvolve grandemente a noção do ethos do orador, ou seja, das estratégias persuasivas que
dependem da figura do orador. Os seus gestos, a sua fisionomia, a posição política,
ideológica, e cetera: “(...) tem muita força, então, para a vitória, que se aprovem o caráter, os
costumes, os feitos e a vida dos que defendem as causas”. (CÍCERO, De Oratore, I, 43, 182).
136
Essa noção do ethos como um componente decisivo opera novamente com o caráter nobre
(patronus) desse orador, cultivado pela prática cotidiana e pela vasta formação intelectual. É
possível pensar que o ethos condensa o debate conduzido por Cícero entre Crasso e Antônio:
não prescindindo de possuir uma técnica, cuja ausência não passaria de inaptidão e
incapacidade, o orador também é um homem cultivado pela prática cotidiana, e por essa
prática é reconhecido e louvado, de forma que esse próprio reconhecimento é parte importante
do processo persuasivo: “(...) [a] dignidade do homem, por seus feitos, por sua reputação (...),
pelas nossas ações louváveis e tudo que nossa vida expira, todas essas coisas fáceis de exaltar
quando existem, difíceis de fingir quando não existem” (CÍCERO, De Oratore, I, 43, 182).
Outro orador romano de importância será Quintiliano. Em grande medida situa-se em
uma linha de trabalho aristotélica, procurando em sua grande obra Institutio Oratoria
sistematizar a formação do orador, desde a primeira idade até a adultez. Nessa obra, a
natureza da retórica é associada sobremaneira a uma arte útil, analogamente aos aquedutos
romanos ou à disciplina dos legionários. Ao invés de criar um desvio a uma pretensa verdade,
é justamente a oratória que permite atingir a expressão mais justa na comunicação com
outrem. Nietzsche (1999, p. 43) nos lembra da disposição agonística dos antigos, onde toda
conduta pública é uma disputa: “não apenas a força convém aos combatentes, mas também as
armas reluzentes. É preciso portar armas não apenas próprias, não apenas para vencer, mas
para vencer ‘elegant’”. Dessa forma, tal qual Cícero, o não domínio das técnicas oratórias é
visto por Quintiliano como uma fraqueza digna de um homem sem cultura (REBOUL, 1998,
p. 73).
Como aponta Meyer (2007, p. 46), para os autores romanos, se uma questão se coloca,
é porque existe uma causa a se defender. Surge um problema cujas respostas são vacilantes, e
a discussão posterior procura (inventio) por novas respostas a esse problema levantando. Em
se tratando de uma obra praticamente pedagógica (onde é possível identificar muitos preceitos
bastante atuais, como a proposição de questões e jogos), os exercícios formativos desse orador
sempre levam em questão essa utilidade. Mesmo que essa noção de causa ou questão aponte
para a origem jurídica das reflexões, Quintiliano alarga a aplicação da retórica para além dos
assuntos públicos (deliberativo, judiciário e epidídico), pensando que seus procedimentos
podem abarcar qualquer objeto da realidade. Nessas narrações, distingue três tipos:
Como aponta Reboul (1998, p. 74), a reconciliação produzida por Quintiliano entre a
retórica e a moral é devida à cultura. Sendo que a linguagem e a razão são características do
homem, a retórica que as cultiva é uma virtude por excelência: “falar bem é ser homem de
bem; inversamente só o homem de bem, honesto e culto, fala bem.” (1998, p. 74). Uma linha
estende-se ligando cinco elementos importantes dentro do sistema retórico: a persuasão, a
eloquência, a verdade, a ética e o ethos. Só será verdadeiramente persuasivo aquele discurso
cuja eloquência assuma a verdade (ou ao menos a aparência de verdade), sendo que para
produzir essa verdade é preciso que o público acredite no ethos do orador, cuja ética deve
transparecer naturalmente na relação entre a arte e a verdade.
Na boca daquele que fala por si ou por outra causa, o discurso deve parecer
completamente próprio e natural: não deve ser lembrada a arte da permuta,
pois senão o ouvinte torna-se desconfiado e receia ser enganado. Há assim,
na retórica, também uma ‘imitação da natureza’, enquanto principal meio de
convencer: apenas quando o palestrante e sua linguagem são adequados um
31
“(...) pretendemos formar um orador perfeito, que não pode ser senão um homem bom, e, por isso, exigimos
nele não apenas uma extraordinária faculdade de falar, mas também todas as virtudes do espírito.”
(QUINTILIANO, Institutio Oratoria, I, proêmio, 9)
138
interessando-se pela persuasão, pela dialética, pela tópica e pela construção dos argumentos.
Sua obra já clássica, escrita em parceria com Lucie Olbrechts-Tyteca em 1958, evidencia essa
ligação logo ao título: Tratado da Argumentação: a Nova Retórica (2005).
As ligações não ficam apenas no título, e são tantas32 que é possível perguntar-se qual
a novidade de Perelman e Olbrechts-Tyteca? Penso que essa novidade está tanto no próprio
reatamento dessas ligações, quanto especialmente no contexto dessa emergência, já que ao
reatar todo esse conjunto de relações, ocorre simultaneamente um rompimento com outra
tradição, a da modernidade: “uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio saídos
de Descartes, que marcam com o seu selo a filosofia ocidental.” (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 1). Essa concepção de razão tornou a evidência a marca da
razão e da verdade, e tudo aquilo ligado ao verossímil foi aproximado do falso e do engano.
Reboul argumenta que fora justamente a hegemonia desta racionalidade cartesiana que retirou
a retórica de cena ao longo de boa parte da modernidade:
(...) no século XVII ocorre uma fratura grave com Descartes, que vai destruir
um dos pilares da retórica, a dialética, em outras palavras a própria
possibilidade de argumentação contraditória e probabilística (...) ele repudia
a dialética, por nunca oferecer mais do que opiniões verossímeis e sujeitas à
discussão, ao passo que a verdade só pode ser evidente, portanto a única
capaz de criar acordo em todos os espíritos. Com a dúvida metódica,
Descartes tomará a atitude de considerar não como verdadeiro, mas como
falso, tudo o que só é verossímil, e a sua filosofia se apresentará como um
encadeamento de evidências, análogo a uma demonstração matemática.
Enfim, contra o debate de várias pessoas, que é a dialética, ele afirma que só
se pode encontrar a verdade sozinho, por um retorno a si mesmo. A retórica
deixa portanto de ser arte e perde seu instrumento dialético. Basta encontrar
a verdade por sua razão, ‘E as palavras para expressá-las chegam facilmente’
(Boileau). (REBOUL, 1998, p. 79-80)
32
Lineide Mosca elabora uma lista de temas que, mesmo reformulados, são comuns ao pensamento dos antigos e
da Nova Retórica: “A finalidade prática. O exercício da argumentação no cotidiano. A concepção de discurso
convincente. Argumentação/Persuasão. O mundo da opinião, a doxa. O conjunto das opiniões partilhadas. A
presença do não-racional. O sentir, as categorias pulsionais as paixões. A adequação ao público e suas
características. O auditório contextualizado. A argumentação situada. Teorias do sujeito e procedimentos
enunciativos. O bem público, o cidadão. O quadro social da argumentação. A existência de alguém que julga.
Relações intersubjetivas. Lógica dos valores. O jogo de representações. Construção mútua dos sujeitos. Papéis
sociais. Função persuasiva da figura. Papel relevante da metáfora.” (2001, p. 41)
140
Perelman vai fazer uso da retórica aristotélica como caminho filosófico nesse mundo
de incertezas, e os próprios termos dessa filosofia serão outros: o verossímil, o plausível, o
provável. A principal diferença da verossimilhança em relação à verdade é que o atestado de
vero não se dá por necessidade, mas sim por uma instância interlocutória que é um auditório.
O necessário é que nessa interlocução se obtenha uma “adesão” às teses defendidas, e é para
isso que as provas do discurso são mobilizadas (CUNHA, 2010b, p. 4). Como dito
anteriormente, Perelman falha em seu primeiro intento de criar uma lógica para os juízos de
valor:
Esta ligação com a dialética33, novamente nos moldes aristotélicos (sendo talvez o
mais importante resgate produzido pela Nova Retórica), garantirá a pertinência filosófica da
argumentação proposta por Perelman. Em Aristóteles, como desenvolvido no subcapítulo
1.3.1.3, a retórica é considerada o antistrofos da dialética (Retórica, I, 1354a), sendo esse
nebuloso termo compreendido como “análogo”, “parte” ou “semelhante”. De qualquer forma,
ambas aparecem interligadas. Para ele, a dialética trata-se de um jogo de raciocínios que
partem dos eulogon, ou das “opiniões geralmente aceitas” (por todos, pela maioria, ou pelo
menos pelos mais ilustres), o que normalmente se confunde com o verossímil, não de uma
forma matematicamente calculável, mas próximo de termos como “razoável” ou “provável”.
A dialética aristotélica tomava essas opiniões como teses às quais se adere com intensidades
variáveis, e sobre as quais qualquer interlocutor deveria agir caso desejasse obter sucesso na
sua argumentação. É inegável que a retórica congrega a dialética, mas vai além dela, já que se
pauta em ações concretas, e não apenas no jogo especulativo da argumentação.
Buscar a adesão dos espíritos é aceitar que a realidade é contraditória (mesmo que
julguemos que não deva ser), e é sobre esta realidade que nos debruçamos ao filosofar.
Aquele a quem se fala opera um juízo, e é nessa interação, pautada em um diálogo que
raciocina sobre aquilo que é normalmente aceito, que os acordos são construídos (ou não ou
são, quando não houver acordo mínimo). Como aponta Cunha (2010b, p. 10), compreende-se
dessa forma o papel central que a natureza do auditório tem na argumentação. Dado que o
objetivo não é propriamente a “verdade”, mas sim a verossimilhança em um processo de
eficácia persuasiva, reconhecer para quem o discurso é proferido é absolutamente central.
1.3.2.1 – O auditório
Mas, para quem dirigimos nosso discurso? Os autores da Nova Retórica utilizam a
categoria de “auditório” para designar todo e qualquer público para quem o discurso é
direcionado, de um simples indivíduo ou uma multidão, até os próprios leitores. É sempre em
33
Afastando de uma retórica unicamente das figuras (apartada da dialética), que colaborou em esvaziar seu
sentido amplo: “o papel da figura nos estudos retóricos foi assumindo tão grande proporção que, em determinado
período de sua história, a Retórica reduziu-se ao seu exclusivo estudo, sendo esta uma das razões do sentido
restrito que passou a veicular e que a distanciou de sua acepção plena, apta a atender aos demais componentes
envolvidos no discurso.” (MOSCA, 2001, p. 34)
143
34
Cabe apontar os potenciais perigos de uma construção do auditório mal realizada: “Uma argumentação
considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de
fato, razões contra.” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 22)
144
aponta Perelman (2005, p. 26), mais importante que a própria consideração do verdadeiro ou
probatório do orador, é o parecer daqueles a quem ele se dirige, e como o orador será animado
pelo espírito deste auditório.
Se a importância do auditório é tal, como conciliar os escrúpulos com essa submissão,
levando em conta mesmo as premissas de Quintiliano, para quem a retórica é a “ciência do
bem dizer”? A resposta é basicamente um limite da retórica: os mesmos acordos que dispõe o
auditório como ouvinte também valem para o orador. Perelman (2005, p. 18) aponta que para
argumentar é preciso ter apreço pelo interlocutor, desejando que o mesmo participe
mentalmente do discurso proferido, possuindo assim o orador certa modéstia (já que, para
convencer, deverá pensar no ouvinte, no que o interessa, em seu estado de espírito). Neste
mesmo sentido, nem todos devem ser persuadidos: em certas circunstâncias em que o contato
dos espíritos é valorativamente muito diverso, o melhor, segundo Perelman, pode ser não
intentar o diálogo. Ou seja, em certas circunstâncias é preferível não persuadir, sob o preço de
perder-se neste ato.
De qualquer forma, é sempre relativamente ao auditório que a argumentação opera (ou
não opera, quando não houver acordo). Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 34)
reconhecem a existência de três tipos básicos de auditórios: o universal, o formado pelo
diálogo e o íntimo. O íntimo constitui-se pelo próprio indivíduo quando ele delibera ou figura
as razões de seus atos, enquanto o diálogo define-se unicamente pelo interlocutor a quem se
dirige. De certa forma, o único possível de tornar-se um modelo é o auditório universal,
constituído em teoria por toda a humanidade, ou ao menos por todos os homens e mulheres
adultos e racionais: “[trata-se] de uma universalidade e de uma unanimidade que o orador
imagina, do acordo de um auditório que deveria ser universal, pois aqueles que não
participam dele podem, por razões legítimas, não serem levados em consideração.”
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 35). Na medida em que, efetivamente,
nem todos fazem parte deste “universo”, e sim aqueles aptos a, racionalmente, aderir à
argumentação do orador, o auditório imaginado coloca-se não como uma questão de fato, mas
uma questão de direito.
Tito Cardoso e Cunha (2010b, p. 11) aponta um problema nessa noção construída por
Perelman e Olbrechts-Tyteca. Para ele reencontramos uma ideia de necessidade que Perelman
associava ao formalismo lógico e não à argumentação retórica: “uma argumentação dirigida a
um auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de
sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das continências locais ou
históricas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 35). Sobre esta passagem,
145
como da ordem, do existente, da essência, dentre outros. Quando for o caso, nas análises dos
professores, tratarei destes lugares.
Resta agora apresentar a forma pela qual Perelman e Olbrechts-Tyteca organizam as
premissas e lugares na forma de argumentos. São criados dois grupos: os argumentos de
ligação, que permitem ligar um conjunto de premissas de forma a lançar para a conclusão a
adesão destas premissas; e os de dissociação, que separam elementos discursivos que eram
associados em determinadas tradições. O primeiro grupo, por sua vez, dividir-se-á em três
tipos de ligações: os argumentos quase lógicos, os argumentos fundados sobre a estrutura do
real e aqueles que fundam a estrutura do real.
Os argumentos quase-lógicos, como o nome indica, constroem-se na aparência de
princípios lógicos, tomados como um a priori. A evidência da demonstração lógica opera
como suporte a uma presunção, que dela retira força. Esses argumentos se assentam em
alguns princípios, tais quais a contradição, a identidade e definição, a reciprocidade, a
transitividade e a inclusão / divisão.
Evitar a contradição é uma forma de argumentar quase lógica, como na seguinte
proposição: se A é verdadeiro, sua negação só pode ser falsa, e vice-versa. No caso do
discurso retórico, que tem na ambiguidade um parceiro sempre presente, é mais difícil que se
construam definições de forma unívoca, e se recorre ao argumento da incompatibilidade: mais
fácil que negar uma premissa em relação à outra é dizer que ambas são incompatíveis em
relação à tese que se apresenta. Por exemplo, uma tese legal que aponta a incompatibilidade
entre o exercício de cargos públicos e o prosseguimento de atividades privadas.
Inegavelmente a incompatibilidade depende de contingências políticas, intelectuais ou
culturais.
O princípio da identidade e definição enuncia-se da seguinte forma: A é A. Como a
argumentação retórica não é correspondente à lógica, a identidade dos objetos, indivíduos,
grupos depende de uma definição. E como as definições não são uníssonas, o debate
argumentativo torna-se nítido na disputa pela relação entre a definição e o que é definido. Um
bom exemplo é um processo atual em que o movimento nazista é caracterizado por alguns
setores da sociedade brasileira, em especial a partir de redes sociais, como sendo de
“esquerda”. É preciso construir todo um processo de argumentação histórica para reificar o
que se pensava óbvio, de que, a despeito do nome “Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães” (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, em alemão) e da
participação ativa do estado em setores da economia, a inexistência de um processo de
transformação efetiva da produção, a questão racial, dentre outras características, não
148
Exemplos clássicos dessa forma de argumentação são: “os amigos dos meus amigos
meus amigos são”, ou “os aliados dos meus aliados são meus aliados”, operando no mais das
vezes relações de implicação entre os fenômenos, sendo que o próprio raciocínio silogístico
opera fundamentado na transitividade. No caso da argumentação, temos o entimema, os
argumentos quase-lógicos apresentados na forma de silogismos.
Outro gênero de argumentos opera as relações entre o todo e suas partes, ora
acentuando a inclusão das partes no todo, ora a divisão do todo em partes. Dessa forma, se o
orador deseja argumentar a favor do centralismo contra a regionalização, acentuará a inclusão
das regiões no todo nacional e, se desejar o contrário, ou seja, defender a regionalização,
evidenciará o quanto o todo nacional é formado por variadas regionalidades (CUNHA, 2010b,
p. 27). Por fim, a comparação põem em análise realidades diferentes para assim avaliar
similaridades e diferenças entre essas realidades. As historiografias acadêmica e escolar
lançam mão de muitas análises comparativas, via de regra com o objetivo de valorar uma
realidade em relação à outra. Por exemplo, a clássica divisão entre colônias de exploração e
colônias de povoamento serviu, por muito tempo, como argumentação para o sucesso
econômico da América anglo-saxônica em relação à América latina35.
Os argumentos baseados na estrutura do real, diferentemente dos quase-lógicos,
possuem seu referente na experiência, e não na lógica. O real a que o Tratado da
Argumentação se refere não é o ontológico, mas aquilo que o auditório acredita que seja real,
35
Olivier Reboul (1998, p. 183), diferentemente de Perelman e Olbrechts-Tyteca, situa a comparação como uma
argumentação que funda a estrutura do real, já que aquilo que é medido é sempre empírico, sendo que o ato de
comparar situa uma medida de valor entre estas empirias.
149
certa ação é “típica daquele sujeito”, constituindo uma identidade. Por fim, o argumento
acima dá origem ao argumento de autoridade, que justifica uma afirmação baseando-se no
valor de seu autor e ao seu contrário, o ad hominem, que refuta uma proposição recorrendo a
detalhes da personalidade, caráter ou passado de quem a enuncia (em geral, sem refutar o
argumento em si).
A última categoria de argumentos são os que fundam a estrutura do real, aqueles que,
a partir de algum caso conhecido, permitem estabelecer um precedente, uma regra, um
modelo, tais quais os raciocínios pelo modelo ou pelo exemplo. Essa forma de argumentar por
indução constrói as generalizações e regularidades (ou a estrutura do real) a partir de casos
particulares. Pode-se distinguir algumas variantes desta categoria de argumentos: exemplo,
ilustração, modelo, analogia e metáfora.
O exemplo pretende generalizar uma regra a partir de um caso concreto, ou de um
conjunto desses. O exemplo reforça a regra por ser externo aos que o utilizam e independente
de outros exemplos. Quantos mais exemplos mobilizados, mais uma tese é reforçada. Como
aponta Reboul (1998, p. 154), em retórica o exemplo (paradeigma) vai além do exemplo
banal, funcionando como uma indução dialética, que vai do fato ao fato, passando pela regra
subentendida. Uma argumentação que utilize vários exemplos de perseguições, prisões ilegais
ou torturas, desejará, com essa argumentação, categorizar o regime político que as produziu
como autoritário. Já a ilustração é um exemplo que pode ser fictício, e opera como um reforço
da regra, tornando-a mais presente na mente dos que ouvem o discurso. Enquanto o exemplo
que funda a regra deve ser incontestável (já que, ao contrário colocaria toda a regra em
suspeição), a ilustração pode ser duvidosa (ou até mesmo fantasiosa), devendo impressionar
vivamente a imaginação para impor-se à atenção.
O modelo bebe da mesma lógica do exemplo, mas a extrapola, transformando um
exemplo em algo digno de imitação, funcionando como uma norma. Indivíduos, práticas,
estratégias ou mesmo a ação de grupos mais amplos, quando alcançam altos graus de sucesso,
passam a ser reconhecidos como modelos a serem seguidos por outros que desejam resultados
semelhantes.
A analogia é a construção de uma estrutura do real que permita encontrar e provar uma
verdade mediante uma semelhança entre relações, e não entre temáticas. Postula sempre duas
relações, de forma que a primeira, entre A e B, é semelhante à segunda entre C e D. A
primeira, o “tema”, é o que se quer provar, enquanto a segunda, o “foro”, é o que serve para
provar a primeira, em geral retirada do domínio do sensível e do concreto. Cito uma analogia
de Aristóteles, reproduzida por Reboul (1998, p. 185):
151
O tema que se quer provar é de que “a inteligência de nossa alma” é ofuscada “pelas
coisas mais evidentes”, tal qual “os olhos do morcego” são ofuscados pela “luz do dia”, que
opera como o foro. A similitude não está nos temas, grandemente heterogêneos, mas na
relação semelhante.
A mesma forma argumentativa da analogia funda a metáfora, que segundo o Tratado
da Argumentação (p. 453) é uma analogia condensada que evidencia certos elementos do
tema e do foro, enquanto omite outros. Uma metáfora repetidamente citada pelo professor
Fernando Seffner, nas aulas de Estágio curricular, merece apreciação: “a aula de História não
deve ser um oceano com a profundidade de um pires”. Subjaz nessa metáfora uma analogia: o
oceano está para a vastidão assim como o pires está para o raso, e a junção de ambos os
termos cria o sentido de algo vasto todavia pouco profundo. Há uma assimilação das
grandezas postas em relação (uma relação ao absurdo, de onde reside parte da força da
metáfora) nos objetos enunciados, ou seja, no oceano e no pires. Levando em conta que a
metáfora é, classicamente, definida como um transporte de sentido de uma palavra para outra,
estes sentidos são carregados para a aula de História. Produzir a aproximação à metáfora
reconhecida serve como ponto de partida, da mesma forma que um fato indiscutível
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 456), sendo reconhecida como a figura
que fundamenta as estruturas do real por excelência (REBOUL, 1998, p. 188).
***
Para Meyer, é apenas no entrecruzamento dessas três dimensões que a retórica pode
existir, não cabendo tomar os elementos de forma isolada. O próprio catálogo de definições
construído por Meyer37aponta que em cada definição, a ênfase cai sobre apenas um desses três
36
Ênfase enunciada de forma clara logo ao início do Tratado da Argumentação (2005, p. 6-7): “Conquanto seja
verdade que a técnica do discurso público difere daquela da argumentação escrita, como nosso cuidado é analisar
a argumentação, não podemos limitarmos ao exame da técnica do discurso oral. Além disso, visto a importância
e o papel modernos dos textos impressos, nossas análises se concentrarão sobretudo neles. Em contrapartida,
deixaremos de lado a mnemotécnica e o estudo da ação oratória. Tais problemas são da competência dos
conservatórios e das escolas de arte dramática; dispensamo-nos de seu exame.”
37
“A retórica é, portanto, tradicionalmente, ‘a arte de bem falar’; mas aquilo que o advérbio ‘bem’ comporta é
demasiado rico de sentido para nos esclarecer verdadeiramente, pois reenvia para uma quantidade de objetivos:
1) Persuadir e convencer, criar o assentimento;
2) Agradar, seduzir ou manipular, justificar (por vezes a qualquer preço) as nossas ideias para as fazer
passar como verdadeiras, porque o são ou porque acreditamos nelas;
3) Fazer passar o verossímil, a opinião e o provável com boas razões e argumentos, sugerindo inferências
ou tirando-as por outrem;
4) Sugerir o implícito através do explícito;
153
elementos, o que, como apontado acima, eclode a própria retórica. Mesmo assim, subjaz
nestas definições uma mesma estrutura: “a relação entre si e outrem (éthos e páthos, segundo
Aristóteles) via uma linguagem (lógos), ou simplesmente um instrumento de comunicação.”
(MEYER, 1998, p. 25-26). Esta estrutura é o centro da retórica, devidamente equilibrada, sem
que um dos aspectos reduza os outros dois. Ao longo dos discursos eficazes as três dimensões
deslizam-se e misturam-se, de forma que é difícil separá-las com precisão. Podemos fazê-lo
de forma didática, visando compreender partes do processo, (como inclusive será intentado,
na parte II dessa tese, na análise das aulas dos professores e professoras de História), mas
sempre levando em conta a precariedade dessa divisão.
Como já apontado anteriormente, Meyer critica Perelman por seu enfoque excessivo
na questão da persuasão racional e argumentativa, deixando de lado as outras duas dimensões:
(...) não poderíamos aceitar limitar a retórica à arte de persuadir sob a pena
de perder outras dimensões. Porque veicular o implícito, por exemplo, não é
necessariamente sugerir uma conclusão para convencer quem quer que seja,
mas pode simplesmente querer significar qualquer coisa a alguém, informá-
5) Instituir um sentido figurado, a inferir do literal, a decifrar a partir dele, e para isso utilizar figuras de
estilo, ‘histórias’;
6) Utilizar uma linguagem figurada e estilizada, o literário;
7) Descobrir as intenções daquele que fala ou escreve, conseguir atribuir razões para o seu dizer, entre
outras coisas através do que é dito.” (MEYER, 1998, p. 22)
154
dos professores, mas também à interpretação e atribuição de sentido de acordo com os mais
variados contextos de enunciação, ou às mais variadas salas de aula.
A retórica nos cabe, e especialmente a retórica de Meyer, pois é neste espaço que a
identidade se torna diferença, e a diferença identidade, em um jogo de aproximações e
afastamentos, comunhão e exclusão (MEYER, 1998, p. 135). As salas de aula nos oferecem
possibilidades de ação, entendidas como lugares sociais de negociação de distâncias, como
lugares em que se permite ou se coíbe falar de certas questões, e um lugar sob constante
vigilância social, como desenvolvido no capítulo anterior. Lugares sociais que, para dar conta
dessa negociação de distâncias, acabam por produzir um novo conhecimento histórico que
não perde sua referência ao saber construído pela academia, mas ainda assim possui graus de
autonomia muito maiores, tal qual desenvolvido no capítulo 1.2.3. Enquanto a universidade e
os centros de pesquisa, bem como o conjunto dos historiadores são o lugar social de produção
do conhecimento historiográfico, a noosfera, a escola e a sala de aula são os lugares sociais de
produção e ação do conhecimento histórico escolar, ou da nossa verdade histórico-didática.
A definição proposta por Meyer, nas páginas seguintes de sua obra, dá conta de outro
aspecto que nos interessa, e inclusive aproxima a retórica do fazer historiográfico: “a retórica
é a negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema”
(1998, p. 27). O que torna cada negociação de distâncias única é o fato de que cada situação
enunciativa responde a uma questão problemática específica.
aristotélica (“por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim
de persuadir” (I, 2 – 1355b)) a centralidade do caráter problemático, na medida em que os
discursos respondem a questionamentos sempre cambiantes, adequados a cada caso:
A realidade retórica proposta por Meyer dialoga com essas realidades cambiantes,
suscitada sempre de forma diversa a partir situações concretas e contingentes. Essa realidade
evidencia a problemática da existência e dos valores, não mais reduzidas a uma metafísica ou
mesmo a uma metanarrativa. É possível situar esse processo em um quadro mais amplo, a
partir do que nos ensina Boaventura de Souza Santos (2008): a crise do paradigma científico
moderno abalou (ou destruiu, sob outra perspectiva) as certezas da modernidade, crentes de
que a razão, os métodos científicos e a matemática desvendariam as leis da natureza, e,
consequentemente, conduziriam a um progresso técnico e civilizacional irreversível.
Modificações nas próprias ciências ditas “duras” (como a teoria da relatividade de Einstein ou
a mecânica quântica) inseriram um quadro de suspensão nessas crenças, especialmente na
divisão radical entre sujeito e objeto, que torna-se muito mais complexa:
Meyer situa sua obra nessa perspectiva, apontando que “a própria ideia de uma tal
racionalidade, com a sua certeza indubitável, interior, absoluta e a-histórica, (...) se encontra
rejeitada” (1998, p. 13). O abalo dessas certezas abre espaço para a retórica, como uma
mediadora da inerente contrariedade existente entre os indivíduos. Nem sequer falaríamos
com os outros se tudo fosse claro, ou se pudéssemos fazer tudo sozinhos, ou que qualquer
desejo ou necessidade fosse instantaneamente decifrado pelos outros espíritos. Na medida em
que falamos com outros, é sempre sob o império de um questionamento que anima este ato.
Todo discurso é de certa forma uma resposta, que pressupõem um questionamento que pode
se ocultar na resposta. Questionamento este que, ao mesmo tempo em que marca uma
diferença (se não houvesse diferença, o diálogo não seria necessário) também marca uma
aproximação, ou um desejo de aproximação. Não falamos ou não ouvimos a não ser que
157
desejemos, pela palavra, abolir, minimizar ou ao menos fazer reconhecer as diferenças ligadas
a cada questão (MEYER, 1998, p. 83).
Mas de onde surge o questionamento? Mesmo que a questão possa ser mais ampla, o
problema é lançado pelo locutor que comanda o seu discurso, que pode convencer o seu
interlocutor apoiando-se nas respostas dadas ao discurso efetuado.
Queremos submeter uma questão a outrem, partilhá-la com ele, porque ela
lhe interessa por razões parecidas com as nossas, ou porque pode contribuir
para a resolver. Também podemos propor-lhe logo uma resposta, mas
corremos o risco de ele a desaprovar e rejeitar; ou, pelo contrário, poderá
aderir a ela por ‘boas razões’ ou simplesmente porque lhe agrada. A
linguagem, tal como a usamos, suscita uma questão sobre a qual o auditório
deve responder, por vezes contra sua vontade, ou à qual (se é preciso agir e
reagir) lhe solicitamos expressamente que responda. O auditório é assim
confrontado com uma pergunta, directamente ou de maneira derivada por
intermédio de uma resposta. Pode nunca se ter posto essa questão ou, pelo
contrário, ter-se interessado previamente. Pouco importa pois em ambos os
casos ele é como que obrigado, pelo próprio acto de recurso à linguagem, a
pronunciar-se sobre a questão suscitada. Mesmo que a rejeitasse, estaria
ainda a responder-lhe de qualquer maneira. (MEYER, 1998, p. 85)
sempre problemático, não saberíamos sequer aquilo que perguntamos (MEYER, 1998, p. 55).
Essa diferença estrutura o próprio pensamento, pois o espírito sempre necessita procurar para
encontrar, e aquilo que é “dado” sempre o é como uma resposta.
A citação acima também aponta que a diferença problematológica lança mão de uma
linguagem para buscar a resposta, na medida em que constitui intrigas. Se a linguagem é
utilizada para chamar a atenção sobre uma questão, é interessante perceber que não podemos
falar de uma linguagem única, mas de uma variedade de códigos, inclusive dentro de uma
mesma língua. A linguagem historiográfica (ou simplesmente mais formal) por vezes passa ao
largo do cotidiano e da compreensão dos alunos e alunas da escola básica, independente do
extrato social do público escolar. É também possível pensar o fracasso de muitas aulas devido
à inexistência de problematicidade evidente entre o conteúdo histórico e os alunos que o
recebem. Aquilo que anteriormente pensei como a inexistência de acordo prévio pode ser
agora, a partir dessas formulações de Meyer, pensado também como inexistência de uma
questão tomada como digna de interesse por aqueles a quem a aula é destinada. A História na
sala de aula não se basta no logos, ela precisa dialogar com o auditório a quem a aula é
direcionada.
A teorização de Meyer postula com muita clareza a diferença entre questão e resposta
como um saber que deveria ser conhecido por todos, para que assim os interlocutores
pudessem discernir entre o que está posto em causa e o que argumenta a favor ou contra essa
causa. Daí a necessidade, para uma boa retórica, de tornar visível o questionamento como
única forma de distingui-la de uma retórica manipuladora (MEYER, 1998, p. 46-51). Uma
retórica baseada no questionamento, que postula previamente a equação “querer dizer =
problema colocado”, é mais honesta com os interlocutores; ela se torna manipuladora na
medida em que se toma os argumentos à letra e a sedução por verdade, e se tal não se verificar
a retórica não permite o engano uma vez que o seu auditório consegue perceber o fim cujo
meio é a utilização retórica (MEYER, 1998, p. 144-145). Todavia no mais das vezes os
locutores não colocam seus questionamentos de forma expressa (o que não quer dizer que eles
não estejam presentes) e, por vezes, a questão mais complexa é identificar a própria questão
159
que está em pauta, especialmente quando pensamos na sala de aula. O contexto de enunciação
pode ser considerado uma fonte privilegiada para essa identificação:
Tudo isto nos leva a meditar sobre o papel da forma: esta deverá traduzir a
diferença problematológica quanto mais o contexto for pobre em informação
sobre aquilo que está em questão e sobre aquilo que não está. Se digo “as
serpentes são venenosas”, o contexto de enunciação permite que os
protagonistas da situação decidam se se trata de uma precaução, de uma
afirmação pura e simples ou de uma verdadeira interrogação sobre um objeto
considerado ameaçador e que parece uma serpente. Pelo contrário, se o
contexto é pobre em informação, é preciso especificar ao nosso auditório
aquilo de que se trata no nosso discurso, aquilo que é questão ao certo,
porque no exterior do discurso realizado não há provavelmente nenhum
elemento que lhe permita decidir sobre aquilo que é discutido ao certo e
sobre aquilo que esperam dele como resposta. Inversamente, quanto mais
rico o contexto for em informação, mais a forma adquire graus de liberdade
relativamente à necessidade de dizer expressamente aquilo que faz a questão
e aquilo que é da ordem da resposta. (MEYER, 1998, p. 88-89)
Se para qualquer enunciado sempre existe uma pergunta que dá sentido à própria
enunciação, esse enunciado só encontra sentido na medida em que compreendemos o contexto
de sua enunciação. Michel Foucault, logo ao início do seu As Palavras e as coisas (1987),
relata um texto de Borges que por sua vez cita o que seria uma “Antiga Enciclopédia
Chinesa”, com uma taxonomia de seres fabulosos38. Sobre ela Foucault conclui: “No
deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é
indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a
impossibilidade patente de pensar isso.” (1987, p. 5). O limite para nós encontra-se na enorme
dificuldade de atrelar os sentidos da taxonomia com qualquer contexto científico, lógico ou
mesmo do senso comum. Todavia se o contexto de enunciação operasse a partir de fabulações
ou construções imaginárias, é possível que esses enunciados encontrassem esse contexto.
De certa forma, as próprias decisões político-educacionais que estabelecem as
programabilidades dos conteúdos na escola o fazem a partir de um contexto de enunciação
ideal, na medida em que ajusta aprendizagens, habilidades ou competências a partir de certas
idades e conhecimentos adquiridos anteriormente (poderíamos chamar de o auditório
universal dos alunos e alunas). Mas os professores e professoras sabem que esses ideais na
maior parte das situações concretas não se materializam plenamente. Professores e
professoras dimensionam os contextos de enunciação, quando levam em conta os
38
“os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)
sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos,
j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de
quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.
160
conhecimentos prévios dos alunos a partir de sondagens variadas e assim conhecem seu
contexto. Como diz Meyer (1998, p. 89), “o que é então o contexto senão a posição relativa
dos interlocutores, aquilo que sabem um do outro, mas também aquilo que sabem que o outro
sabe que eles sabem?” Dessa forma, por mais que a sala de aula lide com enunciados
advindos de uma ciência histórica que possui como referência o conjunto dos historiadores,
cada professor lidando com turmas específicas está potencialmente lançando mão de
questionamentos, e assim sendo não é possível compreender o sentido dos enunciados
trabalhados sem identificar a questão que lhes serve de pano de fundo:
(...) o ponto crucial não é tanto a distinção dos gêneros quanto aquilo que
constitui os seus fundamentos: os modos de interrogação e a sua eventual
unidade. A gênese do logos resulta daí. A questão do facto ou do quê reenvia
ao sujeito; a do aquilo que determina o atributo; e finalmente a do porquê
justifica o laço entre os dois primeiros, quer em virtude das próprias coisas,
quer em virtude do dizer e da enunciação. (...) o que está em questão não é
161
evidentemente o próprio facto mas aquilo que ela é, quer dizer, aquilo que
faz com que ela se tenha produzido uma vez que ela foi isto ou aquilo. O que
equivale a voltar a descrever o próprio facto em função da explicação e dos
predicados que lhe terão sido atribuídos ao longo dessa explicação. Podemos
singularizar estas diversas questões e então perguntar: o que é a Revolução
Francesa? Por que ocorreu um tal acontecimento? O que é que se passou ao
certo? (...) todas essas questões se interpenetram. (MEYER, 1998, p. 42)
interpretações. Por se tratar de uma dimensão moral e ética, esse caráter central dos valores
dos professores-oradores é presente.
Na medida em que as questões são postas, o processo argumentativo é o caminho de
resolução destes questionamentos, e nesse processo é bom lembrar-se do aviso de Reboul:
“para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem se está falando”
(1998, p. XIX). Um orador que nunca está sozinho, já que sempre fala ou escreve para outros,
concordando ou discordado, mas levando-os em conta. Ou pelo menos assim deveria ser. A
fala de um professor deve estar sempre relacionada a outros discursos, ou, mais
especificamente, aos saberes juvenis que constituem os alunos e alunas. É essa interlocução
que garante negociação das distâncias, seja pela concordância, seja pelo tensionamento.
Lidamos com o outro, e o nosso outro é um aluno ou uma aluna. Este outro possui sua
inteligência, sua racionalidade, seus valores, e também suas emoções e sentimentos, ou as
paixões, como apresentado pela retórica. Aristóteles dedicou boa parte da sua Retórica a
mapear o caráter dos mais variados grupos sociais (pobres, ricos, poderosos, jovens, e cetera),
ressaltando que “as emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem
mudanças nos seus juízos, na medida que comportam dor e prazer” (II, 1, 1378a). Herdeiro
dessa perspectiva, Meyer faz uso do termo “sedução” para designar o conjunto de respostas
do auditório, nascidas dos efeitos de estilo que por sua vez produzem sentimentos de prazer
ou adesão (1998, p. 20).
Para ele (1998, p. 135), todas as relações humanas procedem ao jogo das identidades e
das diferenças: enquanto a identidade opera com tudo o que é familiar e simpático, a diferença
se pauta pela distância, oposição, exclusão e até relações de poder. O auditório é representado
pelo pathos, e para convencê-lo é necessário comovê-lo, seduzi-lo, sendo que os próprios
argumentos fundados na razão devem apoiar-se nas paixões do auditório para conseguirem
suscitar adesão (MEYER, 1998, p. 28). Mesmo que as questões sejam lançadas a partir do
locutor (ou ethos), o fato da distância a ser negociada ser em relação a um auditório implica
levar as emoções e sentimentos desse auditório em conta, e a partir delas operar um processo
de sedução. Seduz-se para que uma diferença atinja, ao menos no nível da aparência, uma
identidade, dando a esta aparência uma condição de realidade.
163
39
“Os sentimentos que acompanham esses estados fisiológicos ideais são naturalmente considerados ‘positivos’.
São caracterizados não só pela ausência de dor, mas também por variedades de prazer. E há também estados do
organismo em que os processos da vida lutam arduamente por recuperar o equilíbrio e podem até perder essa luta
e entrar em caos. Os sentimentos que ocorrem nesses estados são considerados ‘negativos’ e são caracterizados
não só pela ausência de prazer mas por variedades de dor.” (DAMÁSIO, 2004: 142-143)
165
como seres conscientes, leva em conta nossas experiências passadas na perspectiva das
alegrias e das tristezas. Nessa perspectiva, Damásio nos ensina que “os estados de regulação
fluida são aqueles que o nosso conatus prefere. Gravitamos naturalmente para estes estados
fluidos. Os estados de regulação da vida em que é constantemente necessário superar
obstáculos são naturalmente evitados pelo nosso conatus.” (2004, p. 143).
Aqui se abre uma questão essencial para a sala de aula: como estabelecer uma relação
de prazer e alegria em um ambiente estruturalmente imposto aos alunos? Se voltarmos
novamente a Aristóteles, podemos nos desestimular ao lermos que “toda a ação imposta por
necessidade é naturalmente penosa” (Retórica I, 11 – 1370a). Não “fugiríamos naturalmente”
de processos de aprendizado que provocam desequilíbrios? Estudar requer esforço, e este
esforço requerido não acaba por associar o ato de estudar a uma situação negativa, e até
dolorosa? Creio que seja imperativo inserir elementos de prazer na sala de aula, sejam
proporcionados por atividades lúdicas, laboratórios e experimentações e, especialmente, pela
palavra do professor, apto a despertar a alegria e o prazer em seus alunos. Todavia, segue a
inquietação: poderão emoções que desequilibram o estado de bem estar serem
pedagogicamente eficazes para construção de aprendizados significativos no Ensino de
História?
Creio que seja pertinente ensaiar uma reflexão, a partir de uma cena do filme Amistad,
que narra a trajetória de escravizados desde a captura na África até a chegada na América.
Uma das cenas, com duração aproximada de 8 minutos, inicia com a captura de um dos
protagonistas em África até a chegada ao porto de Havana, onde é vendido e embarcado no
navio Amistad. Ao longo da cena, repetem-se imagens de torturas, chicoteamentos, péssimas
condições nos porões do navio negreiro, um suicídio e uma passagem em que parte dos
escravos, doentes, é atirada ao mar atados a correntes e pedras. Em suma, cenas
emocionalmente muito intensas.
Comecei a utilizar essa cena em sala de aula, especialmente ao tratar do tráfico
negreiro no Brasil colonial, em turmas de 7ª série do ensino fundamental. Na primeira vez que
fiz esse uso, no ano de 2011, o resultado foi no mínimo surpreendente: ao final da exibição da
cena, pelo menos dez alunos da sala (na sua maioria meninas, mas também meninos) estavam
lacrimejando. Logo ao fim da exibição o período havia terminado, e os alunos saíram para o
intervalo. Duas alunas que lacrimejavam se aproximam de mim para comentar o vídeo,
alegando que estavam enjoadas e sentindo-se tontas. Lembro que se passaram cerca de cinco
minutos até que as mesmas conseguissem se recuperar, e descer para o intervalo.
166
Estes alunos, e estas meninas específicas, não tinham qualquer ligação aparente com a
temática direta do filme (eram inclusive brancas de classe média alta), mas uma simulação
emocional fora criada, de forma que o próprio corpo entrou em desequilíbrio. Parece-me o
“mecanismo do ‘como-se-fosse-o-corpo’ [que] requer uma simulação interna que ocorre no
cérebro e que consiste numa modificação rápida do mapeamento do corpo.” (Damásio, 2004,
p. 126). Assim esses alunos puderam criar um estado de empatia, vinculando a experiência de
dor narrada pelo filme a uma dor nos seus próprios corpos (a partir dos chamados neurônios-
espelho). O sofrimento de outro indivíduo (EEC) gerou uma emoção social de compaixão,
mesmo que o indivíduo a quem a emoção era direcionada fosse um personagem de ficção.
Damásio nos diz que esta simulação é um mapa falso. Mas será, no caso específico da
educação, menos válido?
Também é interessante pensar que esse processo de empatia deu-se pela dor, e não
pelo prazer. Como dizem Damásio (e também dizia Aristóteles), a frequência das respostas é
aumentada em processos “prazerosos”, enquanto outros que sejam “dolorosos” diminuem
essas respostas, dificultando o aprendizado. Tendo a concordar que uma aula bem humorada e
leve, que seja percebida como prazerosa, tem mais chances de ser inscrita na memória dos
alunos. Via de regra os alunos, nas escolas, criam vínculos visivelmente mais fortes com
professores que lançam mão de estratégias bem-humoradas na aula, sendo recordadas por
muitos anos (conforme veremos na parte II desta tese).
Indo além, e pensando no conceito de interação, que leitura a mente pode ter
produzido, a partir da leitura do corpo destas meninas? Um estímulo externo (a imagem de
um sofrimento alheio) gerou uma emoção inscrita no corpo40. E o novo, aquilo que surge a
partir da interação? A experiência oferecida pelos objetos do meio provoca o desequilíbrio. O
processo de equilibração é justamente o aprendizado, a assimilação do meio ao sujeito em um
processo ativo.
Infelizmente não inquiri as alunas a respeito da experiência que viveram assistindo a
cena do Amistad, e como aquele desequilíbrio materialmente inscrito foi resolvido. Que novo
aprendizado formou-se? E mais, será que o aprendizado formado aproximou-se da intenção
maior do professor, que era a sensibilização frente ao processo histórico da escravidão?41
40
“Os indivíduos humanos conscientes conhecem os seus apetites e emoções sob a forma de sentimentos, e esses
sentimentos aprofundam o conhecimento que esses seres humanos tem da fragilidade da vida de forma a
tornarem esse conhecimento uma preocupação (...) [e] essa preocupação transborda do self para o outro.”
(DAMÁSIO, 2004, p. 187)
41
Nas formulações de Damásio, essa sensibilização (dada a busca por igualdade social no Brasil) pode ser
entendida como uma estratégia de homeostase social: “Os instintos, as pulsões e as motivações, os apetites e as
167
Creio que, ao fim, nunca saberei (algum professor pode saber?). E talvez não seja essa
a questão. Parece-me que a riqueza desse caso está nele mesmo: naquela aula, aqueles alunos
(sujeitos de conhecimento e emoção) viveram um processo de desequilibração (interação
sujeito-objeto), estimulados por uma temática específica e uma série de imagens repletas de
emoções (influência do meio, do mundo do objeto epistemológico). A assimilação e a
consequente busca pelo equilíbrio não cabia a mim, e sim aos próprios alunos. Minha parte,
como professor, foi cumprida.
A História é retórica? Esta pequena questão organizará este subcapítulo, cuja proposta
é situar o conhecimento histórico como muito próximo do caráter argumentativo da retórica.
Seguirei, nesse ponto, de forma muito próxima, a tese desenvolvida por Fernando de Araújo
Penna de que tanto a argumentação quanto a narrativa são centrais na dinâmica do
conhecimento histórico. Essa argumentação tomará quatro pontos de proximidade: as relações
entre escrita, argumentação e narrativa da história; o estilo; a noção de prova; a
problematicidade.
Como desenvolvido no primeiro capítulo desta tese, a concepção de que o processo de
constituição das narrativas é central na produção do conhecimento histórico é aceite, ao
menos pelos autores desenvolvidos. O processo de escrita, como aponta Michel de Certeau
(sempre relacionado ao lugar e às práticas científicas correspondentes), comporta processos
narrativos que homogenizam lacunas da documentação (redrodicção); que estabelecem uma
diferença entre o tempo das coisas e o tempo da narrativa, sendo que o último permite que o
texto avance e recue com velocidades variadas, produzindo neste caminhar um conjunto de
efeitos de sentido, redistribuições e condensações conforme o tempo cronológico corre; e
emoções não chegam para resolver os problemas de uma sociedade em que o ambiente cultural envolve
agricultura, diversas indústrias, os bancos, as organizações de saúde, as organizações de educação e de seguro e
toda uma gama das estruturas e de atividades cujo conjunto constitui uma sociedade humana com a sua
economia. Em tais circunstâncias, a nossa vida deve ser regulada não só pelos desejos e sentimentos, mas
também pela nossa preocupação com os desejos e sentimentos dos outros. Essa preocupação exprime-se sob a
forma de convenções sociais e regras de ética e, por sua vez, essas convenções e regras são administradas por
instituições religiosas, de justiça e de organização sociopolítica. Essas convenções, regras e instituições
funcionam no grupo social como instrumentos homeostáticos. A arte, a ciência e a tecnologia assistem esses
mecanismos de homeostasia social. (DAMÁSIO, 2004, p. 178-179)
168
O talento é necessário para a constituição de uma intriga que produza aquilo de melhor
que a História tem a oferecer: o prazer de ver funcionar os movimentos, sobressaltos ou
sentimentos dos assuntos humanos. O devir da história, sempre original, mostra os homens e
mulheres em ação, e, por isso, exige algum “sentido psicológico”, como o teatro e o romance.
Uma constatação presente também em Peter Gay (1990), quando analisa o estilo na História,
em especial na obra de Leopold von Ranke, constatando que o lado “dramaturgo” desse
historiador era bastante desenvolvido: prestava atenção na velocidade, no colorido e na
variedade, elaborando momentos de clímax que tornam algumas passagens da sua obra
absolutamente emocionantes. Mesmo assim, Ranke era “um cientista, mestre na pesquisa
sistemática dos documentos, sua maior contribuição à História, não admitindo a história
escrita a partir de outras histórias” (ARAÚJO, 1991). A análise que Gay desenvolve dos
historiadores pesquisados ressalta um paradoxo: se por um lado existem limitações em cada
historiador, nunca neutros, sempre ligados ao presente com uma finalidade concreta para suas
obras (como já apontado por White), por outro é apenas essa empatia do presente que
possibilita aos historiadores verem e narrarem realidades históricas inacessíveis a outros
indivíduos.
Prosseguindo nestas referências, pensando especificamente no estilo na História, Peter
Gay desenvolve a tese (já apresentada acima, com outros pensadores) de que não existe uma
dicotomia plena entre ciência e arte no discurso historiográfico, sendo que estilo e verdade
não seriam apenas compatíveis, mas interdependentes. Nessa lógica, o estilo em sua acepção
escrita permite algumas formas correlatas de expressão, como o estilo emocional do
historiador, espelhado na pontuação, nos adjetivos preferidos, na escolha dos episódios
ilustrativos, nas tônicas e epigramas. Há também o estilo profissional, refletido no tipo de
material escolhido e na forma de usá-lo. Existe também um estilo de pensar, seus postulados
mais básicos sobre a natureza do mundo. “Os estilos compõem uma rede de indícios que
apontam uns para os outros e, somados, para o homem – o historiador em atividade” (GAY,
1990, p. 24).
Outro elemento de proximidade entre a retórica e a historiografia é a noção de prova.
Como já desenvolvido no capítulo 1.1.3, Ginzburg problematiza o quanto a retórica, ao menos
172
em sua matriz aristotélica, lida de forma muito próxima com a ideia de prova (a partir de
noções como semeia, tekmeria e eikos da Retórica de Aristóteles), como imperativo para
diferenciação entre uma retórica filosófica e uma retórica sofística, de caráter ato-referencial.
Luís Costa Lima (1989, p. 41-42) aponta que a História possui uma característica que
a difere grandemente das ciências naturais: a infinidade de variáveis. A finitude dessas
variáveis encontra-se justamente nas fontes, sendo que cada recorte produzido lança luz sobre
algumas variáveis, e obscurece outras. Por isso Ginzburg chama estas fontes de “espelhos
deformantes”, que nos permitem sim vislumbrar um reflexo do passado, mas sem esquecer
todas as projeções, ângulos e recortes que atuam sobre elas.
Podemos dizer que a retórica procede de forma similar. O campo da argumentação
sobre qualquer assunto é vastíssimo, e as escolhas sempre se pautarão pelas provas do
discurso, ou seja, o delicado equilíbrio entre o ethos, pathos e logos. Essas provas são alçadas
como o núcleo racional da retórica, que permite à mesma enunciar verdades, mesmo que
provisórias. Ao colocar como válidas tanto as provas analíticas (que advém da ideia de
evidência) quanto dialéticas (relativas ao campo do verossímil, após testadas pela
argumentação), a retórica alarga o próprio campo da razão para aceitar que, no campo do
possível, pode-se enunciar coisas diferentes sobre um mesmo fenômeno sem que ambas
estejam completamente corretas ou completamente equivocadas, consoante às diversas
variáveis implicadas nessa enunciação. Tanto na historiografia quanto na retórica a amplitude
de variáveis torna impossíveis uma narrativa ou enunciação únicas da verdade, mas sim
verossimilhanças que ligam as palavras às coisas, e que serão testadas pelos respectivos
auditórios: no caso da historiografia, os pares de historiadores, no caso da retórica, a
infinidade de indivíduos para os quais o discurso é proferido.
O último critério de aproximação entre a retórica e a História que explorarei é a
problematicidade. Desde Marc Bloch a noção de que a “história responde a problemas”
tornou-se assente na historiografia ocidental. Toda investigação histórica supõe que a busca
tenha uma direção, conduzida pelas perguntas que o historiador fará aos documentos. Tomar a
História como problema significa também escolha ponderada das perguntas, flexíveis o
suficiente para agregar novas questões, novos tópicos e surpresas, na medida em que o
trabalho for acontecendo (BLOCH, 2001, p. 79).
Michel Meyer (1998, p. 44-46), ao dissertar sobre o funcionamento do princípio do
questionamento, aponta a existência de um triplo processo interrogativo (o tríptico
argumentativo), utilizando inclusive exemplos históricos para tal: primeiramente, a questão de
fundo é saber se uma proposição é verdadeira, ou se um acontecimento ocorreu efetivamente
173
(o quê); sem seguida, quais as qualificações e atributos dos fatos arrolados (aquilo que), ou
qual o seu sentido; por fim, um caminho argumentativo a respeito do porquê, que fundamenta
as escolhas das próprias normas dos acordos argumentativos. Ou seja, a interrogação que
opera nas distâncias entre identidades e diferenças, visando agir sobre os dois primeiros
questionamentos.
Desta forma, cada processo de negociação de distâncias opera, com as devidas
condições de complexidade, uma operação que se aproxima do fazer historiográfico. O
historiador, nunca alheio às paixões e ao seu tempo, faz escolhas, que pautarão as questões a
serem lançadas à documentação e até mesmo aquilo que ele deseja compreender. Como
aponta Veyne (1971, p. 46), essas escolhas nunca serão a totalidade dos fenômenos
observáveis em um dado tempo e espaço, sendo inclusive que uma mesma situação espaço
temporal pode conter (o que ocorre no mais dos casos) diferentes objetos de estudo. Da
mesma forma que na retórica, onde cada negociação de distâncias liga-se ao fato de que cada
situação enunciativa responde a um problema posto, o mesmo procedimento ocorre na
historiografia, em que cada pesquisa responde a uma problemática posta. Veremos a seguir
que um procedimento similar acontece na educação como um todo, mesmo que com um foco
específico na qualidade das problemáticas lançadas.
Olivier Reboul (1998) elabora quatro grandes funções para a retórica: a persuasiva, a
hermenêutica, a heurística e a pedagógica. Sobre as primeiras duas já problematizei alguns
diálogos com esta tese nos capítulos anteriores. Deter-me-ei agora nas duas últimas.
“Eureka”! O termo “heurística”, associado à célebre alegoria de Arquimedes, remete à
função de descoberta. Nesse caminho, a retórica tem também um sentido de auxiliar no
processo de descortinar algo, seja através de um discurso, seja através da dialética. Levando
em conta que o nosso mundo é um mundo permeado pelas incertezas, aquilo que ciência
analítica oferece em variados momentos não condiz com as decisões que devem ser tomadas.
Escolhas econômicas, políticas, sociais, pedagógicas não são a priori objetivas, dotadas de
previsões seguras. O que garantirá efetivamente que, após 20 anos de uma reforma
educacional, os alunos terão aprendido de forma mais eficaz em relação ao sistema
174
reformado? Se não temos esta certeza, também não devemos nos entregar ao caos, e é nesse
momento que a arte da argumentação entra:
A última função apontada por Reboul é a mais cara a essa pesquisa: a função
pedagógica. Mesmo que essa dimensão do ensino muitas vezes não apareça como um dos
componentes na retórica (a própria hermenêutica é tida como espaço da gramática, enquanto a
heurística é da dialética), não há dúvida que diferentes atividades discursivas perpassam a sala
de aula, seja na relação do professor com os alunos, sejam os próprios alunos entre si.
que revela uma interrupção na compreensão dos interlocutores; a explicação pretende sempre
diminuir uma distância assimétrica entre alguém que “detém” o conhecimento e outro que o
receberá, criando um entendimento partilhado.
Ambos os casos são importantes para a construção dos conhecimentos: cria-se uma
“emergência do novo” através da negociação dos conflitos. Na argumentação através da
revisão das perspectivas ou adesão de novas, as distâncias se tornam claramente reconhecíveis
para o orador, em um conflito de opiniões que colocam pontos de vista em dúvida; reconhecer
essas distâncias dota o orador de uma melhor compreensão do auditório a quem se dirige. Em
outras palavras, Ximenes (2010, p. 31) aponta a existência de três grandes dimensões críticas
na argumentação que podem facilmente ser relacionadas com a construção de conhecimentos
e a educação: verbal, quando as pessoas em situação argumentativa organizam as ideias
através do discurso; social, na medida em que qualquer discurso é contextualizado na sua
direção a outro indivíduo ou grupo; e cognitiva, já que todo ato discursivo possibilita
operações de pensamento e reflexão sobre o próprio pensamento.
Na explicação pela negociação de sentidos incompreendidos, agregando e
complementando informações, remete-se a conhecimentos anteriores, saberes já constituídos
em uma cadeia de programabilidade do conhecimento. O horizonte de ação da explicação é
sempre reduzir a assimetria de conhecimentos entre o locutor e os interlocutores, criando um
conhecimento partilhado. Ao mesmo tempo, a explicação depende desta assimetria para
legitimar-se: é preciso que o interlocutor desconheça fatos, regras, temas, palavras para que
assim o locutor possa explicá-las. Professores, a priori, não exercem o papel de indivíduos a
serem convencidos por seus alunos, e sim o contrário. No caso da escola, ela mesma enquanto
instituição constrói essa lacuna: a programabilidade dos conhecimentos abordados na escola
constitui uma lacuna prévia, anterior aos próprios indivíduos os quais a escola dotará dos
papéis de alunos e professores, e que deverá ser preenchida com uma previsibilidade
controlada (avaliações, progressões e retenções, e cetera).
Ambos os casos não eliminam processos de persuasão, no sentido retórico do termo,
ora através da argumentação, ora através da explicação. Argumenta-se para convencer o
outro, mas também no processo explicativo deseja-se que a narrativa possua tal clareza que
convença e conduza para determinada direção aquele que está na posição de discente. Todo
176
processo de contação de algo mobiliza argumentos e figuras de estilo, visando algum tipo de
convencimento àqueles a quem é dirigida. Além disso, a dinamicidade dos atores envolvidos
em sala de aula pode situar argumentação e explicação praticamente de forma simultânea:
uma eventual discordância ideológica entre professor e aluno suscitará um debate que poderá
desenvolver uma explicação, e vice versa.
O caráter formal do conteúdo escolar, socialmente legitimado, não elimina o inerente
caráter de problematicidade do mesmo: tanto a explicação quanto a argumentação pretendem
ocupar uma lacuna de comunicação:
acordo prévio. Cabe ao professor compreender o caráter implícito desse conflito, levando-o
em conta ao construir sua visão do auditório escolar posto a sua frente (mais ou menos
adequada conforme as habilidades desse orador), a partir da qual ele procederá a uma
negociação a fim de construir um conhecimento.
A noção de que dependemos de acordos para ensinar algo a alguém não é novidade no
campo da educação. Usando outros termos, Paulo Freire (2002) enunciava desde a década de
1960 a respeito da necessidade de se levar em conta os saberes que os alunos acumularam ao
longo da vida. Estes saberes permitem compreender o mundo, a partir da leitura que se faz
dele, em processos que dialogam, refletem, assumem posicionamentos e mesmo questionam
práticas cotidianas. Mesmo que os escritos de Freire sejam via de regra direcionados à
alfabetização de adultos, a mesma capacidade de leitura de mundo, a partir dos seus próprios
saberes e valores, também ocorre aos jovens na escola básica. Não compreender este conjunto
de valores que compõe o(s) auditório(s) escolar(es) pode implicar em negar qualquer
possibilidade de acordo prévio, inviabilizando o processo de ensino-aprendizagem.
A distância problematológica lança outra questão importante: a dialética enquanto
ferramenta tanto da argumentação quanto da explicação. Como dito acima, a sala de aula é um
lugar social de conflitos sempre postos, e desejáveis para a constituição dos ensinamentos. A
emergência desses conflitos e a posterior negociação permite um processo de revisão de
perspectivas e pontos de vistas, via diálogo. Dialogar significa possibilitar que o outro fale
com liberdade, quando se considera o outro apto a compreender e reagir a um discurso
(MOSCA, 2001, p. 42). O diálogo torna necessário responder avaliativamente à diferença,
seja para reorganizar uma explicação, seja para sustentar uma argumentação. Ao forçar os
interlocutores a justificar-se, desencadeia um processo reflexivo acerca das afirmações,
avaliando sua pertinência face às dúvidas ou posições contrárias.
Perelman (2005, p. 39-40) afirma que sempre que o auditório pode perguntar e objetar
cria-se no ouvinte a impressão de que as teses aderem com mais força, na medida em que
puderam amalgamar suas impressões nas mesmas. O próprio orador, a partir destes
questionamentos, toma ciência das distâncias que estão postas em sua argumentação, e pode
mais eficazmente preenchê-las. Esse diálogo, nessa medida, é heurístico, já que busca
descobrir qual a melhor forma de persuadir ou explicar. Como aponta Ximenes (2010, p. 30-
31),
Cabe lembrar, por fim, um aspecto ressaltado por Perelman e Olbrechts-Tyteca em sua
obra e já desenvolvido anteriormente. O fantasma do poder desenfreado da palavra e da
persuasão assombrou os gregos antigos, e a saída encontrada por Aristóteles foi atrelar a
retórica à filosofia, deslocando a primeira do caráter unicamente persuasivo (como defendiam
os sofistas) para uma técnica de provas (pisteis), esta por sua vez baseada na argumentação
dialética. Ao chocar-se com a diferença, a negociação e a mudança são caminhos que
constituem o desenvolvimento de novos conhecimentos nos interlocutores e também
locutores. Se penso a sala de aula como um potencial local de persuasão, penso que esta deve
estar submetida a esse caráter de prova oferecido pela argumentação, no sentido de um “fazer
compreender”. Como aponta Penna (2013, p. 176), a principal ferramenta utilizada por
alguém que deseja fazer com que outro compreenda algo é estabelecer relações entre dois ou
mais elementos a partir da inteligibilidade de um destes. Por isso a grande importância, no
contexto da sala de aula, de figuras como as metáforas, analogias, alegorias, e cetera. Estas
argumentações são chamadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca de argumentos de ligação,
conforme desenvolvido no capítulo 1.3.2.3. Esse movimento do discurso reelabora
significações, modificando um estado do conhecimento ao incluir novos sentidos e
informações que preencham as lacunas. Lacunas estas, é bom dizer, que muitas vezes os
alunos não sabem que existem, mas que vão sendo apresentadas no próprio decorrer das aulas:
“o que é uma fonte?” ou “quais as causas para a queda do Império Romano Ocidental?” só se
tornam questões a partir do momento que são lançadas pelo professor, simultaneamente ao ato
de tentar resolvê-las em seus alunos. Lançadas essas questões, a modificação do estado de
conhecimento (de uma incompreensão para uma compreensão), ao possibilitar a
ressignificação de sentidos antes incompreendidos, é uma característica do discurso que
deseja “fazer compreender”.
Parece claro que aquilo que cotidianamente se faz nas escolas e salas de aula é
retórica. Também parece claro que, devido à natureza dos conteúdos históricos,
potencialmente vivos na sociedade e na cultura, ora nos deparamos com procedimentos
explicativos, ora argumentativos, sendo que separá-los é uma tarefa bastante difícil. Creio que
seja pertinente lembrar-se do que Lineide Mosca (2001, p. 26) nos ensina: o simples ato de
informar não existe em estado puro, mas serve antes a convencer e persuadir alguém sobre
algo. Mesmo os discursos científicos ou jornalísticos existem sempre em função de uma
determinada finalidade a ser atingida. Toda e qualquer manifestação discursiva que pretende
179
ter alguma validade impessoal, gerando adesão no ouvinte ou leitor é, desta forma, retórica.
Nossos sistemas de ensino, universidades, escolas, salas de aula, alunos e alunas e, claro,
professores e professoras, não fogem a essa regra.
Penso que esse conceito grego nos é oportuno, tomando cada aula como um momento
insubstituível, e o professor nesse espaço privilegiado. A escola e da sala de aula congregam
professores e alunos em uma dimensão de espacial: a obrigação social faz com que alunos
diariamente estejam presentes nesses espaços; e a dimensão temporal se dá pois existem
momentos em que os alunos estarão dispostos frente a frente com o professor e,
metaforicamente, frente a frente com o conhecimento que esse professor poderá desenvolver
com eles. Durante um ano letivo muitos são os momentos oportunos que desenvolvem
aprendizagens: aulas expositivas, trabalhos, atividades, exposições, leituras, avaliações, e
cetera. Mas isso não significa dizer que esses momentos oportunos serão aproveitados
efetivamente, já que eles dependem de vários fatores: da agitação da turma, da disposição
para o estudo, do calendário, do clima, e, claro, do professor. Mesmo assim, a aprendizagem
que não acontece em um desses momentos possivelmente nunca mais será produzida, pois o
momento era aquele: quando os alunos poderão novamente ter a oportunidade de
compreender a escravidão no Brasil? Quando serão convidados novamente a conhecer
humanos tão diversos quanto os romanos, os persas ou os incas? Cada um desses momentos é
potencialmente único para a construção de um conhecimento ou pensamento sobre a história.
Por isso defendo, ao início desse capítulo que conclui algumas reflexões sobre a
retórica, um professor-orador, sensível aos movimentos e aos vetores que perpassam uma sala
42
“Whom, then, do I call educated? (…) First, those who manage well the circumstances which they encounter
day by day, and who possess a judgement which is accurate in meeting occasions as they arise and rarely misses
the expedient course of action; next, those who are decent and honourable in their intercourse with all with
whom they associate, tolerating easily and good-naturedly what is unpleasant or offensive in others and being
themselves as agreeable and reasonable to their associates as it is possible to be; furthermore, those who hold
their pleasures always under control and are not unduly overcome by their misfortunes; (…) fourthly, and most
important of all, those who are not spoiled by success (…) but hold their ground steadfastly as intelligent
individuals. (30 –32)
This pragmatic, personal, and socially conscious recapitulation of what it means to be “educated” encapsulates
the principle of kairos in all its nuances: the importance of living by phronesis or “practical wisdom” (which is
itself based on an epistemology of probability) with, always, an intense awareness of occasion, audience, and
situational context. Such is a life based on Kairos”
181
de aula, e cônscio do seu papel nesse espaço. Trata-se, em grande medida, de uma construção
idealista, um “tipo-ideal” de professor. Produzo esse exercício para, em algum limite, pensar
em uma hipótese norteadora, que me fará analisar as aulas dos professores. Quem é então esse
nosso contrabandista, para retomar a metáfora que iniciou a primeira parte dessa tese? Se ele é
um bom orador, nos padrões da retórica clássica e também da nova retórica, é preciso situá-lo
na intersecção da divisão tradicional da retórica, que situa o processo de persuasão ou
convencimento (suas provas) na relação sempre complexa entre ethos, pathos e logos. Tomar
essa opção significa mais do que uma técnica. Pensar em um professor-orador significa
assumir uma concepção filosófica que agrega as pessoas na relação de produção do seu
discurso:
persuade-se pelo caráter [ethos] quando o discurso tem uma natureza que
confere ao orador a condição de digno de fé; pois as pessoas honestas nos
inspiram uma grande e pronta confiança sobre as questões em geral, e inteira
confiança sobre as que não comportam de nenhum modo certeza, deixando
lugar à dúvida. Mas é preciso que essa confiança seja efeito do discurso, não
uma previsão sobre o caráter do orador (Retórica, I, 2, 1356a).
Os traços do caráter devem ser mostrados ao auditório para criar uma boa impressão,
ao longo do próprio ato de enunciação. “O orador enuncia uma informação e, ao mesmo
tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá” (BARTHES, 1970: 212 apud MAINGUENEAU,
2007, p. 13), plasmando o ethos em qualquer enunciação, sem ser necessariamente enunciado
diretamente. Aristóteles escreveu que um orador pode se valer de três qualidades básicas a
serem projetadas em seus discursos: a phronesis, ou prudência, a arete, ou virtude, e a eunoia,
ou benevolência.
Valores que não nos escapam como dotados de importância, mas serão eles os
necessários para criar a aproximação com os alunos e alunas? Como dito acima, o ethos é um
princípio de autoridade moral que demanda uma capacidade de mobilizar virtudes, a fim de
responder ao outro lhe inspirando confiança. Como aponta Meyer (2013, p. 170), o ethos vai
da sabedoria universal ao saber particular, de um princípio de humanidade à seriedade técnica.
Não basta apenas a capacidade técnica, a construção do ethos demanda outros valores,
especialmente no interesse genuíno em importar-se com o desenvolvimento de seus alunos e
alunas. Meyer (2013, p. 172) complementa que, para o ethos operar plenamente ele deve
inspirar sentimentos de comunidade, com reciprocidade entre o orador e seu auditório (que
vai da admiração pelo outro até a vontade de tomá-lo como modelo). Esses sentimentos
transparecem até mesmo no mais essencial da sala de aula: se o professor não experimenta
prazer na área de conhecimento que ensina, como poderá ele fazer recortes interessantes? Se
não houver convencimento dos próprios professores, como legitimar aquilo que ensinam?
Como compreender os processos de seleção cultural que tornam aquele saber legítimo?
184
(SEFFNER, 2016, p. 52). Há a necessidade de ir além tanto nos conteúdos quanto nas formas
de relação com os jovens.
A partir do que conceitua Seffner (2016, p. 54), o professor pode ser entendido como
um adulto de referência:
diferentes alunos e alunas, levando em conta os mais variados marcadores (classe, gênero,
raça, religião, ideologia, geração, e cetera)?
A não compreensão (ou supervalorização) do auditório pode gerar dois problemas
diametralmente opostos, mas de igual gravidade. Por um lado, Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2005, p. 34-35) apontam que, caso a argumentação vise somente um auditório particular,
corre-se o risco do orador, na medida em que se adapte ao modo de ver dos ouvintes, apoiar-
se em teses que lhe são estranhas ou mesmo opostas às que ele intentava desenvolver. Por
outro, a distinção entre adesão e verdade nos é pertinente: quaisquer posições, mesmo as
consideradas éticas, morais e verdadeiras são precárias, já que de nada adianta seu caráter de
verdade ou ética se o auditório não aderir.
Por mais racional que seja a pretensão, materialmente, um auditório é sempre
particular. Aristóteles (Retórica, I, 1, 1355a) aponta o que nos parece óbvio, de que mesmo
com a ciência mais exata não seria fácil persuadir certos auditórios. Falava isso ao tratar das
multidões, diferenciado do ensino: “Pois o discurso científico é próprio do ensino, e o ensino
é aqui impossível, visto ser necessário que as provas por persuasão e os raciocínios se formem
de argumentos comuns”. Com base no que foi dito anteriormente, aponto que mesmo no
ensino essa ciência pura não é plena. Seja o convencimento, seja a persuasão são elementos
nem sempre relativos apenas à ação do orador, mas também às relações que se estabelecem
com o saber e com a escola, em amplos sentidos (CHARLOT, 2000). Para que eles se
efetivem, o professor-orador deve dimensionar sempre que sua fala se situa nos três polos da
retórica, em especial levando em conta toda a instabilidade do pathos.
Uma relação com o auditório que comporte os imprevistos, frutos da relação direta
entre o professor-orador, seu discurso e o pathos de seus alunos e alunas. Frente a jovens
repletos de diferenças (de gênero, raça, classe, pertencimento religioso, orientação sexual,
origem familiar, valores culturais, credo político, juízos morais, e cetera), o resultado é a
convivência de diferentes culturas juvenis nas relações com a escola, professores e entre si
(SEFFNER, 2016, p. 51). Dessa convivência pululam questões, que não tardarão em irromper
na sala de aula: “Pepino, o Breve ... mas que nome é esse?”, ou “Como assim a Cleópatra
casou com o seu irmão?”. Muitas vezes esses imprevistos, fruto das reações das paixões dos
alunos e alunas, podem revelar-se caminhos produtivos de aprendizagem, já que com eles é
possível estabelecer conexões entre essas paixões e os conteúdos formais. Portanto, o
professor-orador está atento aos movimentos de seus alunos e alunas, percebendo que
piadinhas, incompreensões, perguntas descabidas ou curiosidades aleatórias, vendo nessas
189
ações possibilidades de aprendizado. É um orador pois sabe que, tanto no aprendizado quanto
na retórica, os elementos afetivos e racionais entrecruzam-se.
Cícero apontava uma habilidade muito interessante dominada pelos grandes oradores, que
tornava o discurso mais agradável aos ouvintes do que aquele que tinha como suporte a
leitura: a memória. Na herança direta dos oradores romanos, que identificavam o grande
orador sobretudo como alguém dotado de ampla cultura, entendo que o professor deve “saber
história” (por mais que isso possa parecer óbvio). Entendo esse “saber história” como a
capacidade de construir uma narrativa densa não apenas em quantidade de informações,
dados, acontecimentos, e cetera, mas especialmente na qualidade de relacioná-los ao
argumento central da aula desenvolvida. Ademais, o momento dialético em que os alunos
perguntam, concordam, discordam, é privilegiado para relacionar essa erudição dos
professores, visando melhor explicar e argumentar com seus alunos e alunas. Quintiliano
(Institutio Oratoria, II, XXI, 15), nesse ínterim, dizia que o orador não consegue conhecer
todas as causas, mas deve estar em condições mínimas de poder aprender a falar de todas,
aprendendo conforme a necessidade dessa fala. Lembra o nosso professor-orador, que deve
dominar os caminhos da historiografia acadêmica e da verdade histórico-didática. Ele efetua
um transito com os dados da História; não os abandona, mas coloca-os a serviço dos
questionamentos, das situações a serem investigadas, das reflexões conceituais que visam um
“pensar histórico”
Todavia é possível lembrar-se da metáfora da “prensa do tempo” de Perelman como
um dos grandes limitadores da problematicidade. Além da questão óbvia do tempo (que na
sala de aula é restrita a um punhado de períodos semanais), há uma pressão para que tanto o
locutor busque os argumentos que julga mais persuasivos ou favoráveis, quanto os
interlocutores decidam, mesmo que nenhum dos argumentos pareça completamente
convincente. Isso porque o debate que não produza respostas perde a finalidade, transforma-se
em diletantismo, e perde também o próprio kairos:
Essa pressão pelo desfecho, pela resposta, nos faz perceber o quanto existem
condicionantes para que uma verdade seja aceita. Também nos faz reconhecer o caráter
provisório de muitos enunciados pronunciados, “os quais serão verdades de conhecimento,
193
(...) a retórica apenas armadilha aqueles que a querem ignorar, aqueles que
pretendem não saber ou, pior ainda, aqueles que realmente não sabem mas
julgam saber e são felizes assim, por comodidade, por arrogância ou
suficiência, por facilidade, por estupidez. (MEYER, 1998, p. 148)
194
O professor não quer convencer pois ele é um “doutrinador”, mas por que opera com
uma verdade, construída pela historiografia acadêmica, e transposta para a sala de aula a partir
de variados procedimentos. Retomando a citação de Santo Agostinho (ao final da introdução
do capítulo 1.3), de que valerá possuir a verdade se não detemos as armas para fazê-la valer?
Uma verdade não absoluta, mas construída a partir de um criterioso trabalho de crítica às
fontes históricas, inteligência, escrita e escolha ética. Não dominar técnicas persuasivas, ou
mesmo sustentar que o conhecimento cientifico prescinde delas é, a meu ver, tolice.
Mas, como reflexão final, há garantias nesse processo? É claro que não. É possível
que, mesmo com toda retórica, simplesmente não obtenhamos adesão, e assim não
conseguiremos ensinar História para nossos alunos e alunas. Quintiliano dizia, contrariando
outros pensadores da retórica antiga, que a pura persuasão não deve ser o fim da retórica: “é
certo que o orador busca a vitória, mas, se falou bem, ainda que não alcance vencer, terá
cumprido o que está contido da sua arte.” (Institutio Oratoria, II, XVII 23). Aqui está o nosso
professor-orador: não pode falar o que quer; o “falar bem” o vincula a um compromisso com
a verdade histórica, a uma relação ética com seus alunos e alunas. Mesmo que sua persuasão
não seja sempre efetiva, sua obrigação é esse “falar bem”, que “abarca de uma vez todas as
virtudes da oração e também a personalidade do orador, já que não pode falar bem quem não
é um homem de bem.” (Institutio Oratoria, II, XV, 34). O professor-orador é aquele que fala
bem!
195
O que fazem, efetivamente, os professores em sala de aula? E o que fazem seus alunos
com aquilo que lhes dizem os professores? São as perguntas de ouro, sempre postas, e nunca
plenamente respondidas... A Parte II desta tese pretende explorar e aprofundar as premissas
desenvolvidas na Parte I, analisando diretamente as aulas das professoras e professores de
História observados.
O primeiro capítulo, 2.1, destina-se a problematizar os caminhos metodológicos desta
tese, explicando o método etnográfico desenvolvido (que implicou em observações diretas de
aulas de cinco professoras e professores, além de entrevistas com os mesmos, questionários
respondidos pelos alunos e coletas de materiais de aula), apresentando o conceito de “gênero”
como um marcador de leitura importante para perceber as posturas e construções
argumentativas de professores ou professoras, tecendo considerações éticas (a respeito das
garantias e riscos dos envolvidos na pesquisa) e apresentando as professoras e professores
protagonistas das observações.
Os demais capítulos passam a ser organizados levando em conta cortes produzidos nas
observações, que dialogam diretamente com os elementos retóricos das aulas, o ensino de
História e as narrativas desenvolvidas. Como já apontei anteriormente, segundo a retórica, só
se obtém sucesso comunicativo pleno quando o existe o equilíbrio entre o ethos, o pathos e o
logos. Desta forma, organizarei os capítulos 2.2, 2.3 e 2.4 tendo essa divisão clássica como
referência, alertando que por vezes as categorias se interpenetram, o que apontarei quando for
o caso.
O capítulo 2.2 centra-se no ethos, nas construções que atuam na projeção do professor
como um professor-orador. No 2.2.1 será problematizado como os valores dos professores e
professoras embasam a construção das aulas, dos conceitos aos recortes efetuados. No 2.2.2
indago quais serventias os professores e professoras atribuem ao seu trabalho e ao
conhecimento oferecido pela História. No 2.2.3 procuro perceber se os professores possuem
consciência de que atuam como oradores, percebendo que estratégias eles lançam mão para o
convencimento de seus alunos e alunas, normalmente advindas de suas experiências. No 2.2.4
as noções de gênero são problematizadas, tanto nas performances dos professores e
professoras até nas constituições de suas narrativas de aula. Por fim, o 2.2.5 problematiza os
professores como adultos de referência para seus alunos e alunas, compreendendo como os
mesmos lidam com a emoção no cotidiano de suas aulas.
196
43
Como aponta Carla Beatriz Meinerz (2009), “a ciência é uma reconstrução interpretativa que exige, no
mínimo, afastamento e surpresa diante do fenômeno. O paradoxo está no fato de o distanciamento ser sempre
transpassado pela subjetividade do pesquisador, pelo fato de que somos seres sociais investigando fenômenos
sociais. (...) Se a grande questão é fazer uma ciência comprometida com a vida, o compromisso social e a ética
198
A coleta dos dados deu-se na seguinte dimensão: análise de cenas44 de sala de aula de
cinco45 professores e professoras, divididas em cenas de professores homens e professoras
mulheres, de escolas públicas e de escolas particulares. A escolha dos professores levou em
conta critérios de localização geográfica (optando por professores que lecionassem em escolas
de diferentes regiões da cidade de Porto Alegre) e público atendido (optando por escolas que
atendessem diferentes grupos em termos de classes sociais, redes de ensino e
territorialidades). A forma de acesso aos professores selecionados comportou também um
elemento subjetivo, mas essencial: tais professores eram reconhecidos como comprometidos e
competentes, “bons professores”, a partir de recomendações de pesquisadores da área do
ensino de História, de colegas de trabalho e mesmo conhecidos a partir das minhas relações
profissionais e pessoais. Para cada professor ou professora analisada, a coleta de dados seguiu
o seguinte procedimento:
1) acompanhamento de aulas do professor ou da professora, priorizando os momentos
expositivos, registrando argumentos, marcas de estilo, reações dos alunos, formas de uso e
escrita no quadro, ênfases na voz, posturas, olhares, e cetera. O áudio das aulas foi gravado e
a exposição oral posteriormente transcrita, para além dos registros no diário de campo.
Durante estas observações foram colhidos também os materiais didáticos utilizados pelos
professores, bem como registradas com fotografias imagens projetadas, usos do quadro e
exemplos de trabalhos produzidos pelos estudantes.
2) após a observação de certo número de aulas do professor ou professora, foi
solicitado que os alunos respondessem a um questionário. Este questionário inquiria aos
alunos que relatassem as passagens da aula que mais lhes marcaram, seja em termos de
argumentos, postura ou estilo do professor. Esse procedimento pretendeu coletar quais marcas
de estilo e argumentos foram mais recorrentemente citados pelos alunos, bem como questões
gerais da relação dos mesmos com seu professor ou professora. O questionário encontra-se no
Apêndice A.
tornam-se elementos centrais para quem se dispõe a pesquisar. Justamente nesse ponto evidencia-se a questão
metodológica, expressa na possibilidade de ouvirmos e reconhecermos os sujeitos que pesquisamos, como
portadores de um discurso tão racional como o nosso, de uma linguagem diferenciada, de um conhecimento
prático”.
44
Conceito desenvolvido pelo professor Fernando Seffner, que propõe o registro denso de dois fluxos de
performances em sala de aula: as posturas, argumentos e estilo do professor e as reações e atitudes dos alunos.
(SEFFNER, 2010, p. 218-221)
45
O número inicialmente proposto de professores e professoras observados era oito, mas questões internas e
externas fizeram com que esse número fosse reduzido. Explico com mais profundidade essa mudança no
capítulo 2.1.3.
199
Optei por apresentar todas as citações de falas das professoras e professores com
aspas, mesmo quando recuadas, de forma a distinguir essas falas das demais citações de
cunho bibliográfico.
Além destes dados coletados, a análise levará em conta (como já foi apontado na Parte
I) a minha própria carreira como uma fonte, problematizando eventualmente as minhas
experiências, memórias, saberes da docência e inquietações de longo tempo, que seriam um
desperdício não narrar. Desta forma a escrita que vem dos capítulos anteriores e virá a seguir
evoca algumas situações e cenas próprias juntamente com as outras análises de observações e
autores consultados. Em muitos momentos essa tese proporcionou um verdadeiro diálogo
entre as minhas concepções para o ensino de história e aquilo que os professores e professoras
diziam e faziam. Este diálogo, como não poderia deixar de ser, percorre parte das análises.
Na medida em que uma tecnologia tem como objetivo criar certos significados, ela
interessa-se tanto em mapear o gênero a que ela se direciona, quanto pela constituição deste
gênero, na lógica de uma representação constituinte, conforme anteriormente desenvolvido.
Uma teoria, ao ser validada por discursos institucionais e adquirir poder ou controle
sobre um campo de significação, pode funcionar como uma tecnologia de gênero. De Lauretis
(1994, p. 236) aponta o quanto a maioria das teorias de leitura, escrita e sexualidade,
independentemente da matriz cultural, são construídas sobre uma narrativa masculina de
gênero (e que se reproduzem inclusive nas narrativas feministas). Defendo que o mesmo
funcionamento pode ser associado às narrativas históricas hegemônicas, que em muitos
momentos constroem-se na perspectiva de gênero binário, masculino versus feminino. Não se
trata necessariamente de uma oposição conflituosa, mas de uma diferença marcada no
204
discurso, e que dá sentido ao processo narrado. Scott traz alguns exemplos de como o gênero
estrutura certas narrativas:
46
Disponível em: conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf. Acesso em: 20/04/2018.
206
Quem são e onde atuam os atores e atrizes que gentilmente abriram as portas de suas
salas de aula para as observações dessa pesquisa? Essa tese problematiza a atuação de cinco
professores de História. Os dois primeiros professores foram observados na perspectiva de
uma observação exploratória, visando testar a adequação dos questionários e das questões das
entrevistas. O número de aulas observadas foi bastante inferior, em relação às demais
observações.
O primeiro deles, observado em outubro de 2015, tratou-se de um homem de 28 anos,
formado em História na UFRGS (em 2011), com mestrado em Educação (defendido em 2014)
e doutorando também em Educação. Possuía, no momento da observação, experiência de
cerca de cinco anos de docência em cursinhos pré-vestibulares, além de um ano lecionando
para turmas de terceiro ano do Ensino Médio. Foram observadas seis aulas para turmas do
terceiro ano do Ensino Médio em uma escola de classe média alta da região central de Porto
Alegre. Chamarei esse professor de Germano.
O segundo professor observado, em abril de 2016, trata-se de outro homem, com cerca
de 50 anos de idade, e mais de 25 de experiência em educação básica, tendo trabalhado nos
anos finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio, em cursinhos e na educação de jovens
e adultos, em Porto Alegre e outras cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul. A
aula observada deu-se em uma escola da rede estadual central de Porto Alegre (que atende
alunos de classe média baixa, muitos dos quais trabalhadores) com uma turma de 2º ano do
Ensino médio do turno da noite. Apenas uma aula de dois períodos pôde ser observada já que
uma mudança de horários na escola tornou impossíveis outras observações. Chamarei esse
professor de Laerte.
Mesmo essas observações tendo tido um caráter exploratório, acredito que os dados
coletados possuem grande riqueza para essa pesquisa, e dessa forma não serão descartados. A
falta de sistematicidade dessas observações será apontada, quando for o caso. Após o processo
de qualificação desta tese, as observações foram retomadas, e outras duas professoras e um
professor foram observados. Primei por um acompanhamento mais sistemático e longo, com
aproximadamente um mês contínuo para cada, quando os horários assim o permitiram.
A terceira professora observada, entre o período de abril até junho de 2016, tem
aproximadamente 55 anos e mais de 30 de docência no Ensino Fundamental e Médio. A
207
maior parte da docência aconteceu em uma escola privada de Porto Alegre que atende um
público de classe média alta, local onde foram observadas duas turmas de 9º ano do Ensino
Fundamental. Foi observado um total de 18 períodos. Chamarei essa professora de Isadora.
A quarta professora tem 32 anos e sete de docência, atuando em uma escola estadual
da região central de Porto Alegre com alunos de Ensino Médio de classe média e média baixa,
onde foi observada, além de outra escola da rede estadual com alunos de Ensino Fundamental.
Formada desde 2008, tem mestrado em História e atualmente é doutoranda também em
História. Foram observadas cinco turmas de primeiros e segundos anos do Ensino Médio,
somando um total de 16 períodos, entre julho e agosto de 2017. Chamarei essa professora de
Renata.
O quinto ator, professor de uma escola da rede municipal de Porto Alegre, localizada
em região de periferia e que atende a um público de baixa renda, tem 34 anos. É formado em
História na UFRGS (2006), possui mestrado em História e atualmente faz doutorado em
Sociologia, também na UFRGS. Tem cerca de 14 anos de experiência de sala de aula, tendo
atuado em escolas do interior do estado e da capital, tanto em Ensino Fundamental quanto em
Ensino Médio. Foram observadas três turmas dos anos finais do Ensino Fundamental (duas
turmas de 8º ano e uma turma de 9º ano), totalizando 11 períodos entre setembro e novembro
de 2017. Uma greve dos professores interrompeu a observação, que foi finalizada assim que
os mesmos retornaram. Chamarei esse professor de Juliano.
A pesquisa pressupunha mais três observações: um professor da rede privada de
aproximadamente 40 anos, uma professora da rede estadual de aproximadamente 35 anos e
um professor também da rede estadual de cerca de 50 anos. Infelizmente a dificuldade em
negociar a observação na escola privada, uma longa greve da rede estadual de ensino do Rio
Grande do Sul, somadas à minha dificuldade em conciliar horários de trabalho com as
observações, inviabilizaram essas últimas três observações. Acredito que a principal perda
dessas faltas seja nas possibilidades de perceber recorrências argumentativas.
208
Figura 2 - Exemplos das produções dos alunos, na atividade "Todo o conhecimento do mundo”.
algum momento ela procurou relacionar a proposta com um filme (que me pareceu ter sido o
disparador do projeto):
Percebi, durante essa aula de apresentação dos trabalhos, uma aluna que
aparentemente não havia produzido o seu, mas que havia pensado em uma alternativa de
última hora a partir da curiosidade. Parecia haver um conflito latente entre a professora e a
aluna, o qual naquele momento se materializava em uma discordância a respeito da pergunta
que motivou o projeto. Ao final da aula, essa aluna novamente inqueriu a professora a esse
respeito, o que a motivou a reafirmar sua proposta com a atividade:
Que valor subjaz toda essa proposta? A problematização do mundo. Em uma aula
anterior (2 - 91 - 12/05/2016) a professora Isadora já havia explicitado este valor (presente em
outras de suas práticas) de forma mais clara: “ensino sem provocação não é ensino (...) ensino
sem provocação é exigir de vocês que decorem coisas que corrijam coisas como eu acho que
são e que outros podem pensar diferente”. Não se trata de um conteúdo curricular, constante
em documentos da escola, livro didático ou na Base Nacional Comum Curricular; trata-se de
plasmar um valor caro à professora em questão, de abrir a disciplina de História a uma
compreensão mais complexa do mundo, fazendo-o operar dentro do currículo. Como a mesma
afirmou na entrevista: “não tem como as coisas do mundo, hoje, não entrarem na sala de
aula”.
A professora Renata também procedeu de forma similar. Uma de suas aulas desviou
do conteúdo convencional para dar conta de uma problemática considerada dotada de valor.
Organizou uma saída de campo para que os alunos assistissem ao documentário “Central”,
213
“não é dizer que as pessoas são boazinhas ou más, mas é pensar esses seres
humanos qual é a possibilidade de agir, de agência que eles tem dentro desse
sistema, e o que é mais absurdo na nossa sociedade, é o crime organizado ser
uma alternativa de vida que se tem, de escolha de vida que se quer, o crime
organizado ser uma [escolha de vida].”
Renata não tinha uma solução para esse questionamento. No debate subsequente, após
uma série de ideias dos alunos (que em geral envolveram propostas de punição maior ou
mesmo pena de morte com cadeira elétrica) ela mesma enunciou que não possuía essa
resposta. Nesse caso específico, não se tratou de oferecer uma resposta para os alunos, mas
214
sim ensejar um processo de problematização: “eu não consigo chegar aqui com uma solução,
eu consigo pensar alternativas pra problematizar, é uma coisa que deve ser problematizada”.
Novamente os valores considerados urgentes pela professora são levados à sala de aula, não
como afirmatividade, mas como problematicidade. Possibilitando o diálogo, como espaço em
que o outro pode falar em liberdade na medida em que se considera apto a compreender e
reagir a um discurso (MOSCA, 2001, p. 42), Renata deseja forçar os interlocutores a
justificarem-se, na medida em que esse processo desencadeia reflexões a respeito das próprias
afirmações em relação às posições contrárias. Carrega, portanto, tanto um valor relativo à
problematizar o sistema prisional, como a problematicidade em si.
Um processo similar pôde ser observado em outro dos nossos atores. O professor
Juliano, na primeira de suas aulas observadas, recorreu a um acontecimento contemporâneo
de ampla repercussão midiática enquanto elemento disparador para discussões e
problematizações junto aos alunos. Em setembro de 2017 uma mostra de arte intitulada
“Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em exibição no Santander
Cultural de Porto Alegre, foi cancelada prematuramente após uma onda de protestos nas redes
sociais e no próprio local da exposição. Partindo de grupos conservadores e outros
pretensamente liberais (como o MBL – Movimento Brasil Livre), os queixosos associavam
algumas das obras à blasfêmia contra símbolos religiosos e também à apologia à zoofilia e
pedofilia. A mostra reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT,
questões de gênero e de diversidade sexual.
Dessa forma, um “parêntese” na aula do professor Juliano construiu uma proposta de
aula que intentava problematizar estes acontecimentos recentes a respeito do Queermuseu. A
mesma aula que deu início a essa proposta foi observada em três turmas diferentes (C22, C23
e C33). Juliano iniciou situando os alunos, dizendo que as aulas anteriores trataram de
comparar a escravidão no Brasil Colônia com a escravidão contemporânea. Após isso
introduziu um “pequeno parêntese”, desenhando um parêntese imenso em cada lado do
quadro. A primeira aula (1 - C22 - 13/09/2017) teve um início difícil, já que a discussão que
circulou pelas redes sociais parece não ter atingido os alunos das turmas em que o professor
levou a problematização. Além disso, conceitos que o professor foi lançando, como
“catálogo”, “exposição”, “censura” pareciam ser bastante estranhos aos alunos. A negociação
das distâncias e inserção da problemática de fundo da aula iniciou quando o professor
começou a questionar os alunos se eles gostavam de arte. A conversa foi associando
elementos como desenho/pintura, filmes, desenhos, séries, música, literatura, teatro, escultura,
dança e grafite. Mesmo que o andamento fosse difícil, pois as interrupções eram frequentes e
215
o professor utilizava poucos interditos (que parece ser uma característica respeitosa de lidar
com o público escolar), a turma C22 ficou um bom tempo em torno da discussão entre arte e
beleza, do gostar e do não gostar, o que acaba limitando um pouco o desenvolvimento da
proposta. Mesmo assim, percebi que Juliano recorrentemente lançava a problemática de fundo
da aula: “gostar ou não gostar, isso não define o que é arte. Por quê? Porque o que eu gosto
vocês podem não gostar, o que eu acho bonito vocês podem não achar ...”.
Na turma seguinte (aula 1 - C33 - 13/09/2017), já esperando que os alunos não
tivessem tomado conhecimento da polêmica, Juliano iniciou a explicação com mais calma,
contextualizando de forma mais detalhada a proposta da exposição e seu cancelamento.
Repetiu então a questão dialógica: “Quem aqui gosta de arte?" "Que tipo de arte vocês
gostam?” Conforme os alunos foram respondendo, o “grande parêntese” foi sendo preenchido
com aquilo que os alunos traziam: desenho, pintura, grafite, dança, música (hip hop como
junção dos MCs, grafite e dança), estilistas / moda, teatro, cinema, futebol arte, circo e
televisão. A turma se mostra bem mais participativa e produtiva que a anterior. Após um
conjunto de questões em sequência, Juliano levou a discussão para a música, o que gerou
ainda mais debates entre os que defendiam o funk por um lado, e o reggae por outro, com a
proposta de mostrar para os alunos que, dentro de um mesmo elemento (no caso a música),
existem muitas subdivisões das quais nos aproximamos ou nos distanciamos. A proposta era
levar essa percepção para a arte, relacionando que gostar ou não gostar é diferente do proibir e
do permitir.
O caminho narrativo intentado pelo professor Juliano ia além da exposição
Queermuseu. A proposta tinha uma problemática de fundo, que propunha situar a própria
noção de arte como uma construção aberta, e cuja redução ao gostar ou à noções de beleza é
sempre um ato excludente e relativo. Também como fundo parecia surgir uma ideia de
tolerância às mais variadas formas de expressão artística.
Este conjunto de aulas relatado acima, como já explicitado, tinha sua fundação nos
valores atribuídos a eles pelos professores, e cuja proposta de fundo foi lançar esses valores
para a apreciação do auditório escolar. Por ser um valor, segundo Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005, p. 85-86), implicitamente sempre se sabe que não existe um auditório ou acordo
universal a esse respeito, o que foi percebido pelos professores na medida em que associam os
valores à uma dimensão problematológica. Uma consequência da utilização dos valores é o
estabelecimento de hierarquias determinadas por esses valores. Por exemplo, uma maior
valorização da realidade humana estabelece uma hierarquia que a coloca acima de todos os
outros seres existentes sobre a terra (CUNHA, 2010a, p. 17). O mesmo se apresenta nos
216
Lidamos, nós professores, com a vida: com nossas próprias, e com as de nossos
alunos. Ambas em movimento. As de nossos alunos, trilhando o caminho proposto por
Larossa (2015, p. 36-37) e que serve de epígrafe desta tese: de uma vida, um tempo e um
mundo potencialmente cada vez mais dignos. As nossas, em uma permanente preparação
destas trilhas. Podemos não constituí-las (que poder haveria de ser necessário para tal), mas
certamente ajudamos a calçá-las.
Como já problematizei no subcapítulo 1.2.2, e também no anterior, os professores de
História ensinam imbuídos de valores e serventias atribuídas para os conteúdos desenvolvidos
217
“Isso é um erro talvez dos professores que estão começando querer jogar o
que se faz no mundo acadêmico pro ensino médio. São completamente
diferentes ... Tu utilizar uma linguagem acadêmica é uma coisa que distancia
muito o professor do aluno, especialmente no ensino médio ... tu te distancia.
No ensino fundamental então ...”
“na sala de aula, o professor de História ele também tem alguns limites, que
é o compromisso que ele tem que ter com a verdade, mas ele sabe que não é
neutro, ele sabe que a seleção dos conteúdos já altera os efeitos de verdade,
218
vamos dizer assim. Então eu acho que a verdade é um horizonte que tem que
nos manter na linha, mas a gente sabe que é um horizonte bem amplo.
(...)
quando a gente faz, como eu faço, essa história temática, esse trânsito entre o
passado e o presente quase constante, o anacronismo as vezes ele é
acentuado. O que eu seleciono da história ... muitas vezes é pra atender essas
demandas do presente, que os alunos trazem ou eu trago.”
Cabe uma pequena reflexão sobre o anacronismo. Jacques Rancière (2011, p. 22) parte
da hipótese de que o anacronismo não se relaciona com as práticas metodológicas ou
epistemológicas da História, mas sim como um “conceito poético que serve como solução
filosófica da questão sobre o estatuto da verdade do discurso historiador”. O “pecado” do
anacronismo vai além da confusão de datas; está na confusão de épocas, e seus regimes de
verdade específicos, “relações da ordem do tempo com a ordem do que não está no tempo”
(RANCIÈRE, 2011, p. 25). O anacronismo então é o que não pertence ou não convém ao
tempo que é situado. Ideia essa a qual Rancière (2001, p. 49) se opõe:
“eu geralmente vinculo a um tema que tem algum tipo de relação com o
conteúdo, quando tem relação com o conteúdo eu tento vincular a um
aspecto mais estrutural, trago alguns acontecimentos dos elementos micro
para ilustrar e sempre tento fazer aquele vínculo com o tempo de agora e
com a vida deles assim ... eu sempre brinco que o ensino de História na
escola é o reino da teleologia e do anacronismo, porque tem que as vezes
fazer algumas comparações que, inicialmente me doíam, quando eu saí
assim muito ... mais rígido da formação, mas hoje eu sinto que é meio que
necessário pra ti estabelecer um diálogo.” [Entrevista com o professor
Juliano]
Naquele momento todos os alunos estavam trabalhando no mapa mental, com ritmos
diferentes em cada grupo. O foco era buscar a resolução dos problemas de forma autônoma,
respeitando dentro do possível as velocidades dos alunos e alunas. Na entrevista Isadora
explicita esse funcionamento: “eu raramente dou uma resposta pronta, em geral eu respondo
uma pergunta com outra pergunta (...) no sentido de fazer com que ele ... ele não tá achando o
caminho, então eu to dirigindo o caminho dessas perguntas”. Tal ação foi perceptível ao longo
das observações, especialmente durante as aulas expositivas. Cabe uma ressalva a respeito da
expectativa de resposta projetada no ethos do professor pelos alunos, que pode limitar essa
prática, e que será desenvolvido no capítulo 2.4.1. Não apenas o caráter problematizador é o
objetivo central da prática pedagógica da professora Isadora, como também objeto de reflexão
constante, a fim de se aperfeiçoar:
critérios de utilidade. Os professores e professor a seus alunos a uma dimensão social bastante
ampla. Em alguma medida acreditam que a escola, como lugar social de produção de saberes,
ainda é capaz, “por seu poder de modelagem de habitus, influenciar o conjunto das práticas
culturais e os modos de pensamento que tem curso num país em dado momento.”
(FORQUIN, 1992, p. 36). Não deixa de ser interessante que três dos professores analisados,
separados por gênero, idade, formação e rede de atuação profissional, possuam sentidos de
utilidade muito próximos para suas práticas. Parecem concordar com o que alerta Laville
quando nos fala da fragilidade das narrativas históricas escolares frente à família, grupos de
pertencimento e os meios de comunicação. O temor de uma infrutífera guerra de narrativas,
similar à que vivemos em nosso contexto político e social,
deveria nos levar a não perder de vista a função social geralmente declarada
hoje a respeito do ensino da história: formar indivíduos autônomos e críticos
e levá-los a desenvolver as capacidades intelectuais e afetivas adequadas,
fazendo com que trabalhem com conteúdos históricos abertos e variados, e
não com conteúdos fechados e determinados como ainda são com freqüência
as narrativas que provocam disputas. Senão, essas guerras de narrativas
desencadeadas em todo o mundo vão acabar gerando somente perdedores,
tanto no que diz respeito à identidade nacional quanto em relação à vida
democrática. (LAVILLE, 1999, p. 137)
Viver não basta! É preciso refletir sobre o vivido para que este se torne uma
experiência, transformando aquilo sobre o que ela age. Refletir torna explícito e acessível o
conhecimento do ofício, nascido da ação cotidiana. Experiência como aquilo que acontece,
mobilizando nossas emoções, por sobre as quais lançamos nosso pensamento. Dessa forma, é
diverso à vivência, pois mais que intensidade temos uma elaboração cognitiva. É justamente
essa elaboração que retira a vivência de uma única vida (e por tal finita), transformando-a em
algo passível de repetição (e por tal potencialmente infinito) através das narrativas.
A formação no curso de História parece conduzir-nos à criação de certo número de
experiências, especialmente ligadas às mais variadas temáticas com as quais nos encontramos
ao longo dessa formação. Ao constituí-las, e ao tornarmo-nos professores e professoras,
carregamos para nossa prática o potencial infinito das experiências, desejando associá-las aos
nossos alunos através da narração. Pensamos com a noção de “potência de experiência”,
225
desejando que aquilo que nos tocou também toque aos demais: o professor em sala de aula
pensa: eu tenho que ensinar isso para meus alunos; mais gente precisa disso que eu estou
falando. Se a experiência é singular, ela não é necessariamente individual; pode ser coletiva:
“aquilo que não cabe em ti”. Essa é a forma como o professor Germano apresentou, durante a
entrevista, parte de sua prática:
questão pelos alunos. Renata disse: no começo da carreira, lembrando-se de textos e imagens
marcantes de sua trajetória: “eu tinha vontade que todos vissem”. Tal era a força das
experiências intelectuais e afetivas dessa professora, que as mesmas não cabiam nela. Mas
aponta que isso mudou, sendo que hoje ela percebe que aquilo que a mobiliza não
necessariamente produzir-se-á nos outros. Também com Laerte há uma transformação muito
similar. Disse ele na entrevista, quando dissertava sobre a distância entre a academia e a
História ensinada:
“Existe essa distância evidente, eu não vou dar um texto ... eu fazia isso por
incrível que pareça ... eu mandava os caras lerem textos que eu achava
importante e que todo mundo tinha que ler, era uma coisa absurda ... a gente
quer doutrinar os caras dentro daquilo que a gente pensa, e é impossível isso,
a gente não doutrina dentro de uma ideologia que a gente tem por que?
Porque eles não querem ser doutrinados, e isso é impossível, e até porque
aquilo que a gente quer apresentar para eles as vezes eles não tem a base
necessária para aprender.”
Nesses três casos há (ou houve) um desejo muito grande de que os alunos e alunas
tivessem contato com as experiências consideradas importantes pelas professoras e pelo
professor. Mas eles aprenderam que a sala de aula é mais do que a intensão do professor. Mas
como aprenderam?
Os professores sabem que lidam, em último grau, com processos de convencimento e
persuasão? Um primeiro aspecto é interessante, e revela que os currículos das ciências
humanas pouco tocam na retórica, ao menos quando se trata da educação. Apenas o professor
Germano afirmou ter tido acesso a leituras na formação em Licenciatura, em uma cadeira
eletiva oferecida no curso de História da UFRGS. Parte dessas leituras fez parte de sua
dissertação de mestrado, especialmente em debates historiográficos. Laerte, por seu turno,
também afirmou ter lido textos de Aristóteles (a Retórica) e alguns comentadores, mas no
curso de Filosofia, no qual também é formado, especialmente ao tratar de discursos políticos e
imprensa. Além de algumas referências em cadeiras da universidade, Juliano nunca teve
leituras e reflexões mais sistematizadas. Isadora comentou nunca ter lido sobre retórica, tendo
tido apenas uma experiência em aulas com um professor de teatro da escola onde trabalha,
voltada mais à mnemotécnica (ou actio) e Renata também nunca leu nada específico, mas
apontou utilizar uma série de estratégias conscientes de aproximação com seus alunos e
alunas.
Dessa forma, o saber retórico exercitado pelos professores não está vinculado às suas
leituras (ou não apenas), mas sim de uma experiência exercitada cotidianamente. Podemos
nos lembrar do que ensinam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 8), ao afirmarem que
227
“tu vai ficando intuitivo, porque tu começa a ver que com determinada turma
tu vai poder fazer uma conversa com uma cara mais informal, determinadas
turmas tu vai ter que fazer algo mais … não sei se técnico é a palavra, algo
mais … formal. Então eu reflito isso de forma mais intuitiva, mas desde o
começo eu vi a necessidade de pensar de acordo com a turma como vai ser a
abordagem, as vezes dentro da própria turma ao longo do ano tem que mudar
alguma coisa …”
228
“não que eu não pise na bola ... [mas] intencionalmente eu tenho um respeito
muito grande pelos alunos. Isso é fundamental pra mim. Até porque eu não
fui respeitada por muitos professores ao longo da minha vida como aluna
(...) professores que chamavam os alunos como mentecaptos (...) eu sei que
ainda acontece (...) passa as vezes como uma brincadeira, mas é uma
violência.”
Procurou, ao longo do seu processo de constituição como docente (que segundo ela
ainda segue em pleno curso), distanciar-se de uma figura institucional de autoridade,
buscando tornar-se uma figura de autoridade pelo respeito. Outra grande mudança se deu na
centralidade dos conteúdos. Isadora reconheceu que não lança mão de uma grande quantidade
de conteúdos, como em outrora, tomando-os de uma forma flexível: por um lado “não se
desenvolve conteúdos cognitivos, procedimentais e atitudinais ... sem os conteúdos ... na
escola tu não trabalha sem conteúdos”, por outro eles acabam sendo caminhos para estes
processos. No fundo, não se tratam dos dados que os alunos memorizaram, mesmo que isso
possa ser interessante, mas da problematicidade e da discussão que ensejada, trazendo
constantemente “exemplos do dia a dia para jogar em outras temporalidades”, como vimos no
capítulo 2.2.2. Também se deu conta, ao longo de sua prática, que certos conteúdos (como a
229
Para Laerte, sua experiência atuou como uma prática de validação. Linguagem,
posturas, práticas e métodos ganharam legitimidade (para o próprio professor) na medida em
que foram testados e confirmados. Ele recorda de uma técnica para lidar com indisciplina,
chamada de “disco arranhado” que, testadas pela experiência, obtiveram sucesso:
“tu para de falar, olha praqueles caras que tão conversando, que tão fazendo
qualquer outra coisa que tu não quer que eles façam, tu não precisa brigar, tu
não precisa xingar, ofender. Eu quando comecei a dar aula eu me irritava
muito, eu ficava bravo, eu falava algo pra atingir eles, e isso atinge, por
incrível que pareça: tu para o que tu tá falando, fica olhando para eles, e
repete aquilo que tu falou a 10 segundos atrás. E aí para a aula, e todo
mundo que tava prestando atenção olha pra onde tu tá olhando, aí volta,
repete, e se eles continuarem conversando, repete, fica repetindo como um
disco estragado, e isso funciona muito bem pois a turma se irrita com eles e
não contigo, e eles se sentem constrangidos ... com o ensino médio
funciona.”
“Não com a ideia de persuadir, mas com a ideia de poder criar uma
possibilidade de conversação que abrisse a dinâmica da sala de aula prum
clima diferente, um clima mais leve que aquele que é habitualmente
esperado de transmissão do conteúdo ... passava pelo gestual, no aspecto de
performance mesmo, do corpo mesmo, da associação da voz com o corpo,
mais do que um convencimento pela argumentação retoricamente
construída.”
logos, do pathos e do ethos. A proposta lançada pelo professor deu conta dessa dimensão,
pensando a construção do professor-orador tendo como objetivo tornar-se um provocador de
encontros, diálogos, onde o conteúdo é mais meio do que fim. Nesse processo, mais
importante que os conteúdos é a projeção do orador, inscrito corporalmente na sala de aula,
com gestos, voz, performances. Essa visão das suas possibilidades de atuação modificou-se
conforme suas práticas profissionais em diferentes cenários. A primeira atuação, em um
cursinho pré-vestibular com alunos de 18 a 60 anos, demandou uma preparação específica
para criar uma “possibilidade de conversação”. Em outra atuação, desta vez em um colégio de
elite para turmas de 5ª série, Germano afirmou ter tido que lidar com a dificuldade em
representar a figura de ordem, pela sua juventude e pelo grau de tensão que aquela atuação
envolvia. Deslocou suas perspectivas, aprendendo muito com o professor titular da escola,
que exercia, segundo Germano, “um domínio muito positivo com aqueles alunos.” Esses
deslocamentos tiveram que descentrar valores (ou preconceitos) muito presentes no ambiente
de formação:
“o pessoal [colegas da História] tinha uma trava, que talvez passe pela nossa
formação teórica rigorosa e eventualmente rígida em alguns aspectos que
fazia com que as pessoas olhassem para essa discussão como se fosse uma
coisa menor, questão da expressividade fosse uma espécie de charlatanismo,
contigo querendo fazer algo que não seja expressamente do conteúdo,
matéria, e eu tive que, nas minhas conversas iniciais com os colegas, quebrar
um pouco com essa barreira.”
Uma ideia “inocente” de que a verdade e os fatos falam por si mesmos, não
necessitando de mecanismos de mediação pela linguagem para despertar o interesse dos
ouvintes, muito difundida em certos meios científicos (PERELMAN e OLBRECHTS-
TYTECA, 2005, p. 20). Para os antigos não havia uma separação entre a correção e a beleza,
isso porque o “bem falar”, tal qual nos ensina Quintiliano e Cícero, traziam implícitas essas
duas ideias. “Fala bem” aquele que fala a verdade, e a verdade, por sua força moral, deve ser
“bem falada”. Germano constituiu essa referência não como fruto de um saber acadêmico,
mas ligada à sua experiência prática, intrinsecamente atrelada aos seus valores de referência.
Mais uma vez não significa preterir os saberes de referência, mas inscrevê-los como
um dos componentes da prática docente. Renata, ao ser provocada sobre como esse saber da
experiência se explica, ofereceu uma resposta interessante:
“eu só consigo dar uma aula boa, e ter esse jogo de cintura desse
conhecimento que se aprende só na prática, porque não adianta ensinar antes,
porque eu acho que tive um bom embasamento, e hoje em dia eu não tenho
232
mais tempo para parar sentar e ler tudo isso. Curso que vai dar receita de
bolo tá fadado ao fracasso.”
Ela não desmerece ou deslegitima o saber acadêmico, reconhecendo que foi a solidez
deste conhecimento teórico que proporcionou, posteriormente, sua constituição como uma
professora que reflete e problematiza permanentemente sua prática, na medida em que possui
ferramentas teóricas para fazê-lo. Esse processo construiu grandes modificações em sua
prática, advindas especialmente da reflexão a respeito do público escolar. A partir de um
permanente questionamento, ela disse ter aprendido a “deixar brechas para a espontaneidade
... para as coisas acontecerem”. Assim foram surgindo uma série de marcas de estilo da
professora, testadas cotidianamente na relação com alunos e alunas. Uma de suas práticas de
perceptível sucesso é a correção comentada das avaliações, quando da devolução das mesmas:
“eu chegava super séria para essa aula, ‘ah gente, essa aula é chata mas a
gente tem que dar, tem que falar isso’. Aí quando eu fui percebendo que eles
iam rindo, e um dia um aluno disse assim: ‘ah tá, essa aula eu gosto’. Aí eu
me dei conta. Foram coisas que foram surgindo meio espontaneamente e eu
fui me dando conta, e reutilizando.”
marca o inicio da sua fala. Tomar a palavra sempre representa uma dúvida, uma distância a
ser percorrida, mais ainda na sala de aula, onde as distâncias marcadas tendem a ser maiores.
No processo de negociação dessas distâncias, certas “formas de delicadeza” (MEYER, 1998,
p. 94), tais quais o “como vai?” ou o “bom dia”, aos quais não se espera uma resposta
verdadeira, operam apenas como automatismos: “Seu papel é importante porque visam
atenuar por antecipação o confronto ideológico, ou seja, anulá-lo através de respostas
aparentemente sem questão, por questões para as quais não se exige verdadeiramente
resposta.” (MEYER, 1998, p. 94).
Ao ser inquirido por mim sobre qual seria a raiz dessa diferença, Laerte não sabe
responder. Afirmou apenas que percebe a diferença: “não quer dizer que seja melhor, mas é
diferente”. Mas a frase acima revela algumas pistas: começa dizendo que as figuras
masculinas são escassas na escola, e esse contraste tornaria a figura masculina mais rara, e por
234
tal mais valorizada47. O contraste só existe devido ao caráter relacional das posições de
gênero: o masculino existe em relação de alteridade ao feminino, e vice-versa. Na medida em
que os professores “transmitem uma certa convicção” (e podemos nos perguntar se o
professor julga que as mulheres não transmitem essa mesma convicção), eles ganham os
alunos constituindo um ethos dotado de autoridade.
Então a professora não tem a mesma autoridade do professor? Para a professora
Renata, a autoridade é plenamente possível de ser construída, mas demanda mais cuidados do
que em relação aos professores homens. A mesma relatou ter constituído uma postura
bastante firme nas suas aulas, em parte devido a sua juventude, estatura baixa e, claro, o fato
de ser mulher. Relata também que a postura se mostrou necessária frente a alunos muitas
vezes “abusados”, que já a pediram em casamento, convidaram para jantar e sair nos fins de
semana:
“talvez por isso que esse foco tão grande na disciplina ... eu vejo que é muito
mais difícil o respeito ... não é a mesma coisa conquistar esse respeito entre
um professor homem e uma professora, eu tenho essa impressão. (...) Isso
influencia diretamente na minha prática. Sim, vamos ter que ter disciplina
sim, e de, por exemplo, uma postura de quando eu digo não, é não. Isso
também eu acho que tá relacionado com o fato de eu ser mulher ... eu fico
imaginando o quanto de não que eu já disse, principalmente os guris, ‘ah
sora, mas não precisa né’. Agora no fundamental te pedi pra sair da sala e tu
não saiu, vou ter que chamar a direção. Eu fico imaginando se o professor
homem passa por esse tipo de situação tanto quanto uma professora
mulher?”
47
Como lembrou o pesquisador Gustavo Bandeira, ao gentilmente ler este capítulo, essa escassez numérica não
se repete, necessariamente, quando pensamos na normatividade do espaço. É possível que a escola seja um
espaço quase totalmente ocupado por mulheres, mas que as identidades masculinas sigam sendo valorizadas ou
mesmo hegemônicas. A escola pode ser lida como um espaço feminino, mas cujas narrativas são machistas.
235
Guacira Lopes Louro (1997, p. 107) novamente nos auxilia ao dizer que as representações
clássicas do magistério, que possivelmente operam até nossos dias, associa o professor à
autoridade e ao conhecimento, enquanto associa a professora a um cuidado e apoio mais
“maternal”. Dessa forma, enquanto um professor homem via de regra não sofre resistência ao
ser firme, exigindo silêncio, trabalho, de uma professora espera-se uma postura branda, que
convença pela amabilidade. Quando essa expectativa é rompida, a quebra dos papéis de
gênero esperados pode gerar resistências extras, e marcar a professora.
Mesmo a escola atual não sendo mais, em geral, uma “escola de gênero”, destinada em
grande medida a constituir as boas posturas de meninos e meninas (LOURO, 1997), o
conjunto de representações de gênero socialmente construídos opera cotidianamente na
escola, posto que obviamente não se trata de um local apartado da sociedade. Na medida em
que é um espaço gendrado, ou seja, marcado por especificidades de gênero, essas posições
são sistematicamente (re)produzidas discursivamente em um procedimento denominado por
Teresa De Lauretis como “tecnologia”, constituidora de corpos dotados de sexo.
Isadora apontou em sua entrevista que o fato de ser mulher, na medida em que tem “a
ver com [a sua] essência, não tem como não aparecer na sala de aula”. Ao contar qualquer
experiência pessoal, sua identidade básica de mulher aparece, e marca o que ela pode ou não
narrar. A professora citou dois momentos significativos da percepção de ser mulher: a
primeira quando emagreceu, e percebia inveja proveniente de alunas e colegas, com muitas
frases do tipo “chega viu, tu vai ficar doente”. Afirma também que percebe que “para homens
isso não aparece da mesma medida”. Outra situação, também relacional, diz respeito a
elementos estéticos como a maquiagem e o uso de saias que, segundo Isadora, “puxa o olhar.
Os estereótipos da mulher puxam o olhar”. Nessa mesma perspectiva, a professora Renata
também se lembrou da questão das roupas e do olhar: por muito tempo evitou usar calças
legging devido à maior exposição do corpo, mesmo que utilizasse constantemente a bicicleta
para o deslocamento, ou dirigia-se para dançar antes ou depois das aulas. Essa situação só
mudou com o ganho de experiência e a consequente maior segurança em relação à autoridade
e respeito na sala de aula. Esses relatos revelam tecnologias de gênero que criam significados
na forma de estar das professoras.
Além das tecnologias, outra questão tratada pelos professores é a presença do gênero
nas narrativas de sala de aula. Renata é explícita nesse cuidado:
“as meninas tem que se identificar com essa história. Senão fica uma história
‘tá, a gente não tá aí’. Então agora eu to tentando tratar isso. Inclusive
236
Guacira Lopes Louro (1997, p. 89) nos ensina que, por mais que a escola tenha se
tornado um espaço de ação grandemente preenchido pelo feminino, seu objeto, o
conhecimento, foi historicamente produzido pelos homens, ocupando-se de um universo
marcadamente masculino. Essa narrativa constitui-se como a norma, a normalidade, sendo
que o ingresso de outras narrativas (tanto das mulheres, quanto temáticas da África,
afrodescendentes e indígenas, dentre outras pautas identitárias), ao mesmo tempo em que é
necessário, pode gerar incômodos e reações. Renata se mostrou muito sensível a esta questão:
“eu tento não focar demais nisso [se referindo a história das mulheres e
discussões feministas], e aí não sei se essa postura é boa ou ruim, e não ter
essa postura de embate, esse feminismo de embate (...) porque daqui a pouco
eles vão dizer: ‘ah, isso é coisa de feminista’. E racha o debate. Racha o
diálogo. Então como tratar de uma coisa que existe, de uma desigualdade
que existe, uma desigualdade que muitas vezes eu escuto dos alunos: ‘ah, a
mina é vagabunda’, ‘ah, eu não vou lavar a louça’, ‘ah, a minha mãe faz as
coisas pra mim mesmo’. ... Como tratar disso sem dar o interdito, e ficar só
falando disso. Então daqui a pouco é melhor ter falas mais pontuais, coisas
mais pontuais ... pra que possa abrir uma brecha pro diálogo e pra ver uma
outra perspectiva. Tem uma turma da tarde que está toda hora ‘ah, mas a
sora é feminista’ ... e aí foi muito difícil lidar com essa turma, um
desrespeito muito grande por parte de um grupo de alunos, só que agora eles
vão com a minha cara então o fato de ser feminista, que era ruim no início,
agora virou ‘ah tá, é uma característica da sora’.”
Renata teve a noção plena de se comportar como uma oradora, percebendo que
conforme sua postura e seus argumentos forem montados, o acordo não se efetivará.
Lembremos de Reboul (1998, p. 9), que remete a um ensinamento dos sofistas: a verdade é
um acordo entre subjetividades. Ora, se não houver um acordo inicial, que situe aquele que
fala (e quer falar) e aquele que ouve (e quer ouvir), não há comunicação, e a conversa nem se
iniciará. Pode acontecer de um orador não achar que vale a pena dirigir a palavra a outrem, já
que conversar significa apreço pelo outro. O mesmo vale para o auditório: se esse público não
respeitar, ou marcar o ethos do orador como vinculado a uma posição indesejada (política,
ideológica, social), ele simplesmente não ouvirá o que é dito. Renata, na medida em que
conseguiu efetuar uma leitura do pathos, modula seu discurso de forma que o acordo inicial
não se rompa, e para que assim seus alunos a escutem e eventualmente ampliem suas
perspectivas de mundo.
Esse cuidado não significa que a temática das mulheres deixou de aparecer em suas
aulas. Ao desenvolver a aula 1 - 205 (05/07/2017) sobre a situação prisional e o presídio
237
Central de Porto Alegre, Renata problematizou a diferença entre homens e mulheres dentro da
população carcerária: enquanto o Presídio Central é dominado pelas facções, e é ele mesmo
um grande mercado de drogas que funcionam também para o “anestesiamento” frente às
condições precárias desse espaço, o mesmo não acontece no presídio feminino Madre
Pelletier, onde as facções não operam e não há tráfico de drogas. Mesmo assim, processos de
medicalização operam para “anestesiar” as presas, mas de forma legal. Também diferenciou a
questão das visitas: enquanto no Presídio Central elas são peças centrais para a entrada de
recursos e drogas, o mesmo não acontece com as detentas, que raramente recebem visitas.
Após tratar do papel das mulheres dentro do mundo do tráfico (sempre em uma perspectiva
relacional, apontado os papéis de cada gênero, Renata finalizou: “a gente poderia fazer
inclusive dentro do mundo criminoso essa relação de homens e mulheres e daí como o Estado
chega mais na questão das mulheres porque no Madre Pelletier o estado está e no Central
não.” Renata procurou assim tensionar uma narrativa do crime e do tráfico via de regra
associada ao masculino, inserindo uma narrativa que não necessariamente torna as mulheres
protagonistas, mas insere-as de forma relacional nessa nova narrativa.
Todavia esse processo muitas vezes não é simples, mesmo quando há sensibilidade. O
professor Juliano afirmou tratar da questão das mulheres ao tratar do surgimento do
movimento feminista. Também se debateu, não sem dificuldades, com a constituição de
narrativas que inserissem as questões do feminino.
“Nas temáticas, guerra, trabalho, escravidão e tal, são temáticas que as vezes
despertam mais atenção do público masculino ... e isso eu já reparei
conversando com a minha companheira, que também é prof., ela ... em
determinada aula pediu umas sugestões, aplicou as sugestões e me deu o
retorno: ‘ó, apliquei ... e os meninos responderam mais às tuas sugestões”,
então realmente eu ainda tenho que estabelecer uma sensibilidade maior para
... não sei se empatia é o termo, para eu me aproximar dessa questão ...
feminina no caso (.....) A partir do momento que eu faço a seleção, isso sai
um pouco viciado ... quando eu pego ali o currículo do 9º ano, que é
basicamente final do XIX e XX, eu dou uma narrativa de relações
internacionais e eu vou falar de guerra, de impacto do trabalho, eu vou falar
de alguns temas, que também do ponto de vista da nossa formação social,
acaba relegando as mulheres pro espaço privado ... mas, quando eu tento
falar de questões vinculadas ... a aula que eu vou falar da legislação nazista
que incidia sobre o comportamento sexual dos alemães, eu to entrando em
assuntos que as vezes as meninas trazem mais, desperta mais interesse. Mas
eu ainda vejo que, na maior parte do tempo, são questões ligadas ao mundo
masculino que eu trago. Não consegui ainda me desprender muito dessa
questão, também não sei se vou conseguir.”
dificuldade em problematizar estas narrativas. Parte dessa dificuldade é apontada pela própria
condição de homem (“eu tenho consciência de que tem “n” limitações, na maioria das vezes
limitações que eu nem sequer tenho consciência”) e outra na natureza das narrativas, que
privilegiam aspectos políticos, da guerra e das relações de trabalho, em geral protagonizados
por homens. Cabe uma ressalva: Juliano apontou perceber uma maior adesão dos meninos a
essas narrativas, mas não deixa de chamar a atenção de que, na sua turma de 9º ano, formada
por 11 meninas e 7 meninos, as temáticas da Bomba Atômica, Nazismo e 2º Guerra mundial
foram tiveram níveis de adesão muito similares entre esses alunos: Bomba Atômica, 5
meninas e 4 meninos; Nazismo, 3 meninas e 1 menino; 2ª Guerra Mundial, 8 meninas e 5
meninos. Nesse caso pontual a adesão e a lembrança às narrativas parecem não ter relação
direta com o gênero.
Um professor fala muito, mesmo antes de falar. Além de ensinar História, Geografia
ou Matemática, os professores acabam ensinando valores, através de seus exemplos, de seus
conselhos. Ensinamentos de registro ético, no respeito pelos seus alunos, na forma de se
referir aos mesmos e aos seus colegas. Passam também pelas emoções que despertam,
reconhecem e lidam. Pelo seu ethos, pela sua construção como orador, o professor modula a
distância entre o conhecimento histórico e seus alunos, passando pela argumentação, criando
uma “identidade entre parceiros” a respeito de uma questão (MEYER, 1998, p. 129).
Reboul (1998, p. 63-64), ao tratar das “regras” relacionadas ao estilo como ferramenta
persuasiva, afirma que um discurso será mais efetivo na medida em que o orador se mostrar
mais “em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, dinâmico, imprevisto, engraçado ou
caloroso, numa palavra: vivaz”. Que na narrativa exercitada o auditório consiga perceber que
o orador plasma-se naquilo que é dito, tornando o discurso marcante, agradável, cativante e,
especialmente, dotado da autenticidade requerida pelo ethos.
Não é diferente com o professor. O ethos projetado pelo mesmo comporta múltiplas
posições de sujeito. Uma dessas posições passa pela constituição de um adulto de referência.
Esse indivíduo, como nos ensina Seffner (2016, p. 54), é dotado de um modo de falar sobre as
questões do mundo que não se confunde com família, religião ou senso comum, mas ancora-
se em uma capacidade genuína de dialogar com as culturas juvenis e, a partir desse diálogo,
239
estabelecer uma relação empática com as crianças e os jovens. O professor surge como um
indivíduo capaz (ou que parece ser capaz) de efetuar um trânsito entre seus alunos e noções de
humanidade mais amplas, seja através do diálogo, seja através de suas posturas e de seu
caráter, mobilizando não apenas traços “intradiscursivos” (aquilo que o professor ou
professora diz), mas também dados exteriores a essa fala.
Renata, ao ser inquirida na entrevista sobre como entende que suas perspectivas como
professora foram sendo constituídas ao longo da prática, responde da seguinte forma:
“eu penso um pouco de tudo, na verdade é um grande dilema meu ... é uma
coisa que sempre me volta: qual é o meu papel na educação? Que que eu tô
fazendo? Porque só passar conteúdo não dá. A minha função ali não pode se
limitar a isso, inclusive eu acho que se fosse isso, eu não conseguiria dar
aula ... Então às vezes eu me considero uma professora no sentido de passar
conceitos, de passar conteúdos, de ter uma tentativa de ser meio uma
contadora de histórias, de ensinar eles a dar uma autonomia intelectual no
momento que eu sempre peço coisas escritas, como uma prova, que é uma
prova que eles tem que estudar ... me vejo às vezes como alguém que tá
instigando alguém a adquirir conhecimento, a gostar de História. Me vejo
com uma função política inclusive, e não de proselitismo político, mas de
deixar claro quais são os meus posicionamentos políticos e ... tentar quebrar
preconceitos, e às vezes me vejo até como conselheira ... um aluno veio
durante a chamada me perguntar sobre o que fazer com a namorada ... é tri
comum as gurias virem me perguntar sobre pílula, ou sobre questões sexuais.
As vezes eu me vejo como um adulto de referência para que eles possam
tratar de assuntos que eles se sentem reprimidos com outros.”
Das múltiplas funções possíveis para sua prática, Renata coloca-se objetivamente
como uma adulta de referência. Em verdade, quando a mesma é buscada por seus alunos e
alunas, eles é que a colocam nesta posição, de alguém digna de confiança para dialogar sobre
assuntos sensíveis. E é possível pensar como se constrói esse caminho do adulto de referência:
algo na prática da professora Renata, no cotidiano de suas aulas, criou na sua projeção de
ethos aquilo que Aristóteles (Retórica, II, 1, 1377b) dizia serem as condições mínimas de
credibilidade: sensatez (a capacidade de dar bons conselhos), sinceridade (faculdade de dizer
a verdade) e simpatia (o importar-se e estar disposto a ajudar o auditório). Uma resposta de
uma aluna do 2º ano foi significativa: “As aulas de Hist. são muito animadas, com diálogos
interessantes, ela dá conselhos, nos puxa a orelha, adoro a aula dela”. Para essa aluna (e
muitos outros que nos questionários se referem à mesma como “divertida”, “responsável”,
“aberta ao diálogo”) não apenas apreciam a professora e suas aulas, como veem nela alguém
capaz de dar conselhos e exercer um tipo de autoridade, no “puxar a orelha” que ultrapassa de
forma adequada a própria relação formal de professora-aluna.
240
Também o professor Juliano teceu comentários sobre essas funções que ultrapassam o
conteúdo propriamente dito:
“eu vejo como a escola ainda tenha uma função, embora ela não desempenhe
direito essa função, eu acho que ela não chega nem perto, mas é necessária,
quando a gente entra no assunto de sexo e sala de aula de alguma forma.
Essa geração ela tem acesso a muitas informações mas ela tem dúvidas que
às vezes são tão ou mais básicas do que as que a gente tinha, aí tu vê como é
a geração da informação, e que parece que eles se afogam nesse excesso de
informação. O tabu parece que ainda existe em algumas realidades, e aí eles
vem com umas perguntas que tu vê que a escola ainda tem uma função que
passa por detectar o que eles querem discutir e o que a gente pode discutir,
do que eles precisam e como a gente pode contribuir de alguma forma,
equilibrando o bom e velho conteúdo.”
Para o professor, a escola deve ser entendida como um espaço de referência, mesmo
que em geral não consiga cumprir esse papel. Um espaço de referência, habitado por
professores como adultos de referência permitem que as questões venham e sejam acolhidas,
“equilibrando o bom e velho conteúdo”.
É possível refletir sobre quais elementos motivam os alunos a buscarem seus
professores. Meyer nos ensina sobre um princípio importante na retórica, e que dialoga com a
ideia de um professor adulto de referência. O princípio da aderência estabelece uma
transferência da pessoa para o discurso, de forma que “eu sou no que eu digo” (2013, p. 106),
logo, se alguém está de acordo com as minhas opiniões, está de acordo comigo, e vice versa.
Esse princípio se manifesta de variadas formas: 1) quando se ataca algum argumento, utiliza-
se o ad hominem de forma a combater o argumento atacando o orador, por sua personalidade
ou atos odiosos; No caso dos professores de História, no momento em que vivemos, esse
argumento é utilizado na associação dos professores ao viés político de esquerda, como forma
de desqualificar seus argumentos. Por outro lado, 2) o argumento de autoridade justifica uma
afirmação baseando-se no valor do seu autor: Aristoteles dixit, Aristóteles disse (REBOUL,
1998, p. 177). Argumento por vezes desprezado e relacionado a dogmatismos, trata-se de um
princípio importante para reger a não recolocação permanente das questões, aceitando a
resposta dada (MEYER, 1998, p. 126). 3) Através de variadas fórmulas, como a cortesia, tem-
se como objetivo não afrontar o outro para não colocá-lo em questão (MEYER, 1998, p. 125),
diminuindo a distância existente entre os indivíduos. Naquilo que nos interessa, é possível
dizer que a relação de um adulto de referência só se estabelece pois a criança ou o jovem
percebe um princípio de aderência, segundo o qual o indivíduo é naquilo que diz.
Os alunos percebem seus professores, na interação cotidiana da sala de aula. Seus
saberes são testados cotidianamente nessa interação, especialmente por seus alunos. Como
241
“o bom é quase que diário, sob pequenas doses, mas o ruim também, e se a
gente não cuida o ruim amassa-nos, nos faz cair doentes, enfim, desequilibra
o equilíbrio que a gente tenta ter da nossa vida, e pra mim ter prazer e
exercer o que é também pra mim uma paixão, eu sou um profissional, eu luto
pela minha profissão, mas ela me realiza, eu tento fazer essa relação com os
alunos quando falo de escravidão, falo de escravidão contemporânea, falo do
trabalho como direito humano, e falo da importância que o trabalho tem, e eu
penso muito na minha relação, o meu trabalho ele tem que me fazer bem, ele
tem que me dar prazer, e ele, como eu sou apaixonado por ele, eu exerço ele
como uma profissão, mas algo além disso, é algo que me faz sentido.”
regra os alunos criam vínculos visivelmente mais fortes com professores que lançam mão de
estratégias bem-humoradas na aula.
Engajamento, paixão, bom humor, respeito, são todos elementos que se ligam, de
formas variadas, a elementos emocionais. Nossos professores também foram inquiridos sobre
como os mesmos percebiam a emoção no ambiente da escola e da sala de aula.
A professora Renata apontou ser cuidadosa no uso de emoções. O faz por um cuidado
consigo mesma, porque “pode mexer muito comigo” e “para me preservar emocionalmente”,
e também com os próprios alunos:
“na questão da escravidão, eu usava mais essa coisa de mostrar: ‘olha como
é sofrido’. Quando eu comecei a ver aqueles alunos negros ... sabe aqueles
alunos negros que começam a ficar assim, se mexendo, ou começam a olhar
pro lado, desconfortáveis ... Quando eu vou afetar o emocional, eu tento
tomar esse cuidado.”
de aula, produziu um desequilíbrio (a ponto de o incômodo ser lembrado dois meses após a
atividade, quando os questionários foram passados aos alunos e alunas). A experiência
oferecida pela interação com o meio provocou esse desequilíbrio. O processo de equilibração
é justamente o aprendizado, a assimilação do meio ao sujeito em um processo ativo. Não é
possível dimensionar qual aprendizado esse aluno efetuou (no mais das vezes, é difícil ter essa
visualização com nossos próprios alunos), apenas dizer que as possibilidades foram abertas a
partir de um estímulo que partiu de uma emoção.
Não há dúvida de que a emoção perpassa a sala de aula, seja na atuação direta dos
professores e professoras, seja na relação entre os estudantes e suas variadas culturas.
Também não há dúvidas que os professores compreendem, mesmo que parcialmente, e lidam
com essas respostas emocionais. O professor Laerte apontou na entrevista que gosta muito de
utilizar filmes, especialmente de guerras, como uma forma de sensibilizar quanto ao
sofrimento das pessoas envolvidas. Já o professor Germano entende a emoção como uma
forma de superar um modelo de transmissão do conhecimento em preparação para algo que
virá. Para ele, a emoção pode ser uma forma de “suspender essa ideia de por vir, e criar
momentos de educação ali, sem a necessidade de projeção”. Apontou também utilizar uma
série de recursos, como a arte a música, “não como um operário de preparação para o
vestibular, mas como um educador”. Mobilizam, de variadas formas, experiências emocionais
e cognitivas ao mesmo tempo: cognitivas pois existe aprendizagem ligada à verdade da
ciência de referência; emocional pois podem mobilizar o jovem a sentir compaixão, ira,
alegria, nojo, tristeza, e cetera. É bom lembrar que um discurso emocional sem o cognitivo é
frágil, potencialmente mentiroso, perigoso; já um discurso cognitivo sem o emocional é
possível, mas as marcas que ele deixará não serão as mesmas.
A professora Isadora englobou a emoção e a empatia de formas bastante amplas. A
palavra “empatia” surgiu repetidamente em sua entrevista, no trato dos alunos com a
professora e dos alunos entre si: “primeiro, se não tem empatia entre tu e essa pessoa, dificulta
muito o trabalho. Empatia é fundamental”. Esse conceito (derivado do grego pathos, diga-se
de passagem) liga os indivíduos através de laços emocionais, tornando-os capazes de
identificar-se com a outra pessoa, sentir o que ela sente e colocar-se no seu lugar.
Para a professora, uma das condições para criação dessa empatia, que ela não acredita
poder ser planejada, são os momentos de proximidade:
“Eu penso que esse tipo de atividade mais lúdica, que as vezes assusta
alguns, ... ela gera entre professor e o aluno uma condição sócio afetiva
melhor ... cria um clima mais descontraído ... ah, mas é uma atividade tão
244
bobinha ... Eu acho que os resultados dessas atividades não são nada
bobinhas.”
que responderam os questionários apontaram o diálogo como algo importante nas aulas. Uma
dessas alunas acaba situando a aula como um caminho dialógico para a identificação da
alteridade: “quando realizamos atividades onde discutimos temas atuais e podemos ouvir as
opiniões de outros colegas percebo diferentes opiniões que me auxiliam a criar a minha
própria”. O caminho para a criação da empatia é sempre conhecer o outro, ouvi-lo, e não há
forma melhor desse processo do que o diálogo.
O mesmo termo “empatia” apareceu com destaque também nas falas do professor
Juliano:
Tal qual a professora Isadora, Juliano também deseja estabelecer ligações entre alunos
professores e as vidas manuseadas nas aulas de História. Ligações emocionais, mesmo que ele
hesite em utilizar esse termo, que procuram sensibilizar e aproximar temas urgentes à escola e
à sala de aula:
Aluna C23: “Na última aula ele me fez refletir sobre tudo que os escravos
passavam, por isso senti pena dessas pessoas”
Aluna C23 [respondendo se julgava algum ensinamento do professor
importante para sua vida?]: “A não aceitar ser considerada como um objeto
(assim como os negros eram naquela época”
246
Aluna C23: “Já fiquei espantada quando ele leu alguns trechos do livro
Lolita, que em forma de poesia estava sendo dito um abuso”
Aluno C33: “Quando o meu professor falou sobre o Assassinato de Herzog
no tempo da ditadura, aquilo ficou na minha mente.”
Aluna C33: “A parte que eu mais lembro é o escravismo principalmente por
causa da minha cor tento imaginar o quanto nós negros sofremos e
continuam sofrendo”
Aluno C33: “Eu penso em como as pessoas pensavam antigamente e por que
acharam que umas decisões estavam certas. Por exemplo os americanos
podem ter tomando uma decisão precipitada ao bombardear Hiroshima, pois
nesse acidente milhões de pessoas morreram.”
Esses alunos e alunas, mais ou menos vinculados às questões tratadas, dão respostas
emocionais variadas, especialmente ligadas à compaixão. Quando somos tocados por uma
emoção, mesmo sem relação direta com nossa vida, constitui-se uma simulação emocional, de
forma que o próprio corpo entra em desequilíbrio. Damásio nomeia esse processo como
“mecanismo do ‘como-se-fosse-o-corpo’ [que] requer uma simulação interna que ocorre no
cérebro e que consiste numa modificação rápida do mapeamento do corpo.” (Damásio, 2004,
p. 126). Ou seja, uma emoção faz sentir-se fisicamente no próprio corpo, e por vezes o que
observamos no outro, mesmo no outro narrado, vincula-se aos nossos próprios corpos.
Alegria, dor, raiva, compaixão, felicidade, e tantas outras emoções ligadas ao outro podem
criar estados de empatia, denominados por Damásio como “mapas falsos”, mas nem por isso
menos válidos, especialmente para a educação e para o aprendizado. Além disso, Juliano,
agora sem hesitar, amplifica o espaço da emoção para além do formal:
observada em seus alunos, pelo princípio da aderência, deve marcar seu discurso de forma
coerente a esse desejo.
Não deixa de chamar a atenção que, nas observações dos professores e professoras,
pouco percebi argumentos de autoridade explícitos, ficando essa construção implícita no
próprio ethos. Em outros termos, eles não precisaram enunciar que diziam a verdade; isto
estava implícito na própria construção do seu ethos.
Por fim, um elemento que conseguiu congregar os cinco professores nas observações
foi a respeitabilidade aos mesmos, independente de todos os marcadores desenvolvidos até o
momento, perceptível nas conversas paralelas dos alunos com seus professores e professoras,
no caminhar destes até as salas de aulas, e em outros momentos diversos. Nas entrevistas, fica
evidente que há um esforço por criar afetividade com os jovens de suas turmas, cujo resultado
pode ser percebido nesses sutis momentos. Esse esforço e essa respeitabilidade, na relação
com os jovens e suas culturas, são também elementos que compõem o ethos do professor-
orador.
248
Argumentar faz parte do nosso cotidiano social, desde as relações nucleares familiares
até as relações com o espaço público. Aprende-se a argumentar no dia a dia, como as crianças
que desejam convencer os pais a ganharem algum presente, ou um profissional que deseje
convencer os seus superiores a comprarem uma proposta sua. Ao pensar uma aula, o professor
imagina (inventio), levando em conta suas turmas, monta seu plano (dispositio), escolhe as
palavras que fará uso (elocutio) e por fim terá de colocar esses planos em prática (actio).
Ademais, se questionado pelos alunos, deverá fazer uso do repertório de conhecimentos
históricos que carrega em sua mente (memoria). O professor não precisa compreender esses
termos retóricos para executá-los, e assim o faz cotidianamente. Fazemos retórica o tempo
todo em nossas salas de aula.
Argumentar implica em suscitar uma questão por intermédio de outra, que nos ajuda a
resolvê-la. Para convencer o outro, devemos sempre nos apoiar nos problemas que ele coloca
(MEYER, 1998, p. 101), ou pelo menos se esforçando para compreender estes problemas. No
caso específico do professor-orador de História, este situa a argumentação como um processo
de negociação de distâncias em uma perspectiva didática, buscando produzir nos alunos a
compressão dos processos históricos a serem ensinados. A busca por caminhos
argumentativos que negociem as distâncias nas salas de aula visando “responder” os
questionamentos propostos lançam mão da argumentação como construção que opera por
raciocínios muitas vezes desprezados pelas ciências de referência, com comparações,
ilustrações, analogias ou raciocínios por entimemas.
O presente capítulo desenvolve esses caminhos argumentativos percorridos pelos
professores e professoras, desde a montagem dos planos de suas aulas, passando pelas
problematicidades explícitas e implícitas que transpassam estas aulas, e finda analisando qual
é o funcionamento dos principais argumentos manuseados, à luz da teoria dos tipos
argumentativos de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005).
249
cronologicamente dispostos, a respeito da Era Vargas, entre 1930 e 1945. Já para o professor
Laerte, a aula se construía a partir de uma problemática pouco clara. Seguia o livro didático
em uma perspectiva de “História do cotidiano”, lendo trechos do livro didático que tratavam
de características da Idade Média, tais como os castelos, a alimentação, e a condição dos
servos. Para a professora Isadora, a aula se construía através de um exórdio pensado como um
problema condutivo. A partir desse problema, eram dispostos fatos e processos. Também
fazia uso de aulas invertidas, onde os primeiros contatos dos alunos com os conteúdos eram
produzidos a partir de atividades ou projetos. A professora Renata lançou mão de disposições
variadas, desde aulas expositivas a partir de slides, passando por correções de provas
comentadas, aulas com argumentação ligada a um fato do presente e aulas com leitura
comentada efetuada pelos alunos. O professor Juliano, por fim, também construiu formatos de
aula diversos, especialmente baseados em temas específicos, cujo desenrolar narrativo girava
em torno desses temas. As subdivisões desse capítulo pretendem explorar algumas das
possibilidades de dispositio construídas por nossos atores e atrizes.
Todavia, como quase tudo em retórica, é sempre complexo dissociar uma parte do
discurso da outra, e é bom lembrar que o plano é exatamente isso, um plano. O verdadeiro
plano (o plano orgânico, segundo Reboul, 1998, p. 60), que nasce dos saberes da docência
com os saberes disciplinares, só se materializa no processo de elocutio, no discurso vivo
dentro de uma sala de aula, dando conta dos mais variados imprevistos que os auditórios
escolares oferecem. Dessa forma, as subdivisões abaixo pretendem mapear algumas
disposições dos discursos, mas sabendo que essa leitura advém da efetivação desses planos
dentro das salas de aula.
A professora Renata, em uma de suas aulas (1 - 101 - 05/07/2017), retomou uma saída
de campo da semana anterior, em que parte da turma foi ao Morro do Osso (parque natural
situado na região sul de Porto Alegre). Após a organização inicial a partir da dinâmica do
“bom dia” (em que a professora saúda os alunos e alunas com um “bom dia”, e repete a
saudação várias vezes até que a maioria dos estudantes responda em voz alta), que se mostrou
uma excelente estratégia de organização do início da aula, Renata começou a tratar dos
parques nacionais:
251
“a gente pode pensar que essas criações de parques naturais tem a ver com
um processo de querer preservar o meio ambiente quando o meio ambiente
começa a ser deteriorado” (...) lembrem lá dos primeiros Sapiens Sapiens
(...) eles produziam artefatos de osso, ou comiam alimentos, o que eles
faziam com o que sobrava desse fruto ou desse artefato?” / Aluno:
“enterravam.” Renata: “Será que eles enterravam? (...). O mais provável é
que se jogasse fora, não tinha lixeira na pré-história né gente, tava lá o Homo
Sapiens Sapiens comendo um fruto: “ai eu vou comer um fruto e guardar a
semente para por no lixo” ... e por que será que não havia essa necessidade
de guardar e de cuidar do lixo ou de pensar em preservar o meio ambiente do
ser humano.
(...)
vocês nunca se perguntaram isso, que essa necessidade de preservar o meio
ambiente ela não existiu sempre, ela é algo bem recente, de uns 100 anos
para cá. Por que será que lá no início, nos primeiros seres humanos, não
tinha essa necessidade de cuidar do lixo, do que fazer com o lixo, ou cuidar
do meio ambiente?”
“pensem agora como seria ser esse ser humano da pré-história ... pra quem
não foi se imaginem, pra quem foi fica mais fácil [se referindo aos alunos
que foram na saída de campo]. Esse ser humano da pré-história no meio
daquela trilha, sem mochila cheia de salgadinho, sem mochila cheia de
refrigerante, sem roupa e sem celular (...) Como vocês iam fazer para se
virar?”
A partir desse momento a dinâmica ganhou corpo, com muitas intervenções dos
alunos, que conforme iam falando algumas das respostas eram registradas no quadro: pescar,
achar uma caverna ou construir um abrigo com barro ou madeiras, ferramentas, lanças,
porretes, fogo. Cada uma dessas respostas abriu outros questionamentos: como afiar uma
lança? Como utilizar os ossos? Como polir uma pedra? Esse processo, que misturou aquilo
que Reboul (1998, p. 56-58) denomina como Narração (a exposição dos fatos referentes à
causa) e a Confirmação (o conjunto de provas argumentativas), conduziu a uma reflexão que
252
necessita de muita abstração: como entender o mundo sem todas as intervenções humanas na
natureza, e o que permitiu essas intervenções:
“pensem pessoal o quanto o ser humano ... as coisas que nos diferenciam
dos outros animais. Essa capacidade de desenvolver a tecnologia, de ... ter
esse olhar no meio do mato de que tem que pegar os galhos caídos para fazer
fogueira, de pegar o barro para construir uma casa, de que uma caverna pode
servir de abrigo, de que tu pode pegar uma pedra e um osso e raspar para
fazer uma ferramenta, ou uma arma, tudo isso é a capacidade do ser humano
de raciocinar em cima de algo pra tentar projetar, criar algo e desenvolver
tecnologia.
(...)
com a saída pro morro do osso ficou bem fácil entender como talvez seria
viver como esses primeiros seres humanos e como fomos modificando o
ambiente ao longo da história, né, porque vocês estavam lá no meio do mato
e fica bem fácil de pensar nisso, e pensar também de que forma também (...)
conciliar esse desenvolvimento com a preservação do meio ambiente e
minimizar coisas como o efeito estufa.”
Mais uma vez abriu-se um diálogo com boa adesão: alunos propuseram ações como a
construção de casas menores ou sustentáveis, reciclagem de lixo, materiais sustentáveis, que
foram problematizadas pela professora. Foi possível negociar uma distância de compreensão
muito ampla, facilitada pelo recurso ao exemplo, reforçado pelo fato de que os alunos e alunas
vivenciaram esse exemplo. Dessa forma, essa longa etapa buscou construir uma argumentação
pelo exemplo, generalizando uma regra a partir dos casos concretos, ou de um conjunto
desses. A indução dialética (REBOUL, 1998, p. 154) propiciada pelo exemplo percorre o fato
ao fato, passando pela regra subentendida. No caso da professora Renata, essa indução partiu
dos fatos vivenciados no presente (na saída de campo ao Parque do Morro do Osso), passando
pela regra de que os homens e mulheres intervêm na natureza a partir da tecnologia e da
inteligência, para assim compreender outro fato, a vida na pré-história. E também há uma
indução de retorno, como consta na citação anterior: parte-se do fato vivenciado pelos alunos,
no contato com a natureza, passando pela regra subentendida de que os seres humanos
transformaram a natureza de forma destrutiva, para assim compreender e intervir no presente.
Apesar de ser um momento forte do logos, com ligações de sentido entre o presente e o
passado, a argumentação também recorre ao pathos, procurando despertar a indignação do
auditório escolar frente às ações da humanidade nas questões ambientais.
A aula prossegue justamente com uma atividade, em grupos, em que os alunos devem
registrar quais as principais formas de intervenção do homem na natureza ao longo do tempo,
e propor maneiras de conciliar desenvolvimento urbano e tecnológico com preservação do
meio ambiente.
253
Enquanto dispositio, essa aula tem uma construção simples: os parágrafos acima
iniciaram a aula lançando a baliza epistemológica a partir da qual as avaliações foram
corrigidas e serão comentadas na sequência. Uma espécie de confirmação da narração antes
da própria narração das questões da avaliação, ou a tese lançada antes das premissas. E essa
tese é: vocês devem produzir uma leitura que compreenda os processos, pense a história como
uma rede, e não apenas memorize-os. Renata toma sua aula, e estrutura-a como um lócus de
produção de aprendizagens significativas: não basta a identificação e reprodução de códigos;
é necessária uma leitura compreensiva que produza uma escrita autônoma. Dois
procedimentos cujo exercício se dá no próprio estudo da História, e não apenas como pré-
requisitos para ela; ou seja, aprenderão a ler e escrever durante a compreensão dos processos
históricos (que a professora aponta como complexos e cujo exercício de compreender é
desafiador) e posterior sistematização dessa compreensão em avaliações ou exercícios.
Aqui se insere uma longa duração do ensino de História, bem como uma relação direta
com o ensino que “não mais queremos”: por décadas a História escolar se resumiu à
memorização de fatos, heróis e seus feitos, cuidadosamente selecionados, em um modelo
bastante doutrinador, diga-se de passagem. Mesmo que não seja mais esse o objetivo, parece
por vezes um processo complexo de equilibrar: qual a diferença entre memorizar e entender
um fato? É possível criar um entendimento sem a memorização de determinados fatos? Essa
complexidade gera inegavelmente dificuldades para os alunos, de forma que toda a construção
lógica argumentada pela professora caminha para explicitar essa diferença, visando que os
alunos percebam o quanto conseguem ou não se posicionar no formato de leitura desejado
pela professora Renata.
O prosseguimento da aula retomou as questões da avaliação, sempre balizando as
mesmas com a tese lançada ao início. Em uma parte muito divertida da aula, recheada de
risadas entre os alunos, a professora Renata leu, omitindo os nomes dos estudantes, algumas
“pérolas” escritas pelos alunos, sempre desconstruídas, comentadas ou revisadas a partir
dessas leituras, ora explicitando a importância de situar os fatos no processo, ora explorando a
falta de lógica nas respostas, tais como: “as grandes navegações aconteceram a partir do
momento em que os mares foram dominados por piratas”, “as grandes navegações iniciaram
nos Estados Unidos” ou “os exploradores saíram para descobrir o novo continente”. Nessa
última Renata inquiriu: “como eles poderiam ter saído com objetivo de encontrar o novo
continente, se eles não tinham como saber da existência desse novo continente?”. Essas
citações, e outras, seguem o princípio de remeter à tese inicial, evidenciando tanto os
equívocos históricos quanto as incoerências lógicas. Na entrevista que realizei com a
255
professora, a mesma disse que essa aula, que ela considera um sucesso, nasceu de um
imprevisto: ela sempre prezou os processos de retorno das avaliações para os estudantes, e
percebeu que inserindo essas “pérolas” os alunos divertiam-se bastante. A partir dessa
percepção ela foi aprimorando, organizando melhor os tempos de cada momento da leitura, e
sendo mais atenta a captar as “pérolas” das provas. Um desenvolvimento puramente
experiencial.
A peroração, ou o fechamento da aula caminhou para o componente emocional dos
alunos. Renata finalizou a aula apontando que a turma passou por um bom processo de
amadurecimento. Por estar com essa mesma turma desde o ano anterior, a professora apontou
que consegue perceber um bom desenvolvimento da capacidade de estudo dos alunos, bem
como a sofisticação dos textos. Apontou também que apenas cinco dos alunos ainda tem
dificuldades mais sérias, mas que ainda assim se desenvolveram em relação ao ano passado.
Essa mesma percepção é apresentada na entrevista: “e eu percebo um salto de escrita muito
grande. Esses meus alunos, que eram meus alunos do ano passado (...) eu consigo ver um
grande avanço”.
De certa forma, essa finalização buscou constituir um fechamento que anulasse as
problematizações trazidas pela tese inicial e por todas as leituras de trechos das avaliações
(MEYER, 2007, p. 48), juntamente com o despertar de uma afetividade que liga o
desenvolvimento intelectual dos alunos com uma satisfação da professora nesse processo.
Retórico por excelência, vinculou a um só tempo logos, pathos e ethos.
Narrar significa atingir o grau da exposição propriamente dita, como afirma Meyer
(2007, p. 48), expondo os fatos referentes à causa ou à tese defendida, e orientada a partir
desse referente (REBOUL, 1998, p. 56). Esse conjunto de escolhas constitui uma ordem, onde
a diversidade de fatos, atores e ações encontram uma sequência; como situa Luiz Costa Lima
(1989, p. 17), essa ordem não é anterior ao ato narrativo, mas sim coincidente, já que ao
narrar constitui-se o objeto.
Todavia a narrativa historiográfica, e também a narrativa da verdade histórico-
didática não se resumem apenas a uma sequência temporal, e podem ser entendidas em um
jogo entre as cadeias de sucessão (que organizam a narração em uma série temporal A B
256
“Pensar ... o processo das grandes navegações significa pensar muito como
se formou o mundo que a gente vive hoje em dia. Esse mundo globalizado e
extremamente interligado ele começa a ficar interligado nesse período, e
toda riqueza que se acumulou durante as grandes navegações vai servir para
o surgimento do capitalismo depois, no século XVIII.”
Esse exórdio é representativo das mais variadas referências ao presente efetuadas pelos
professores de História (e identificadas em todos os cinco professores observados). A partir da
referência do presente a sucessão temporal é suspensa, e substituída pela sucessão lógica, que
busca induzir ou deduzir reflexões a partir desses referentes. Nesse caso não importou a
temporalidade dos processos das Grandes Navegações e da Globalização contemporânea, mas
sim as relações de sentido entre esses processos, especialmente nos processos de interligação.
Renata prosseguiu a aula falando sobre o pioneirismo de Portugal e Espanha no
processo das navegações, a partir de um mapa histórico específico. Muitas intervenções
(alunos utilizando celulares, alunos enviados para a supervisão da escola, conversa sobre uma
tentativa de suicídio no centro de Porto Alegre) tornaram esse início bastante demorado.
Nesse meio tempo uma fala da professora chama a atenção: “façam as anotações com as
palavras de vocês, com o que vocês entenderam, para ir treinando a escrita.”. Mais uma vez é
explicitado o objetivo da compreensão autônoma dos processos estudados, bem como sua
257
“Os estados europeus passaram por uma série de crises: crise por falta de
metais preciosos, crise religiosa pois estava se questionando o poder da
Igreja, crise no poder político que era descentralizado. E aí, quando a gente
tem uma crise, o que a gente tenta fazer?” / Alunos: “resolver.”
“(...) normalmente quando a gente resolve uma crise a gente muda, certo? As
coisas mudam quando se resolve uma crise. E não tem como voltar a ser
como antes da crise, por exemplo. As coisas mudam para uma coisa nova.
Pode ser para pior ...”
“E aí, uma das opções encontradas para a crise dos metais preciosos foi
tentar achar inclusive, além de novas rotas para as Índias, novos lugares para
conseguir ter metais preciosos.”
“Só que pra navegar, é assim? Qualquer um que quer sair pro mar pode
navegar? Não né, tem que ter dinheiro, tem que ter riqueza pra investir em
uma navegação dessas que é cara, e tem que ter gente.”
historiadores do passado também procede com leigos, sendo necessária uma empatia em
relação à existência de outros homens e mulheres que viveram em outros lugares e tempos,
com hábitos diversos. Empatia que passa pelo vivido. A autora diz que “certos alunos o
exprimem diretamente: para tentar compreender, eu me imagino, me coloco no lugar dos
personagens históricos”, referência que surge nos próprios questionários dos estudantes da
professora Renata: de um total de 119 respondentes, 14 escrevem explicitamente que “ficam
imaginando” a partir do que a professora narra. Em suma, dizer que a “Igreja Católica pensou
assim” tem mais chances de produzir uma aproximação do que utilizar termos mais analíticos,
tal como “os membros da Igreja Católica, após debates e conflitos internos, tomaram a
decisão de (...)”.
O prosseguir da aula ainda desenrolou-se em outra forma de narrativa. O relato
mimético:
Esse diálogo mimético produziu o melhor momento de atenção em toda a aula, sendo
que quase a totalidade dos estudantes acompanhou o desenrolar da narração. A representação
pela mímesis, via de regra, pressupõe a simulação ou imitação de ações de uma pessoa por
outra, sendo que essa distância é muitas vezes ocultada pela narrativa. Os historiadores gregos
e romanos faziam muito uso dessa técnica, na medida em que, em suas narrativas, os
discursos de grandes homens eram narrados como se proviessem da própria pena desses
homens, e não da narração dos historiadores. É o que faz a professora Renata: coloca-se como
que presente nas tratativas de Cristóvão Colombo, ouvindo atentamente os relatos e
reproduzindo-os para seus alunos. A narrativa ganha tal grau de efeito de verdade que um
aluno inquire: “cê tava lá e viu isso tudo?”, a que Renata responde, não sem certo tom de
deboche: “Sim, eu tava lá ...”. Prossegue a aula de forma similar, narrando e explicando o
259
Metaforizar significa designar uma coisa com o nome de outra, sendo que deve haver
uma relação de semelhança entre esses dois elementos. A metáfora retira seu poder
argumentativo da criatividade poética em aproximar aquilo que em princípio não possui
qualquer relação evidente, traduzindo essa semelhança descoberta em identidade. Qualquer
figura retórica tem, segundo Meyer (2013, p. 141), alguns objetivos básicos: reforçar a
presença e dirigir a imaginação a um ponto preciso, a fim de suprir o discurso literal, por
vezes demasiado realista.
A professora Isadora, em sua aula 8 - 92 (20/06/2016), organizou uma dinâmica em
que escreveu a palavra “Luz” no quadro, e solicitou que os alunos se dirigissem ao mesmo
260
para escrever sinônimos ou palavras relacionadas, como ponto de início de uma atividade.
Essa atividade era continuação de uma anterior, baseada em uma obra de Goya, e que será
problematizada no capítulo 2.3.2.
“ok, é daqui que vai sair a ideia de Iluminismo, tá ... Mas nós ainda não
chegamos lá. O que que está dentro desse conceito. Por que que eu vou atrás
da palavra luz e trago ela para dentro da palavra Iluminismo?”
Esta aula pode ser entendida, na sua dispositio, como uma grande metáfora, que
relaciona conhecimento à capacidade de enxergar, em amplos sentidos. Faz uso de uma
metáfora clássica, que remete pelo menos ao mito da caverna de Platão, passando também
pelas religiões (tanto o paganismo clássico quanto o Cristianismo possuíam e possuem lugares
especiais para essa metáfora) e tendo como grande referência moderna o Iluminismo europeu
do século XVII e XVIII. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 460) tomam essa figura como
uma “metáfora adormecida”, cujos sentidos já são socialmente disseminados, mas que
dependendo do contexto e do apoio da técnica, podem novamente serem postas em ação.
Além disso, “a metáfora reconhecida, tradicional, serve de ponto de partida, da mesma forma
que um fato indiscutível, para precisões, para argumentações.” (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 456). A técnica utilizada para “acordar” a metáfora, na
aula da professora Isadora, foi uma dinâmica que pretendeu colher entre os alunos os mais
variados sentidos, para que posteriormente, através de sucessivas problematizações e
argumentações, a metáfora fosse sendo revelada, em seu sentido de Luz = Iluminismo = fazer
ver.
Na sequência da aula a professora disparou uma atividade de leitura de trechos de
obras de autores iluministas, lidos sem o intermédio de comentadores. Tratou-se aqui de uma
apropriação do fazer do historiador, posto a serviço de uma competência leitora e
interpretativa, mesmo que condicionada, já que esses trechos eram significativos de algumas
características centrais do movimento iluminista. Essa estratégia foi pontuada pela professora:
“Qual é a diferença ... entre estudar Iluminismo [na nossa escola] e estudar o
Iluminismo em qualquer outro lugar, ao menos dos que eu conheço? Nós
vamos ler os autores, e normalmente não se lê os autores, a gente decora que
o Voltaire disse escreveu tal coisa ... Esses autores são difíceis de ler, por
que são autores da filosofia, da política e também porque eles escreveram em
uma outra época então eles usam outra linguagem, e também porque eles são
traduzidos . Uma série de razões pelas quais fica difícil e por vezes chato ler
esses autores. (...) nós vamos trabalhar com pequenos trechos de cada um,
mas por que de cada um? Em primeiro lugar nem todos esses caras se
262
não se amarra necessariamente em cronologias lineares, como foi o caso de um dos nossos
atores, o professor Juliano.
O eixo que deu sentido a uma de suas aulas (2 - C22 - 27/09/2017) (ou um pequeno
conjunto de aulas, como o planejamento do professor deu a entender) não está atrelado a uma
temporalidade sequencial. O fio narrativo é a compreensão de que, no caso específico da
escravidão no Brasil colonial, essa instituição ensejava processos de dominação e de
resistência, e que esses mesmos processos poderiam ser visualizados em outras
temporalidades e mesmo no cotidiano dos estudantes. O professor Juliano organizou parte das
suas aulas a partir do livro didático “Uma História em construção”, de José Rivair Macedo,
por entender que esse livro contemplava suas exigências quanto ao conteúdo a ser ensinado.
Na entrevista o professor apontou que parte da sua trajetória acadêmica passou pela disciplina
da Sociologia e pela área de direitos humanos, o que colaborou com essa visão temática do
ensino de História. Além disso, em situações educacionais de grande descontinuidade dos
estudantes, perceptível na alternância dos alunos presentes nas classes do professor Juliano,
um ensino de História temático pode se revelar uma boa estratégia.
A aula centrou uma problematicidade de fundo: entre relações de dominação, mas
especialmente de resistência, “a grande luta do escravo, uma vez feito escravo, era recuperar a
sua humanidade”. A aula montou-se a partir de um material impresso sobre a escravidão,
organizado em itens, a partir dos quais o professor Juliano foi conduzindo a aula de forma
expositivo-dialogada. Conforme a explicação se desenvolvia as novas informações iam sendo
escritas no quando de giz, formando de um grande esquema. A proposta, básica em essência,
funciona como uma estratégia de condução do pensamento. Caso o indivíduo se perca, é
possível retornar ao quadro e visualizar, mesmo que aproximadamente, onde está a
argumentação do professor. Cerca de metade da turma que participou dessa aula manteve
bastante foco, e percebi que os alunos e alunas que prestam atenção também faziam a cópia
do esquema. Esta fase da aula, em termos de dispositio, é a argumentação, onde o professor
vai desmembrando os argumentos que respondem à problematicidade de fundo.
Em um determinado momento da aula, adequada com a proposta de aproximação dos
conceitos com o presente dos alunos, Juliano utilizou o recurso figurativo da ilustração para
negociar a distância de compreensão entre a realidade da escravidão colonial, o conceito de
resistência, e os alunos e alunas:
Esta rica passagem, momento em que percebi bastante atenção por parte da turma,
diga-se de passagem, manifesta três construções retóricas ao mesmo tempo: etapa de
digressão, ilustração e argumento fundado na estrutura do real. Pode ser considerada uma
digressão, pois apresenta-se como um trecho móvel que “destaca-se” da narrativa ou
argumentação corrente, já nos momentos que antecedem a peroração. Por ser uma “descrição
viva” (ekpharasis), a digressão tem como função distrair o auditório, podendo servir também
como uma prova indireta (REBOUL, 1998, p. 59). Como ilustração, cria uma imagem
(mesmo que fictícia) que deve impressionar vivamente o auditório para assim produzir a
presença da regra (e não prová-la diretamente) (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 407). Por fim, partiu de uma estrutura do real (ao menos tomada como real pelo
auditório a quem se dirige), a resistência ou o desagravo frente a uma injustiça, para assim
compreender o conceito de formas de resistência no contexto da escravidão.
Juliano, na sequência, finalizou a aula com uma pequena narrativa, relatada por uma
pesquisadora amiga, e que funciona como um fechamento da aula:
ser eficaz para consolidar a tese apresentada. Um uso de acordo com as propostas do
professor Juliano, relatadas na entrevista: “o acontecimento mais ajuda na explicação que eu
quero fazer, que normalmente é na longa duração, ou ao menos conjectural.”, ou, “pra tornar
concreto, para tornar visível”. Ademais, ao trazer a narrativa viva, procura-se com esse
fechamento despertar não apenas a razão, mas também a afetividade do auditório.
Não deixa de ser interessante perceber que, com a outra turma de 8º ano observada
(Aula 2 - C23 - 27/09/2017), a dispositio da aula observada foi completamente diferente. O
mesmo debate observado na aula da turma C22 inicia nessa turma, sem muito
desenvolvimento devido à desatenção e conversa da maior parte dos alunos (de uma total de
17 estudantes, identifiquei apenas quatro efetivamente integrados à aula. Frente a esta
dificuldade, Juliano opta por passar um texto no quadro, que diferencia a escravidão indígena
da africana, o que faz com que a maioria dos alunos passem a copiar (apenas dois não o
fazem), mesmo que apenas após a diretiva do professor para tal. O mesmo procedimento teve
continuidade na aula seguinte (3 - C23 - 04/10/2017). Parece que nos deparamos com um
formato de aula que responde a uma urgência: frente a uma turma com hábito de estudo pouco
formatado e parco disciplinamento de corpos (indubitavelmente necessário), que saiba se
portar e escutar em momentos de exposição ou debate, uma das formas de colocá-los
minimamente em contato com o discurso da História parece ser através da cópia de textos do
quadro. Aparece também um paradoxo: se por um lado, essa é uma estratégia que responde à
urgência de colocar os alunos em contato com o conhecimento histórico, por outro nem
alunos nem o professor ficam satisfeitos com esse formato, como o próprio professor apontou
na entrevista.
Ao findar a cópia do texto, o professor procurou explicar os processos de dominação e
resistência, de forma similar à turma C22. Todavia é marcante que a narrativa do professor foi
mais fechada, no sentido de abrir poucos espaços para formatos de negociação de distâncias.
Apenas duas perguntas foram feitas, mas não abriram ganchos para conduzir novas narrativas.
Também não foi observado o recurso da ilustração do “rebocar paredes”, talvez pela própria
dispersão de sentidos que a mesma poderia criar. Esta figura, ao ligar-se com os sentidos
próximos ao auditório, corre o risco de evidenciar apenas essas ligações do cotidiano, sendo
esquecidas aquelas que o professor deseja, ou seja, que criem uma ponte entre os sentidos
existentes entre os alunos e o aprendizado histórico intentado. No caso específico da
ilustração desenvolvida pelo professor Juliano, corria-se o risco de que os alunos focassem
apenas no “rebocar paredes”, e não conseguissem perceber a conexão com a dominação e
resistência. Para que esse processo ocorra é importante foco por parte dos ouvintes. A aula
266
ainda produziu um tensionamento com alguns alunos que passaram a aula inteira
conversando:
“eu não quero que vocês decorem cada uma das atividades, eu quero só que
vocês percebam que existiam vários tipos de atividades e que cada tipo tinha
uma característica diferente, e isso podia servir para (...)”
“o que a gente fala aqui não é só pra ter uma nota, passar e blá blá blá. Por
exemplo, quando a gente tá falando de escravidão a gente tá falando de
dominação e resistência, a gente tá falando de pessoas que tentam dominar
outras pessoas, como tu domina um grupo, tu trata esse grupo como lixo e tu
mantém esse grupo como lixo, é disso que a gente tá falando. Vocês vão
passar por vários momentos da vida de vocês que vocês vão encontrar gente
que vai tratar vocês como lixo, alguns governantes já tratam vocês como
lixo, me tratam como lixo. Como é que a gente faz para se organizar e
mostrar para essa gente que a gente não é lixo? Dominação e resistência. A
gente tá vendo um exemplo aqui. Não é só conteúdo, pra cair num pedaço de
papel para vocês responderem e tirarem uma nota e aprovarem. Então uma
coisa que eu espero que façam vocês refletirem sobre o lugar de vocês no
mundo ... se vocês não quiserem só ficar mexendo na classe, olhando pro
lado ou trabalhando no celular, se vocês quiserem fazer algum tipo de
diferença no mundo, vocês podem, só que vocês tem que ter elementos para
refletir sobre isso, e pelo menos o que eu trago em aula de História é uma
tentativa nesse sentido. Então não é só um conteúdo em uma prova. Mas
vamos supor que seja só isso, também é necessário. Pra vocês saírem daqui
formados, seguirem a trajetória de vocês e terem um trabalho bacana e tal,
também é do jogo, também é necessário, só que nem isso alguns vão tirar
daqui. Eu adoraria que todos saíssem daqui, da escola, e de preferência no
ano que vem, com diploma, seguindo no ensino médio e seguindo uma
carreira e tal. Mas além disso eu adoraria que todos saíssem com uma
reflexão sobre como pode fazer para ter uma vida melhor e fazer, de
preferência, que as pessoas do entorno tenham uma vida melhor. Eu adoraria
que vocês fizessem essa reflexão comigo, nesses dois anos. Só que aí vocês
precisam estar a fim. Se vocês não estão a fim, eu posso me vestir de
palhaço, eu posso encenar uma peça sobre escravidão que não vai adiantar
nada. Se vocês não tão a fim, se a vontade não tá em vocês, ninguém pode
criar vontade por vocês. É isso que eu quero que vocês saibam.”
Todo discurso responde a uma pergunta. Toda aula responde a uma pergunta. Ponto.
Toda aula pensada por um professor ou professora já respondeu previamente a um problema:
os valores e o sentido de ensinar cada conteúdo da História já moldaram os recortes, as
ênfases, as formas de uma aula. O professor, quando ativo em sua prática, percebe que essas
questões sempre são postas, em geral por outras instâncias, pela noosfera. O currículo de uma
escola, o conjunto de narrativas em um livro didático ou a Base Nacional Curricular Comum
respondem a duas questões básicas: o que é preciso ensinar? E por quê? Mesmo uma aula em
que o professor apenas abre seu livro e solicita a cópia por parte dos alunos também responde
a um problema, mesmo que não tenha sido posto por este professor, e sim por aqueles que
atuam ou atuaram na noosfera. As aulas dos professores e professoras observadas não fogem a
essa dinâmica, mas revelam que a autoria não se restringe aos agentes externos: professoras e
professores possuem problemáticas para suas aulas, seja de forma explícita, seja de forma
implícita.
Constatei nas observações que, para além da opção entre uma estrutura linear ou outra
temática, os professores ressaltaram a problematicidade como eixo relevante, e que pode ser
explorada em escolhas de disposição das aulas. O presente referente é pensado como
problema lançado para o passado, mas que também procura responder questões implícitas do
presente; o desenvolvimento de competências como a escrita e a leitura opera como
necessidade e consequência da análise de processos históricos; o jogo das cadeias narrativas
de uma aula como interligados a um problema; a metáfora como questão implícita a ser
desvendada; aula temática construída a partir de conceitos referenciais que transitam entre
tempos e espaços.
A História escolar tendeu e tende a apropriar-se do fazer do historiador, e trazê-lo
cotidianamente para a sala de aula. Como nos ensina Laville (1999), ao elencar a grande
flexibilidade com que os fatos narrados são modificados conforme as conveniências políticas
em cada país, a função mais rica a ser atribuída ao ensino de História seria justamente a
instrumentalização dos jovens em um processo crítico de leitura, interpretação e conceituação
das temáticas estudadas. Todavia Lautier (2011, p. 51) lança um alerta: muitas vezes nos
discursos, documentos ou falas públicas pede-se aos alunos que “produzam problemáticas,
que participem de forma ativa da análise crítica dos documentos”, mas nas práticas reais a
“forma escolar” da história segue fechada sobre um “discurso do verdadeiro”, repetidamente
268
“uma aula que eu dei (...) a gente pegou um cenário que a política brasileira
tava bem conturbada [referindo-se ao ano de 2015], que tava difícil falar
sobre certos temas em sala de aula sem tu sentir aquela tensão ideológica no
ar se formando ... ah, já vai falar de política, vai criar uma polaridade de
novo na turma, e os alunos cansados disso e eu tendo que dar aula de
Revolução Francesa. O que eu fiz foi dar uma perspectiva do que foi a
Revolução Francesa a partir de 4 ou 5 perspectivas, não exatamente teóricas,
mas historiográficas, por exemplo: o modo como os liberais clássicos liam a
transição entre as fases da Revolução Francesa, ou como os conservadores
do próprio século XVIII entenderam a Revolução Francesa, o modo como os
comunistas entendiam a Revolução Francesa, o modo como os anarquistas
entendiam a Revolução Francesa. Eu fui fazendo diferentes cortes pra
explicar por exemplo alguns lugares comuns sobre a transição do período
girondino para o período jacobino, período do terror ... o que significa o
terror considerando diferentes perspectivas ... eu não sei se pros alunos ficou
tanta coisa em termos de conteúdo, mas eu acho que no mínimo mexeu (...)
Isso partiu de pequena leitura de um livro do Fraçois Furret “O que é
Revolução?”
Abriu-se nessa proposta espaço para a complexidade, e também para a dúvida e para a
hesitação. Uma narrativa lacunar, onde os alunos e alunas de Germano, tal qual na narrativa
tradicional de Walter Benjamin, poderiam fixar seus sentidos para o acontecimento,
percebendo nas 4 ou 5 perspectivas aquela que mais lhes aprouvesse. Mas, ao mesmo tempo
que oferece lacunas a serem preenchidas, oferece outras impossíveis de tal preenchimento,
apenas cercadas pelo conhecimento historiográfico, o que abre espaço para uma dúvida não
apenas do passado, mas também do presente, segundo o próprio professor necessária em um
clima de tensão política. Soma-se a isso uma perspectiva de “não controle” das respostas
como um potencial daquilo que nós professores podemos construir na sala de aula, lembrando
Meyer (1998, p. 102) quando este nos ensina que as respostas libertam-se nas questões de
origem “já não [sendo] apenas apocríticas mas também problematológicas. Deste modo
poderão resolver outros problemas ulteriormente, e por conseguinte qualquer resposta é um
argumento potencial para muitos problemas futuros – para quem se lembrar e se sirva delas”.
269
Mas há um alerta a respeito da problematicidade: ela deve ser limitada. Laerte, em sua
entrevista, foi categórico ao dizer que o professor necessita ter convicção em sua fala, bem
como não deixar muitas brechas na narrativa:
“tu não pode chegar, e dizer assim: isso é assim, mas isso é o fulaninho que
disse, de repente pode não ser ... segundo, aquela questão filosófica:
‘segundo o fulano de tal’. Eles não querem saber o que o fulano de tal pensa,
o que o autor tal pensa, eles querem a informação ... essa questão das
diferentes visões interessa para o ensino acadêmico, não para o Ensino
Médio, muito menos pro Ensino Fundamental.”
Figura 4 - Gravura “El sueño de la razón produze monstruos”, de Francisco de Goya, utilizado pela professora Isadora
sociedade [que] as vezes oprime as pessoas”. Outra aluna apontou, tentando traduzir a frase
em espanhol: “o sonho da razão produz monstros”. Abriu-se um debate sobre a tradução da
palavra sueños, a partir da qual a professora lançou uma bateria de questões. Percebeu-se
nessa e em outras situações que Isadora em muitos momentos não responde a essas questões,
mesmo que perceptivelmente saiba as respostas. Trata-se de uma estratégia de manter as
perguntas abertas, e consequentemente a atenção potencial na dúvida: “eu não vou responder
a pergunta, mas vou deixar a provocação no ar”.
No prosseguir do debate, uma aluna palpitou: “o sono da razão produz monstros”. A
professora, percebendo que essa resposta finalizaria a dinâmica, desconversa e passa falar um
pouco sobre a interpretação dos objetos de arte: “quando eu olho uma obra de arte,
independente do que o autor quis dizer, ela pode ser qualquer coisa ... a obra de arte tem uma
relação ... a literatura também ... de leitura”. Outras intervenções dos alunos e alunas
surgiram: “os monstros da minha mente”, “o lobo é o lobo do homem”, relacionando com
uma opressão de gênero e social e “a busca pela razão produz monstros”. Isadora então
intervém: “e se for ‘sono’?”.
Apenas nesse momento Isadora traduziu a palavra sueño como sono, revelando o
sentido literal da frase. Ela abriu a página da wikipédia sobre o autor da imagem, o pintor
Francisco de Goya, associando-o ao romantismo europeu. Lançou uma proposta em duplas:
“que que o sono da razão produz monstros tem a ver com o ‘Amante da Rainha’?”, filme
requerido como atividade de tema para os alunos em aulas anteriores, que narra a ação de um
médico Iluminista que ganha relevância na corte da Dinamarca no século XVIII, passando a
colocar em prática uma série de medidas racionais a partir da sua relação próxima com o rei.
A aula prosseguiu com um debate que problematizou o filme com o contexto das monarquias
absolutistas em relação com as ideias Iluministas. Essa aula toda pautou-se em uma questão
implícita, que vai se descortinando ao longo da aula: inexistência da razão produz
potencialmente abusos variados.
272
Mesmo que parte dos questionários respondidos pelos alunos aponte que os mesmos
julgaram algumas aulas muito “lentas”, o que se observou durante essa atividade foi uma
grande atenção pela ampla maioria da turma. Conforme os colegas e a professora lançavam
reflexões sobre a imagem, a maioria manteve o foco do olhar na mesma, talvez procurando
compreender que caminho o colega tomou para criar aquele sentido. Chamou a atenção uma
frase em um questionário de um aluno: “aprendi principalmente a prestar atenção em detalhes
de filmes e pinturas, e aprendi a ter boas discussões ouvindo mais que falando”. Muitas vezes
os aprendizados mais significativos são procedimentais, com a criação de hábitos de estudo
ou hábitos de reflexão. Esta parece ter sido a função dessa aula: criar uma presença de
sentidos para os aprendizados que viriam na sequência.
Esse caráter problematizador não ficou restrito a apenas essa aula. Variados foram os
momentos em que questões permearam suas aulas. Na aula 3 - 91 (19/05/2016), após levar em
conta os questionamentos produzidos pelos alunos e alunas na aula anterior (e que serão
melhor desenvolvidos no capítulo 2.4.1), montou uma aula expositiva com o objetivo de
organizar o conteúdo de Brasil Colônia. Tratou-se de uma aula longa (dois períodos), que
produziu um panorama desde os primórdios da colônia até a União Ibérica, sempre lançando
questionamentos para os alunos: “Como é que se coloniza?” Um aluno respondeu: “povoar”.
Isadora concordou em parte (“sim, não basta ser meu no papel, tem que tomar posse
ocupando”), para em seguida problematizar essa própria concordância: “isso é o que nos diz a
lógica, ao longo da História. Mas não foi assim no Brasil (...) nosso processo de colonização
precisava dar lucro”.
Essa fala da professora Isadora evidenciou dois processos interessantes: primeiramente
é possível dizer que tanto a historiografia quanto a História escolar constituem lugares-
comuns argumentativos (topoi), entendidos como chaves de leitura e passíveis de serem
relacionados a mais de uma narrativa histórica. Nesse caso, um lugar da quantidade pois
expressa um elemento de universalidade. Recordo-me de um lugar-comum sempre
desenvolvido em minhas aulas: em diversas situações históricas (tais como na centralização
do poder dos reis após o período medieval ou as reações à Revolução Russa de 1917)
apontava para os alunos que uma “quase lei histórica” é entender que, frente à possibilidade
de uma sublevação popular, as elites (por mais rivalidades internas que pudesse haver) sempre
se uniam contra essa ameaça. Funcionava como uma chave de leitura para compreender
alguns destes processos. Assim opera o lugar que Isadora associou a uma “lógica histórica”,
de que colonizar significa povoar. Mas na sequência ela tensionou esse mesmo lugar, dizendo
273
que na colonização do Brasil fora diferente, tendo sido necessária a efetivação de atividades
lucrativas.
A professora Renata conduziu uma de suas aulas (2 - 201 - 12/07/2017) de forma a
compreender a relação entre as nações europeias e a política econômica denominada como
mercantilista, priorizando lançar perguntas no fechamento de suas falas, de forma que essas
perguntas operassem como gatilhos para a reflexão.
“uma política econômica que guiou, ou seja, pensar a economia, ter um jeito
de administrar a economia, o Estado ter um jeito de administrar a economia
pra poder enriquecer. A política econômica ... desse período e dessas nações
que saíram para o colonialismo nas Américas era chamada de?”
Nesse meio tempo Renata foi desenhando uma balança clássica de contrapeso, que boa
parte dos alunos não associaram de imediato como uma balança. Antes dizem ser o símbolo
do signo do zodíaco “libra”.
274
Figura 5 - Desenho de uma balança clássica, durante a aula 2 -201 da professora Renata
“imaginem uma balança, ta, aí imaginem que ... Espanha vai lá nas Américas
e extrai metal, extrai metal, extrai metal, leva lá pra Espanha ... E aí, só que a
Espanha acumula todos esses metais, e ela enriquece. Só que as pessoas
vivem só com metal precioso? Comem metal? Vivem em lugar de metal?
[bastantes comentários nesse momento] ... Desse metal ... que a Espanha
extraía das Américas eles pegavam e compravam produtos da Inglaterra
[enquanto isso Renata vai preenchendo o quadro, ao lado da balança
desenhada]. E aí, esse metal que a Espanha usava pra comprar produtos da
Inglaterra ficava com quem? ... com a Inglaterra. Só que a Espanha
comprava mais do que vendia, logo a balança da Inglaterra ficava mais
pesada de outro e a da Espanha mais curta, mais leve, certo? Qual lado da
balança está favorável?” / vários alunos respondem: “Inglaterra” / “Então
galera o princípio da balança comercial favorável significa tu exportar mais
do que importar, vender mais que comprar, com isso tu consegue acumular
riquezas, acumular metais.”
O funcionamento das questões, sempre seguidas de pausas, parecia ter como um dos
objetivos buscar o foco dos alunos à reflexão para na sequência oferecer a resposta. O termo
“imaginem” também chama a atenção, como forma de ensejar a criação de imagens mentais
por parte dos alunos e alunas. Nos questionários, 15 estudantes escreveram que “ficam
275
imaginando” a partir do que a professora diz. Ao mesmo tempo em que esse procedimento ia
sendo realizando, aos poucos a questão implícita à narrativa da aula ia se descortinando: uma
diferenciação conceitual entre o que é objetivo, princípio e prática. Renata conduziu o final da
aula com um fechamento que, para seus próprios alunos, possuiu um tom de conclusão
valiosa:
importantes. Não existe outra forma de lidar com o improviso a não ser com a capacidade oral
de ordenar os questionamentos visando explica-los.
Outra aula observada, a segunda com a turma C33 (04/10/2017), teve sequência após a
exibição de um documentário da BBC sobre as explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki.
Juliano pensou essa aula justamente para estabelecer um diálogo sobre o que foi assistido no
documentário com a questão dos usos da energia nuclear, um gancho de argumentação
passando especialmente pelo uso militar dessa energia. A aula inicia com grande interesse por
parte dos alunos e alunas, sendo que o início da narrativa partiu de uma questão posta por uma
aluna:
Aluna: “Daí depois que os Estados Unidos atacou Hiroshima, o que o Japão
fez?”
Juliano: “O que que o Japão fez depois da guerra? A opção do Japão foi se
reconstruir com ênfase na educação e na tecnologia. Esta escolha política
que o Japão tomou depois da guerra. Mas olha só que doido. Depois da
guerra ... veio a Guerra Fria. Na Guerra Fria o mundo ficou dividido entre os
Estados Unidos e a União Soviética, este era o enfrentamento. Em todo
mundo, ou tu buscava um lado, ou tu buscava o outro. Tu ia te alinhar com
alguma superpotência, lembrem-se do que a gente falou no início do ano, do
que eram as superpotências. O Japão ... de quem vocês acham que o Japão
ficou do lado? / Aluno: União Soviética / Juliano: “Estados Unidos. Mas
olha só, o teu raciocínio é o raciocínio que qualquer um faria: por que o
Japão vai ficar do lado dos Estados Unidos se tomou uma bomba na
cabeça?”
Aluna: “Qual a moral de atacar com uma bomba atômica se depois eles
tavam defendendo o Japão?”
Juliano: “Se tu olha só no conflito Japão Estados Unidos tu chega em uma
conclusão. Se tu olha só no contexto da segunda guerra tu chega em outro.
Mas se tu olha no contexto mundial, a coisa fica um pouco mais clara. Olha
só, desde o século XIX tu tinha essa rivalidade Japão Estados Unidos, ta ...
vocês lembram por que os Estados Unidos entram na guerra? Porque o Japão
bombardeou ... fez um ataque aliás kamikase à base Pearl Harbour, lá em
1941. Então os Estados Unidos tavam naquela política de não se envolver na
guerra, e daqui a pouco faz o ataque e os estados Unidos entra. Então tinha
uma rivalidade direta com o Japão, certo? A bomba ela tem uma questão que
pra opinião pública, pra população dos Estados Unidos, é uma questão quase
de vingança. Pô, os caras nos atacaram, nós entramos na guerra por causa
disso. Só que a vingança é uma coisa muito doida. O primeiro ataque foi o
Japão aos Estados Unidos durante a guerra, ou os Estados Unidos se
metendo na política do Japão no XIX? Se tu for buscar o ponto inicial, sei lá
onde tu pode chegar, a questão é essa.
(.....)
“Por que os Estados Unidos usam a bomba? A experiência. Os caras tinham
uma baita de uma arma e queriam ver na prática ... e também era uma aviso
ao mundo pós-guerra: quem sobrevivesse ao pós-guerra tinha que saber
quem mandava na nova situação. Os Estados Unidos queriam mostrar pro
mundo quem era a potência militar da vez. Então a bomba era tudo isso: era
uma resposta a uma rivalidade direta, ela era um ataque ao inimigo que
restava, ela era uma experiência, e aqui tem uma questão ética fundamental,
277
uma experiência feita com seres humanos, e ela era um aviso militar ao
mundo do pós-guerra. Ela era necessária? É isso que vocês vão me dizer, em
algum momento ...
Além das questões repetidamente lançadas pelo professor, uma delas percorreu toda a
fala: por que a bomba atômica foi lançada? Juliano não ofereceu uma resposta simples: tanto
produziu um apanhado breve das relações entre Japão e Estados Unidos, suspendendo nesse
apanhado uma perspectiva de “culpado e inocente”, quanto focou na questão propriamente da
arma: utilizá-la teve um sentido de experiência e de aviso para o mundo. Todo esse diálogo
teve um sentido de narração, talvez imprevisto já que partiu do questionamento de uma aluna,
para na sequência adentrar na confirmação da questão implícita: “Hoje, a grande polêmica:
Energia Nuclear, sim ou não?”. Novamente uma aluna questionou: “Mas por que polêmica?”
Essa questão abriu a argumentação de Juliano à colocação de três caminhos, citados
rapidamente: daqueles que defendem o uso em armas e em energia, aqueles que defendem
apenas para energia, e aqueles que defendem o fim do uso da energia nuclear. O dialogismo
da aula fez com que a mesma se concluísse sem que a questão implícita da aula fosse
desenvolvida. Mesmo assim, foi evidente a grande participação dos alunos e alunas, em um
tema que gerou grande adesão, e a partir do qual se falou de terrorismo, Coreia no Norte,
regimes ditadoriais, perigos e limites da tecnologia, Amazônia e geoestratégia do Brasil. O
desdobramento deu-se na aula seguinte (3 - C33 - 22/11/2017), logo no exórdio da aula:
Figura 6 - Texto para reflexão, entregue pelo professor Juliano ao final da aula 3 - C33
visando negociar essas distâncias. Aristóteles já havia dedicado sua obra Retórica a classificar
os tipos de argumentos, constituindo duas categorias básicas: os indutivos, que partem de
exemplos para formar teses, e os dedutivos, que constroem as teses a partir de entimemas.
Perelman e Olbrechts-Tyteca expandem essa classificação, analisando premissas, lugares e a
relação entre ambos na forma de argumentos.
A relação entre entimemas (forma de argumentar baseada em premissas válidas, de
ordem dedutiva) e exemplos (forma de argumentar que se serve de fatos para comprovar
determinada premissa) são também constantemente utilizados nas salas de aula de História.
Remetendo às explicações de Knauss (2005), entimemas e exemplos são articulados nas
interpretações dedutivas e funcionais (as premissas enquadram os exemplos), probabilísticas
(os exemplos ganham uma dimensão central) e genéticas (premissas e exemplos dialogam de
forma complexa). É interessante perceber como os professores de História conseguem
transitar por estes variados modelos argumentativos. Lembremo-nos do que nos ensina
Certeau (2008, p. 100-101): ao tomar o discurso histórico como entimemático, na dimensão
do verossímil, isso significa dizer que coexistem as dimensões sucessividade junto às de
causalidade e as de coexistência junto às de coerência, plasmadas e ordenadas e tornadas
inteligíveis nas narrativas.
Alargando essas premissas de dedução ou indução, seguirei a divisão proposta por
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), que dividem os tipos argumentativos em quase-lógicos,
fundados na estrutura do real, que fundam a estrutura do real e de dissociação de noções. O
que percebi nas análises é uma grande alternância entre as formas argumentativas, em muitos
momentos dentro de uma mesma aula. Ora os professores induzem conclusões a partir de
premissas, ora deduzem a partir de exemplos, comparações e figuras retóricas, ora procedem
dissociações variadas. A forma argumentativa quase-lógica, que se constitui a partir de uma
aparência de lógica, foi a menos percebida. Como explorado no capítulo anterior, a passagem
em que Isadora problematizou a relação “colonizar povoar”, ou o argumento “perigo das
classes populares união das elites” são exemplos de lugares comuns dotados de uma lógica
interna que permitem sustentar uma argumentação.
281
“pensem, que se tu não tem alimento, não planta o alimento, tu tem sempre
que ficar andando de lugar em lugar, certo, daqui a pouco se tu começa a
plantar o alimento tu vai poder ficar migrando de lugar em lugar? ... ao ponto
que ficou conhecido como revolução agrícola esse processo de cultivar
alimentos, deixar de ser nômades ...”
Além de uma vinculação clara com o presente, na lógica de um conceito que permite
ler processos históricos próximos à nossa realidade, podemos caracterizar essa argumentação
como silogística, já que parte de um modelo geral para efetuar a leitura de casos particulares
em caráter dedutivo: as características do conceito de “autoritarismo instrumental”, entendido
como uma ação unilateral por parte dos que ocupam as instâncias de poder, com o objetivo de
“modernizar” a nação, permite a leitura tanto do período do Estado Novo, quanto de outros,
que podemos presumir serem o início da República e a Ditadura Civil-Militar. Lembrando de
Koselleck (apud PENNA, 2013, p. 196-197), as relações de coexistência funcionam de forma
muito similar às estruturas, na medida em que a sucessão temporal torna-se menos importante
do que as características funcionais e processuais que transcendem os acontecimentos, mas
podem manifestar-se nestes.-
Também a professora Isadora, na aula 3 - 91 (19/05/2016), trabalhou de forma
similar. Partindo de uma pergunta inicial, “o Brasil é açúcar?”, a professora lançou conceitos
atrelados à palavra “açúcar”, tais quais a sociedade do açúcar e a cultura do açúcar, de forma
a constituir um referente que acomodava um trabalho produzido pelos alunos e alunas nas
aulas anteriores: eles tiveram de selecionar alguns acontecimentos do período do açúcar, e
dispô-los na forma de um mapa conceitual:
284
Figura 7 - Mapas conceituais sobre a Sociedade do Açúcar, produzidos pelos alunos da professora Isadora.
Apenas após o trabalho ter sido apresentado pelos alunos é que a professora Isadora
constituiu a “síntese” entre esses acontecimentos:
Esse “carimbo” liga as partes que formam o Brasil Colônia a uma totalidade
explicativa: escravidão, plantation e branquitude são condensados na “Sociedade do Açúcar”,
ou simplesmente no “Açúcar”. Produz-se uma lógica através da associação e explicação de
um conjunto de fenômenos, acontecimentos ou processos como manifestações de uma
essência, que por sua vez se expressa em outros fenômenos, acontecimentos ou processos. A
História faz bastante uso desse tipo de argumento, na medida em que opera com termos como
285
do programa, teve como fio narrativo a construção de uma linha do tempo no quadro, que
organizava três grandes processos a partir da localização temporal: a exploração do pau-brasil,
o ciclo do açúcar e a escravidão indígena e africana, associando esse processo da escravidão
com as bandeiras. Os conceitos de mercantilismo, associado com o colonialismo e o
metalismo, surgiram em variados momentos da fala da professora. Ocorreu que esses
conceitos operaram como reservas de sentido, em que Renata foi fixando novos sentidos
construídos. A explicação para o processo das bandeiras situa-se justamente nessa lógica:
As bandeiras são consequência do metalismo, que por sua vez é um conceito derivado
do mercantilismo. São estes conceitos, estas essências explicativas, que oferecem uma reserva
de sentido para a explicação que vem na sequência.
Todavia nem todas as formas argumentativas por coexistência procedem dessa forma.
A regra geral deduz o caso específico também ao projetar experiências do presente para o
passado. Juliano, ao buscar explicar as técnicas de dominação às quais estavam submetidos os
escravizados no Brasil colônia (na aula 2 da turma C23 - 27/09/2017), lançou a seguinte
argumentação:
“o que que tu precisa para agir em conjunto ... com as outras pessoas?” /
Aluno: “as outras pessoas né” / Aluno 2: “respeito” / Juliano: “Respeito, tu
precisa ter um mínimo de respeito, colaboração, dentro do grupo ... entender
o que a pessoa tá falando, ou seja, entender a língua. Tu tem que ter
solidariedade, que tem haver com respeito ... Se tu vai fazer um trabalho
junto, tu tem que ter um grau de solidariedade, tu tem que ter uma
cumplicidade. A partir do momento em que os portugueses misturavam
línguas diferentes, etnias diferentes, rivalidades diferentes, eles limitavam o
que? A ação coletiva ... Eles faziam com que fosse difícil o escravo, ou
aquela pessoa escravizada”
Novamente ele lança uma tese, potencialmente próxima da realidade dos alunos,
ligada à força advinda do pertencimento a grupos, sejam quais forem, para em seguida
contrapor a fraqueza do contrário, do não pertencimento a esses grupos. Essa argumentação é
a tese, explicitada de seu valor atribuído como universal na fala “isso vale para praticamente
tudo”, a partir da qual ele interpreta e dá sentido à estratégia de dominação executada pelos
senhores de escravos. Em ambas passagens citadas, é a compreensão desses sentimentos (de
solidariedade e união), que opera como lógica explicativa para compreender a ação no
passado, ou no caso a explicação da dificuldade de ação por parte dos escravizados.
Por fim, percebi nas aulas observadas outra construção que opera em uma lógica de
coexistência: a relação entre estruturas e processos históricos e a narração de acontecimentos
“vivos”. Tal qual a problematicidade, que deve ser controlada sob risco de comprometer a
compreensão da aula, também essa relação deve se pautar em uma correlação de sentidos
entre o processo e o acontecimento manuseado (a menos que o professor procure constituir
uma dissociação). O professor Germano, na entrevista, comentou essa relação:
“as vezes tu consegue pegar uma história bem banal, situada dentro de um
período histórico, dentro de algum aspecto histórico que tu pretende
exemplificar e abordar naquela aula, e a partir daquela pequena história, as
vezes uma história de vida, de um dia na vida de uma pessoa, na França
moderna, na Rússia revolucionária, por exemplo, tu consegue ir aos poucos
288
“a transição, isso é uma coisa real, as vezes é difícil, as vezes ela é brusca.
Porque tu consegue criar uma presença com os alunos, as vezes uma
expectativa e uma presença dos alunos através daquela história narrada, que
é uma história banal, cotidiana, pequena que envolve os alunos em uma cena
contada e aí quando tu vai fazer o gap isso significa ... alguma coisa se perde
ali, murcha, mas ok, é do jogo, do que a gente é demandado a fazer pra
construir um conhecimento histórico que seja mais abrangente, que os alunos
consigam fazer links entre as dimensões de historicidade mesmo.”
“o resgate das personagens talvez seja algo que a gente possa pensar (...) eu
não vejo nenhum problema no meio termo de vez em quando ... por
exemplo, eu vou trabalhar digamos alguma coisa de Iluminismo e vou falar
dos precursores, cai algum pedaço eles estudarem um pouquinho sobre a
vida de, sei lá, ... o Newton por exemplo? Ou do Descartes? ... É um
repertório, uma ampliação de repertório por um lado, por outro lado, são
pessoas de verdade, e é nesse sentido que eu gostaria de tratar ... E perguntar
para eles por que fizeram desse cara um herói, e cair na questão da
problematização.
289
“vocês tem que cuidar para não confundir o que é causa com o que é
consequência (.....) Por exemplo: as grandes navegações são consequências
de uma forma de solucionar as crises que aconteceram no século XIV”
“achar novas rotas para as Índias e achar metais preciosos não são
consequências, são causas. E aí, quando esse processo, e por isso que
Portugal e Espanha são os primeiros a sair navegando, porque eles foram os
primeiros a centralizar politicamente os poderes na mão do estado e na mão
290
“Por que pra explicar esse conteúdo eu não passei linha do tempo no quadro?
Porque pra entender as grandes navegações não basta entender as
navegações que foram acontecendo uma depois da outra, isso não explica
esse processo histórico ... vocês percebem que esse processo histórico pra
entender tem que entender os fatos das grandes navegações, que são aqueles
que eu já falei, né, tipo, de como eles saíram navegando, as causas e as
consequências das grandes navegações, e tem que entender como essas
grandes navegações foram possíveis de entender relacionadas com a
colonização das Américas e a partir de pensar um modo de administrar essa
economia, que era o mercantilismo. E aí a gente entende o quão complexo, o
quão difícil é entender esse processo histórico, porque pra entender ele a
gente tem que entender essas características de fatos, causas e consequências
das navegações, colonialismo e mercantilismo, com um influenciando no
outro. Entenderam?”
Apenas as relações de sucessão não dão conta de explicar o processo das grandes
navegações, segundo Renata. Isso porque é preciso compreender processos de fundo, estáveis,
e que dão sentido às narrativas. O principal deles é o mercantilismo, que congrega em seus
princípios os movimentos desdobrados em torno das grandes navegações, e também o
colonialismo, consequência direta do “desvio” das grandes navegações.
2.3.3.2 – Argumentos que fundam a estrutura do real a partir dos casos particulares
“Digam o que é paternalismo? ... É legal ter um pai, né? Todo mundo gosta
de ter um pai. Ao longo do período Varguista, especialmente do Estado
Novo, o Getúlio Vargas, especialmente através do Ministério do Trabalho,
do DIP, vai construir uma imagem de liderança política e carismática que
estava relacionada aos direitos que ele tinha concedido de forma paternal aos
trabalhadores. Esta é a imagem: Filhos famintos que não tem direitos em
função do Brasil ser um país atravessado pelos desejos de uma oligarquia de
pretensões liberais e que nunca olhou muito bem para a cara dos
trabalhadores, que tratavam os trabalhadores como um problema de polícia e
não um problema social. E aqui vem o DIP, os intelectuais ligados ao regime
varguista ... pra dizer que o Vargas é a figura que estava dando aos
trabalhadores os direitos que eles mereciam pela posição que eles tinham na
sociedade. Isso é uma construção que vai acontecer a partir do DIP, da Hora
do Brasil, com discursos constantes que explicavam aos trabalhadores seus
direitos. (...) aqui ela (Hora do Brasil) começa a ser utilizada para construir
essa imagem de pai do povo, pai dos trabalhadores. Isso não quer dizer que
isso fosse verdade, que fosse exatamente assim, que todo mundo encarasse o
Vargas como alguém que dava direitos pra pessoas que precisavam de
direitos. Havia uma série de movimentos na sociedade que demandavam
esses direitos. Exigiam um tipo de melhoria, de diálogo entre trabalhador e
empregado, um tipo de intervenção do estado na relação entre trabalhador e
empregado de muito mais tempo atrás. Então o Vargas não chega como um
alienígena ... e diz: ‘Bom, agora estou aqui para atribuir os direitos que eu
placidamente como um bom pai darei a vocês’. A coisa é um pouco mais
complexa do que isso. Mas isso é uma imagem importante pra fundamentar a
estrutura ideológica do regime e pra dar justificação ao regime Varguista.
Era importante que a Revolução de 30, o governo Vargas e o Estado Novo
fossem vistos como uma ruptura em relação com a República Velha, uma
ruptura em relação à política oligárquica que tratava a população como caso
de polícia, e essa construção da História do Brasil ela passa por esse período.
O paternalismo tem haver com toda essa complexidade, não é uma coisa
dada do tipo “há, os caras eram simplesmente paternalistas”. Tem que
entender toda a construção que está por trás desse conceito. É por isso que eu
sou chato com vocês e que as coisas não são tão simples quanto parecem.”
292
“eu visitei uma vez uma vila da idade média, com as coisas da Idade Média,
com as casinhas e tudo, quando eu fui viajar, e era tudo pequeno, banquinho
pequeno, mesinha pequena (...) mesinha baixinha.” / Aluno: “onde isso
professor?” / “Isso eu visitei na Espanha, na fronteira com a França (...) Aí
eu disse: mas por que? As pessoas eram pequenas, não se alimentavam.
Então havia uma diferença nos aspecto visual de um camponês e de um
senhor feudal.”
alimentação. É possível dizer que, ao menos, criou-se uma presença a partir do exemplo
citado.
Outra forma argumentativa próxima ao exemplo é a comparação, identificando
semelhanças e diferenças entre dois fenômenos históricos semelhantes, de forma a negociar a
distância entre aquilo que é distante e aquilo que é familiar. Colocam-se dois termos em
relação, sendo um deles, o mais forte (do ponto de vista da convicção ou da proximidade
argumentativa), que explica o segundo. O Tratado da Argumentação, em seu parágrafo 57,
coloca a argumentação por comparação entre os argumentos quase-lógicos, já que se trataria
de uma relação de medida, se tratando de um ato matemático. Tendo a seguir a interpretação
de Olivier Reboul (1998, p. 183), quando alega que, por mais que haja uma medida, os
referentes são sempre empíricos, o que constitui a fundação de estruturas do real a partir
desses contatos. Lautier (2011, p. 53) situa a comparação como absolutamente presente no
ambiente escolar, ora mobilizada pelos professores, ora pelos alunos, entre dentro de um
“pensamento natural”, sujeito sempre ao anacronismo (como já explorado no capítulo 2.2.2),
mas imprescindível para a negociação tanto da aproximação com o aluno, quanto da distância
adequada em relação ao conhecimento histórico.
Laerte (aula 1 - 231 - 27/04/2016), ao tratar das diferenças entre ricos e pobres entre os
nobres medievais e os servos ou camponeses, faz uma comparação com o presente, lançando
mão de uma pequena narrativa, segundo ele verdadeira:
“Em [19]75 ainda não tinha se conseguido dizer que as pessoas moravam em
Brasília, tá, no final da década de 80 vão começar a aparecer as primeiras
bandas que vocês conhecem de rock que são de Brasília e isso mostrava que
tinha uma cultura que agora era de Brasília ... em Brasília, é só um exemplo,
com Legião, Brasília passou a fazer parte do mapa ... existe gente que mora
em Brasília, Brasília não é mais uma cidade dormitório como era até pelo
menos uns 20 anos depois que ela foi criada. Isso significa que existe gente
aqui, tá, e então a gente tem uma ampliação do território. Gente, crescer
territorialmente não significa só marcar fronteira, significa viver ali mesmo,
significa produzir riqueza e produzir cultura.”
compreensão do que efetivamente é “povoar”, situando não apenas posse, mas também
produção material e cultural.
Por vezes, ao estabelecer essas comparações cai-se inevitavelmente no anacronismo,
aproximando aquilo que “não poderia” ser aproximado. Mas cabe lembrar novamente de
Jacques Rancière (2001, p. 49), ao defender, na ciência histórica, o uso da acronia, “uma
palavra, um acontecimento, uma sequência significante saídos do ‘seu’ tempo, dotados da
capacidade de definir direcionamentos temporais inéditos, de garantir o salto ou a conexão de
uma linha de temporalidade com outra.” Na medida em que é solicitado ao professor
justamente efetuar essa conexão entre as temporalidades, não é possível que ele se desfaça
completamente dos anacronismos, sob pena de que aos seus alunos os processos estudados
não sejam inteligíveis. Isadora compreendeu esse processo. Também Juliano o faz, afirmando
na entrevista que quando desenvolve algum conteúdo mais estrutural, traz “alguns
acontecimentos dos elementos micro para ilustrar e sempre tent[a] fazer aquele vínculo com o
tempo de agora e com a vida deles.”. Situo o reconhecimento desse processo também como
um desenvolvimento advindo da experiência. Lautier (2011, p. 53) afirma que, via de regra,
um professor jovem resiste mais à uma analogia espontânea que não se enquadre em um
raciocínio considerado legítimo para a disciplina História, enquanto professores experientes,
mesmo que formulem reservas a esse procedimento, “justifica a operação de pensamento em
curso nos seus alunos”. Tanto Juliano quanto Isadora, professor e professora experientes,
como dito acima, compreenderam esse processo.
Diferente do exemplo, mas que pode ser utilizada em uma comparação, a ilustração
não se relaciona necessariamente à temática abordada. Como um argumento que fundamenta
a estrutura do real, ela é utilizada com o objetivo de reforçar a adesão a uma regra já
enunciada, aumentando-lhe a “presença na consciência” (PERELMAN e OLBRECHTS-
TYTECA, 2005, p. 407), o que lhe permite ser duvidosa ou fantasiosa (diferente do exemplo,
que deve ser incontestável sob pena de colocar toda a regra em suspeição) desde que
impressione vivamente a imaginação para impor-se à atenção. Na sala de aula existe uma
recorrência desse tipo de figura argumentativa, especialmente quando utilizamos alunos como
representando personagens históricos, grupos sociais, nações, e cetera. Esse caráter ficcional
abre um campo de possibilidades para a fabulação histórica, para a dramatização. O fio da
narrativa histórica se estende, incorporando sujeitos e atos, compondo um enredo/explicação
que integra a própria escola e seus alunos (MONTEIRO, 201, p. 204). O professor Germano,
em certo momento de uma de suas aulas (1 - 301 - 23/10/2015), a partir de uma interpelação
de um aluno, lançou mão de uma ilustração, simulando uma questão de vestibular:
296
A resposta da questão simulada é óbvia, e não é ela o foco. As opções “a” e “b” são
claramente inverossímeis (e o tom irônico na fala do professor Germano ressaltou esse caráter
inverossímil, apelando assim para um argumento ao absurdo (apodioxe)), e tem como
objetivo reforçar a presença da opção “c”. Durante a fala do professor, um aluno, em tom de
deboche, lançou uma alternativa “d” sobre a abolição do tráfico negreiro. O absurdo da
alternativa ligou-se à proposta da ilustração, e naquele momento fomentou um debate sobre as
diferenças entre o tráfico negreiro e a abolição da escravatura, que foi bem explorada pelo
professor Germano. Os saberes históricos dos alunos, em uma aula aberta e permeável a esses
saberes, tem um grande potencial de fomentar novos debates e novas aprendizagens.
Um dos argumentos de ligação pela contradição é o ridículo, aquilo que merece ser
sancionado pelo riso, ou, mais especificamente, excluído pelo risível, tal qual a estratégia do
professor Germano. É ridícula uma afirmação que entra em conflito, sem justificação, com
uma opinião aceita, contra a lógica ou contra os fatos aceitos. Segundo Perelman (2005, p.
234) o temor ao ridículo foi sistematicamente utilizado pela educação, e se trata de uma arma
tão eficaz que alguns psiquiatras enfatizam o seu perigo para o equilíbrio das crianças,
ensejando a ansiedade, já que muitas vezes a transgressão que gera o ridículo se dá de forma
inconsciente e ignorante da regra. Como recurso argumentativo, trata-se de uma poderosa
ferramenta contra interlocutores que se recusam, sem razão, a aderir a algumas de suas
premissas, ou contra aqueles que aderem a teses incompatíveis sem se esforçarem em remover
essa incompatibilidade.
Esse gênero de raciocínio pode traduzir-se por uma figura, a ironia. Através da ironia
“quer-se dar à entender o contrário do que se diz” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 235), em uma argumentação indireta. A ironia opera com forte fator pedagógico, e
surge mais como um reforço de um argumento em detrimento de outro oposto, em geral
tornado risível. Mas depende completamente do contexto de enunciação, da existência de
conhecimentos complementares acerca dos fatos (que permitem aos indivíduos perceberem a
ironia), o que pode gerar constrangimentos. Narro uma cena de sala de aula com meus alunos,
do 9º ano do Ensino Fundamental: estávamos em uma aula de produção de trabalhos, mais
297
livre, e os alunos se espalharam por vários pontos da escola. Alguns alunos e alunas ficaram
na sala de aula, e começamos a conversar sobre o momento político brasileiro (era o ano de
2017). Como se tratava da semana de halloween, alunos do 3º ano do Ensino Médio foram
fantasiados, e um deles foi de “fantasma do comunismo”. Na conversa, falamos que a
existência do fantasma era prova inconteste do perigo real do comunismo, mais vivo do que
nunca, além de provar que a doutrinação comunista nas escolas estava a todo curso. Tudo com
altas doses de ironia. Em certo momento um aluno que estava conosco mas sem participar da
conversa disse: “eu queria ser mais inteligente para conseguir entender o que vocês dizem”.
Caso o acordo não esteja muito bem fundamentado, corre-se o risco de ou haver a
incompreensão do que é dito, ou, mais grave, a incompreensão de que o sentido do enunciado
é o contrário. Ela necessita de uma comunidade de inteligibilidade. Sem contexto, sem
partilha de conotações entre locutor e interlocutor, a contradição irônica não poderia existir.
Por fim, a ironia manifesta-se por uma disjunção, procurando opor os dois conjuntos: o da
literalidade da fala, e o do seu contrário, como sentido pretendido. Pensando essa figura em
termos de identidade e diferença, é possível dizer que a identidade é mínima, mas a diferença
é máxima, o que a torna uma eficaz ferramenta de dissuasão.
Nas observações, percebi outra ilustração, lançada mão pelo professor Juliano. A
temática da aula 3 - C22 (22/11/2017), escravidão e formas de dominação e resistência,
propiciou a construção de uma narrativa que envolvia o professor, os alunos e a escola:
Uma primeira ilustração situou o próprio professor como uma autoridade arbitrária
fictícia, buscando nas possíveis reações dos alunos elementos para que estes compreendessem
o conceito de resistência. Mais ao final da aula, ao explicar o processo de divisão entre os
escravizados a partir da divisão pelas tarefas, em especial no contraponto entre os escravos de
engenho e os escravos domésticos, Juliano lançou mão da seguinte ilustração:
298
“pensem assim, vocês são ... 18, eu tiro desses 18 cinco para ficar
trabalhando aqui comigo, para ficar conversando e fazer uma atividade mais
leve, e os outros 13 eu vou mandar lá rebocar terminar a obra da luz que não
termina nunca. Aí vou botar lá, não te choro nem vela, vão ficar lá
rebocando fazendo aquela atividade e os outros que eu vou escolher vão
ficar aqui comigo ... sei lá ... vocês vão fazer um trabalho que vai desgastar
menos, e os outros vão estar lá terminando a obra. Que que vai acontecer? ...
Se tu estiver entre aqueles que estão ralando, o que tu acha que eles vão
sentir com aqueles que estão na moleza? [Alunos intervém, dizendo que não
gostariam da situação]. ... Os escravos que estavam com um trabalho mais
opressivo acabavam tendo algum ressentimento com os que estavam nos
serviços domésticos, e com alguma desconfiança, pois eles transitavam pelo
ambiente que era um ambiente diferenciado, que era a casa da família de
escravos. (...) Como tu garante a ... obediência do escravo? A coisa que a
gente pensa é o medo, o castigo físico. Agora pensem em um escravo que
vai subir num cavalo para tocar a boiada do dono. Vocês acham que bater
nesse escravo vai ser o suficiente?” / Alunos: “Não” / “Porque o cara tá num
cavalo. O que garante que esse cara, num primeiro descuido, não vai sumir e
ainda levar uma meia dúzia de coisas. Que que eu quero dizer: só o castigo,
só o medo não adiante. Alguns escravos eles tinham que se sentir
beneficiados, eles tinham que ter alguma coisa que fizesse com que eles
aceitassem essa relação de dominação de uma forma ... aceitável.”
Lembro novamente que, diferente do exemplo, que deve ser verdadeiro sob risco de
colocar toda a argumentação sob suspeita, a ilustração pode ser duvidosa ou francamente
irreal, devendo todavia “impressionar vivamente a imaginação para impor-se à atenção”.
Além disso, ela corre muito menos risco de ser mal interpretada, uma vez que, desde o início,
os interlocutores são guiados pela regra que organiza a ilustração (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 408). Os alunos sabiam desde o início que o professor não
os faria rebocar as paredes. Mesmo assim, a força da ilustração pode advir justamente da
repercussão afetiva e viva que ela mobiliza nos ouvintes, em uma conclusão que reforça a
regra de forma indiscutível. Esse jogo fabulatório proporcionado pela ilustração transforma
também a própria aula expositiva, não mais a expressão de um professor autoritário e
disciplinador, mas “o esforço cuidadoso e expressivo de um professor que, com sua voz,
gestos e presença, invoca algo do mundo na sala de aula” (PEREIRA e TORELLY, 2014, p.
298).
299
2.3.3.3 – Argumentos que fundam a estrutura do real a partir das figuras retóricas
Como ensina Reboul (1998, p. 113), as figuras são recursos de estilo que permitem
uma comunicação ao mesmo tempo livre – não é obrigatório que lancemos mão delas – e
codificado – já que as figuras constituem-se a partir de estruturas conhecidas, como
metáforas, ou analogias. Todavia dizemos que são figuras retóricas apenas quando colocadas
a serviço da persuasão. Nesse sentido, no caso da sala de aula, diremos que as figuras são
retóricas na medida em que negociam distâncias na compreensão dos ensinamentos dos
professores e professoras em relação a seus alunos. Não são meros ornamentos, mas peças
importantes na negociação dos sentidos.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 189-190) inserem em sua taxonomia das
técnicas de argumentação também as figuras como modos de expressão que não se enquadram
no comum da linguagem, sendo indispensável que possuam uma estrutura discernível
independente do conteúdo (ou seja, uma forma estável) e um emprego que se afasta do modo
habitual de expressão, e por isso chama a atenção.
(...) só há figura quando se pode operar uma dissociação entre o uso normal
de uma estrutura e seu uso no discurso, quando o ouvinte faz uma distinção
entre a norma e o fundo, que lhe parece impor-se. Mas é quando essa
distinção, percebida logo de início, se extingue em virtude do efeito mesmo
do discurso, que as figuras assumem todo o seu significado argumentativo.
(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 191)
Os autores também apontam que farão uso da nomenclatura tradicional das figuras,
mas problematizarão a distinção entre figuras de pensamento (as figuras que, assumindo seu
significado argumentativo, ajudam a tornar o discurso eficaz) e figuras de palavras (as
estruturas reconhecíveis, mas não necessariamente persuasivas): uma mesma figura,
reconhecível pela sua estrutura, nem sempre produz o mesmo efeito argumentativo. A
proposta é se perguntar, dentro “deste ou daquele procedimento ou esquema argumentativo,
se certas figuras são aptas para cumprir a função que reconhecemos nesse procedimento, se
podem ser consideradas uma das manifestações deste” (2005, p. 195). Desta forma as figuras
serão desmembradas com o objetivo de enfatizar melhor o significado argumentativo das
mesmas: “que o efeito ou um dos efeitos de certas figuras é, na apresentação dos dados, impor
300
48
As categorias das figuras desenvolvidas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 195-207) são: escolha
(interpretação, definição oratória, perífrase, antonomásia, prolepse, retificação e correção), presença
(onomatopeia, repetição, anáfora, conduplicatio, amplificação, sinonímia e metábole, procedimento /
interpretativo, pseudodiscurso direto) e comunhão (alusão, citação, apóstrofe e interrogação oratória,
comunicação oratória, enálage da pessoa e enálage do número de pessoas).
49
Também é possível dizer que a diferença entre a comparação e a analogia é por vezes nebulosa. Comparar um
processo similar entre o presente e o passado torna-os heterogêneos devido à diferença no tempo? Ou essa
heterogenia diz respeito apenas à natureza dos objetos ou processos? A realidade teima em dificultar sua
apreensão...
301
pelo menos vinte alunos que afirmaram “ficar imaginando os processos históricos estudados”.
Conseguir imaginar esse passado significa tanto pensá-lo com as categorias de hoje, quanto
demostrar empatia para compreender como homens e mulheres em tempos, com hábitos, e em
lugares diferentes, puderam viver suas vidas.
A professora Isadora destacou-se no uso das analogias. Pude contabilizar pelo menos
uma dezena delas, tanto em uma relação passado-presente ancorando a reflexão em um
pensamento social (como quando associou os interesses da colônia brasileira a um fictício
interesse da turma 91, ou do segredo da fórmula do guaraná Fruki (cuja fábrica havia sido
visitada pelos alunos) em relação ao segredo do refino do açúcar pelos holandeses), quanto
em uma relação passado-passado, mobilizando uma cultura histórica já apropriada (como
quando utilizou o mito grego do Cavalo de Troia para explicar a doação das capitanias
hereditárias para os donatários). Analogias que constituíram imagens-chave, emprestadas do
cotidiano e de uma cultura comum (presumida, pois acredita que todos conhecem a narrativa
da Guerra de Troia), e que contribuem para a construção de representações significantes
(LAUTIER, 2011, p. 45).
Desenvolvendo a situação do nordeste brasileiro após a saída dos holandeses (aula 5 -
92 - 31/05/2016), Isadora estabeleceu uma analogia desse processo com as ocupações por
parte dos estudantes das escolas estaduais em Porto Alegre, que aconteciam na semana da
aula observada. Ela perguntou:
“não vou falar das ocupações, vou usar como exemplo ... a vida no [colégio
estadual], as pessoas, vai voltar a ser exatamente o mesmo como eram antes
da ocupação terminar? Nem tem como. Não há como. Não tem como entrar
de cabeça em um projeto e querer voltar a ser o que era antes. Então, quando
essa área do Brasil é ocupada pelos holandeses, tudo muda. (.....) Várias
coisas mudaram: adivinhem quem aprendeu a fazer açúcar? Os portugueses,
os espanhóis, os brasileiros. No momento que eu invadi, não foi de graça, eu
entreguei a tecnologia. (.....) Esse pessoal deixou um Recife muito
desenvolvido (...) [o que vai se desenrolar no conflito dos Mascates]”
Por mais que faça uso do termo “exemplo”, ela procedeu uma analogia entre um
acontecimento próximo dos estudantes, as ocupações, visando explicar a ideia de
“transformação” em outra realidade, no Brasil Holandês, esse sim objeto específico da aula.
No funcionamento da analogia, os holandeses, ao saírem, transformaram a realidade do
nordeste brasileiro tal qual os estudantes das ocupações, também ao saírem, transformaram as
dinâmicas dentro das escolas ocupadas:
302
TEMA FORO
A: Holandeses C: Estudantes das escolas estaduais
B: transformam o nordeste D: transformam as escolas
TEMA FORO
A: Holandeses C: Estudantes do colégio
B: invadem o Nordeste D: projetam um livro
Essa analogia tem a peculiaridade de inserir os próprios alunos como atores da mesma,
reforçando seu caráter problematológico. Como ensina Meyer (1998, p. 111), se há a
colocação de uma figura, essa carrega uma questão que necessariamente interroga o auditório
e o força a responder para além da literalidade, sob pena da não compreensão da
argumentação. Essa necessidade de resposta é requerida não apenas para a analogia, mas para
que, a partir da sua resolução, compreenda-se a ligação de sucessão entre União Ibérica
controle espanhol dos negócios portugueses rompimento do acordo entre portugueses e
holandeses a respeito do açúcar necessidade de ação por parte dos holandeses (onde é
inserida a analogia).
É preciso apontar também os possíveis limites das figuras, especialmente das
analogias. Na medida em que elas são caminhos aproximativos, a partir de ligações de sentido
que aproximem os diferentes, criando identidades, há sempre dependência do contexto de
enunciação, sob risco duplo de um foco equivocado ou de simplesmente não fazer sentido.
Sobre o primeiro risco, Lautier (2011, p. 54) nos lembra de que, para muitos professores,
existe o receio de que o aluno foque apenas no exemplo, na ilustração ou no tema mais forte
da analogia, não retendo ou compreendendo a ideia geral desenvolvida. Lembremos do aluno
do professor Laerte que, em sua comparação entre o comprador do imóvel e a realidade
medieval, compreendeu “que ninguém merece ser julgado só pela roupa ou etnia, todos são
iguais por dentro.”
Sobre o segundo risco, observemos outra analogia. O professor Laerte (aula 1 - 231 -
27/04/2016), ao procurar explicar a natureza defensiva dos castelos medievais, lançou mão da
analogia a um “forte apache”. Todavia uma aluna imediatamente questionou: “mas o que é
isso?” Parte da argumentação subsequente tentou explicar o que eram os fortes apaches
(explicação que lança mão de outras analogias, com fortes argentinos, o forte de Copacabana
e a Ilha Fiscal do Rio de Janeiro, criando analogias das analogias), visando buscar o sentido
que deveria ter ficado claro. Nota-se com isso que o uso da analogia depende da escolha certa,
sob risco de não completar o sentido e mesmo criar mais confusão. Como ensina Reboul
(1998, p. 120) “por falta de referências culturais, uma figura pode ser incompreensível; torna-
se então enigma, mas aí deixa de ser retórica.”
304
A metáfora tem uma construção similar à analogia, porém condensa o tema e o foro,
omitindo alguns de seus termos. Aristóteles (Retórica, III, 10-11, 1410b – 1413a) aponta que
a metáfora funciona de forma similar ao raciocínio silogístico: um caminho entre o conhecido
e o desconhecido, do familiar para o menos familiar, ressaltando as semelhanças e
constituindo identidades. Como nos ensina Lineide Mosca (2001, p. 35), a metáfora tem sido
objeto de muitas investigações justamente pelo valor heurístico ligado à sua capacidade
mediadora. Para Perelman e Tyteca (2005, p. 453-460), essa figura produz um encantamento
na medida em que possui um sentido não evidente, que requer certa inteligência para plena
compreensão. Quando essa percepção é alcançada, o auditório tende a focar a atenção, devido
ao prazer proporcionado pela descoberta: “metaforizar bem, como diria Aristóteles, é perceber
o semelhante” (RICOUER, 2010: p. 2). Sua força persuasiva encontra-se então nos elementos
emotivos que circulam entre o orador e o auditório, ultrapassando o papel puramente
informativo.
Duas metáforas observadas merecem ser exploradas. Uma delas, já desenvolvida no
capítulo 2.3.1.4, é a metáfora da luz. A professora Isadora iniciou a aula (8 - 92 - 20/06/2016)
escrevendo a palavra “Luz” no quadro, solicitando que os alunos escrevessem ao lado
palavras relacionadas. Após um debate, e a organização das palavras em categorias, associou
Luz às “ideias” e, por fim, ao Iluminismo e ao conhecimento científico. A relação contém
uma analogia subjacente:
TEMA FORO
A: Iluminismo / ciência C: Luz
B: permite enxergar D: permite enxergar
Essa metáfora, por ter sentidos socialmente disseminados (ligados desde a filosofia até
as religiões), permite ser condensada em apenas uma palavra, a própria “Luz”. A identidade é
máxima ao colocarmos os termos “A ciência é luz”, “procurando uma semelhança entre dois
domínios ou conjuntos disjuntos” (MEYER, 1998, p. 117), de um lado um procedimento
humano, de outro uma propriedade física.
O professor Juliano também pôs em ação uma metáfora. Em uma aula sobre
escravidão e formas de resistência e dominação (3 - C23 - 04/10/2017), já problematizada no
capítulo 2.2.2, após um desentendimento com alguns alunos, o professor procurou aproximar
o conteúdo desenvolvido de uma aplicação desses conceitos na realidade dos alunos. Para
efetuar essa identidade, lançou mão de uma comparação metafórica com a palavra “lixo”:
305
TEMA FORO
A: Eu e vocês C: Lixo
B: não temos valor D: não tem valor
Ao ser condensada, a metáfora surge: “Me tratam como lixo!”. O foro sustenta o
significado graças à familiaridade do pouco valor atribuído ao “lixo”, sintetizando nessa
palavra o centro da comparação. Produz um efeito de choque, abrindo a possibilidade de ver
as coisas de um modo diferente, ao mesmo tempo em que a identidade constituída entre o
tema e o foro funciona como uma resposta que torna irrisória qualquer negação. Como nos
ensina Meyer (1998, p. 71), “se afirmamos que a Terra é um tomate ou que Ricardo é um
leão, a negação do predicado torna-se fútil, porque até o próprio locutor concordará em dizer
que a Terra não é um legume nem Ricardo um animal. Mas o problema de saber o que é a
Terra ou Ricardo permanece intacto.”
Em outra situação (aula 9 - 92 - 21/06/2016), a professora Isadora lançou mão de uma
estratégia de problematização ao início de uma aula, apelando para a construção de uma
metáfora a partir da palavra “camadas”. Solicita então que os alunos tragam exemplos do que
pode ser apresentado ou ter camadas. Os alunos participam ativamente, oferecendo vários
exemplos: cebola, bolo, mil-folhas, pele, bergamota, planeta terra e atmosfera. Após isso,
Isadora intervém:
“Eu enxergo camadas, e por que eu to fazendo isso? Porque depois do nosso
trabalho em grupo uma das atividades que a gente vai fazer ligada, conectada
306
Cada um vai receber uma folha vazia, e cada um vai escolher ou uma cebola,
ou alguém no inverno ... to me lembrando das ideias que vocês deram ... ou
uma flor em camadas. Cada um vai escolher uma daquelas imagens cheias
de camadas que vocês indicaram ali no quadro (...) e vocês vão distribuir as
ideias do filme nas camadas até chegar naquilo que cada um acha que é a
ideia que tá lá no centro das camadas. Cada um vai escolher, vai discutir, o
que é o âmago ... o que é a ideia central. Então, o filme tá em camadas, ele
conta várias histórias, uma dentro da outra, ou ele trata de vários assuntos
um dentro do outro (...).
“muitas coisas que a gente tem hoje, hábitos que a gente tem hoje, são coisas
novas. Toda alimentação, o modo da mesa por exemplo, tudo se modificou.
Uma das coisas que é criada depois (...) no final da Idade Média, no começo
308
da Idade Moderna, é o hábito de lavar as mãos antes de comer. Por que isso?
Porque eles pegavam a comida com a mão. A carne eles comiam com a
mão.”
construção histórica.
Em outro momento de suas aulas, Isadora novamente produz uma dissociação, dessa
vez mediada por uma analogia:
O que buscar na sala de aula? Como lembra Reboul (1998, p. 194), não se espera de
um argumento apenas que ele seja eficaz, mas que seja justo, capaz de persuadir um potencial
auditório universal. O autor segue dizendo que a única garantia para esse processo é quando o
argumento se expõe de forma deliberada à discussão e à contra argumentação, remetendo à
grande regra da retórica, de que o orador nunca está sozinho. A verdade é encontrada na prova
do debate, tanto do orador com seu auditório, quanto do orador consigo mesmo.
O professor não opera no vazio. Lida com a vida de seus alunos, que carregam para a
sala de aula crenças, significados, valores, atitudes, comportamentos que os aproximam ou
distanciam da própria ideia de “aula”. Mesmo que haja um trânsito entre um auditório
universal como horizonte de racionalidade, as aprendizagens significativas necessitam da
articulação com as provas do discurso, na medida em que levam em conta não apenas o logos,
mas a sua relação com o ethos e o pathos. Ela só é significativa se levar em conta o auditório
para quem é direcionada, sob risco de o professor simplesmente não ser ouvido.
Lineide Mosca (2001, p. 23), ao problematizar o conceito de retórica, nos ensina que o
“estudo da produção persuasiva propriamente dita, da expressão eficaz, é baseada no acordo
implícito dos valores e no princípio da cooperação dos envolvidos no ato comunicativo.” Só
existe comunicação quando um acordo, na maior parte das vezes implícito, dispõem um
falante e um ouvinte. Os professores sabemos da grande dificuldade em conduzir uma aula
quando o acordo prévio não existe ou é de difícil.
Esse acordo leva em consideração alguns fatores. Primeiramente o paradoxo da
obrigatoriedade escolar: se por um lado essa obrigatoriedade coloca jovens de fronte a
professores de forma que, do contrário, boa parte desses jovens não estariam na sala de aula,
por outro, a obrigação e a própria autoridade do professor podem ser barreiras para uma
adesão verdadeira, vendo nos conhecimentos ensinados apenas um saber morto, que não diz
respeito aos alunos, a não ser para preencher uma função avaliativa (LAUTIER, 2011, p. 50).
Em segundo lugar, espera-se que o professor saiba “dar aula”, por vezes tida como sinônimo
de saber falar, e trabalha com verdades sobre o passado, “aquilo que efetivamente aconteceu”.
Como dito, nunca o professor está sozinho. A aula é sempre um processo
argumentativo pois o professor toma (mesmo que minimamente) a existência dos outros na
311
montagem da mesma. Mesmo em uma aula silenciosa, os alunos estão sempre dialogando,
mesmo que na presunção do professor.
Todavia, nossas salas de aula não são mais espaços de via única da palavra. Os alunos
falam, e não me refiro apenas à indisciplina. Seus valores, crenças, interpretações e
compreensões cotidianamente rasgam a narrativa dos professores e professoras, frente aos
quais eles e elas devem posicionar-se. Esse capítulo desenvolverá especialmente de que
formas essas interrupções efetuadas pelos alunos, durante as narrativas dos professores,
inserem os saberes juvenis de forma dialética em uma reconfiguração permanente entre a aula
preparada pelo professor e as questões levantadas pelos alunos.
Que lugar ainda encontra a palavra na sala de aula? Quererão os alunos apenas
recursos metodológicos modernos, como vídeos, jogos, aplicativos, metodologias ativas,
dentre outros? Ou a palavra ainda possui poder, de convencer, de encantar, de explicar?
Pereira e Torelly (2014, p. 289-290) lembram o quão importante foi a entrada das teorias da
aprendizagem no Brasil (citando especialmente Piaget e Vygotsky), fazendo com que a aula
passasse a levar em consideração a ação do estudante, alargando a diversidade de
metodologias didáticas e diminuindo a importância da aula expositiva. Em muitos casos essa
aula passou a ser vista como uma vilã, responsável pela pouca capacidade crítica dos alunos
na medida em que os condenava a meros receptores de uma aula maçante e tediosa.
Mas é possível que tenham jogado o bebê junto com a água do banho. Pereira e
Torelly (2014, p. 296) nos lembram que a palavra possui dois sentidos: se por um lado tem
uma função instrumental por excelência na vida política e dialógica dos cidadãos, por outro
ela não serve apenas para nomear coisas, sendo uma potência de criação da novidade. A
palavra é performativa; dizer significa colocar algo no mundo, a partir do qual se abre uma
possibilidade de ação e discussão. Cunha e Batista Neto (2013, p. 7-8), em pesquisa a respeito
dos usos da oralidade pelos professores de História, sublinham que os professores analisados
apontam um uso múltiplo e complexo dessa ferramenta, não sendo ela reduzível a
características inovadoras ou conservadoras em si mesmas. Ou seja, é possível tomar a
palavra, ou a aula expositiva, com dimensões que vão do encantamento pleno ao tédio
absoluto. E os alunos, o que esperam da palavra dita?
312
“eu tenho ouvido de pessoas fora da sala de aula algumas coisas que vocês
não estão gostando. Eu tenho ouvido nas salas de aula somente algumas
perguntas sobre determinados assuntos, especialmente lá na coordenação e
em outros fóruns aparecem com esta frase: ‘a turma 91, a turma toda, não
entende, não gosta, não concorda, não..’. enfim, e eu queria ouvir toda a
turma. (...) O que que pode no nosso trabalho ficar um pouco melhor e que
vocês não tão entendendo, não tão gostando ...”
Aluna1: “eu sinto que a turma não viu nenhum conteúdo de uma forma ...
formal. Eu queria um momento que a gente parasse e observasse tu
explicando o conteúdo, alguma coisa assim, e eu respeito teu método (...)
mas eu acho que a nossa turma não se adaptou ao teu método. Nós
esperemos que em algum momento fosse dado uma aula mais clara ... que se
explicasse mais diretamente o Brasil colonial ao invés de ser uma coisa mais
autônoma dos alunos pesquisarem.”
Aluna 3: “a gente tem muito espaço, e tipo, a gente não tem nada mesmo
no caderno, e eu acho que isso faz falta, por mais que tipo a gente aprenda
com vídeos, slides, eu sinto muita falta da gente pegar e estudar”
Aluna 4: “eu acho perigoso esse termo ‘aula de verdade (...) tudo aquilo que
tu pode tirar um conhecimento a partir do que ti expõe é aula, independente
de ser na sala ou no corredor, mas eu acho que não é necessário que a gente
só trabalhe com o livro (...) não acho que seja necessária a aula expositiva”
Aluna 6: “tua aula é boa, eu aprendi (...) mas eu acho que tu demora demais
para chegar no ponto do conteúdo (...) acho que tivemos muito pouco
conteúdo em um ano. Até agora eu acho que não aprendemos nada.”
314
Aluna 7: “tu pode ter um jeito de ensinar e tudo que é diferente, alternativo /
Isadora: “meio alternativo é ótimo ... 60 anos quase e eu sou a alternativa
[risos] viva Raul, viva a sociedade alternativa” / Aluna 7: “eu não sei qual é
o conteúdo, eu não sei qual é o teu jeito de ensinar. Vai falando uma coisa
na outra, outra, outra.”
Aluna 8: “eu acho que a gente tem que ser equilíbrio, e eu acho que a gente
tem que ter um pouco de aula expositiva. Eu acho legal os trabalhos em
grupo pois não são todos os professores que fazem, só que eu sinto muita
falta de matéria escrita no caderno para ter uma base para estudar para a
prova, e não tá tendo isso.”
Aluna 10: “eu acho que cada pessoa, até em cada matéria, tem uma maneira
melhor de aprender ... eu, tipo em história me dou melhor com um professor
conteudista (...) é muito importante ter um equilíbrio para cada um aprender
da sua maneira que melhor entende (...) eu estudava com o meu caderno do
ano passado, e eu queria estudar com o caderno desse ano”
Aluna 11: “por que quando tu vê no livro tu pode não entender alguns
termos e na internet tá vendo alguma coisa que não é totalmente correta,
então por isso é importante ter o professor explicando”
Aluna 12: “eu não sei o que a gente está estudando. Só do açúcar e eu não
entendi nada daquilo”
Aluno 3: “os alunos tem pego esse trabalho, decorado. Elas não tem
aprendido” (Aula 2(91); grifos meus)
lado as críticas são fortes, por outro existem vozes que discordam dessas críticas. Essa falta de
unicidade aparece de forma mais clara nos questionários respondidos pelos estudantes: de um
total de 51 alunos (somadas as duas turmas de 9º ano), 11 (21,5%) julgam que há muitas aulas
expositivas, e que não as apreciam ou não as compreendem; 12 (23,5%) acham as aulas muito
confusas; nove (17,6%) julgam que as aulas são positivamente complexas, diferenciadas,
diversificadas; e 12 (23,5%) gostam dos trabalhos em grupo e projetos. Em suma, essas falas
não nos permitem construir um quadro geral das aulas da professora Isadora, nem caracterizá-
la como com uma prática deficiente ou pouco refletida, como as análises dos capítulos
anteriores devem ter demonstrado. Todavia são válidas enquanto representações culturais
daquilo que se espera de uma aula e da atuação de um professor ou professora, e nesse sentido
merecem ser apreciadas.
A primeira aluna lança o que parece ser um fio condutor para outras falas seguintes:
“eu queria um momento que a gente parasse e observasse tu explicando o conteúdo”. A
demanda é no sentido de perceber a professora como alguém capaz de, a partir da sua
capacidade oral de explicação, ordenar os mais variados elementos do conteúdo de forma
“clara”. É possível pensar essa fala como um teste: para provar que o professor sabe do que
ele está ensinando, ele deve ser capaz de explicar, sem textos ou outros suportes, mas a partir
da sua capacidade como orador. Remetendo a Meyer (2007, p. 35), boa parte do princípio de
autoridade do ethos de um orador encontra-se na sua capacidade de responder aos
questionamentos (ou ao menos transparecer que possa), colocando um fim às interrogações,
mesmo que provisoriamente. A explicação também é demandada pela Aluna 11, com outro
sentido: mesmo utilizando livros, a palavra final deve vir do professor, pensado como
autoridade intelectual de mediação. Não que não encontre conhecimentos na internet ou no
livro, mas a referência é associada ao professor, como aquele que pode solucionar os
questionamentos. Dessa forma, observar o professor explicando também lhe confere
autoridade como desdobramento de um argumento de coexistência chamado pessoa-ato (que
cria um nexo entre a pessoa e seus atos, dando origem ao argumento de autoridade), ajudando
a firmar sua autoridade como a pessoa que conduz a aula, em uma espécie de demonstração
ao vivo de competência. Mesmo que eventualmente os alunos não entendam completamente o
que está sendo dito, eles percebem que o professor tem fluidez no tema, o que constitui parte
de sua autoridade.
A explicação parece ser importante também para explicitar o sentido da aula. Como
diz o Aluno 2, o método “alternativo” (e aqui já fica claro que esse aluno não considera essa
metodologia a “normal”) deixa tudo “solto demais”. Demanda assim uma narrativa que crie
316
ou organize o sentido das temporalidades que eles estão estudando. Remeto à noção de
problematicidade desenvolvida por Meyer (1998, p. 31): a retórica não trata de teses, mas sim
de problemas, de questões que demandam respostas; a comunicação retórica pode mostrar-se
falha tanto pela carência de respostas quanto pela inexistência ou pouca clareza da
problematicidade que subjaz a aula. Em suma, é possível inferir que essa ideia de “solto
demais” carregue uma incompreensão de qual é a questão de fundo das aulas, ou também que
essa questão não é tomada como digna de interesse pelos alunos, o que dificulta a constituição
de um acordo na sala de aula.
Outro apontamento: os alunos e alunas compreendem o funcionamento da textualidade
do saber na sala de aula, demandando que os conteúdos tenham programabilidade, e reagindo
quando não percebem esse processo. Compreendem (porque esse é um hábito consolidado)
que existe uma linearidade dos processos históricos, e o rompimento dessa linearidade de
sentido gerou desacomodação e resistências. Como tratado no capítulo 1.2.4.4, Acosta (2013,
p. 201) desenvolve o princípio da readaptação didática, que situa os processos de ensino em
uma historicidade própria, que acelera e desacelera conforme condições específicas. Esse
tempo interessantemente não é percebido e manuseado apenas pelos professores. Os
estudantes também aprendem a compreender essa historicidade dos avanços na sala de aula, e
isso pode explicar a forte lamentação em relação ao tempo atribuído ao conteúdo do Ciclo do
Açúcar: na noção de temporalidade do ensino dos conteúdos históricos, esse tema “saturou”.
Essa questão da velocidade também surgiu nos questionários dos alunos, e frase de uma aluna
da professora Isadora nos é significativa: “gosto quando o(a) professor(a) mostra continuidade
e faz com que a turma fique a fim de ‘saber’ o que vai vir”.
O termo “aula de verdade”, que foi objeto de brincadeira durante os meus diálogos
com a professora Isadora, também surgiu no diálogo, e talvez seja justamente este termo
significativo para compreendermos (mesmo que não aceitando) a projeção de aula,
socialmente e culturalmente construída, que os alunos fazem. A frase de um aluno no
questionário é significativa neste caminho: “Foi uma aula mais dinâmica, fora da sala de aula,
por isso não teve muitos ‘ensinamentos’ da professora. Mas eu lembro do conteúdo sim”.
Além da dificuldade em ver uma aula de projetos como uma aula, cuja concepção advém da
professora, a expectativa é do professor que conduz os alunos; parte desta resposta pode estar
no comodismo, mas também na projeção de ethos que socialmente fazemos dos professores,
como alguém que tem a capacidade de responder aos questionamentos explícitos ou
implícitos. É a aula em que o professor e a professora dominam a palavra.
317
Mosca (2001, p. 30) relembra que a revolução da eletrônica, informática e internet não
retiraram a palavra oral de cena, muito pelo contrário. Aquilo que séculos de tradição escrita e
impressa relegaram à margem voltou à cena com o telefone, o rádio, a televisão e,
especialmente, a internet. A palavra dita, não mais reduzida à fórmula latina verba volant
scripta manent, pode ser gravada, armazenada e compartilhada. Reconheça-se, por exemplo, o
sucesso das vídeo-aulas entre os alunos e que seus “formadores de opinião” são, muitas vezes,
youtubers. Nada mais que oradores modernos (com bom uso da edição de vídeo,
evidentemente).
A palavra é necessária também pois não vivemos mais em uma era de saberes-mestres,
cuja simples posse garantiria o domínio sob os indivíduos que aprendem. Como apontam
Tardiff, Lessard e Lahaye (1991, p. 224), os saberes a serem transmitidos não contém um fim
em si próprios. É a atividade de transmissão, nos seus recortes, métodos e dotações de
sentidos, que irá conferir esse valor. Ou seja, um professor de História não possui sua
legitimidade na posse dos conhecimentos (apesar desse ser um pré-requisito para uma boa
aula) ou na pertinência social (que pode inclusive ser questionada por alunos e familiares);
possui essa legitimidade na sua capacidade de transmitir esses saberes e criar os acordos
necessários na sala de aula. Tanto as pesquisas da Professora Clarice Traversini quando as
considerações na aula da professora Isadora apontam a importância não apenas do domínio do
conteúdo, mas também a clareza no processo explicativo como algo esperado pelos alunos.
Aulas não são terrenos mortos, e nem devem ser. Um professor que enseja em seus
alunos o diálogo, que carrega seus saberes para a narrativa construída na sala, está criando
vida. E não digo isso apenas de forma metafórica; a narrativa efetivamente torna-se viva,
tomando caminhos que o professor ou a professora não previram, criando novos
questionamentos a partir daqueles lançados pelos mestres, e que demandarão complexas
estratégias para a sua resolução. Estratégias essas, por excelência, retóricas.
Sempre que dialogamos com quem quer que seja há um questionamento que nos
anima. Todo discurso é uma forma de resposta, muitas vezes ligado a um questionamento
implícito nessa própria resposta. Por ser uma questão, marca uma diferença, lembrando que se
não houvesse diferença, não haveria sequer a necessidade do diálogo. Esse, por sua vez,
318
modula a distância entre as diferenças postas, que ora desejaremos aproximar, abolir,
minimizar, ora desejamos marcar ou aumentar. Resolver as questões é a necessidade básica
para modular essas distâncias. Como ensina Meyer (1998, p. 85), independente das questões
lançadas serem uma novidade ou já terem sido pensadas pelo ouvinte, ele é “obrigado, pelo
próprio acto de recurso à linguagem, a pronunciar-se sobre a questão suscitada”.
Essa obrigação dá origem a uma diferença entre a questão e a resposta. A partir do
momento em que a linguagem procura responder a questão de origem, a linguagem da
resposta rompe, mesmo que parcialmente, com a questão que a animou, de forma que no
processo comunicativo essa resposta pode exprimir outras questões que não serão resolvidas
ou resolver outras que não foram exprimidas (MEYER, 1998, p. 90). Isso significa que, no
processo comunicativo da sala de aula (como em qualquer auditório), existe um processo de
“apropriação” dos sentidos por parte dos interlocutores, cujos sentidos são sempre
imprevisíveis. Isso porque uma resposta, por mais acabada que possa parecer para o orador,
sempre dirige-se a alguém que tem também as suas questões na cabeça. Aquilo que é uma
resposta a uma questão formulada pelo orador, ao ser dirigida para o auditório ressalta o
caráter problematológico do processo de comunicação, já que essa própria resposta suscitará
outras questões e não as resolverá. Esse processo, segundo Meyer (1998, p. 92), fundamenta o
próprio diálogo e a dimensão dialética da linguagem, que existe pois há sempre alguém para
quem destinamos a nossa resposta.
Após o discurso ser direcionado a outrem, um conjunto de respostas dialógicas
tornam-se possíveis:
“A arte não necessariamente tem que ser bonita. O que é o bonito? ... A
beleza ela não é um consenso ... o que é bonito para mim não será
necessariamente para vocês ... Isso vale para tudo, para a arte e também para
as pessoas.”
“Que que eu quero dizer. Se tu fosse a uns 10 anos atrás, o funk não tinha a
aceitação que ele tem hoje, porque hoje tu tem o funk tocando nas rádios ...
Quando surge uma forte expressão de arte, que quebra um padrão, a galera
vai chiar. Foi assim com o rock, está sendo assim com o funk, foi assim com
o rap (...) Quando tu quebra um padrão, seja o padrão de beleza, seja o
padrão artístico, aquelas pessoas que defendem aquele padrão vão chiar, vão
chiar ...”
Como a aula em questão foi observada em três turmas diferentes (C22, C33 e C23,
nessa ordem), percebi dois elementos: primeiramente o professor Juliano claramente se
aperfeiçoou na condução da proposta, sendo a segunda execução muito melhor do que na
turma anterior, com uma adesão maior dos alunos ao debate e vários momentos de escuta à
fala do professor, mesmo que com dificuldades pontuais de manter o foco. O diálogo fez
transparecer que a maior adesão deu-se nas questões que envolviam a música, criando uma
contextualização mais clara, que levou em conta que o debate a respeito do cancelamento da
mostra possivelmente não alcançou os alunos e alunas. Outra conclusão é de que a aula
dialógica conduz a narrativa de tal forma que cada aula se mostrou única, com
aprofundamentos relativos aos diálogos específicos gerados, mas também limitada pelo
interesse ou indisciplina.
A última execução, na turma C23, possuiu o maior contraste, na relação com as outras
duas: algumas alunas se mostravam muito atentas e participativas, enquanto um grupo
expressivo da turma não participava e fechava-se em assuntos paralelos. Para eles a aula é
muito menos importante em relação às sociabilidades construídas entre eles, que acontecem
na escola, mas não necessariamente se relacionam com essa escola, enquanto lugar de
aprendizagem. O professor Juliano esboçava uma grande paciência em aula, que parece ser a
estratégia do ethos dele como professor.
321
Nessa parte da aula, mais ao final, percebi bastante atenção, especialmente após uma
reprimenda do professor. Ela só foi possível pois o diálogo aberto na aula “desviou” a
narrativa, criando um encontro não previsto. Isso foi bem aproveitado pelo professor, trazendo
da sua memoria um conjunto de dados que lhe permitiu diferenciar o acontecimento da
expressividade desse acontecimento, ou seja, da arte.
É preciso apontar também que essas aulas observadas permitiram ver duas
dificuldades criadas pela problematicidade ou o diálogo mais abertos. Em muitos momentos
Juliano intentou lançar questões ao debate, mas a dispersão e o foco acentuado no gancho
com a vivência pessoal acabam por dificultar o andamento da aula. Ou seja, conforme o
professor lançava algumas questões, alunos e alunas que conseguiam estabelecer alguma
relação, em geral trazendo-as para situações familiares das suas vidas (o que aconteceu em
especial quando o professor entrou na temática da música), mostravam-se muito eufóricos e
acabavam por interromper a fala do professor. Essa euforia é positiva, e demonstra um prazer
em ter conseguido ligar aquilo que é tratado com seu cotidiano. O risco disso, e creio que
tenhamos pouco controle sobre, é que os alunos não mobilizem esse raciocínio comparativo
até graus mais complexos de generalização, ficando apenas na espontaneidade. Lautier (2011,
p. 48-49) relaciona esse risco ligando-o à idade e às experiências escolares dos alunos, a partir
322
A aula, por sua característica “íntima”, propiciou que as mais variadas inquietações e
analogias produzidas pelos alunos fossem enunciadas e inseridas na narrativa que se
construía. Os quatro estudantes que participaram apontaram, em seus questionários, apreciar o
caráter do diálogo nas aulas do professore Laerte, como formas de diminuir o “tédio” e o
“cansaço” (lembrando que eram estudantes do turno noturno)
As várias questões que surgiram dependeram da capacidade do professor em fluir
informações históricas de sua memória, para assim encontrar as respostas adequadas a cada
questão. Como lembra Mosca (2001, p. 30), “a memória permite não somente reter, mas
também improvisar.” Na entrevista, o professor Laerte tocou em uma questão que dialoga
com essa memória necessária. Por vezes cremos que, por possuírem acesso à internet, os
alunos acessam as informações. Disse ele que isso é falso: a eles falta uma “certa base comum
de conhecimentos” que eles não acessarão a menos que a escola e os professores os ofereçam.
Da forma como Laerte ofereceu esses conhecimentos, os seus alunos vincularam-se no que
era dito. O quanto vale a pena explorar um caminho aberto por essas entradas depende da
sensibilidade exercitada pela experiência do professor. Pereira e Torelly (2014, p. 292-293)
apontam uma série de medidas para que as exposições orais não caiam no esquecimento ,
provocando uma agência tanto do professor quanto dos alunos. Uma dessas agências passa
justamente pela memória do professor, que pode
muito bem falar sobre a Era Vargas e transitar pelos exemplos da música, do
cinema, da literatura e até da televisão. Isso permite ao aluno estabelecer
conexões e dar sentido ao que escuta. Então, multiplicar os acontecimentos é
uma espécie de brincadeira séria com o conteúdo da história, com a criação
de relações, comparações e distinções entre épocas, governos, culturas, etc...
Foi possível perceber nas observações e nos questionários respondidos pelos alunos
que as questões do universo político estão presentes de variadas formas dentro das salas de
aula, por vezes contrapondo diretamente as posições dos professores e professoras. A
necessidade da argumentação é premente, pois os valores mobilizados pelos professores não
serão simplesmente assimilados pelos alunos; serão antes legitimamente questionados,
problematizados e, em algum grau, contrapostos. Abre-se o espaço da sala de aula inclusive
para uma educação argumentativa, premente para que as discordâncias possam ser resolvidas
ou mitigadas sem o recurso à violência. Levando em conta o contexto político brasileiro dos
últimos anos, de acirramento das diferenças políticas em amplos sentidos, já que se extrapolou
uma simples disputa partidária e passou-se a confrontar crenças, costumes, artes, direitos
humanos, nem sempre com qualidade ou aprofundamento. Uma sala de aula que auxilie em
uma educação argumentativa certamente terá produzido aprendizagens significativas. Mais
uma vez a sala de aula e o professor de História possuem um local privilegiado.
Pagès (2015, p. 306) nos lembra de que a própria existência da disciplina de História
na escola básica é assente em uma ideologia, que vincula passado, presente e futuro a partir de
determinada posição. Essa ideologia modifica-se, e veio se modificando no Brasil,
especialmente após a Nova República. O que explica parte da mobilização em torno do
movimento “Escola sem partido” não é a ideologização do Ensino (de História, em especial),
mas o afastamento de uma ideologia tradicional, ligada a pautas nacionalistas, religiosas e
moralistas, com a entrada de outras pautas democráticas e identitárias, conforme desenvolvi
no capítulo 1.2.2. Esse choque ideológico, como dito acima, chega à escola.
As observações da professora Isadora foram feitas no ano de 2016, pouco após o
processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Na aula em que ela abriu uma
discussão a respeito do andamento dos projetos (2 - 91 - 12/05/2016), desenvolvida no
capítulo 2.4.1, uma aluna inqueriu que Isadora teria, em uma aula passada, defendido o
conceito de impeachment para o processo histórico que o Brasil estava passado. A aluna
acusou a professora de ter dito que chamar o impeachment de golpe seria uma ignorância,
explicando a diferença entre impeachment e golpe: “na verdade, o que nos é trazido, e fomos
pesquisar sobre era que esse processo sem que haja um crime de responsabilidade nos parece
(...) foi o que a gente concluiu disso tudo é que era sim ... um golpe.”. A essa indagação,
Isadora respondeu:
327
Aluna: “é que eu não sei se tinha ficado claro que aquela é a tua opinião, e
como se fosse alguma coisa técnica”
Para a aluna em questão, a fala da aula anterior da professora foi interpretada como
uma definição “técnica”, que desagradou a interpretação que ela, a aluna, carregava sobre os
acontecimentos. Ao mesmo tempo, Isadora busca uma ideia de “essência” para tentar ir além
do debate golpe versus impeachment, procurando compreender as implicações políticas do
uso dessas palavras. A “essência” invocada pela professora parecia estar justamente na
problematicidade com que eles deveriam encarar o processo corrente, não apenas repetindo
acriticamente os termos em discussão.
Como a própria professora comentou na entrevista, é uma realidade o fato do “mundo”
estar dentro da sala de aula. Todavia pontuou que o professor deve dar um limite, não apenas
pelo conteúdo a tratar, que pode ser cobrado em vestibulares e outros processos, mas porque
esses conteúdos oferecem uma garantia:
“eu acho que nesse mundo que eles estão vivendo, isso dá alguma
estabilidade. Isso vai um pouco na contramão ... eu concordo com o
[Zygmunt] Bauman que os tempos são líquidos, e eles são tão líquidos que
as crianças não tem a mínima ideia para onde vão, e eu acho que ... a única
certeza que eles tem, além da morte, que todo ser humano tem, é a da
instabilidade. Todos os dias tem alguém preso [se referindo ao contexto do
golpe de 2016 e os desdobramentos das operações policiais] ... não só a nível
de Brasil, mas também de mundo. Eu me sinto pressionada pela quantidade
de informação, eu imagino para eles [os alunos] (...) Eu acho que as pessoas
precisam de uma certa estabilidade, e entendo que a História acaba dando
isso para eles. Não tá explícito, mas eu sei o que vai acontecer agora.”
Não deixa de ser interessante que esse “ruído ideológico” tenha se dado entre uma
aluna com uma interpretação “mais à esquerda”, acusando a professora de não perceber que o
referido processo era um golpe de Estado contra um governo progressista. Atualmente são
mais evidentes ruídos no outro polo político, em grupos tais como o já referido “Escola sem
partido”, mas também a “Ideologia de Gênero” e o “Movimento Brasil Livre”, que acusam
instituições, artistas e professores de “doutrinação comunista”. Laville (1999, p. 127) nos
ensina que as críticas direcionadas ao ensino de História, em variados países, não passa pelos
objetivos atribuídos a esse ensino, mas “‘em razão’ dos conteúdos factuais, por se julgar que
certos elementos estariam ausentes e que outros estariam sendo ensinados em lugar de coisa
melhor, como se o ensino da história continuasse sendo o veículo de uma narração exclusiva
que precisa ser assimilada custe o que custar.” No caso do nosso contexto brasileiro, o ataque
não se dá pelos objetivos ligados à formação cidadã, a criticidade ou a problematização,
ficando em geral na visão de que as narrativas teriam sido “ideologizadas” por dentro. Ideias
que circulam, especialmente entre os alunos.
Dois alunos da professora Renata reproduziram justamente esses saberes sociais que
mediam a apropriação de suas narrativas. Disse um aluno do 1º ano: “Ela fala muito sobre
política. Fica querendo leva os alunos para a esquerda comunista”. Já outro, do 2º ano, disse
que “a professora é descontraída, mas ela pelo fato dela ser uma formadora de opinião ela
devia impor menos suas doutrinas”. Dois rótulos exaustivamente repetidos pelos movimentos
acima mencionados: a “professora doutrinadora” e a “professora comunista”. É difícil mapear
quais narrativas ou escolhas teóricas conduziram a essas adjetivações: interpretações
marxistas da História? Narrativas de História das mulheres? Problematizações feministas?.
Lautier (2011, p. 46) ensina que os indivíduos pensam e recordam a partir dos seus
pertencimentos a grupos, numa “co-construção social produzida durante as interações”, e não
simplesmente de memórias individualizadas. Tanto a aluna da professora Isadora quanto os
alunos da professora Renata mobilizam construções políticas de uma memória social em
permanente conflito dialético, e que adentram as salas de aula.
Mas também é espaço de diálogo crítico. Uma aluna da professora Renata, que
afirmou em seu questionário gostar muito da professora, já que a mesma “coloca a sua
personalidade e deixa as aulas mais do estilo dela”, na sequência afirmou que, ao longo das
aulas aparecem “algumas opiniões pessoais dela que eu não concordo”. A meu ver, esse é um
excelente ato educativo: não é necessário concordar com as opiniões pessoais dos professores.
A sala de aula deve ser um ambiente que permita essas e outras discordâncias, como forma de
329
Meyer nos ensina que é preciso distinguir uma resposta problematológica, que o é
naturalmente na qualidade de resposta que enseja novas questões, e outra problemática, que é
efetivamente contestada na sua qualidade de resolução do problema inicial (e por vezes coloca
a própria questão em xeque). Aqui podemos pensar certo ideal: uma boa aula é
problematológica, tendo em sua construção respostas (dadas às questões que a animaram)
330
dotadas de potencial de abertura a novas questões. Isso é diverso a uma aula problemática,
cuja própria proposta é colocada em questão, como uma das respostas dialógicas possíveis. E
é bom lembrar que uma aula considerada problematológica pelo professor pode não o ser por
seus alunos, ou parte deles. A professora Renata, em uma de suas aulas (2 - 205 -
12/07/2017), problematizou a constituição de hierarquias em variados mapas históricos,
explicando o porquê da posição da Europa centralizada e acima, e o Oceano Atlântico
também ao centro. Um longo diálogo merece ser reproduzido:
Renata: “o que eu quis trazer com aquela aula, que ela é um pouco diferente,
peculiar, é pensar um pouco que os mapas eles não são, eles tem algo de
muito objetivo que é tentar por no papel como é o espaço geográfico, mas ...
por mais que eles tenham objetividade, tenham cálculo para ser feito,
pensando na primeira pergunta que o [aluno] fez, eles não deixam de ser
uma representação, é uma forma de representar o espaço, e aí quando se
escolhe por o Atlântico no meio, é porque na época que se fez esse mapa que
até hoje se usa é porque fazia sentido ter o Atlântico no centro porque esse
mapa começou a ser construído durante as grandes navegações, na época a
principal rota comercial era essa, na época o colonizador começou a fazer
esse mapa que a gente utiliza até hoje ...”
Aluno: “mas no caso colocaram o oceano no meio ou ele já estava ali?”
Renata: “não, o oceano está ali”
Aluno: “então?”
Renata: “mas olha, por que a gente tende a abrir um mapa assim? [apontando
para o mapa no quadro, com o Atlântico no centro] E a gente não tende a
abrir o mapa com o pacífico no meio?
Aluno: “porque aquilo aí ta ali, né.”
Renata: sim, mas por exemplo ... podia abrir ... se é redondo, na hora que a
gente faz no papel a gente poderia abrir essa [o Pacífico] e deixando o
Atlântico nas pontinhas ó, e o Pacífico no meio. Se se abre assim, é porque
quando começaram a fazer esse mapa, se fazia sentido abrir assim, aqui no
meio, porque era a principal rota comercial.
Aluno: “então a discussão virou de como abre um mapa e onde tá o
oceano?”
Renata: “é, a discussão está em torno de como se constrói um mapa, e tem
coisas que são objetivas. A gente não pode dizer que o Oceano Atlântico ta
passando aqui, em cima do Canadá, isso a gente não pode dizer”
Aluno: “sim, porque não tá!”
Renata: “por que não tá, exato, então tem algo de muito objetivo no mapa,
mas tem algo que também não deixa de ser uma representação do espaço. E
aí, tu representar ele, o que tu põe no norte, o que tu põe no sul, o que tu põe
no centro, aí já é uma escolha de quem faz o mapa. Por exemplo, se na época
em que se construiu esse mapa as grandes navegações e a colonização da
América fizeram do oceano a principal rota comercial, a intenção de ter um
mapa é a colonização e essas rotas comerciais, foi por isso que ficou no meio
... Se a América tivesse sido descoberta e colonizada por chineses, seria esse
o mapa que a gente estaria estudando agora?
331
A primeira constatação, presente em todo este capítulo 2.4, é de que apenas o caráter
de abertura ao diálogo faz emergirem as dúvidas, e também as contrariedades aos professores
na duração das aulas. E foi justamente esse espaço que fez emergir a contestação do aluno,
que ou não compreendeu a problemática, ou não julgou-a uma problemática válida. O próprio
referencial que está fora de questionamento pode por vezes ser colocado em questão. Em se
tratando de um diálogo, a resposta à questão potencialmente suscita novos questionamentos
(MEYER, 2013, p. 109), já que os enunciados dirigidos a outrem farão este reagir de
diferentes maneiras, conforme os sentidos atribuídos. Cada questão carrega três interrogações:
1) Será legítima e de onde vem? (é uma questão legítima?) 2) aquilo que está em questão
existe? 3) Que facto é esse?” (MEYER, 1998, p. 38).
Podemos recordar daquilo que nos ensina Lautier (2011, p. 47): mesmo que não haja
nenhuma dificuldade em aprender (de memorização, por exemplo) que o pluripartidarismo é
condição para a democracia, ou que as sociedades ameríndias não eram propriamente
igualitárias, há sim dificuldade em apropriar-se de informações que não encontram lugar nos
esquemas familiares de pensamento. Diz a autora que a ancoragem é requisito obrigatório,
acompanhada inevitavelmente de processos de seleção das informações (ocultação, recusa ou
transformação) e de processos de figuração a partir de analogias e metáforas. Acontece que,
caso essa ancoragem seja difícil de ser feita, o que era problematológico torna-se
problemático. Para o aluno em questão, o oceano estava ali e pronto. Não tinha o que
problematizar, logo se criou um problema. Uma das interrogações que Meyer diz estarem
implícitas em qualquer questionamento veio à tona: é uma questão legítima?
O questionamento também obrigou a professora a mobilizar recursos retóricos a fim
de negociar a distância entre a lacuna explicitada pelo aluno e o aprendizado que não foi
construído. No caso, a estratégia utilizada partiu de uma ilustração que constituiu uma
realidade do tipo “e se”. “Se” a China tivesse colonizado as Américas, nosso centro de
gravidade seria outro, e nossos mapas seriam outros. Ilustração esta que, como dito no
capítulo 2.3.3.2, não tem a obrigação de ser verdadeira, já que sua função não é provar, mas
sim reforçar a presença da regra, que aparentemente foi compreendida por parte dos
estudantes que se manifestaram.
332
Duas questões também chamam a atenção nesse diálogo. Primeiro, todo esse processo
coloca em evidência a questão da programabilidade do conhecimento como requisito para
uma progressiva ampliação das capacidades do aluno. É possível que faltasse ao aluno em
questão capacidade de abstração que o permitisse compreender a ideia de “representação”.
Segundo, aulas problematológicas podem implicar em um ruído no próprio acordo básico da
sala de aula. Lautier (2011, p. 50), a partir de outros autores, lembra do quanto a História
escolar tende a valorizar mais a adesão do que o raciocínio, apresentando “a realidade do
mundo passado”. Esperam, ao fim a ao cabo, a definição anteriormente citada de Paul Veyne
(1971, p. 10): “os historiadores narram acontecimentos verdadeiros que tem o homem como
ator; a história é um romance verdadeiro”. Frente a isso, muitos alunos procuram a “boa
resposta” ao invés de desenvolver capacidades analíticas, o que demanda outro contrato entre
professores e alunos. Não podemos esquecer que uma aula tradicional, do copia e memoriza, é
uma aula sob muitos aspectos cômoda para muitos alunos. É um jogo posto, que ao ser
modificado gera desacomodação e resistências.
Como já apontei em variadas pesagens desta tese, a sala de aula é um espaço aberto
para que questionamentos dos mais variados sejam lançados pelos alunos. Ao professor
cabem algumas ações: ignorar, caso não julgue pertinente ao andamento da aula; ter a
honestidade intelectual de abster-se, quando não tiver condições de resposta; e responder,
mesmo que o imprevisto da questão o obrigue a improvisar. Posto que não pode furtar-se de
todas as perguntas, sob risco de ver sua autoridade intelectual ser diminuída, os professores e
professoras em muitos momentos respondem. Além disso constato que essas respostas, em
alguns momentos, carregam figuras retóricas em sua formulação.
O professor toma decisões, a partir de sua formação e sua experiência, que muitas
vezes se inserem em modelos rotineiros: o que dizer para um aluno que está conversando?
Como iniciar uma aula? Como dar um retorno positivo para um aluno? Esses modelos são
inclusive importantes na formação de um “estilo” do professor, reconhecido pelos seus alunos
(como o uso de gírias e a calma, no professor Juliano, ou a dinâmica do bom dia, o uso de um
cabo de vassoura como batuta ou os desenhos propositalmente mal executados, na professora
Renata). Todavia não podemos esquecer que a sala de aula é espaço de incertezas, de
333
“o que pode ter é uma representação do universo que a gente não conhece
coisas. Outras sociedades, daqui uns 200 anos, vão fazer uma representação
do universo com novos planetas ou configurações diferentes dos planetas
pois vão descobrir novas coisas ... mas é que a gente sempre vai representar
no papel aquilo que a gente conhece do espaço. Por exemplo, o Giovani
Lardo, se os europeus não tinham descoberto a América ainda, como é que
ele ia representar a América no mapa?”
A pergunta efetivamente não foi respondida, mas a resposta não deixa de ter lógica.
Aproxima de um tema familiar, a existência de planetas no universo, para uma fabulação de
futuro sobre a representação desses planetas em mapas, fazendo o mesmo raciocínio na leitura
da cartografia do século XV. A conclusão, em forma de “pergunta retórica”, reforça esse
trânsito dos sentidos. Chama a atenção que estes recursos são lembrados por pelo menos nove
alunos e alunas nos questionários, e duas escritas são significativas: “ela é engraçada , traz
exemplos da nossa vida a aula, o que ajuda a identificar suas aulas” e “normalmente a
professora explica a matéria usando exemplos que são familiares ... eu penso que a linguagem
que a professora usa faz com que nós conseguimos entender a matéria”. Aristóteles já dizia
em sua Retórica (III, 20, 1394a) que as fabulações são apropriadas aos discursos públicos por
uma questão central: nem sempre é fácil encontrar um fato histórico que permita a
comparação e a visualização das identidades e diferenças. Ao invés disso, as fábulas são mais
fáceis de encontrar e mais efetivas, bastando que o auditório consiga ver a relação de
semelhança. Isso é muito mais fácil quando se lida com elementos familiares, como apontam
as alunas acima.
A professora Isadora, quando tratava da plantação de cana no Brasil Colônia (aula 3 -
91 - 19/05/2016), foi inquerida por um aluno: “A cana não era uma planta nativa, então será
que ela não afetou o ecossistema?”. A professora também aparentava não saber responder de
forma técnica, mas ensejou uma resposta a partir da comparação com as culturas do Rio
Grande do Sul, apontando como é possível perceber faixas de plantação de cana em meio à
mata atlântica remanescente, juntamente com outras culturas. Ela usa esse exemplo para
334
professor.”. Pois vimos que ele fala, raciocina, contesta, inquire, enfim, coloca-se vivamente
na duração das aulas.
336
Da conclusão
Esta tese iniciou com a metáfora de um professor contrabandista. Jango Jorge, sábio e
experiente, sabia dos caminhos que trilhava. Sabia percorrer os espaços, de um lado ao outro
da fronteira, tal qual nosso professor circula pela escola, pela historiografia, pela sua própria
experiência e valores. Jango, tal qual nosso professor, não estava sozinho: atravessava com
seus contrabandos, pegando de uns, levando para outros, sob suspeição e vigilância de mais
outros.
E terminou com a de um professor-orador, que guarda dois sentidos em identidade
com a primeira metáfora: o trânsito e a experiência. Caminha entre lugares sociais de
produção de conhecimento, a academia, a escola e a sala de aula, e carrega saberes entre esses
lugares. É possível dizer que não foi lhe ensinado como fazer este trânsito; aprendeu fazendo,
ora errando, ora acertando. Aprendeu que não existe apenas transmissão; se quiser passar pela
fronteira, como Jango Jorge fazia, precisa se esforçar. O esforço na sala de aula significa
transpor, traduzir. Significa fazer retórica, para que aqueles a quem a aula se dirige
compreendam o que é ensinado.
Cícero entendia a retórica tanto como uma arte (conjunto de técnicas sistematizadas
que podem ser ensinadas a qualquer um) quanto como uma formação longa que não envolve
apenas técnicas oratórias, mas o estudo dos mais variados campos do conhecimento, que
oferecerão ao orador um conjunto de saberes e experiências que o tornarão digno deste nome.
Penso este entendimento de Cícero como suporte para compreender a grande conclusão desta
tese: por ser uma arte, e também uma filosofia, é produtiva para ler o que os professores
fazem cotidianamente em suas salas de aula; por colocar-se em uma longa formação que não
depende apenas das técnicas retóricas explícitas, permite dizer que os professores
efetivamente fazem retórica.
Professores sabemos que nossa garantia de controlar os sentidos das narrativas
historiográficas ensinadas sobre o passado é limitada, já que os aprendizados são mediados
por uma série de pedagogias culturais que formam nossos alunos e alunas, inclusive a respeito
de interpretações históricas. Quanto mais hábil for o professor-orador, com mais força as
verdades histórico-didáticas poderão relacionar-se com os saberes dos alunos, fomentando
um espaço de debate crítico efetivo. Existe sempre um processo de convencimento, que não
significa um processo ilegítimo ou manipulador. Lembremo-nos de Meyer (1998, p. 47)
337
quando este nos ensina que a diferença entre uma “retórica honesta” e “retórica desonesta”
encontra-se não no convencimento, mas em dispor como conclusivo, verídico ou justo aquilo
que é colocado como questão, ofuscando o interlocutor; por outro lado, uma “retórica
honesta” não elimina a interrogatividade (muito pelo contrário, pode ensejá-la), mas a
exprime de forma que não se oculte na resposta. Uma retórica substancialmente ética.
A retórica antiga, filha da Pólis, possuía sua pretensão de persuasão universal, pois é a
esta totalidade que o discurso potencialmente pode ser dirigido. Se não uma totalidade que
abarque todos os indivíduos, ao menos a totalidade dos cidadãos de cada Pólis. Esta pretensão
de universalidade acompanha a retórica até nossos dias, mesmo que de forma paradoxal, e
articulo-a a esta tese: se, por um lado, sabemos que os auditórios são sempre variáveis, e as
análises dos professores, professoras e suas turmas apontaram para esse caminho, por outro é
inegável que existem pretensões similares nas ações dos professores, que são lançadas para
um pretenso auditório universal, mesmo que como horizonte de superação.
O paradoxo do ensino escolar da História é que, enquanto há mais liberdade para
escolhas de recortes temporais, metodológicos, conceituais e narrativos, na comparação com a
historiografia acadêmica, essa liberdade se restringe quando aventamos a possibilidade de
tencionar as formas de alcançar a verdade histórica. O acordo inicial na sala de aula, entre o
professor-orador e seu auditório, pressupõe o primeiro como um contador de verdades. Se
assim não o for, esse acordo se quebra. Desta forma, o professor não quer convencer porque
ele é um “doutrinador”, mas por que opera com uma verdade, construída pela historiografia
acadêmica, e transposta para a sala de aula a partir de variados procedimentos.
Como dito acima, a grande conclusão desta tese é a evidência da produtividade da
retórica para a compreensão do ensino de História, bem como da própria historiografia e do
campo da educação de forma mais ampla.
A proximidade da historiografia com a retórica evidencia-se nas relações entre a
escrita, a argumentação e as narrativas históricas. A escrita comporta processos narrativos que
homogenizam lacunas da documentação, diferenciando o tempo da narrativa do tempo das
coisas, permitindo velocidades variadas entre a cronologia e os sentidos dos processos
narrados, visando inteligibilidade. Estas práticas são retóricas, associadas às construções
argumentativas de ligação ou dissociação, conforme a formulação de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005), que por sua vez comportam a compreensão do encadeamento de
acontecimentos em relações de causa e efeito. Ao narrar, constituindo uma intriga, o
historiador não se “liberta” de processos de estilo; muito pelo contrário, busca oferecer aos
seus leitores o prazer de ver funcionar os movimentos, sobressaltos ou sentimentos dos
338
aquilo que os tocou possa ser levado ao outro através da narração (como relataram ao longo
das observações o professor Laerte e a professora Renata). Nesse sentido penso a experiência
dialogando com a verdade histórico-didática em intersecção de quatro pontos: parte de uma
vivência significada; é repleta de intensidade; é elaborada intelectualmente por aquele que a
vive; e possui uma potência de universalização, quando elaborada na forma de uma narrativa.
Em terceiro e último lugar, a verdade histórico-didática escreve-se de variadas formas.
Está nos livros didáticos (e nas apropriações deles feitas), nos textos e materiais produzidos
pelo professor e, especialmente, em sua fala. Esses “textos” transitam a partir de um conjunto
de características: 1) são referenciados pela historiografia acadêmica, em práticas de
validação; 2) são planejados; 3) possuem programabilidade; 4) são limitados no tempo; 5)
suas aprendizagens são socialmente controladas (as práticas do professor só ganham sentido
na relação com o que socialmente se espera destas ações); 6) operam em condições de
incerteza; 7) possuem sentidos atribuídos; 8) são híbridos existindo uma interseção entre os
conteúdos, modelos historiográficos e o conhecimento curricular; 9) são retóricos. Enquanto
os itens 1 a 5 dizem respeito a formulações ligadas à sociedade de forma mais ampla, através
da noosfera, e da escola, os itens 6 a 9 lidam com a dimensão da sala de aula e da ação do
professor.
Em suma, a verdade histórico-didática produzida na escola e na sala de aula é
explícita na dimensão das suas relações entre o professor, formado em História, e o seu
auditório, seus alunos. Desta forma, penso que esse regime de verdade não pode ser
compreendido sem a relação simultânea das provas do discurso, conforme a divisão clássica
entre ethos, pathos e logos. Desta intersecção surge a segunda construção teórica desta tese: o
professor-orador.
Defendi, enquanto construção ideal, a figura desse professor-orador, um indivíduo
sensível aos mais variados acontecimentos que perpassam sua sala de aula, e consciente do
seu papel importante neste espaço. Sua eficácia encontra-se no justo e complexo equilíbrio
entre qual a projeção que o orador tem ou parece ter (o auditório toma-o como alguém digno
de confiança, capaz de dar bons conselhos, ou genuinamente interessado), o ethos; o domínio
dos saberes docentes necessários (desde os conteúdos propriamente ditos, até os saberes
docentes balizados pela sua experiência), o logos; e o reconhecimento de quem são seus
alunos e alunas (o que pensam, como aprendem, que estratégias utilizar para conquistá-los), o
pathos. Tomar essa opção significa mais do que uma técnica. Pensar em um professor-orador
significa assumir uma concepção filosófica que agrega as pessoas na relação de produção do
seu discurso. Por se tratar de um tipo-ideal, a realidade teima por vezes em encaixar-se
341
perfeitamente nas construções dos pesquisadores. Nesta tese não foi diferente. Mesmo assim,
foi possível perceber movimentos e recorrências das professoras e professores observados nas
categorizações construídas.
Mas o que significa definir um orador? Na definição de Meyer (2007, p. 34), “é
alguém que deve ser capaz de responder às perguntas que suscitam debate e que são aquilo
sobre o que negociamos”. A primeira projeção eficaz para o ethos do professor-orador é a sua
capacidade percebida de responder aos questionamentos a ele dirigidos. Todavia essa
projeção não advém apenas das suas respostas textuais sobre os conteúdos; muito do que o
professor-orador faz (ou não faz) em sala de aula cria uma imagem de si mesmo, que atua no
processo de convencimento dos seus alunos e alunas como um princípio de autoridade: ele se
mostra capaz de responder as questões que emanarem. Foi possível perceber um conjunto de
observações que ligaram nossos atores e atrizes a movimentos de constituição e trânsito entre
posturas de ethos.
Uma destas constituições disse respeito ao reconhecimento do professor como um
adulto de referência, um indivíduo que pode tratar das questões do mundo sem ser
confundido com a família, a religião ou o senso comum (SEFFNER, 2016, p. 54), dialogando
com as culturas juvenis de forma a estabelecer um trânsito entre seus alunos e noções mais
amplas de humanidade. Professores e professoras projetam essa referência tanto a partir do
que dizem, mas também através de suas posturas e do seu caráter.
Os questionários dos alunos e alunas da professora Renata não apenas apontaram
apreço à professora e às suas aulas, como viam nela alguém capaz de dar conselhos e exercer
outro tipo de autoridade, no “puxar a orelha”, que vai além da própria relação formal de
professora-aluna. Juliano também explorou essa noção, afirmando que a escola deve ser
entendida como um espaço de referência, habitado por professores como adultos de referência
que permitem que as questões venham e sejam acolhidas, “equilibrando o bom e velho
conteúdo”. Isso porque, para ele (e também para Isadora), as questões do mundo entram na
escola, que precisa ser um espaço que acolha essas questões (mesmo que em muitos
momentos não consiga fazê-lo).
Essas posturas de referência demandam diretamente lidar com questões emocionais,
necessárias para esta constituição. A alegria e o engajamento autêntico, por exemplo, são
percebidos e valorizados pelos alunos. Não há dúvida de que esta emoção, dentre tantas
outras, perpassam a sala de aula, seja na atuação direta dos professores e professoras, seja na
relação entre os estudantes e suas variadas culturas. Também não há dúvidas que os
professores compreendem, mesmo que parcialmente, e lidam com estas respostas emocionais:
342
Renata, ao fazer uso do filme “Central”, pensou em “usar o emocional nesse sentido de
humanizar, sensibilizar em relação às pessoas do passado e do presente”; o professor Laerte
apontou na entrevista que gosta muito de utilizar filmes, especialmente de guerras, também
com esse sentido de humanizar ao sofrimento do outro; Germano entendeu a emoção como
uma forma de superar um modelo de transmissão do conhecimento em preparação para algo
que virá; Isadora relacionou emoção com empatia: “primeiro, se não tem empatia entre tu e
essa pessoa, dificulta muito o trabalho. Empatia é fundamental”; Juliano constituiu uma
postura de tranquilidade e respeito frente a seus alunos, marcando uma postura de referência
em suas próprias ações cotidianas.
Um elemento que unificou os cinco professores nas observações foi a respeitabilidade
aos mesmos, perceptível nas conversas paralelas dos alunos com seus professores e
professoras, no caminhar destes até as salas de aulas, e em outros momentos diversos. Nas
entrevistas, ficou evidente que há um esforço por criar afetividade com os jovens de suas
turmas, cujo resultado pode ser percebido nesses sutis momentos. Este esforço e esta
respeitabilidade são também elementos que compõem o ethos do professor-orador.
A construção não ocorre apenas em momentos que desviam dos conteúdos formais da
escola. Também na escolha destes os valores dos professores são projetados, em sua
dimensão de intérpretes da cultura, mobilizando conteúdos a partir de problemáticas relativas
ao valor de determinados recortes, levando em conta suas diversas classes de alunos e alunas.
Isadora constituiu muitas de suas aulas de projetos e partir da noção de “problematização do
mundo”, como forma de provocar desacomodações em seus alunos e alunas forçando-os a
resolverem os problemas lançados. Renata também o fez: em sua aula sobre o presídio
Central, por exemplo, os valores considerados urgentes pela professora são levados à sala de
aula, não como afirmatividade, mas como problematicidade, buscando com o diálogo
produzir reflexões em seus estudantes. Juliano, em sua aula sobre o Queermuseu,
recorrentemente lançava a problemática de fundo da aula: “gostar ou não gostar, isso não
define o que é arte. Por quê? Porque o que eu gosto vocês podem não gostar, o que eu acho
bonito vocês podem não achar ...” O valor desta aula ia além da exposição em questão, tendo
como valores a liberdade, a tolerância e o repúdio à censura. Estas aulas, e tantas outras,
tiveram sua fundação nos valores atribuídos aos recortes, por cada professor, e cuja proposta
de fundo foi lançar esses valores para a apreciação do auditório escolar, não esquecendo que
estes valores acabavam fundando uma hierarquia: problematizar o conhecimento é superior à
apenas tomá-lo como algo dado, para a professora Isadora; a humanização é superior à
343
uma ação cujas observações demonstraram estar repleta de práticas retóricas, das
problematicidades de fundo aos tipos de argumentações, passando pelas disposições dos
planos das aulas. Ao pensar uma aula, o professor imagina (inventio), levando em conta suas
turmas, monta seu plano (dispositio), não sem uma racionalidade cultivada, escolhe as
palavras que fará uso (elocutio) e por fim terá de colocar esses planos em prática (actio). Se
questionado pelos alunos, deverá fazer uso do repertório de conhecimentos que carrega em
sua mente (memoria). Não é necessário que compreenda estes termos retóricos. Professores
cumprimos estas etapas o tempo todo em nossas salas de aula.
Compreendi um momento específico deste processo retórico como privilegiado para
visualizar a materialização da verdade histórico-didática: a disposição (dispositio) do
conjunto de fatos, cronologias, processos, analogias, evidências e paixões, previamente
construídas na invenção. Uma estrutura que organiza o caminhar de um discurso, ou seja, um
plano ao qual o professor-orador recorre para construir suas aulas. Um tipo de “plano de
aula”, que no mais das vezes encontra-se apenas na mente do professor.
O professor Germano organizou suas aulas a partir de um conjunto de fatos
cronologicamente dispostos, a respeito da Era Vargas, entre 1930 e 1945. Já para o professor
Laerte, a aula se construía a partir de uma problemática pouco clara, seguindo o livro didático
em uma perspectiva de “História do cotidiano”, lendo trechos do livro didático que tratavam
de características da Idade Média, tais como os castelos, a alimentação, e a condição dos
servos. Para a professora Isadora, a aula se construía através de um exórdio pensado como um
problema condutivo. A partir desse problema, eram dispostos fatos e processos. Também
fazia uso de aulas invertidas, onde os primeiros contatos dos alunos com os conteúdos eram
produzidos a partir de atividades ou projetos. Também construiu uma aula a partir de uma
metáfora da “luz”, altamente dialógica. A professora Renata lançou mão de disposições
variadas, desde aulas expositivas a partir de slides, passando por correções de provas
comentadas, aulas com argumentação ligada a um fato do presente e aulas com leitura
comentada efetuada pelos alunos. O professor Juliano, por fim, também construiu formatos de
aula diversos, especialmente baseados em temas específicos, cujo desenrolar narrativo girava
em torno desses temas. Disposições variadas levando em conta problematicidades variadas
em cada conjunto de aulas observado.
As aulas dos professores e professoras observados ligaram-se a um componente
essencial da historiografia: a problematicidade. O ato do historiador produz um duplo efeito:
na medida em que presentifica uma situação vivida, problematiza o próprio presente em uma
relação de alteridade; por outro lado, obriga a razão do presente a estabelecer uma razão do
345
passado que o torne inteligível (CERTEAU, 2008, p. 93). O mesmo procede na escola e na
sala de aula: a situação vivida é trazida para o ensino a partir de problemáticas desse presente,
com quem é posta para dialogar; e essas situações do passado devem ser ajustadas à
capacidade de abstração dos alunos e alunas, ou à sua razão, para que possam ser
compreendidas.
Toda aula, independente da disciplina, responde a questões básicas: o que é preciso
ensinar? E por quê? Questões via de regra respondidas na noosfera, restando ao professor
muitas vezes acatar a estas formulações. Todavia, em sua condição de intérprete da cultura, o
professor age, também nos questionamentos lançados por suas aulas. Nas aulas observadas foi
possível perceber um vasto conjunto de questões animando as mesmas, ressaltadas em
variados momentos pelos professores e professoras. Isadora problematizou a partir de
pinturas, lançou questões como o mapa conceitual do ciclo do açúcar e “todo o conhecimento
do mundo”, além de questões corriqueiras como o sentido de “povoar”; Juliano abriu a
questão da energia nuclear para três disputas básicas em relação ao seu uso, deixando a
“solução” da questão para seus alunos; Germano relatou uma atividade em que explorou as
interpretações a respeito da Revolução Francesa, ressaltando a complexidade do evento.
Questões que abrem as narrativas, inclusive para dimensões de futuro, atuando naquilo que
Laville (1999, p. 135) lembrou ser um limite dos programas oficiais: por vezes denota-se ao
ensino de História o compromisso com uma formação cidadã imbuída de valores
democráticos, mas na prática reproduz-se uma narrativa fechada que se resume a “moldar as
consciências”. O que muitas vezes não se percebe é que a riqueza disruptiva do ensino de
História não se encontra na simples substituição de uma narrativa por outra, mas no
desvelamento dos procedimentos que constituem essas narrativas, o que passa por
problematiza-las.
Mas é preciso apontar que a “forma escolar” da História, conforme observada, não
abandona um “discurso do verdadeiro”, repetidamente reconstituído. As observações que
produzi permitiram identificar um movimento híbrido: ao mesmo tempo em que os
professores abrem espaços para os problemas e para as dúvidas, a sala de aula também opera
como construtora da verdade histórica, limitando os problemas que serão lançados. Isso
porque a nossa verdade histórico-didática lida com um lugar que é a escola e a sala de aula, e
comporta níveis de abstração variados e programabilidade. Como Meyer nos lembra, nem
tudo pode ser problematizável.
346
Vargas, em 1937; a construção dos mapas, seja do mundo, seja do Brasil. Em comum a todos
esses argumentos encontra-se a problematização de algum aspecto do presente ou do senso
comum acerca do passado, ambos dissociados a partir da mobilização de dados do passado
frente às mais variadas intensões argumentativas. A História oferece, sempre, um campo de
possibilidades de ação.
Os professores aprendem, especialmente com sua experiência, que diferentemente do
auditório universal, ou seja, um aluno fictício concebido pelas políticas educacionais, pelos
livros didáticos ou pelos saberes advindos da formação acadêmica, existem os auditórios
reais, em cada escola e em cada sala de aula específicas. Diferenças ao nível da competência,
das crenças e das emoções, que sempre criam diferentes pontos de vista e valores, que por sua
vez influem nos caminhos argumentativos e mesmo no acordo prévio.
A sala de aula tem progressivamente deixado de ser um espaço de fala unilateral do
professor para organizar-se de forma dialética, mesmo que pautada na assimetria da relação
professor-aluno. Percebi nas observações realizadas a permanente inserção dos saberes
juvenis mais variados, via de regra pausando a narrativa do(a) professor(a), fazendo com que
a mesma percorresse outros caminhos não previstos pelos docentes.
O poder da palavra dita, oralmente e performaticamente, parece continuar vivo. Não
apenas os alunos e alunas demandam que os professores possuam essa capacidade de explicar
através da palavra, quanto este próprio ato é essencial para a construção do ethos dos
professores-oradores. Os alunos demandam, como todo ouvinte o faz, que o locutor tenha a
capacidade, e/ou demonstre ter, de resolver os questionamentos que a ele são direcionados,
sejam explícitos, sejam implícitos. No caso da sala de aula, que o professor seja capaz de
explicar o que é lançado como questão, no mais das vezes por este próprio professor, aos seus
alunos e alunas.
Nesse aspecto, a retórica nos permite tanto compreender aquilo que os professores
fazem, nas suas projeções de ethos e construções do logos, quanto perceber o que acontece na
relação com o pathos de seus auditórios escolares, sejam nas expectativas, seja nas entradas
dos estudantes na narrativa, através dos momentos dialógicos. Percebi nas observações
variados momentos em que as alunas e os alunos irromperam as narrativas dos professores, e
estes tiveram de lançar mão de estratégias retóricas visando suprir essas lacunas de
compreensão.
Por vezes, a própria aula enquanto dispositio constituiu-se em um amplo processo de
questões lançadas aos alunos, cujas respostas iam conduzindo a narrativa, como na aula do
Queermuseu, do professor Juliano; percebi também que as dúvidas e os saberes os estudantes
349
em muitos momentos colam-se à narrativa do professor, abrindo para novos caminhos que
não eram previstos inicialmente, sempre dependentes da capacidade do professor em buscar
informações em sua memória ou improvisar fazendo uso de figuras retóricas, como analogias,
comparações ou ilustrações; a partir do diálogo também mostrou-se possível o professor
compreender a linha de raciocínio de seus alunos, visando melhor argumentar a partir desta
linha; ao lidar com pertencimentos políticos, latentes no atual contexto, abre-se a
possibilidade de uma educação argumentativa, sempre lavando em conta o potencial de tensão
nos debates e posicionamentos, que requerem habilidade por parte dos professores; tomando o
fato de que todo discurso é animado por uma interrogação, cuja resposta também abre-se aos
questionamentos, visualizei um momento dialético com a professora Renata, ao tratar da
hierarquização na constituição dos mapas históricos, que colocou a própria questão base em
suspenso, sendo necessária uma ampla justificativa para reposicionar a narrativa.
Todos esses funcionamentos demonstraram que não existe outra forma de lidar com os
imprevistos a não ser com a capacidade oral do professor em ordenar, relacionar e encontrar
as palavras corretas necessárias para explica-los, na medida em que a sua leitura da situação
julgue que a intervenção é necessária. Não que o processo dialógico não tenha apresentado
seus desafios, seja pela dispersão normal de uma aula “barulhenta”, seja pelo foco acentuado
na vivência pessoal relatada pelos alunos (e da correspondente dificuldade em relacioná-la
com as teses desenvolvidas pelos professores), seja pela necessidade que todos temos de que
para compreender uma resposta é preciso compreender àquilo que ela responde, de forma que
questões lançadas pelos professores podem simplesmente não terem eco para os estudantes.
Os professores e professoras fazem retórica. Mas não sabem fazer retórica porque
estão imersos em leituras específicas; sabem porque o fazem, cotidianamente, tal qual Jango
Jorge que cotidianamente cruzava a fronteira, formando-se e constituindo-se a cada vez que
realizava a travessia.
A escola oferece, no seu próprio funcionamento básico, um conjunto de distâncias a
serem negociadas. Frente a estas distâncias, fazem retórica pois é preciso fazê-lo.
350
Referências Bibliográficas
ABUD, Katia Maria. Propostas para o Ensino de História: a construção de um saber escolar.
Fronteiras: Revista de História. Dourados, MS. v. 18, nº 31, p. 296 – 304, jan. / jun.
2016.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: ___. O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó (SC): Argos, 2010, p. 55-
73.
ANDRÉ, Marli E. D. A.. Etnografia na prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.
ANHORN, Carmen Teresa Gabriel. Usos e Abusos do Conceito de Transposição Didática:
considerações a partir do campo disciplinar da História. Anais do Seminário
Perspectivas do ensino de História, 4, 2001, Ouro Preto. Universidade Federal de
Ouro Preto. Disponível em: www.ufop.br/ichs/perspectivas/grupos.htm. Acesso em
26/02/2018.
ARISTÓTELES. Analíticos anteriores. In: ________. Órganon. Tradução do grego e notas
de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
ARON, Raymond. Introducción a la filosofía de la historia. Buenos Aires: Editorial
Losada, 1946.
BAROM, Wilian Carlos Cipriani. A teoria da história de Jörn Rüsen no Brasil e seus
principais comentadores. Revista História Hoje, v. 4. nº 8, dezembro de 2015.
BEAUD, Stéphane e WEBER, Florence. Guia para a pesquisa de campo – produzir e
analisar dados etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2014.
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 197-221.
BITTENCOURT, Circe. As “tradições nacionais” e o ritual das festas cívicas. In: PINSK,
Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2012.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2008.
BITTENCOURT, Circe. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à
profana. Revista Brasileira de História. Vol 13, nº 25/26. p. 193-221. Set 93/Ago 93.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador. São Paulo: Jorge Zahar
Editor, 2001.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
história / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC / SEF, 1998.
CAMOZZATO, Viviane Castro. Pedagogias do Presente. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 39, n. 2, p. 573-593, abr./jun. 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/edreal/v39n2/v39n2a12.pdf. Acesso em: 15/01/2016.
CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática da História. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 28, nº 55, p. 153-170. 2008.
CERRI, Luis Fernando. Os Saberes Escolares e o Conceito de Consciência Histórica. In:
ZAMBONI, Ernesta; GALZERANI, Maria Carolina B.; PACIEVITCH, Caroline
(orgs.). Memória, sensibilidades e saberes. Campinas: Alínea, 2015.
CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da didática da
história. Revista de História Regional, v. 6, nº 2, p. 93-112, inverno 2001.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.
351
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia – A história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 2002.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
Revista Teoria eEducação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.
CHEVALLARD, Y. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado.
Argentina: Editorial Aique, 1997.
COSTA, Marisa. Currículo e política cultural. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). O
currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
CICERÓN. El Orador. Traducción, introducción y notas de E. Sanchez Salor. Madrid:
Alianza Editorial S.A, 2001.
CORRÊA, Bianca Rodrigues. Ensino de História e narrativa: potencialidades de uma
imagem constelar. (Dissertação de Mestrado). Campinas: Universidade Estadual de
Campinas / Faculdade de Educação, 2011.
CUNHA, Marcus Vinícius da. História da Educação e Retórica: ethos e pathos como meios
de prova. In: SILVA, M. e VALDEMARIN, V. T. (orgs.).Pesquisa em educação:
métodos e modos de fazer. São Paulo: Editora UNESP, 2010a. Disponível em:
books.scielo.org/id/8w6rd/pdf/silva-9788579831294-02.pdf. Acesso em: 15/01/2018.
CUNHA, Tito Cardoso e. A Nova Retórica de Perelman. Covilhã: LusoSofia / Universidade
da Beira Interior, 2010b. Disponível em:
http://www.lusosofia.net/textos/cunha_tito_nova_retorica_perelman.pdf. Acesso em:
20/11/2017.
CUNHA, Tito Cardoso e. Razão Provisória – Ensaio sobre a mediação retórica dos
saberes. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2004.
CUNHA, André Victor Cavalcanti Seal da; BATISTA NETO, José. A (re)invenção do saber
histórico escolar. 2013. Disponível em:
ojs.fe.unicamp.br/index.php/FEH/article/download/4784/3752. Acesso em 23/03/2018.
DAHER, Andréa. Da Fabulação Controlada. In: Humanas. Outubro de 1998. Disponível em:
http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0034.htm. Acesso em: 15/04/2016.
DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de
(org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro,
Rocco, 1994. pp. 206-242.
DESLANDES, Suely Ferreira. A construção do projeto de pesquisa. In: MINAYO, Maria
Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social – Teoria, método e criatividade. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2004.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina D.. Uma introdução aos Estudos Culturais. Revista
FAMECOS, Porto Alegre, nº 9, dezembro 1998.
ESPAÑA, Ana Elena; GENTILETTI, María Gabriela. Enseñar Historia en la Escuela Media
desde un Paradigma Etico y Estético. Clio & asociados: La historia enseñada, nº 11,
2007, ISSN 0328-820X, págs. 55-66. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4594753. Acesso em: 14/12/2017.
FINOCCHIO, Silvia. El presente en la enseñanza de la historia. In: ZAMBONI, Ernesta;
GALZERANI, Maria Carolina B.; PACIEVITCH, Caroline (orgs.). Memória,
sensibilidades e saberes. Campinas: Alínea, 2015.
FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria
& Educação, nº 5. Porto Alegre: Pannonica Editora, 1992, pp. 28- 49.
352
LIMA, Luis Costa. A aguarrás do tempo – Estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989.
LOUREIRO, Ines. Em busca de uma noção de experiência. Ciência e Cultura. Vol. 67, nº 1.
São Paulo, Janeiro/Março 2015. ISSN 2317-6660. Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-
67252015000100011&script=sci_arttext. Acesso em: 07/07/2016.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação - Uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado – Pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.
São Paulo, Editora Pedagógica e Universitária, 1986.
MACEDO, Elizabeth. Currículo, Cultura e Poder. In: Currículo sem Fronteiras. Pelotas, v.
6, n. 2, p. 98-113, jul./dez. 2006.
MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Anna Raquel;
SALGADO, Luciana S.. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2007.
MOLL, Jaqueline. Alfabetização de adultos: desafios à razão e ao encantamento. In: MOLL,
Jaqueline (org.). Educação de jovens e adultos. Porto Alegre: Mediação, 2011.
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa e PENNA, Fernando de Araújo. Ensino de
História: saberes em lugar de fronteira.Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 36, n.1,
p. 191-211, jan./abr., 2011.
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. A história ensinada: algumas configurações do
saber escolar. História & Ensino. Londrina, v. 9, p. 37-62, out. 2003.
MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas –
FFLCH/USP, 2001.
MEINERZ, Carla Beatriz. O caminho é investigativo e tem historicidade: pesquisa em
educação no contexto da ambivalência e da desigualdade. In: ____. Adolescentes no
Pátio, Outra Maneira de Viver a Escola: um estudo sobre a sociabilidade a partir da
inserção escolar na periferia urbana. Tese de doutorado, defendida em agosto de 2005,
no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, sob orientação da Professora
Doutora Jaqueline Moll. Publicada pela Editora Uniritter, em 2009.
MEYER, Michel. A retórica. São Paulo: Ática, 2007.
___________. Questões de Retórica: Linguagem, Razão e Sedução. Lisboa: Edições 70,
1998.
___________.Principia Rethorica – Una teoría general de la argumentación.Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 2013.
MEYER, Michel e CUSHMAN, Marlene L.. Argumentation in the Light of a Theory of
Questioning. Philosophy & Rhetoric, Penn State University Press, v. 15, nº.2, pp. 81-
103, 1982. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40237314. Acesso em:
22/01/2011.
MICELI, Paulo. Uma pedagogia da História? In: PINSK, Jaime (org.). O ensino de História
e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2012.
NADAI, Elza. O ensino de História e a “pedagogia do cidadão”. In: PINSK, Jaime (org.). O
ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2012.
NADAI, Elza e BITTENCOURT, Circe. Repensando a noção de tempo histórico no ensino.
In: PINSK, Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. São Paulo:
Contexto, 2012.
NETO, Otávio Cruz. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, Maria
Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social – Teoria, método e criatividade. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2004.
354
Escola: __________________________
Série/turma: ______________________
Data: ___________________________
Sexo / gênero: ____________________
Idade: ________
Religião: ________________________
Raça/etnia: ______________________
Ao longo das últimas semanas você assistiu a diversas aulas da sua professora de História.
Você consegue se lembrar de algo que a professora tenha ensinado, nestas mesmas aulas?
Algum conceito, talvez?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Quando o professor explica a matéria, o que você pensa?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Você recorda de algum ensinamento do professor de História (do que você tem esse ano, ou
de outros que passaram), que lhe pareça ser importante para sua vida?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Você consegue lembrar de outro conteúdo ensinado por esse professor? Fale algo sobre esse
conteúdo.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Você consegue identificar algum estilo na aula do(a) professor(a)? Na fala, nos textos que
utiliza, no uso de certas palavras, na forma de escrita no quadro.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Você já sentiu alguma emoção nas aulas do(a) professor(a)? Você consegue descrever qual foi
essa emoção, e em qual momento ela aconteceu?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
359
Como você percebe a relação entre os conteúdos históricos e os desejos e expectativas dos
alunos?
Como você lida com diferentes níveis da historiografia em sala de aula? Ex: estrutura / longa
duração, acontecimento / evento, personagens, etc.
Como você pensa a experiência de criação de uma aula? Você se pensa uma oradora, uma
contadora de histórias?
Você, ao longo da sua trajetória, se deparou com experiências que fizeram modificar suas
perspectivas de ver-se como professor em sala de aula?
Você reflete sobre o lugar da emoção na sala de aula? Existe alguma estratégia consciente de
uso das emoções como ferramenta pedagógica?
O fato de ser mulher/homem possui alguma relação com a sua prática? Isso pode influir na
sua construção de argumentos? Consegues pensar exemplos.
Se eu apenas lhe largasse a palavra “paixão”, ela teria eco em algum aspecto da sua vida
como professor(a)?
NOME DO PARTICIPANTE:___________________________________________
DATA DE NASCIMENTO: __/__/___. IDADE:____
DOCUMENTO DE IDENTIDADE: TIPO:_____ Nº___________________
GÊNERO: M ( ) F ( ) Outro:___________ ( )
ENDEREÇO: ________________________________________________________
BAIRRO: _________________ CIDADE: ______________ ESTADO: _________
CEP: _____________________ FONE: ____________________.
Eu, ______________________________________________________________,
declaro, para os devidos fins ter sido informado verbalmente e por escrito, de forma suficiente
a respeito da pesquisa: Ensino de História e narrativas: o professor e a persuasão em sala
de aula. O projeto de pesquisa será conduzido por Marcello Paniz Giacomoni, do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, orientado pelo Prof. Dr. Fernando Seffner,
pertencente ao quadro docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estou ciente de
que este material será utilizado para apresentação de uma Tese em Educação, observando os
princípios éticos da pesquisa científica e seguindo procedimentos de sigilo e discrição. Serão
observadas minhas aulas expositivas, bem como o uso de metodologias e materiais didáticos
na condução das mesmas. Fui esclarecido sobre os propósitos da pesquisa, os procedimentos
que serão utilizados e riscos e a garantia do anonimato e de esclarecimentos constantes, além
de ter o meu direito assegurado de interromper a minha participação no momento que achar
necessário.
_____________________________________________.
Assinatura do participante
________________________________________
Pesquisador Responsável
Marcello Paniz Giacomoni
Tel: 51 993419781
E-mail: [email protected]
________________________________________
Orientador
Prof. Dr. Fernando Seffner
Tel: 51 991146351
E-mail: [email protected]
361
_____________________________________________________
(Assinatura do representante legal do estudante)
363
Você só precisa participar da pesquisa se quiser, é um direito seu e não terá nenhum
problema se desistir.
A pesquisa será feita na sua própria sala de aula, onde você responderá algumas
questões de forma completamente anônima. Para isso, será usado um questionário que é
considerado seguro, mas você pode nos chamar caso se sinta desconfortável ao responder
as questões. Mas há coisas boas que podem acontecer, como o seu professor ou
professora conhecerem melhor as formas de lhe ensinar os conteúdos de história.
Ninguém saberá que você está participando da pesquisa; não falaremos a outras
pessoas, nem daremos a estranhos as informações que você nos der. Os resultados da
pesquisa vão ser publicados em uma tese e, possivelmente, artigos científicos, mas sem
identificar você ou qualquer colega.
===============================================================
Entendi que posso dizer “sim” e participar, mas que, a qualquer momento, posso
dizer “não” e desistir e isso não me prejudicará.
______________________________________
Assinatura do menor