Desconhece que o pincel de cerdas densas, planas e arredondadas que tem na mão se chama Fond de Teint, mas sabe bem que permite, como nenhum outro, que uma quantidade exacta de pó seja aplicada no rosto, dando um efeito de pele nua e lisa. Sabe também que a aplicação, para que produza o efeito desejado, deve ser feita do centro para fora, em movimentos circulares.
Inês faz hoje 9 anos e encontra-se na divisão húmida e a cheirar a fritos que, nos dias de jogo, serve de cozinha improvisada ao campo de futebol cinco de um dos muitos Clubes Recreativos da cidade. Está de costas para o espelho que momentos antes colocara no ângulo certo, sustido entre os azulejos bolorentos da parede e a bancada gordurosa, em inox. Uma mala está aberta atrás de si, em cima da bancada. É de cartão e tem mais do dobro da sua idade – mais de setenta, em anos de mala de cartão. Lá dentro, em absoluta desordem, podem ver-se todo o tipo de pincéis, frascos de vários tamanhos e formas, embalagens redondas, quadradas e rectangulares, esponjas, escovas, pinças, vários lápis grossos, tudo numa profusão de cores intensas. Era como se, possuidora de um qualquer antigo segredo sobre como dominar os elementos, aquela rapariga tivesse conseguido tomar posse de vários arco-íris, guardando-os na mala, onde eles, certamente devido ao cuidado distraído no seu manuseamento e transporte, se haviam misturado, espalhando-se por todo o lado, dando mesmo origem a cores e texturas nunca antes observadas. No chão, uma outra mala aguardava a vez de revelar os seus segredos. Era em tudo diferente da outra: enorme, nova, sem sinal dos anos nem do uso.
Sem olhar para trás, Inês vai tirando da mala pincéis, lápis, escovas, um frasco, depois outro, tudo numa sucessão de gestos seguros e lestos. Se, ao olhar alheio, pode parecer que o caos reina na mala, aquelas pequenas mãos desmentem-no, sabendo o sítio de tudo. Em poucos minutos, disfarça as imperfeições e rugas, cobre olheiras, uniformiza o tom das pálpebras, aplica gloss nos lábios e, à volta deles, como que desenha uma segunda boca, muito grosseira e quase sem forma, aplicando generosamente batom de um vermelho muito vivo. Aplica depois sombra azul-escura junto das pestanas, esbatendo em direcção ao exterior, para assim obter um efeito esfumado. Sobre as maçãs do rosto, coloca um nada de blush. Sorri, quando dá aquela parte da tarefa por concluída. Entreabre a mala que está no chão retirando uma cabeleira feita de grandes caracóis da cor do fogo e um disco preto, de feltro que, com uma pancada seca e certeira, transforma num chapéu alto. Veste a cabeleira, ajeitando-a várias vezes e depois, despreocupadamente, coloca a cartola por cima dos caracóis, de lado, sem quase a enfiar na cabeça. Um segundo sorriso surge-lhe nos cantos dos finos lábios, rasgando-se quando, ao se virar para o espelho, a sua obra ganha distância e lhe chega reflectida.
A impaciência juvenil dos convivas entra então pela única janela daquele camarim improvisado. A festa de aniversário já devia ter começado. Não a sua, mas a de uma rapariga, muito provavelmente da sua idade, que não conhece e que nunca mais voltará a ver. É sempre assim e não se importa – aprendeu a não se importar. Até porque depressa mete conversa com toda a gente, conquistando não só os convidados jovens, mas também os seus pais, muito à custa não só do sorriso que naquele momento lhe molda a expressão, como do brilho que, incessantemente, lhe nasce no olhar.
– Está perfeito – diz-lhe o pai, mirando-se ao espelho. – Não sei como consegues.
Ela limita-se a encolher os ombros, vaidosa.
Agachando-se, o pai verifica o conteúdo da mala grande: lenços, cordas, jogos, um baralho de cartas gigante, sacos de pano, argolas, um pequeno trompete, apitos, um ramo de flores de papel, varinhas, muitas outras bugigangas. Erguendo-se, inspira fundo o ressentimento que não consegue deixar de sentir por fazer a filha passar tanto tempo a conhecer novas pessoas, que nunca lhe permite fazer amigos. Conforma-se com o argumento que é a única maneira de passar tempo com ela e ganhar a vida, ao mesmo tempo.
Fechada a mala, pega nela e sai para o recinto desportivo, acenando e cuspindo confetti em todas as direcções. Um bruaá imberbe eleva-se, ensurdecedor. Ouvem-se vivas e palmas. Na cozinha húmida e a cheirar a fritos, a rapariga arruma tudo na pequena mala de cartão, aparentemente, sem critério e sai também. Dois adultos bebem cerveja pela garrafa, despreocupadamente. Ela aproxima-se, sorrindo, e diz:
– Olá, chamo-me Inês e sou a filha do palhaço.