Rodrigo,
Lá estive, mais uma vez. Nunca é a mesma coisa – e ainda que fosse, seria sempre um prazer. Se da penúltima vez nunca tínhamos sido tantos, desta, nunca tínhamos sido tão poucos. Resultou bem a opção intimista, de como quem se encontra no café e começa a falar da vida.
Não terá sido propositado, mas achei feliz a coincidência: local de encontros – ocasionais ou fortuitos – o café é também sítio de observação daqueles cujo trajecto se cruza, num ponto do tempo e do espaço, com o nosso olhar, e nos interrogam, se a isso estivermos dispostos.
Foi isso que aconteceu no sábado passado. Encontro de amigos, que falaram de si, e na tela, os anónimos que, sem terem dito uma palavra, disseram tanto sobre nós, os portugueses – excelente o trabalho do António Barreto, da Joana Pontes e o teu, ao nos retratar tão bem.
Lá estávamos nós, com aquela expressão triste – mesmo quando sorrimos –, a preto e branco, no campo, a caminho da cidade, a esperança que ia ser desta, as barracas…; em miúdos a fazermos fila para nos encherem a caneca com leite; na praia – talvez o sítio onde somos menos fatalistas – a aproveitar cada momento como se no dia seguinte a maré não voltasse; também a cores, mais descontraídos, com cara de quem anseia pelos maiores centros comercias da Europa, que somos pobres, mas desenrascados, e também se desenrasca consumo; lá estavam os velhos que já não são, a olhar com cara de caso para quem lhes tirava o retrato; também vi pressa e fiquei a pensar para onde iríamos nós tão apressados, seria em direcção ao futuro? Sabes o que não vi, Rodrigo? Não vi o Eusébio a marcar golos, ou o Águas a levantar uma das Taças dos Campeões (bons tempos…), também não me lembro de ter visto a Amália, de xaile nos ombros, olhos cinzentos, a fingir um sorriso, e não vi Fátima, a Nossa Senhora em ombros, os lenços a acenar. Teriam as imagens passado, por certo, num daqueles momentos em que eu estava a sonhar, que é coisa que me acontece quando te oiço.
Desta vez, talvez por sermos poucos, imaginei-me um de vocês, alguém que tinha o engenho suficiente para saber tocar um instrumento e estava no palco, a ser provocado pelo olhar maroto da Viviena, como ela faz com o Jano Lisboa ou com a Celina (como ela está a cantar bem; e, já agora, o que dizer da Ana Vieira, do Marco, do Luis Aires ou do Luis San Payo? Todos excelentes). A música também serve para estas coisas, não serve? Para nos transportar para sítios onde se queira muito ir, e lá, sermos aquilo que se consegue ser apenas nos sonhos. E faz-nos querer ser melhores pessoas, limar as arestas, as falhas.
Houve alturas em que eu não estava no Jardim de Inverno, antes, fui protagonista de um filme cujo guião construí com cada acorde da tua música, que é a banda sonora perfeita para o filme das nossas vidas: para os altos e para os baixos, para quando somos apenas nós, ou quando nos partilhamos; quando partilhamos locais. São alturas em que consigo ver esboços de como as coisas deviam ser. Em que é mais fácil vislumbrar os espaços em branco da vida que compete apenas a nós preencher, e que tantas vezes não sabemos onde estão, de tudo nos surgir tão turvo.
Tenho que te confessar que é apenas isso, um fugaz momento, uma fracção ínfima de tempo e que eu não tenho capacidade de apreensão para guardar memória do mapa com o caminho de saída do labirinto, mas é algo tão raro e precioso que, por mais ténue que seja, é muito importante para mim. Sabes, permite-me esperança – algo que ao pessimista raramente é concedido.
Até breve. Um abraço.