Lembro-me das luzes estroboscópicas, aquelas intermitentes que tornam o movimento dos corpos em aparente câmara lenta. O barulho era intenso mas dele não guardei memória. Só mesmo da sensação de estar num ambiente irreal.
Mónica tinha-me rejeitado. Empurrava-me com quanta força tinha, ambas as mãos nos meus ombros, tentando separar-se do meu abraço. Demorei a perceber o que estava a acontecer; o que queria ela com aquilo, porque me empurrava. Nunca me tinha passado pela cabeça que ela não me quisesse. Nem podia ter passado, eu tinha agido sem pensar, tinha cedido ao impulso do momento. Nunca o tinha feito antes e fi-lo na pior altura, com quem não podia ter errado.
Só a larguei quando me deu um estalo. Ainda hoje consigo apontar o exacto local em que cada dedo seu me acertou na face, ainda consigo sentir a dor. O álcool como que se evaporou instantaneamente do meu organismo, deixando-me perfeitamente alerta mas sem conseguir organizar o pensamento, tal era o turbilhão de ideias. Tentava que o que tinha acontecido fizesse sentido mas não conseguia. O que tinha eu visto nos olhos de Mónica quando a larguei? mágoa? ódio? surpresa? ira?
E ali fiquei, sem reacção, a vê-la passar rapidamente por entre as pessoas que dançavam em câmara lenta, afastando-se.
Não fui atrás dela para lhe pedir que ficasse. Se o fizesse teria sido para lhe pedir explicações, não para dá-las e isso teria sido ainda pior. Foi o meu único momento de lucidez em toda a noite.
Passei vários dias a tentar compreender as razões dela. Quando parecia ter encontrado uma razão plausível, logo duvidava de novo. Peguei dezenas de vezes no telefone mas nunca consegui marcar o último digito. Nas duas vezes que ele tocou nesses dias, respirei várias vezes fundo antes de atender, mas não era ela.
Até que um dia, ao dirigir-me para o supermercado para umas compras, virei à direita quando o supermercado ficava para a esquerda. Fui procurar Mónica na residência universitária em que vivia, na Rua D. Pedro V.
Ainda que à minha maneira e sem ser uma pessoa de muita fé, sou crente. Das igrejas gosto quando estão vazias, de as sentir como se fossem só minhas. É nessa altura que as procuro para tentar perceber os desígnios divinos, que tanto me confundem e surpreendem. Muitas vezes tenho questionado a minha crença em Deus mas ainda não desisti de entender, de acreditar. Continuo a acreditar que um dia vou obter resposta.
Isso nota-se nas esperanças que vou tendo. Não sou de muita fé, mas sou de muita esperança. É o contra-peso para o meu pessimismo militante. Nunca acredito que nada de positivo me vai suceder, mas tenho esperança que sim.
Acho que o que me fez virar à direita, naquele dia frio de final de Janeiro foi, por mais que isso me custe mesmo hoje a admitir, a esperança que Mónica me pedisse desculpa. Esperança que me dissesse que tudo tinha sido uma estupidez, uma parvoíce sua que nem ela sabia explicar, que tudo estava bem entre nós e que ela também me queria.
Depressa essa estúpida esperança se desvaneceu. Pedi eu desculpa.
Pedi que compreendesse, expliquei que tinha bebido um pouco, que me tinha deixado levar pelo ambiente de festa, que não a queria ter magoado. Conclui o discurso previamente ensaiado (para a eventualidade de me cruzar inesperadamente com ela), dizendo que não queria perder a amizade dela.
O dia estava cinzento. Com o estore parcialmente corrido, a luz no quarto de Mónica era difusa. Ela permanecia de pé, junto à janela. Na sombra, eu não conseguia ver bem o seu rosto e não percebi qualquer emoção na sua face, no seu olhar. Julguei ter visto alguma surpresa, como se não fosse bem daquilo que estava à espera, mas não o posso jurar, foi apenas algo que me lembro de ter pensado.
Limitou-se a aguardar que eu terminasse, sem um gesto, sem uma palavra. Depois de um momento de silêncio, disse-me que não havia nada para desculpar, que percebia e que tinha esquecido. Só isto.
Depois ficámos os dois, ali, estáticos. Ela junto à janela, na penumbra, eu no meio da sala, como que à espera do fim.
O que tinha acontecido à amizade, a uma amizade forte, especial? Como é que tínhamos chegado aquilo? Havia muitas perguntas, mas não fui capaz de as fazer. Queria dizer-lhe que a amava, mas não disse. Despedi-me e saí.
Parecia ter arrefecido muito na rua. Carregava agora um grande peso e, no entanto, o que sentia era um vazio enorme.
Aquele encontro tinha tornado evidente a impossibilidade de uma relação intima entre nós. Mesmo a amizade estava comprometida, soube-o sem qualquer espécie de dúvida.
Ainda assim, tentei salvar o que fosse possível, pelo menos queria continuar a manter o contacto com ela, a salvar o que fosse possível da amizade.
E assim caiu a chuva de Inverno.
Aos poucos fui conseguindo racionalizar as coisas, não tanto a origem de tudo, que nunca compreendi bem, mas o que eu tinha de fazer perante a situação em que me encontrava. Não iria continuar a sofrer, não podia.
Sentia-me desprezado. Tinha sido o seu melhor amigo, o seu confidente, a pessoa a quem ela tinha telefonado nos momentos difíceis. Agora não precisava mais de mim. Teria de viver com isso.
Aos poucos deixei de procurar as respostas, de tentar entender Mónica, de procurar nas pequenas coisas grandes significados. Um dia talvez voltássemos a falar no assunto, talvez então eu tivesse uma explicação, entretanto, não a procuraria.
Tomar esta decisão libertou-me. Permitiu-me canalizar energias para outras coisas. Acabei por conseguir tornar a mágoa em algo que me ajudasse a ser uma pessoa melhor.
Apesar de eu ter tentado manter algum contacto, a verdade é que uma espécie de ponto de não retorno tinha sido ultrapassado. Ocasionalmente, ia sabendo dela por Gonçalo mas, nas ocasiões em que estávamos juntos, apenas sentia distância, uma ironia cortante nos seus comentários. Por vezes, revelava-se mesmo fútil, coisa que jamais pensaria um dia associar a Mónica.
O tempo foi passando e o afastamento crescendo. No final do curso cumprimentámo-nos e desejámos, um ao outro, boa sorte para o futuro. Parecíamos dois políticos que se cumprimentam no fim de um debate em que passaram todo o tempo a acusar-se mutuamente das piores coisas.
Mónica acaba por se mudar em definitivo para o Porto. Juntamente com Gonçalo e mais dois colegas de turma, cria uma empresa de consultoria especializada na construção de fundações.
O facto de termos vários amigos em comum faz com que nos cruzemos várias vezes. Os cumprimentos de circunstância dos primeiros tempos, depressa se transformam em indiferença. Aparente no meu caso, que sempre procurei surpreender um olhar de Mónica na minha direcção. Sempre tive essa esperança.
***
Eu e Gonçalo mantemos há muitos anos dois lugares cativos na central do estádio do Bessa. Somos boavisteiros de gema e foi a jogar nos iniciados do clube que nos conhecemos. O jeito não era muito mas ninguém tinha mais vontade de vencer que nós os dois. Foi amizade à primeira tabelinha.
Mesmo que tudo o resto falhe, sei que posso encontrar o Gonçalo na cadeira à minha esquerda em dias de jogo. Podem contar-se pelos dedos das mãos os jogos que não vimos juntos no Bessa. Gritar com os jogadores e com o árbitro sempre foi a nossa terapia de eleição.
Há três meses atrás o Gonçalo desafiou-me a ir com ele a Lisboa ver o Boavista – Benfica. Deixaríamos as namoradas no Porto, íamos de véspera e aproveitávamos para nos divertir na capital. Aceitei.
Recriativamente falando, foi um excelente fim-de-semana, desportivamente, nem por isso, mas tudo por culpa do árbitro!
No regresso parámos na área de serviço de Leiria. Enquanto Gonçalo foi buscar dois cafés, eu fiquei ali sentado, a olhar pela janela, a reparar nas luzes dos carros na auto-estrada, na rapidez com que se aproximavam e partiam. Não pensava em nada, o que é raro em mim. Visto agora, era o momento de calmaria que antecede a tempestade.
Quando ele se sentou à minha frente, percebi que tinha algo importante para me dizer. Tinha o olhar focado, os lábios como que petrificados como ficam sempre que tem algo difícil para dizer.
- Conta-me.
Pigarreou.
- A Mónica… vai casar. Achei que devias saber.
Voltei a olhar pela janela. As luzes brancas a aproximar-se, as vermelhas a afastarem-se. Ambas muito depressa. Também eu quis sair dali muito depressa.
- Como é que ela está? – perguntei.
- Está óptima. Acho que é amor.
Não tentei fingir que não era nada comigo, que não me afectava. Sem nunca ter falado nisso com Gonçalo, sabia que ele sabia.
Entrámos no carro. Gonçalo voltou ao assunto, o que não era nada habitual nele.
- Convidou-me para padrinho, imagina.
- Lá vais ter que comprar um fatinho todo catita.
Lá fora, o vento soprava com mais força.
- Nunca percebi o que aconteceu entre vocês.
- Não aconteceu nada.
- Exactamente, é isso que eu nunca percebi.
- Não havia nada para acontecer, não penses nisso.
Silêncio. Nuvens negras juntaram-se por cima de nós.
- Ela gostava de ti, sabes?
Ouvem-se os primeiros trovões, ao longe.
- Ela disse-me, Luís.
Agora mais perto, muitos trovões, dentro da minha cabeça.
Senti algo parecido com um enjoo. Em criança sempre enjoei com facilidade quando andava de carro. Chegava mesmo a ficar mal disposto no trajecto entre o Porto e a praia da Boa Nova, no verão. Agora sentia o mesmo. Pensei que ia vomitar.
- Disse-te o quê, quando?
- Já há uns anos. Numa noite em que ficámos a trabalhar até tarde. Foi quando lhe morreu o pai, uma altura bem complicada para ela. Ouviu uma música qualquer na rádio e disse-me que lhe fazia lembrar-se ti. Disse-me que tinha sido muito parva contigo, que te tinha tratado mal. Que gostava de ti e que tinha desprezado o teu amor.
Tive de me agarrar à pega por cima da porta. Parecia que ia escorregar para fora do carro. Se não me segurasse com quanta força tinha, ia estatelar-me no asfalto.
- Disse-te porquê?
- Medo.
- Medo?
- Não só, mas também. Lembras-te do GNR? Ao que parece tratava-a mal. O gajo metia-se nos copos e ficava psicótico, ameaçava-a a toda a hora. Aparecia no Porto sem dizer nada Dizia-lhe que a queria muito, que não suportava a distância, que eram os ciúmes que o faziam perder a cabeça. Chegou a bater-lhe.
- O quê?
- Eu só soube disto muito mais tarde.
- Como é que ela se envolveu com um gajo desses?
- Sempre achei que foi pela mesma razão que tu te envolveste com aquela miúda da papelaria. Ela nunca me disse porque foi. Acho que nem ela sabe. Mas há pior Luís, o tipo um dia violou-a.
Eu estava lívido.
- Eu não sabia nada disso… eu…
- Ninguém sabia. Foi a consciência de que o tipo podia ser perigoso que a levou a ficar calada durante muito tempo. Ela teve medo da tua reacção quando soubesses. Depois tens aquela saída na passagem de ano, com os copos e ela assustou-se. Misturou tudo na cabeça e achou melhor afastar-te. Tinha também ficado magoada por lhe dizeres que a querias, não que a amavas. Naquela altura ela precisava de ser amada, não desejada.
- Mas porque se pôs ela a pensar por mim? Porque não me disse nada?
- Tu não a amavas? Disseste-lhe isso?
Tentei falar mas não consegui. Recordava todos os momentos passados com Mónica. Os bons e os menos bons. O afastamento. Via tudo a uma nova luz. Muitas coisas, certas atitudes, faziam agora sentido.
- Eu percebo-a, mas ao mesmo tempo… que estupidez.
- Que estúpidos que vocês foram.
- Sim, eu fui muito. Calei o que sentia.
- E porquê?
- Porque era parvo, não sei. Perguntei isso a mim mesmo muitas vezes. Sabes a que ponto fui parvo? ao ponto de me ir sentar na Capela das Almas e, enquanto olhava para S. Francisco de Assis a ser levado pelos anjos, pedia desculpa por ter sido tão… fraco – respondi. - No fundo, alimentava uma esperança de que, uma vez chegado lá a cima, S. Francisco metesse uma cunha por mim e me dessem uma segunda oportunidade.
- Isto está mal para segundas oportunidades. Andamos cá muito pouco tempo para as desperdiçarmos.
- E tu sabias e não foste capaz de me dizer.
- Só soube muito mais tarde, já te disse. Vocês estavam com relações estáveis, não quis interferir. Tive muitas dúvidas. Não sei se fiz bem.
- E porquê dizer agora?
- Porque agora ela vai casar.
***
Santos a chegarem ao céu, anjos a sorrirem para mim. O sonho tornou-se recorrente nos dias seguintes. Segundas oportunidades.
Poderia o tempo voltar para trás, seria possível recuperar o tempo perdido? Tantos anos depois eu continuava a pensar nela, a pensar “e se…”
Dei por mim a fazer um balanço da minha vida, quem eu era, o que tinha conseguido. Era feliz? Porquê estar agora com isto?
Perguntas, sempre as malditas perguntas!
Estagnei. Não conseguia sair disto. Tinha que tomar uma decisão.
Soube através do Gonçalo quando Mónica estaria sozinha na empresa e fui procurá-la. Não a via há mais de um ano.
Não conseguiu evitar o ar de surpresa ao ver-me. – Olá Luís…
- Olá Mónica.
- O Gonçalo não está. Não deve voltar hoje.
- Eu sei. É contigo que quero falar.
Continuava linda. Tinha agora 34 anos e mantinha um ar juvenil. Talvez fosse aquela maneira descontraída de vestir que eu tanto gostava mas, ao vê-la de novo, parecia a mesma rapariga que um dia eu tinha visto numas escadas da faculdade.
- Entra.
- Soube que vais casar… olha, desta vez não ensaiei nenhum discurso… mas talvez devesse, agora não sei o que dizer, como dizer…
- Dizer o quê, Luís?
Os primeiros acordes de Purple Rain saídos das colunas do computador ecoaram no gabinete.
Lembrei-me de alinhamentos cósmicos, de sinais que nos são enviados. Seria apenas uma coincidência?
- Purple Rain, lembras-te? – perguntei.
Mónica não chegou a responder à minha pergunta. Respondeu antes a todas as perguntas que eu nunca lhe tinha feito e que, no fundo, eram a razão de eu ali estar.
Não, o tempo não volta atrás. Na sua vida já há muitos anos que não havia lugar para “ses”. Não podia parar para pensar, não o queria, não o iria fazer.
Gostava muito de mim, pensava por vezes nas coisas boas que tínhamos tido, mas já não pensava nas que poderíamos vir a ter.
Agora eu já sabia. Pelo menos com esta dúvida eu não iria viver. No entanto, havia ainda perguntas que precisavam resposta e o Porto não era o local para as obter.
Tinha voltado a sofrer muito com algo que pensava estar resolvido dentro de mim. Se queria seguir em frente, desta vez, teria de olhar para trás, sozinho, com tempo.
Decidi partir.