domingo, outubro 30, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 2)

Região de Ypres, Flandres Belga. As piores chuvas dos últimos 30 anos tinham tornado a vida nas trincheiras quase insuportável. As condições de vida eram péssimas, havia falta de mantimentos, as instalações que serviam de aquartelamento deixavam entrar água por todo o lado. Tudo estava húmido e a apodrecer. À noite, o frio fazia-se já sentir, e deixava adivinhar um Inverno muito penoso.

A Companhia de Herr Maximilian L. estava colocada na ponte da estrada de Menin. Era este o acesso à localidade de Passchendaele, local estratégico para o controlo da região.
Estávamos em meados de Setembro. A tensão entre os militares aumentava a cada hora. Sabia-se que o exército Aliado se aproximava.
A ofensiva iniciada a 31 de Julho, a terceira Batalha de Ypres e primeira de iniciativa Aliada, tinha encontrado resistência feroz por parte das tropas alemãs, mas era agora inevitável o confronto. Seria o baptismo de fogo de Max.
Nunca lhe vi medo. Aos homens do pelotão que comandava aparecia sempre confiante e determinado, a mensagem que passava era a de que aquilo para que tinham sido chamados estava perante eles: a defesa da pátria. E isso passava pela conservação daquela ponte.

Desde a partida de Munique não mais o Capitão Ludendorff se separou de mim. Apesar das condições mais que adversas, da muita lama, da humidade constante, Max tinha todos os cuidados comigo. Conseguiu sempre preservar-me de qualquer dano.
Apenas nos separávamos fisicamente à noite. Colocava-me, aberto, em cima de uma pequena mesa junto ao beliche que ocupava. Ficava vários minutos a contemplar-me à luz da vela, na verdade, a foto de Frau Lea, a recordar momentos passados a dois.
Por vezes rezava. Por esta altura, mais que uma vez por dia. Pedia protecção para si e para a sua mulher. E escrevia-lhe também. Contava-lhe os vários aspectos da vida nas trincheiras, sempre de um ponto de vista optimista, omitindo tudo o que pudesse realmente preocupar Lea. Sentia-se algo ingénuo com o que escrevia, no fundo, sabia que Lea percebia isso, mas achava melhor assim.

A 19 de Setembro, ao amanhecer, os primeiros obuses do dia caíram bem mais perto das posições que ocupavam, do que nos dias anteriores. O exército alemão recuava e espalhava-se por uma enorme frente de batalha. Não poderiam contar com muita ajuda.
À tarde as ordens chegaram e não podiam ser mais simples: resistir a todo o custo, em último caso, dinamitar a ponte.
O pelotão que Herr Maximilian L. comandava foi colocado a 500 metros da ponte, numa segunda linha de defesa.
Era agora, iria combater. Teve medo. Nessa noite escreveu a Lea. Rezou muito. Beijou a foto, coisa que nunca tinha feito e dormiu agarrado a mim… pelo menos tentou, mas nunca conseguiu.
O dia 20 começou com a habitual alvorada de obuses. Às 9h00 a primeira linha de defesa caiu. Os (poucos) soldados que conseguiram chegar até nós não ficavam: “recuem, não temos qualquer hipótese… são muito mais que nós… temos que atravessar a ponte, dinamitá-la e suster o avanço inimigo na outra margem…”.
Max hesitou. O coração dizia-lhe que era a única coisa sensata a fazer, que devia recuar; mas a razão dizia-lhe que fixasse, não poderia recuar na primeira vez que entrava em combate, não poderia viver com a sua consciência se o fizesse. Ficaram.

Os morteiros massacravam as suas posições. Começaram a ser atingidos por tiros de metralhadora e espingarda. Responderam como puderam. Tiveram as primeiras baixas.
Quando os tiros de morteiro cessaram, Max percebeu que as tropas aliadas iriam avançar. Gritou ordens e incentivos aos seus homens sem sequer saber se estava a ser ouvido. Tinha agora a clara sensação de que cada homem estava por si, desorientado, perdido. Nada o havia preparado para aquilo. Pensou mais uma vez se seria desonra recuar.
Rudolf Schell, soldado encarregue do rádio e que sempre acompanhava o Capitão, caiu desamparado para o lado. Tinha sido atingido na cabeça. Granadas começaram a explodir bem perto, projectando terra por todo o lado.
“Retirar, retirar”- gritou Herr Maximilian L.

Confesso que não sei exactamente como aconteceu. O barulho era intenso, eu, ora era comprimido contra o chão, ora violentamente abanado enquanto Max corria. A certa altura ouviu-se um som diferente, seco, muito próximo de mim. Fui mais uma vez pressionado contra o chão. Desta vez não se seguiu o chocalhar violento.
Com dificuldade, Max conseguiu virar-se de barriga para cima. Um liquido espesso e quente começou a invadir o bolso onde eu me encontrava. Tinha sido atingido no estômago.
A primeira coisa que senti no jovem Capitão foi incredulidade, como se tudo aquilo não estivesse a acontecer. Tentou levantar-se, mas em vão. Não conseguiu sequer arrastar-se.
Gritou então mais uma vez, “retirar…”, mas as cordas vocais traíram-no e apenas um fio de voz que ninguém ouviu para além de mim lhe escapou por entre os lábios secos.
Quando finalmente Max percebeu, procurou-me. Com a mão ensanguentada e enlameada, apertou-me com quanta força lhe restava.
Ainda murmurou “Lea...” e, sem que tenha disparado um único tiro, morreu.

Seguramente, a coisa de que guardo uma memória mais intensa desta minha longa existência, é das horas ali passadas na mão de Max, de ver as nuvens passar, da chuva, do fumo negro, do barulho ensurdecedor, da correria louca dos soldados, dos seus gritos; e depois do silêncio… de como algo tão brutal tinha dado, aos poucos, lugar a um silêncio profundo.
Acima de tudo, guardo memória de como o calor daquela mão me foi abandonando, de como se foi esvaindo para a terra.
A força do aperto, essa nunca se perdeu. Max manteve-me sempre apertado, como se eu fizesse, agora, parte dele.

No dia seguinte, a meio da manhã, o sol rompeu por entre as nuvens. Senti os seus raios tocarem-me por entre os dedos de Max. Apesar de muito sujo, consegui reflectir parte desses raios.
Foi certamente isso que atraiu até mim um soldado. Parou e fitou o corpo de Max durante uns segundos. Retirou o capacete e benzeu-se. De cabeça baixa, fez uma breve oração.
Lembro-me de ter pensado no quão estranho era aquele comportamento, em como sentimentos daqueles pareciam deslocados num campo de batalha.
A custo, retirou-me da mão do capitão. Percebi então que era um soldado Aliado, do Corpo Expedicionário Português.
Preparava-se para seguir o seu caminho quando viu algo no corpo de Max que lhe chamou a atenção. Baixou-se, retirou o que quer que fosse e guardou no seu casaco.

A mim não ligou muito, abriu-me e fechou-me sem que a sua expressão se alterasse. Ou não percebia nada de relógios ou, por eu estar sujo, não reconheceu o valor que tinha em sua posse. Guardou-me no bolso e avançou.

NA – Obviamente, esta história é ficção. Apesar disso, tentei que o enquadramento histórico fosse o mais próximo possível da realidade.
Apesar disso, cometi um erro: nos apontamentos que tomei, troquei o ano da terceira batalha de Ypres, que ocorreu em 1917 e não em 1916. Assim, o ano da primeira parte teve que ser alterado.
Podem encontrar aqui informação sobre essa batalha e aqui sobre o Corpo Expedicionário Português.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 1)

Sirvo para uma coisa muito simples. Apesar disso, não sou simples, antes pelo contrário, sou o resultado de uma complicada mas harmoniosa conjugação de dezenas de peças, muitas delas móveis.
Sou fruto da inspiração de uma mulher apaixonada e da habilidade de um homem, também ele apaixonado.

Assinalo a passagem do tempo, sou um relógio.

Fui criado em Genebra, em 1917, resultado da habilidade – do génio – de Mr. Adrien Philippe, mestre relojoeiro de excepção, homem apaixonado pelo seu oficio.
A inspiração deu-a Frau Lea Abendroth que, por ser de uma família abastada de Munique com contactos em vários países, conseguiu chegar até ao sogro de Mr. Philippe, pedindo-lhe que intercedesse a seu favor junto do mestre relojoeiro, o mais conceituado do seu tempo.

Adrien Philippe hesitou, afinal, sempre tinha sido ele o criador das suas peças, sempre tinha feito questão disso, era a parte do processo que mais prazer lhe dava. De espírito criativo, procurava sempre inovar, introduzindo novidades a cada novo modelo produzido.
Ao ler as indicações de Frau Abendroth, considerou-as um desafio e aceitou a encomenda.
Eram muito simples de enumerar e difíceis de concretizar: seria um relógio de bolso em prata, com tampa, em que nesta fosse gravado uma runa simbolizando a boa sorte
e que, no seu interior fosse colocado o encaixe para uma foto; para além das horas, o relógio deveria ter cronómetro, regulação fina e bússola; deveria ter também um mostrador onde fosse indicado o nascer e o por do sol; por último, na parte detrás, deveria ser gravada a frase “Meine Traueme Mit Dir Traueme”.
Sem querer abusar demais da boa vontade do mestre, Frau Abendroth pedia alguma urgência. Dinheiro não seria problema.

Mr. Adrien Philippe saiu-se maravilhosamente. Utilizando os melhores materiais e os melhores artífices, produziu uma peça verdadeiramente magnífica. Um relógio único.
Sim, sou vaidoso. Mas tenho razões para isso, no meu tempo fui do melhor que a relojoaria Suiça produziu e, ainda hoje, continuo a ser admirado com reverência por conhecedores e olhado com espanto por leigos.

Com 19 anos feitos há pouco tempo e casada à menos de um ano, Lea Abendroth viu-se no início de 1917 na eminência de se separar do marido. Promovido a Capitão do exército imperial alemão antes dos 21 anos, Herr Maximilian Schenk Ludendorff partiria em breve. A Alemanha estava em guerra.
As boas relações quer da sua família, quer da do marido junto da corte tinham, até então, adiado a partida de Maximilian, mas a situação pouco favorável vivida pelas tropas alemãs na frente de batalha e o recente apelo do Kaiser para a união da pátria, tinham tornado inevitável a sua convocação dentro de pouco tempo.
Sabendo do gosto de Max, como o tratava carinhosamente mas apenas em privado, por relógios, Frau Abendroth tinha decidido há já algum tempo oferecer-lhe um modelo exclusivo pelo seu aniversário em Novembro. Quando a família foi avisada que Maximilian seria convocado em Março, não perdeu mais tempo, queria ter o relógio em sua posse quando o marido fosse chamado a cumprir o seu dever pela pátria.
A 3 de Março chegou o telegrama, partiria de Munique dia 28 próximo, iria ser colocado na Flandres.

É impossível esquecer uma cena daquelas. Pouco passava das 7h00, uma leve neblina levantava-se empurrada pelos primeiros raios de sol. A Marienplatz estava apinhada, uma multidão convergia à Hauptbahnof, a estação central de Munique.
Centenas de pessoas despediam-se dos seus filhos, netos, maridos, pais, tios… Os soldados partiriam às 8h00 para Berlim, primeira etapa do trajecto que os levaria até à frente de batalha.
A pátria esperava o melhor deles. Sentia-se orgulho nas suas expressões. Alguns conseguiam disfarçar menos bem o medo que sentiam.
Apesar de tanta gente concentrada num mesmo local, o ambiente era estranhamente calmo. A Lea, tinha-lhe parecido o ambiente de um funeral quando chegou. Estremeceu mas afastou imediatamente todos os pensamentos negativos do seu espírito.
Apenas ela tinha insistido em se vir despedir à estação. Maximilian tinha preferido despedir-se de todos em casa, algo sobre não querer parecer “muito humano” aos olhos dos homens que ia comandar. Lea tinha-o repreendido e impôs a sua presença.

- Max…
- Amor.
- Queria que aceitasse esta lembrança.
- Lea… mas… é magnifico… estou sem palavras. A assinatura, Adrien Philippe… não sei…
- Diga só que gostou.
- Lea, adorei, é lindo. O símbolo…
Meine Traueme Mit Dir Traueme…
- Lembra-se?
- Como poderia não lembrar. O seu poema… estou deveras tocado.
- No interior… coloquei uma foto minha, do dia do nosso casamento. Assim vai poder ver-me sempre. Tem também uma bússola, para que saiba encontrar o caminho de casa, até mim; tem um mostrador indicando o nascer e o por do sol, a esperança no dia que começa e a fé para o dia seguinte. As outras características poder-lhe-ão ser úteis na batalha, mas prefiro não pensar nisso.

Herr Ludendorff estava visivelmente emocionado. Ali ficaram os dois, de mão dada, em silêncio.
O comboio apitou com um silvo estridente e prolongado. O vapor libertado encheu a estação, dando-lhe um ar lúgubre e um pouco irreal. Maximilian beijou Lea nos lábios.


- Amo-o muito.
- Eu também a amo muito.
- Boa sorte.
- Voltaremos a ver-nos.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Nota do Autor

Apenas para dizer que completei um pouco melhor o “meu perfil” e que alterei a descrição do Blog, onde antes se podia ler “um blog a leste de sitio nenhum”, pode agora ler-se… bom, basta olharem para baixo do titulo.

Fiz isto porque tenho percebido pelos comentários (que muito me sensibilizam e agradeço) que, pelo menos quem cá vem pela primeira vez, tem tendência para tomar os textos um pouco literalmente demais. Sinto que posso estar, ainda que inadvertidamente, a induzir alguém em erro.
A este propósito, deixo AQUI o link para um texto recente onde falo sobre isso mesmo.

Mais uma vez, obrigado a todos.

terça-feira, outubro 25, 2005

O Frio de Sábado à Noite

As minhas noites de sábado sempre foram muito angustiantes. São as noites por excelência para se sair com os amigos em busca de diversão. Pelo menos, este é o objectivo declarado, porque o implícito, para quem tem 18 anos como eu e não namora, é encontrar uma relação.
Nunca ninguém me disse que é assim, nunca o li em lado nenhum mas, na minha cabeça, é assim. Coloco uma grande pressão sobre mim e isso angustia-me, deixa-me nervoso. E não é tanto pela parte da busca da relação, daquele jogo de sedução com uma rapariga, coisa para a qual eu nunca tive jeito, digo-o já, é por não ter muitos amigos. Chega sábado à noite e eu não tenho com quem sair.
Os poucos amigos que tenho estão noutra, andamos numa fase em que não partilhamos muito os mesmos interesses. É essa a razão porque eles não me convidam para sair com eles. Não por não me quererem no grupo, apenas sabem que eu estou noutra.
E é verdade, não estou na deles, mas também não estou na de outros, simplesmente não estou na de ninguém. Nem sequer na minha.
Se eles me convidassem eu até era capaz de aceitar. Não por convicção, apenas por não ter mais nada para fazer.

Eu também não me ajudo nada. Nunca dou parte fraca, nunca falo. Eu sou aquele para quem está sempre tudo bem, sei fingir uma vida social relativamente ocupada e sempre sem precisar de mentir – o que também não seria capaz de fazer -, basta-me falar de alguns sítios que estão a dar, de pessoas que eu conheço mas eles não e, nas suas cabeças a ligação é feita: “ele tem para onde ir e com quem ir, porreiro”. É assim tão fácil, acreditem.
A malta é jovem, não há grande preocupação em fazer muitas perguntas, vive-se depressa. Se o outro diz que está bem, se aparenta estar bem, é porque está bem.
Não me ajudo ao nunca me fazer convidado. Podia dizer que naquele sábado até ia com eles e tenho a certeza que, depois de ouvir duas ou três exclamações de espanto, ninguém mais ia pensar nisso e eu seria muito bem-vindo.
Não lhes digo nada porque se eu fosse com eles era para sítios que não têm nada a ver comigo, com aquilo que sou neste momento, e, para mais, como conheço bem apenas poucas pessoas do grupo e não as quero prender a mim, acabava por ficar por ali calado (com os outros não seria capaz de conversar sobre nada devido a uma enorme incapacidade minha de me relacionar, se querem saber), ou seja, iria passar a noite sozinho de qualquer maneira.
Mesmo assim não sei se faço bem. Será melhor passar a noite sozinho, ou sentindo-se sozinho no meio de muitas pessoas? Às vezes parece-me que no meio de um grupo é ainda pior. Ver de perto as pessoas a confraternizar, a relacionarem-se e eu ali, calado, a um canto. Acho que realça de uma maneira insuportável a tristeza de vida que tenho. Se passar a noite mesmo sozinho, parece que sinto menos pena de mim próprio.

E é assim que sábado se torna na noite mais solitária da semana.
É um drama sempre renovado. Apesar de todos os sábados serem iguais – pelo menos a esmagadora maioria -, em casa não consigo ficar, apesar de não ter para onde ir.
Não consigo ficar porque vejo nos olhos dos meus pais o que lhes vai no pensamento: “olhem só para este rapaz, com 18 anos e não sai num sábado à noite”. Nunca me o disseram nas vezes em que não saí, mas eu sinto-o. E por isso, saio. Não quero que eles pensem que não tenho para onde ir, com quem ir. Saio.
Tantas pessoas com o drama de os pais não os deixarem sair e eu com dramas destes…

Depois de algumas noites verdadeiramente complicadas, em que me vi aflito sem saber o que fazer, para onde ir, encontrei uma rotina que tem servido o propósito de queimar 3 a 4 horas: apanho o autocarro e depois o comboio, vou até à Baixa (por vezes ainda apanho o Metro e vou até outras partes da cidade). Levo o Walkman, claro, e ando por aí, sem destino, por zonas da cidade que aos sábados à noite estão quase desertas.
Ao escrever isto quase me senti bem, se eu soubesse o que era isso, diria que senti mesmo felicidade. Chegou a parecer-me um belo programa de sábado à noite. A verdade, porém, é que são 3 a 4 horas em que pouco mais faço do que sentir pena da minha existência.
Sei perfeitamente que não devia, mas é mais forte do que eu. O saber que podia ser bem pior, que há pessoas doentes e que lutam sem se queixarem, que têm vidas bem piores que a minha, não me ajuda em nada. Só damos valor às coisas quando as perdemos e, neste momento, não dou grande valor ao que tenho.

No meio de tudo isto, consigo vislumbrar algo positivo, é que tenho perfeita consciência de quem sou e de como sou. Sei que tenho que mudar, que assim não vou a lado nenhum, que isto não é vida para ninguém. Sei também que se pedir ajuda, se conseguir falar com alguém, tudo será mais fácil. Ainda não o consigo fazer, mas vou tentar, um dia. Até lá, resta-me andar por aí aos sábados à noite, sozinho, na triste esperança de que alguém meta conversa comigo, nem que seja para perguntar se aquele comboio pára em Algueirão. Até agora ainda não aconteceu.

Vai começar o Inverno. Os dias de chuva são os piores. O frio já se nota. Lá fora e cá dentro.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Em Roda Viva

- Estou? Mafalda?
- Sim… quem fala?
- É o Jorge.
- Ah, olá Jorge, desculpa, estou a ouvir muito mal… falta de rede.
- Olha, podes ir tomar café comigo esta tarde?
- Posso… quero. Nas Docas, às 17h00?
- Lá estarei, olhando o rio, procurando por ti…
- Sempre o mesmo… até logo.

- O Sr. desculpe, mas viu por aqui um rapaz jeitoso, boa pessoa, com ar triste e abandonado?
- Deixe ver, ar abandonado… sim, lembra-me alguém, mas jeitoso? Não sei…
- Palerma! Estás bom?
- Estou óptimo, recomendo-me. E tu, como estás?
- Vamos indo…
- Li o teu mail, foi por isso que te liguei. Anda, vamo-nos sentar.
- Gosto muito de aqui vir durante a tarde, apreciar esta calma, ver o rio. Sentir a antecipação da confusão em que isto se torna durante a noite.
- Sim, estes finais de tarde de Outono, com o sol a entrar no mar, são magníficos. Lembras-te que viemos aqui na noite em que nos conhecemos?
- Claro que sim, como poderia esquecer.

- Boa tarde, o que vão tomar?
- Boa tarde. Para mim um Mazagrand.
- Dois, obrigado.

- Não me pareceste muito animada naquele mail. Depois de uma ausência tão grande, não esperava sentir tristeza nas tuas palavras.
- E eu que escrevi precisamente de maneira a não deixar perceber nenhuma tristeza. Como é que fazes isso? Às vezes acho que entras dentro da minha cabeça sempre que queres.
- Não te sei explicar, apenas sinto as coisas. Devemos ter uma ligação especial mas, de onde vem isso, ou sequer o que isso é, como funciona, não me perguntes que eu não te sei dizer.
- E sentiste o quê exactamente no meu mail?
- Senti que esse coração anda, mais uma vez, numa roda viva.

- Peço desculpa, aqui têm as vossas bebidas.
- Pagamos já?
- Não, podem pagar quando forem embora; à noite é que fazemos questão de cobrar imediatamente.

- Tens razão, mais uma vez acertaste, o meu coração anda numa roda viva, como tu dizes.
- Pensava que tu e o Miguel… que estava tudo bem, que finalmente tinhas encontrado a pessoa certa. Há mais alguém?
- Há… e não há. Eu gosto muito do Miguel e está tudo bem entre nós, não podíamos estar melhor. Eu é que não estou bem comigo própria…

(silêncio)

- …há uns dias apareceu-me uma daquelas personagens do passado, sem mais nem menos. Daquelas que tinham mexido comigo mas que estavam já esquecidas… Descobri que mexe ainda comigo. Acreditas nisto?
- Claro que sim.
- Sabes o que é termos estado horas a conversar e ter parecido que foram 5 minutos? O que te vou dizer vai parecer-te uma barbaridade, mas sabes quando sentes que aquela pessoa é tudo quanto sempre sonhaste, que é o tal, aquele que ri das mesmas coisas que tu, que percebe o que queres dizer sem que tu tenhas que terminar sequer as frases, que gosta das mesmas coisas improváveis que tu… ovos estrelados a meio da noite, que partilha os mesmos ódios de estimação? Que diabo, isto não é normal.
- Essas pessoas não existem! Desculpa a brutalidade da revelação, mas o que existe é momentos assim, momentos em que tudo parece conjugar-se, em que vês as peças encaixarem-se perfeitamente, tudo a ir ao seu lugar. No final, até ouves o clic, o sinal que tudo está perfeito.
- Achas? Sempre acreditei que cada pessoa que chega à tua vida te traz algo que possas aprender, que nada acontece por acaso.
- Eu percebo isso, e sim, quanto à primeira parte é verdade, podemos e devemos aprender sempre com quem nos cruzamos, nem que seja aprender a como não fazer as coisas; mas quanto à segunda parte, já tenho muitas dúvidas, se calhar passamos imenso tempo a procurar dar sentido às coisas que nos acontecem para depois perceber, no fim, que afinal mandam os acasos, as coincidências.
- Acreditas em coincidências?
- Por vezes parece-me que tudo isto não passa de uma sucessão de coincidências, umas concretizadas outras falhadas.
- Como assim?
- Coincidências concretizadas são as nossas vidas. O que nos acontece não é mais que uma série de acasos que levam a outros acasos. As coincidências não concretizadas são uma espécie de universo paralelo, um conjunto de possibilidades de acompanham as outras, mas que não acontecem. É uma espécie de cara e coroa, duas faces de uma mesma moeda que vão alternando. Por exemplo, lembras-te no mês passado do acidente que tive? Do tipo que não parou no vermelho e me acertou em cheio?
- Sim…
- Pois bem, isso foi uma coincidência concretizada. Mas bastava eu ter demorado mais 5 minutos a tomar banho nessa manhã, para ter chegado ao cruzamento depois do tipo passar o vermelho. Se isso não tivesse acontecido, passaria a valer um outro conjunto de coincidências que eu nunca vou conhecer… coincidências não concretizadas.
- Podias no próximo semáforo ser abalroado por um outro tipo e com consequências muito piores…
- Exactamente, é um exemplo. Mas isso nunca vamos saber. Se calhar aquele acidente livrou-me de um maior, mas por não o saber, vou sempre amaldiçoar aquele momento e não perder tempo a pensar, “e se…”. Isto tudo para te dizer que não sei se fazes bem em colocar a tua relação com esse rapaz nesses termos: pensamos o mesmo, gostamos das mesmas coisas, odiamos as mesmas coisas… uau, é um sinal dos deuses, é o tal! Não chega para colocar tudo em causa, a relação que tens com o Miguel. É que pode não passar de uma simples coincidência.
- Não se me estás a ajudar, pelo menos não me sinto melhor.
- Tu desculpa-me, estou a ser um pouco insensível. É este meu maldito racionalismo empedernido. Por vezes pareço um gajo sem coração, sem emoções, não é?
- Não me faças perguntas difíceis agora, estou baralhada.
- É verdade, eu sei que sim. É uma defesa minha, tento decompor tudo em pequenas partes para melhor as assimilar. Tudo tem que ter uma explicação plausível, quase cientifica e estas coisas do coração não se compadecem com isso.
- Mas tu alguma coisa deves estar a fazer bem, afinal, tens uma relação estável.
- … agora ia dizer que isso não passava de uma coincidência.
- Palerma…

(silêncio)

- O que pensas fazer, Mafalda?
- Juntar todos os acasos e tentar que façam sentido. Eu gosto muito do Miguel, nós damo-nos tão bem que até chateia e é isso que me perturba, que me angustia, então porquê sentir-me assim? Porquê dar tanta importância e este tipo? Se calhar é só mesmo pelo jogo de sedução, pela conquista, por ser uma espécie de desafio. Sim, pode ser só isso, ver se ainda sou capaz de interessar a alguém, ou conquistar alguém… olha, não sei.
- Quando descobrires a resposta Às tuas dúvidas vais encontrar o sossego, mas até lá é algo com o qual vais ter de viver. Fingir que não existe é que não é solução.

- Eu sei… vês aquele veleiro a dirigir-se para o mar?.. apesar disso, queria ir lá, deixar tudo isto para trás.

terça-feira, outubro 18, 2005

La Folie

Vejo-a frequentemente. Ali está, de novo. Parece estar a olhar para mim, mas não. Não me vê.
Está irritada. Está sempre. Os braços não param. Sempre em constantes movimentos frenéticos. São movimentos de aviso, intimidatórios, afirmativos, como que para não deixar dúvidas quanto à justiça das suas queixas.
Acompanha os movimentos constantes com palavras duras, quase gritadas, imperceptíveis. São palavras de indignação mas, ao mesmo tempo, parecem de súplica, como que a pedir que a deixem em paz.

Tem já muita idade, aparenta, pelo menos, uns 80 anos. Pelo rosto percebe-se que não teve uma vida fácil.
Apesar da baixa estatura e de uma magreza quase esquelética, não aparenta fraqueza. O vigor com que protesta indica o contrário, que sempre foi uma mulher forte, que nunca virou a cara à luta, que enfrentou as dificuldades sem hesitar.
Mas algo falhou. Agora parece enfrentar-se a si própria. Algures, no seu percurso, algo correu mal. Se assim não fosse não estava ali, sozinha.
Parece que a vida lhe ganhou. Não que ela tenha perdido, nada disso, apenas que a vida lhe ganhou.

Está louca. Apesar de todos os seus gritos, de todos os seus gestos, ela protesta sozinha, ninguém a ouve, ninguém lhe liga. Pelo menos ninguém do mundo dos sãos, porque na sua cabeça algo está muito presente, algo a que ela dirige a sua ira.
E já deve ser assim há muito tempo uma vez que eu nunca vi ninguém interessar-se por ela, nem mesmo os miúdos para a gozarem. Devem estar todos tão habituados que nem dão pela sua presença, preferiram esquecê-la. Ou então pressentem qualquer coisa nela e têm-lhe um estranho respeito. Talvez vejam também essa sua força.

Sim, ela não está sozinha, o seu mundo é habitado. No entanto, julgo que ela preferiria que o não fosse, que não houvesse ninguém.
É que com os habitantes do seu mundo ela está sempre em conflito. Nunca a vi falar, está sempre a protestar, a esbracejar, a dar murros no ar, a gritar.
Pergunto-me, se ela pudesse escolher, optaria pela loucura na companhia de tão desagradáveis presenças, ou por uma solidão consciente?
O que será pior, viver com a consciência da solidão, de não termos ninguém, ou viver sem ter a consciência de nada do que nos rodeia?

O que escolheria eu?


Et si parfois l'on fait des confessions
A qui les raconter - meme le bon dieu nous a laisse tomber

(Stanglers)

sexta-feira, outubro 14, 2005

A Primeira Pessoa

A primeira pessoa sou eu. Não fiquem já a pensar que é egocentrismo ou mania das grandezas da minha parte, trata-se, tão somente, do tempo verbal. Eu. Primeira pessoa do singular.

Preciso falar do Eu. Não de mim, do Eu.

Neste Blog tenho misturado sem grandes preocupações a realidade com a ficção. O Eu com o Ele. Eu com o narrador. Por vezes no mesmo texto.
Estou com isto porque por vezes dou por mim, a meio da escrita, a pensar se quem vai ler o texto consegue fazer a distinção entre, precisamente, a realidade e a ficção. É que eu tenho a teoria (não comprovada), de que quem lê um texto acaba sempre por se interrogar, conscientemente ou não, se aquilo que o autor colocou perante si é verdade ou não, ou melhor, que parte daquilo é realidade e que parte é ficção.
Coloco-me a questão: devo fazer alguma para separar inequivocamente as águas, ou nem por isso?
Se calhar isto para a maioria das pessoas não interessa nada, mas a verdade é que tem sido uma coisa mais ou menos recorrente para mim desde que comecei a publicar este Blog. Penso e penso e, após pensar mais um bocadinho, encontro-me exactamente no ponto de onde parti.

Nesta minha volta completa sobre o circulo que constitui o meu pensamento sobre o assunto, sensivelmente por volta do grau 280, quando começo a avistar a casa-partida*, acho sempre que a falta de resposta significa que não vale a pena perder mais tempo com o assunto, que tenho de deixar as coisas como elas estão – pelo menos por agora, o que não quer dizer que daqui a uns tempos não se faça luz e eu encontre uma solução.
Assim sendo, as coisas vão continuar como estão; escrevo conforme sair. Caberá pois ao estimado leitor (e estimada leitora, está bom de ver), preocupar-se com isso se tiver pachorra: se quando uso a primeira pessoa sou mesmo eu, a realidade, ou se uma coisa não implica a outra.
Façam vocês esse caminho. Espero, sinceramente, que não seja circular. Se ao fim de algum tempo derem por vocês no mesmo sitio, recebam a massa na casa-partida e abandonem o exercício. Não vale a pena, eu só o faço por entretenimento (ou será por hábito? Hábito de estar sempre a pensar, de ter que ter sempre algo que me mantenha o espírito ocupado? Pelo sim pelo não, acho que vou comprar um livro do Su Doku, pode ser que me distraia).

Constato agora que voltou a acontecer. Começo a falar de uma coisa e acabo longe. Olho para trás e não vejo como aqui cheguei. Para a próxima vou atar um fio no titulo e não o vou largar.

E é isto que vos queria dizer. Terá sido realidade ou ficção? Decidam vocês.


Nota final
: quando eu era rapaz novo, tive um período da minha vida em que joguei muito ao Monopólio com o meu amigo Daniel. Lembro-me que me fazia espécie o raio do sitio de onde se partia chamar-se casa-partida. Se todas as outras estavam inteiras, porque diabo era aquela partida? Nunca tinha confessado esta minha parvoíce, nem mesmo aquelas pessoas que só em adultos descobriram que aquela ladainha das crianças que lança uma corrida é “partida, LARGADA, fugida” e não “partida, LAGARTA, fugida”. Confessem lá, também eram desses que metiam ali uma lagarta a despropósito e nunca tinham pensado nisso?

(esta nota final é assumidamente realidade)!

terça-feira, outubro 11, 2005

A Culpa é d' Os Anjos

Lembro-me bem da primeira vez que entrei numa sala de chat. Foi no início da década de 90, nos primeiros tempos do IRC. A Internet ainda era uma coisa pouco divulgada por cá, mas um amigo meu que trabalhava com computadores e que tinha tempo e interesse nessas coisas, levou um grupo de amigos uma noite à empresa onde trabalhava (era filho do dono, o que também ajudava), para vermos as potencialidades dessa maravilha que despontava.
Uma das coisas que nos mostrou foi, precisamente, a possibilidade de falar com pessoas de todo o mundo em tempo real (a bem da facilidade de expressão vou usar o termo “falar”). Naquela altura só se conseguia falar em português com brasileiros, era muito raro encontrar alguém de cá. No entanto, achava o máximo poder falar com japoneses, libaneses, australianos, sul-africanos, etc.

Por não ter Internet (penso que na altura nem computador tinha), estive algum tempo sem voltar a uma sala de chat, mas em 1998, já com computador e Internet ao dispor, voltei. E gostei.
Gostei porque tive a sorte de ir parar a locais frequentados por algumas pessoas interessantes, com quem se podia ter uma conversa minimamente inteligente, fosse ela séria ou em tom de brincadeira. E, mais uma vez, pela possibilidade de com o IRC se poder falar com pessoas de todo o mundo (no meu caso, através da Undernet).
Isto pode parecer cliché mas é mesmo assim: permitiu-me, para além de treinar o inglês, conhecer muitas pessoas diferentes, com maneiras diferentes de ver as coisas, de pensar (recordo com um sorriso as “investidas” junto dos indonésios na altura critica do problema de Timor; das tentativas deles em me fazer ver que se estava a falar apenas de mais uma província indonésia e nas minhas de lhes explicar de que não era nada disso).
Entre períodos de maior e menor assiduidade, a verdade é que fui ficando durante uns anos. Até que um dia acabou. Deixei misturar muito o “virtual” com o “real” e as razões que me tinham lá levado e mantido, deixaram de fazer sentido. Pura e simplesmente, deixei de ir.
Desse tempo conservo apenas um contacto. Nem sei explicar como, mas a verdade é que, talvez por falarmos muito pouco, ainda hoje nos vamos “vendo” de longe a longe (Ana, aceitam-se explicações).

Às vezes gosto de correr alguns riscos. Controlados, claro, que a minha saúde é frágil mas, ainda assim, riscos.
Só assim se explica que há um ano atrás por esta altura e num dia em que, por qualquer razão, almocei cedo, eu tenha ido ao site da TVI ver o noticiário das 13h00.
Lembro-me que estava algo aborrecido, adivinhava-se uma tarde monótona e os bocejos eram já muitos. Quando às 13h15 desisti das notícias, rendido a mais um drama de faca e alguidar, colocou-se a questão: “e agora”?
Ali estava eu, com o site à minha frente e um aborrecimento potencialmente fatal para combater. “E agora, e agora…”?
Foi então que reparei no link para o site d’ Os Anjos… sim, esses, os da banda dos boys. Fui ver.
Curioso, porque se não tivesse ido, não estava agora a escrever isto e, pour cause, vocês não o estavam a ler.
O site pouco tinha que ver, não era ali que me ia entreter. Preparava-me para sair quando reparei que havia uma sala de chat. A ideia de poder falar um pouco com um(a) fã d’ Os Anjos durante a hora de almoço, agradou-me. Afinal de contas, tínhamos algo em comum: uma hora de almoço pouco entusiasmante.
Estavam 3 ou 4 pessoas. Meti conversa, o nick era “Arcanjo”. Que sim, que era fã d’ Os Anjos; musica favorita? desconversei; se os tinha visto no outro dia na tv? eu lá perco uma aparição deles… ia a conversa neste registo pouco excitante quando decidi largar a bomba atómica: tinha estado a falar com eles ali na sala nessa manhã e tinham ficado de voltar à tarde. A loucura é agora total, não me largam, “mas isso é verdade”?, “o que disseram”?, “a que horas chegam”?... e eu vá de inventar.
Que mania de me levarem a sério! Eu estava a brincar e ninguém percebeu. Já estava cheio de remorsos, coitadas das miúdas. Safei-me da situação a custo.
Ainda voltei no dia seguinte, mas aquilo não dava para muito: eu não sabia nada sobre Os Anjos e as outras pessoas pareciam não saber nada sobre outras coisas.
Já me preparava para me despedir até sempre quando me convidaram para ir a outra sala. Alguém tinha percebido que eu não tinha nada a ver com aquilo.

Esta coisa dos chats faz confusão a muita gente, não conseguem perceber o que é que se vê num sítio onde se juntam várias pessoas, sem se verem, sem saberem nada umas das outras, só para trocarem alguns “disparates”. Explicar também não fácil; a melhor reposta que encontro é: “precisamente por isso”. O que para uns não se entende, para outros é suficiente para os fazer ir aparecendo.
Não sei se sou capaz de concretizar melhor algumas das razões porque tenho frequentado salas de chat. Acho que tem a ver com o facto de sempre ter tido muitas coisas para dizer e poucas pessoas a quem as dizer. A sala de chat acabou por ser um bom local para fazer isso. Vencida a barreira do contacto pessoal, ali cada um vale pelo que diz, só e apenas. Nessas condições é-me mais fácil ser.

Quando deixei o chat da primeira vez achei que era para sempre. Aqueles dois dias com Os Anjos não tinham contado e agora, nesta nova sala, ia só espreitar, a ideia nunca foi ficar. Não procurava isso.
Mas só espreitar, ficar ali sem dizer nada, não tem piada e acabei por participar também. Disse meia dúzia de parvoíces e as pessoas foram-me respondendo. Como tinha alguma disponibilidade de tempo, fui voltando. Um pouco sem dar por isso, fui ficando. Faz agora um ano.
Passou depressa.

Só fiquei, mais uma vez, porque tive a sorte de lá ter encontrado algumas pessoas com quem se pode falar; pessoas que me fizeram rir e também pensar. Umas vezes falou-se a sério, muitas a brincar, mas (quase) sempre com respeito pela diferença… o “quase” tem a ver com algumas personagens que por lá vão aparecendo e com quem a maioria gosta de embirrar um pouco (merecidamente, diga-se).
Foi por lá que encontrei a motivação que faltava para começar a escrever um pouco mais a sério, a não ser só uns rascunhos que acabam, por se perder – daí me estarem agora a ler.

Se não fosse assim, como é que se ia encontrar num mesmo espaço uma papoila dos montes (que foi mãe entretanto); milho doce com incontinência verbal e pouca paciência; o sol (que vai dar à luz em breve); um guerreiro nórdico obcecado com a etiqueta e as boas maneiras; um traço fininho mas muito curioso e de observações certeiras; um guerreiro vindo do mundo virtual que trabalha a vinho carrascão e entremeadas; uma safada assumida que foge sempre que pode para uma ilha; uma ex-rapariga grande, agora desasada e, por vezes em tons de marisco; uma representante tuga no centro da Europa que não deixa escapar nenhum jogador de futebol; um entendido em moda feminina, sempre preocupado em saber se as miúdas estão confortáveis com as roupas que usam; uma vidente, que sabe ler Tarôt e interpretar as bolas de cristal; uma jovem avó que comunica com seres de outros mundos; boavisteiras fanáticas com a bola; Anas com muitos enes; Joaquinas especialistas em confucionismo; tipos que se acham os melhores rockers, outros os melhores pasteleiros de bolos de noz; flores com espinhos; flores que afinal até gostam de umas palmadas; uns sem nick, outros com caras e olhos inchados; iniciais próprias e dos rebentos que habitam as longínquas terras dos kukos; animais felinos, que rugem muito mas mordem pouco; atados e atadas que se metem em apertos; cactos com muitos espinhos… e sempre eriçados; pessoas que parecem não estar nem aí mas que lá vão gargalhando; e claro, abutres mansos… Acho que em mais lado nenhum.

Não sei se vou continuar a aparecer por muito mais tempo, mas vou recordar algumas coisas que lá vivi para sempre. Por estranho que possa parecer a muita gente, conseguem-se estabelecer alguns laços de amizade nestas circunstâncias e isso é que me interessa.
Como diz o Sérgio,
"É que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há" (vá, deixem-me ser uma pouco lamechas também).

E tudo por culpa d’ Os Anjos.

quinta-feira, outubro 06, 2005

A Linha (conclusão)

O sol ainda não tinha rompido o cume das montanhas que dominavam o horizonte, mas sentia-se no ar a promessa de mais um dia quente.
Sentado junto à enorme janela que dominava a fachada do Kathy’s Café, Luís fazia rodar um conjunto de pequenos painéis onde constavam todas as músicas e respectivos códigos que podiam ser encontradas na enorme Juke-Box ao fundo da sala.
Era como se estivesse a folhear as páginas da sua memória, em especial das últimas semanas.

Amarillo, Texas. Meio do caminho. Para trás tinha ficado o passado.
Não tinha ainda a certeza absoluta, mas sentia ter encontrado o pequeno espaço dentro de si onde arrumar as razões da sua partida. Não era um local onde essas razões ficassem esquecidas. Era apenas um local que lhe permitia lidar melhor com a situação.
Sempre que algo viesse ao de cima, lidaria com as memórias, com os sentimentos. Recordaria. Afinal de contas, sentia ainda a tal linha. Depois, tranquilamente, voltaria a fechar a caixa e a guardá-la. Na sua cabeça isto fazia sentido.
Tentar esquecer não era opção… tal como não tinha sido calar.

Daqui para a frente, até ao Pacifico, o futuro.

- Olá querido, então o que vai ser?
- Café e panquecas, por favor.
- Deixa-me adivinhar, Maple Syrup.
- hmmmmmmm… desta vez, Aunt Jemima.

terça-feira, outubro 04, 2005

A Linha (parte IV)

Lembro-me das luzes estroboscópicas, aquelas intermitentes que tornam o movimento dos corpos em aparente câmara lenta. O barulho era intenso mas dele não guardei memória. Só mesmo da sensação de estar num ambiente irreal.
Mónica tinha-me rejeitado. Empurrava-me com quanta força tinha, ambas as mãos nos meus ombros, tentando separar-se do meu abraço. Demorei a perceber o que estava a acontecer; o que queria ela com aquilo, porque me empurrava. Nunca me tinha passado pela cabeça que ela não me quisesse. Nem podia ter passado, eu tinha agido sem pensar, tinha cedido ao impulso do momento. Nunca o tinha feito antes e fi-lo na pior altura, com quem não podia ter errado.
Só a larguei quando me deu um estalo. Ainda hoje consigo apontar o exacto local em que cada dedo seu me acertou na face, ainda consigo sentir a dor. O álcool como que se evaporou instantaneamente do meu organismo, deixando-me perfeitamente alerta mas sem conseguir organizar o pensamento, tal era o turbilhão de ideias. Tentava que o que tinha acontecido fizesse sentido mas não conseguia. O que tinha eu visto nos olhos de Mónica quando a larguei? mágoa? ódio? surpresa? ira?
E ali fiquei, sem reacção, a vê-la passar rapidamente por entre as pessoas que dançavam em câmara lenta, afastando-se.
Não fui atrás dela para lhe pedir que ficasse. Se o fizesse teria sido para lhe pedir explicações, não para dá-las e isso teria sido ainda pior. Foi o meu único momento de lucidez em toda a noite.

Passei vários dias a tentar compreender as razões dela. Quando parecia ter encontrado uma razão plausível, logo duvidava de novo. Peguei dezenas de vezes no telefone mas nunca consegui marcar o último digito. Nas duas vezes que ele tocou nesses dias, respirei várias vezes fundo antes de atender, mas não era ela.
Até que um dia, ao dirigir-me para o supermercado para umas compras, virei à direita quando o supermercado ficava para a esquerda. Fui procurar Mónica na residência universitária em que vivia, na Rua D. Pedro V.
Ainda que à minha maneira e sem ser uma pessoa de muita fé, sou crente. Das igrejas gosto quando estão vazias, de as sentir como se fossem só minhas. É nessa altura que as procuro para tentar perceber os desígnios divinos, que tanto me confundem e surpreendem. Muitas vezes tenho questionado a minha crença em Deus mas ainda não desisti de entender, de acreditar. Continuo a acreditar que um dia vou obter resposta.
Isso nota-se nas esperanças que vou tendo. Não sou de muita fé, mas sou de muita esperança. É o contra-peso para o meu pessimismo militante. Nunca acredito que nada de positivo me vai suceder, mas tenho esperança que sim.
Acho que o que me fez virar à direita, naquele dia frio de final de Janeiro foi, por mais que isso me custe mesmo hoje a admitir, a esperança que Mónica me pedisse desculpa. Esperança que me dissesse que tudo tinha sido uma estupidez, uma parvoíce sua que nem ela sabia explicar, que tudo estava bem entre nós e que ela também me queria.
Depressa essa estúpida esperança se desvaneceu. Pedi eu desculpa.
Pedi que compreendesse, expliquei que tinha bebido um pouco, que me tinha deixado levar pelo ambiente de festa, que não a queria ter magoado. Conclui o discurso previamente ensaiado (para a eventualidade de me cruzar inesperadamente com ela), dizendo que não queria perder a amizade dela.
O dia estava cinzento. Com o estore parcialmente corrido, a luz no quarto de Mónica era difusa. Ela permanecia de pé, junto à janela. Na sombra, eu não conseguia ver bem o seu rosto e não percebi qualquer emoção na sua face, no seu olhar. Julguei ter visto alguma surpresa, como se não fosse bem daquilo que estava à espera, mas não o posso jurar, foi apenas algo que me lembro de ter pensado.
Limitou-se a aguardar que eu terminasse, sem um gesto, sem uma palavra. Depois de um momento de silêncio, disse-me que não havia nada para desculpar, que percebia e que tinha esquecido. Só isto.
Depois ficámos os dois, ali, estáticos. Ela junto à janela, na penumbra, eu no meio da sala, como que à espera do fim.

O que tinha acontecido à amizade, a uma amizade forte, especial? Como é que tínhamos chegado aquilo? Havia muitas perguntas, mas não fui capaz de as fazer. Queria dizer-lhe que a amava, mas não disse. Despedi-me e saí.
Parecia ter arrefecido muito na rua. Carregava agora um grande peso e, no entanto, o que sentia era um vazio enorme.

Aquele encontro tinha tornado evidente a impossibilidade de uma relação intima entre nós. Mesmo a amizade estava comprometida, soube-o sem qualquer espécie de dúvida.
Ainda assim, tentei salvar o que fosse possível, pelo menos queria continuar a manter o contacto com ela, a salvar o que fosse possível da amizade.

E assim caiu a chuva de Inverno.
Aos poucos fui conseguindo racionalizar as coisas, não tanto a origem de tudo, que nunca compreendi bem, mas o que eu tinha de fazer perante a situação em que me encontrava. Não iria continuar a sofrer, não podia.
Sentia-me desprezado. Tinha sido o seu melhor amigo, o seu confidente, a pessoa a quem ela tinha telefonado nos momentos difíceis. Agora não precisava mais de mim. Teria de viver com isso.
Aos poucos deixei de procurar as respostas, de tentar entender Mónica, de procurar nas pequenas coisas grandes significados. Um dia talvez voltássemos a falar no assunto, talvez então eu tivesse uma explicação, entretanto, não a procuraria.
Tomar esta decisão libertou-me. Permitiu-me canalizar energias para outras coisas. Acabei por conseguir tornar a mágoa em algo que me ajudasse a ser uma pessoa melhor.

Apesar de eu ter tentado manter algum contacto, a verdade é que uma espécie de ponto de não retorno tinha sido ultrapassado. Ocasionalmente, ia sabendo dela por Gonçalo mas, nas ocasiões em que estávamos juntos, apenas sentia distância, uma ironia cortante nos seus comentários. Por vezes, revelava-se mesmo fútil, coisa que jamais pensaria um dia associar a Mónica.

O tempo foi passando e o afastamento crescendo. No final do curso cumprimentámo-nos e desejámos, um ao outro, boa sorte para o futuro. Parecíamos dois políticos que se cumprimentam no fim de um debate em que passaram todo o tempo a acusar-se mutuamente das piores coisas.

Mónica acaba por se mudar em definitivo para o Porto. Juntamente com Gonçalo e mais dois colegas de turma, cria uma empresa de consultoria especializada na construção de fundações.

O facto de termos vários amigos em comum faz com que nos cruzemos várias vezes. Os cumprimentos de circunstância dos primeiros tempos, depressa se transformam em indiferença. Aparente no meu caso, que sempre procurei surpreender um olhar de Mónica na minha direcção. Sempre tive essa esperança.

***

Eu e Gonçalo mantemos há muitos anos dois lugares cativos na central do estádio do Bessa. Somos boavisteiros de gema e foi a jogar nos iniciados do clube que nos conhecemos. O jeito não era muito mas ninguém tinha mais vontade de vencer que nós os dois. Foi amizade à primeira tabelinha.
Mesmo que tudo o resto falhe, sei que posso encontrar o Gonçalo na cadeira à minha esquerda em dias de jogo. Podem contar-se pelos dedos das mãos os jogos que não vimos juntos no Bessa. Gritar com os jogadores e com o árbitro sempre foi a nossa terapia de eleição.

Há três meses atrás o Gonçalo desafiou-me a ir com ele a Lisboa ver o Boavista – Benfica. Deixaríamos as namoradas no Porto, íamos de véspera e aproveitávamos para nos divertir na capital. Aceitei.
Recriativamente falando, foi um excelente fim-de-semana, desportivamente, nem por isso, mas tudo por culpa do árbitro!
No regresso parámos na área de serviço de Leiria. Enquanto Gonçalo foi buscar dois cafés, eu fiquei ali sentado, a olhar pela janela, a reparar nas luzes dos carros na auto-estrada, na rapidez com que se aproximavam e partiam. Não pensava em nada, o que é raro em mim. Visto agora, era o momento de calmaria que antecede a tempestade.
Quando ele se sentou à minha frente, percebi que tinha algo importante para me dizer. Tinha o olhar focado, os lábios como que petrificados como ficam sempre que tem algo difícil para dizer.
- Conta-me.
Pigarreou.
- A Mónica… vai casar. Achei que devias saber.
Voltei a olhar pela janela. As luzes brancas a aproximar-se, as vermelhas a afastarem-se. Ambas muito depressa. Também eu quis sair dali muito depressa.
- Como é que ela está? – perguntei.
- Está óptima. Acho que é amor.
Não tentei fingir que não era nada comigo, que não me afectava. Sem nunca ter falado nisso com Gonçalo, sabia que ele sabia.

Entrámos no carro. Gonçalo voltou ao assunto, o que não era nada habitual nele.
- Convidou-me para padrinho, imagina.
- Lá vais ter que comprar um fatinho todo catita.
Lá fora, o vento soprava com mais força.
- Nunca percebi o que aconteceu entre vocês.
- Não aconteceu nada.
- Exactamente, é isso que eu nunca percebi.
- Não havia nada para acontecer, não penses nisso.
Silêncio. Nuvens negras juntaram-se por cima de nós.
- Ela gostava de ti, sabes?
Ouvem-se os primeiros trovões, ao longe.
- Ela disse-me, Luís.
Agora mais perto, muitos trovões, dentro da minha cabeça.

Senti algo parecido com um enjoo. Em criança sempre enjoei com facilidade quando andava de carro. Chegava mesmo a ficar mal disposto no trajecto entre o Porto e a praia da Boa Nova, no verão. Agora sentia o mesmo. Pensei que ia vomitar.

- Disse-te o quê, quando?
- Já há uns anos. Numa noite em que ficámos a trabalhar até tarde. Foi quando lhe morreu o pai, uma altura bem complicada para ela. Ouviu uma música qualquer na rádio e disse-me que lhe fazia lembrar-se ti. Disse-me que tinha sido muito parva contigo, que te tinha tratado mal. Que gostava de ti e que tinha desprezado o teu amor.

Tive de me agarrar à pega por cima da porta. Parecia que ia escorregar para fora do carro. Se não me segurasse com quanta força tinha, ia estatelar-me no asfalto.

- Disse-te porquê?
- Medo.
- Medo?
- Não só, mas também. Lembras-te do GNR? Ao que parece tratava-a mal. O gajo metia-se nos copos e ficava psicótico, ameaçava-a a toda a hora. Aparecia no Porto sem dizer nada Dizia-lhe que a queria muito, que não suportava a distância, que eram os ciúmes que o faziam perder a cabeça. Chegou a bater-lhe.
- O quê?
- Eu só soube disto muito mais tarde.
- Como é que ela se envolveu com um gajo desses?
- Sempre achei que foi pela mesma razão que tu te envolveste com aquela miúda da papelaria. Ela nunca me disse porque foi. Acho que nem ela sabe. Mas há pior Luís, o tipo um dia violou-a.
Eu estava lívido.
- Eu não sabia nada disso… eu…
- Ninguém sabia. Foi a consciência de que o tipo podia ser perigoso que a levou a ficar calada durante muito tempo. Ela teve medo da tua reacção quando soubesses. Depois tens aquela saída na passagem de ano, com os copos e ela assustou-se. Misturou tudo na cabeça e achou melhor afastar-te. Tinha também ficado magoada por lhe dizeres que a querias, não que a amavas. Naquela altura ela precisava de ser amada, não desejada.
- Mas porque se pôs ela a pensar por mim? Porque não me disse nada?
- Tu não a amavas? Disseste-lhe isso?

Tentei falar mas não consegui. Recordava todos os momentos passados com Mónica. Os bons e os menos bons. O afastamento. Via tudo a uma nova luz. Muitas coisas, certas atitudes, faziam agora sentido.

- Eu percebo-a, mas ao mesmo tempo… que estupidez.
- Que estúpidos que vocês foram.
- Sim, eu fui muito. Calei o que sentia.
- E porquê?
- Porque era parvo, não sei. Perguntei isso a mim mesmo muitas vezes. Sabes a que ponto fui parvo? ao ponto de me ir sentar na Capela das Almas e, enquanto olhava para S. Francisco de Assis a ser levado pelos anjos, pedia desculpa por ter sido tão… fraco – respondi. - No fundo, alimentava uma esperança de que, uma vez chegado lá a cima, S. Francisco metesse uma cunha por mim e me dessem uma segunda oportunidade.
- Isto está mal para segundas oportunidades. Andamos cá muito pouco tempo para as desperdiçarmos.
- E tu sabias e não foste capaz de me dizer.
- Só soube muito mais tarde, já te disse. Vocês estavam com relações estáveis, não quis interferir. Tive muitas dúvidas. Não sei se fiz bem.
- E porquê dizer agora?
- Porque agora ela vai casar.

***

Santos a chegarem ao céu, anjos a sorrirem para mim. O sonho tornou-se recorrente nos dias seguintes. Segundas oportunidades.
Poderia o tempo voltar para trás, seria possível recuperar o tempo perdido? Tantos anos depois eu continuava a pensar nela, a pensar “e se…”
Dei por mim a fazer um balanço da minha vida, quem eu era, o que tinha conseguido. Era feliz? Porquê estar agora com isto?
Perguntas, sempre as malditas perguntas!
Estagnei. Não conseguia sair disto. Tinha que tomar uma decisão.

Soube através do Gonçalo quando Mónica estaria sozinha na empresa e fui procurá-la. Não a via há mais de um ano.
Não conseguiu evitar o ar de surpresa ao ver-me. – Olá Luís…
- Olá Mónica.
- O Gonçalo não está. Não deve voltar hoje.
- Eu sei. É contigo que quero falar.

Continuava linda. Tinha agora 34 anos e mantinha um ar juvenil. Talvez fosse aquela maneira descontraída de vestir que eu tanto gostava mas, ao vê-la de novo, parecia a mesma rapariga que um dia eu tinha visto numas escadas da faculdade.
- Entra.
- Soube que vais casar… olha, desta vez não ensaiei nenhum discurso… mas talvez devesse, agora não sei o que dizer, como dizer…
- Dizer o quê, Luís?

Os primeiros acordes de Purple Rain saídos das colunas do computador ecoaram no gabinete.
Lembrei-me de alinhamentos cósmicos, de sinais que nos são enviados. Seria apenas uma coincidência?
- Purple Rain, lembras-te? – perguntei.

Mónica não chegou a responder à minha pergunta. Respondeu antes a todas as perguntas que eu nunca lhe tinha feito e que, no fundo, eram a razão de eu ali estar.

Não, o tempo não volta atrás. Na sua vida já há muitos anos que não havia lugar para “ses”. Não podia parar para pensar, não o queria, não o iria fazer.
Gostava muito de mim, pensava por vezes nas coisas boas que tínhamos tido, mas já não pensava nas que poderíamos vir a ter.

Agora eu já sabia. Pelo menos com esta dúvida eu não iria viver. No entanto, havia ainda perguntas que precisavam resposta e o Porto não era o local para as obter.
Tinha voltado a sofrer muito com algo que pensava estar resolvido dentro de mim. Se queria seguir em frente, desta vez, teria de olhar para trás, sozinho, com tempo.
Decidi partir.