Ir beber um café à Mexicana era um hábito antigo. O cada vez pior serviço de mesa, algo a que jamais se habituaria. Procurou o empregado de mesa, novamente sem sucesso. Deixou as moedas na mesa, junto ao pires e abandonou a esplanada. Por receio que algum pedinte ou um dos miúdos que ali preenchem as tardes, em vez de estarem na escola ou a trabalhar, comunicando entre si através de grunhidos e palavras ofensivas; os mesmos que obrigam as senhoras e os cavalheiros de sempre a bater em retirada para o espaço interior – quando não, a ficar em casa – as levassem, nunca antes a tal se atrevera. Enchia-o de terror a ideia de ter um empregado, disparado rua a baixo, atrás de si, para lhe exigir o pagamento. Não se julgava capaz de resistir a tamanha vergonha. Mas não agora. Naquele momento, não queria saber disso.
Colocou-se muito direito, paralelo ao poste de iluminação, numa das extremidades da esplanada. Agitou ligeiramente as pernas e os dedos dos pés. Sentia-se um atleta de alta competição, momentos antes da partida para a prova mais importante da sua vida. Abotoou um botão do casaco e deixou-se ficar. O tiro de partida há muito havia soado, mas ele ficara nos blocos de partida, a contemplar o amarelo da tarde, que começava agora a desvanecer-se no cinzento com que os telhados da Guerra Junqueiro iam preenchendo as fachadas dos prédios. Agora que reparava, achou diferente aquele amarelo e aquela rua, que conhecia tão bem.
Sempre vivera na mesma casa, um quarto andar de divisões amplas e pé direito desafogado, ali ao lado, na Praça de Londres, com vista para a Igreja de S. João de Deus. Fora educado sob a sufocante protecção da mãe e da sua irmã, a tia Quitéria que, solteirona e muito beata, se mudara lá para casa após a súbita morte do pai, era ele adolescente, e que, até à noite da véspera do seu vigésimo primeiro aniversário, lhe leu salmos bíblicos, vinte versículos de cada vez, na cama, para ele adormecer “com os anjos”. Da juventude, a memória que mantinha mais viva era a de, quando tinha dez anos, num raro momento de rebeldia, se ter escapado de casa para ir ver as vacas que habitavam do outro lado da rua, em barracões toscos e precários, no terreno onde foi depois construída a igreja. Recorda-se perfeitamente do fedor lhe ter dado vómitos e de ter sido envolvido por nuvens de moscas; de ter ficado todo sujo de lama e palha e de como as vacas lhe haviam parecido animais desproporcionados e exóticos, como aqueles que havia no livro que estava a ler na altura, a “Viagem Ao Centro da Terra”, de Julio Verne…
Sentiu uma tontura e a boca subitamente seca. Desequilibrou-se ligeiramente e quase deu um encontrão num homem que passava, com uma mochila às costas e uma cadeira na mão. Quis pedir desculpa, mas teve de se apoiar no poste quando um arrumador de carros começou a berrar, ao seu lado, “pode meter aí, é à confiança, venha, venha…” Retirou a folha do bolso do casaco e desdobrou-a. Passou de relance os olhos pela tabela com os dias da semana e valores correspondentes, antes de a amachucar e atirar para o caixote do lixo. Em vez de descer a rua, como sempre fazia aos sábados, depois do café, voltou para trás.
* * *
Com um gesto rápido e seco, fez deslizar a lâmina da guilhotina uma última vez. Já as tinha cortado ao meio e depois retirado algum excesso das extremidades. Juntou todos os pedaços que sobraram e colocou-os num saco de plástico grosso e preto, que fechou, atando com uma fita amarela. Antes de vestir o avental e as luvas, colocou um Gauloise nos lábios. Sentiu dificuldade em ver e esfregou os olhos, com as costas da mão.
Estava a trabalhar de pé, na mesa de trabalhos manuais – como lhe chamava –, virado para a porta. A luz da tarde continuava de um amarelo diferente e estava a ser espremida para fora, pelas sombras da arrecadação. Num primeiro momento, apressou-se. Cortou com o x-acto duas tiras rectangulares de cartão e espalhou cola sobre elas, bateu contra a mesa o conjunto que tinha acabado de cortar, para ficar ao mesmo nível e, em dois pedaços maiores de cartão, colou cada uma das tiras. Juntou tudo, examinando com cuidado o resultado. Estava longe de estar perfeito, o que lhe provocou um gesto de desalento. Talvez se conseguisse retirar a parte colada…
Dirigiu-se à porta, interrogando-se do porquê de tanta pressa. Olhou o céu, confinado pelos prédios altos que cercavam o pátio. Mordeu o cigarro, quando a tentação de o acender o mordeu a ele. Mais um dia, pensou. Ou será menos um dia?
Outrora, tinha sido um ser animado por grande força física e psicológica. E inúmeras vezes se valeu de ambas para superar agruras e vicissitudes várias – as normais de quem vive a vida –, sem perder tempo com reflexões pseudo-filosóficas – que considerava nada terem a ver com a sua maneira de ser –, sobre os seus actos e atitudes perante os acontecimentos e as pessoas. Passava à frente disso, imperturbável, e das observações sobre o peso da sua consciência que, segundo algumas pessoas – poucas, a mulher, basicamente – lhe deveria ser cada vez mais difícil de suportar. Não era, nunca havia sido! E quando pousava a cabeça na almofada, à noite, não lhe custava adormecer.
Naquele pátio, bem no coração da cidade, à soleira da porta, estava um homem magro e atarracado, que não se lembrava da última vez que se tinha penteado e feito a barba, a quem todas as articulações doíam e cuja carne, a cada dia que passava, regredia dolorosamente para os ossos, dando-lhe o aspecto de um grande boneco velho e rigidamente articulado. Sentia-se uma marioneta desengonçada, dotada de vontade própria, mas sem propósito. Nas muitas horas em que vigiava a madrugada através da janela do quarto, sem conseguir enfrentar a almofada, frequentemente lhe chegava o temor frio e agudo de, um dia, descortinar para si, finalmente, um objectivo e não ter, então, préstimo no corpo.
Surgiu no céu uma mão, de cujos dedos saiam longos fios brancos, que se estendiam em todas as direcções e se agitavam com o vento. Com o olhar, seguiu um desses fios, que vinha na direcção do pátio. Deixou de o ver quando percebeu que estava a ser observado por um rapaz. Teria uns cinco anos e estava formalmente vestido, como se aquele fosse o dia da primeira comunhão, ou do seu casamento. O cabelo era forte, denso e revolto, do mesmo amarelo-forte do céu. O olhar duro, como nenhuma criança de cinco anos tem. A expressão, vagamente conhecida, a lembrar-lhe alguém.
– Anda, não se deve ficar assim, a olhar para as pessoas – uma senhora puxou-o pela mão, para dentro de um carro que ali estava estacionado.
O rapaz colocou-se de joelhos, no banco de trás e fitou o homem, pelo vidro, à medida que o carro se afastava. Levantou o braço esquerdo, mostrando-lhe a palma da mão.
Atirou o cigarro fora. Retirou vários volumes de uma das inúmeras caixas, pegou na cadeira desdobrável, fechou a arrecadação à chave e foi para casa. Tomou banho, fez a barba usando sabonete azul e branco para fazer espuma, penteou-se o melhor que conseguiu e vestiu umas roupas antigas, que lhe ficavam largas. De seguida, limpou com um pano os volumes que trouxera e colocou-os numa mochila, que colocou às costas. Pegou na cadeira e desceu.
Ainda tinha algumas horas de luz, havia que a aproveitar. Atirou um cigarro para a boca e atravessou a Avenida de Roma para o passeio que faz de separador central.
Parou subitamente. Estava-se a ver na casa de banho, ainda agora, a fazer a barba, a cara cheia de sabão. A expressão no espelho…
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