– Pode alguém ser duas realidades diferentes?
– Claro que não!
– A resposta é óbvia, eu próprio responderia igual, mas não sei, a verdade é que acho que sim, que é possível ser-se duas coisas diversas.
– Explica melhor.
– Se eu te perguntasse que opinião tens de mim, ela iria coincidir com a da totalidade das pessoas que me conhecem. Ou seja, toda a minha vida fui de determinada maneira, sempre se soube o que esperar de mim porque eu era aquilo.
– Sim, e…
– E, no entanto, eu sinto que… eu sei que sou mais do que isso. Muito mais, aliás. Sem querer exagerar, digo-te que essa outra parte de mim tem mais a ver com quem sou do aquilo que mostro. (Pausa) A ideia de que isto possa ser verdade, provoca-me um aperto terrível cá dentro.
– Uma vida não vivida.
– Pergunto-me se ando há tantos anos a enganar-me.
– Não acho.
– Porquê?
– Porque és tu próprio que está a levantar a questão. Quando muito, podes andar a representar, mas a enganar-te, não.
– Talvez, mas não passa de uma questão de semântica, que o efeito é o mesmo: uma vida… incompleta?!
– Não percebi se era uma pergunta ou uma afirmação.
– Eu também não… talvez tenha medo da resposta.
– Faltou sinceridade comigo próprio. Faltou coragem de ser o que sentia, de estender a mão e mostrar-me do avesso.
– Faltou perceberes isso, que eras o avesso.
– Sim, terá sido também isso. Sabes, pergunto-me muitas vezes como é que alguém que pensa tanto, nunca percebeu quem realmente era.
– Quando somos novos há muita coisa que não percebemos.
– E eu que julgava saber tanta coisa…
– Porque não agora?
– Sim, se vives uma vida em que sentes que não és verdadeiro contigo próprio, ainda há tempo para mudar.
– Não seria capaz.
– Como assim?
– Quando se representa há tanto tempo como eu – e bem, pelos vistos –, já não se consegue deixar a personagem para trás.
– Parece-me que já tens a resposta que procuravas.
– Não tenho, estou apenas a partir do princípio que sim.
– Se tu o dizes…
– Tu, que me conheces bem, não achas que sempre tive uma vida simples demais?
– Ninguém tem vidas simples. Todos temos demónios para enfrentar.
– Eu sei, mas no geral, pensa nisso. Acho que é difícil encontrar uma vida mais certinha, mais isenta de altos e baixos, de confusões e, no entanto…
– Tudo aí dentro é um turbilhão.
– Tudo é dúvida, tudo é incerteza, tudo é desejo de voltar atrás.
– Mudavas muita coisa?
– Não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade. Vivia mais.
– Viver mais é ter mais dificuldades para enfrentar.
– Precisamente! Mas seria como transpirar: uma forma de libertar toxinas.
– Exorcizavas as incertezas.
– Hoje, saberia quem sou.
– Isso sempre soube.