terça-feira, julho 31, 2007

Saudades De Um Exorcismo Que Nunca Aconteceu

– Pode alguém ser duas realidades diferentes?
– Claro que não!
– A resposta é óbvia, eu próprio responderia igual, mas não sei, a verdade é que acho que sim, que é possível ser-se duas coisas diversas.
– Explica melhor.
– Se eu te perguntasse que opinião tens de mim, ela iria coincidir com a da totalidade das pessoas que me conhecem. Ou seja, toda a minha vida fui de determinada maneira, sempre se soube o que esperar de mim porque eu era aquilo.
– Sim, e…
– E, no entanto, eu sinto que… eu sei que sou mais do que isso. Muito mais, aliás. Sem querer exagerar, digo-te que essa outra parte de mim tem mais a ver com quem sou do aquilo que mostro. (Pausa) A ideia de que isto possa ser verdade, provoca-me um aperto terrível cá dentro.
– Uma vida não vivida.
– Pergunto-me se ando há tantos anos a enganar-me.
– Não acho.
– Porquê?
– Porque és tu próprio que está a levantar a questão. Quando muito, podes andar a representar, mas a enganar-te, não.
– Talvez, mas não passa de uma questão de semântica, que o efeito é o mesmo: uma vida… incompleta?!
– Não percebi se era uma pergunta ou uma afirmação.
– Eu também não… talvez tenha medo da resposta.

– Faltou o quê?
– Faltou sinceridade comigo próprio. Faltou coragem de ser o que sentia, de estender a mão e mostrar-me do avesso.
– Faltou perceberes isso, que eras o avesso.
– Sim, terá sido também isso. Sabes, pergunto-me muitas vezes como é que alguém que pensa tanto, nunca percebeu quem realmente era.
– Quando somos novos há muita coisa que não percebemos.
– E eu que julgava saber tanta coisa…

– Porquê isto agora?
– Porque não agora?
– Sim, se vives uma vida em que sentes que não és verdadeiro contigo próprio, ainda há tempo para mudar.
– Não seria capaz.
– Como assim?
– Quando se representa há tanto tempo como eu – e bem, pelos vistos –, já não se consegue deixar a personagem para trás.
– Parece-me que já tens a resposta que procuravas.
– Não tenho, estou apenas a partir do princípio que sim.
– Se tu o dizes…
– Tu, que me conheces bem, não achas que sempre tive uma vida simples demais?
– Ninguém tem vidas simples. Todos temos demónios para enfrentar.
– Eu sei, mas no geral, pensa nisso. Acho que é difícil encontrar uma vida mais certinha, mais isenta de altos e baixos, de confusões e, no entanto…
– Tudo aí dentro é um turbilhão.
– Tudo é dúvida, tudo é incerteza, tudo é desejo de voltar atrás.
– Mudavas muita coisa?
– Não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade. Vivia mais.
– Viver mais é ter mais dificuldades para enfrentar.
– Precisamente! Mas seria como transpirar: uma forma de libertar toxinas.
– Exorcizavas as incertezas.
– Hoje, saberia quem sou.

– És complicado.
– Isso sempre soube.


(durante as próximas semanas, este blogue vai à procura de histórias noutras paisagens; não sem deixar um abraço a quem aqui passa)

quarta-feira, julho 18, 2007

O Trono

Impedidas pelo rubro circulo controlador, filas de cansaço aguardam a vez de se mover. O sol chega de lado e aleija. Quem pode, cerca-se de ar arrefecido, os outros, resignam-se a baixar janelas, convidando a escassa brisa a aliviar-lhes a dor.
A buzina, estridente e demorada, dá sinal da impaciência reinante: à flor da pele, suor e nervos dançam, num enlevo que ameaça tornar-se explosivo a todo o momento.
No invólucro ardente que nos devolve a casa – à ilusória esperança do descanso –, os vidros sujos são o nosso filtro da realidade, com os quais nos precavemos da essência das coisas. Os significados ficam de fora, ninguém quer saber! Não aquela hora, não naquele lugar.
A não ser quando nos interpela directamente, à janela.

*

Só a um coração violento lembraria tal coisa. Por não possuir nada, quis ter um trono.
Espanto-me. Um trono é o princípio do fim: ponto mais alto, já só se pode descer… quando não cair. Quem é a pessoa que não percebe isso? – não consigo evitar, é assim que raciocinam os medíocres. Mas ele não é isso, apesar de tudo, porque não tendo nada, sonha
em grande. Foi assim que o conseguiu: apesar dos sonhos terem alcance limitado, se atreveu a querer.

*

Depois de um dia a enfrentar realidades indesejadas, e quando pensamos já estar a salvo, nada nos prepara para sermos confrontados novamente com ela, inesperadamente.
Vem embrulhada em vestes pouco dignas, se isso se pode afirmar das únicas vestes que alguém possui. Aproxima-se de nós e curva-se ligeiramente. Por vezes – nos dias em que o sol massacra mais –, com um gesto que já foi elegante e refinado, retira um boné da cabeça e murmura algo, poupando nas palavras e no volume. Não admira: está-lhe vincado no rosto que poupa na vida há demasiado tempo e todos sabem ao que vem. Quer algo. Qualquer coisa. Pode mesmo ser “qualquer coisinha”, adivinho-lhe nos lábios, que ele não o chega nunca a dizer.
E agradece sempre, mesmo que não obtenha nada – o que sucede a maior parte das vezes. Curva-se de novo e, com gesto simétrico e inverso, cobre novamente a cabeça calva. Frequentemente, acena a quem já lá vai, na pressa de deixar a realidade para trás, à beira da estrada.

*

Pode algo ir surgindo do nada? Não digo aparecer do nada, assim, de repente, de um dia para o outro. Antes, ir surgindo, aos poucos, sem se fazer notar.
Todos sabemos que o trono não foi lá colocado, que foi erguido ao longo do tempo – de muito tempo –, um pouco de cada vez, na nossa desinteressada presença e, no entanto, ninguém se recorda de tais trabalhos.
Se dissesse que eu próprio não os vi, estaria a mentir: preferi antes não me lembrar deles, filtrados que me chegaram pela poeira acumulada nos vidros do meu invólucro. Agora que reparo nele, interrogo-me se serei o único.

*

Na espera obediente e bem comportada em frente ao rubro circulo, dou por mim a invejar-lhe o engenho e a arte mas, acima de tudo, a ter podido escolher a sombra em que se protege.
Olho em redor, para os outros que, como eu, ali perdem bocados da vida, à espera de passagem. Em que pensam? Todos me parecem ter ar de manterem a primeira engatada, tal a pressa de sair dali. Uma buzina atrás de mim, protesta contra a minha imbecil inércia. Já o da frente avançou cinco metros e eu ainda não me mexi.

*

Este trono serve só para sentar. É, afinal, um pedestal. Mas não celebra nada, apenas mostra que se existe.

*

Hoje, o trono está vazio.


O trono existe e quem o construiu também - o resto, não. Está na saída do Eixo Norte-Sul para Telheiras (sentido S/N). Encontram aqui algumas fotos dele. E aqui gaivotas.