Sempre invejei a sabedoria de quem, com economia de palavras, consegue transmitir os maiores sentimentos. Invejo os alquimistas das letras, os poetas. Era nos três que habitam o Chiado que eu pensava, enquanto subia uma Rua Garret que, estranhamente, ninguém descia.
Com uma discreta flexão do pescoço, tenho por hábito cumprimentá-los: o que deu nome ao sítio – que a história de Chiado ter a ver com o chiar das rodas das carroças, não me convence (e que parece dizer para o vizinho do lado, olha para mim, aqui em cima, repara na quantidade de pessoas que tenho a meus pés, enquanto tu, aí sentado, és apenas mais um à espera de ser atendido); o poeta da pala (que, ouvindo o outro, não deixaria por certo de retorquir, rindo, o que és tu senão um poeta jocoso e de má língua, que não soubeste sequer ser dos de São Francisco, mas que nunca despiste as vestes); e Pessoa, tão atarefado em ficar bem nas fotografias dos turistas, que pura e simplesmente ignora as disputas verbais dos bronzeados companheiros.
Desta vez, porém, foi diferente. Não houve cumprimentos, António Ribeiro não provocava Fernando e Luís não sentia necessidade de intervir. Todos – eles e quem passava – tinham a atenção presa a algo que eu não conseguia descortinar, já que um muro desigual em altura, feitio e cor, feito de costas e cabelos, me não permitia ver nada. Em pleno Largo, com inusitada reverência e atenção, eram muitas as pessoas que formavam um círculo perfeito em torno de algo que pareciam venerar.
O poeta Chiado tinha gente agarrada ao pescoço, em todas as casas habitadas havia alguém à janela ou à varanda e na montra do primeiro andar da Benetton não se viam os habituais bonecos-expositores, antes, as empregadas e clientes, narizes colados ao vidro, bocas abertas de espanto – bem vistas as coisas, as diferenças não eram muitas, já que de tão imóveis, mais pareciam os tais bonecos, sendo a diferença o facto de serem mais e ninguém usar roupas da marca. Desequilibrado por ter todos os passageiros do mesmo lado, à janela, até o 28, que tinha parado no semáforo, ignorava os sucessivos verdes e não iniciava marcha. Consequentemente, a fila automóvel, imobilizada atrás do eléctrico, estendia-se já muito para além do Teatro São Carlos, mas não havia uma buzina que se fizesse ouvir: tinham todos abandonado os respectivos veículos para perceberem o que se passava e faziam agora parte daquele círculo de comunhão. Assim era o Chiado naquele fim de tarde: um eléctrico tombado a estibordo, uma fila de carros abandonados – alguns, de portas abertas –, um mundo de gente deslumbrada que amiúde soltava prolongadas expressões de espanto.
Reparava no pormenor de não se verem pombos em lado nenhum, quando um silvo agudo rasgou o ar e do centro da multidão se elevou um arco-íris, prontamente rodeado de estrelas que explodiam num som crocante, quase musical. Ooooohhh!!, exclamou a assistência em coro. Aproveitei que um camone se desequilibrou do Pessoa e saltei-lhe eu para o colo. Who goes to the air, loses his place, atirei eu, divertido, ao incrédulo visitante. Dali, pude perceber que um chapéu negro e pontiagudo, muito alto, se movimentava de um lado para o outro; era alguém – uma pessoa só – que, com gestos rápidos e, ao mesmo tempo, graciosos, prendia a atenção de todos.
Artistas de rua, sempre os houve na Baixa, mas todos sempre vi serem tratados com indiferença, daí toda aquela situação me estar a fazer uma enorme confusão quando, subitamente, outro silvo acompanhado de uma espécie de fogo de artifício se elevou no Chiado, seguido de mais estrelas crocantes que, desta vez, se prenderam nos cabos onde o eléctrico vai buscar força e ali ficaram, a tremeluzir e a projectar faíscas às cores. Ooooohhh!! Uma salva de palmas ia tomar forma, mas o chapéu pontiagudo parou subitamente e uma varinha mágica ergueu-se no ar. Todos ficaram suspensos daquele gesto e foi audível os peitos a encherem-se de ar, tal era a expectativa do que viria a seguir. A varinha mágica rodopiou, desenhando três círculos e desapareceu. Ooooohhh!! E as palmas, por fim, fizeram-se ouvir. O que aconteceu, você viu o que se passou?, perguntou-me um indigente, com bafo a carrascão, pouco seguro em cima de uma das cadeiras da esplanada da Brasileira. Eu não tinha visto e, agora que o espectáculo tinha terminado e as pessoas começavam a debandar, reparava que, em cima da cabeça do Camões, estava a coruja. Mas ela não tinha estado a ver a actuação, tinha estado a olhar para mim.
Uma buzinadela prolongada anunciou o regresso à normalidade. Anda lá com essa merda, pá. O eléctrico guinchou nos carris e avançou pachorrentamente. Segui-o a caravana automóvel, impaciente. Janelas e varandas voltaram a desertificação habitual e a montra foi devolvida aos bonecos da Benetton. Uma rapariga queixou-se à amiga que os croissants da Benard já não eram o que tinham sido e um invisual tossiu, em preludio à venda do Borda d’Água, edição 2008, já disponível nas entradas do Metro e semáforos perto do seu automóvel.
Um idoso tocou-me na perna e disse que era de mau tom eu estar em cima do Pessoa, que o poeta merecia respeito. Eu, que observara aquela cena surreal sem perceber o que se passava, estava agora incrédulo, quase incapaz de me mexer. Encostado à base da estátua do Chiado, o homem que até há pouco mais de um minuto ali tinha sido venerado, arrumava os objectos do seu mister, perante a indiferença geral. E no entanto, eu achei que o conhecia. Muito bem, até. Eu conheço-o… ele sorriu e abanou a cabeça. Sorry, i don’t speak portuguese, e continuou a arrumar coisas. I know you. Sorry, i don’t think so. Mas eu estava certo, só podia. Tudo bem que estava mais velho, mas a expressão – de duvida e receio, típica dos eternos jovens –, o sorriso tímido mas que não lhe abandonava os lábios, aqueles óculos redondos; se ao menos a franja me deixasse ver… Belive me, we never met. Of course we never met, but… what’s your name?, atirei eu, em jeito de desafio. A coruja fez um voo rasante à estátua e veio pousar no braço do mágico. Porter, Larry Porter. Nice to meet you.
(continua)