segunda-feira, setembro 24, 2007

Há Magia no Chiado (3)

Sempre invejei a sabedoria de quem, com economia de palavras, consegue transmitir os maiores sentimentos. Invejo os alquimistas das letras, os poetas. Era nos três que habitam o Chiado que eu pensava, enquanto subia uma Rua Garret que, estranhamente, ninguém descia.

Com uma discreta flexão do pescoço, tenho por hábito cumprimentá-los: o que deu nome ao sítio – que a história de Chiado ter a ver com o chiar das rodas das carroças, não me convence (e que parece dizer para o vizinho do lado, olha para mim, aqui em cima, repara na quantidade de pessoas que tenho a meus pés, enquanto tu, aí sentado, és apenas mais um à espera de ser atendido); o poeta da pala (que, ouvindo o outro, não deixaria por certo de retorquir, rindo, o que és tu senão um poeta jocoso e de má língua, que não soubeste sequer ser dos de São Francisco, mas que nunca despiste as vestes); e Pessoa, tão atarefado em ficar bem nas fotografias dos turistas, que pura e simplesmente ignora as disputas verbais dos bronzeados companheiros.

Desta vez, porém, foi diferente. Não houve cumprimentos, António Ribeiro não provocava Fernando e Luís não sentia necessidade de intervir. Todos – eles e quem passava – tinham a atenção presa a algo que eu não conseguia descortinar, já que um muro desigual em altura, feitio e cor, feito de costas e cabelos, me não permitia ver nada. Em pleno Largo, com inusitada reverência e atenção, eram muitas as pessoas que formavam um círculo perfeito em torno de algo que pareciam venerar.

O poeta Chiado tinha gente agarrada ao pescoço, em todas as casas habitadas havia alguém à janela ou à varanda e na montra do primeiro andar da Benetton não se viam os habituais bonecos-expositores, antes, as empregadas e clientes, narizes colados ao vidro, bocas abertas de espanto – bem vistas as coisas, as diferenças não eram muitas, já que de tão imóveis, mais pareciam os tais bonecos, sendo a diferença o facto de serem mais e ninguém usar roupas da marca. Desequilibrado por ter todos os passageiros do mesmo lado, à janela, até o 28, que tinha parado no semáforo, ignorava os sucessivos verdes e não iniciava marcha. Consequentemente, a fila automóvel, imobilizada atrás do eléctrico, estendia-se já muito para além do Teatro São Carlos, mas não havia uma buzina que se fizesse ouvir: tinham todos abandonado os respectivos veículos para perceberem o que se passava e faziam agora parte daquele círculo de comunhão. Assim era o Chiado naquele fim de tarde: um eléctrico tombado a estibordo, uma fila de carros abandonados – alguns, de portas abertas –, um mundo de gente deslumbrada que amiúde soltava prolongadas expressões de espanto.

Reparava no pormenor de não se verem pombos em lado nenhum, quando um silvo agudo rasgou o ar e do centro da multidão se elevou um arco-íris, prontamente rodeado de estrelas que explodiam num som crocante, quase musical. Ooooohhh!!, exclamou a assistência em coro. Aproveitei que um camone se desequilibrou do Pessoa e saltei-lhe eu para o colo. Who goes to the air, loses his place, atirei eu, divertido, ao incrédulo visitante. Dali, pude perceber que um chapéu negro e pontiagudo, muito alto, se movimentava de um lado para o outro; era alguém – uma pessoa só – que, com gestos rápidos e, ao mesmo tempo, graciosos, prendia a atenção de todos.

Artistas de rua, sempre os houve na Baixa, mas todos sempre vi serem tratados com indiferença, daí toda aquela situação me estar a fazer uma enorme confusão quando, subitamente, outro silvo acompanhado de uma espécie de fogo de artifício se elevou no Chiado, seguido de mais estrelas crocantes que, desta vez, se prenderam nos cabos onde o eléctrico vai buscar força e ali ficaram, a tremeluzir e a projectar faíscas às cores. Ooooohhh!! Uma salva de palmas ia tomar forma, mas o chapéu pontiagudo parou subitamente e uma varinha mágica ergueu-se no ar. Todos ficaram suspensos daquele gesto e foi audível os peitos a encherem-se de ar, tal era a expectativa do que viria a seguir. A varinha mágica rodopiou, desenhando três círculos e desapareceu. Ooooohhh!! E as palmas, por fim, fizeram-se ouvir. O que aconteceu, você viu o que se passou?, perguntou-me um indigente, com bafo a carrascão, pouco seguro em cima de uma das cadeiras da esplanada da Brasileira. Eu não tinha visto e, agora que o espectáculo tinha terminado e as pessoas começavam a debandar, reparava que, em cima da cabeça do Camões, estava a coruja. Mas ela não tinha estado a ver a actuação, tinha estado a olhar para mim.

Uma buzinadela prolongada anunciou o regresso à normalidade. Anda lá com essa merda, pá. O eléctrico guinchou nos carris e avançou pachorrentamente. Segui-o a caravana automóvel, impaciente. Janelas e varandas voltaram a desertificação habitual e a montra foi devolvida aos bonecos da Benetton. Uma rapariga queixou-se à amiga que os croissants da Benard já não eram o que tinham sido e um invisual tossiu, em preludio à venda do Borda d’Água, edição 2008, já disponível nas entradas do Metro e semáforos perto do seu automóvel.

Um idoso tocou-me na perna e disse que era de mau tom eu estar em cima do Pessoa, que o poeta merecia respeito. Eu, que observara aquela cena surreal sem perceber o que se passava, estava agora incrédulo, quase incapaz de me mexer. Encostado à base da estátua do Chiado, o homem que até há pouco mais de um minuto ali tinha sido venerado, arrumava os objectos do seu mister, perante a indiferença geral. E no entanto, eu achei que o conhecia. Muito bem, até. Eu conheço-o… ele sorriu e abanou a cabeça. Sorry, i don’t speak portuguese, e continuou a arrumar coisas. I know you. Sorry, i don’t think so. Mas eu estava certo, só podia. Tudo bem que estava mais velho, mas a expressão – de duvida e receio, típica dos eternos jovens –, o sorriso tímido mas que não lhe abandonava os lábios, aqueles óculos redondos; se ao menos a franja me deixasse ver… Belive me, we never met. Of course we never met, but… what’s your name?, atirei eu, em jeito de desafio. A coruja fez um voo rasante à estátua e veio pousar no braço do mágico. Porter, Larry Porter. Nice to meet you.

(continua)


segunda-feira, setembro 17, 2007

Há Magia no Chiado (2)

Não foi há muito mais de duas semanas que, por manifesta estafa e contra o mais elementar bom senso, me sentei numa das cadeiras da “Taberna do Menino Jesus” – coisa que só inconscientes e alheados da vida fazem de bom grado. O Metro tinha avariado, os autocarros da Carris atulhado e eu, como não ganho para táxis, inconformado tive de palmilhar a calçada desde o Saldanha até à Baixa. E cansado, sentei-me…


Já a caminho de casa, uma inusitada sensação de corrente de ar nas costas teimava em me acompanhar. Entrei na Rua do Carmo com a desconfiança que um pedaço de camisa tinha ficado para trás, agarrado ao sebo das costas da cadeira.
O rosto sumido e desfocado da Ana Salazar surgiu entre dois manequins femininos que, desprovidos de braços e pernas, mas elegantemente vestidos em vários tons cinza, se suspendiam do tecto, presos pela cabeça. Eu, espantado, encostei o nariz à montra para a ver melhor. Ela, assustada, deu um passo atrás e começou a manear a cabeça para cima e para baixo, como que me perguntando que diabo estava eu a fazer.


Tentar explicar à Ana Salazar que estava a usar a montra da loja dela para ver, pelo reflexo, se tinha um buraco nas costas da camisa, feito numa taberna, enquanto comia uma bifana e bebia uma mini, foi impossível. Ingénuo, eu até estava cheio de boa vontade: virava-me de costas e apontava para trás, quase encostado ao vidro. Afinal, nunca antes tinha gesticulado com uma figura pública. Mas ela não estava pelos ajustes e fez sinal que ia discar um número de telefone – são já alguns os anos em que andamos a pressionar teclas para telefonar mas, pelo menos para quem anda nisto de estar vivo há já uns tempos, há gestos que ficam para sempre. Por entre a mímica, percebi-lhe no desenho dos lábios uma palavra: policia.


Enchi-me de ganas e retorqui-lhe logo ali, no meio da rua, bem alto e com gestos dramáticos. Qué que foi, pá? Só por seres quem és, pensas que mandas nisto? Abaixo o 24 de Abril! Ficas a saber que tive um bisavô que lutou contra os alemães e foi preso pela PIDE. A mim, também ninguém me cala. E, num rasgo de duvidosa inspiração, acrescentei: e ficas a saber que nunca mais te compro nada!


Na montra, já não estava a Ana Salazar, apenas o seu dedo médio da mão direita tinha ficado breves segundos para trás, esticado na minha direcção. Depois, ficou o meu reflexo, as duas bonecas desmembradas mas elegantes, cinco feios sapatos desemparelhados e o reflexo de uma coruja branca. Quando me virei, algumas pessoas olhavam para mim e eu vi-lhes pena no olhar. Retomei a ascensão da Rua do Carmo com passos pesados. Demorava-me o cansaço e agora também, o desalento. Aquele desentendimento com uma figura do jet-set tinha-me enchido de um inesperado e estranho desalento. Triste fado o meu.


Uma coruja branca, eu não tinha visto uma coruja toda branca? Que raio, teria sonhado? Só podia, que outra explicação para tão estranha presença na Baixa, não encontrava. E foi então que senti de novo o arrepio nas costas. A camisa não estava rota, e no entanto… Um piar estridente sobrepôs-se à cantiga que enchia a rua, fazendo-me voltar a cabeça. Em cima do carro antigo, que faz a vez de loja de discos, dois grandes olhos de coruja, fitavam-me. Um papel colorido soltou-se das suas garras e veio ter comigo. O título anunciava: Lisboa Mágica — Street Magic World Festival.

(continua)



terça-feira, setembro 11, 2007

Há Magia no Chiado (1)

A decisão de se cozinhar à vista dos clientes comporta sempre uma elevada dose de risco. Não ter cuidados mínimos de higiene, parece ser certidão de óbito inevitável para o negócio. Ou talvez não, se o universo em que nos movemos é o das tascas lisboetas. Na “Taberna do Menino Jesus”, na Rua do Jardim do Regedor, o chão nunca está limpo, nem as paredes, mesas e cadeiras. Tenho para mim, que Juvenal Costa – proprietário e único empregado do estabelecimento – faz disso questão. Você tem cá um descaramento. Onde é que já se viu uma taberna limpa. Eu já tinha visto, mas limitei-me a encolher os ombros. Nem a comida lhe havia de saber bem, digo-lhe eu que ando nisto há muitos anos. Eu tive de concordar. Afinal, só ali a bifana me sabia bem e rapidamente afastava de mim as dúvidas sobre se a origem de tão apurado gosto viria da frigideira a transbordar de banha castanho-queimado.

Juvenal também não era um primor de asseio. Criado numa aldeia da freguesia de Ínguias (não tem nada a ver com o bicho, fazia sempre questão de esclarecer), concelho de Belmonte, passou os primeiros anos de vida entre o trabalho do campo e o trato dos animais. Veio novo para Lisboa, de olhos fechados, apenas com a roupa do corpo e uma côdea seca de pão no bolso das calças. Tudo o que sabe aprendeu à sua custa. Higiene acabou por nunca ser o seu forte, mas isso nunca foi para mim razão suficiente para não ter admiração por alguém. E eu admiro Juvenal Costa.

Talvez seja a maneira simples como vê as coisas e toma decisões. Quando era cachopo, andavam lá pelas aldeias uns homens diferentes, que falavam diferente e se vestiam diferente. Chamavam-lhes Judeus. Eles contavam histórias antigas à canalha e a gente ficava de boca aberta. Aquilo é que eram aventuras! Havia reis e guerras e eles sofriam muito e fugiam para o deserto e viviam numa cidade onde havia um castelo muito grande, ou era uma igreja? Bom, toda a gente queria ir para lá e andavam sempre à bulha... era assim uma coisa importante, ‘tás a ver?! Havia um deles que até andava por cima da água do mar, vê lá. Eu sei que aquilo eram histórias, não penses que não sei. Naqueles breves minutos, Juvenal regressava à sua aldeia, coisa que nunca tinha, de facto, feito. Hoje, já não me lembra de nenhuma inteira, só bocados, mas quando para cá vim, sabia-as todas. Fazia cara séria para que a audiência não duvidasse, sem querer saber de ninguém estar a prestar-lhe realmente atenção. Os velhos apenas acenavam vagamente a cabeça enquanto, curvados sobre eles, sorviam os copos de três, segurando-os com ambas as mãos, não fossem eles fugirem-lhes – a freguesia da “Taberna do Menino Jesus” era composta exclusivamente por velhos e por mim: é que mesmo os de menos idade que lá iam, eram já velhos de espírito e corpo.

E de onde vem o nome da taberna, Juvenal? Essa despacha-se num instantinho. Contou uma vez um desses homens, um que tinha uns caracóis de cabelo de cada lado da cara, que o Menino Jesus, quando era novo, foi com as pessoas da aldeia dele numa grande viagem e entrou num tabernáculo, que era como se chamavam as tabernas naquela altura, e vai daí eu pensei: se o Menino Jesus ia a tabernas, a minha só pode ser a dele, não sei se me estás a perceber?! Eu mais ou menos estava, mas antes de lho poder dizer tive de levar umas palmadas nas costas, que a vontade de rir se misturou com o vinho verde à pressão e o engasgo foi sério.

(continua)

terça-feira, setembro 04, 2007

Agosto É Um Mês Pequenino

O repórter da TSF estava dentro da sua cabeça. E depois alguém que falava castelhano, entremeado com palavras em português e depois alguém que falava português com sotaque do leste da Europa. Falavam de justiça no resultado, da necessidade de fazer mais e melhor. Assim tinha sido parte da jornada futebolística da véspera. A cabeça latejou-lhe. Quando estivesse realmente acordado, iria mudar o despertador de estação de rádio que, assim, era por demais violento passar dos sonhos para a realidade do país e do mundo.
O banho pouco o ajudou. À janela, sentia que se confundia com a manhã embaciada e cinzenta. Estava acordado, mas não desperto. Até ter pegado nas calças. Por duas razões, doeu-lhe ao vesti-las: não conseguiu evitar que roçassem onde as melgas lhe haviam impiedosa e abundantemente picado e porque aquele gesto representou o regresso à inevitável rotina de quem tem de trabalhar. O fim da rotina das férias.

Na secretária de sempre, cercado pelas paredes de sempre – também elas embaciadas e cinzentas –, tentava descolar o olhar do cursor que piscava na página em branco do processador de texto. (Sentia que o negro traço no monitor, lhe marcava o ritmo cardíaco; ainda assim, oprimido pelo regresso à sua vida).
Tinha levado para férias dois sacos com papéis e planos para eles. Pouco convictos, no entanto. E agora pensava nisso, que se partirmos para as coisas com pouca convicção, não se pode esperar outro desfecho que não seja regressarmos com os mesmos papéis dentro dos mesmos sacos. Intocados.
Lembrou-se de ter querido muito colocar os seus planos em acção, de ter mesmo chegado a fechar os olhos com força, numa tentativa infantil de que uma força exterior fizesse as coisas acontecerem. Em vão, claro, que não é uma questão de quantidade mas, antes, de qualidade.

O telefone tocou. O olhar descolou-se do cursor e o ritmo cardíaco foi esquecido. Voltou ao trabalho. Com a convicção possível.

Os papéis, esses, teriam de aguardar.