O sol, já baixo e filtrado pela densa copa das árvores, pouco penetrava no jardim, dando à parte central do Largo da Luz um aspecto algo lúgubre.
O ruído da feira era, ali, abafado, como se viesse de um local distante. Dominavam os gritos das crianças, que por ali brincavam.
Um casal de namorados desocupou um banco de jardim, ao vê-los aproximar.
- Foram simpáticos. – Disse o velhote, a quem já começavam a doer as pernas e as costas. – Estou mesmo a precisar de me sentar.
Estavam mesmo atrás de um dos restaurantes amovíveis que alimentam os visitantes da feira. Sentados à roda duma mesa de plástico, os empregados de mesa faziam tempo até à hora do jantar jogando às cartas.
Um deles, rapaz para não mais de 18 anos, levantou-se ao ver passar duas raparigas – mais novas que ele.
- Cátia, dá-me lá o teu número. – Diz ele, aproximando-se.
- Outra vez, pá? Não dou!
- Vá lá…
- Não sejas chato. – Respondeu a Cátia, com um desdém mal disfarçado, afastando-se, de braço dado, com a amiga. Riam baixinho e falavam uma com a outra substituindo as palavras por olhares cúmplices, forjados em muitas conversas sobre rapazes.
- Ganda caramelo! – Gritou um dos colegas. Todos riram. – És um engatatão, és és.
O rapaz riu também.
Estranhamente, era ali, atrás da feira, que existiam algumas filas. No recinto da feira havia imensas pessoas, mas comprar o que quer que fosse não era tarefa demorada, enquanto que no jardim, com menos gente, beber água no repuxo ou utilizar as casas de banho, era algo bem mais complicado de se conseguir.
Estendendo-se a partir de uma espécie de pré-fabricado, ali colocado com o propósito de servir de casa de banho, uma fila de mulheres aguardava a vez. Eram várias as que protestavam pela demora.
- Não tarda nada, vou à dos homens… mas é que não tarda nada! – Exclamou uma.
- E o cheiro, já viram o cheiro?
- E ainda nem entrámos. – Respondeu outra.
Cátia e a amiga surgiram de novo, pelo mesmo caminho de há pouco. Nenhum dos jogadores de sueca as viu, entretidos que estavam com o jogo. Um contratempo para as raparigas, que foram obrigadas a se demorar por ali, até que alguém reparasse nelas.
- Cátia! - O rapaz apressou-se para perto das raparigas.
- Se quiseres, eu dou-te o meu número…
No banco de jardim, ambos sorriram.
- Estes miúdos são levados da breca, está a ver aquilo? – O velhote apontava com o cajado, interrompendo o silêncio com que tinham observado o movimento no jardim.
Um grupo de jovens, todos ciganos, escondia-se nuns arbustos, perto de um banco de jardim desocupado. Assim que um casal de idosos se sentou para comer cada um o seu gelado em sossego, logo eles vieram também sentar-se no banco. Dispararam mil perguntas ao casal: como se chamavam, como se tinham conhecido, se eram casados, de que sabor era o gelado, se moravam perto. As respostas não lhes interessavam, nem esperavam por elas, só lhes interessava a paródia, a aflição das suas vitimas.
O casal depressa se foi embora, para regojizo do grupo, que rebentou numa grande galhofa, para logo se esconderem de novo no arbusto, à espera de novas presas.
- Vir aqui fez-me recordar a minha mulher e o meu filho. – Disse ele pausadamente, olhando para a ponta do cajado. – A minha mulher deixou de viver quando o nosso filho morreu em Angola. Acho que nunca lhe perdoei isso… depois ela ficou doente e morreu uma morte desgraçada, sem forças até para se queixar. Eu fiz o mesmo, sabe? Morri com ela também, acompanhei-a, deixei de viver… passei a sobreviver… e só percebi isso hoje, à conta de uma gulodice de que até já me tinha esquecido que tinha. Foi uma rasteira, não esperava nada disto, mas a vida é assim, não é?
Não viu que a mulher comprimiu os lábios com força fazendo a boca rasgar-lhe a face num esgar.
- Gostava de lhe poder trazer o dia em que não se arrependesse de nada, o dia da tranquilidade da sua consciência. Gostava de ser eu a dar-lhe a certeza de que não há nada por que estar amargurado…. muitos de nós carregamos um peso cá dentro. – Apontou para o peito. - Algo que muitas vezes nem sabemos de onde veio, que não deixámos entrar, algo que, um dia, descobrimos instalado e que nos surpreende… eu sei o que é isso. - Pausa. - Não lhe consigo explicar isto mas, não o conhecendo há mais do que uns minutos, sinto que é um homem bom, que sempre o foi, e isso é que importa.
Estavam os dois calados, quando uma súbita rajada de vento levantou do chão as folhas secas e amarelecidas das árvores - as primeiras vitimas de um Outono há pouco chegado - e com elas as cartas do jogo da sueca, que rodopiaram no ar. Os empregados de mesa levantaram-se de um pulo e correram em todas as direcções, tentando apanhá-las.
O valete de paus veio cair no colo do homem.
- Sir Lancelot. – Disse-lhe ela.
- Como disse?
- Essa carta representa Sir Lancelot.
- Não sei quem é.
- O baralho de cartas foi inventado em França - não assim, como o conhecemos agora, um primeiro, do qual este deriva - e os quatro naipes pretendiam representar as divisões sociais da altura: copas para representar o clero, ouro para a burguesia, espadas para os militares e paus para os camponeses. Mais tarde, atribuiu-se significados específicos às cartas com figuras e o valete de paus era Lancelot. – Perante o ar algo confuso do seu interlocutor, sentiu necessidade de acrescentar: - Eu sou de História, interesso-me pela simbologia.
- E quem era esse tal do laçarote?
A mulher riu-se. Colocou a sua mão em cima da dele e disse-lhe: - Conto-lhe tudo, mas antes vou comprar uma fartura para cada um.
Após um segundo de hesitação, ele respondeu: - Aceito, obrigado.
* * *
Abriu o postigo. A noite começava a instalar-se e com ela chegavam os primeiros clientes do restaurante vizinho. Instalou-se no seu ponto de observação.
Uma ideia assaltou-lhe o espírito: durante muito tempo, tinha-se esquecido de olhar para dentro de si.
FIM
Encontram algumas fotos da feira, aqui.