Aceitara de bom grado, juntamente com o convite para director da Faculdade de Letras, o pedido para ser regente de uma cadeira. Bem vistas as coisas, dar aulas era o que melhor sabia fazer. Adelaide, a sua assistente, sempre atarefada com coisas mil, sempre assoberbada com papéis e pastas, havia-lhe deixado, certa manhã, uma série de testes por si corrigidos e cujas notas o professor deveria validar. Ao abrir a pasta, no primeiro teste, o professor encontrou um post-it: “para prof fogg ver”. Adelaide tinha sido a sua aluna mais brilhante e convidara-a para sua colaboradora, ao regressar à Faculdade, quando soube que estava desempregada, a sobreviver dos biscates que, muitas vezes, os licenciados – e alguns mestres e doutorados – em Línguas Literaturas e Culturas (entre outros) vivem: traduções, revisão de texto, autores-fantasma. Confiava plenamente nela e nas suas avaliações dos testes, que sabia serem criteriosas e justas, ainda assim, fazia questão de dar uma vista de olhos por alguns, para se inteirar do valor das turmas. Era isso que estava a fazer quando a porta do seu gabinete se abriu de rompante, sendo projectada por cima do batente. Foi exercida tal força sobre a porta, que o puxador de dentro fez uma moça na parede. Ofegante e muito vermelha, Adelaide estava mais ruiva que nunca, enquanto procurava palavras. Sorriu um sorriso fugidio e rápido, antes de conseguir falar.
– Já vi que o professor já viu…
Ele respondeu-lhe que não havia razão para se preocupar. Ela explicou que não foi por mal. Ele anuiu e disse que até compreendia que o achassem emproado e um pouco snob. Ela falou dos muitos papéis com que anda sempre atrás, da necessidade de se organizar melhor. Ele referiu que não podia concordar com isso de o acharem salvador do que quer que fosse, que só com muito trabalho as coisas se faziam. Ela falou do imenso trabalho que fazia em casa, fora de horas, a rever e passar para computador, textos alheios. Ele afirmou, convictamente, que não era nenhum D. Sebastião, que nesse aspecto, a alcunha não aderia. Ela começou a falar do maior cuidado com que ia passar a encarar o trabalho na faculdade, mas interrompeu o raciocínio a meio.
– D. Sebastião?
– Não sou, assevero-lhe. Logo eu, que nos dias de nevoeiro fico em casa, a ler.
Adelaide quase riu, quando percebeu o significado que o professor tinha atribuído à sua alcunha. E depois falou-lhe em Phileas Fogg e naquilo em que se assemelhavam. O professor corou, primeiro, e depois foi ficando cada vez mais pálido, à medida que Adelaide, medindo as palavras o melhor que foi capaz, falava.
– … por exemplo, o professor dá sempre 37 passos desde a porta do gabinete até à sala de aula, 389 até à reitoria, bebe sempre o café exactamente à mesma hora, e mexe o açúcar seis vezes no sentido nos ponteiros do relógio e depois seis vezes ao contrário… podia dar-lhe mais alguns exemplos, mas… perceba, não é por mal, não é uma alcunha maldosa, antes pelo contrário, é com carinho que o professor é assim tratado por nós e até por outros profe… – calou-se, embaraçada com mais esta revelação.
– Sim, eu já sei que há professores a chamar-me isso. O que eu não entendo… como é que… mas vocês dão-se ao trabalho de contar… de me seguir?
– Agora já não! isto é… não, foi só ao principio. Alguém reparou e depois, durante uns tempos… só para confirmar. Houve mesmo apostas feitas… er…
– Apostas?!
– Pois… sim, do tipo, apostar que em determinado dia dava passos a mais, ou a menos. Cada passo valia um tanto. Coisas assim.
– Apostas a dinheiro?
– Sim. Mas foi por pouco tempo, porque começou a haver alunos que se atravessavam à sua frente de propósito, para o fazer desviar do caminho e depois havia discussões…
Continuava de pé, perante o tríptico, agora de cabeça baixa e olhos cerrados. Tinha os braços flectidos e os dedos de ambas as mãos entrecruzados, junto ao peito, enquanto murmurava a Oração de Thomas Merton. Ao terminar, benzeu-se. Sentia-se francamente melhor, quando rodou nos calcanhares para se ir embora. Surpreendido, deu por si a meio do altar e, ao levantar o olhar, sentiu um choque: perante si, espalhadas pelos bancos da assembleia, várias senhoras de idade estavam ajoelhadas, parecendo rezar. Todas olhavam para ele, não escondendo um misto de curiosidade e incredulidade nas expressões. Atrapalhado, quis sair dali depressa. Recuou alguns passos e foi bater em algo, que se desequilibrou. Na tentativa de impedir a sua queda, o professor virou-se por instinto e agarrou em algo que não identificou imediatamente. Deu então por si cara a cara com um homem triste, semi-nu, de cabelo preto, olhos pretos, corpo preto e muito frio ao toque; tinha uma expressão sofrida, de dor imensa, mas o olhar, contrastante, era firme e decidido, como se não quisesse estar noutro lugar. Segurava uma cruz alta e pesada, em ferro forjado preto, em que, particularmente alquebrado, um Jesus da mesma cor, estava crucificado. Teve que apelar a todas as suas forças para o não deixar cair.
Todas as senhoras vinham já na sua direcção quando, por fim, conseguiu endireitar a cruz e o crucificado. Em passo incerto e com as pernas a tremer, passou por elas o mais depressa que lhe foi possível, não escutando sequer os comentários que faziam. A sua cabeça era um turbilhão e não conseguia pensar. O coração dava a sensação de lhe escapar para a garganta. Na rua, enquanto descia os degraus do adro, reparou num carro funerário que acabava de estacionar junto à entrada de uma das capelas mortuárias. O condutor saiu e foi juntar-se a um grupo de homens impecavelmente fardados de cinzento, que falavam alto e riam. Quis afastar-se depressa, mas as pernas não lhe obedeceram. Era como se estivesse a carregar a cruz, ainda.