Meu amigo Marco Antonyo colocou num grupo esta pergunta, questionando: se você pudesse escolher, porém, escolheria ser gay? Procurei responder e deu quase uma biografia. Ficou enorme, mas espero que vocês leiam e curtam, pois são pedaços bastante pessoais de minha experiência...
Eu não escolhi ser gay, e ser gay definitivamente não é fácil. Não quero me fazer de vítima, mas uma verdade que certa vez ouvi sempre me soou evidente: outros grupos que sofrem preconceito, como negros, judeus, ciganos, encontram apoio entre os seus. Se você é judeu, mesmo que se depare com antissemitas fora de casa, encontrará apoio e força entre outros judeus. Se você é negro, mesmo que se depare com um racista, encontrará conforto e consolo na sua família negra. No entanto, isso é válido, a rigor, se você é hétero... Porque se você for judeu e gay, negro e gay, cigano e gay... Ou ainda branco e gay, pardo e gay... Muitas vezes, será dentro da sua própria família e da sua própria casa que você primeiro enfrentará o preconceito.
Por causa disso, quando somos mais jovens, e nisso eu me incluo, existe um medo visceral de que nossas famílias “descubram”. Conforme amadurecemos e vamos conhecendo outros gays, as histórias que ouvimos ou presenciamos também não ajudam. São pais que tratam seus filhos como doentes e chegam a separar talheres, irmãos que socam o outro por causa da homossexualidade, família que expulsa de casa ou que obriga a fazer “tratamento” com pseudopsicólogos, gente que leva à igreja para fazer exorcismo, coloca a cruz embaixo do travesseiro para libertar a alma – e eu não estou falando disso como simples elementos discursivos, porque conheço pessoalmente exemplos de gays e lésbicas que sofreram esse tipo de abuso por parte de suas famílias. Muitos são amigos meus, e creio que vocês deverão entender eu não citá-los nominalmente, pois são histórias pessoais e muito dolorosas.
Eu tive uma certa sorte. Minha família nunca chegou a esses extremos – mas não quer dizer que tenha sido fácil. Comecei a perceber a minha atração por outros meninos, de forma declaradamente sexual, já nos meus 12, 13 anos de idade, no comecinho da puberdade. Se, porém, fizer um restrospecto de desde quando me interesso pelo sexo masculino, a resposta recairá em fases tão precoces quanto aos 9, quando já me encontrava “apaixonadinho” pelo ator Lauro Corona, que faleceu em 1989, ou... Aos 5, quando eu me recordo de que já sentia um imenso prazer numa brincadeira que um vizinho mais velho, de cerca de 30, fazia comigo: ele me deitava no chão e pisava de leve em mim, fazendo cócegas. Era uma brincadeira masculina, inocente para ele, mas, para mim, as coisas eram diferentes... Tanto que, aos 7, quando fazia judô, já gostava de ser derrubado pelos outros meninos e pelo professor. Não preciso dizer que minha carreira no esporte foi assaz curta. Afinal, o objetivo é derrubar o oponente, e não ser derrubado por ele e senti-lo por cima rs.
O que muitos não sabem é que eu “nasci” no meio evangélico, apenas com exceção de meu pai, e fui criado na igreja. Frequentava-a desde que consigo me lembrar: aos 5 anos, já estava eu na classe dos “Cordeirinhos”, na escola dominical. Aos 12, eu tinha me convertido durante a pregação de um convidado estrangeiro na Igreja Batista Central de Guarulhos. Aos 14, na Igreja Batista Bíblica de Vila São Jorge, eu me batizei.
Como vocês devem supor, descobrir-me gay com todos aqueles hormônios da puberdade e frequentando a igreja foi uma verdadeira provação. Existia muita culpa, e eu simplesmente não tinha com quem conversar a respeito. Minha família era evangélica e adotaria uma visão certamente proibitiva e de condenação, pensava eu – e como podia ser diferente, se eu mesmo me recriminava? Os amigos, cada vez mais interessados nas mulheres e formas femininas, dificilmente entenderiam eu preferir pernas peludas e vozes grossas a seios e bumbuns salientes. Como explicar que eu gostava mais de olhar as pernas do Fábio em vez dos peitos da Simone, superdesenvolvidos para a idade? E, vamos combinar, não tinham suficiente maturidade para me ajudar. Tínhamos a mesma faixa etária, afinal. Por isso, para todos os efeitos, eu era “hétero” para todo mundo, embora ninguém soubesse da existência dessa palavra na época, assim como “gay” ou “homossexual”. Só tínhamos uma ideia do que era ser “bicha” e do que era não ser – e era algo bem ruim. Ninguém queria ser a bichinha da turma. Pensando hoje, uma triste tradição que os pais ensinam a seus filhos.
Aos 12 anos, eu tive acesso, por acaso, ao primeiro material pornográfico de que me lembro: revistas de sexo. Depois, filmes pornôs. Todos héteros. Eles também me causavam culpa, afinal eu era evangélico, mas eu continuei consultando-os. Sim, me masturbava com eles, mas algo sempre foi claro para mim: numa cena hétero, eu sempre achei que o papel feminino era mais legal. Nas minhas fantasias masturbativas, era na posição feminina, de ser penetrado, que eu gostava de me imaginar, embora não com o corpo feminino. Acho que sempre fui passivo, né? Rs.
Por uma época, nessa fase, até cheguei a ter coleção de fotos de mulheres peladas, que eu recortava de revistas. Não tinha internet na época, e minha coleção era uma das maiores. Outros amigos meus tinham semelhantes. Eu me masturbava com essas fotos também, mas sinceramente não sei dizer se era por atração pelas mulheres ou se simplesmente “seguia o rebanho” (no caso, meus amigos), porque não me recordo de já ter me imaginado efetivamente transando com uma delas: minha imaginação evocava as cenas dos filmes pornôs, nas quais a posição feminina e os gemidos delas eram bem mais legais de vivenciar.
Minha coleção de mulheres peladas chegou ao fim por causa de um homem de shorts – e aí eu já deveria ter meus 13 ou 14 anos. Era um anúncio numa revista de turismo, de uma bicicleta ergométrica. O rapaz da foto, de regata e shorts, pernas peludas e braços bem torneados, simplesmente se sentava na bicicleta e fazia propaganda do produto, mas aquela foto foi um marco para mim. Ela trabalhou de tal forma a minha libido que depois simplesmente não consegui usar nenhuma das fotos de mulheres para meus momentos de prazer solitário. Era impossível, até mesmo para fazer a operação triangular de evocar as cenas dos filmes pornôs. Só conseguia usar o modelo de shorts e regata. Joguei a coleção fora.
À medida que, com essas experiências, cada vez mais eu descobria que curtia meninos, a situação ia ficando mais complexa. Até a 6ª série, eu estudava em escola particular. A partir da 7ª, mudei para uma escola pública, onde a média de idade era maior. Ver meninos mais altos e mais desenvolvidos apenas acentuou a questão – e, embora eu tivesse uma boa relação com a maioria, alguns, talvez por perceberem algo que eu ainda nem tinha concluído, já faziam “brincadeiras”, piadinhas, etc. no que hoje as pessoas chamariam de bullying. Isso não tornava nada mais fácil.
Lembro que, na época, eu, que sempre fui estudioso, comecei a procurar informações onde podia. Minha irmã cinco anos mais velha tinha uma coleção que, se não me engano, ganhara dos meus pais, um dicionário de Sexo, contendo vários verbetes espalhados em fascículos com capa dura azul. A linguagem era similar às dos livros escolares, e enfocava o aspecto biológico da coisa, mas serviu para tirar muitas dúvidas que surgiam na época, e eu compartilhava as informações com meus amigos.
Também encontrei na estante da sala livros de orientação psicológica e, em alguns deles, encontrei, afinal, informações sobre homossexualidade – ou “homossexualismo”, que era a palavra que usavam. Infelizmente, por serem livros antigos, da década de 60, o assunto era tratado como desvio, algo que hoje a psicologia não defende mais. Claro que eu não sabia disso na época: então, se estava escrito que era desvio, era desvio. Eu, que já me sentia mal por ter aqueles desejos incompatíveis com a religião e destoante dos meus amigos, ainda era um desviado. Que péssimo!
Um dos livros, porém, dizia que interesse pelo mesmo sexo podia acontecer durante a puberdade como uma confusão causada pela admiração que a pessoa tinha por um amigo mais velho. Não era que a pessoa era homossexual e não se casaria com o sexo oposto na vida adulta – e eu achava que ia casar. Já tinha até escolhido os nomes dos meus cinco filhos. Era algo transitório e passava. Assumi aquela explicação como minha. Eu não tinha nenhum amigo mais velho, mas dane-se. ERA aquilo e IA passar.
Claro que não passou. Aí, eu acabei me tornando mais fechado, pelo menos, até o término do ensino fundamental. Além disso, eu era feio, hehehe. Não ia “pegar ninguém” mesmo. No entanto, aos 16 anos, as coisas começaram a mudar. Fui ganhando mais corpo, em parte devido à natação que eu então praticava, as espinhas foram rareando e aí fui ficando mais apresentável. Nessa idade, recebi a minha primeira cantada – de outro homem, um gordinho chamado Wagner que me seguiu de carro. Foi um tanto traumatizante porque eu pensei que fosse bandido, algo assim. No entanto, depois de passado o susto, até que gostei. Peguei até o telefone! Só não liguei...
O Wagner foi o primeiro, e a partir daí outros também vieram. Com o tempo, comecei a gostar daquela atenção, mas eu só provocava. Ir até o fim, jamais. Já me sentia culpado pelos desejos homos – e, nessa época, eu já tinha tido contato com as passagens condenatórias bíblicas, o que me deixava ainda pior. Pelo menos, pensava eu, enquanto não transasse, não ia para o inferno. Essa fase coincidiu com muita oração de libertação, quase diária. Lembravam as orações antimasturbação que eu fazia (era pecado também, né?), que sempre vinham acompanhadas de datas que eu marcava para não me masturbar mais – e sempre falhava.
As mudanças físicas dos meus 16 anos, quando eu já estava no ensino médio, também coincidiram com mudanças comportamentais. Eu fui me tornando progressivamente mais extrovertido – exceto por um assunto: mulheres, como me lembrou meu amigo Wellington anos mais tarde. Era tal o bloqueio que, ao contrário de boa parte dos meus conhecidos, eu não tinha beijado NINGUÉM até aquela idade. Essa característica fez com que meus amigos então começassem a desconfiar da minha sexualidade, embora fizessem o favor de nada comentar: favor que prezei especialmente após terem me dito, anos depois, que uma menina da sala de aula, quando eu já estava no segundo ano do ensino médio, estava “na minha”, mas eu jamais dera o aguardado e esperado passo que outros rapazes teriam dado. Os bullyings também se tornaram mais raros, mas, por dentro, minha crise estava cada vez mais aguda, porque os desejos estavam cada vez mais fortes.
Então, aliada à extroversão, vinha uma depressão, que, normalmente, eu vivia em casa. Virei um Frankenstein adolescente. Fora, com os amigos “do mundo” (como se diz no jargão evangélico, para identificar quem não é), eu era extrovertido e bem-humorado, mas totalmente bloqueado sempre que o assunto namoro, relacionamento e mulheres aparecia, embora pudesse discursar sobre o sexo horas a fio, desde que na abordagem científica da questão, um resquício dos estudos que eu fiz e fazia, como contei mais atrás, e que faziam meus amigos tirarem dúvidas comigo. Em casa, às vezes, me entregava a um choro sem explicações para minha família. Eu dizia que eram as estrias de crescimento, algumas que surgiram na minha pele. Ainda as tenho, e havia um quê de verdade para um adolescente vaidoso, mas, claro que não era só isso. Nem era a maior parte da verdade... Na igreja, quando a fé vinha mais forte, eu me tornava mais tímido e fechado, de maneira que quem me conhecesse na igreja dificilmente me reconheceria no colégio. Na rua, se os homens me cantavam, me sentia bem em provocá-los.
No fim das contas, eu estava me tornando um gay, evangélico, carregado de culpas por todos os lados, com dificuldades de me relacionar afetivamente, deprimido e com múltiplas personalidades. Era muito para quem ainda era adolescente e tinha de lidar com os hormônios e todas as dúvidas típicas da idade. Mais do que tudo, eu não queria ser gay: minha visão era de que gays eram pessoas que viviam à noite, em becos, não tinham família ou amigos e tinham de se esgueirar pelos cantos, em lugares sujos. Aquela imagem dos becos nova-iorquinos, com fumacinha e tudo, era recorrente na minha mente. Não por acaso, fiz tentativas de flertar com a heterossexualidade.
Na 7ª série, anos antes, aos 13, a primeira. Havia uma menina na igreja de quem eu me sentia próximo e resolvi escrever-lhe uma carta e entregar na casa dela, para flertar com ela. Pedi ajuda para meu melhor amigo, o Wellington (de novo!), que me acompanhou, mas, por vergonha, acabou me deixando sozinho lá na “hora H”. Pensando hoje, foi engraçado... Mas, na hora, bem embaraçoso – e a carta não funcionou. Sei, hoje refletindo, que estava apenas indo na onda de meus amigos de então. Os meninos estavam começando a se interessar pelas meninas tanto na igreja quanto na escola, e eu queria “experimentar” aquilo, ter experiências, digamos, normais. Afinal, eu queria ser “normal”, e nada mais natural que tentar fazer o que todos faziam. No entanto, eu realmente estava interessado nela, de beijá-la, abraçá-la, ficar com ela? Não. Gostava dela como amiga, e apenas procurava me convencer de que era como qualquer outro menino e deixar de ser “virgem de boca”: é a dura verdade. Mesma lógica ocorreria um ano depois, quando tentei, também sem sucesso, abraçar outra na escola.
Mais uma tentativa se deu aos 18 anos. Havia um pequeno bordel perto de minha casa, numa rua do centro de Guarulhos onde também havia um cinema pornô. Mais maduro, eu já praticamente não tinha dúvidas do que eu era e do que realmente gostava, mas resolvi, assim mesmo, tirar a prova dos nove. Entrei, pedi um suco de abacaxi (totalmente inexperiente, não?) e chamei atenção de uma gordinha, que se esfregou em mim, rebolando e se insinuando. Praticamente, saí correndo: definitivamente não era de mulher que eu gostava. Minha irmã, anos depois, chegou a dizer que a questão é que se tratava de uma gordinha... Mas, como, em minha vida sexual, depois de tudo isso que estou contando, eu fiquei com gordinhOs sem problema algum, demonstrei a ela que, definitivamente, não era o peso o problema.
Seja como for, fiquei “virgem de boca” e totalmente travado nessa questão até os 18 anos. Embora estivesse me tornando progressivamente mais bonito (ou menos feio rs), não conseguia passar a barreira sexual que tinha erguido, e o medo do inferno me consumia. Até que, aos 18 anos, eu tive minha primeira relação homo. Minha iniciação se deu em duas vezes. Em uma, fiz sexo oral (antes de ter dado o primeiro beijo!) e foi um tanto quanto traumatizante, pois o homem estava bêbado. A culpa foi avassaladora, e, com medo de doenças, fiz trocentos exames que pedi a um farmacêutico amigo com contatos. Passei meses assexuado, mas pelo menos descobri que meu tipo sanguíneo é O+ rs.
A segunda vez foi com um homem casado de 25 anos chamado Walison. Ele estava de passagem por Guarulhos, e eu apenas o vi aquela única vez. Com ele, sim, tive o pacote completo. Afinal, dei meu primeiro beijo e entreguei a virgindade num terreno baldio. A culpa evangélica ali também apareceu e quase estragou tudo. Walison quase desistiu porque eu estava “mais frio que uma geladeira”. Foi essa a expressão, dado meu travamento. Lembro que olhei para a lua, pedi perdão a Deus, mas não deixei a oportunidade passar. Para espanto dele, depois contei que era virgem – e foi uma delícia.
Daí em diante, foi mais fácil me relacionar com outros homens. Sempre na surdina, sempre escondido, sempre à noite e sempre com medo – e com culpa depois. Maior do que antes, porque eu tinha dado o passo fatal. Agora, eu tinha transado: ia mesmo pro inferno, e, por algum tempo, eu tentei separar minhas vidas: a gay, proibida, e a não-gay, na igreja e em outros espaços.
Evidentemente, não deu muito certo e, na igreja, sobretudo, num processo que começou quando os desejos homossexuais foram ficando mais fortes, eu vestia cada vez mais a carapuça de conservador. De certa forma, era uma maneira de eu procurar me purgar de meus próprios pecados. Hoje, acredito firmemente que, quando alguém é conservador demais, reacionário e moralista, é porque ali tem. Existe algo na pessoa que, para se livrar, somente ela indo aos extremos para conter. Como a pessoa que tem mania de limpeza por ter um prazer incomum com a ideia de sujeira, prazer que ela rejeita. É tão forte o impulso, que só tendo mania de limpeza para contê-lo. O problema era ter consciência disso e ainda se sentir hipócrita e piorar a culpa...
Minhas primeiras experiências gays foram seguidas de aconselhamento. Já não conseguia mais guardar aquilo só para mim. Chamei um homem que entregava marmitas na empresa em que eu trabalhava e com quem havia tido uma identificação e me confessei com ele. Contei que tinha transado com homem, entre lágrimas. Ele era adventista, e, embora tivesse tentado me confortar, me orientou a continuar orando.
A segunda pessoa a quem pedi ajuda foi o pastor da minha igreja, o Heralto. Eu não lhe disse com todas as letras o que acontecia, mas, para um bom entendedor, meia palavra basta. Ele captou qual era o problema, foi bastante compreensivo até, de uma forma que eu não imaginava, mas também me aconselhou a orar e buscar a orientação de Deus. Era algo complicado porque, afinal, o que eu vinha fazendo todos aqueles anos, senão exatamente aquilo? E nada mudava...
No entanto, houve algo de muito bom nessa história toda. A partir de certo momento, eu simplesmente não podia acreditar que as coisas podiam ser tão injustas. Eu era um bom filho, afinal. Vivia tudo aquilo escondido, para “poupar minha família”, e era um bom amigo. Tinha me convertido, procurava seguir a Palavra de Deus e sofria quando não conseguia – transando com homens, por exemplo. Meu arrependimento era sincero. Por que Deus me mandaria para o inferno mesmo assim?
Passei a acreditar que as coisas não podiam ser tão horríveis. Haveria de existir algo, uma tradução incorreta, que dissesse que meu destino não eram as chamas e a danação. Adicionalmente, tive a sorte de ir conhecendo outros gays e vi que, como eu, eram pessoas que trabalhavam, estudavam, tinham famílias... Muitos namoravam, e eram devotados àqueles que amavam. Viviam durante o dia. Nada de becos noturnos esfumaçados...
Essa nova convicção me fez me aprofundar na história da Bíblia, do cristianismo e na psicologia. Antes que eu pudesse perceber, acabei por descobrir detalhes nada convenientes de como tudo acontecera na religião – e que os livros de psicologia da década de 60 estavam desatualizados. Em pouco tempo, aquela pesquisa toda me fez começar a questionar os fundamentos de minha fé.
O resultado foi dramático. Embora, por muito tempo, ainda escondesse tudo de minha família, a culpa foi desanuviando. Eu me tornei uma pessoa mais compreensiva, menos conservadora, julgava menos os outros e até mais feminista. Certa vez, quando participávamos de um campeonato musical entre as igrejas batistas de Guarulhos, nosso compositor foi flagrado bebendo cerveja. Tivemos de fazer uma reunião do grupo musical, porque uma das regras era que todos estivessem em comunhão e frequentando suas igrejas. Na reunião, eu disse, a respeito do Davi, que todos tínhamos nossos pecados – e a única diferença era que o dele havia sido descoberto.
O resto é história. Eu fui me afastando da igreja e, aos 21 anos, quando me apaixonei, houve o golpe de misericórdia. Afinal, Deus era amor – e não fazia sentido que algo tão puro, belo e, afinal, divino, nascesse daquilo que a igreja considerava tão sujo e pecaminoso. Meu afastamento me levou a ser questionado frente a uma Comissão de Ética e à União de Jovens. Falei dos meus questionamentos teológicos, ainda que sem detalhá-los, e, no fim, resultei desligado da igreja.
A verdade, porém, é que me orgulho muito desse novo João, pós-evangélico, que tem sido apurado ao longo dos anos. Ninguém é perfeito, e eu tenho ainda muito a ser aprendido e a ser consertado, mas, mesmo que tenha sido tão difícil me descobrir gay e ainda tenha de enfrentar preconceitos e dificuldades aqui e ali por causa disso e que tenha sido trabalhosa a revelação da minha homossexualidade para minha família anos depois, eu sou hoje uma versão de mim mesmo muito melhor do que era antes.
Existem gays que têm mau caráter, são falsos, mentirosos e hipócritas. Até bandidos, assim como muitos héteros e bis. Não é a orientação sexual, afinal, que define isso. No entanto, no meu caso particular (e só meu), eu credito a ela a razão de ser quem eu sou hoje e das qualidades minhas de que mais me orgulho.
Foi minha homossexualidade que me impulsionou ao questionamento, aos livros, à busca de informação, a compreender o próximo, a deixar o conservadorismo para trás, a ser mais flexível e a pensar duas vezes antes de julgar o outro só porque é diferente. Foi ela que me deu o impulso para procurar me corrigir quando percebo se agi assim. Foi ela que me fez experimentar o amor por duas vezes e saber que pessoas rancorosas como um Silas Malafaia da vida estão erradas – e foi ela que estava por trás de uma nova concepção de divindade que invadiu minha vida. Menos castigadora, menos punitiva e mais amiga, com quem, por sinal, me relaciono muito bem hoje em dia.
Cada um faz o uso que quer de sua característica que a natureza lhe dá. Eu fiz esse, e é por isso que me orgulho de ser gay. Não pelo fato de transar com homem em si, ou de devotar a eles meu desejo – mas pelo fato de que essa característica, no fim das contas, me fez ser uma pessoa melhor. Então, apesar de tudo que passei, eu escolheria ser gay, sim. Além do mais, preciso confessar: é gostoso à beça!
João Marinho