Normalmente pensamos que no tempo dos frades a clausura monástica seria um modo de vida muito seráfica e enlevada e que todos aqueles que se recolhiam nela praticavam a oração e a contemplação no seu sentido mais sublime e extático. No entanto começa a ser manifestamente sabido que afinal não era bem assim e que essas ideias estão longe de ser verdade e servem até para distrair sobre aquilo que realmente era o dia a dia dentro das casas monásticas, além da oração. Se nos nossos dia se sabe que no Vaticano ocorrem assassinatos por causa de amores e ciúmes homossexuais, imagine-se aquilo que se tem ocultado. Por outro lado a vida de um mosteiro, como a que Humberto Ecco reinventou no romance “O Nome da Rosa”, era muito mais real do que possa parecer.
Nos séc. XII e XIII quando se assiste à grande expansão da ordem de Císter, há muito que a pureza da regra de S. Bento de Nursia estava corrompida, e quando a ordem se representou em Alcobaça, com alguns dos seus frades, o principio Ora e Labora hà muito que tinha sido posta gaveta, tal como o socialismo dos nossos dias. Naquele tempo a ordem de Císter já era um império monástico e padecia o relaxamento da austeridade e do enriquecimento. Tinha-se convertido num potentado económico e num centro de tráfico de influencias. Se não fosse por esse centro de influencias não sabemos o que seria hoje o Jardim à beira mar plantado. Todos sabem que D. Afonso Henriques comprou as influências de Bernardo do Claraval com a doações de terras à sua Ordem.Bernardo de Claraval como presidente da multinacional Ordem de Císter representava naquele tempo o que representa hoje um presidente de administração de um qualquer império económico, como Bill Gates da Microssoft. Tinha poder para exercer muita influencia junto do Papa para que este reconhecera Afonso Henriques como rei. Neste sentido é curioso ver na linguagem dos cronistas o uso do termo promessa para designar o negócio, a troca de favores ou interesses entre D. Afonso Henriques e S. Bernardo. Os discursos subliminais sempre fizeram parte das ideologias ou dos desígnios obscuros, e a fundação de Portugal foi envolvida por um ar brumoso, místico, divino e esotérico como convinha e parece continuar a convir; só que para a ciência todas aquelas crónicas são meras curiosidades!O síndroma da promessa continua arreigado nos genes da cultura política, tal como no passado. A bitola discursiva de qualquer candidato continua a utilizar a promessa como engodo para o seu interesse. Dão-me o vosso voto e eu dou-vos o que vos prometo... se ganhar! A existência do “SE” pode tornar tudo nulo. A generosidade e o altruísmo dos políticos baseia-se nisto. Outro exemplo desta generosidade vê-se quando o comum dos mortais promete à Virgem Maria ir a Fátima a pé se lhe sair o totoloto, se não sair não vai e a promessa fica sem efeito. Este tipo de fé assente no interesse e na chantagem é sinónimo do altruísmo do tipo de políticos descritos. Ambas expressões são o mesmo vector de uma filosofia: a “INTERESSELOGIA”. Toda a cultura ocidental parece que assenta nela. A chamada lei da retribuição fez o dia a dia das mortais simples jogatanas de interesses, por isso as religiões fundadas em sistemas de compensação parecem ter os dias contados. Assim a fé tal como a política não se constituem na generosidade nem no altruísmo, a fraternidade ou solidariedade desconhecem-se, e são o toma lá dá cá de um comércio sucateiro ou da venda da alma ao diabo. Feito o comentário vejamos nos ecos um aspecto da vida dos monges no interior do mosteiro de Alcobaça ou nas casas da ordem de Císter, que era a prática dos jogos de Parar. Estes jogos eram realidades lúdicas ilícitas por serem jogos de apostas. Na gíria dos nossos dias têm a designação de jogos da batota, montinho e cartas e são práticas criminosas, tal como sempre foram. O extracto do texto que publicamos pertence às regras do capitulo, do séc. XVIII e diz o seguinte:
“Recomenda Mto. o capitulo ao N.R.mo. e a todos os m. R. dos Pes. Dons Abades a observância da lei do capitulo geral de 1726. e da junta de 1728 sobre a proibição do jogo, e as restrições, compº. somte. se devem permitir os que são lícitos, e em nenhum caso os de Parar; os quais o capitulo proíbe absolutamente a todos os monges da nossa congregação e lhes manda com preceito de obediência que nenhum seja ousado ao jogar nem dentro nem fora da clausura”.
Para uma hermenêutica da cultura e da sociologia, as leis enquanto objecto de estudo sociológico, são práticas culturais e tanto aquilo que proíbem ou aquilo que estabelecem têm o mesmo valor. Não é por se proibir roubar que deixa de haver ladrões ou que as cadeias não estejam cheias deles. Do mesmo modo que por se declarar legalmente os impostos não se esteja a defraudara a lei; recorde-se casos até recentes acontecidos com ministros. Os dois aspectos da lei são demonstrações espontâneas da cultura, logo fazem parte dos costumes.Imagine-se então o animado que era o interior do mosteiro e ver os monges pelos cantos, ao fundo das adegas, atrás das vasilhas, em lugares pouco iluminado, nas cavalariças ou a levantarem-se de noite, às escondidas, para irem jogar à batota. Imaginem também um grupo de frades que “arroupava” estas proibições. Se no interior do mosteiro se constata a existência desta prática, fora dele os religiosos também se entregavam ela , porque a regra do capitulo é clara: tanto proíbe o jogo dentro como fora da clausura. As constituições sinodais excomungavam os religiosos que jogavam aos jogos proibidos.O jogo, enquanto aspecto lúdico na convivência entre os frades e da vida monástica era importante, porque surge legislado pelo capitulo e esta assembleia eclesiástica dedicava-lhe normas estritas e com variantes permitidas. Pergunto quais seriam então os jogos com que os frades se podiam divertir? escondidas? pingarito? cabra cega? adivinha toleirão? à sardinha? aqui vai o lenço aqui fica o lenço? Á malha, ao “pé cochinho”, aos três cantinhos...? Sinceramente não sabemos nem nos interessa por agora o que a regra nos permite saber é que por detrás das grossas paredes e pesadas portas dos edifícios monacais se ocultava entre outras coisas um mundo de pândega e vicio, e sobre o ponto de vista da cultura isso é muito mais importante porque nos permite desmistificar os estereótipos com que se estrutura o obscurantismo.
Ps. Este artigo foi publicado na Semana Cisterciense en 1999.