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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Memória

A memória vai encontrando caminhos ínvios e desaparecendo por entre as mais estreitas vielas, ainda que conheça muito bem os locais, saiba os temas, domine os assuntos ou as tarefas, e tenha passado mais do que suficiente para encher avenidas das matérias que possam estar em causa.

Por mais notas que se registem, ou mnemónicas que se fixem, quando é necessária, a palavra, traiçoeira, esconde-se debaixo da língua e por lá permanece, por mais esforços que se façam para que a porta se abra.

- Não consigo. Daqui a bocado vou lembrar-me ... quando já não for preciso.

Vai acontecendo no dia a dia e causa mais perplexidade quando o assunto é por demais conhecido, dominado, e foi tratado durante muito tempo. Teimoso, está ali fresco que nem uma alface e não surge. Que se há-de fazer? Nada, ou melhor, um esforço para que o que agora se escondeu, não permaneça na toca e surja daí a pouco. Não se perde tudo e pode dizer-se, para consolo, que, afinal, o que estava escondido e bem resguardado, apareceu clarinho para se poder explicitar, já noutro tempo, é verdade, e, mais provável, a despropósito, agora que já a ninguém aproveita.

Não era nada disto que eu queria hoje deixar por aqui mas ... já se me varreu!

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Memória

Por mais que se tente fugir, num encontro de septuagenários, as conversas encaminham-se sempre para as doenças e para as recordações que permanecem bem presentes embora sejam de há muito, muito tempo.

- Disso, lembro-me perfeitamente ... não me perguntes o que almocei ontem.

A referência aos lapsos de memória do que se viveu ontem, por vezes ao que se passou há momentos, a baralhação dos nomes, a palavra debaixo da língua que teima em não sair e só (res)surge quando já não é necessária,

- Desculpa lá interromper ... lembrei-me agora do que queria dizer há bocado

um sem número de situações que todos conhecemos, já vivemos e cuja aparição parece, ao que dizem, ser normal e sem terapêutica conhecida. 

Comparando com os computadores, parece que a situação memorial é mais ou menos similar, salvo a solução. À medida que a capacidade de armazenamento se vai aproximando do limite, a memória da máquina começa a ter dificuldade em encontrar o pretendido, demora mais tempo, baralha-se, perde informação, "queixa-se", solicita actualizações, diz que é tempo de libertar espaço. O recurso à "nuvem" ajuda a que a sua acção seja simplificada, facilitada e sem preocupação de "ver" apenas com os seus "olhos". O arquivo passa lá para cima e, lá de cima, até vêm notícias e respostas. Em último recurso, adquire-se outro (sem necessidade de ir à loja) e ... tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.

O computador continuará com uma boa memória, acederá ao "além", obterá cada vez mais respostas, terá cada vez mais capacidade de segurar os conhecimentos e de os alardear.

Os "jovens" septuagenários já só se apresentam com uma vaga ideia 

- Eu sei isso ... mas não me vem à cabeça.

domingo, 24 de outubro de 2021

Mercearia e fanqueiro

A loja era enorme, pelo menos aos olhos de quem era pequeno. Vendia tudo e tinha, escrito a letras douradas num vidro preto que encimava os armários, o nome da firma e o seu negócio: mercearia e fanqueiro.

À entrada, do lado esquerdo, as tulhas da aveia, das sêmeas, do milho, e o corredor de lata, utilizado para encher o saco dos clientes. O balcão, de madeira trabalhada e envernizada, ocupava toda a largura da loja. Era altíssimo. Tão alto que os olhos só conseguiam ver o lado de lá se o curioso se pusesse em bicos de pés. O tampo também era de madeira, mas só até mais ou menos ao meio. Mudava para mármore no sítio onde estava a balança Avery, que pesava tudo, do grão ao feijão, da manteiga ao toucinho, dos rebuçados ao sabão, azul e branco, está bem de ver. A seguir, aparecia a medidora do azeite e, mesmo no fim, a faca, enorme, de cortar o bacalhau.

Tudo era embrulhado e nada embalado. Meia quarta de café, num pacotinho de papel pardo, dobrado na perfeição, para não se perder pitada. A mesma meia quarta, mas de banha, era colocada pela espátula de madeira no quadrado de papel vegetal e nele embrulhada, para receber depois uma capa do tal papel pardo e ser acabado o embrulho, dobrado com o requinte de quem sabe e o faz com gosto. O azeite era colocado na garrafa do cliente, e podia ir da meia dúzia de centilitros ao litro, sendo esta medida apenas acessível a quem já tinha uma carteira com alguma dimensão ou uma folha do livro com razoável extensão.

Na parede do fundo, em armários com portas de vidro, estavam guardados os tecidos e o material congénere, do cotim à sarja, da chita à flanela, os vários tipos de ganga, os botões, as meias de "fio de escócia", o elástico a metro e as linhas, em carrinho ou em bobina. Os tecidos eram vendidos a metro e, para isso, lá estava o metro de madeira envernizada, quadrado, com a marcação de cada centímetro a traço gravado e, a cada dez, um traço mais fundo e forte, com a indicação do respectivo número - 10, 20, 30, etc..

Numa outra divisão, contígua, havia a balança decimal, a medidora do petróleo, os sacos de batatas, as sacas de adubo e a tulha do enxofre, tudo convivendo com a recente cabina telefónica pública, que permitia as ligações para fora, pagando o preço dos impulsos registados no marcador instalado no lado de dentro do balcão, claro.

Ainda era assim há pouco mais de cinquenta anos. Já nada disto existe e ainda bem ...

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Memória

As memórias da infância e juventude são hoje bem mais claras do que aquilo que fiz de manhã. De acordo com o que dizem os estudiosos, é normal que o "computador" pessoal despreze o que aconteceu há pouco e privilegie aquilo que tem anos esquecidos, já não tem jeito nenhum, poucos se lembram e, para a grande maioria, é uma estucha perfeitamente dispensável. Também diz quem sabe que é comum fazer ligações entre o que acontece no momento e coisas passadas e arrumadas.

O Prémio Nobel da Literatura de 2020 foi hoje atribuído a uma poeta americana - LOUISE GLUCK - que não conhecia e continuo a não conhecer, por nunca ter lido nada por ela escrito. Talvez por ter sido escolhida a poesia, veio-me à memória, não a frase batida do Sérgio Godinho, mas a Balada da Neve, de Augusto Gil, que decorei há muitos, muitos anos e ainda permanece, vejam só, na primeira "gaveta do arquivo" memorial. E, diga-se de passagem, nesse tempo eu mal sabia o que era nevar e nunca tinha visto sequer uns farrapitos ...

BALADA DA NEVE

Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia 
dos pinheiros do caminho ...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza, 
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía 
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria ...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho ...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança ...
E descalcinhos, doridos ...
a neve deixa ainda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil (1873-1929)

domingo, 4 de outubro de 2020

Memória

A minha irmã diz que eu sabia de cor este texto e que o teria decorado ainda antes de ir para a escola, ao lê-lo na sua companhia. 
Lembro-me bem dos bois do Jeirinhas mas claro que já não recordo o texto, se é que alguma vez o soube, como garante a minha mana, que não é mentirosa.
A Internet, que tem muitos defeitos, também é muito útil em algumas situações. E esta foi uma delas: como não tenho o livro da terceira classe - acho que era nesse que vinha - não havia sítio nenhum onde o encontrasse em letra de forma. "Googlei" e ei-lo, com ilustração e tudo:

OS BOIS TEIMOSOS

Tinha-se acabado a poda. As vides já estavam quase todas atadas em feixes, e era preciso levá-las para o pátio da casa porque a falta de lenha para o lume era grande por aqueles sítios, e podiam roubá-las de noite. O dono da vinha, que não podia largar a gente do serviço para ir buscar o carro, disse para o Manuel Jeirinhas, um rapazote dos seus catorze anos:

- Ó Jeirinhas, tu és capaz de ir a casa e meter os bois ao carro?

- Ora essa, patrão! Então não havia de ser? Pois já se vê que sou! 

- Então vai a casa num pulo, e traz o carro para levarmos as vides. Mas não te demores, que é quase noite. 

O moço  partiu a correr, muito contente com aquela prova de confiança que lhe dava seu amo. Chegou a casa, e foi um instante enquanto apôs os bois ao carro. Depois de tudo pronto, começou a chamá-los de aguilhada no ar; mas, com grande admiração sua, os bois não andavam! Passou a chamá-los pelos seus nomes, a ameaçá-los com a aguilhada, mas, qual história! - os animais não levantavam os canelos do chão. Entrou de praguejá-los em altos berros, de picá-los com o ferrão, e eles torciam-se, abanavam a cabeça, mas lá andar para a frente é que não havia meio.

O Jeirinhas, muito descoroçoado, começou a dizer mal da sua vida:

- Mas que teima será esta dos bois, que não querem andar? E o patrão que logo me recomendou que viesse num pulo! Como há-de ser isto agora?

De repente, teve uma inspiração:

- Já sei! Isto não é senão coisa de bruxedo!

Levantou-se de um salto, deitou a fralda da camisa para fora, e foi-se à cabeça dos bois, zurra-que-zurra, zurra-caturra, a esfregá-la com quanta força tinha, porque ouvira dizer que era aquilo remédio infalível para o mau olhado ...

Depois daquele trabalho todo, tornou a chamar os bois e a puxar por eles: mas nada! Se teimosos estavam antes, mais teimosos ficaram depois! O rapaz desanimou então de todo, e começou a chorar:

- Agora o patrão, se calhar, há-de dizer que eu dei cabo dos bois! Valha-me Deus Nosso Senhor!

Nisto, pôs-se a olhar muito sério para os bois, e disse: 

- Espera lá ... Este boi parece que puxava do outro lado ... E se eu trocasse os bois? ...

Dito e feito. Tirou os bois: mudou o da direita para a esquerda e o da esquerda para a direita, e tornou a apô-los ao carro. Os animais, assim que se viram nos lugares a que estavam acostumados, ó pernas para que vos quero! meteram por ali fora que foi um regalo!

O Jeirinhas compreendeu então que ele é que tinha embruxado os bois.

 

sábado, 3 de outubro de 2020

Memória

Ontem, por força de um vídeo enviado, lembrei-me do jogo do pião e recordei-o, sozinho, no quintal cá de casa. Hoje, à custa de ter lido que "um corvo crocitava no alto de uma bela árvore", recordei-me da fala dos animais, que aprendi na primária. Já não recordava o autor nem me lembro de o seu nome ser referido, mas descobri tratar-se de um poeta que viveu entre 1839 e 1896 e se chamava Pedro Diniz.

A memória, velha, tem destas coisas.

VOZES DOS ANIMAIS

Palram pega e papagaio                           Muge a vaca, berra o touro;          
E cacareja a galinha;                                 Grasna a rã; ruge o leão;               
Os ternos pombos arrulham;                   O gato mia; uiva o lobo;               
Geme a rola inocentinha.                         Também uiva e ladra o cão.          

Relincha o nobre cavalo;                          Regouga a sagaz raposa;
Os elefantes dão urros;                             (Bichinho muito matreiro)
A tímida ovelha bale;                                Nos ramos cantam as aves;
Zurrar é próprio dos burros.                     Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras                              O pardal, daninho aos campos,
O canto seu variar;                                    Não aprendeu a cantar;
Fazem às vezes gorjeios,                          Como os ratos e as doninhas,
Às vezes põem-se a chilrar.                      Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita;                             Chia a lebre; grasna o pato;           
Zune o mosquito enfadonho;                  Ouvem-se os porcos grunhir;        
A serpente no deserto                              Libando o suco das flores,            
Solta assobio medonho.                           Costuma a abelha zumbir.             

Bramam os tigres, as onças;                    A vitelinha dá berros;                          
Pia, pia o pintainho;                                 O cordeirinho, balidos:                        
Cucurica e canta o galo;                           O macaquinho dá guinchos;                
Late e gane o cachorrinho.                      A criancinha, vagidos.                       
                                                             
A fala foi dada ao homem, 
Rei dos outros animais.
Nos versos lidos acima,
Se encontram, em pobre rima,
As vozes dos principais.