O Miguel diz:
"Eu manifesto perplexidade por se deprimir a economia cortando salários, congelando pensões, aumentando impostos, etc, mantendo investimentos, desnecessários, em submarinos" e continua, especificamente para mim: "não percebo a tua complacência com os gastos em submarinos e a tua animosidade a investimentos estruturarais, como é o caso do TGV."
Tudo começou por eu questionar a forma como o Miguel coloca a discussão, exactamente por achar que não se pode discutir alternativamente cortar salários e etc., e pagar ou não um investimento contratado.
Primeiro as questões práticas, depois as de substância.
Que o Estado está falido é uma evidência (e é arrepiante olhar para os compromissos futuros já assumidos e não constam da dívida para já).
Como todos os dias, a todas as horas estamos a consumir 110 quando produzimos 100, naturalmente precisamos que alguém nos empreste dinheiro.
Claro que quem tem dinheiro apenas empresta se tiver ums expectativa razoável de vir a receber o dinheiro mais tarde, sendo que o juro que nos cobra por esse empréstimo está directamente relacionado com o risco que associa à possibilidade de não ser pago.
A situação neste momento é a de uma urgência: temos contas para pagar amanhã e o cofre está vazio. Como continuamos alegremente a gastar 110 e a produzir 100, o emprestador está a cobrar-nos um risco elevado e a diminuir a sua disponibilidade para nos emprestar dinheiro.
Cortar salários, aumentar impostos e etc., tem um efeito recessivo inegável. Com isso diminuímos a nossa capacidade de honrar a dívida. Mas tem como resultado uma diminuição sensível e imediata dos gastos do Estado que, aos olhos de quem nos empresta dinheiro, aumenta a confiança em que venhamos a pagar a dívida.
Imaginemos que em vez de fazer isto, resolvíamos não pagar compromissos jurídicamente claros. Para além de ser duvidoso que não tivessemos de qualquer maneira que pagar, obrigados pelo tribunal, a verdade é que demonstrar que os compromissos titulados internacionalmente (e tanto faz que sejam submarinos ou chupa-chupas) eram letra morta para nós, só faria aumentar a desconfiança, tendo como resultado o fecho da torneira do crédito ou o pagamento de juros exorbitantes (ou um mix das duas coisas). O resultado seria ainda mais desastroso para uma economia completamente viciada no crédito.
Acresce que cortar salários na administração coloca o patamar para a evolução futura mais abaixo, não pagar um submarino tem um efeito pontual nas contas de um ano, mantendo inalteradas todas as condições que nos levam à falência do Estado.
Portanto não se podem discutir as alternativas no termos em que o Miguel as pôs porque uma responde ao problema, a outra não.
Passemos às questões de substância.
O que tenho dito sobre os submarinos (para além da questão prática de ser um compromisso juridicamente forte) é que não sei discutir o assunto porque não sei o suficiente de defesa nacional nem das modernas funções de defesa, nem das modernas possibilidades dos submarinos.
Se, como afirma o Miguel, os submarinos forem inúteis, só tenho de lamentar que vários Governos e vários ministros e vários primeiros-ministros tenham sempre mantido e garantido a sua utilidade e imprescindibilidade.
Vamos então à questão dos investimentos estruturantes.
Quando um Estado tem dinheiro, é livre de fazer opções. Quando está falido, faz as opções que quem tem dinheiro lhe permite. Quando é o Estado português governado por um inimputável, toma decisões absurdas e culpa os outros pelos resultados.
Tomemos um exemplo.
As parcerias publico privado foram criadas para as situações em que as melhorias de eficiência de uma gestão privada de um determinado projecto (por exemplo, a operação de um hospital) eram suficientemente grandes para cobrir os sobrecustos decorrentes do financiamento privado ser mais caro (o risco é maior com os privados que com o Estado) e ter de incluir a remuneração do capital.
O Estado português resolveu inovar, usando as parcerias para criar dívida futura sem aumentar o déficit presente, baseando-se em conceitos de economia voodoo. Estes conceitos postulam que os projectos vão gerar uma economia cujos impostos vão servir para pagar a dívida no futuro. Pura roleta, pura economia de casino, porque se as previsões estiverem mal feitas (e em Portugal têm estado sempre) quem fica com os custos operacionais é o Estado (outra das inovações do Estado português, porque nas parceira público privado o risco fica sempre do lado do concessionário, sendo esse o motor da melhoria da eficiência, mas em Portugal o Estado assume o risco em dezenas de situações).
Uma coisa é fazer um ponte (um dos dois exemplos que George Soros dá hoje no Financial Times a propósito dos Estados Unidos) cujos custos de operação são marginais. Outra coisa é operar comboios, cujos custos operacionais existem sempre e são muito relevantes.
Se o Estado português fizesse a linha e concessionasse a operação com o risco do lado do concessionário, a discussão sobre o TGV prender-se-ia apenas com questões de oportunidade (há ou não dinheiro para isso? Hoje não, mas amanhã haverá. Encantado, faz-se amanhã). Só que não é isso que está em cima da mesa (por isso dei o exemplo de outro projecto estruturante, Alqueva, com problemas semelhantes).
O que está em cima da mesa é não só criar dívida para construir (atirando para as gerações futuras o seu pagamento), como ao contrário do que diz o Rui Tavares no seu texto, não é garantido que haja crescimento futuro porque uma exploração deficitária não só não paga a dívida como a agrava.
Daí que o dinheiro do público deva ser muito parcimoniosamente usado, não para deprimir ou estimular a economia (essa é a função das empresas, não do Estado), mas para criar condições para o desenvolvimento da economia (boa e eficaz justiça, segurança de pessoas e bens, defesa nacional proporcionada, diplomacia eficaz, património colectivo bem gerido,etc.), ou para a resolução dos problemas que o mercado não resolve eficazmente (apoio social aos excluídos, resolução de falhas de mercado e por aí fora).
Projectos estruturantes, Miguel, não sei o que são. Só conheço investimentos com retorno positivo (e não é necessariamente económico ou financeiro, pode ser simplesmente a escolha social, como boas áreas protegidas, por exemplo) e investimento sem retorno (na verdade, desperdício), que para além de ser delapidador da riqueza nacional, ainda cria impactos negativos (muitas vezes ambientais, mas não só), apreciáveis em muitos casos.
Se num momento em que o Estado para resolver uma crise económica quiser investir, sabendo que é a fundo perdido, pois que o faça, mas que o faça em coisas que não obriguem a exploração deficitária, mas que tenham utilidade social. Submarinos não é a coisa mais óbvia para mim (embora não exclua a modernização das forças armadas, prefiro, por exemplo, a compra de terrenos com interesse para a conservação e que não necessitem de gestão activa), mas pior que isso são os projectos deficitários que para cumprirem a sua função social precisam de uma gestão activa e uma operação deficitária.
Olhar para o gráfico do último post e ver o peso que estamos a pôr em cima dos nossos filhos, de forma consciente, devia levar-nos a pensar como é possível que seja essa a opção do Governo.
E há três opções: ou somos governado por um indivíduo completamente irresponsável, incompetente e inconsciente; ou somos governados por um indivíduo absolutamente cínico e aldrabão que não hesita em sacrificar o futuro dos outros ao seu poder imediato; ou somos governados por um alienado que vive numa realidade paralela, com vagas ligações com o mundo das pessoas comuns.
Porque independentemente das opções entre submarinos e tgvs, a verdade é que a compromissos anteriores dificilmente suportáveis se foram somando de forma indecorosa mais e mais compromissos, sem outra base que não a contabilidade criativa, até à situação de depressão económica em que estamos a entrar.
E fomos nós que optámos por isso, não foi uma fatalidade inevitável.
henrique pereira dos santos