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sábado, novembro 05, 2011
A professora tem sempre razão
Passo a citar a matéria que o meu filho estudou recentemente, para a disciplina de Estudo do Meio, 4º ano da escola primária:
"Prevenção de incêndios
No nosso país, em especial nos últimos anos e durante os meses de Verão, as florestas têm vindo a ser destruídas pelos fogos.
A área florestal está a desaparecer e, com ela, o habitat de numerosas espécies de animais e de plantas.
Esta destruição leva à erosão dos solos e as graves alterações climatéricas."
Tanto disparate que andam a ensinar aos nossos filhos, desde o "nosso país" (não haverão fogos fora de Portugal? essa mania de falar sobre fenómenos globais como se fosse algo exclusivo "nosso"), "últimos anos" (meus caros editores de livros escolares, se fizessem o trabalho de casa como fazem os nossos filhos, não havíamos de aturar coisas destas), "durante os meses de Verão" (salvo a violação do novo acordo ortográfico, supostamente em vigor nos livros escolares, se calhar a única afirmação objetiva em todo o texto), passando pela banalidade da destruição das florestas pelo fogo (será demais pensar que os nossos educadores deviam explicar que o fogo modifica o percurso evolutivo da vegetação, podendo esta modificação ser contrária aos objetivos humanos em relação a esta mesma vegetação, mas que raramente a destroi de forma definitiva), que só se entende pela ideia dominante na educação ambiental que crianças com menos de 10 anos (e se calhar não só essas) só compreendem afirmações estilo tabloide, prosseguindo com o hilariante "a área florestal está a desaparecer" (já pensaram em consultar as estatísticas sobre o assunto, para não falar em ver bem o que é definida como "área florestal"), e o habitual blablabla das numerosas espécies. A relação entre fogos e erosão ainda dou de barato, mas volto a arrepiar com as graves alterações climatéricas, que servem de bogey man do século XXI.
Não sei porque, mas vêm-me à cabeça umas canções que Roger Waters compôs, relacionadas com uma parede e tal, já lá vão 30 anos ...
Henk Feith
quinta-feira, abril 21, 2011
Ciência oculta
Um longo post. As minhas desculpas mas não consigo dizer fundamentadamente o que vou dizer sem me alongar. E o que está em causa, e as pessoas que estão em causa, não me permite deixar de procurar fundamentar cuidadosamente a minha opinião.
Fui ler o artigo inteiro.
E resolvi comentá-lo de tal maneira fiquei estupefacto com o que li.
O artigo está assinado por várias pessoas que considero, com algumas delas já trabalhei sem o menor problema. Outras pessoas conheço de ouvir falar. Em qualquer caso é um grupo de investigadores que na área dos fogos florestais estão entre os mais considerados em Portugal. E o artigo está publicado numa revista de referência.
E no entanto a sensação que me fica é a de que o artigo não tem pés nem cabeça e passo a tentar explicar esta minha opinião que será, de qualquer maneira, desconsiderada com dois argumentos:
O primeiro, sendo genericamente verdadeiro (o genericamente é por causa de coisas como esta) é um argumento de autoridade ao qual não ligo nenhuma;
O segundo não é verdade. Preferia não escrever este post. Gosto é ainda menos de, com o meu silêncio, contribuir para deixar pairar a ideia de que o artigo em causa é mais que ciência oculta.
Vamos então à substância do artigo.
No essencial o artigo compara dois momentos do uso do solo (1990 e 2005, em Bragança e Mação, 2003, em Águeda). Junta a esta informação a informação sobre os fogos florestais. Em cada uma das três regiões compara áreas ardidas e não ardidas. Avalia as alterações de uso do solo, nas áreas ardidas e não ardidas e projecta tendências para os cem anos seguintes.
O artigo, em nenhum momento, discute quaisquer outros factores de alteração do uso do solo que não os fogos florestais, aplicando métodos estatísticos para verificar se os fogos explicam as alterações.
O estudo encontra então algumas evidências empíricas, em especial que as alterações de uso não são iguais nas áreas ardidas e não ardidas.
Só que de empírico pouco mais tem o artigo.
Daí para a frente tem inferências estatísticas e elocubrações sobre as inferências estatísticas.
Para demonstrar que uma área ardida de pinheiro ou eucalipto pode, no prazo de quinze ou menos anos ser transformada numa área de matos não é preciso nenhum artigo científico. Para demonstrar que numa área de ocorrência de pinheiro e eucalipto sujeito a fogos é natural uma evolução para matas mistas, também não é preciso muito trabalho científico. Mas até aqui eu dou de barato esta necessidade que a academia tem de provar o que todos sabemos (é aliás um papel importante da academia porque o que todos sabemos pode estar errado).
Mas há problemas bem mais complicados no artigo.
O primeiro é o problema do tempo: 15 anos não são suficientes para avaliar tendências de alteração de uso do solo, se quisermos, tendências de evolução da paisagem, sobretudo se, como se faz neste artigo, se esquece tudo o que seja enquandramento temporal e sócio-económico dessa evolução.
O segundo problema, a confusão entre dados e interpretação. O caso mais evidente diz respeito às alterações de área agrícola. O estudo verifica uma diminuição de áreas agrícolas maior nas áreas ardidas que nas áreas não ardidas. E conclui, audaciosamente porque sem nenhum dado empírico para o fazer, que o fogo foi um factor de abandono das áreas agrícolas. Ora a partir dos mesmíssimos dados empíricos eu posso dizer que as áreas agrícolas que vão sendo abandonadas ardem mais que as que mantêm o seu uso, isto é, que o abandono é um factor de susceptibilidade ao fogo. Ou seja, não é por arderem que as alterações de uso existem, é por haver alterações de uso que ardem. No caso das áreas agrícolas, bem entendido, porque no caso das áreas florestais o problema é mais complexo: o abandono permite a acumulação de combustiveis no sub-bosque (coisa que o estudo ignora, omitindo por completo qualquer análise mais pormenorizada que pudesse lançar alguma luz sobre a questão dos combustíveis), o que leva aos fogos, que conduzem a uma alteração do coberto, em especial para as espécies que não rebentam de toiça (um pequenino parágrafo passa como cão por vinha vindimada por esta característica essencial para discutir alterações do diferentes cobertos vegetais).
O terceiro problema é uma coisa que não percebo como é aceite num artigo científico com referees: de uma análise de quinze anos, com apenas dois pontos de observação (curtíssimo para uma análise com base em matrizes de Markov, que exigiriam pelo menos três pontos de análise, ou pelo menos cautela na análise de apenas dois pontos), num processo complexo como é a evolução de paisagens, onde actuam dezenas de factores, aceitam-se projecções lineares para cem anos, como se todos os factores, em especial os sócio-económicos, se mantivessem inalterados. E com base nessas projecções completamente fantasiosas tiram-se algumas das principais conclusões do artigo.
Conheço a má ciência, a boa ciência e as ciências ocultas.
Este artigo cai nitidamente no terceiro grupo.
Nada do outro mundo (honny soit qui mal y pense), a ciência, a boa, a legítima, faz-se ao longo do tempo, com contributos certos e errados e alguém virá um dia corrigir o que está escrito neste artigo, ou, o que é mais frequente e provável, simplesmente esquecê-lo porque está errado e não tem interesse.
Mas entretanto, porque os autores do artigo têm fortes ligações com uma ONG e porque as posições públicas das ONGs são definidas por grupos mais que restritos de pessoas, infuenciam-se políticas e afectações de recursos com base nisto.
Essa é uma das principais razões pelas quais as ONGs deveriam fugir como o diabo da cruz de processos fechados de definição das suas posições.
Mesmo (ou sobretudo?) que essas posições sejam definidas por investigadores eminentes.
É muito triste ver as ONGs preferirem a tecnocracia à democracia.
henrique pereira dos santos
Dizem-me que parte do comunicado da LPN que comentei aqui, está fundamentado neste artigo.
Ou seja, que a ideia de que os incêndios provocam abandono estaria fundamentada neste artigo.Fui ler o artigo inteiro.
E resolvi comentá-lo de tal maneira fiquei estupefacto com o que li.
O artigo está assinado por várias pessoas que considero, com algumas delas já trabalhei sem o menor problema. Outras pessoas conheço de ouvir falar. Em qualquer caso é um grupo de investigadores que na área dos fogos florestais estão entre os mais considerados em Portugal. E o artigo está publicado numa revista de referência.
E no entanto a sensação que me fica é a de que o artigo não tem pés nem cabeça e passo a tentar explicar esta minha opinião que será, de qualquer maneira, desconsiderada com dois argumentos:
- o de que não tenho curriculum científico em geral e neste tema em particular;
- o de que o que eu quero é polémica.
O primeiro, sendo genericamente verdadeiro (o genericamente é por causa de coisas como esta) é um argumento de autoridade ao qual não ligo nenhuma;
O segundo não é verdade. Preferia não escrever este post. Gosto é ainda menos de, com o meu silêncio, contribuir para deixar pairar a ideia de que o artigo em causa é mais que ciência oculta.
Vamos então à substância do artigo.
No essencial o artigo compara dois momentos do uso do solo (1990 e 2005, em Bragança e Mação, 2003, em Águeda). Junta a esta informação a informação sobre os fogos florestais. Em cada uma das três regiões compara áreas ardidas e não ardidas. Avalia as alterações de uso do solo, nas áreas ardidas e não ardidas e projecta tendências para os cem anos seguintes.
O artigo, em nenhum momento, discute quaisquer outros factores de alteração do uso do solo que não os fogos florestais, aplicando métodos estatísticos para verificar se os fogos explicam as alterações.
O estudo encontra então algumas evidências empíricas, em especial que as alterações de uso não são iguais nas áreas ardidas e não ardidas.
Só que de empírico pouco mais tem o artigo.
Daí para a frente tem inferências estatísticas e elocubrações sobre as inferências estatísticas.
Para demonstrar que uma área ardida de pinheiro ou eucalipto pode, no prazo de quinze ou menos anos ser transformada numa área de matos não é preciso nenhum artigo científico. Para demonstrar que numa área de ocorrência de pinheiro e eucalipto sujeito a fogos é natural uma evolução para matas mistas, também não é preciso muito trabalho científico. Mas até aqui eu dou de barato esta necessidade que a academia tem de provar o que todos sabemos (é aliás um papel importante da academia porque o que todos sabemos pode estar errado).
Mas há problemas bem mais complicados no artigo.
O primeiro é o problema do tempo: 15 anos não são suficientes para avaliar tendências de alteração de uso do solo, se quisermos, tendências de evolução da paisagem, sobretudo se, como se faz neste artigo, se esquece tudo o que seja enquandramento temporal e sócio-económico dessa evolução.
O segundo problema, a confusão entre dados e interpretação. O caso mais evidente diz respeito às alterações de área agrícola. O estudo verifica uma diminuição de áreas agrícolas maior nas áreas ardidas que nas áreas não ardidas. E conclui, audaciosamente porque sem nenhum dado empírico para o fazer, que o fogo foi um factor de abandono das áreas agrícolas. Ora a partir dos mesmíssimos dados empíricos eu posso dizer que as áreas agrícolas que vão sendo abandonadas ardem mais que as que mantêm o seu uso, isto é, que o abandono é um factor de susceptibilidade ao fogo. Ou seja, não é por arderem que as alterações de uso existem, é por haver alterações de uso que ardem. No caso das áreas agrícolas, bem entendido, porque no caso das áreas florestais o problema é mais complexo: o abandono permite a acumulação de combustiveis no sub-bosque (coisa que o estudo ignora, omitindo por completo qualquer análise mais pormenorizada que pudesse lançar alguma luz sobre a questão dos combustíveis), o que leva aos fogos, que conduzem a uma alteração do coberto, em especial para as espécies que não rebentam de toiça (um pequenino parágrafo passa como cão por vinha vindimada por esta característica essencial para discutir alterações do diferentes cobertos vegetais).
O terceiro problema é uma coisa que não percebo como é aceite num artigo científico com referees: de uma análise de quinze anos, com apenas dois pontos de observação (curtíssimo para uma análise com base em matrizes de Markov, que exigiriam pelo menos três pontos de análise, ou pelo menos cautela na análise de apenas dois pontos), num processo complexo como é a evolução de paisagens, onde actuam dezenas de factores, aceitam-se projecções lineares para cem anos, como se todos os factores, em especial os sócio-económicos, se mantivessem inalterados. E com base nessas projecções completamente fantasiosas tiram-se algumas das principais conclusões do artigo.
Conheço a má ciência, a boa ciência e as ciências ocultas.
Este artigo cai nitidamente no terceiro grupo.
Nada do outro mundo (honny soit qui mal y pense), a ciência, a boa, a legítima, faz-se ao longo do tempo, com contributos certos e errados e alguém virá um dia corrigir o que está escrito neste artigo, ou, o que é mais frequente e provável, simplesmente esquecê-lo porque está errado e não tem interesse.
Mas entretanto, porque os autores do artigo têm fortes ligações com uma ONG e porque as posições públicas das ONGs são definidas por grupos mais que restritos de pessoas, infuenciam-se políticas e afectações de recursos com base nisto.
Essa é uma das principais razões pelas quais as ONGs deveriam fugir como o diabo da cruz de processos fechados de definição das suas posições.
Mesmo (ou sobretudo?) que essas posições sejam definidas por investigadores eminentes.
É muito triste ver as ONGs preferirem a tecnocracia à democracia.
henrique pereira dos santos
segunda-feira, janeiro 10, 2011
Ou o Estado é muito estúpido...
... ou o muito estúpido sou eu.
Espero que seja esta a hipótese verdadeira.
Ora leia-se aqui este decreto lei.
O Governo, na sequência dos fogos de 2003 e 2005 embarcou numa política errada de dizer que com umas centrais de biomassa resolvia o problema da gestão de combustiveis e, consequentemente, o problema dos fogos (mais uma bateria infinda de medidas, incluindo quilos de papel em planos inúteis, financiamentos não controlados em gabinetes florestais, sapadores a esmo sem grande controlo, enfim, um monte de recursos canalizados para as câmaras municipais que não têm nem floresta, nem vocação para a gerir, como se pode confirmar mesmo na parte final deste post).
É claro que as centrais ficaram a marinar, porque os matos são essencialmente ar e água, têm um poder calorífero relativamente baixo e a sua relação peso/ volume é bastante baixa, gerando custos de transporte brutais. Não foi por falta de se saber o que iria acontecer.
Agora o Governo, para resolver o problema, aumenta o incentivo (que vai ser pago pela economia em electricidade mais cara, valha ao menos isso que é um bom incentivo à sustentabilidade) e impõe um conjunto de regras para que esse incentivo possa ser recebido.
Vamos passar por cima da trafulhice que vai ser porque o sistema anti-fraude montado é maior que a fraude em si mesma, e vamos às obrigações.
A lógica era gerir os matos das explorações florestais, é isso que justifica (embora erradamente) o preço pago pela electricidade destas centrais. Esperar-se-ia então que as obrigações dissessem respeito a mínimos de matos no mix de combustiveis.
Isso seria num país normal, não aqui:
"o plano previsto na alínea b) do número anterior deve contemplar medidas de promoção de fontes de biomassa florestal que permitam atingir, no prazo de 10 anos, 30 % do abastecimento das necessidades de biomassa florestal da central, assumidas no âmbito dos concursos, incluindo, nomeadamente:
a) Biomassa florestal residual;
b) Agrícola e agro -industrial;
c) Biomassa oriunda de resíduos; e
d) A instalação de culturas energéticas dedicadas."
a) Biomassa florestal residual;
b) Agrícola e agro -industrial;
c) Biomassa oriunda de resíduos; e
d) A instalação de culturas energéticas dedicadas."
A obrigação não é ter trinta por cento dos combustiveis vindo destas fontes, a obrigação é ter um plano. O plano não precisa de prever o uso de trinta por cento dos combustiveis com esta origem, só precisa que no prazo de dez anos se atinja esse número. E a obrigação não é a de usar matos, pode ser essa, ou agrícola e agro-industrial (provavelmente para incluir as águas negras), a biomassa oriunda dos resíduos (que não precisa de incentivo, é racional) e, surpresa, culturas energéticas dedicadas.
O que é isso? "culturas florestais de rápido crescimento, cuja produção e respectiva silvicultura preveja rotações inferiores ou iguais a seis anos e cuja transformação industrial seja dedicada à produção de energia eléctrica ou térmica".
Ou seja, o que se pretendia que fosse uma política de gestão de combustiveis que desse sustentabilidade económica à exploração florestal, contribuindo para a gestão do fogo, é agora um incentivo à criação de áreas de elevada combustibilidade, como são estas culturas de elevada densidade.
Confesso que gostava de saber em quanto monta este incentivo para as dez centrais que se pretenderiam fazer. No fundo, quanto se vai poduzir e quanto é o sobrecusto por kW.
É que gostava de comparar isso com o que resultaria de aplicar o mesmo montante de incentivo na produção de cabras e ovelhas.
Aposto que a área de gestão de combustiveis seria muito maior, e os bens transacionáveis teriam um valor muito maior que a suposta poupança de energia.
Às vezes foge-me o pé para a chinela ao ver estas decisões e apetece-me retomar, com uma ligeira alteração, um velho slogan anarquista do PREC: as cabras ao poder, que os maridos já lá estão.
henrique pereira dos santos
sábado, novembro 13, 2010
Os deputados e o ácido com muita estriquinina
Li, de olhos arregalados e cérebro congelado, que os deputados que me representam aprovaram esta resolução sobre fogos e áreas protegidas: ler, sentado, aqui.
É certo que, por causa de resoluções como esta, as resoluções da Assembleia da República não valem o papel em que são impressas. Não vou perder tempo a discutir as consequências de alguém levar a sério esta resolução porque seria discutir o absurdo.
Mas vale a pena discutir o que esta resolução (e a sua aprovação por esmagadora maioria) significa do ponto de vista do que é hoje, partidariamente, a política de conservação da natureza.
Aqui há tempos, comentei uma posição do bloco de esquerda sobre o mesmo assunto, tentando explicar tecnicamente uma ou duas coisas essenciais na discussão sobre fogos e biodiversidade.
Mas que esta resolução tenha sido aprovada por todos os deputados menos os do PS (calculo que por mera partidarite é que os votos se dividem assim) é uma coisa extraordinária.
Vejamos.
O Srs. Deputados, que têm larga maioria na Assembleia, aprovam uma resolução que defende "1 — A revisão radical e global das políticas para as áreas protegidas, nomeadamente das que suportam e enformam a elaboração dos planos de ordenamento e enquadram a sua gestão".
A minha pergunta é: sendo esta matéria uma questão de enquadramento legal, e sendo a Assembleia o poder legislativo, o que impede os Srs. Deputados de simplesmente aprovarem um diploma que materialize o que recomendam ao Governo que faça? Nada, a não ser evidentemente o facto dos Srs. Deputados não estarem interessados em concretizar o que querem que se faça.
A resolução defende: "a) O aproveitamento pleno de todas as potencialidades das áreas protegidas a favor dos seus residentes, que devem ser os primeiros e principais destinatários das políticas públicas para os parques naturais". Como? As áreas protegidas têm como missão favorecer os seus residentes? Estou a ver, como os Srs. Deputados estão muito à frente e entendem que as políticas de conservação dos valores naturais devem ser feitas transversalmente, acham que todos os ministérios e o poder local estão focados na promoção e conservação dos valores naturais. Assim sendo, alguém tem de facto de defender as populações locais, completamente desprotegidas face ao avassalador peso da conservação do património natural nas políticas públicas levadas a cabo por toda a administração, com excepção da direcção das áreas protegidas. Estou mesmo a ver o PCP, que propôs a resolução, a defender que o objectivo das políticas públicas que têm como objecto conservar o mosteiro da Batalha é favorecer os herdeiros dos frades que o habitaram e foram expulsos, porque o relevante no mosteiro da Batalha são as suas populações residentes e não o património. Percebo. E percebo tanto melhor quanto me lembro de ter visitado o parque nacional de Plitvice, ainda no tempo em que a Juguslávia era governada pelo Partido Comunista, onde deixaram uma aldeia cheia de funcionários a fingir de aldeãos, e expulsaram todo o resto da população residente (à semelhança de muitas outras áreas protegidas pelo mundo) para garantir a conservação dos valores naturais (aliás deslumbrantes).
A resolução defende: "b) Condicionar qualquer novo agravamento das limitações ou restrições das actividades económicas, sociais ou outras, pondo em causa a exploração de potencialidades e recursos do território, com excepção das que sejam livre e claramente negociadas com as comunidades locais; caminhar no sentido da redução e simplificação dos actuais e exagerados pedidos de autorizações e licenciamentos nas actividades dos moradores;". Faz sentido. Uma área protegida mas que não proteja, portanto. Se uma pedreira destrói um algar único em Portugal (quiçá no mundo), era o que mais faltava que a actividade fosse condicionada por esse pequeno pormenor sem o acordo do dono da pedreira ou da comissão de compartes que recebe a renda da pedreira em causa. Áreas protegidas sim, mas desde que essa protecção não afecte as actividades que, por afectarem o património a proteger, motivam a criação da área protegida.
A resolução defende: "e) Estabelecer compensações para impedimentos — proibições, limitações ou condicionamentos — no uso e exploração de recursos e potencialidades do território (na agricultura, energia, cinegética e outros. A eliminação de fontes de receitas e emprego às comunidades ou aos cidadãos, ou acrescentando custos às actividades económicas e sociais, deve ser ressarcida/compensada pelo Estado, inclusive com benefícios fiscais. Se um País quer ter áreas protegidas, tem de suportar solidariamente com dinheiros públicos, de todos os contribuintes, os seus custos. Não podem ser um encargo exclusivo dos que moram nesse território;". Não tenho dúvidas de que os Srs. Deputados, que têm larga maioria, vão aproveitar a oportunidade da discussão do orçamento do Estado para levarem estas ideias à prática. Têm razão. Onde já se viu interditar a caça ou a extracção de areias dos leitos dos rios ou condicionar a licença para eólicos e barragens em áreas de elevado valor de conservação? Que ideia mais estúpida. O adequado é que alguém proponha uma barragem catastrófica para o património natural e que o seu chumbo obrigue todos os contribuintes a ressarcir cada um dos residentes na área protegida pelo que poderiam ter ganho e não ganharam. Mais ou menos como se o Estado adoptasse a ideia de ressarcir os ladrões de bancos pelos facto da polícia os frustrar. Uma espécie de indemnização por lucros vincendos mas sem que exista actividade prévia que sustente a possibilidade desses lucros.
A resolução defende, por causa dos fogos: "b) Incremento da actividade agrícola e da pastorícia, para diminuição do coberto vegetal e favorecer a realização das queimadas em condições e períodos adequados, disponibilizando para isso os recursos humanos necessários sempre que solicitados; considerar a instalação de centrais de biomassa com localização e dimensão adequada às disponibilidades das áreas protegidas;" Finalmente. Valeu a pena esperar tantos anos para ver o PCP reconhecer que é inaceitável que 11% dos fundos para o mundo rural sejam afundados em Alqueva, pelo que vai elaborar uma proposta para a sua reafectação para suporte da agricultura produtora de biodiversidade. Sem ironia é para mim muito gratificante ver o PCP (e com ele o Bloco, o PSD e o CDS) abandonar a lógica produtivista do apoio ao mundo rural e aderir às teses de pagamento de serviços ambientais que há muito tempo os ambientalistas reclamam. Oh, happy day.
E com esta me calo, que me pode faltar tema para fazer posts e esta resolução da Assembleia da República é muito fecunda em posts leves para a etiqueta humor.
Uma coisa é evidente para mim: os Srs. Deputados estão em inteira sintonia com o freak da Cantareira: "a vida só tem um problema/ o ácido com muita estriquinina". Outra coisa no entanto ainda precisa de ser esclarecida: ainda andam com ela na algibeira, ou uma boa parte já a conseguiu implantar directamente no cérebro?
henrique pereira dos santos
É certo que, por causa de resoluções como esta, as resoluções da Assembleia da República não valem o papel em que são impressas. Não vou perder tempo a discutir as consequências de alguém levar a sério esta resolução porque seria discutir o absurdo.
Mas vale a pena discutir o que esta resolução (e a sua aprovação por esmagadora maioria) significa do ponto de vista do que é hoje, partidariamente, a política de conservação da natureza.
Aqui há tempos, comentei uma posição do bloco de esquerda sobre o mesmo assunto, tentando explicar tecnicamente uma ou duas coisas essenciais na discussão sobre fogos e biodiversidade.
Mas que esta resolução tenha sido aprovada por todos os deputados menos os do PS (calculo que por mera partidarite é que os votos se dividem assim) é uma coisa extraordinária.
Vejamos.
O Srs. Deputados, que têm larga maioria na Assembleia, aprovam uma resolução que defende "1 — A revisão radical e global das políticas para as áreas protegidas, nomeadamente das que suportam e enformam a elaboração dos planos de ordenamento e enquadram a sua gestão".
A minha pergunta é: sendo esta matéria uma questão de enquadramento legal, e sendo a Assembleia o poder legislativo, o que impede os Srs. Deputados de simplesmente aprovarem um diploma que materialize o que recomendam ao Governo que faça? Nada, a não ser evidentemente o facto dos Srs. Deputados não estarem interessados em concretizar o que querem que se faça.
A resolução defende: "a) O aproveitamento pleno de todas as potencialidades das áreas protegidas a favor dos seus residentes, que devem ser os primeiros e principais destinatários das políticas públicas para os parques naturais". Como? As áreas protegidas têm como missão favorecer os seus residentes? Estou a ver, como os Srs. Deputados estão muito à frente e entendem que as políticas de conservação dos valores naturais devem ser feitas transversalmente, acham que todos os ministérios e o poder local estão focados na promoção e conservação dos valores naturais. Assim sendo, alguém tem de facto de defender as populações locais, completamente desprotegidas face ao avassalador peso da conservação do património natural nas políticas públicas levadas a cabo por toda a administração, com excepção da direcção das áreas protegidas. Estou mesmo a ver o PCP, que propôs a resolução, a defender que o objectivo das políticas públicas que têm como objecto conservar o mosteiro da Batalha é favorecer os herdeiros dos frades que o habitaram e foram expulsos, porque o relevante no mosteiro da Batalha são as suas populações residentes e não o património. Percebo. E percebo tanto melhor quanto me lembro de ter visitado o parque nacional de Plitvice, ainda no tempo em que a Juguslávia era governada pelo Partido Comunista, onde deixaram uma aldeia cheia de funcionários a fingir de aldeãos, e expulsaram todo o resto da população residente (à semelhança de muitas outras áreas protegidas pelo mundo) para garantir a conservação dos valores naturais (aliás deslumbrantes).
A resolução defende: "b) Condicionar qualquer novo agravamento das limitações ou restrições das actividades económicas, sociais ou outras, pondo em causa a exploração de potencialidades e recursos do território, com excepção das que sejam livre e claramente negociadas com as comunidades locais; caminhar no sentido da redução e simplificação dos actuais e exagerados pedidos de autorizações e licenciamentos nas actividades dos moradores;". Faz sentido. Uma área protegida mas que não proteja, portanto. Se uma pedreira destrói um algar único em Portugal (quiçá no mundo), era o que mais faltava que a actividade fosse condicionada por esse pequeno pormenor sem o acordo do dono da pedreira ou da comissão de compartes que recebe a renda da pedreira em causa. Áreas protegidas sim, mas desde que essa protecção não afecte as actividades que, por afectarem o património a proteger, motivam a criação da área protegida.
A resolução defende: "e) Estabelecer compensações para impedimentos — proibições, limitações ou condicionamentos — no uso e exploração de recursos e potencialidades do território (na agricultura, energia, cinegética e outros. A eliminação de fontes de receitas e emprego às comunidades ou aos cidadãos, ou acrescentando custos às actividades económicas e sociais, deve ser ressarcida/compensada pelo Estado, inclusive com benefícios fiscais. Se um País quer ter áreas protegidas, tem de suportar solidariamente com dinheiros públicos, de todos os contribuintes, os seus custos. Não podem ser um encargo exclusivo dos que moram nesse território;". Não tenho dúvidas de que os Srs. Deputados, que têm larga maioria, vão aproveitar a oportunidade da discussão do orçamento do Estado para levarem estas ideias à prática. Têm razão. Onde já se viu interditar a caça ou a extracção de areias dos leitos dos rios ou condicionar a licença para eólicos e barragens em áreas de elevado valor de conservação? Que ideia mais estúpida. O adequado é que alguém proponha uma barragem catastrófica para o património natural e que o seu chumbo obrigue todos os contribuintes a ressarcir cada um dos residentes na área protegida pelo que poderiam ter ganho e não ganharam. Mais ou menos como se o Estado adoptasse a ideia de ressarcir os ladrões de bancos pelos facto da polícia os frustrar. Uma espécie de indemnização por lucros vincendos mas sem que exista actividade prévia que sustente a possibilidade desses lucros.
A resolução defende, por causa dos fogos: "b) Incremento da actividade agrícola e da pastorícia, para diminuição do coberto vegetal e favorecer a realização das queimadas em condições e períodos adequados, disponibilizando para isso os recursos humanos necessários sempre que solicitados; considerar a instalação de centrais de biomassa com localização e dimensão adequada às disponibilidades das áreas protegidas;" Finalmente. Valeu a pena esperar tantos anos para ver o PCP reconhecer que é inaceitável que 11% dos fundos para o mundo rural sejam afundados em Alqueva, pelo que vai elaborar uma proposta para a sua reafectação para suporte da agricultura produtora de biodiversidade. Sem ironia é para mim muito gratificante ver o PCP (e com ele o Bloco, o PSD e o CDS) abandonar a lógica produtivista do apoio ao mundo rural e aderir às teses de pagamento de serviços ambientais que há muito tempo os ambientalistas reclamam. Oh, happy day.
E com esta me calo, que me pode faltar tema para fazer posts e esta resolução da Assembleia da República é muito fecunda em posts leves para a etiqueta humor.
Uma coisa é evidente para mim: os Srs. Deputados estão em inteira sintonia com o freak da Cantareira: "a vida só tem um problema/ o ácido com muita estriquinina". Outra coisa no entanto ainda precisa de ser esclarecida: ainda andam com ela na algibeira, ou uma boa parte já a conseguiu implantar directamente no cérebro?
henrique pereira dos santos
sexta-feira, novembro 12, 2010
"O recuo da floresta autóctone é um facto"
Do livro sobre fogos florestais de Santos Pereira, José Miguel Cardoso Pereira, Francisco Rego e outros
Um dia destes no comboio vi umas imagens deste programa. Resolvi ouvir em casa.
Achei extraordinária a quantidade de disparates por minuto, sempre com óptimas intenções.
Achei extraordinária a quantidade de disparates por minuto, sempre com óptimas intenções.
É fantástico como se negam as evidências (diz alguém do Soajo, "daqui nem parece, mas indo lá é que se vê que não há um erva para os animais comerem", como se a câmara não estivesse a filmar ervas e ervas e ervas).
É extraordinário como Miguel Dantas da Gama diz o mesmo há mais de vinte anos, com a realidade a desmenti-lo ano após ano, como quando diz que naquele sítio estava regeneração natural, azevinhos, carvalhos, esquecendo-se de referir que há bem poucos anos também por ali andou o fogo, desmentindo assim as suas teorias sobre o efeito do fogo, sem que isso o afecte ou afecte a credibilidade do que diz sobre fogos.
Nem o facto de andar no monte horas atrás de horas o impede de dizer a frase que uso para título do post, que é factualmente falsa.
José Maria Saraiva acha que é a centralização do poder em Lisboa que provoca o abandono do mundo rural.
Felizmente Pedro Vieira e Rui Rodrigues põem algum senso nos discursos catastrofistas completamente errados e sem a menor demonstração empírica.
Espanta-me que uma pessoa com tantas horas de campo como Miguel Dantas da Gama não veja a realidade, mas isso não me incomoda, sei que a paixão cega.
Mas os jornalistas? Mas os responsáveis pelo programa?
henrique pereira dos santos
É extraordinário como Miguel Dantas da Gama diz o mesmo há mais de vinte anos, com a realidade a desmenti-lo ano após ano, como quando diz que naquele sítio estava regeneração natural, azevinhos, carvalhos, esquecendo-se de referir que há bem poucos anos também por ali andou o fogo, desmentindo assim as suas teorias sobre o efeito do fogo, sem que isso o afecte ou afecte a credibilidade do que diz sobre fogos.
Nem o facto de andar no monte horas atrás de horas o impede de dizer a frase que uso para título do post, que é factualmente falsa.
José Maria Saraiva acha que é a centralização do poder em Lisboa que provoca o abandono do mundo rural.
Felizmente Pedro Vieira e Rui Rodrigues põem algum senso nos discursos catastrofistas completamente errados e sem a menor demonstração empírica.
Espanta-me que uma pessoa com tantas horas de campo como Miguel Dantas da Gama não veja a realidade, mas isso não me incomoda, sei que a paixão cega.
Mas os jornalistas? Mas os responsáveis pelo programa?
henrique pereira dos santos
terça-feira, novembro 02, 2010
Ridículo
Li esta notícia do DN e fiquei de boca aberta (na versão em papel é ainda mais absurda).
""O fogo controlado é uma técnica que tem vindo a ser usada em Portugal desde 2005 e permite a gestão dos combustíveis e da paisagem nas florestas", explicou ao DN Miguel Galante, adjunto do secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural."
Li uma vez, li outra vez, verifiquei se por acaso não me tinha escapado nada, e concluí que não, que realmente um tal Miguel Galante tem a distinta lata de dizer que o fogo controlado (repare-se a data e origem deste manual de fogo controlado) em Portugal foi inventado por este Governo (camarada, se aprofundar a coisa, vai ver que provavelmente até o domínio do fogo é uma descoberta de Sócrates, o actual).
""Já em 2006 trouxemos alguns peritos dos EUA para dar formação a um grupo de técnicos da Associação Florestal Nacional, Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade e organizações de produtores florestais", diz Miguel Galante."
Imagino o que diria o Moreira da Silva se fosse vivo, e a gargalhada do Komarek, se cá voltasse.
"A savana não é a floresta portuguesa, mas para a Navashni Govender - aliás, uma especialista que vai trabalhar também no fogo controlado em Portugal - o facto de termos uma floresta mais densa não prejudica esta técnica."
A mesma ideia ridícula de sempre: o que precisamos é de estrangeiros que aqui o pessoal não pesca nada disto.
Nada contra estrangeiros, bem pelo contrário, mas não seria mais simples falarem com o Paulo Fernandes ou com do Francisco Rego ou com o Domingos Xavier, que têm horas e horas de fogo controlado nas nossas condições, em vez de contratarem uma sul-africana que trabalha nas savanas do Kruger Park?
Para conferências, óptimo, para troca de experiências e discussão académica, óptimo, mas para fazer e ensinar a fazer?
Ridículo.
Eu espero que tenha sido só o jornalista que se tenha esquecido de fazer o trabalho de casa e percebido mal o que lhe disseram.henrique pereira dos santos
sexta-feira, outubro 29, 2010
Da realidade e da autoridade
Esta fotografia foi tirada por mim há oito dias numa propriedade da Altri, uma das duas celuloses que existem em Portugal. Gostaria de fazer notar que a notável galeria ripícola que se vê à direita se prolonga por cerca de oito quilómetros, gerida pela Altri com objectivos de conservação. Na baixa que se vê à esquerda foram retirados os eucaliptos da primeira florestação (penso que nos anos 80), tendo sido plantados freixos (eu tenderia a preferir a evolução natural). Nesta propriedade a entrega destas baixas, tradicionalmente agricultadas, à conservação é uma opção sistemática que permitirá que a mata ripícola ocupe de novo as baixas aluvionares que lhes pertenciam há séculos atrás (situação raríssima no Portugal actual). Em cima à esquerda reconhece-se o caminho que separa a área de conservação da área de produção intensiva de eucalipto. Esta baixa tinha (e ainda tem) uma forte infestação de exóticas invasoras (a mancha mais clara que encosta à galeria ripícola é bambu, por exemplo) que está a ser controlada pela gestão. Voltarei a fotografias desta visita um dia destes. Declaração de interesses: colaboro profissionalmente com a Altri
Jorge Paiva é um botânico conhecido e reconhecido, com uma longa história de activismo ambiental, a quem o movimento ambientalista deve estar reconhecido.
Apesar disso, ou melhor, especialmente por isso, não quero deixar passar em branco algumas afirmações feitas no contexto de uma série de artigos sobre biodiversidade patrocinados pelo BES, publicados às quintas feiras no Público.
Uma derivação para a curiosa forma como surgem esses artigos, em que textos claramente da responsabilidade do jornal intercalam com textos claramente da responsabilidade do BES.
O texto que quero comentar é claramente da responsabilidade do jornal, e especificamente do jornalista Nicolau Ferreira, que não conheço e cuja fidelidade ao que é dito não sei avaliar.
Mas conheço Jorge Paiva, cruzamo-nos aliás com frequência no comboio das seis da manhã, e reconheço no que li algumas constantes do seu discurso público sobre as matas em Portugal: uma glorificação constante de um mítico passado de gestão das matas no tempo dos serviços florestais; uma amargura constante face a um futuro que é sempre negro; uma caracterização do presente que é sempre mais negra que a realidade. E uma profunda desatenção ao que é feito em concreto na gestão das matas de produção e às alterações sócio-económicas que estão a transformar a natureza dos problemas de conservação em Portugal.
Ficam por isso algumas notas ao artigo em causa, porque continuo convencido de que é preciso combater o excesso de catastrofismo no discurso ambientalista dominante.
"Eu não digo isto aos miúdos, mas para mim a floresta portuguesa não tem salvação".
"Eu não digo isto aos miúdos, mas para mim a floresta portuguesa não tem salvação".
Não preciso de conhecer o jornalista para saber que esta frase traduz fielmente Jorge Paiva. Com dezenas de variações ouvi-a constantemente em todas as intervenções públicas que tem feito.
Mas é uma frase cuja fundamentação é muitíssimo frágil, sendo em alguns aspectos assente em pressupostos errados, revelando uma falta de rigor que sempre me intrigou no discurso de Jorge Paiva, por não bater certo com sua reconhecida carreira académica.
""Ficaram mais castanheiros, porque o carvalho foi mais cortado", esclarece o botânico. Para ver carvalhais é preciso ir à serra do Gerês ou à de Montezinho. "O nosso país não tinha pedra à mostra (como as serras despidas). Quando a floresta é incendiada ou derrubada, todo o solo vai embora."".
Este parágrafo é extraordinário como ilustração da falta de rigor do discurso catastrofista. Jorge Paiva e o jornalista estão na Margaraça, sempre tratada como um paraíso florestal selvagem em todo o artigo, mas que ardeu várias vezes nos últimos anos, sendo o mais extenso e violento incêndio em 1987, numa demonstração evidente de que a afirmação feita sobre os efeitos do fogo não tem correspondência na realidade (o artigo aliás fala também na Arrábida, outro exemplo documentado de recuperação total após fogo).
Mas se as ideias sobre os efeitos do fogo em matas maduras são mais controversas, o que seguramente não faz o menor sentido é dizer que quem quer ver carvalhais tem de ir ao Gerês e a Montezinho (dou aqui de barato a imprecisão geográfica de se considerar como incluída na expressão "Montezinho", também a Nogueira e outras áreas próximas de Montezinho, visto que a não ser assim a frase seria de uma ignorância que evidentemente Jorge Paiva não tem).
Hoje o carvalhal recupera inegavelmente em todo o país. E se até há pouco tempo essa recuperação era menos visível a escalas mais abrangentes, hoje é o recente inventário florestal que a reconhece à escala do país.
Por último, a ideia de que o país não tinha pedra à mostra é uma ideia que carece que ser contextualizada no tempo. É que para sustentar a ideia de que floresta em Portugal não tem futuro era preciso que esta ideia fosse verdadeira nas décadas anteriores, digamos, nos dois séculos anteriores. Sem a contextualização temporal que remete a ideia de que o país não tinha pedra à mostra para largas centenas de anos atrás, a ideia é pura e simplesmente uma mistificação.
Simplesmente não é verdade para os últimos dois séculos, sendo hoje o grau de cobertura do solo incomparavelmente maior que há 50/ 100 anos atrás.
"Porque é que não acredita que vamos conseguir manter isto? "Há alguma preocupação, mas não vejo meios eficazes, em Portugal muito menos. Criamos reservas, mas estão cada vez mais deterioradas, com menos pessoal, mais incêndios e muita pressão imobiliária."".
Aqui está a explicação. A ideia de que a conservação é uma questão de reservas e recursos alocados pelo Estado. A ideia de avaliar a conservação em função do esforço do Estado em retirar ao processo produtivo pedaços do território, em detrimento de uma compreensão dos mecanismos económicos que produzem riqueza e biodiversidade, é a génese do pessimismo de Jorge Paiva, que o leva inclusivamente a perder o rigor de análise que procurei demonstrar acima, quando esquece os processos de evolução das paisagens (com destaque para uma incompreensível diabilização do fogo que qualquer das avaliações científicas feitas até hoje por equipas de botânicos não suporta).
Uma ideia comum.
Mas errada.
henrique pereira dos santos
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terça-feira, outubro 19, 2010
Previsões certas e erradas
O gráfico acima, traduz na sua parte final, a entrada de uns dias de vento Leste, desde este fim de semana até amanhã ou quinta feira, e confirma a previsão feita na legenda do primeiro gráfico publicado neste post.
Depois do fim de semana de 9 e 10 de Outubro, em que choveu todo o dia em todo o território, o que deu origem a dois raros dias seguidos sem um único fogo, tivemos uma semana com fogos a começar na dezena (chuva aqui e ali mas menos persistente que no fim de semana), que rapidamente passam para o patamar dos trinta a quarenta fogos diários quando pára a chuva. O vento Leste começa a fazer-se sentir no Domingo, segunda o número de fogos subiu para 65 (mais de 50% de aumento num dia) e ontem, terça, foram 100 fogos. Veremos o que nos espera o resto desta semana, se a previsão de vento Leste se concretizar até quarta ou quinta.
Algumas notas:
1) Como mais uma vez se comprova, o vento Leste é uma espécie de potenciador das condições existentes, favorável ao fogo. Ou seja, por si só não representa um risco de especial, mas induz um risco maior de fogo às condições existentes, seja em que altura do ano for. Para mim é incompreensível que não entre formalmente na avaliação de risco que é feita.
2) Ao contrário do que era a minha previsão, o número de fogos nocturnos não voltou à percentagem de trinta a 45% onde esteve na grande parte do Verão para o qual existe informação. As fracas condições de propagação podem ser as responsáveis por isso, havendo uma diminuição das ignições diferidas, que é a minha explicação principal para os fogos nocturnos. É um chamado "educated guess" não é uma conclusão com base em dados empíricos. Outra explicação possível são as características amplitudes térmicas dos episódios de vento Leste de Outono/ Inverno, com noites francamente frias e mais húmidas que contrastam com os dias bastante solarengos, luminosos e secos. Mas o que é lógico não é necessariamente verdadeiro, pelo que mais informação empírica seria aqui necessária.
3) Nas estatísticas fornecidas pela protecção civil verifica-se que durante a semana anterior, em dias com trinta e tal fogos, havia mais de dez intervenções de meios aéreos, apesar de ter chovido abundantemente há menos de uma semana, o que ajuda a explicar por que razão gastamos agora 100 milhões anuais em vez dos trinta milhões de há cinco anos. Ontem, para 100 fogos, não houve intervenções de meios aéreos. Espera-se que esta opção corresponda a uma correcção táctica perfeitamente justificável. O ataque inicial com meios aéreos é caríssimo (e, já agora, ambientalmente desastroso no consumo de recursos) e parece-me incompreensível que para condições gerais de fácil extinção e progressão lenta dos fogos, como são as actuais, pese embora o vento Leste, se estejam a desperdiçar recursos em meios aéreos. Acresce que arder nesta altura, com estas temperaturas e com vento fraco, não é problema nenhum, a menos que existam valores como casas, povoamentos, infra-estruturas, em risco real. A doutrina táctica deveria ser adaptada a estas condições e não manter a obsessão da extinção no menor tempo possível. Essa é uma das razões pelas quais a área ardida é um péssimo indicador. Nas actuais condições, os fogos trazem mais benefícios que prejuízos, apesar de não serem fogos controlados, e representam poderosos instrumentos de gestão de combustíveis, pelo que o papel do dispositivo de combate aos incêndios deveria ser simplesmente o de conduzir o fogo em função dos valores presentes, e não o de o extinguir. Com algum risco se poderá dizer que, nestas condições, quanto mais arder, sobretudo fora de povoamentos, melhor ficaríamos preparados para os dias de condições verdadeiramente difíceis.
henrique pereira dos santos
domingo, outubro 17, 2010
Relatórios ou panfletos?
O que tem acontecido desde Julho. Repare-se como os fogos nocturnos se mantêm sempre, sugerindo que não são maioritariamente fogo posto, mas que resultam das condições gerais que dão origem aos fogos diurnos. Nesta próxima semana é natural que se dê um saltinho no número de fogos diários e se isso acontecer, o mesmo se verificará nos fogos nocturnos.
A Autoridade Florestal Nacional publica regularmente uns relatórios de ponto de situação dos fogos.
O último, já incluindo todo Setembro, pode ser lido aqui. Mas não é muito aconselhável para quem procura informação e não propaganda.
Porque a forma como a informação e a comunicação é gerida em matéria de fogos influencia muito as opções políticas (ou eu li mal, ou a Autoridade de Protecção Civil, depois de ter dado um salto dos 30 milhões para 100 milhões nestes últimos cinco anos, ainda vai ter um aumento de orçamento, apesar do aperto generalizado das contas públicas) achei por bem fazer uma leitura mais exigente deste relatório.
"Da análise do histórico (Quadro 1), constata-se que o total de ocorrências contabilizado até 30 de Setembro (20.927) é próximo do valor médio do decénio 2000-2009 (22.474). Apesar disso, o total de área ardida é cerca de 87% da média dos 10 anos anteriores (-18.577ha). A área ardida até à data é inferior em três dos dez anos da última década (2000, 2003 e 2005)."
Este é o último parágrafo do sumário executivo do dito relatório e subentendida fica a ideia de que se trabalhou bem porque houve mais fogos mas a área ardida foi menor. E aliás foi menor que a média dos últimos dez anos. E na última frase, um erro crasso de português, permite supôr que apenas em três dos anos do último decénio a área ardida foi inferior à deste ano.
Com a verdade (em rigor, meia verdade, porque a última frase ou é um erro de português ou é mentira, visto que o que traduziria a realidade era a frase corrigida "A área ardida até à data é inferior à de três dos dez anos da última década (2000, 2003 e 2005)") me tentas enganar tu, dir-se-ia.
O facto de serem mais ou menos fogos interessa muito pouco, porque dos mais de vinte mil fogos registados, apenas 169 (os grandes incêndios) são responsáveis por quase 80% da área ardida. Ou seja, o que seria importante comparar era se o número de grandes fogos aumenta ou diminui e se a área ardida nesses grandes fogos aumenta ou diminui (quer na área média por fogo, quer no peso total da área ardida no ano), o que poderia dar alguma indicação de um dispositivo capaz de responder às condições em que esses fogos, que são os que realmente contam, se desenvolvem.
Mas sobre isso o relatório diz nada.
"Comparativamente com os últimos 11 anos, o valor acumulado do DSR (índice de severidade diário) no ano de 2010 mantém-se superior ao valor registado em 2003 e 2006 e apenas inferior a 2005, conforme se verifica na Figura 2."
Este ano esta frase tem sido um must da propaganda à volta dos fogos. O que do alto de uns índices fantásticos, baseados no índice canadiano (pessoas sérias e sabedoras) e produzido pelo Instituto de Meteorologia (tudo muito científico, claro), nos querem convencer é que este ano foi terrível para os fogos, do ponto de vista meteorológico, mesmo pior que o ano de 2003, em que ardeu quatro vezes mais que o normal.
É uma tentativa pueril de atirar areia para os olhos das pessoas.
Na realidade o ano não foi fácil, mas está longe de ter sido um ano excepcional do ponto de vista do risco de fogo, o vento nunca soprou forte, o número de dias seguidos de vento Leste nunca foi muito grande e as zonas que arderam são zonas muito povoadas, onde há descontinuidade de combustiveis.
Mas o extraordinário é olhar mesmo para o gráfico que publico, onde se comparam os anos desde 2000, incluindo a média (que o relatório faz questão de dizer que é maior que a área ardida este ano, esquecendo-se de explicar que 2003 e 2005 desvalorizam esta média), mas também a mediana (que traduz muito melhor a verdadeira posição do valor da área ardida deste ano, que é superior à mediana, embora com pouco significado) e ainda o objectivo político com base no qual o dinheiro para o dispositivo de combate aos fogos foi muito aumentado.
A área ardida é um mau indicador mas qualquer que seja a perspectiva, a verdade é que o princípio estratégico em que assenta o dispositivo de combate aos fogos (apagar os fogos em fase nascente, pelo que todos os esforços para chegar ao fogo o mais rapidamente possível são justificados) está errado. Esse princípio pressupõe que apagando os fogos no seu início se resolvem grande parte dos problemas. Ora o que esse princípio consegue é resolver os vinte mil fogos que não são um problema e esgotar os recursos sem resolver os 200 que de facto fogem do controlo e dão origem a 80% da área ardida.
Estamos onde estávamos há cinco anos, com a diferença de que gastamos 100 milhões de euros onde gastávamos 30 milhões.
henrique pereira dos santos
sábado, outubro 16, 2010
Fogos e biodiversidade
Dois eventos, mais ou menos filhos da iniciativa Business and Biodiversity e do ano internacional da biodiversidade, tocam o assunto dos fogos e biodiversidade.
Já na quarta feira 27 de Outubro que o assunto é trazido pelas conferências do BES, onde uma especialista em ecologia do fogo, do Kruger Park, fará uma conferência comentada por Francisco Rego.
Depois em 5 de Novembro a Portucel organiza o seu seminário internacional 2010 com o tema "Biodiversidade, um valor com futuro", em que falarei de fogos e biodiversidade.
henrique pereira dos santos
terça-feira, setembro 28, 2010
Rio morto no Ramiscal
João Dias descreve aqui a discussão havida sobre os efeitos do fogo no Ramiscal.
Descreve a discussão havida neste post de forma muito imprecisa.
Por exemplo, João Dias indigna-se por se chegar "a apostar almoços em como existem trutas na sua baçia a montante de Avelar,pois a partir dai é que é considerado o Ramiscal" quando simplesmente sugeri uma sessão de pesca eléctrica para verificar se o rio está ou não morto (sim, com uma aposta de um almoço para quem quiser fazer essa discussão na base da verificação objectiva).
O post de João Dias tem algum informação relevante (é o caso da trovoada após fogo, já mais que identificada, mas cujos efeitos terão sido bastantes atenuados com a chuvinha miudinha logo após o fogo, por volta do meio de Agosto, mais que suficiente para desencadear uma rápida cobertura do solo por ervas. De qualquer maneira os efeitos da trovoada podem ser importantes mas serão sempre muito limitados no tempo) mas tem muita informação imprecisa e improvável, como por exemplo, trutas como moscas em zonas do rio de baixa produtividade (ouço isso desde que falo com pessoas mais velhas sobre rios truteiros, há anos que ouço dizer que antigamente é que era bom).
Aliás lendo outros posts verificamos o mesmo tipo de imprecisão, por exemplo, dizendo nuns posts que os carvalhos nunca recuperaram do fogo de 2006 e noutro que o carvalho da fotografia resistiu ao fogos porque os carvalhos são muito resistentes.
Mas ainda que assim fosse, era preciso explicar como uma eventual afectação temporário do rio por entrada de cinzas (que dificilmente ainda estarão a influenciar as condições do rio, quatro anos passados sobre um fogo que nem sequer penetrou nas áreas mais relevantes da mata) implicaria o desaparecimento total de trutas que antes eram como moscas a montante da área ardida (as boas fotografias do bolg, noutros posts e neste, são um bom testemunho de como dificilmente o efeito das cinzas se estenderia por quatro anos, excepto admitindo a hipótese que está subjacente ao post: morreu tudo e não houve recuperação, hipótese bastante implausível de acordo com o que se sabe da recuperação deste tipo de sistemas).
A minha sugestão mantém-se de pé: em vez do estafados argumentos do conheço melhor a área que tu, vou lá mais vezes que tu, eu sei mais do assunto que tu, passei mais horas que tu a palmilhar o terreno, e etc., bastante usados neste tipo de conversa, organizemo-nos para umas sessões de pesca eléctrica nos pontos do rio que quiserem (e em que formos autorizados).
Vamos atrás do dados, em vez de ficarmos por jogos florais.
A conservação ganharia muito em que as discussões se fizessem mais sobre informação objectiva e verificável que sobre a confiança que cada deposita em informação pessoal não verificável.
henrique pereira dos santos
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sexta-feira, setembro 24, 2010
A reestruturação do ICNB e os fogos nas áreas protegidas
Por razões que não comprendo, há quem ache que as áreas ardidas deste ano têm alguma ligação com a reestruturação do ICNB.
É o caso da deputada Rita Calvário, parece ser o caso da jornalista Mariana Oliveira que insiste, por interpostas pessoas, em levantar a questão nas notícias que faz sobre o assunto.
A verdade é que a meio de Agosto ainda ninguém falava da reestruturação como tendo a menor ligação com o assunto (releia-se esta curiosa notícia com o que hoje se sabe, para se ter a noção de como o discurso sobre os fogos é um discurso completamente centrado na propaganda em que a cada momento as interpretações se adaptam aos números do momento)
A dúvida compreender-se-ia se as áreas protegidas não ardessem antes da reestruturação e passassem a arder depois.
Bastaria dar um saltinho ao site do ICNB e olhar para o último relatório sobre incêndios (basta procurar no google, para o caso das pessoas que não sabem que o ICNB até tem muita informação no seu site, incluindo o número de telemóveis de muitos dos responsáveis envolvidos nos fogos, em relatórios de anos anteriores):
A conclusão é inequívoca: nada nos números permite supôr que alguma coisa de anormal se passa após a reestruturação (feita em 2007). De facto os números até agora andam por ordens de grandeza semelhantes aos anos de 1998, 2000, 2001 e 2006, sendo substancialmente inferiores a 2005 e 2003, mesmo referindo, com cautela, que até ao lavar dos cestos é vindima e ainda falta muito tempo para 2010 acabar.
Mas como é habitual nas discussões sobre fogos, a verificação empírica é substituída por relações lógicas à medida das conclusões que se pretendem transmitir (por isso se chega ao ridículo de dizer que os fogos nas áres protegidas são consequência do divórcio entre o ICNB e as populações locais).
Analisemos essas putativas relações lógicas.
Diz, diletante e ignorante, a Sr.ª Deputada que:
"Em 2007 decidiu-se fundir as áreas protegidas em 5 mega-agrupamentos com a criação de novos cargos de direcção intermédia e a redução substancial do pessoal técnico e administrativo, como é o caso dos vigilantes da natureza." e que "Também no mesmo ano, decidiu o Ministério reorganizar o ICNB, conferindo-lhe a natureza de instituto público e, consequentemente, a obrigatoriedade de ter de assegurar 2/3 de receitas próprias relativamente às despesas totais".
E depois, falando de 2008 e do novo regime jurídico de conservação, que faz efectivamente parte da reorganização da política de conservação, a Sr.ª Deputada resolve delirar confundindo possibilidades previstas na lei com a realidade:
"opta-se claramente pela empresarialização da gestão das áreas protegidas, entregando-as à iniciativa privada através de concessões ou parcerias público-privadas e cobrando taxas pelo acesso e visitação do património natural público, mas também impondo taxas aos residentes e a quem aí desenvolve actividades económicas locais, como a pequena agricultura ou o turismo da natureza sustentável".
Ora esta ignorância (por exemplo, o estatuto de instituto público, com a consequente necessidade de 2/3 das receitas já vem, pelo menos, de 1993) associada ao delírio (não há nenhuma área protegida com a gestão concessionada), mais explícito no caso da Sr.ª Deputada mas muito frequente em pessoas que falam sobre fogos e áreas protegidas, não tem pés nem cabeça e, muito menos, qualquer relação com as áreas ardidas.
Eu trabalhei na reestruturação do ICNB.
E não tenho a menor dúvida de que a redução de custos era um objectivo, objectivo nobre aliás: o uso do dinheiro público, que inclui também os impostos pagos pelos mais pobres, é de enorme exigência ética e por isso obriga à procura permanente de soluções mais eficazes para a obtenção dos bens públicos que justificam a imposição de impostos à criação de riqueza (pleonasmo voluntário).
Mas também não tenho a menor dúvida de que essa reestruturação visava reduzir custos reforçando a eficácia da actuação dos meios do ICNB, medida pelos resultados a obter no que é a sua missão central: garantir a conservação do património natural.
A eficácia do ICNB não se mede nem pelo grau de conflitualidade com as populações locais, nem pelo seu contributo para o desenvolvimento (local ou não), nem pela qualidade da visitação das áreas protegidas.
Mede-se pela qualidade e eficácia na conservação do património natural.
O que não impede, bem pelo contrário, que nos instrumentos para essa qualidade e eficácia possam estar incluídas as boas relações com as populações locais, o contributo para a economia (local ou não), a qualidade da visitação e etc.. Mas convém não confundir opções instrumentais com a missão do ICNB.
A reestruturação não nasceu por alguém achar isto e aquilo, a reestruturação foi desenhada a partir de um diagnóstico sobre o funcionamento do ICNB, consensualmente deficiente, anterior a essa reestruturação.
A estrutura de gestão anterior do ICNB assentava numa rainha de Inglaterra a quem chamavam presidente, cujas funções se resumiam à representação e à distribuição do orçamento (fortemente condicionada) e numa confraria de mais de vinte directores de áreas protegidas que eram o verdadeiro poder dentro do ICNB, com territórios concretos, orçamentos cuja aplicação era praticamente inescrutinável, relações fortes com os poderes e a imprensa locais (naturalmente também com o aparelhismo partidário local), para além de mais não sei quantos dirigentes centrais cuja permanência em cargos de chefia dependia das boas relações que cultivavam com o aparelhismo partidário central e os diferentes grupos dentro da confraria dos directores de áreas protegidas. Há excepções a tudo isto, claro. Os dirigentes que mais tempo se mantinham nos mesmos lugares eram de maneira geral os mais incompetentes em matéria de gestão das áres protegidas, mas os mais competentes em usar os seus pequenos poderes para negociar apoios à sua permanência nos lugares.
A reestruturação liquida de facto este sistema com uma ideia clara: o comando e o controlo pertencem ao centro, a execução deve pertencer, com a maior autonomia possível, à periferia. Não conheço organização complexa eficaz que não adopte este princípio. Ao mesmo tempo reduz os interlocutores da presidência para números considerados limite em qualquer manual de gestão (sete pessoas com capacidade de gestã efectiva subordinadas é o limite de gestão eficaz, mais coisa, menos coisa).
A reestruturação pressupõe reforço do trabalho em rede, o que implica maior mobilidade e maior capacidade dos sistemas de informação (quer em hardware, quer em capacitação das pessoas). É fácil perceber que esta é uma condição essencial para o bom funcionamento de uma organização com competências tão horizontais como o ICNB e, ao mesmo tempo, tão dependente de conhecimento especializado.
A verdade é que não é possível ter um especialista em insectos em cada unidade orgânica do ICNB mas qualquer unidade orgânica pode ter necessidade de apoio especializado nesse domínio em qualquer altura.
O que está em causa é pois a optimização de meios técnicos muitos especializados.
Ao mesmo tempo seria importante o reforço da capacidade de intervenção no território, não só melhorando as equipas de vigilância como, sobretudo, pondo os vigilantes a fazer o que efectivamente lhes compete, em vez de ter trabalhadores rurais ou técnicos disfarçados de vigilantes, como sempre aconteceu e continua a acontecer.
A reestruturação é apenas um passo, que ao contrário do que se afirma, não reduz outros meios que não o número de dirigentes (libertando meios técnicos, comvém não esquecer), optimizando estruturas administrativas de apoio e criando equipas técnicas mais consistentes, mesmo se geograficamente dispersas.
Mas uma coisa é a reestruturação formal. Outra é a sua gestão concreta.
"Administrar um exército grande é, em princípio, igual a administrar um pequeno: é uma questão de organização.
Dirigir um exército grande é igual a dirigir uma tropa pequena: é uma questão de comando rígido e imparcial." (Sun Tzu, "A arte da Guerra").
Dirigir um exército grande é igual a dirigir uma tropa pequena: é uma questão de comando rígido e imparcial." (Sun Tzu, "A arte da Guerra").
Ora desde o início as ideias de gestão implícitas na reestruturação começaram a sofrer entorses.
Desde logo a distinção formal entre chefes de departamentos regionais (equiparados a sub-directores gerais, tal como os vice-presidentes do ICNB) e os chefes de departamentos centrais (equiparados a directores de serviço), criou uma assimetria hierárquica fatal (diz-se que esta alteração foi introduzida pelo então Ministro para garantir a possibilidade de nomear Henrique Miguel Pereira como Chefe do Departamento do Norte, porque os sub-directores gerais podem não ser funcionários do Estado e os chefes de serviço não, mas também pode ter sido porque se entende que os chefes de departamento regionais devem ser uma espécie de vice-presidentes do ICNB, antecipando a regionalização da administração da área da conservação, o que é um erro ainda maior que o do favorecimento ad hominem. Já agora, tive muitas discussões com Henrique Miguel Pereira mas isso não em impede de reconhecer o seu contributo positivo para a conservação e o ICNB enquanto esteve em funções no ICNB).
Depois todo o esforço de requalificação da mobilidade e das redes de informação foi abandonado.
E ainda, muito fortemente com a actual presidência, assumiu-se que os departamentos regionais eram uma espécie de autonomias espanholas, que deveriam definir as suas políticas de gestão e investimento, liquidando a ideia fundadora de que o comando (e o planeamento) cabe ao centro, e a execução, dentro do planeado, cabe à periferia.
Também por isso, e por ser essa a tradição no ICNB desde sempre, o reforço dos mecanismos de controlo, reporte e transparência na gestão, essenciais para que a autonomia seja virtuosa e não um reforço de capelinhas, foi totalmente abandonado.
E acresce a tudo isto o sistema de nomeações dos directores regionais, que acaba em três categoria principais de dirigentes: os que são nomeados para funções que desconhecem a absoluto por razões que também se desconhecem, os que tendo um curriculum em conservação e gestão nessa área são nomeações perfeitamente razoáveis (se têm bom ou mau desempenho, isso é outra discussão, até porque nem sempre depende inteiramente das pessoas envolvidas directamente) e os que têm curriculum na área da conservação e no ICNB que deixa um rasto inequívoco de incompetência e irresponsabilidade, mas cuja utilidade para quem os nomeia os recomenda para continuarem com responsabilidades para as quais são manifestamente impreparados.
Resumindo, a reestruturação em si mesma não é determinante para a qualidade de gestão (embora possa facilitar ou complicar) e é verdade que a gestão da reestruturação tem sido miserável e subordinada a objectivos que nada têm com a missão do ICNB, mas isso não tem rigorosamente nada com os fogos florestais, que aliás dependem muito menos da qualidade da gestão das áreas protegidas que da eficácia da gestão dos combustiveis.
O grave é que estes discursos que inventam problemas e relações lógicas onde não existem, e que têm forte expressão pública são excelentes para criar uma cortina de fumo sobre verdadeiros problemas de gestão (amiguismo, opacidade, incoerência na aplicação da lei, ilegalidade no funcionamento da instituição, desinvestimento em aspectos estruturais, investimentos em elefantes brancos e inutilidades, desvirtuamento da missão do ICNB, e por aí fora).
henrique pereira dos santos
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quinta-feira, setembro 23, 2010
Os pinheiros da Matança e a psicose da área ardida
Fotografia roubada daqui
No comentário do Paulo Fernandes a este post há, para mim, duas coisas mesmo muito relevantes para a discussão sobre fogos e conservação.
Uma é esta referência. É de 2008 e apesar disso uma boa parte das pessoas que falam sobre fogos em Portugal (incluindo eu, até ontem) não me parece que a tenha lido. Para mim ler esta referência altera pouco porque no essencial coincide com o que tenho dito. O que me espanta, apesar de artigos como o que estou a linkar, é que se continuem a ouvir e dar tempo de antena a uma data de gente que fala, fala, mas não fundamenta, em dados empíricos, nada do que diz nesta matéria dos fogos.
A segunda coisa verdadeiramente relevante é a informação, de que terá havido afectação dos pinheiros silvestres da Matança (de que falo, por exemplo, aqui, de raspão) nos fogos deste ano.
Isso sim, é um problema de conservação.
E é um problema de conservação que aparentemente fica completamente submergido na psicótica discussão sobre áreas ardidas ou em frases gongóricas como "uma área protegida deveria arder muitissimo menos, por isso mesmo é que se chama "Protegida"!".
A mania de avaliar os efeitos do fogo com base na área ardida (um péssimo indicador que faz uma amálgama de situações completamente diferentes, não servindo como indicador de afectação, nem como indicador de eficiência do dispositivo) em vez da avaliação concreta dos valores prejudicados pelo fogo (porque é bom lembrar que há muitos valores afectados mas que rapidamente recuperam, portanto não são especialmente prejudicados pelo fogo) dá nisto.
Quase se poderia dizer que em matéria de fogos, como de certa maneira diz o Henk no comentário que faz ao mesmo post, toda a racionalidade será castigada.
henrique pereira dos santos
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terça-feira, setembro 21, 2010
Do discurso irresponsável sobre a gestão de áreas protegidas
Joaquim Sande Silva responde ao meu último post na caixa de comentários respectiva.
E acho que levanta algumas questões mais que suficientes para que eu tenha optado por um novo post, mais extenso, em vez de também responder num comentário mais ou menos curto.
Primeiro Joaquim Sande Silva assume uma convicção nunca demonstrada: a "má relação do ICNB com as populações das áreas protegidas".
Esta ideia não só nunca foi demonstrada (existe, que eu saiba, um doutoramento em alemão sobre as populações do Sudoeste Alentejano que tem o título "Enforquem os verdes". Nunca a li (não sei alemão) mas conversei com o autor no fim do ano passado e, tanto quanto percebi, área protegida, verdes, ONGs etc., é uma amálgama contra a qual existe um sentimento de oposição).
Nunca ouvi falar de questões de maior entre as áreas protegidas e as populações em muitas áres protegidas. Ouvi muitas vezes umas pessoas que dizem representar as populações defender interesses específicos de forma muito audível (as pedreiras no PNSAC, o turismo de massas no Gerês, os proprietários de barcos na Arrábida, os pescadores não profissionais no sudoeste, coisas deste tipo) mas alguma demonstração de divórcio, oposição e etc., desconheço.
Insisto, nunca vi ninguém propôr a desclassificação de uma área protegida, com excepção da mais que justa pretensão do dono do açude da Agolada (até o centro histórico de Coruche, área protegida nos termos da legislação que criou parques e reservas, só o deixou de ser agora, com o novo regime jurídico, por ter passado o prazo para a reclassificação sem que tal tenha acontecido, aliás como uma série de outros sítios classificados que ninguém parece saber que deixaram de o ser).
Ainda assim, assume-se esta ideia como um facto.
Depois Joaquim Sande Silva assume que melhorar essa relação diminui a área ardida. Por que razão assume esta posição é para mim um mistério já que quer nas áreas com vozes que gritam muito para espalhar esta ideia de mau tratamento das populações locais, quer nas áreas protegidas onde há consensualmente relações cordiais mais ou menos com toda a gente, arde nas mesmas circunstâncias.
Depois Joaquim Sande Silva repisa um argumento que já tinha usado na notícia de Mariana Oliveira sobre o fogo em áreas protegidas: "Talvez se o ICNB em vez de ter o dobro de técnicos superiores relativamente ao de vigilantes da natureza no seu quadro de pessoal, tivesse o contrário, as coisas se passassem de forma diferente...". Não vou descer ao nível deste tipo de argumentação perguntando quantos técnicos e quantos vigilantes tem a LPN para gerir os seus terrenos (ou a QUERCUS, que apesar de muito crítica sobre a gestão de áres protegidas durante anos prescindiu de gerir de facto as suas propriedades entregando-as à exploração de um sócio em condições que nunca percebi, e que ainda hoje está longe de ter criado uma área de getão exemplar, apesar das condições favoráveis como o controlo da propriedade e a disponibilidade de recursos da associação). O que faço notar é que sendo as fragilidades técnicas do ICNB mais que reconhecidas, Joaquim Sande Silva ache que o problema é a relação técnicos e vigilantes e não simplesmente a insuficiência de vigilantes, sendo muito claro na notícia de Mariana Oliveira, incluindo na ideia totalmente errada de que ser técnico é estar longe do terreno (eu já levantei mais autos que a grande maioria dos vigilantes de áreas protegidas, mesmo que há muitos anos não tenha funções semelhantes às que já tive): ""há muito gente para planear e estudar e pouca no terreno".". E sendo uma pessoa que acompanha de perto a gestão das áreas protegidas (ao ponto de não ter dúvidas que a área ardida é uma consequência da sua gestão, não se perturbando com as dinâmicas sociais e económicas que existem em todo o território nacional, nem com o facto de yellowstone ter ardido em 80% só num ano) esquece-se de explicar que o modelo de vigilância das áreas protegidas seguido em Portugal tem um importante pilar no SEPNA da GNR, pelo que a análise do problema apenas com base no número de vigilantes está evidentemente distorcida.
Também curiosamente fala dos programas de queima com pastores em Espanha, ignorando que em Portugal também existem programas desses (talvez menos extensos, talvez menos estruturados, sim, com certeza, mas não vale a pena é usar a ignorância sobre o que se passa como argumento).
Que a gestão das áreas protegidas é má, não tenho a menor dúvida.
Mas também não tenho a menor dúvida de que este discurso irrealista e sem relação nenhuma com o que se passa no terreno, feito por gente nunca geriu nem avaliou seriamente a gestão de nenhuma área protegida com base em dados objectivos, mas com imenso crédito em alguns jornalistas, é um dos factores que contribuem para a má gestão das áreas protegidas.
Toda esta discussão e a peça jornalística que lhe está associada são um exemplo perfeito.
Do que se passou este ano, há uma situação preocupante: arder parte da mata do Cabril.
Não será tão preocupante como dizem, não será tão pouco preocupante como eu acho, mas a verdade é que situações como as da mata do Cabril são situações onde deveria haver um esforço sério de supressão do fogo.
Pois bem, uma das principais razões pelas quais isso não é feito é porque existe uma forte pressão pública que decorre de ideias feitas (e profundamente erradas) com as que Joaquim Sande Silva aqui expressa: "Arde com certeza no resto do País, mas numa área protegida deveria arder muitissimo menos, por isso mesmo é que se chama "Protegida"!".
Ora esta ideia, tratando toda a área protegida por igual e assumindo que o fogo é sempre mau, é uma ideia que impede o verdadeiro zonamento das áreas protegidas em função de objectivos de conservação e gestão do fogo.
Que toda a encosta de Vilarinho arda e mais um bom pedaço da serra Amarela no Parque Nacional não tem importância nenhuma (ou quase nenhuma, para ser mais exacto), pelo que quer os recursos de prevenção, quer os do combate deveriam ter desde o primeiro momento como objectivo principal evitar que a mata do Cabril (ou a de Albergaria e se quiserem mais dois ou três bocados de carvalhais mais evoluídos que vai havendo) ardessem, concentrando-se nesse objectivo.
Mas com ideias erradas sobre o papel do fogo na gestão de áreas com interesse para a conservação, o que faz Joaquim Sande Silva e muitos outros é contribuir, com um discurso pelo qual nunca são responsabilizados, para a errada afectação dos meios existentes.
Que os meios deveriam ser outros, estou de acordo. Mas que este discurso contribui para a errada afectação dos meios que existem é para mim inquestionável.
Lamentável não é que arda parte da mata do Cabril (que recuperará, de qualquer maneira, embora fosse melhor ter evitado que ardesse), lamentável é que se continue com a conversa, sem qualquer base científica, de que os fogos são um grande problema de gestão das áreas protegidas, canalizando para esse não problema cada vez mais recursos retirados da gestão de verdadeiros problemas de conservação.
henrique pereira dos santos
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segunda-feira, setembro 20, 2010
Fogos e áreas protegidas II
Aqui há dias dei com um artigo de opinião da Sr.ª Deputada Rita Calvário sobre os fogos nas áreas protegidas e fiz um post sobre isso. A mesma posição da Sr.ª Deputada é aliás hoje usada por Mariana Oliveira no Público.
Mas o que verdadeiramente gostei na notícia foi disto (evidentemente esquecendo o lapso da troca de protegidas por ardidas):
"Para Joaquim Sande Silva, da Liga para a Protecção da Natureza, os fogos nas área ardidas "são o resultado de um divórcio entre o ICNB e a população que reside nessas zonas"."
O realce é meu, a notícia é de Mariana Oliveira e portanto há sempre a hipótese do Joaquim Sande Silva não ter dito exactamente isto.
Mas eu, mesmo sem ver nenhuma fundamentação na notícia, estou completamente rendido à ideia.
Agora vou dedicar-me finalmente a uma linha de investigação que penso que se revelará muito profícua:
"de quem se terão divorciado as populações no resto do território para arder da forma como arde?".
Joaquim, podes dar aqui uma ajuda?
É que se poupava muito dinheiro de nós todos contratando uma alcoviteira para resolver o assunto dos divórcios e acabar com esta cisma dos fogos.
Adenda: corrigido o erro ortográfico que felizmente o Luis Lavoura apontou
henrique pereira dos santos
terça-feira, setembro 14, 2010
Balanço
Aqui fica mais um gráfico. A percentagem de fogos nocturnos aumentou mas é fácil de explicar para quem acompanhou o assunto mais de perto: as condições associadas ao vento Leste foram-se tornando mais definidas progressivamente ao longo do Domingo (dia 12) sendo mais evidentes na noite de Domingo para Segunda, que neste gráfico acaba por ser uma noite dividida entre o dia 12 e o dia 13.
Por essa razão o número de fogos diário dá um salto (aumentam quase cem por cento, de Sábado para Domingo) e como as condições foram mais difíceis de noite (por volta das onze da noite de Domingo o site da protecção civil mostrava os primeiros dois fogos fora de controlo e quando antes de sair de casa dei uma vista de olhos pouco passava das cinco da manhã, já eram cinco fogos fora do controlo e havia quarenta iniciados depois da meia noite) a percentagem de fogos nocturnos subiu para um pouco mais de 40%.
Tudo voltaria ao normal nestes dias, porque o vento já mudou, não se desse o caso de provavelmente começar a chover entre hoje e amanhã.
A minha sugestão, dada esta perfeita coincidência entre a meteorologia e a actividade dos incendiários nocturnos, é que lhes deêm emprego no Instituto de Meteorologia onde o seu profundo conhecimento da meteorologia os tornaria socialmente úteis.
henrique pereira dos santos
sábado, setembro 11, 2010
Fogos e áreas protegidas
Uma pequena notícia de jornal chamou-me atenção pela esta posição do Bloco de Esquerda que reproduz os estereotipos sobre os fogos e áreas protegidas.
Não vou comentar o texto que num conjunto de informações erradas ou imprecisas demonstra falta de trabalho de base e estudo por parte da Sr.ª Deputada que o assina e que, infelizmente, é muito comum em todos os partidos.
Mas penso que vale a pena explicar o que foi a minha posição (vencida pelo tempo e pela minha deserção do ICNB) enquanto responsável pelos fogos no ICNB.
Sempre fui um outsider na discussão dos fogos, mas contra a minha vontade e apanhado numa volta institucional de que não podia fugir acabei a coordenar a matéria no ICNB.
Acontece que o ICNB tem uma estranha forma de gestão em que os responsáveis são uns e os que têm os meios de execução são outros, sendo que a Presidência (qualquer presidência) flutua superiormente sobre isso não sendo bem nem responsável nem verdadeiramente tendo os meios de execução.
Por isso a minha posição de coordenação era frágil e dependia da vontade de terceiros, que de maneira geral discordavam do que eu dizia e desconfiavam das minhas posições radicais em relação ao fogo (e eu compreendo-os e acho que têm parte da razão).
Por isso adoptei a minha forma habitual de trabalhar: reuniões periódicas alargadas, com documentos preparados e identificação dos que eram consensos (mais ou menos) e do que eram pontos claramente em discordância. Sobre estes, depois de identificados, procurar produzir informação concreta que permitisse diminuir o ruído das opiniões e paixões que os fogos despertam.
O meu objectivo era evitar a armadilha em que caiu a Autoridade Florestal Nacional que hoje se divide, como o velho restaurante Tavares, na AFN rica (a que trata dos fogos) e a AFN pobre (a que trata da floresta).
Identifiquei (ou indentificámos, é irrelevante) dois tipos de problemas para o ICNB em matéria de fogos: os problemas de comunicação, de que esta posição do Bloco de Esquerda é um bom exemplo, e os problemas de conservação.
Para qualquer dos dois era necessário criar uma base de informação objectiva que permitisse ir resolvendo os problemas.
A base tradicional de produção de informação assume a área ardida como indicador e considera perdas as áreas com mais relevância para a conservação que tenham ardido.
Qualquer destas duas opções é errada.
A área ardida depende essencialmente das condições meteorológicas pelo que do ponto de vista da avaliação do desempenho é mais ou menos inútil.
Grande parte das áreas importantes de conservação que ardem não se traduzem em perdas porque são habitats resilientes ao fogo.
Isto gera um problema de comunicação sério porque o ICNB considera (sem razão) os fogos como um risco sério para o património natural mas depois quando arde, normalmente diz (com razão) que não houve grandes perdas. Como é evidente toda a gente lê esta contradição como desculpas de mau pagador e exige mais reforço dos meios de combate.
Para resolver o que se procurou (infelizmente sem chegar ao fim) foi que com base na cartografia de habitats que existe em todas as áreas protegidas, se produzissem duas cartas com base numa matriz que classificava cada habitat com base em dois parâmetros:
risco de perda de valor após fogo (por exemplo, um fogo nos zimbrais tem de facto efeitos negativos de conservação, mas um fogo nos prados calcáreos de orquídeas dificilmente se traduz em perdas reais de património);
risco de incêndio (por exemplo, os zimbrais têm um risco de incêndio baixo, porque o combustível acumulado é de maneira geral pouco e esparso, o habitat 5330 tem um risco de incêndio elevado).
Com esta matriz é possível dividir os habitats em quatro categorias:
1) De elevado risco de incêndio e elevado risco de perda de património após fogo (uma minoria de áreas);
2) De baixo risco de incêndio mas elevado risco de perda de património (outra minoria);
3) De elevado risco de incêndio mas baixo risco de perda de património (a imensa maioria, por incluir quase todos os matos, prados e etc.);
4) De baixo risco de incêndio e baixo risco de perda de património (uma quantidade apreciável, mas bastante menor que o anterior).
Com a cartografia destas quatro categorias de habitat é possível então fazer duas cartas: a carta de prioridades de intervenção na gestão de combustíveis (no essencial 1), depois 3) na envolvente de 1) e 2), depois 2) e depois os restante 3), sendo 4) irrelevante); a carta de prioridade no combate (no essencial 1) e 2), o resto deixando arder na medida em que a estratégia de combate assim o aconselhar.
Com isto seria possível ao ICNB definir, por antecipação, se consideram perdas de património quando arde (evitando a sensação de que são desculpas de mau pagador e assumindo perdas reais quando as há) e é possível dimensionar e gerir os meios em função do essencial: evitar perdas de património natural.
Infelizmente não me parece que este caminho tenha sido adoptado.
E consequentemente os fogos transformam-se numa coisa mal gerida, consumindo inutilmente meios e servindo de base a estes jogos florais partidários de que a posição do bloco de esquerda é exemplo.
henrique pereira dos santos
quinta-feira, setembro 09, 2010
Testando pela enésima vez
O gráfico de cima mostra como anteontem e ontem o número de fogos diário foi muito baixo (menos de vinte em cada dia). E já agora mostra como a percentagem de ignições nocturnas se mantém, salvo aquele pico de 50% anteontem, provavelmente porque começou a chover de dia e não de noite. Mas não tem significado. O único significado é o de demonstrar que só com incendiários muito, muito estúpidos, tão estúpidos que já teriam sido todos apanhados, é que se pode continuar a interpretar as ignições nocturnas como demonstrações da actividade dos incendiários, que insistem em pôr fogos em dias em que manifestamente não vai arder.
Dir-se-ia que com esta chuva se alteraram muito as condições de ignição.
Pois, eu acredito que sim, que dificilmente se chega nos próximos dias aos 500 fogos num dia. Mas se as previsões estiverem certas, eu diria que entre amanhã e terça feira haverá alterações importantes no número de fogos diários.
Porque comando uma organização de terroristas incendiários?
Não, simplesmente porque tudo me leva a crer que a meteorologia tem muito mais importância que os incendiários, quando o combustível existe.
É ela que explica quase tudo nos números dos fogos, volto a repisar, quando o combustível está disponível.
Claro que a previsão do que acontecerá em matéria de fogos nestes dias só é válida se se concretizarem as previsões de que o vento vai mudar e começar a soprar de Leste outra vez.
As precisões não são muito claras quanto ao momento e ao espaço em que se sentirá esse vento e não me parece que haja previsões de mais de três dias deste vento, que é verdadeiramente quando ele se torna perigoso. Também é verdade que apesar da direcção do vento estão previstas humidades atmosféricas maiores que o que é costume com vento daquela direcção. Mas as várias previsões que vi foram consistentes a assinalar um ou dois dias, pelo menos em alguns sítios, de vento Leste.
O suficiente para o número de fogos diário dar outro salto.
Tanto de dia, como de noite.
Adenda
henrique pereira dos santos
quarta-feira, setembro 08, 2010
As minhas protegidas
A propósito de mais um rebanho de cento e tal cabras que vai deixar de produzir bens de consumo e bens difusos, incluindo gestão de combustiveis numa área crítica de fogos, mandaram-me algumas fotografias do que ironicamente chamaram as minhas protegidas.
As notícias vão no sentido de confirmar que o Thomas retorna à sua Alemanha antes do fim do ano.
Uma das informações que me dão, e que não sei confirmar, é que para além das muitas outras razões, havia um subsídio às cabras que foi retirado "às áreas de matos. Para um dono de cabras receber algum dinheiro dos nossos impostos tem de as pastar em pastagens finas, trevos não-sei-quê e demais pastagens semeadas. Apenas nos alentejos, ribatejos e outros locais semelhantes, de boa terra, vale a pena ter cabras", como me dizem sem que eu saiba se a informação é precisa ou se há erros de interpretação.
Eu gostava que algum dos leitores do blog que sabem mais do assunto me confirmasse, ou não, esta regra.
É que a regra parece-me tão abstrusa que é bem possível que alguém no Ministério da Agricultura a tenha inventado.
henrique pereira dos santos
Adenda para uma curiosidade: o Thomas usa painéis solares para fazer a contenção das cabras com pastores eléctricos. Fosse ele um professor universitário a brincar à produção de cabras com menor incorporação de carbono e reforço da sustentabilidade e receberia uma pipa de massa para saber quantos quilos de CO2 se poderiam poupar usando esta técnica. Mas como é um simples produtor de cabras à procura de soluções que lhe permitam viver do seu trabalho independente como quer, o razoável é infernizar-lhe a vida até o mandar de volta para a sua Alemanha natal.
terça-feira, setembro 07, 2010
Demagogia
A fotografia é da minha filha Maria
A análise do discurso oficial sobre fogos (e convenhamos, também do não oficial dominante, quer venha da oposição, quer venha nos jornais) ajuda a compreender por que razão não há esperança de resolver satisfatoriamente o problema da gestão do fogo em Portugal nos próximos tempos (coisa que de resto não tem nada com a tolice do "Portugal sem fogos depende de todos").
Vai ser preciso esperar por um novo óbvio ululante como o de 2003 para haver espaço político, social e mediático para redefinir outra vez o problema (esperemos que desta vez melhor que da última).
O último relatório provisório sobre fogos diz no seu sumário executivo: "A área ardida até à data (31 de Agosto) é inferior em cinco dos dez anos da última década (2000, 2002, 2003, 2004 e 2005) no período homólogo, num contexto de agravamento continuado do risco meteorológico de incêndio florestal durante este mês e que, neste momento, posiciona o ano de 2010 apenas abaixo de 2005."
Estou como o outro: não gosto de ser tomado por estúpido, é uma coisa que me chateia. O erro de Português dou-o de barato. Como é evidente para quem consultar o relatório a frase deveria ser "inferior à de cinco" e não "inferior em cinco", não é pois o português que me dá esta sensação de estar a ser tomado por parvo.
Qualquer pessoa que alguma vez se tenha debruçado sobre o assunto sabe que as condições meteorológicas em 2003 foram de risco máximo de incêndio (quase quinze dias de vento seco e forte), sem paralelo em qualquer outro ano para que existem registos. Pois apesar disso, o Instituto Meteorológico ou a AFN ou lá quem é, continua a insistir na ideia de que este ano é o pior meteorológicamente falando, só ultrapassado em 2005. Com base em quê? Num índice que diz que 2003 não foi assim um ano tão mau. É apenas o quinto ano em severidade meteorológica medida da forma escolhida pelos relatórios da AFN (2005, 2010, 2006 e 2004 são, por esta ordem, anos meteorologicamente piores que 2003, de acordo com este maravilhoso índice).
Mas vamos admitir que o burro sou eu e que sim, a realidade é um pormenor e o que verdadeiramente deve balizar o que fazemos é o tal índice que diz que 2003 foi um ano meteorologicamente médio do ponto de vista do risco de incêndio.
Em 2005 tinham ardido nesta altura 301 mil hectares, em 2010 (este ano) 105 mil, em 2006, 70 mil, em 2004, 115 mil, em números redondos. Conclusão possível, usando a lógica do parágrafo citado: de 2006 para cá o desempenho piorou.
É isto que me irrita, a esperteza de quererem usar lógicas diferentes em cada momento de análise e esperarem que as pessoas não reparem que no parágrafo citado bastaria acrescentar no fim, " e logo acima de 2006" para que todo o parágrafo passasse de um elogio ao desempenho para uma acusação evidente, sempre usando meias verdades.
Toda a informação produzida segue a lógica da propaganda e não a lógica da caracterização objectiva dos problemas. Como dizia um director de comunicação de uma grande empresa, na publicidade competente não se mente, mas isso não quer dizer que se diga tudo o que se sabe.
Por isso este ano se deixou de fazer comparações com o objectivo estabelecido no programa da Defesa da Floresta contra Incêndios, como se fez nos últimos anos, ou seja, 100 000 hectares ardidos anualmente, para passar a usar de novo a média dos últimos dez anos (123 000 hectares em período homólogo, 150 mil se no ano inteiro).
É claro que a escolha da média dos últimos dez anos também não é inocente: passou-se de cinco para dez anos quando 2003 ia sair da média rolante, mas não mais de dez (apesar de haver dados) para que os anos excepcionais de 2003 e 2005 não se diluam mais. Bastaria usar a mediana em vez da média, para diluir o peso dos extremos, opção perfeitamente razoável face a fenómenos de grande irregularidade, para concluir que os valores deste ano, em período homólogo, são 15 mil hectares acima da mediana dos últimos dez anos.
Mas como o ano ainda não acabou e não se sabe o que nos reserva o Outono, o Governo e a Administração já preparam um novo bode expiatório: as ignições nocturnas como demonstração de uma intensa actividade de fogo posto. Até se mudou o quadro das estatísticas da página da protecção civil para explicar melhor isto.
O resultado é este:
Por mais voltas que se dêem, as ignições nocturnas andam no essencial entre as 30 e 40% do total diário, qualquer que seja o número de fogos do dia (com desfasamentos pontuais em alguns dias, provavelmente por alteração das condições meteorológicas a meio do dia. Convém lembrar que as ignições nocturnas apanham dois períodos distintos de duas noites consecutivas, separados portanto por um dia inteiro, e não o conjunto de uma noite). Ou os incendiários coordenam muito bem a sua actividade, ou a meteorologia é que explica as variações e essa conversa dos fogos postos serve apenas para tapar o sol com uma peneira.
E o essencial permanece: o dispositivo de combate custa agora três vezes o que custava em 2005, aparentemente funciona muito melhor no ataque inicial e talvez no combate demorado, mas os resultados são essencialmente os mesmos: de acordo com as condições meteorológicas (que foram dificeis, mas não excepcionais, este ano) arde o que sempre ardeu.
Apesar disso tenho lido declarações de reforço dos meios. A Ministra do Ambiente diz que vai reforçar os meios do ICNB em matéria de fogos e eu deito as mãos à cabeça: com tanto problema sério de conservação e gestão das áreas protegidas ainda se vai concentrar mais os recursos numa matéria que, do ponto de vista de conservação dos recursos naturais, é marginal? Deus nos acuda e defenda das almas bem intencionadas que não estudam suficientemente os problemas com mais de duas incógnitas.
Por mim já tinha concluído há muito mas este ano foi uma boa demonstração: é tempo de procurar a solução noutro lado que não o reforço do dispositivo de combate.
henrique pereira dos santos
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