Maria de Fátima Lambert
“Da Outra Margem do Atlántico - alguns exemplos do video arte e da fotografia
portuguesa”
“Ce sont des fragments d’images impulsives, ou compulsives, ou plus
simplement pulsives, spontanées, d’une seconde ou deux, par lesquelles le
temps se précède lui-même dans l’invisible. » 1
0
A propósito da fotografia como imagem e convocando a percepção visual, tanto quanto a
razão e sentimento: é tudo uma questão de olhar, de saber olhar, para ver, para enxergar.
Sendo o olhar, por excelência, um “ver” = imanente que significará a Luz, simbolizando o
Conhecimento.
Será questão, ab initio, de saber para onde olhar. Pois se constata a diversidades de olhar:
“o olhar do outro” (Jean-Paul Sartre), “o olhar viajante” (Sérgio Cardoso), “o olhar do
flâneur” (Baudelaire, Walter Benjamin…), “o olhar do Wanderer”(Herman Hesse), “o olhar do
estrangeiro” (Nelson Brissac Peixoto), “o olhar que não conduz a lugar nenhum” (Rainer
Marie Rilke), “o olhar errante” (Bruce Chatwin), “o olhar da alma”, “o olhar simbólico”, “o
olhar mítico”, “o olhar cego”, “o olhar reflectido”, “o olhar utopista”, “o olhar hermético”, “o
olhar saturniano”, o “olhar plutuniano”, o “olhar onírico” até mesmo “o olhar de serpente”…salvaguardando a diferença de ordens
epistemológicas enunciadas nesta listagem
incompleta…A todos e cada das respectivas tipologias de olhar corresponderá a
concretização estética de reconhecer o impulso gerador das imagens, quer fotográficas,
quer videográficas que os artistas desenvolvem ou cumprem. Nuns casos, o olhar
determinador da imagem, decorre de motivações mais enxutas e lúcidas, noutros casos, não
está isentado de psico-afectivadade, compromisso societário, investimento ideológico ou
compulsividade de uma qualquer axiologia identitária. Fala-se que em certos períodos da
historiografia da arte europeia ocidental, em particular, no caso português, a melancolia se
mascarou de saudade…Essa melancolia que foi considerada categoria estética privilegiada e
que sustenta confrontos com carismas mais desafectados de emoção. A melancolia que
Dürer gravou em simbologias referenciadas a hermetismos, ganhando-lhes adesão
esoterista, soube converter-se em sublimidade e lamento…como nos relembrou Georges
Didi-Huberman, num estudo acerca das imagens enquanto nelas residem – em são convívio
– encenação, indiferença, crítica e muito frequentemente (nos media) vêem-se lamentação.
Reconhecemos-lhes, uma certa percentagem (variável) de pathos…
“L’image se découpe; elle est pure et nette comme une lettre: elle est la
lettre de ce qui me fait mal. Précise, complète. Fignolée. Définitive, elle ne
1
Pascal Quignard, Sur le Jadis, Paris, Gallimard, 2002, pp.28-29
me laisse aucune place…Voici donc, enfin, la définition de l’image, de toute
image : l’image, c’est ce dont je suis exclu. »2
Dizer a fotografia que seja imagem fixa, o vídeo entendê-lo como imagem em movimento,
são, em minha perspectiva, decisões reducionistas. Servem qualificar a fotografia de fixa
(pois nada se mexe) ou o vídeo de movimento (porque as unidades visuais constitutivas da
composição se movem)… Isto sucede porque, na tradição dos modos de pensamento
ocidental, se continua a ansiar por reconhecimentos epistemológicos e reasseguramentos
cognitivos…assim exigindo nomenclaturas, categorizações fidedignas (e excessivas) ainda
que sabendo-as constritoras.
A completude de tantos a “olhar” gera a gestação, quanto maior se sabe, a diversidade de
imagens: hipnagógicas e hipnamórficas, imagens hípnicas, imagens alucinatórias, imagens
por isolamento perceptivo, imagens de estimulação rítmica; imagens consecutivas, imagens
eidéticas. Ainda: imagens da memória, imagens evocadoras, imagens da imaginação,
imagens mentais… (Michel Zéraffa). As imagens são fortes e saudáveis, independentemente
de seu estatismo, hieratismo ou de convulsionamentos barrocos de movimento e
dinamismo. As imagens usufruem de uma impositividade que seduz as pessoas, as derruba
ou desperta. Perante as obras escolhidas para esta mostra essas experienciações estéticas
acontecem. Ou seja, a contemplação de suas imagens tão diversificadas gera reacções,
empurra ideias, proporciona argumentações e confrontos pois se desprende de uma escolha
rigorosa, lúcida e rica do curador desta exposição.
Daí, ser possível constituir-se com lucidez, alguma porção estética fantasmática e a acertada
deliberação de autor: Imagens de uma cena da vida pessoal; Imagens conceptual de um objecto;
Imagens//acontecimento histórico; Imagens//evocação mais geral (de um conceito, por ex.), …entre
outras,
susceptíveis
de
produção
fotográfica
e
videográfica.
Relembre-se,
sem
desmerecimento, a distinção (in)conclusiva entre imagem fixa e em movimento. As funções
referenciais e/ ou elaborativas ajudam, igualmente, à riqueza e complexidade para a nunca
exaustiva teorização sobre a imagem e suas tipologias…operacionalidades e concreções.
Bem certo, para nos “apropriarmos” da multiplicidade das imagens patentes, não é
suficiente o exercício de um olhar anatomo-fisiológico, tampouco (e somente) o psicofisiológico - ainda que sejam convenientes: olhar é razão e corpo; ideia e performance. No
tempo antes, por parte do artista/autor, no tempo de depois, concretizado pelo espectador
e todos os mais.
O nosso convívio com as fotografias inscreve-se na incerteza da memória, para preservar o
passado e estender futuro; a fotografia cedo adquiriu lugar preponderante nas casas, nas
famílias (com excepção daqueles que sejam seus detractores…nunca se sabe se, ao fim de
contas, a fotografia não roubará um pouquinho da alma de alguém ou de algo!!!). A
facilidade com que, na actualidade, se manipula um dispositivo fotográfico veio corroborar a
imprescindibilidade da imagem fotográfica no quotidiano, revendo-se alguns segmentos do
público na pujança de fotografia de autor em colecções de museus, galerias ou quaisquer
Roland Barthes, « Les Images », Fragments d’un discours amoureux, Paris, Éditions du Seuil, 1977,
p.157
2
outros equipamentos culturais que as alberguem. O coleccionismo de fotografia possui,
solidifica o seu significado inequívoco. No caso das obras videográficas atesta-se uma
motivação para aquisições, por parte de coleccionadores que nelas sabe reconhecer a
vivificação estética e a artisticidade manifestas, encontrando soluções de inserção no
espaço-casa potencializadoras de suas propostas.
Retrocendo: o uso do vídeo, como meio e como matéria de arte e estética, surgiu em
Portugal nos anos 60. Posteriormente, o baixo custo dos equipamentos de video, propiciou
a sua utilização não comercial, donde a sua proliferação no meio artístico também. Os
artistas começaram a explorar as (então) novas alternativas da tecnologia, para lá do
estereótipo televisivo, considerando o vídeo como um meio interactivo, focado na criação
de uma realidade muito específica, susceptível de cumprir objectivos que o transcendiam
enquanto mero veículo de entretenimento familiar.
Os vídeo-artistas apresentavam o seu trabalho aos espectadores, oferecendo-lhes arte como
objecto, muito mais do que uma imagética efémera. Tratava-se, efectivamente, de uma arte
que existia na espacialidade, não somente no plano da temporalidade, evidenciando a
ambiguidade complementarizadora dos valores do instante e da duração. Recorrendo às
projecções e às diferentes possibilidades de colocação de monitores no espaço, estes
artistas precursores apropriavam-se, manipulavam, ocupavam o espaço, interpelando os
visitantes de uma forma que estes, por vezes, consideravam intrusiva e, certamente,
interpelativa quase sempre.
Para
existirem
imagens
registo
de
coisas
reais
ou
imaginadas,
manipuladas,
metamorfoseados e tudo que se preveja, carece de existir sujeito e precisa haver objecto:
“Dans ce monde, les choses sont disponibles tout à la fois pour l’usage et
selon leur manifestation. (…) C’est ce qui ne se montre pas mais qui
rassemble en soi, la force bandée en deçà ou au-delà des formes, mais non
pas comme une autre forme obscure : comme l’autre des formes. »3
As obras dos artistas participantes nesta mostra tornam visível a multiplicidade de
apropriações dos respectivos mundos individuais, através de registos diversificados que,
todavia, comungam num denominador comum: a memória. Não se entende a memória, na
acepção mais vulgarizada do quanto a fotografia, o cinema ou o vídeo viabilizam o registo
de rostos, casos, episódios ou panoramas para gerações vindouras – enquanto dispositivos
técnicos e/ou tecnológicos rigorosos e objectivantes. Antes, se compreenda enquanto este
conceito se pode definir em diferencialidade e aproximação, subdividir em tipologias de
distintas indexações epistemológicas.
Constatam-se convergências quanto aos conteúdos semânticos e estéticos e suas
externalizações que permitem estabelecer relacionalidades:
3
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, Paris, Galilée, 2003, p.13
1. Paisagem + poética ontológica
Adelina Lopes - Imagem Cheia, 2008
“L’image flotte, en somme, au gré de la houle, miroitant au soleil, posée sur
l’abîme, trempée par la mer, mais aussi luisante de cela même qui la menace
et qui la porte en même temps.”4
As 3 fotografias da série Imagem Cheia impõem uma austeridade morfológica, geradora de
um cinetismo em termos de percepção visual. Paralelamente questionam as noções de
comletude e incompletude, termos outros para designarem a coincidentia oppositorum de
vazio e cheio. As manchas engrandecem-se num ritmo que é mais intimamente respiração.
Não resta dúvida de que as imagens cheias remetem para a ânsia de reconhecimento de
horizonte, num dinamismo de quase miragem em devir para a existência maior. Assim as
oscilações lineares direccionam para um ponto além das margens das fotografias, situado,
quase certo, na alma do espectador.
Edgar Martins, Sem título - série The Accidental Theorist , 2007
“Échos d’images
Échos d’images nocturnes.”5
4
5
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.31
Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.29
Recuperando o depoimento do próprio artista, sublinhe-se que a imagética da Série The
Accidental Theorist consiste “menos num conjunto de imagens do que numa série de
momentos que se tornaram independentes de causalidade e função.” Assemalhar-se-iam a
locais de filmagem para filmes não cumpridos, presenças de cenários perdidos: “I am often
drawn to spaces where I can prioritise poetic memory over concrete topographies. I do not
see the objects which take centre stage in these images as objects, but as events.”
Estas paisagens aparentemente “perdidas” readquirem a presencialidade em sua dimensão
performática ainda que ausentada quase sempre de figuras e/ou protagonistas segundos. A
presentificação do autor, essa sim, subjaz-lhes. A duração, a decorrência do tempo
necessário para a concretização técnica de cada fotografia, proporcionam uma cumplicidade
estética entre o sujeito e o objecto – aplicando a terminologia fenomenológica de Mikel
Dufrenne. A escuridão, a vertigem nocturna torna-se decisoriamente estática, acentuada,
ainda mais, pelos elementos de valência escultórica colocados no vazio da paisagem, agindo
como fundo, numa quase verdadeira acepção pictórica. As paisagens nocturnas contêm uma
pujança dramática que foi dominada por não muitos pintores na história da arte ocidental.
Numa afinidade estética a certa densidade pictural, as fotografias de Edgar Martins
demonstram a mestria, não somente técnica mas a artisticidade concretizada, à qual subjaz
uma conceptualização estética baseada nos valores poéticos da imaginação nocturno, essa
duração em que o onírico impõe as suas axiologias mais intimistas e, simultaneamente,
arquetípicas.
2. Paisagem + narrativa
Alexandre Estrela - Light bridges, 2007, video
Da leitura que sustentava a apresentação do vídeo, infere-se que o artista pretendeu gerar
uma certa falácia visual, jogando em moldes de gestalt. O artista desenvolveu a sua obra a
partir de imagens fotográficas (retiradas da internet) de duas pontes – Ponte 25 de Abril
(Lisboa) e Golden Gate (San Francisco), aparentemente idênticas. Sabe-se que a primeira foi
delineada a partir da segunda, garantido um “certo grau de parentesco morfológico”.
Recorrendo a um cross-fade , a lentidão instaurada simula a fusão de ambas imagens.
Sublinhe-se que a tomada de vista das pontes é idêntica assim como a sua localização
relativamente ao sol. Durante o fade, as pontes configuram-se enquanto estrutura única,
hierática quase; por outro lado, à medida que a paisagem se transforma sob a continuidade
processual da luz do entardecer, a progressão do cross-fade segue a linha da ponte quanto
o som. Como se pode ler na memória descritiva: “As duas bandas sonoras correspondem a
registos diferentes.”
3. Narrativa + mitologia + história
Ângela Ferreira - Joal la portugaise, 2004
Ângela Ferreira tomou como leit-motiv a história de Joal- Fadiout, personagem talvez real
que outrora viveu na aldeia senegalesa de onde era natural Léopold Sedar Senghor, poeta e
primeiro presidente do Senegal. “Joal la Portugaise”, filmada a sul do Dakar, consiste na
performance protagonizada pela artista, espécie de introjecção/projecção dessa figura que,
presumivelmente, descenderia dos portugueses que colonizaram Joal. Nessa sociedade, as
“signares” (do português senhoras) tiveram um papel determinante. Senghor ficou intrigado
por mulheres – míticas e românticas – o que, de modo intermedial, o ligou a Portugal. A
autora, em consonância com a fundamentação e substância de toda a sua obra, focada na
reflexão crítica e lúcida sobre a história do colonialismo português, relaciona-o neste vídeo
à história do próprio Senghor. Confrontou “discursos coloniais e pós-coloniais, apontando
reflexões e criticas recorrentes no trabalho da artista. A narrativa desenrola-se em tom de
confissão com uma abordagem critica subtil.”6
O enquadramento na paisagem, margens e embarcações, compõe um cenário de memória
preservada, emergindo para uma experiência de tempo fora do tempo, onde os ritos se
cumprem e as palavras são pronunciadas em respeito pelos antepassados. Imagens
propícias à explanação do discurso perfomatizado em que a artista enquanto protagonista
incorpora a figura mítica de Joal, la portugaise.
6
Cf. Press-release da Galeria Filomena Soares relativo à obra em causa.
Catarina Campino - Português para estrangeiros. Teatro para principiantes, 2003
“Para mim a Cartilha Maternal permanece a única memória dos tempos anteriores à
revolução…A figura de um professor, com uma vareta de madeira na mão, apontando
para um livro excessivamente grande e fazendo-nos repetir vezes sem conta e sem
sentido sons, uma e outra vez… “ Catarina Campino
Na tradição do ensino da língua materna, durante longas décadas foi adoptada a Cartilha
Maternal de João de Deus (1876), revelando-se de simbólica relevância ideológica durante o
período do Estado Novo em Portugal. A proposta da artista consistiu num exercício de
leitura, realizada por seis pessoas estrangeiras, o que resultou num exercício de
dramatização pois não dominavam de todo a decifração dos textos. As vogais nasaladas, as
sonoridades estranhas ganharam expressão em gestos, contracturas e ritos faciais, análogos
a treinamento de actores; articulam-se as suas expressões exacerbadas por cartazes com
palavras e nomes em dramatização alusiva. À semelhança da repetição que as crianças
realizavam na escola primária, repetindo sem conta palavras e frases destituídas de nexo ou
sentido, elaborando-as numa recitação parente próxima da lengalenga. A extrapolação
simbólica da incompreensão, a carência de descodificação da mensagem, torna-se evidente,
análoga aos casos presentes de estrangeiros a viver e trabalhar em Portugal. A sua inserção
na sociedade estranha passa pelo domínio da língua portuguesa…o que é plasmado de
modo ironista e denunciador de valores sócio-culturais e ideológicos. Intrinsecamente, tratase de confronto de situações identitárias e a permanência e consolidação das mesmas
perante axiologias diferenciais em todos os planos.
André Gomes - O livro de Ângela, 2009
“Somos feitos da madeira dos sonhos”
“Não são personagens, conheço-os (…) mas no manuscrito, parecem…”7
“Como Ângela, fugiu aos ruidosos
Festejos dos primos pela chegada
Das férias e, no meio das
Atribuídas aventuras do seu
Livro preferido, adormeceu.”8
No Livro de Ângela, em 12 conjuntos de 4 fotografias, ampliadas a partir de polaroids, se
contam os episódios da personagem. As 48 imagens foram desdobradas em vestígios,
atributos e segmentos de espaços, pontuados – de quando em vez – por outros
protagonistas anónimos. São exibidos Conjunto I; Conjunto II; Conjunto XI e Conjunto XII. Cada um
é introduzido por um fragmento poético (que me lembra a precisão e singeleza lúcida de
Novalis) alusivo a uma experiência imaginária que transcende a figura e adere aos
espectadores. A motivação poética cruza-se com a imagética, potencializando uma vivência
estética quase de sublimidade e transcendência. André Gomes refere-se a esta série como
correspondendo a um “teatro de máscaras”, onde o “percurso real dos actores confunde-se
com a vida imaginária das personagens.” Em consonância com as demais obras do autor, a
relacionalidade com a literatura (quer dramática, quer poeta ou de ficção…), com o seu
exercício pessoal como actor, desde sempre, vemos nestas imagens o corpo expansivo ou
em contracção, em toda a síntese e substância que pode projectar-se para o exterior de si
mesmo e possuindo a analogia aos “outros”.
Daniel Blaufuks - The daily pratice (Rio), 2009
“A fotografia é um espaço. A fotografia é uma memória. A fotografia é um texto. A
fotografia é um postal. A memória é uma imagem.” Daniel Blaufuks
Outra
narrativa,
densamente
pessoalizada
quanto
anónima,
é
assegurada
pelos
protagonistas de Daniel Blaufuks, no vídeo filmado numa academia do Rio de Janeiro, o que
me leva a recordar a série de fotografias que, em 1993, Miguel Rio Branco realizara na
Academia de Santa Rosa Boxing Club.
7
8
André Gomes, “A história de Ângela”, Bes Photo 2008, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p.37
Idem, ibidem, p.38
Na obra de Daniel Blaufuks, assiste-se ao que, se pensa, antecederá a luta entre dois
homens, um negro e um branco. O espectador é induzido, nessa fase preliminar de
treinamento duro e irreversível, vendo-os isolados um do outro, concentrados em sua
identidade. Ouvem-se, vêem-se, um e outro em alternância de filmagens, num ambiente
que se observa e culpa de violência sem que, todavia, o confronto físico entre ambos se
chegue a consumar… Queira-se caso de memória quase diarísticas, memórias ritualizadas
que correspondem, para nós espectadores, a uma representação psico-social do que seja a
história do boxe no mundo ocidental. Aqui, revelam-se essas deambulações imaginárias que
são conformadas pelas expectativas do desfecho, culminando na vitória e na derrota,
salvaguardada a ambiguidade teleológica da luta. Idêntica luta, certa compulsividade diária
que também dirige o artista à “prática diária da fotografia e, principalmente, com a ideia de
um desporto violento, mas que aqui se pratica como não-violência numa cidade também
conhecida pela sua violência.”9
Carlos Noronha Feio - Trying to reach point zero, 2009
A árvore na iconografia ocidental possui uma polissemia incontornável, sendo presença
isolada em efabulações herméticas e de valência esoterista quanto exercício de virtuosismo
pictórico e/ou fotográfico. Elemento relevante em determinadas cinematografias, concentra
uma antropormofização enquanto extensão do natural, assunção mítica…A peça Trying to
reach point zero surge, segundo o autor, na sequência da vídeo performance Campos
Neolíticos, onde visibilizou o conceito de reconstrução a partir do “ponto zero, através da
acção de marcar (urinar, como se fosse um animal a fazer marcas territoriais) o objecto ( a
rocha como metafora da historia) e depois construir uma nova etapa nele, mostra de uma
forma simples e em tempo real , o assumir do passado, mas ao mesmo tempo a procura de
construção sobre esse ponto original, quase que deixando a historia num mundo paralelo.
Campos neoliticos vem ter como continuidade, a tentativa de alcançar esse mesmo ponto,
atráves da desconstrução de uma árvore - árvore como metáfora de civilização, civilização e
destruição ( arvore como explosão nuclear).” 10 A explosão nuclear converteu-se num dos
paradigmas mais trágicos protagonizados pela sociedade ocidental; assumido como culpa
ou justificativo, consoante os posicionamentos ideológicos que se lhe sucederam e
persistem. Significará, irreversivelmente, a precariedade da vida quotidiana, acelerada em
9
Daniel Blaufuks, depoimento inédito.
Carlos Noronha Feio, texto inédito.
10
moldes apocalípticos, inimagináveis a capacidade de destruição e o seu irreversível
condicionamento em termos de gerações sucessivas.
A vídeo performance Trying to Reach point zero foi concebida enquanto “…tentativa de
desconstruir a sociedade existente, cortando os vários ramos/sociedades diferentes, numa
tentativa de encontrar um ponto comum ao todo. O ponto de onde se poderá reconstruir
uma sociedade mais justa e equilibrada.”11
João Maria Gusmão & Pedro Paiva – Macrocefalia, 2007
“Un homme attend, dans son atelier, les mains sur les genoux, que la
terre, le soleil, la lune, les planètes errantes, les galaxies se posent sur
ses mains.”12
Numa abordagem cosmogónica reside a peça Macrocefalia que concentra simbologias
consecutivas. Num primeiro plano/momento, emerge de uma escuridão quase absoluta –
ontogénica, quanto filogénica – uma carcaça de elefante (um dos maiores cérebros dos
mamíferos). Filmado no Museu de História Natural, em Coimbra, Macrocefalia narra a acção
ritualizada de um homem sobre uma carcaça, cuja dimensão vai aumentando até
metamorfosear-se em caveira humana. Aqui, relaciona-se, ao filme Skul (2007) unidade
integrante do projecto Abissologia – para uma ciência transitória do Indiscernível, onde a
presentificação de uma caveira sustenta, igualmente, a acção do protagonista. O
antropocentrismo convive com a zoomorfia que valida a substância evolucionista – em
moldes científicos, epistemológicos e culturais. Os paradigmas, cognitivos quanto estéticos,
constitutivos dos inúmeros filmes dos artistas, evolucionam em sínteses conceptuais,
organizadas em parábolas rigorosas e depuradas. A fundamentação filosófica, literária e
científica a que os autores têm dado continuidade converte a sua obra em algo que atinge
uma radicalidade de questionamento e – por paradoxal que possa entender-se – acepção
tautológica.
Idem, ibidem: “A árvore escolhida é uma mimosa, mimosa sendo uma árvore: isto é uma árvore praga
de desenvolvimento muito rápido. O que a faz com que tenha muito em comum com a sociedade actual.
O facto de ser filmado em tempo real, sem cortes de edição alem do necessário ajuste entre mini dv's, e o
facto de ser filmado num take, mostram que é uma acção que se quer sincera, sem actuação, o importante
é o esforço, é a noção que a desconstrução não é algo fácil, mas sim que é algo que leva tempo e
dedicação, sinceridade.”
12
Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.183
11
Joana Pimentel - 17 Propositions, 2007
“La terre, les astres sont la poussière
de l’explosion initiale qui tombe dans la nuit.”13
A série 17 Propositions remete para a obra filosófica de Ludwig Wittgenstein e resultou num
livro de artista, cujas imagens publicadas são introduzidas pela frase: “The Picture of the
earth as a ball is a good Picture, it proves itself everywhere, it is also a simple picture – in
short, we work with it without doubting it.” 14 As frases inscritas na banda branca que
antecipa a imagem fotográfica são da autoria do filósofo vienense, Über Gewissheit. As
imagens
da
Terra
foram
retiradas
do
website
http://earthobservatory.nasa.gov.
Retrocendendo na história da filosofia, até ao período pré-socrático, reencontram-se os
primórdios da reflexão sistematizada, da filosofia em consolidação, caracterizada por um
pensamento, ainda articulado ao pensamento mítico-poético e mesmo, mitológico. A
origem do mundo oscilava entre a convicção das grandes forças da Natureza, e seus
elementos primordiais e uma progressiva caminhada para as concepções de ordem mais
abstracta, anunciando propósitos epistemológicos vindouros. As cosmogonias, mutações do
Universo e metamorfoses fotográficas são substância, simultaneamente, última e primeira na
obra de Joana Pimentel.
“I know it as I know that…15
1- By saying “I know…” we express our acceptance to believe in certain things.
9- “I know that ice burns like fire”16, I know this as I know that ice is the solid form of water and that it melts
at 0º C..
7- I know that the planet earth existed long before my birth as I know that other planets exist
1- There are books for all that and “those books do not lie”. Because I’ve seen their images with my hands
13
Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.183
Joana Pimentel, 17 Propositions, 2007, p.1
15
Joana Pimentel, "I know it as I know that my name is L.W."
http://www.galeriapedrooliveira.com/archive/artists/joana_pimentel/joana_pimentel.htm, consultado em
03.03. 2010.
16
António Saez, idem, ibidem
14
really cold, I don’t doubt them even when they are small.
3- I know it because it is written. They wrote fire with the word ice, and we believe it.
2– Kuiper discovered two moons of planets in the solar system, “I cannot stop believing…” I read about
that and about cryo-volcanoes on those moons; frozen volcanoes, with nitrogen geysers shooting up,
formed where liquid breaks the icy surface of the planet.
0.0– Someone who doubts that cryo-volcanoes already existed one hundred years ago in frozen moons,
and possibly in other low temperature astronomical bodies, might have a scientific or philosophical doubt.
8- I don’t doubt, I’ve seen it written. I’ve read about fires in icebergs. Time frozens, we have proof of that.”
But not only I know, or believe, all that, but the others do too. Or rather, I believe that they believe it.”17
As 17 proposições de Wittgenstein, o questionamento das razões do Kosmos geram
imagens distanciadas, onde o humano parece estar ausentado. Todavia, pela celebração da
escrita, pela profundidade do pensamento expresso em unidades conceptuais extremas,
aprovisionam o mundo de humanidade – espécie, autoria e individualidade. Vulcões
gelados, montanhas e paisagens metafísicas organizam uma iconografia densa que a autora
vai complementando ao longo dos anos, na relacionalidade entre as diferentes séries.
Miguel Soares video still Juping Nauman, 2009
“Au milieu des astres terre miniscule. L’ensemble des terrres émergées forme
une sorte d’île que la mer ronge inlassablement.”18
Em 2007, Miguel Soares realizou o vídeo, usando o Google Earth: “Visitei todos os 51 locais
onde o artista Bruce Nauman exibiu a sua obra em 2006.”19 Em voo picado sobre os Google
Maps, a aproximação e afastamento realizam uma alternância, numa velocidade que não
dispensa muito tempo ao espectador para se deter…Torna-se vertiginosa esta viagem
organizada que saltita entre continentes, de acordo com a cronologia das exposições de
Bruce Nauman: Chicago, Estocolmo, Maestricht, Dublin, Tokyo, Berlim, La Maison Rouge em
Paris, Palazzo Grassi em Veneza, Mummok em Wien, Tate Liverpool… A referência ao artista
que, em 1967/68, concebeu as vídeo performances Walking in an Exaggerated Manner
Around the Perimeter of a Square e Stumping in the Studio (1968) através de ritmos
genuinamente antropométricos, vê-se anunciado em tempo não-real, acelerado e editado. A
A ironização assume proporções brilhantes, atendendo a uma tal circunscrição.
Miguel Soares habituou-nos a celebrações/convocatórias identitárias, centrando-se em
figuras emblemáticas da cultura ocidental, destacando-se o vídeo criado a partir da
17
Ludwig Wittgenstein, idem, ibidem
Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.141
19
Cf. http://migso.net/blog/?cat=55, consultado em 27 Fevereiro 2010.
18
performance pianística de Glenn Gould, datado também de 2007. Singularmente, em
Jumping Nauman, este surge num desempenho alegórico, sem corpo, consignado nos
nomes de locais e cidades por onde a sua obra viajou e permaneceu – mas sempre sem
residir, em acto precário e transitório. É uma metáfora à capacidade de divulgação da Arte e
da Cultura na Internet, quanto à incansável gestão de divulgação de obras de Bruce
Nauman…I wonder…
4. AUTO-RETRATO E FICÇÕES IDENTITÁRIAS
Rui Calçada Bastos - Ambitious, 2007
“Ninguém pode aceder à imagem fiel do seu próprio corpo. O meu olhar
não pode explorar o que se esconde atrás das minhas costas, mas
sobretudo não pode ver esse rosto que eu sou e que me exprime.”20
Na sequência de projectos anteriores, Rui Calçada Bastos debruça-se nesta peça sobre as
questões auto-identitárias. À dissemelhança de Self-portrait while thinking, onde o artista se
expunha como si-mesmo, na maior genuinidade, em Ambitious constrói uma narrativa, um
enredo, no qual ele é protagonista. A identidade fisionómica do autor converte-se em alter-
ego no seu desempenho como actor. A história desenvolve-se de uma forma quase
previsível que é no mínimo de ansiedade pois o espectador é contemplado com o
desconhecimento, contrariando um crescendo que aguarda a decifração. Ou seja, no
percurso simbólico do preso para o seu próprio julgamento, é escoltado por polícias,
deslocando-se num carro-patrulha, onde o exterior penetra, chegando finalmente à entrada
do Tribunal. Aí, aguarda-o uma multidão ruidosa, espécie e coro grego, consciência
colectiva que pune os infractores com seus preconceitos, quem sabe? O artista é acusado
de ser demasiado ambicioso. O conceito de auto-julgamento é inebriante; a sequência é
interrompida quando entra no tribunal. Quando ele sai algemado do edifício, a multidão
mantém a sua atitude de agressividade, entrando de novo no carro. É uma espécie de ciclo
mítico,
de
eterno
retorno,
alusivo
a
um
envolvimento
dostoievskiano…
crime e
castigo…auto-flagelação, crítica à imagem pública do artista na sociedade actual…com todas
20
Umberto Galimberti, Les raisons du corps, Paris, Grasset, 1998, p.208
as suas consequências. E, em termos de rodagem, toda a produção é marcada pela
denúncia de clichés aos quais os espectadores estão acostumados nas séries televisivas…
Rui Toscano - T for Tornado, 2005
O vídeo apresenta duas imagens do artista em rotação. Uma encenação de bi-polaridade
em termos de auto-retrato. A direcção horizontal intersecciona-se à vertical, configurando
sempre a letra T (Tornado/Toscano). É um movimento em loop, onde se coloca como
centro de convergência, posicionando-se, simultaneamente, como estrutura centrípta e
centrífuga de composição. Os dois ritmos complementam-se, um de aceleração, à medida
em que a imagem do artista aumenta e outro de desaceleração, tornando-se a figura cada
vez mais rígida, tornando-se novamente mais distinta. O movimento circular é um
percurso de auto-gnose motriz, sem destino que se saiba, sem princípio ou fim,
apropriando-se incessantemente da sua própria mobilidade como sistema percepcional
integrado. Para alguns, a contemplação do vídeo poderá ter um efeito quase hipnótico,
convocando visionamentos alusivos a experiências cinéticas e ópticas.
5. APROPRIAÇÕES E FICÇÕES Pseudo-IDENTITÁRIAS
Eurico Lino Vale – Série Nova Geração, 2002 (Anastasia, Catarina, Filipe e Teresa)
“L’oubli, rien que l’oubli, image de l’oubli, image rendue, par l’attente, à l’oubli.
Un pas précipité, éternel.
Ils se plaignaient de l’éternité; c’est comme si l’éternité se plaignait en eux.”21
21
Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.58
À semelhança do que escreveu Daniel Arasse22 a propósito dos retratos de Cindy Sherman
- salvaguardando as diferenças óbvias, impõe-se-me, todavia a sua reflexão ao verificar um
certo apagamento do eu-sujeito na imagem da identidade retratada. Pois, no caso de
Eurico Lino do Vale, as pessoas retratadas adquirem uma morfologia, uma externalidade
“outra”, por contraponto à sua verdade identitária, constituindo-se num sistema de signos,
de códigos e de imagens-modelos.
A série “Nova Geração” (2001) é composta por um conjunto de treze retratos de “bustos”,
cujos protagonistas são crianças na pré-adolescência. O artista dirigiu-os na assunção de
uma pose clássica, indiciada pelo ar solene, o vestuário respeitoso e a postura - costas
hirtas e rostos hieráticos dos retratados. Na sua maioria, estas crianças foram fotografadas
na diagonal do observador/fotógrafo, a quem, todavia, olham frontalmente. O olhar é um
dos fios condutores
entre as treze imagens, das quais se mostram três; os seus denominadores comuns mais
poderosos serão, porventura, a simulação, a impositividade (para iludir a memória
subvertida):
“Na fotografia podemos mentir, podemos inclusive criar uma pintura. Há
muitas possibilidades. Mas insisto que o que me interessa é a performance
do fotógrafo. Para mim seria mais fácil fazer algumas coisas com as
técnicas digitais. Mas gosto de todo o momento do registo, quando a
pessoa sabe que está a ser retratada.”23
Duarte Amaral Netto - Luda, 2007 /
Untitled . 2, 2006
“Les formes sont des limites. Dans la métamorphose les formes ne
connaisent plus de limites.”24
A memória pode oscilar entre a quietude e a desesperada dinâmica para a combater. Nas
duas fotografias de Duarte Amaral Netto, a memória é estática, respeitosa e contida.
Curiosamente vemos os dois lados do humano: a colocação frontal que dá o rosto a ver,
mau-grado o olhar desça sobre o tabuleiro de xícaras de café e a colocação de costas, onde
o pescoço duvida sobre a imobilidade ou a decisão. Num e outro caso, constatam-se
22
Cf. Daniel Arasse, Anachroniques, Paris, Gallimard, 2006
Eurico Lino do Vale em entrevista a David Barro, “Retratos Impossíveis”, Bes Phto 2007, Lisboa,
Museu Berardo, 2008, p.35
24
Pascal Quignard, Sur le Jadis, Paris, Gallimard, 2002, p.139
23
situações de ponderação, de evocação memorial e de suspensão para devir. É notável o
dimensionamento cinematográfico com que o artista povoa as suas composições. A
organização das cenas é pontuada até ao mais ínfimo e revelador detalhe. Não se verifica
qualquer incongruência semântica ou iconográfica. Tudo é assim, pois deve cumprir-se. São
imagens estóicas, dir-se-ia. Cada personagem sabe onde se inicia e conclui; os seus limites
enquadram-se na moldura do ambiente - que é uma extensão de si mesma, veja-se a sua
ambiguidade submersa, donde as metamorfoses que, silenciosamente, cada personagem se
imagina para si. Relembro a vivência esteticizada que os episódios contidos de Edward
Hopper nos legaram. Essa afirmatividade externalizava-se na extrema melancólica das
figuras em ambientes urbanos ou provincianos. A contenção dos sentimentos, quase sempre
camuflados em máscaras, denunciava uma natureza dolorida e tardia. Essa lição que poderia
retroceder até certa pintura flamenga do séc. XVII atravessa os tempos e é enunciada nas
imagens de D.A.Netto.
6. NARRATIVA VERSUS CINEMATOGRAFIA
Noé Sendas - Public Domain (Crystal Girls), 2007
“Les pensées de la nuit, toujours plus brillantes, plus impersonnelles, plus
douloureuses. Constamment douleur et joie infinie, et en même temps le
calme.”25
Noé Sendas apropriou-se de mais de 9000 imagens dos anos 50, recoletadas e procedentes
de diferentes locais, designadamente, da internet, toda essa matéria-prima integrando a
Série The Crystal Girls. Trata-se da presença figurada feminina, conformadas numa
diversidade onde se adivinha uma carga erótica forte, uma sedução mais directa ou
indirecta – consoante os casos - e com as respectivas extrapolações. As imagens são
polissémicas, portadoras de significações equívocas ou explícitas. Nalguns casos a atenção
do espectador é de instabilidade cognitiva e percepcional, tornando-o activo e/ou passivo,
numa alternância de atitude que tem as suas exigências. A sedução sobre as figuras
femininas, na sua actuação de maior volúpia, converte-as em objecto de prazer, gerando
25
Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.29
situações de receptividade diferenciada. Trata-se da intencionalidade em exibir, não
somente mostrar ou narrar. Aliás, o que poderia parecer ser a constituição de uma narrativa,
pode ser interrompida, provocando um espasmo na fruição, à semelhança de um acto de
sexo interrompido, não consumado na sua exaustão. As imagens aparecem desprovidas de
um
ajuizamento
valorativo,
ausente
de
impositividades
morais
ou
ideológicas,
manifestando-se mais como constatações visuais. Desencadeado um jogo psico-afectivo que
oscila entre o manifesto e o latente, assim potencializando, também, o jogo entre o sujeito
que é o artista e os sujeitos que são espectadores/contempladores, enfim, todos eles
usufrutuários: é um peep show.
Nuno Cera – Sans, Souci, 2008
“Pourquoi attirez-vousen moi cette parole qu’ensuite il me faut dire? Et
jamais vous ne répondez; jamais vous ne faites entendre quelque chose de
vous mais que je ne dirai rien, sachez-le. Ce que je dis n’est rien.”26
Sans, Souci é um video que cita o guião de Alain Robbe-Grillet, “L’année dernière à
Marienbad” (1961), tornado emblemático pelo realizador Alain Resnais. À semelhança da
obra de referência, em Sans, Souci, os dois protagonistas encontram-se novamente, para
desempenharem a sua história inverosímel. A consciência e externalização do tempo não
residem numa acepção de consequência, de causalidade linear. A narrativa encontra-se
segmentada, fragmentada, tornando-se impossível qualquer medição “coerente” de tempo
entre as cenas e nas cenas. O dimensionamento nostálgico, a ambiência melancólica da
ficção são o alimento que solidifica a intensidade do amor, da solidão, do abandono, do
trauma, da morte (num sentido freudiano) que não é assumida. Trata-se de uma melancolia
que não é produtiva, se atendermos à nomenclatura habitual, antes demonstrando
constrangedora passividade, camuflada em actos desenhados, inconsequentes ou talvez não.
São actos lacunares, de incompletude, essa acção desactivada que impõe sublimidade
cénica e fotográfica.
26
Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.11
João Tabarra - O encantador de serpente, 2007
Ao longo de sua vasta produção videográfica, a linguagem estética de João Tabarra
estipulou
uma
abordagem
inédita
e
pioneira.
Manipulando
um
encadeamento
multidisciplinar de conhecimentos, a sua incursão pelos territórios da literatura, filosofia,
teorias sociológicas ou antropologia contribuiram para a afirmação de excelência da
imagem. Somente quem domine as cronologias do saber como no seu caso, pode aplicarse à concepção de vídeos concentrados e ricos em referências e estímulos psico-cognitivos
e plásticos, sendo simultaneamente trabalhos estéticos de resistência – de âmbito
sociológico: “...algumas fotografias e vídeos de Tabarra são mais um ruptura, um semsentido a que apenas se concede uma saída razoável: o desespero. Mas desespero com
humor, e menos desespero.”27
Obra videográfica inscrita na Série G, actua como homenagem distanciada por referência,
neste caso a “performance” de Buster Keaton nos primórdios do cinema. Correspondendo a
uma intenção ironista e acutilante, facilmente detectada na generalidade da sua concepção
e produção videográfica e fotográfica. O Encantador de serpentes remete para um delírio
imagético, em que o humano, procura, incessantemente, dominar o utensílio doméstico que
é uma mangueira de rega. Num fundo arquitectónico, carregado de urbanismo e
isolacionismo, o “encantador” é encantado, submetido e dominado. A serpente diverte-se
desalmadamente, esse objecto zoomorfizado, possuído pelos espíritos dionisíacos da
contemporaneidade. Os seus enredos possuem sempre um acento de inesperado, de
subversiva exactidão que contradizem os dogmatismos típicos de um público acomodado.
Lutam pela primazia da razão, pelo exercício da argumentatividade, pela justeza ética,
ideológica e estética empenhadas.
27
David Barro, João Tabarra, Santiago de Compostela, Ed. Dardo, 2007, p.26
8. NARRATIVA VERSUS MITO-SIMBOLOGIA
Vasco Araújo - O Percurso, (El Camino), 2009
“L’attente seule, donne l’attention. Le temps vide, sans projet, est l’attente
qui donne l’attention. (…) Par l’attention, il dispose de l’infini de l’attente qui
l’ouvre à l’inattendu, en portant à l’êtreme limite qui ne se laisse pas
attendre.” 28
O percurso, vídeo com a duração de 13 minutos, tem a participação dos actores, Cristóbal
Fernández e Nehemías Santiago; a colaboração de voz de Belén Jurado, Nehemías Santiago;
Sergio Sáes, sendo o texto de José Maria Vieira Mendes. Corresponde a uma encomenda de
Cajasol Obra Social focando-se no tema do flamenco. Em Espanha, sobretudo nas regiões
do Sul, o Flamenco – dança, canto e música castiços – possuem uma carga mítico-simbólica
da maior intensidade. Combinam a tradição popular procedendo da Cultura Cigana, seu
nomadismo implícito e a transmissão oral, de geração em geração. Considerando a
articulação da dança – com um vocabulário cinético específico e simbólico, da música que
evolui em crescendos flexíveis e agudos rígidos e, finalmente do canto que potencializa
ambas música e conteúdos poéticos, constata-se a analogia às primordiais expressões
artísticas na Grécia, ou seja, a triunuca choreia. Esta, surgiu na sequência dos rituais
celebrados nos cultos órficos e dionisíacos, suscitando as mais intensas emoções no público.
Assim cumpria a sua missão catártica, elevando-se as almas e transcendendo-se o corpo no
seu paradoxal domínio e despojamento. O acto de caminhar, a constituição da
peregrinação, associa os valores ancestrais da cultura cigana à mais entranhada crença
católica, subsumada na figura da Virgem. Assim, o caminho se faz caminhando – como disse
António Machado. A aproximação entre a criança e o homem simboliza as passagens
iniciáticas que velam pela memória deste povo nómada.
28
Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli,p p.36-37
João Pedro Vale - Amália, 2009 / Do you know what I mean? 2006
Tanto quanto o Flamenco em Espanha, o Fado em Portugal, arrasa almas e corações. A
substância poética do Fado é heterogénea e oscila entre quadras populares e poemas
eruditos.
A
matriz
psico-afectiva
coincide
entre
ambas
radicações:
a
paixão
incompreendida, os amores desenganados, as recusas violentas e os abandonos
irreversíveis. A mulher subjugada que, curiosamente submete o homem sob sua volúpia e
vice-versa…quase. Entre as gerações do séc. XX, a partir dos anos 40 emergiu Amália:
tomada como paradigma de uma nacionalidade ideológica específica, arrebatou todas as
facções ideológicas, por estranheza que se pense. Assim, se entenda a actualidade da
figura de Amália. No caso da obra de João Pedro Vale, consiste então numa fotografia
destinada à capa do disco Paixão – compilação de temas de Amália Rodrigues. O artista
“grava”, esgadanha, o nome Amália no seu próprio peito até este sangrar. Reconhece-se a
acção (Accionistas vienenses, Body Art…) que evocará – quase certo - um dos versos de
Camões em Os Lusíadas: "O nome que no peito escrito tinhas", no Canto III que narra o
Episódio de D. Inês de Castro e D.Pedro, sobre a compulsividade do amor trágico na
tradição literária portuguesa. Sob este corte, emerge um outro, que decompõe o nome da
fadista, levando-nos a lê-lo em forma alternada: ora Amália, ora Ama + lia. Partindo da
suspensão, estabelecida entre sonoridade e semântica da palavra, João Pedro Vale
organiza sentidos diferenciados, concatenados entre si, que se exigem e repudiam…à
semelhança dos enredos do Fado…
Numa complementaridade que se entende entre a escrita e a imagem, a fotografia onde
boca aberta se entope de moluscos, repulsivos e viscosos, simbolizará porventura o acto
sexual que, por excelência, agoniza numa volúpia impedida de se auto-consumar: Do you
know what I mean?
9. OBJECTOS VERSUS FICÇÕES
João Paulo Serafim - Desempacotando a Biblioteca do MIIAC, 2009
“Entre texte et image, la différence est flagrante. Le texte présente des
significations, l’ime présente des formes.
Chacun montre quelque chose: la même chose et une autre. En montrant,
chacun montre soi-même, donc montre aussi bien l’autre en face de lui. Donc
aussi se montre à lui…” 29
De João Paulo Serafim apresentam-se as fotografias integradas na Série Desempacotando a
Biblioteca do MIIAC - Museu Improvável de Imagem e Arte Contemporânea. Trata-se de um
museu ficcionado, invenção do próprio artista, que poderia recordar-nos a Fundação do
artista Espanhol Diego Santomé... Através de fotografias grandes, o artista conduz-nos pelo
espaço “museológico”, penetrando nos meandros de galerias de exposição, vislumbrando a
colecção, acedendo ao seu acervo. A memória individual e colectiva, o património artístico e
incorpóreo visibilizam-se em composições imaginárias que legam uma funcionalidade
arquetípica, fruto da investigação teórica e estética que se vê nas obras desde 2005. A nível
mais profundo, João Paulo Serafim questiona o que merece estar num Museu, à semelhança
de quais sejam os títulos, dos livros imperdíveis da suposta biblioteca, que devem ser
desempacotados (Malraux – Le Musée Imaginaire (!), Georges Pérec – Un cabinet
d’amateur), qual a legitimidade das fotografias para (ainda) alguns indivíduos incrédulos e
incipientes numa Colecção de Museu… Num e outro caso, reside a decisão, talvez, na
autoridade do artista – em pontuação quase auto-biográfica.
29
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, pp.121-122
Pedro Diniz Reis - One, 2002/8
Beautiful Day, 2002
“L’image - comme l’exemple pour obsessionnel – est la chose même.”30
Morangos apodrecidos que evocam a revisitação do conceito de natureza-morta (confrontese o vídeo de Sam Taylor-Wood, Still-Life – 2003) e o revólver pousado num perfil apontado
para o espectador são imagens carregadas de potenciais leituras – em moldes
hermenêuticos. As composições, designadas convencionalmente por naturezas-mortas, na
historiografia de arte foram inseridas, por alguns teóricos sob a tipologia ou género de
paisagem. Perante ambas fotografias, colocamo-nos como perante uma paisagem que pode
extrojectar medos de perda, degradação irreversível ou desenlace imprevisto. Por definição,
uma paisagem implicava o contacto com o real (não necessariamente “o” natural). Ao longo
da história assumiu formas diferenciadas, relativamente aos temas das obras: religiosos,
históricos, mitológicos ou comemorativos. Mas também temáticas como externalização de:
efabulações compósitas de linhagem onírica; construções subjectivas subsumidas em
atributos simbólicos; organização de objectos num contexto intra-uterino que é a casa onde
se vive…e tantos mais exemplos que se queira. Então, morangos podres e revólver
dormente são paisagens quanto representação de objectos sejam. Enquanto susceptíveis de
cativarem – em tempo de contemplação mais do que de observação – o nosso olhar para
ver, possuem a força intrínseca das associações livres que cada espectador esteja disponível
a oferecer-se a si mesmo.
10. ESPAÇO, ESTRUTURA & INTERVENÇÃO
“A fotografia será sempre uma imagem, tendencialmente
desmaterializada, ainda que acabe por ter uma expressão física – nem
que seja o carácter físico do suporte.”31
“O céu é um quase vazio. Há nele pouca matéria fotográfica para além
das ocorrências atmosféricas ou das estrelas.”32
Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, p.159
Daniel Malhão em entrevista a Joana Neves, “Sem Título”, Bes Photo, Lisboa, Museu Berardo, 2008,
p.13
32
Idem, ibidem, p.17
30
31
Daniel Malhão - ASA 05, 2008
A obra fotográfica de Daniel Malhão relaciona-se à capacidade de reverberação do espaço
em direcção horizontal e vertical. A fisicalidade dos objectos fotografados ou a evanescência
de paisagens irrealizáveis (quase) são demonstrativas da sua capacidade de conciliar
opostos. O que se encontra nitidamente visibilizado na obra presente nesta mostra. Os
segmentos
do
avião,
separados
nas
unidades
do
tríptico
são
matéria
que
(magicamente…ainda assim alguns acreditam…) se segura no ar! Ao fundo, muito em
profundidade as oscilações topográficas da terra, do solo, introduzem uma terceira
componente, estipulando camadas semânticas e poéticas que me relembram Bachelard. Por
outro lado, aviões e aeroportos são compostos conceituais que traduzem tópicos
antropológicos como deslocação (e seus sentidos pragmáticos, quanto os substantivos),
modelos de linguagem em confronto, relações e volumetrias planificadas decorrentes da
aplicação de escalas e de cor… Enfim, entende-se que lhe importa analisar a arquitectura
enquanto susceptível de ser constructo (temática transversal no seu trabalho), assim como,
através das respectivas estruturas, tornar mais acutilante o olhar e incitar a memória visual.
Filipa César - Allee der Kosmonauten, 2007
Allee der Kosmonauten (2007) foi filmado em 16mm e, posteriormente, transferido para
Dvd. O seu conteúdo remete para o registo de um passeio para pedestres "Allee der
Kosmonauten", em Berlin-Marzahn. Esta Avenida, foi assim apelidada em homenagem a
Jähn e Waleri Fjodorowitsch Bykowski, viajantes no espaço, numa “jornada épica” que
pretendeu consolidar a união entre a Alemanha de Leste a União Soviética. Era uma artéria
da cidade, do lado Oriental, tornada emblemática e carregada de valor ideológico e político.
A extensão de vias de comunicação na cidade de Berlim foi, desde os tempos mais
primordiais da consciência urbanística, algo de concreto. A capacidade de estender o olhar
até um horizonte pontuado por edifícios majestosos ou monumentos mitificados conviveu
com os vestígios e sequelas da 2º Guerra mundial e, posteriormente, da guerra-fria. À
filmagem concebida por Filipa César estão subjacentes a contextualização sócio-histórica, as
circunstancialidades e castrações ideológicas e a suposta redenção que, todavia, foi
questionada a Oeste e a Leste. As estratégias de técnicas e tecnológicas para a concretizam
da peça denotam o rigor e a lucidez que atravessa toda a sua produção artística. Supõe a
pesquisa e reflexão sobre os tópicos de conhecimento que se exigem para a objectiva
materialização e registo das ideias que avança, numa era em que o mundo se dissolve em
lutas inglórias e continua a ser perseguido por fantasmas antigos…
José Carlos Teixeira - JTE#4#003, Between clarity and fog, 2009
Between Clarity and Fog (1) é a primeira versão vídeo de um projecto que o artista
pretende seja mais abrangente, tendo por premissa, e consequente pragmática, a ideia de
fronteira interna e invisível. Consiste numa viagem pessoal que realizou pela Alemanha,
plasmando uma poeticidade que se articula com o enquadramento histórico e a
contextualização ideológica e societária. Esta instalação-video reflecte, pois, quer sobre
questões de auto-identidade(s), quanto questiona e procura a solidez e delienação das
fronteiras difusas, mas ainda vigentes e condicionadoras, entre o Ocidente e o antigo Leste
europeu. Na sequela dos factos que estabeleceu o cenário europeu actual, acima da
simbólica e do significado da reunificação das Alemanhas, persistem as dúvidas e as
ambiguidades entre os territórios outrora divididos pelo Muro de Berlim. Mas, também e
apesar disso mesma, parece emerger alguma poeticidade melancólica, trágica e de
aceitação. O que cabe experienciar-se e viver, direcciona para as topografias intersticiais –
individual/colectivo, singular e partilhado, gnósico e tecnológico…
Claridade e nevoeiro são metáforas, resíduos de radicação identitária, de dentro do sujeito
para a extroversão no Umwelt e, talvez, sustentando uma Weltansgchaung qualquer… numa
composição que integra e é constituída por retratos, paisagens naturais e arquitectónicas;
entrevistas e depoimentos, numa miríade de vozes que configuram a totalidade da obra –
Gesammskunstwerk…dos tempos actuais…na tradição europeia de Ulisses, as viagens
redimem e explicitam os tormentos, as perplexidades, numa previsão dúbia de chegada.
João Leonardo - Sony cybershot (memory stick), 2005
Sob formato de video-clip, a peça de João Leonardo reflecte acerca de questões situadas
nos domínios da percepção e da memória. Sendo privilegiada a percepção visual – pois de
imagens se trata – não se ignorem as existências sonoras – pois de sonoridades se trata,
também. Entre imagens sequenciais que se incorporam no quotidiano do artista, a sua
travessia (talvez mais do que de viagem se trate) decorre em territórios mentais,
reconcebendo paisagens internas e profundas. Entre a cartografia da internalidade e da
externalidade, a canção “Hands Around My Throat, by Death in Vegas”, do álbum Scorpio
Rising (denominado a partir do filme vanguardista de Kenneth Anger) foi usada,
precisamente, na campanha publicitária da Sony Ericsson em 2005. Os cartões de memória
vão arrecadando segmentos de realidade cativada de fora para dentro do sujeito e de novo
para fora de si, num jogo que implica, em dado momente fazer delete pois a memória está
esgotada. A memória dos indivíduos bloqueia os factos e episódios ou expande-os de tal
forma que nenhuma tecnologia lhe vale. Então, cabe fotografar, registar em vídeo, até ficar
sem respiração nem memória…
Timeline#, 2009, 10x15cm (cada, conjunto de 10 imagens)
“Partindo de um arquivo de imagens digitais que o artista tem vindo a criar nos últimos 5
anos – num registo diário quase obsessivo – esta exposição explora o conceito de memória
e a condição da fotografia na sua relação com o universo intimista do próprio artista (…).
A diversidade e o aparente caos são tão mais surpreendentes como a própria simplicidade
do trabalho. O olhar individual de quem produz a imagem é o fio condutor real que nos
permite ver – como num espelho – a própria memória do criador.”
João Onofre - Instrumental version, 2003. original soundtrack
Instrumental Version (2003) foi concretizado na sequência do vídeo, consignado ao mesmo
título e datada de 2001. Este, consistia no registo sonoro realizado pelo Coro de Câmara da
Cidade de Lisboa que, por solicitação do artista, interpretou “The Robots” (1978) do grupo
alemão Kraftwerk. Nesse vídeo ficou registada a performance/coral, evidenciados os
cantores que integravam o Coro, na assunção plena da actuação mais convencional. Assim
se trasladava a erudição para “The Robots”. O Vynil apresentado nesta mostra contém essa
interpretação, na ausência das imagens dos vídeos de 2001, mas tendo adquirido matéria
enquanto objecto tridimensional e de funcionalidade específica.
Leap into the street, (Boombox travelling), 2004
Em 1961, Leap into the Void de Yves Klein estabeleceu um paradigma performático, cujo
registo fotográfico expandiu e multiplicou o impacto. Num primeiro momento, o artista
francês “saltou”, “projectou-se” de uma janela, devidamente preso a cabos que os amigos
seguravam. Posteriormente, a acção foi encenada, registada e replicada numa montagem
fotográfica publicada no jornal de domingo. Tratou-se, também, do confronto a um público
ignaro de tais manifestações. Parafraseando Klein, João Onofre converte a questão
identitária e singularizada, a um plano objectual e subsuma-a numa Boombox à solta pelas
ruas da cidade de Lisboa…
11. PAISAGEM. ARQUITECTURA & IDEOLOGIA
João Serra - Dacha, 2009
“O universo fotográfico de João Serra mantêm como foco a arquitectura como objecto de
discussão social. O seu jogo é de revelar o implícito abandono, o excluído, o marginal que tantas
vezes esconde-se sob forma de reformulação urbana. Suas imagens são tiradas nos bairros
populares e periferias das grandes cidades, conjugando um rigor das linhas da fotografia – uma
herança estruturalista na fotografia contemporânea, com um elogio da cor e da sensação. Nesta
exposição, Dachas, João Serra mostra a transfiguração dos bairros industriais da região de
Murmansk, na Rússia, quando os trabalhadores criam pequenas casas de veraneio, as tais dachas,
em meio a uma paisagem industrialmente feias e sem vida.” Paulo Reis
Uma casa possui um significa que atravessa todas as culturas e tempos, na maior
diversidade que se sabe. Independentemente de morfologias e funcionalidades, existe para
pessoas que, em períodos e gerações diferentes as habitam nos 3 tempos verbais do
humano. As referências às Dachas na literatura, ou no cinema possuem uma carga
simbólica, que se depreende. Atravessando regimes políticos e sociais, correspondem a uma
linhagem de arquitectura funcional tanto quanto arquetípica. A força das linhas regulares
inscreve-se na paisagem nalguns casos algo difícil de caracterizar: numa inscrição quase
urbana, numa pertença quase campestre…em locais que – ao olhar do espectador
desprevenido – se tornam quase indecifráveis, quanto a uma caracterização definitiva ou de
maior precisão (caso se contemplem as imagens, sem saber o contexto em que foram
realizadas). Por outro lado, os materiais, vegetação, fundo de paisagem, linhas de horizontes
e céu compõem-se numa leitura que se aproxima de uma pintura de tendência realista. A
apropriação de uma tipologia arquitectónica valida a sua salvaguarda enquanto o artista lhe
enfatiza a dimensão patrimonial.
Luís Palma – Série Ocupação, 2009
“Un jardin, un clos, non pas cependan d’abord clos en tant que fermé sur
soi, mais déclos: ouvert à une capacité qui est la sienne, qui ne lui préexiste
pas tant qu’il ne se dispose pas dans sa clôture.”33
A série “Ocupação” foi desenvolvida a partir da recolha de imagens fotográficas no Parque
Natural da Ria Formosa, Algarve. A “arquitectura de férias” foi disseminada em espaços não
organizados, na maioria dos casos, esquecendo qualquer (PDM) Plano Desenvolvimento
Municipal - em termos de responsabilidade urbanística, antes respondendo a interesses do
mercado imobiliário. As fotografias destas casas de lazer, implantadas em locais
potencialmente turísticos servem como memória registada, e situam-se num contexto
histórico-social e político específicos. Como se lê no press release da sua recente exposição:
“Ao conjunto destas imagens, Luís Palma concede o despojamento artístico em prol da
mostra de uma memória real, para lá de se afirmar simples documento, que se centra na
captação de conteúdos que nos conduzem a diversas questões de abordagem da
percepção imagética, do espaço construído e da «paisagem».”34 Por outro lado, questionese que significado possuem estas casas enquanto locais para serem habitados: casa como
habitação. Ocupação de casa, por seus habitantes também é modo de ocupação, mas não
de usurpação…de território ou denegação da natureza.
Paulo Catrica - Londres, 2008/ Londres, 14.05.08, 2008
“Nous ne coulons pas, mais le fond monte à nous dans l’image. La double
séparation de l’image, son décollement, sa découpe, forme à la fois une
protection contre le fond et une ouverture à lui.”35
A tradição da fotografia conceptual impôs-se e perdura, revestindo-se de abordagens
distintivas e singulares como no caso de Paulo Catrica. A série Londres alastrou pela cidade,
guiando um equilíbrio histórico e estético e cativando cenários de exterior e interior. As
imagens são registos de estilos arquitectónicos que, tendo sido implantados na cidade, se
acompanharam de tipificações comportamentais e de protagonismos humanos que se
33
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.102
Cf. www.carolinepages.com , consultado em 25 Fevereiro 2010.
35
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.31
34
ausentam. Resultam da aplicação de uma metodologia de trabalho técnico-artístico que
gerou escola em Portugal, à semelhança do ocorrido em outros países. São imagens frias,
austeras, depuradas, sem condicionamentos emocionais ou psicio-afectivo, antes assumindo,
exactamente essa consciência de isolamento. A figura humana como ausência é, pois, um
denominador comum em autores que seguem tais determinismos conceptuais. Apesar de
lhes estar implícita.
Mariana Viegas – Série Satori, 2009
“Le paysage commence par une notion, fût-elle vague ou confuse, de
l’éloignement et d’une perte de vue qui vaut pour l’oeil physique comme pour
celui de l’esprit. Il en est ainsi, déjà, du pays.”36
“MATA DA MARGARAÇA. O tipo de vegetação desta mata é exemplo do que se encontraria antes da
intervenção humana, há cerca de 5 mil anos. Com 5 hectares de área, as relíquias mais citada da Mata
da Margaraça são o carvalho alvarinho, os azevinhos e castanheiros e também vários tipos de
orquideas e cogumelos raros.37
PEDREIRA DA SECIL. A pedreira da Secil foi fundada em 1906 com actual localização de extracção de
pedra na Serra da Arrábida. O plano Parque Natural da Arrábida, criado em 1976, incluiu área da
pedreira.38
RIA FORMOSA. O Parque Natural da Ria Formosa fica situado na zona lagunar do sotavento algarvio
e tem cerca de 18.400 hectares que se estendem por 60 quilometros, do Rio Ancão até à praia da
Manta Rota.39
PISCINAS FLUVIAIS GÓIS e ARGANIL. Com recurso aos fundos comunitarios, inúmeras piscinas
fluviais foram construídas recentemente. A sua construção contribui para a fixação da população que
36
Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.103
“ As ruínas de casas que existiam neste lugar pertenciam à antiga Quinta da Margaraça e foram
reconstruídas em 2001, em xisto, seguindo a tipologia das construções originais e adaptadas a um centro
de interpretação da natureza e uma casa-museu.” Mariana Viegas, excerto do texto.
38
“A Secil começou o plano de reflorestação em 1982 tendo até hoje plantado uma área equivalente a 70
campos de futebol em sucalcos de 20 metros de profundidade. Recentemente, a área da extracção foi
aprovada até 2044, podendo atingir a extracção anual de 36 milhões de metros cúbicos. A seguir à água, o
cimento é o produto mais utilizado pelo homem.” Idem, ibidem.
39
“O Parque foi criado em 1987 partindo do estatuto de reserva Natural que existia para esta zona desde
1978, visando a protecção dos habitats de aves aquáticas internacionais. Nessa altura já existia o
aeroporto de Faro, que fora inaugurado em 1965 com um movimento de passageiros muito baixo.
Actualmente o aeroporto transporta cerca de cinco milhões de passageiros por ano, e prevê-se que depois
das obras de alargamento previstas passe a funcionar para 8 milhões de passageiros/ano.” Idem, ibidem.
37
durante os meses de verão tem tradicionalmente a tendência a deslocar-se para as praias do litoral
atlântico. O controle das correntes baixa o número de acidentes e afogamentos que se verificavam
anteriormente nos rios.”40 Mariana Viegas
No caso de Mariana Viegas, a paisagem como conceito tem sido enriquecida por múltiplas
apropriações. Em Satori, série em que se inscrevem as suas fotografias nesta mostra,
verifica-se uma transposição simbólica que agrega uma carga semântica às imagens,
pertencente à cultura japonesa. Satori significa revelação, consciencialização: no caso das
imagens de Mariana Viegas, a sua intencionalidade e atenção dirigiram-se a lugares em
Portugal, cuja paisagem foi recentemente intervencionada, como se constata da leitura dos
excertos escritos pela própria artista. A sua fragmentação da paisagem – entendida como
todo susceptível de ser “escolhido” parcelarmente – converte, o que poderia ser considerada
uma paisagem de sítio nenhum, desencarnada de anima, em indicadores lúcidos e
reveladores da iconoclastia antropológica vivida no presente. A sua incursão na paisagem
reflecte uma decisão efectiva, pretendendo uma aproximação estética por via de uma certa
“reciclagem” filosófica, da crítica histórica e sociológica, significando, ainda, um retomar,
com propriedade autoral, da própria fotografia (incidindo sobre si a correspondente
argumentação artística).
André Cepeda - Last night, Iowa, 2008/ Lonely Nights, Indianapolis, Indiana, 2008/ Untitled, Missouri, 2008
“The project is the result of 28 days on the road in the company of my friend and artist Eduardo Matos
throughout the many roads of USA, especially along the Mississippi River, either by car, by train or by bus,
sleeping each night in a different motel and in the following days discovering and exploring the changing
light and colours of the American landscape.” André Cepeda, 2009
Em conformidade com o seu percurso longo como fotógrafo, André Cepeda reúne a sua acção
em redor dos conceitos de viagem, paisagem (atendendo a diferentes tipologias) e humanização.
Nas 3 fotografias desta série, constata-se a ausência de pessoas registadas na paisagem. Todavia,
em cada uma delas, a sua presença é implícita e incontornável. O automóvel ficou esquecido por
alguém no meio de um percurso; a estrada alarga-se num ponto de fuga quase renascentista,
40
Algumas destas piscinas foram construídas no centro das aldeias e contribuem para o contacto entre
visitantes e locais e a animação, durante o período estival, destes lugares pouco povoados durante o resto
do ano.” Idem, ibidem.
tendo sido construída pela força de uma intervenção na natureza em prol de um
desenvolvimento comunitário…quer em função de um dimensionamento poético nocturno, quer
na nitidez anímica da visão diurna. Aliás, na obra do artista, estas duas modalizações filosóficas
fazem-nos retroceder até ao pensamento de Gilbert Durand (veja-se “Estruturas Antropológicas
do Imaginário”). Muito frequentemente, a sua obra é dirigida por uma ou outra vertente e
substância também na sua visibilização empática e, portanto, estética. As potencialidades psicoafectivas, societárias e críticas que são substância das suas imagens agarram o espectador, pois
este reconhece as dúvidas e as certezas – ultrapassando-se o paradoxo – pois são realmente
paisagens da estrutura do imaginário, quanto da razão e sensibilidade do humano.
12. PAISAGEM VERSUS SIMULACRO
Samuel Rama - Sem Título #2, (série MAGMA), 2008
“Na sua acepção latina, MAGMA, significa vestígio de um perfume. Na acepção grega designa também
o resíduo que fica após terem sido estriadas as partes mais fluidas de qualquer substância. MAGMA
apresenta-se também como um modo de pensar o invisível, a camada ígnea que se encontra no
centro incandescente da terra e que como sabemos quando atinge a superfície passa a designar-se
lava. MAGMA é uma ideia sobre a terra. (…) As imagens fotográficas apresentam esculturas anónimas
ou construídas e o desenho já incorporado na lógica de criação da imagem escava o espaço, empilha,
agrega, opera continuidades e descontinuidades, marca alternadamente um fragmento, uma
proximidade, luz e sombra, denuncia ravinas, cavernas, estruturas ambíguas, fissuras. Através do
desenho a paisagem aparece segundo uma nova ordem proto-escultórica e o olhar é transportado
para dentro da matéria microscópica da paisagem e da fotografia.
Nas fotografias que fazem parte da exposição intitulada MAGMA interessa-me recuar a uma
arqueologia do meio fotográfico analógico através da produção de calótipos, utilizando uma
câmara de grande formato e simultaneamente fazer uma fuga para os novos processos
fotográficos, digitalizando e imprimindo nas novas técnicas digitais. Conceptualmente procuro
produzir imagens onde não há presente.” Samuel Rama
Recuperando algumas reflexões relativas à estética implícita na obra de Samuel Rama,
mencione-se que são os deuses do interior da Terra, do mundo subterrâneo, que o artista
celebra. Na nomenclatura clássica, na mitologia grega, designavam-se por deuses ctónicos.
Na série Magama, como posteriormente na série Escavação, esses deuses presentificam-se.
Emergem das entranhas da terra, agridem a paisagem à superfície, revolvendo-lhe as
vísceras. Por isso, existem minas, pedreiras, todos esses lugares onde as escavações podem
desenvolver-se e moldar territórios. Por isso, ainda, os vulcões espreguiçam-se, revoltam-se
e lançam a sua ira contra a própria Terra-Mãe, numa luta em que Electra não saberá,
porventura manipular…
Miguel Ângelo Buonarroti acreditava que a forma pré-existia na matéria e que ao escultor
bastava retirar o excesso para que aquela fosse desocultada, alcançando a sua identidade
singular. A terra (magma, matéria, pó, pedra…) seria, pois, uma espécie de epiderme densa e
ávida que – em moldes auto-fágicos – poderia reabsorver tudo aquilo que germinasse.
Assim, perecer, engolir ou enterrar eram actos previstos, pois as grandes forças o
anunciavam em estado de culpa para os humanos. Esse efeito de “sucção”, de força
centrípta, que se estende pela vastidão susceptível de ser demarcada pelo homem, pode ser
corrompida pela a acção que tem um objectivo destinado e o acto do fotógrafo que
persegue os locais que se estendem e mergulham sobre si, desvelando as suas marcas,
vestígios, rastos ou indícios. A acção contrária exerce-se na expulsão dos fluxos, das
substâncias repudiadas para esculpir novas rochas, montanhas, expandir territórios…Este
dimensionamento quase peierciano – indícios, vestígios e que Samuel Rama pretende,
domina e faz-se reconhecer num domínio que remete para o mundo ctónico mais do que
para o telúrico…
Duarte Belo - Sem Título, 2007
“Le rêve replonge le corps dans le jadis; dans l’état primitif et de satisfaction
immédiate de la vie intra-utérine.Le sommeil est le vieux corps hôte où Ego vient
se réenfouir en fusionnant.” 41
“Made in Heaven
O abandono de um documentalismo na transformação digital da imagem. Partir de uma frase, made
in heaven’, para trabalhar imagens já não numa condição de fidelidade à captura do visível, mas
41
Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.131
utilizar a fotografia como imagem de pensamento, de realidade imaginada. A procura de novas
linguagens de expressão pela fotografia, num mesmo universo que tem como base a paisagem, a
arquitectura, o solo que pisamos.” Duarte Belo
As Catedrais, as igrejas magnas do Cristianismo cumpriram funções complementares, de
valência profana articulada a missão e dogmas religiosos e teológicos quase intemporais,
apesar das mudanças nas sociedades europeias ocidentais. As tipologias arquitectónicas,
neste recorte, estendem-se com mutações e variantes nos países europeus, tendo em
consideração as especificidades artísticas algo diferenciadoras - embora inscrevendo-se em
denominadores comuns a uma estética afecta a determinado período da história da arte.
Quando a fotografia da arquitectura de uma Catedral se investe de valores estéticos que a
distinguem da arquitectura em si, significa que o artista lhe procurou aderir valores
singulares, diferenciadores. Os interiores das igrejas na série de imagens de Duarte Belo
estão exactamente em concordância com a poética existente em toda a sua obra. Existe
sempre uma axiologia estética – independentemente da natureza das tipologias dos
conteúdos paisagísticos fixados, bem como uma axiologia poética que direccionam para a
celebração sublime da experiência do contemplador. São imagens que carecem tempo para
serem olhadas, pedem plenitude e duração. As figuras que atravessam como fuga barroca
os interiores das igrejas são, decididamente, humanas. Podem voar, aparentarem uma
evanescência e desaparição, materializarem quase auras mas trata-se de “gente”. Deixam
atrás de si rastos, vestígios lumínicos que se, por um lado, são associáveis à acepção
estética da Luz (afecta ao período medieval) também expõem a condição humana de
superação de si mesmo e de transcendência espitirual. Assim, color, splendor e lumen são
interpretações de Luz que auferem conhecimento não somente divino mas ao
humano.
Rita Magalhães - Memoria dos objectos, 2008
A artista pretende gerar imagens que suscitam a contemplação prolongada por parte do
espectador, devendo este ir desvelando os elementos quase imperceptíveis que residem sob
camadas sucessivas de transparências e de translucidez. Recorre para a concretização destes
efeitos de deformação dos objectos “por detrás” da imagem, a lentes convexas. Nessas
imagens reconhece-se a ancestralidade das pinturas flamengas e holandesas do séc. XVII
que celebravam o virtuosismo pictórico através da minúcia e detalhismo na cativação de
elementos especulares e seus respectivos conteúdos iconográficos quase mínimos.
Rita Magalhães manipula a câmara como se fosse um instrumento de pintura, inserindo-se
numa apropriação estética que se localiza na história da fotografia, sob a designação de
picturalismo. As “afinidades electivas” entre a fotografia e a pintura já foram suficientemente
analisadas. No presente caso, saliente-se a proximidade interrelacional, pois os objectos que
vivem por detrás dessa cortina de vidro, são instrumentos do quotidiano (mais uma
afinidade às cenas privadas e domésticas, mesmo alguma alusão ao que, posteriormente
seriam as Conversation Pieces. Toda a ambiência remete para especulações sucessivas sobre
as tipologias que se unem sob o grande conceito – aqui ontológico quanto antropológico –
da memória. Os valores da memória na obra de Rita Magalhães possuem uma evidência e
uma precisão irreversíveis. Sustentam, alimentam as suas metodologias, as suas opções e as
suas fundamentações em prol de uma realização peculiar.
A abordagem que a artista faz relativamente à luz, leva-nos, de novo aos territórios da
pintura, convocando zonas luminares de Caravaggio, Georges de la Tour e, nalguns casos
Vermeer e Rembrandt. Esta indexação prioritariamente, ainda que não exclusiva à Estética
Barroca, expressa-se também na meticulosidade dinâmica com que trabalha as unidades de
objectos, se bem que a ordenação dos elementos nas prateleiras esteja mais numa acepção
quase geometrizando, donde se isente o dinamismo das formas e o impulso de movimento.
São imagens de sublimidade, preconizando a experienciação que Caspar Friedrich dominou
com mestria: esse cruzamento com a melancolia que se excede em afectos tempestuosos,
antecipados no movimento Sturm und Drang.
Manuela Marques - St. T, 2006
“L’image est péremptoire, elle a toujours le dernier mot; aucune
connaissance ne peut la contradire, l’aménager, la subtiliser.” 42
As paisagens de Manuela Marques caracterizam-se por uma poética que não rejeita a
afirmação objectiva do mundo. São excertos de paisagem natural – caso das duas
fotografias desta mostra – que denotam ritmos vivenciais e observações do real
complementares. Perante os conteúdos das duas fotografias não se evite relembrar Gaston
42
Roland Barthes, “Les Images”, Fragments d’un discours amoureux, p.157
Bachelard e a sua teorização sobre o poético e imaginário da matéria – ar, água, terra e
fogo.
A paisagem precisa, para se constituir, em termos epistemológicos e artísticos, de um
sistema
complexo
de
correlacionalidades
entre
diferentes
elementos
naturais,
arquitectónicos, urbanos e entre tons, luz, cores e medidas em pluralidade; não se limita à
apresentação isolada de tais elementos. Todos se embrenham, jogam e posicionam, numa
organização decidida pelos actos decisórios da artista que retalha o excerto de paisagem
que, consoante os casos, a emotividade ou a razão destinam. Tal explica porque a paisagem
aparece
apenas
nas
civilizações
altamente
evoluídas,
exigindo
um
conjunto
de
procedimentos técnicos detalhistas. Na pintura, em certas estéticas canónicas, verificava-se,
todavia, um desajuste de dimensões, por exemplo, entre as árvores e as montanhas, entre
os rios e as personagens que, ainda que permanecendo susceptíveis de modificação, por
motivos simbólicos ou representativos, deviam, contudo, ser sugeridos, confirmados, de uma
qualquer maneira, de modo realista ou transfigurador...
O monte verde emerge das entranhas da terra, rodeado por folhagem ressequida. É uma
imagem que revela a inerência melancólica da paisagem, afectada por razões antropológicas
que exprimem a lacuna e a memória dos ciclos do ano em regeneração. O céu azul
evidencia mais ainda a lassidão da vegetação em pousio. É a quietude, a duração, a lentidão
da vida que passa quando a ausência está: terra, ar e o fogo que, potencialmente pode
deflagrar. Contrapondo, a água agitada em azul, cuja densidade expande, gerando um
dinamismo que é derrotado pela austeridade das margens rochosas. Eis os quatro
elementos agindo em plenitude, através de metáforas, extrapolações significativas ou
consubstancializações imagéticas. Narra-se visualmente a paisagem para a dominar.
Porto/Lisboa, março 2010