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Da outra margem do Oceano - Fotografia e Vídeo Arte

2010, Catálogo

"Da Outra Margem do Atlántico-alguns exemplos do video arte e da fotografia portuguesa" "Ce sont des fragments d'images impulsives, ou compulsives, ou plus simplement pulsives, spontanées, d'une seconde ou deux, par lesquelles le temps se précède lui-même dans l'invisible. » 1 0 A propósito da fotografia como imagem e convocando a percepção visual, tanto quanto a razão e sentimento: é tudo uma questão de olhar, de saber olhar, para ver, para enxergar. Sendo o olhar, por excelência, um "ver" = imanente que significará a Luz, simbolizando o Conhecimento. Será questão, ab initio, de saber para onde olhar. Pois se constata a diversidades de olhar: "o olhar do outro" (Jean-Paul Sartre), "o olhar viajante" (Sérgio Cardoso), "o olhar do flâneur" (Baudelaire, Walter Benjamin…), "o olhar do Wanderer"(Herman Hesse), "o olhar do estrangeiro" (Nelson Brissac Peixoto), "o olhar que não conduz a lugar nenhum" (Rainer Marie Rilke), "o olhar errante" (Bruce Chatwin), "o olhar da alma", "o olhar simbólico", "o olhar mítico", "o olhar cego", "o olhar reflectido", "o olhar utopista", "o olhar hermético", "o olhar saturniano", o "olhar plutuniano", o "olhar onírico" até mesmo "o olhar de serpente"…-salvaguardando a diferença de ordens epistemológicas enunciadas nesta listagem incompleta…A todos e cada das respectivas tipologias de olhar corresponderá a concretização estética de reconhecer o impulso gerador das imagens, quer fotográficas, quer videográficas que os artistas desenvolvem ou cumprem. Nuns casos, o olhar determinador da imagem, decorre de motivações mais enxutas e lúcidas, noutros casos, não está isentado de psico-afectivadade, compromisso societário, investimento ideológico ou compulsividade de uma qualquer axiologia identitária. Fala-se que em certos períodos da historiografia da arte europeia ocidental, em particular, no caso português, a melancolia se mascarou de saudade…Essa melancolia que foi considerada categoria estética privilegiada e que sustenta confrontos com carismas mais desafectados de emoção. A melancolia que Dürer gravou em simbologias referenciadas a hermetismos, ganhando-lhes adesão esoterista, soube converter-se em sublimidade e lamento…como nos relembrou Georges Didi-Huberman, num estudo acerca das imagens enquanto nelas residem-em são convívio-encenação, indiferença, crítica e muito frequentemente (nos media) vêem-se lamentação. Reconhecemos-lhes, uma certa percentagem (variável) de pathos… "L'image se découpe; elle est pure et nette comme une lettre: elle est la lettre de ce qui me fait mal. Précise, complète. Fignolée. Définitive, elle ne 1 Pascal Quignard, Sur le Jadis, Paris, Gallimard, 2002, pp.28-29

Maria de Fátima Lambert “Da Outra Margem do Atlántico - alguns exemplos do video arte e da fotografia portuguesa” “Ce sont des fragments d’images impulsives, ou compulsives, ou plus simplement pulsives, spontanées, d’une seconde ou deux, par lesquelles le temps se précède lui-même dans l’invisible. » 1 0 A propósito da fotografia como imagem e convocando a percepção visual, tanto quanto a razão e sentimento: é tudo uma questão de olhar, de saber olhar, para ver, para enxergar. Sendo o olhar, por excelência, um “ver” = imanente que significará a Luz, simbolizando o Conhecimento. Será questão, ab initio, de saber para onde olhar. Pois se constata a diversidades de olhar: “o olhar do outro” (Jean-Paul Sartre), “o olhar viajante” (Sérgio Cardoso), “o olhar do flâneur” (Baudelaire, Walter Benjamin…), “o olhar do Wanderer”(Herman Hesse), “o olhar do estrangeiro” (Nelson Brissac Peixoto), “o olhar que não conduz a lugar nenhum” (Rainer Marie Rilke), “o olhar errante” (Bruce Chatwin), “o olhar da alma”, “o olhar simbólico”, “o olhar mítico”, “o olhar cego”, “o olhar reflectido”, “o olhar utopista”, “o olhar hermético”, “o olhar saturniano”, o “olhar plutuniano”, o “olhar onírico” até mesmo “o olhar de serpente”…salvaguardando a diferença de ordens epistemológicas enunciadas nesta listagem incompleta…A todos e cada das respectivas tipologias de olhar corresponderá a concretização estética de reconhecer o impulso gerador das imagens, quer fotográficas, quer videográficas que os artistas desenvolvem ou cumprem. Nuns casos, o olhar determinador da imagem, decorre de motivações mais enxutas e lúcidas, noutros casos, não está isentado de psico-afectivadade, compromisso societário, investimento ideológico ou compulsividade de uma qualquer axiologia identitária. Fala-se que em certos períodos da historiografia da arte europeia ocidental, em particular, no caso português, a melancolia se mascarou de saudade…Essa melancolia que foi considerada categoria estética privilegiada e que sustenta confrontos com carismas mais desafectados de emoção. A melancolia que Dürer gravou em simbologias referenciadas a hermetismos, ganhando-lhes adesão esoterista, soube converter-se em sublimidade e lamento…como nos relembrou Georges Didi-Huberman, num estudo acerca das imagens enquanto nelas residem – em são convívio – encenação, indiferença, crítica e muito frequentemente (nos media) vêem-se lamentação. Reconhecemos-lhes, uma certa percentagem (variável) de pathos… “L’image se découpe; elle est pure et nette comme une lettre: elle est la lettre de ce qui me fait mal. Précise, complète. Fignolée. Définitive, elle ne 1 Pascal Quignard, Sur le Jadis, Paris, Gallimard, 2002, pp.28-29 me laisse aucune place…Voici donc, enfin, la définition de l’image, de toute image : l’image, c’est ce dont je suis exclu. »2 Dizer a fotografia que seja imagem fixa, o vídeo entendê-lo como imagem em movimento, são, em minha perspectiva, decisões reducionistas. Servem qualificar a fotografia de fixa (pois nada se mexe) ou o vídeo de movimento (porque as unidades visuais constitutivas da composição se movem)… Isto sucede porque, na tradição dos modos de pensamento ocidental, se continua a ansiar por reconhecimentos epistemológicos e reasseguramentos cognitivos…assim exigindo nomenclaturas, categorizações fidedignas (e excessivas) ainda que sabendo-as constritoras. A completude de tantos a “olhar” gera a gestação, quanto maior se sabe, a diversidade de imagens: hipnagógicas e hipnamórficas, imagens hípnicas, imagens alucinatórias, imagens por isolamento perceptivo, imagens de estimulação rítmica; imagens consecutivas, imagens eidéticas. Ainda: imagens da memória, imagens evocadoras, imagens da imaginação, imagens mentais… (Michel Zéraffa). As imagens são fortes e saudáveis, independentemente de seu estatismo, hieratismo ou de convulsionamentos barrocos de movimento e dinamismo. As imagens usufruem de uma impositividade que seduz as pessoas, as derruba ou desperta. Perante as obras escolhidas para esta mostra essas experienciações estéticas acontecem. Ou seja, a contemplação de suas imagens tão diversificadas gera reacções, empurra ideias, proporciona argumentações e confrontos pois se desprende de uma escolha rigorosa, lúcida e rica do curador desta exposição. Daí, ser possível constituir-se com lucidez, alguma porção estética fantasmática e a acertada deliberação de autor: Imagens de uma cena da vida pessoal; Imagens conceptual de um objecto; Imagens//acontecimento histórico; Imagens//evocação mais geral (de um conceito, por ex.), …entre outras, susceptíveis de produção fotográfica e videográfica. Relembre-se, sem desmerecimento, a distinção (in)conclusiva entre imagem fixa e em movimento. As funções referenciais e/ ou elaborativas ajudam, igualmente, à riqueza e complexidade para a nunca exaustiva teorização sobre a imagem e suas tipologias…operacionalidades e concreções. Bem certo, para nos “apropriarmos” da multiplicidade das imagens patentes, não é suficiente o exercício de um olhar anatomo-fisiológico, tampouco (e somente) o psicofisiológico - ainda que sejam convenientes: olhar é razão e corpo; ideia e performance. No tempo antes, por parte do artista/autor, no tempo de depois, concretizado pelo espectador e todos os mais. O nosso convívio com as fotografias inscreve-se na incerteza da memória, para preservar o passado e estender futuro; a fotografia cedo adquiriu lugar preponderante nas casas, nas famílias (com excepção daqueles que sejam seus detractores…nunca se sabe se, ao fim de contas, a fotografia não roubará um pouquinho da alma de alguém ou de algo!!!). A facilidade com que, na actualidade, se manipula um dispositivo fotográfico veio corroborar a imprescindibilidade da imagem fotográfica no quotidiano, revendo-se alguns segmentos do público na pujança de fotografia de autor em colecções de museus, galerias ou quaisquer Roland Barthes, « Les Images », Fragments d’un discours amoureux, Paris, Éditions du Seuil, 1977, p.157 2 outros equipamentos culturais que as alberguem. O coleccionismo de fotografia possui, solidifica o seu significado inequívoco. No caso das obras videográficas atesta-se uma motivação para aquisições, por parte de coleccionadores que nelas sabe reconhecer a vivificação estética e a artisticidade manifestas, encontrando soluções de inserção no espaço-casa potencializadoras de suas propostas. Retrocendo: o uso do vídeo, como meio e como matéria de arte e estética, surgiu em Portugal nos anos 60. Posteriormente, o baixo custo dos equipamentos de video, propiciou a sua utilização não comercial, donde a sua proliferação no meio artístico também. Os artistas começaram a explorar as (então) novas alternativas da tecnologia, para lá do estereótipo televisivo, considerando o vídeo como um meio interactivo, focado na criação de uma realidade muito específica, susceptível de cumprir objectivos que o transcendiam enquanto mero veículo de entretenimento familiar. Os vídeo-artistas apresentavam o seu trabalho aos espectadores, oferecendo-lhes arte como objecto, muito mais do que uma imagética efémera. Tratava-se, efectivamente, de uma arte que existia na espacialidade, não somente no plano da temporalidade, evidenciando a ambiguidade complementarizadora dos valores do instante e da duração. Recorrendo às projecções e às diferentes possibilidades de colocação de monitores no espaço, estes artistas precursores apropriavam-se, manipulavam, ocupavam o espaço, interpelando os visitantes de uma forma que estes, por vezes, consideravam intrusiva e, certamente, interpelativa quase sempre. Para existirem imagens registo de coisas reais ou imaginadas, manipuladas, metamorfoseados e tudo que se preveja, carece de existir sujeito e precisa haver objecto: “Dans ce monde, les choses sont disponibles tout à la fois pour l’usage et selon leur manifestation. (…) C’est ce qui ne se montre pas mais qui rassemble en soi, la force bandée en deçà ou au-delà des formes, mais non pas comme une autre forme obscure : comme l’autre des formes. »3 As obras dos artistas participantes nesta mostra tornam visível a multiplicidade de apropriações dos respectivos mundos individuais, através de registos diversificados que, todavia, comungam num denominador comum: a memória. Não se entende a memória, na acepção mais vulgarizada do quanto a fotografia, o cinema ou o vídeo viabilizam o registo de rostos, casos, episódios ou panoramas para gerações vindouras – enquanto dispositivos técnicos e/ou tecnológicos rigorosos e objectivantes. Antes, se compreenda enquanto este conceito se pode definir em diferencialidade e aproximação, subdividir em tipologias de distintas indexações epistemológicas. Constatam-se convergências quanto aos conteúdos semânticos e estéticos e suas externalizações que permitem estabelecer relacionalidades: 3 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, Paris, Galilée, 2003, p.13 1. Paisagem + poética ontológica Adelina Lopes - Imagem Cheia, 2008 “L’image flotte, en somme, au gré de la houle, miroitant au soleil, posée sur l’abîme, trempée par la mer, mais aussi luisante de cela même qui la menace et qui la porte en même temps.”4 As 3 fotografias da série Imagem Cheia impõem uma austeridade morfológica, geradora de um cinetismo em termos de percepção visual. Paralelamente questionam as noções de comletude e incompletude, termos outros para designarem a coincidentia oppositorum de vazio e cheio. As manchas engrandecem-se num ritmo que é mais intimamente respiração. Não resta dúvida de que as imagens cheias remetem para a ânsia de reconhecimento de horizonte, num dinamismo de quase miragem em devir para a existência maior. Assim as oscilações lineares direccionam para um ponto além das margens das fotografias, situado, quase certo, na alma do espectador. Edgar Martins, Sem título - série The Accidental Theorist , 2007 “Échos d’images Échos d’images nocturnes.”5 4 5 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.31 Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.29 Recuperando o depoimento do próprio artista, sublinhe-se que a imagética da Série The Accidental Theorist consiste “menos num conjunto de imagens do que numa série de momentos que se tornaram independentes de causalidade e função.” Assemalhar-se-iam a locais de filmagem para filmes não cumpridos, presenças de cenários perdidos: “I am often drawn to spaces where I can prioritise poetic memory over concrete topographies. I do not see the objects which take centre stage in these images as objects, but as events.” Estas paisagens aparentemente “perdidas” readquirem a presencialidade em sua dimensão performática ainda que ausentada quase sempre de figuras e/ou protagonistas segundos. A presentificação do autor, essa sim, subjaz-lhes. A duração, a decorrência do tempo necessário para a concretização técnica de cada fotografia, proporcionam uma cumplicidade estética entre o sujeito e o objecto – aplicando a terminologia fenomenológica de Mikel Dufrenne. A escuridão, a vertigem nocturna torna-se decisoriamente estática, acentuada, ainda mais, pelos elementos de valência escultórica colocados no vazio da paisagem, agindo como fundo, numa quase verdadeira acepção pictórica. As paisagens nocturnas contêm uma pujança dramática que foi dominada por não muitos pintores na história da arte ocidental. Numa afinidade estética a certa densidade pictural, as fotografias de Edgar Martins demonstram a mestria, não somente técnica mas a artisticidade concretizada, à qual subjaz uma conceptualização estética baseada nos valores poéticos da imaginação nocturno, essa duração em que o onírico impõe as suas axiologias mais intimistas e, simultaneamente, arquetípicas. 2. Paisagem + narrativa Alexandre Estrela - Light bridges, 2007, video Da leitura que sustentava a apresentação do vídeo, infere-se que o artista pretendeu gerar uma certa falácia visual, jogando em moldes de gestalt. O artista desenvolveu a sua obra a partir de imagens fotográficas (retiradas da internet) de duas pontes – Ponte 25 de Abril (Lisboa) e Golden Gate (San Francisco), aparentemente idênticas. Sabe-se que a primeira foi delineada a partir da segunda, garantido um “certo grau de parentesco morfológico”. Recorrendo a um cross-fade , a lentidão instaurada simula a fusão de ambas imagens. Sublinhe-se que a tomada de vista das pontes é idêntica assim como a sua localização relativamente ao sol. Durante o fade, as pontes configuram-se enquanto estrutura única, hierática quase; por outro lado, à medida que a paisagem se transforma sob a continuidade processual da luz do entardecer, a progressão do cross-fade segue a linha da ponte quanto o som. Como se pode ler na memória descritiva: “As duas bandas sonoras correspondem a registos diferentes.” 3. Narrativa + mitologia + história Ângela Ferreira - Joal la portugaise, 2004 Ângela Ferreira tomou como leit-motiv a história de Joal- Fadiout, personagem talvez real que outrora viveu na aldeia senegalesa de onde era natural Léopold Sedar Senghor, poeta e primeiro presidente do Senegal. “Joal la Portugaise”, filmada a sul do Dakar, consiste na performance protagonizada pela artista, espécie de introjecção/projecção dessa figura que, presumivelmente, descenderia dos portugueses que colonizaram Joal. Nessa sociedade, as “signares” (do português senhoras) tiveram um papel determinante. Senghor ficou intrigado por mulheres – míticas e românticas – o que, de modo intermedial, o ligou a Portugal. A autora, em consonância com a fundamentação e substância de toda a sua obra, focada na reflexão crítica e lúcida sobre a história do colonialismo português, relaciona-o neste vídeo à história do próprio Senghor. Confrontou “discursos coloniais e pós-coloniais, apontando reflexões e criticas recorrentes no trabalho da artista. A narrativa desenrola-se em tom de confissão com uma abordagem critica subtil.”6 O enquadramento na paisagem, margens e embarcações, compõe um cenário de memória preservada, emergindo para uma experiência de tempo fora do tempo, onde os ritos se cumprem e as palavras são pronunciadas em respeito pelos antepassados. Imagens propícias à explanação do discurso perfomatizado em que a artista enquanto protagonista incorpora a figura mítica de Joal, la portugaise. 6 Cf. Press-release da Galeria Filomena Soares relativo à obra em causa. Catarina Campino - Português para estrangeiros. Teatro para principiantes, 2003 “Para mim a Cartilha Maternal permanece a única memória dos tempos anteriores à revolução…A figura de um professor, com uma vareta de madeira na mão, apontando para um livro excessivamente grande e fazendo-nos repetir vezes sem conta e sem sentido sons, uma e outra vez… “ Catarina Campino Na tradição do ensino da língua materna, durante longas décadas foi adoptada a Cartilha Maternal de João de Deus (1876), revelando-se de simbólica relevância ideológica durante o período do Estado Novo em Portugal. A proposta da artista consistiu num exercício de leitura, realizada por seis pessoas estrangeiras, o que resultou num exercício de dramatização pois não dominavam de todo a decifração dos textos. As vogais nasaladas, as sonoridades estranhas ganharam expressão em gestos, contracturas e ritos faciais, análogos a treinamento de actores; articulam-se as suas expressões exacerbadas por cartazes com palavras e nomes em dramatização alusiva. À semelhança da repetição que as crianças realizavam na escola primária, repetindo sem conta palavras e frases destituídas de nexo ou sentido, elaborando-as numa recitação parente próxima da lengalenga. A extrapolação simbólica da incompreensão, a carência de descodificação da mensagem, torna-se evidente, análoga aos casos presentes de estrangeiros a viver e trabalhar em Portugal. A sua inserção na sociedade estranha passa pelo domínio da língua portuguesa…o que é plasmado de modo ironista e denunciador de valores sócio-culturais e ideológicos. Intrinsecamente, tratase de confronto de situações identitárias e a permanência e consolidação das mesmas perante axiologias diferenciais em todos os planos. André Gomes - O livro de Ângela, 2009 “Somos feitos da madeira dos sonhos” “Não são personagens, conheço-os (…) mas no manuscrito, parecem…”7 “Como Ângela, fugiu aos ruidosos Festejos dos primos pela chegada Das férias e, no meio das Atribuídas aventuras do seu Livro preferido, adormeceu.”8 No Livro de Ângela, em 12 conjuntos de 4 fotografias, ampliadas a partir de polaroids, se contam os episódios da personagem. As 48 imagens foram desdobradas em vestígios, atributos e segmentos de espaços, pontuados – de quando em vez – por outros protagonistas anónimos. São exibidos Conjunto I; Conjunto II; Conjunto XI e Conjunto XII. Cada um é introduzido por um fragmento poético (que me lembra a precisão e singeleza lúcida de Novalis) alusivo a uma experiência imaginária que transcende a figura e adere aos espectadores. A motivação poética cruza-se com a imagética, potencializando uma vivência estética quase de sublimidade e transcendência. André Gomes refere-se a esta série como correspondendo a um “teatro de máscaras”, onde o “percurso real dos actores confunde-se com a vida imaginária das personagens.” Em consonância com as demais obras do autor, a relacionalidade com a literatura (quer dramática, quer poeta ou de ficção…), com o seu exercício pessoal como actor, desde sempre, vemos nestas imagens o corpo expansivo ou em contracção, em toda a síntese e substância que pode projectar-se para o exterior de si mesmo e possuindo a analogia aos “outros”. Daniel Blaufuks - The daily pratice (Rio), 2009 “A fotografia é um espaço. A fotografia é uma memória. A fotografia é um texto. A fotografia é um postal. A memória é uma imagem.” Daniel Blaufuks Outra narrativa, densamente pessoalizada quanto anónima, é assegurada pelos protagonistas de Daniel Blaufuks, no vídeo filmado numa academia do Rio de Janeiro, o que me leva a recordar a série de fotografias que, em 1993, Miguel Rio Branco realizara na Academia de Santa Rosa Boxing Club. 7 8 André Gomes, “A história de Ângela”, Bes Photo 2008, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p.37 Idem, ibidem, p.38 Na obra de Daniel Blaufuks, assiste-se ao que, se pensa, antecederá a luta entre dois homens, um negro e um branco. O espectador é induzido, nessa fase preliminar de treinamento duro e irreversível, vendo-os isolados um do outro, concentrados em sua identidade. Ouvem-se, vêem-se, um e outro em alternância de filmagens, num ambiente que se observa e culpa de violência sem que, todavia, o confronto físico entre ambos se chegue a consumar… Queira-se caso de memória quase diarísticas, memórias ritualizadas que correspondem, para nós espectadores, a uma representação psico-social do que seja a história do boxe no mundo ocidental. Aqui, revelam-se essas deambulações imaginárias que são conformadas pelas expectativas do desfecho, culminando na vitória e na derrota, salvaguardada a ambiguidade teleológica da luta. Idêntica luta, certa compulsividade diária que também dirige o artista à “prática diária da fotografia e, principalmente, com a ideia de um desporto violento, mas que aqui se pratica como não-violência numa cidade também conhecida pela sua violência.”9 Carlos Noronha Feio - Trying to reach point zero, 2009 A árvore na iconografia ocidental possui uma polissemia incontornável, sendo presença isolada em efabulações herméticas e de valência esoterista quanto exercício de virtuosismo pictórico e/ou fotográfico. Elemento relevante em determinadas cinematografias, concentra uma antropormofização enquanto extensão do natural, assunção mítica…A peça Trying to reach point zero surge, segundo o autor, na sequência da vídeo performance Campos Neolíticos, onde visibilizou o conceito de reconstrução a partir do “ponto zero, através da acção de marcar (urinar, como se fosse um animal a fazer marcas territoriais) o objecto ( a rocha como metafora da historia) e depois construir uma nova etapa nele, mostra de uma forma simples e em tempo real , o assumir do passado, mas ao mesmo tempo a procura de construção sobre esse ponto original, quase que deixando a historia num mundo paralelo. Campos neoliticos vem ter como continuidade, a tentativa de alcançar esse mesmo ponto, atráves da desconstrução de uma árvore - árvore como metáfora de civilização, civilização e destruição ( arvore como explosão nuclear).” 10 A explosão nuclear converteu-se num dos paradigmas mais trágicos protagonizados pela sociedade ocidental; assumido como culpa ou justificativo, consoante os posicionamentos ideológicos que se lhe sucederam e persistem. Significará, irreversivelmente, a precariedade da vida quotidiana, acelerada em 9 Daniel Blaufuks, depoimento inédito. Carlos Noronha Feio, texto inédito. 10 moldes apocalípticos, inimagináveis a capacidade de destruição e o seu irreversível condicionamento em termos de gerações sucessivas. A vídeo performance Trying to Reach point zero foi concebida enquanto “…tentativa de desconstruir a sociedade existente, cortando os vários ramos/sociedades diferentes, numa tentativa de encontrar um ponto comum ao todo. O ponto de onde se poderá reconstruir uma sociedade mais justa e equilibrada.”11 João Maria Gusmão & Pedro Paiva – Macrocefalia, 2007 “Un homme attend, dans son atelier, les mains sur les genoux, que la terre, le soleil, la lune, les planètes errantes, les galaxies se posent sur ses mains.”12 Numa abordagem cosmogónica reside a peça Macrocefalia que concentra simbologias consecutivas. Num primeiro plano/momento, emerge de uma escuridão quase absoluta – ontogénica, quanto filogénica – uma carcaça de elefante (um dos maiores cérebros dos mamíferos). Filmado no Museu de História Natural, em Coimbra, Macrocefalia narra a acção ritualizada de um homem sobre uma carcaça, cuja dimensão vai aumentando até metamorfosear-se em caveira humana. Aqui, relaciona-se, ao filme Skul (2007) unidade integrante do projecto Abissologia – para uma ciência transitória do Indiscernível, onde a presentificação de uma caveira sustenta, igualmente, a acção do protagonista. O antropocentrismo convive com a zoomorfia que valida a substância evolucionista – em moldes científicos, epistemológicos e culturais. Os paradigmas, cognitivos quanto estéticos, constitutivos dos inúmeros filmes dos artistas, evolucionam em sínteses conceptuais, organizadas em parábolas rigorosas e depuradas. A fundamentação filosófica, literária e científica a que os autores têm dado continuidade converte a sua obra em algo que atinge uma radicalidade de questionamento e – por paradoxal que possa entender-se – acepção tautológica. Idem, ibidem: “A árvore escolhida é uma mimosa, mimosa sendo uma árvore: isto é uma árvore praga de desenvolvimento muito rápido. O que a faz com que tenha muito em comum com a sociedade actual. O facto de ser filmado em tempo real, sem cortes de edição alem do necessário ajuste entre mini dv's, e o facto de ser filmado num take, mostram que é uma acção que se quer sincera, sem actuação, o importante é o esforço, é a noção que a desconstrução não é algo fácil, mas sim que é algo que leva tempo e dedicação, sinceridade.” 12 Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.183 11 Joana Pimentel - 17 Propositions, 2007 “La terre, les astres sont la poussière de l’explosion initiale qui tombe dans la nuit.”13 A série 17 Propositions remete para a obra filosófica de Ludwig Wittgenstein e resultou num livro de artista, cujas imagens publicadas são introduzidas pela frase: “The Picture of the earth as a ball is a good Picture, it proves itself everywhere, it is also a simple picture – in short, we work with it without doubting it.” 14 As frases inscritas na banda branca que antecipa a imagem fotográfica são da autoria do filósofo vienense, Über Gewissheit. As imagens da Terra foram retiradas do website http://earthobservatory.nasa.gov. Retrocendendo na história da filosofia, até ao período pré-socrático, reencontram-se os primórdios da reflexão sistematizada, da filosofia em consolidação, caracterizada por um pensamento, ainda articulado ao pensamento mítico-poético e mesmo, mitológico. A origem do mundo oscilava entre a convicção das grandes forças da Natureza, e seus elementos primordiais e uma progressiva caminhada para as concepções de ordem mais abstracta, anunciando propósitos epistemológicos vindouros. As cosmogonias, mutações do Universo e metamorfoses fotográficas são substância, simultaneamente, última e primeira na obra de Joana Pimentel. “I know it as I know that…15 1- By saying “I know…” we express our acceptance to believe in certain things. 9- “I know that ice burns like fire”16, I know this as I know that ice is the solid form of water and that it melts at 0º C.. 7- I know that the planet earth existed long before my birth as I know that other planets exist 1- There are books for all that and “those books do not lie”. Because I’ve seen their images with my hands 13 Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.183 Joana Pimentel, 17 Propositions, 2007, p.1 15 Joana Pimentel, "I know it as I know that my name is L.W." http://www.galeriapedrooliveira.com/archive/artists/joana_pimentel/joana_pimentel.htm, consultado em 03.03. 2010. 16 António Saez, idem, ibidem 14 really cold, I don’t doubt them even when they are small. 3- I know it because it is written. They wrote fire with the word ice, and we believe it. 2– Kuiper discovered two moons of planets in the solar system, “I cannot stop believing…” I read about that and about cryo-volcanoes on those moons; frozen volcanoes, with nitrogen geysers shooting up, formed where liquid breaks the icy surface of the planet. 0.0– Someone who doubts that cryo-volcanoes already existed one hundred years ago in frozen moons, and possibly in other low temperature astronomical bodies, might have a scientific or philosophical doubt. 8- I don’t doubt, I’ve seen it written. I’ve read about fires in icebergs. Time frozens, we have proof of that.” But not only I know, or believe, all that, but the others do too. Or rather, I believe that they believe it.”17 As 17 proposições de Wittgenstein, o questionamento das razões do Kosmos geram imagens distanciadas, onde o humano parece estar ausentado. Todavia, pela celebração da escrita, pela profundidade do pensamento expresso em unidades conceptuais extremas, aprovisionam o mundo de humanidade – espécie, autoria e individualidade. Vulcões gelados, montanhas e paisagens metafísicas organizam uma iconografia densa que a autora vai complementando ao longo dos anos, na relacionalidade entre as diferentes séries. Miguel Soares video still Juping Nauman, 2009 “Au milieu des astres terre miniscule. L’ensemble des terrres émergées forme une sorte d’île que la mer ronge inlassablement.”18 Em 2007, Miguel Soares realizou o vídeo, usando o Google Earth: “Visitei todos os 51 locais onde o artista Bruce Nauman exibiu a sua obra em 2006.”19 Em voo picado sobre os Google Maps, a aproximação e afastamento realizam uma alternância, numa velocidade que não dispensa muito tempo ao espectador para se deter…Torna-se vertiginosa esta viagem organizada que saltita entre continentes, de acordo com a cronologia das exposições de Bruce Nauman: Chicago, Estocolmo, Maestricht, Dublin, Tokyo, Berlim, La Maison Rouge em Paris, Palazzo Grassi em Veneza, Mummok em Wien, Tate Liverpool… A referência ao artista que, em 1967/68, concebeu as vídeo performances Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square e Stumping in the Studio (1968) através de ritmos genuinamente antropométricos, vê-se anunciado em tempo não-real, acelerado e editado. A A ironização assume proporções brilhantes, atendendo a uma tal circunscrição. Miguel Soares habituou-nos a celebrações/convocatórias identitárias, centrando-se em figuras emblemáticas da cultura ocidental, destacando-se o vídeo criado a partir da 17 Ludwig Wittgenstein, idem, ibidem Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.141 19 Cf. http://migso.net/blog/?cat=55, consultado em 27 Fevereiro 2010. 18 performance pianística de Glenn Gould, datado também de 2007. Singularmente, em Jumping Nauman, este surge num desempenho alegórico, sem corpo, consignado nos nomes de locais e cidades por onde a sua obra viajou e permaneceu – mas sempre sem residir, em acto precário e transitório. É uma metáfora à capacidade de divulgação da Arte e da Cultura na Internet, quanto à incansável gestão de divulgação de obras de Bruce Nauman…I wonder… 4. AUTO-RETRATO E FICÇÕES IDENTITÁRIAS Rui Calçada Bastos - Ambitious, 2007 “Ninguém pode aceder à imagem fiel do seu próprio corpo. O meu olhar não pode explorar o que se esconde atrás das minhas costas, mas sobretudo não pode ver esse rosto que eu sou e que me exprime.”20 Na sequência de projectos anteriores, Rui Calçada Bastos debruça-se nesta peça sobre as questões auto-identitárias. À dissemelhança de Self-portrait while thinking, onde o artista se expunha como si-mesmo, na maior genuinidade, em Ambitious constrói uma narrativa, um enredo, no qual ele é protagonista. A identidade fisionómica do autor converte-se em alter- ego no seu desempenho como actor. A história desenvolve-se de uma forma quase previsível que é no mínimo de ansiedade pois o espectador é contemplado com o desconhecimento, contrariando um crescendo que aguarda a decifração. Ou seja, no percurso simbólico do preso para o seu próprio julgamento, é escoltado por polícias, deslocando-se num carro-patrulha, onde o exterior penetra, chegando finalmente à entrada do Tribunal. Aí, aguarda-o uma multidão ruidosa, espécie e coro grego, consciência colectiva que pune os infractores com seus preconceitos, quem sabe? O artista é acusado de ser demasiado ambicioso. O conceito de auto-julgamento é inebriante; a sequência é interrompida quando entra no tribunal. Quando ele sai algemado do edifício, a multidão mantém a sua atitude de agressividade, entrando de novo no carro. É uma espécie de ciclo mítico, de eterno retorno, alusivo a um envolvimento dostoievskiano… crime e castigo…auto-flagelação, crítica à imagem pública do artista na sociedade actual…com todas 20 Umberto Galimberti, Les raisons du corps, Paris, Grasset, 1998, p.208 as suas consequências. E, em termos de rodagem, toda a produção é marcada pela denúncia de clichés aos quais os espectadores estão acostumados nas séries televisivas… Rui Toscano - T for Tornado, 2005 O vídeo apresenta duas imagens do artista em rotação. Uma encenação de bi-polaridade em termos de auto-retrato. A direcção horizontal intersecciona-se à vertical, configurando sempre a letra T (Tornado/Toscano). É um movimento em loop, onde se coloca como centro de convergência, posicionando-se, simultaneamente, como estrutura centrípta e centrífuga de composição. Os dois ritmos complementam-se, um de aceleração, à medida em que a imagem do artista aumenta e outro de desaceleração, tornando-se a figura cada vez mais rígida, tornando-se novamente mais distinta. O movimento circular é um percurso de auto-gnose motriz, sem destino que se saiba, sem princípio ou fim, apropriando-se incessantemente da sua própria mobilidade como sistema percepcional integrado. Para alguns, a contemplação do vídeo poderá ter um efeito quase hipnótico, convocando visionamentos alusivos a experiências cinéticas e ópticas. 5. APROPRIAÇÕES E FICÇÕES Pseudo-IDENTITÁRIAS Eurico Lino Vale – Série Nova Geração, 2002 (Anastasia, Catarina, Filipe e Teresa) “L’oubli, rien que l’oubli, image de l’oubli, image rendue, par l’attente, à l’oubli. Un pas précipité, éternel. Ils se plaignaient de l’éternité; c’est comme si l’éternité se plaignait en eux.”21 21 Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.58 À semelhança do que escreveu Daniel Arasse22 a propósito dos retratos de Cindy Sherman - salvaguardando as diferenças óbvias, impõe-se-me, todavia a sua reflexão ao verificar um certo apagamento do eu-sujeito na imagem da identidade retratada. Pois, no caso de Eurico Lino do Vale, as pessoas retratadas adquirem uma morfologia, uma externalidade “outra”, por contraponto à sua verdade identitária, constituindo-se num sistema de signos, de códigos e de imagens-modelos. A série “Nova Geração” (2001) é composta por um conjunto de treze retratos de “bustos”, cujos protagonistas são crianças na pré-adolescência. O artista dirigiu-os na assunção de uma pose clássica, indiciada pelo ar solene, o vestuário respeitoso e a postura - costas hirtas e rostos hieráticos dos retratados. Na sua maioria, estas crianças foram fotografadas na diagonal do observador/fotógrafo, a quem, todavia, olham frontalmente. O olhar é um dos fios condutores entre as treze imagens, das quais se mostram três; os seus denominadores comuns mais poderosos serão, porventura, a simulação, a impositividade (para iludir a memória subvertida): “Na fotografia podemos mentir, podemos inclusive criar uma pintura. Há muitas possibilidades. Mas insisto que o que me interessa é a performance do fotógrafo. Para mim seria mais fácil fazer algumas coisas com as técnicas digitais. Mas gosto de todo o momento do registo, quando a pessoa sabe que está a ser retratada.”23 Duarte Amaral Netto - Luda, 2007 / Untitled . 2, 2006 “Les formes sont des limites. Dans la métamorphose les formes ne connaisent plus de limites.”24 A memória pode oscilar entre a quietude e a desesperada dinâmica para a combater. Nas duas fotografias de Duarte Amaral Netto, a memória é estática, respeitosa e contida. Curiosamente vemos os dois lados do humano: a colocação frontal que dá o rosto a ver, mau-grado o olhar desça sobre o tabuleiro de xícaras de café e a colocação de costas, onde o pescoço duvida sobre a imobilidade ou a decisão. Num e outro caso, constatam-se 22 Cf. Daniel Arasse, Anachroniques, Paris, Gallimard, 2006 Eurico Lino do Vale em entrevista a David Barro, “Retratos Impossíveis”, Bes Phto 2007, Lisboa, Museu Berardo, 2008, p.35 24 Pascal Quignard, Sur le Jadis, Paris, Gallimard, 2002, p.139 23 situações de ponderação, de evocação memorial e de suspensão para devir. É notável o dimensionamento cinematográfico com que o artista povoa as suas composições. A organização das cenas é pontuada até ao mais ínfimo e revelador detalhe. Não se verifica qualquer incongruência semântica ou iconográfica. Tudo é assim, pois deve cumprir-se. São imagens estóicas, dir-se-ia. Cada personagem sabe onde se inicia e conclui; os seus limites enquadram-se na moldura do ambiente - que é uma extensão de si mesma, veja-se a sua ambiguidade submersa, donde as metamorfoses que, silenciosamente, cada personagem se imagina para si. Relembro a vivência esteticizada que os episódios contidos de Edward Hopper nos legaram. Essa afirmatividade externalizava-se na extrema melancólica das figuras em ambientes urbanos ou provincianos. A contenção dos sentimentos, quase sempre camuflados em máscaras, denunciava uma natureza dolorida e tardia. Essa lição que poderia retroceder até certa pintura flamenga do séc. XVII atravessa os tempos e é enunciada nas imagens de D.A.Netto. 6. NARRATIVA VERSUS CINEMATOGRAFIA Noé Sendas - Public Domain (Crystal Girls), 2007 “Les pensées de la nuit, toujours plus brillantes, plus impersonnelles, plus douloureuses. Constamment douleur et joie infinie, et en même temps le calme.”25 Noé Sendas apropriou-se de mais de 9000 imagens dos anos 50, recoletadas e procedentes de diferentes locais, designadamente, da internet, toda essa matéria-prima integrando a Série The Crystal Girls. Trata-se da presença figurada feminina, conformadas numa diversidade onde se adivinha uma carga erótica forte, uma sedução mais directa ou indirecta – consoante os casos - e com as respectivas extrapolações. As imagens são polissémicas, portadoras de significações equívocas ou explícitas. Nalguns casos a atenção do espectador é de instabilidade cognitiva e percepcional, tornando-o activo e/ou passivo, numa alternância de atitude que tem as suas exigências. A sedução sobre as figuras femininas, na sua actuação de maior volúpia, converte-as em objecto de prazer, gerando 25 Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.29 situações de receptividade diferenciada. Trata-se da intencionalidade em exibir, não somente mostrar ou narrar. Aliás, o que poderia parecer ser a constituição de uma narrativa, pode ser interrompida, provocando um espasmo na fruição, à semelhança de um acto de sexo interrompido, não consumado na sua exaustão. As imagens aparecem desprovidas de um ajuizamento valorativo, ausente de impositividades morais ou ideológicas, manifestando-se mais como constatações visuais. Desencadeado um jogo psico-afectivo que oscila entre o manifesto e o latente, assim potencializando, também, o jogo entre o sujeito que é o artista e os sujeitos que são espectadores/contempladores, enfim, todos eles usufrutuários: é um peep show. Nuno Cera – Sans, Souci, 2008 “Pourquoi attirez-vousen moi cette parole qu’ensuite il me faut dire? Et jamais vous ne répondez; jamais vous ne faites entendre quelque chose de vous mais que je ne dirai rien, sachez-le. Ce que je dis n’est rien.”26 Sans, Souci é um video que cita o guião de Alain Robbe-Grillet, “L’année dernière à Marienbad” (1961), tornado emblemático pelo realizador Alain Resnais. À semelhança da obra de referência, em Sans, Souci, os dois protagonistas encontram-se novamente, para desempenharem a sua história inverosímel. A consciência e externalização do tempo não residem numa acepção de consequência, de causalidade linear. A narrativa encontra-se segmentada, fragmentada, tornando-se impossível qualquer medição “coerente” de tempo entre as cenas e nas cenas. O dimensionamento nostálgico, a ambiência melancólica da ficção são o alimento que solidifica a intensidade do amor, da solidão, do abandono, do trauma, da morte (num sentido freudiano) que não é assumida. Trata-se de uma melancolia que não é produtiva, se atendermos à nomenclatura habitual, antes demonstrando constrangedora passividade, camuflada em actos desenhados, inconsequentes ou talvez não. São actos lacunares, de incompletude, essa acção desactivada que impõe sublimidade cénica e fotográfica. 26 Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli, Paris, Gallimard, 1962, p.11 João Tabarra - O encantador de serpente, 2007 Ao longo de sua vasta produção videográfica, a linguagem estética de João Tabarra estipulou uma abordagem inédita e pioneira. Manipulando um encadeamento multidisciplinar de conhecimentos, a sua incursão pelos territórios da literatura, filosofia, teorias sociológicas ou antropologia contribuiram para a afirmação de excelência da imagem. Somente quem domine as cronologias do saber como no seu caso, pode aplicarse à concepção de vídeos concentrados e ricos em referências e estímulos psico-cognitivos e plásticos, sendo simultaneamente trabalhos estéticos de resistência – de âmbito sociológico: “...algumas fotografias e vídeos de Tabarra são mais um ruptura, um semsentido a que apenas se concede uma saída razoável: o desespero. Mas desespero com humor, e menos desespero.”27 Obra videográfica inscrita na Série G, actua como homenagem distanciada por referência, neste caso a “performance” de Buster Keaton nos primórdios do cinema. Correspondendo a uma intenção ironista e acutilante, facilmente detectada na generalidade da sua concepção e produção videográfica e fotográfica. O Encantador de serpentes remete para um delírio imagético, em que o humano, procura, incessantemente, dominar o utensílio doméstico que é uma mangueira de rega. Num fundo arquitectónico, carregado de urbanismo e isolacionismo, o “encantador” é encantado, submetido e dominado. A serpente diverte-se desalmadamente, esse objecto zoomorfizado, possuído pelos espíritos dionisíacos da contemporaneidade. Os seus enredos possuem sempre um acento de inesperado, de subversiva exactidão que contradizem os dogmatismos típicos de um público acomodado. Lutam pela primazia da razão, pelo exercício da argumentatividade, pela justeza ética, ideológica e estética empenhadas. 27 David Barro, João Tabarra, Santiago de Compostela, Ed. Dardo, 2007, p.26 8. NARRATIVA VERSUS MITO-SIMBOLOGIA Vasco Araújo - O Percurso, (El Camino), 2009 “L’attente seule, donne l’attention. Le temps vide, sans projet, est l’attente qui donne l’attention. (…) Par l’attention, il dispose de l’infini de l’attente qui l’ouvre à l’inattendu, en portant à l’êtreme limite qui ne se laisse pas attendre.” 28 O percurso, vídeo com a duração de 13 minutos, tem a participação dos actores, Cristóbal Fernández e Nehemías Santiago; a colaboração de voz de Belén Jurado, Nehemías Santiago; Sergio Sáes, sendo o texto de José Maria Vieira Mendes. Corresponde a uma encomenda de Cajasol Obra Social focando-se no tema do flamenco. Em Espanha, sobretudo nas regiões do Sul, o Flamenco – dança, canto e música castiços – possuem uma carga mítico-simbólica da maior intensidade. Combinam a tradição popular procedendo da Cultura Cigana, seu nomadismo implícito e a transmissão oral, de geração em geração. Considerando a articulação da dança – com um vocabulário cinético específico e simbólico, da música que evolui em crescendos flexíveis e agudos rígidos e, finalmente do canto que potencializa ambas música e conteúdos poéticos, constata-se a analogia às primordiais expressões artísticas na Grécia, ou seja, a triunuca choreia. Esta, surgiu na sequência dos rituais celebrados nos cultos órficos e dionisíacos, suscitando as mais intensas emoções no público. Assim cumpria a sua missão catártica, elevando-se as almas e transcendendo-se o corpo no seu paradoxal domínio e despojamento. O acto de caminhar, a constituição da peregrinação, associa os valores ancestrais da cultura cigana à mais entranhada crença católica, subsumada na figura da Virgem. Assim, o caminho se faz caminhando – como disse António Machado. A aproximação entre a criança e o homem simboliza as passagens iniciáticas que velam pela memória deste povo nómada. 28 Maurice Blanchot, L’attente, l’oubli,p p.36-37 João Pedro Vale - Amália, 2009 / Do you know what I mean? 2006 Tanto quanto o Flamenco em Espanha, o Fado em Portugal, arrasa almas e corações. A substância poética do Fado é heterogénea e oscila entre quadras populares e poemas eruditos. A matriz psico-afectiva coincide entre ambas radicações: a paixão incompreendida, os amores desenganados, as recusas violentas e os abandonos irreversíveis. A mulher subjugada que, curiosamente submete o homem sob sua volúpia e vice-versa…quase. Entre as gerações do séc. XX, a partir dos anos 40 emergiu Amália: tomada como paradigma de uma nacionalidade ideológica específica, arrebatou todas as facções ideológicas, por estranheza que se pense. Assim, se entenda a actualidade da figura de Amália. No caso da obra de João Pedro Vale, consiste então numa fotografia destinada à capa do disco Paixão – compilação de temas de Amália Rodrigues. O artista “grava”, esgadanha, o nome Amália no seu próprio peito até este sangrar. Reconhece-se a acção (Accionistas vienenses, Body Art…) que evocará – quase certo - um dos versos de Camões em Os Lusíadas: "O nome que no peito escrito tinhas", no Canto III que narra o Episódio de D. Inês de Castro e D.Pedro, sobre a compulsividade do amor trágico na tradição literária portuguesa. Sob este corte, emerge um outro, que decompõe o nome da fadista, levando-nos a lê-lo em forma alternada: ora Amália, ora Ama + lia. Partindo da suspensão, estabelecida entre sonoridade e semântica da palavra, João Pedro Vale organiza sentidos diferenciados, concatenados entre si, que se exigem e repudiam…à semelhança dos enredos do Fado… Numa complementaridade que se entende entre a escrita e a imagem, a fotografia onde boca aberta se entope de moluscos, repulsivos e viscosos, simbolizará porventura o acto sexual que, por excelência, agoniza numa volúpia impedida de se auto-consumar: Do you know what I mean? 9. OBJECTOS VERSUS FICÇÕES João Paulo Serafim - Desempacotando a Biblioteca do MIIAC, 2009 “Entre texte et image, la différence est flagrante. Le texte présente des significations, l’ime présente des formes. Chacun montre quelque chose: la même chose et une autre. En montrant, chacun montre soi-même, donc montre aussi bien l’autre en face de lui. Donc aussi se montre à lui…” 29 De João Paulo Serafim apresentam-se as fotografias integradas na Série Desempacotando a Biblioteca do MIIAC - Museu Improvável de Imagem e Arte Contemporânea. Trata-se de um museu ficcionado, invenção do próprio artista, que poderia recordar-nos a Fundação do artista Espanhol Diego Santomé... Através de fotografias grandes, o artista conduz-nos pelo espaço “museológico”, penetrando nos meandros de galerias de exposição, vislumbrando a colecção, acedendo ao seu acervo. A memória individual e colectiva, o património artístico e incorpóreo visibilizam-se em composições imaginárias que legam uma funcionalidade arquetípica, fruto da investigação teórica e estética que se vê nas obras desde 2005. A nível mais profundo, João Paulo Serafim questiona o que merece estar num Museu, à semelhança de quais sejam os títulos, dos livros imperdíveis da suposta biblioteca, que devem ser desempacotados (Malraux – Le Musée Imaginaire (!), Georges Pérec – Un cabinet d’amateur), qual a legitimidade das fotografias para (ainda) alguns indivíduos incrédulos e incipientes numa Colecção de Museu… Num e outro caso, reside a decisão, talvez, na autoridade do artista – em pontuação quase auto-biográfica. 29 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, pp.121-122 Pedro Diniz Reis - One, 2002/8 Beautiful Day, 2002 “L’image - comme l’exemple pour obsessionnel – est la chose même.”30 Morangos apodrecidos que evocam a revisitação do conceito de natureza-morta (confrontese o vídeo de Sam Taylor-Wood, Still-Life – 2003) e o revólver pousado num perfil apontado para o espectador são imagens carregadas de potenciais leituras – em moldes hermenêuticos. As composições, designadas convencionalmente por naturezas-mortas, na historiografia de arte foram inseridas, por alguns teóricos sob a tipologia ou género de paisagem. Perante ambas fotografias, colocamo-nos como perante uma paisagem que pode extrojectar medos de perda, degradação irreversível ou desenlace imprevisto. Por definição, uma paisagem implicava o contacto com o real (não necessariamente “o” natural). Ao longo da história assumiu formas diferenciadas, relativamente aos temas das obras: religiosos, históricos, mitológicos ou comemorativos. Mas também temáticas como externalização de: efabulações compósitas de linhagem onírica; construções subjectivas subsumidas em atributos simbólicos; organização de objectos num contexto intra-uterino que é a casa onde se vive…e tantos mais exemplos que se queira. Então, morangos podres e revólver dormente são paisagens quanto representação de objectos sejam. Enquanto susceptíveis de cativarem – em tempo de contemplação mais do que de observação – o nosso olhar para ver, possuem a força intrínseca das associações livres que cada espectador esteja disponível a oferecer-se a si mesmo. 10. ESPAÇO, ESTRUTURA & INTERVENÇÃO “A fotografia será sempre uma imagem, tendencialmente desmaterializada, ainda que acabe por ter uma expressão física – nem que seja o carácter físico do suporte.”31 “O céu é um quase vazio. Há nele pouca matéria fotográfica para além das ocorrências atmosféricas ou das estrelas.”32 Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, p.159 Daniel Malhão em entrevista a Joana Neves, “Sem Título”, Bes Photo, Lisboa, Museu Berardo, 2008, p.13 32 Idem, ibidem, p.17 30 31 Daniel Malhão - ASA 05, 2008 A obra fotográfica de Daniel Malhão relaciona-se à capacidade de reverberação do espaço em direcção horizontal e vertical. A fisicalidade dos objectos fotografados ou a evanescência de paisagens irrealizáveis (quase) são demonstrativas da sua capacidade de conciliar opostos. O que se encontra nitidamente visibilizado na obra presente nesta mostra. Os segmentos do avião, separados nas unidades do tríptico são matéria que (magicamente…ainda assim alguns acreditam…) se segura no ar! Ao fundo, muito em profundidade as oscilações topográficas da terra, do solo, introduzem uma terceira componente, estipulando camadas semânticas e poéticas que me relembram Bachelard. Por outro lado, aviões e aeroportos são compostos conceituais que traduzem tópicos antropológicos como deslocação (e seus sentidos pragmáticos, quanto os substantivos), modelos de linguagem em confronto, relações e volumetrias planificadas decorrentes da aplicação de escalas e de cor… Enfim, entende-se que lhe importa analisar a arquitectura enquanto susceptível de ser constructo (temática transversal no seu trabalho), assim como, através das respectivas estruturas, tornar mais acutilante o olhar e incitar a memória visual. Filipa César - Allee der Kosmonauten, 2007 Allee der Kosmonauten (2007) foi filmado em 16mm e, posteriormente, transferido para Dvd. O seu conteúdo remete para o registo de um passeio para pedestres "Allee der Kosmonauten", em Berlin-Marzahn. Esta Avenida, foi assim apelidada em homenagem a Jähn e Waleri Fjodorowitsch Bykowski, viajantes no espaço, numa “jornada épica” que pretendeu consolidar a união entre a Alemanha de Leste a União Soviética. Era uma artéria da cidade, do lado Oriental, tornada emblemática e carregada de valor ideológico e político. A extensão de vias de comunicação na cidade de Berlim foi, desde os tempos mais primordiais da consciência urbanística, algo de concreto. A capacidade de estender o olhar até um horizonte pontuado por edifícios majestosos ou monumentos mitificados conviveu com os vestígios e sequelas da 2º Guerra mundial e, posteriormente, da guerra-fria. À filmagem concebida por Filipa César estão subjacentes a contextualização sócio-histórica, as circunstancialidades e castrações ideológicas e a suposta redenção que, todavia, foi questionada a Oeste e a Leste. As estratégias de técnicas e tecnológicas para a concretizam da peça denotam o rigor e a lucidez que atravessa toda a sua produção artística. Supõe a pesquisa e reflexão sobre os tópicos de conhecimento que se exigem para a objectiva materialização e registo das ideias que avança, numa era em que o mundo se dissolve em lutas inglórias e continua a ser perseguido por fantasmas antigos… José Carlos Teixeira - JTE#4#003, Between clarity and fog, 2009 Between Clarity and Fog (1) é a primeira versão vídeo de um projecto que o artista pretende seja mais abrangente, tendo por premissa, e consequente pragmática, a ideia de fronteira interna e invisível. Consiste numa viagem pessoal que realizou pela Alemanha, plasmando uma poeticidade que se articula com o enquadramento histórico e a contextualização ideológica e societária. Esta instalação-video reflecte, pois, quer sobre questões de auto-identidade(s), quanto questiona e procura a solidez e delienação das fronteiras difusas, mas ainda vigentes e condicionadoras, entre o Ocidente e o antigo Leste europeu. Na sequela dos factos que estabeleceu o cenário europeu actual, acima da simbólica e do significado da reunificação das Alemanhas, persistem as dúvidas e as ambiguidades entre os territórios outrora divididos pelo Muro de Berlim. Mas, também e apesar disso mesma, parece emerger alguma poeticidade melancólica, trágica e de aceitação. O que cabe experienciar-se e viver, direcciona para as topografias intersticiais – individual/colectivo, singular e partilhado, gnósico e tecnológico… Claridade e nevoeiro são metáforas, resíduos de radicação identitária, de dentro do sujeito para a extroversão no Umwelt e, talvez, sustentando uma Weltansgchaung qualquer… numa composição que integra e é constituída por retratos, paisagens naturais e arquitectónicas; entrevistas e depoimentos, numa miríade de vozes que configuram a totalidade da obra – Gesammskunstwerk…dos tempos actuais…na tradição europeia de Ulisses, as viagens redimem e explicitam os tormentos, as perplexidades, numa previsão dúbia de chegada. João Leonardo - Sony cybershot (memory stick), 2005 Sob formato de video-clip, a peça de João Leonardo reflecte acerca de questões situadas nos domínios da percepção e da memória. Sendo privilegiada a percepção visual – pois de imagens se trata – não se ignorem as existências sonoras – pois de sonoridades se trata, também. Entre imagens sequenciais que se incorporam no quotidiano do artista, a sua travessia (talvez mais do que de viagem se trate) decorre em territórios mentais, reconcebendo paisagens internas e profundas. Entre a cartografia da internalidade e da externalidade, a canção “Hands Around My Throat, by Death in Vegas”, do álbum Scorpio Rising (denominado a partir do filme vanguardista de Kenneth Anger) foi usada, precisamente, na campanha publicitária da Sony Ericsson em 2005. Os cartões de memória vão arrecadando segmentos de realidade cativada de fora para dentro do sujeito e de novo para fora de si, num jogo que implica, em dado momente fazer delete pois a memória está esgotada. A memória dos indivíduos bloqueia os factos e episódios ou expande-os de tal forma que nenhuma tecnologia lhe vale. Então, cabe fotografar, registar em vídeo, até ficar sem respiração nem memória… Timeline#, 2009, 10x15cm (cada, conjunto de 10 imagens) “Partindo de um arquivo de imagens digitais que o artista tem vindo a criar nos últimos 5 anos – num registo diário quase obsessivo – esta exposição explora o conceito de memória e a condição da fotografia na sua relação com o universo intimista do próprio artista (…). A diversidade e o aparente caos são tão mais surpreendentes como a própria simplicidade do trabalho. O olhar individual de quem produz a imagem é o fio condutor real que nos permite ver – como num espelho – a própria memória do criador.” João Onofre - Instrumental version, 2003. original soundtrack Instrumental Version (2003) foi concretizado na sequência do vídeo, consignado ao mesmo título e datada de 2001. Este, consistia no registo sonoro realizado pelo Coro de Câmara da Cidade de Lisboa que, por solicitação do artista, interpretou “The Robots” (1978) do grupo alemão Kraftwerk. Nesse vídeo ficou registada a performance/coral, evidenciados os cantores que integravam o Coro, na assunção plena da actuação mais convencional. Assim se trasladava a erudição para “The Robots”. O Vynil apresentado nesta mostra contém essa interpretação, na ausência das imagens dos vídeos de 2001, mas tendo adquirido matéria enquanto objecto tridimensional e de funcionalidade específica. Leap into the street, (Boombox travelling), 2004 Em 1961, Leap into the Void de Yves Klein estabeleceu um paradigma performático, cujo registo fotográfico expandiu e multiplicou o impacto. Num primeiro momento, o artista francês “saltou”, “projectou-se” de uma janela, devidamente preso a cabos que os amigos seguravam. Posteriormente, a acção foi encenada, registada e replicada numa montagem fotográfica publicada no jornal de domingo. Tratou-se, também, do confronto a um público ignaro de tais manifestações. Parafraseando Klein, João Onofre converte a questão identitária e singularizada, a um plano objectual e subsuma-a numa Boombox à solta pelas ruas da cidade de Lisboa… 11. PAISAGEM. ARQUITECTURA & IDEOLOGIA João Serra - Dacha, 2009 “O universo fotográfico de João Serra mantêm como foco a arquitectura como objecto de discussão social. O seu jogo é de revelar o implícito abandono, o excluído, o marginal que tantas vezes esconde-se sob forma de reformulação urbana. Suas imagens são tiradas nos bairros populares e periferias das grandes cidades, conjugando um rigor das linhas da fotografia – uma herança estruturalista na fotografia contemporânea, com um elogio da cor e da sensação. Nesta exposição, Dachas, João Serra mostra a transfiguração dos bairros industriais da região de Murmansk, na Rússia, quando os trabalhadores criam pequenas casas de veraneio, as tais dachas, em meio a uma paisagem industrialmente feias e sem vida.” Paulo Reis Uma casa possui um significa que atravessa todas as culturas e tempos, na maior diversidade que se sabe. Independentemente de morfologias e funcionalidades, existe para pessoas que, em períodos e gerações diferentes as habitam nos 3 tempos verbais do humano. As referências às Dachas na literatura, ou no cinema possuem uma carga simbólica, que se depreende. Atravessando regimes políticos e sociais, correspondem a uma linhagem de arquitectura funcional tanto quanto arquetípica. A força das linhas regulares inscreve-se na paisagem nalguns casos algo difícil de caracterizar: numa inscrição quase urbana, numa pertença quase campestre…em locais que – ao olhar do espectador desprevenido – se tornam quase indecifráveis, quanto a uma caracterização definitiva ou de maior precisão (caso se contemplem as imagens, sem saber o contexto em que foram realizadas). Por outro lado, os materiais, vegetação, fundo de paisagem, linhas de horizontes e céu compõem-se numa leitura que se aproxima de uma pintura de tendência realista. A apropriação de uma tipologia arquitectónica valida a sua salvaguarda enquanto o artista lhe enfatiza a dimensão patrimonial. Luís Palma – Série Ocupação, 2009 “Un jardin, un clos, non pas cependan d’abord clos en tant que fermé sur soi, mais déclos: ouvert à une capacité qui est la sienne, qui ne lui préexiste pas tant qu’il ne se dispose pas dans sa clôture.”33 A série “Ocupação” foi desenvolvida a partir da recolha de imagens fotográficas no Parque Natural da Ria Formosa, Algarve. A “arquitectura de férias” foi disseminada em espaços não organizados, na maioria dos casos, esquecendo qualquer (PDM) Plano Desenvolvimento Municipal - em termos de responsabilidade urbanística, antes respondendo a interesses do mercado imobiliário. As fotografias destas casas de lazer, implantadas em locais potencialmente turísticos servem como memória registada, e situam-se num contexto histórico-social e político específicos. Como se lê no press release da sua recente exposição: “Ao conjunto destas imagens, Luís Palma concede o despojamento artístico em prol da mostra de uma memória real, para lá de se afirmar simples documento, que se centra na captação de conteúdos que nos conduzem a diversas questões de abordagem da percepção imagética, do espaço construído e da «paisagem».”34 Por outro lado, questionese que significado possuem estas casas enquanto locais para serem habitados: casa como habitação. Ocupação de casa, por seus habitantes também é modo de ocupação, mas não de usurpação…de território ou denegação da natureza. Paulo Catrica - Londres, 2008/ Londres, 14.05.08, 2008 “Nous ne coulons pas, mais le fond monte à nous dans l’image. La double séparation de l’image, son décollement, sa découpe, forme à la fois une protection contre le fond et une ouverture à lui.”35 A tradição da fotografia conceptual impôs-se e perdura, revestindo-se de abordagens distintivas e singulares como no caso de Paulo Catrica. A série Londres alastrou pela cidade, guiando um equilíbrio histórico e estético e cativando cenários de exterior e interior. As imagens são registos de estilos arquitectónicos que, tendo sido implantados na cidade, se acompanharam de tipificações comportamentais e de protagonismos humanos que se 33 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.102 Cf. www.carolinepages.com , consultado em 25 Fevereiro 2010. 35 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.31 34 ausentam. Resultam da aplicação de uma metodologia de trabalho técnico-artístico que gerou escola em Portugal, à semelhança do ocorrido em outros países. São imagens frias, austeras, depuradas, sem condicionamentos emocionais ou psicio-afectivo, antes assumindo, exactamente essa consciência de isolamento. A figura humana como ausência é, pois, um denominador comum em autores que seguem tais determinismos conceptuais. Apesar de lhes estar implícita. Mariana Viegas – Série Satori, 2009 “Le paysage commence par une notion, fût-elle vague ou confuse, de l’éloignement et d’une perte de vue qui vaut pour l’oeil physique comme pour celui de l’esprit. Il en est ainsi, déjà, du pays.”36 “MATA DA MARGARAÇA. O tipo de vegetação desta mata é exemplo do que se encontraria antes da intervenção humana, há cerca de 5 mil anos. Com 5 hectares de área, as relíquias mais citada da Mata da Margaraça são o carvalho alvarinho, os azevinhos e castanheiros e também vários tipos de orquideas e cogumelos raros.37 PEDREIRA DA SECIL. A pedreira da Secil foi fundada em 1906 com actual localização de extracção de pedra na Serra da Arrábida. O plano Parque Natural da Arrábida, criado em 1976, incluiu área da pedreira.38 RIA FORMOSA. O Parque Natural da Ria Formosa fica situado na zona lagunar do sotavento algarvio e tem cerca de 18.400 hectares que se estendem por 60 quilometros, do Rio Ancão até à praia da Manta Rota.39 PISCINAS FLUVIAIS GÓIS e ARGANIL. Com recurso aos fundos comunitarios, inúmeras piscinas fluviais foram construídas recentemente. A sua construção contribui para a fixação da população que 36 Jean-Luc Nancy, Au fond des images, p.103 “ As ruínas de casas que existiam neste lugar pertenciam à antiga Quinta da Margaraça e foram reconstruídas em 2001, em xisto, seguindo a tipologia das construções originais e adaptadas a um centro de interpretação da natureza e uma casa-museu.” Mariana Viegas, excerto do texto. 38 “A Secil começou o plano de reflorestação em 1982 tendo até hoje plantado uma área equivalente a 70 campos de futebol em sucalcos de 20 metros de profundidade. Recentemente, a área da extracção foi aprovada até 2044, podendo atingir a extracção anual de 36 milhões de metros cúbicos. A seguir à água, o cimento é o produto mais utilizado pelo homem.” Idem, ibidem. 39 “O Parque foi criado em 1987 partindo do estatuto de reserva Natural que existia para esta zona desde 1978, visando a protecção dos habitats de aves aquáticas internacionais. Nessa altura já existia o aeroporto de Faro, que fora inaugurado em 1965 com um movimento de passageiros muito baixo. Actualmente o aeroporto transporta cerca de cinco milhões de passageiros por ano, e prevê-se que depois das obras de alargamento previstas passe a funcionar para 8 milhões de passageiros/ano.” Idem, ibidem. 37 durante os meses de verão tem tradicionalmente a tendência a deslocar-se para as praias do litoral atlântico. O controle das correntes baixa o número de acidentes e afogamentos que se verificavam anteriormente nos rios.”40 Mariana Viegas No caso de Mariana Viegas, a paisagem como conceito tem sido enriquecida por múltiplas apropriações. Em Satori, série em que se inscrevem as suas fotografias nesta mostra, verifica-se uma transposição simbólica que agrega uma carga semântica às imagens, pertencente à cultura japonesa. Satori significa revelação, consciencialização: no caso das imagens de Mariana Viegas, a sua intencionalidade e atenção dirigiram-se a lugares em Portugal, cuja paisagem foi recentemente intervencionada, como se constata da leitura dos excertos escritos pela própria artista. A sua fragmentação da paisagem – entendida como todo susceptível de ser “escolhido” parcelarmente – converte, o que poderia ser considerada uma paisagem de sítio nenhum, desencarnada de anima, em indicadores lúcidos e reveladores da iconoclastia antropológica vivida no presente. A sua incursão na paisagem reflecte uma decisão efectiva, pretendendo uma aproximação estética por via de uma certa “reciclagem” filosófica, da crítica histórica e sociológica, significando, ainda, um retomar, com propriedade autoral, da própria fotografia (incidindo sobre si a correspondente argumentação artística). André Cepeda - Last night, Iowa, 2008/ Lonely Nights, Indianapolis, Indiana, 2008/ Untitled, Missouri, 2008 “The project is the result of 28 days on the road in the company of my friend and artist Eduardo Matos throughout the many roads of USA, especially along the Mississippi River, either by car, by train or by bus, sleeping each night in a different motel and in the following days discovering and exploring the changing light and colours of the American landscape.” André Cepeda, 2009 Em conformidade com o seu percurso longo como fotógrafo, André Cepeda reúne a sua acção em redor dos conceitos de viagem, paisagem (atendendo a diferentes tipologias) e humanização. Nas 3 fotografias desta série, constata-se a ausência de pessoas registadas na paisagem. Todavia, em cada uma delas, a sua presença é implícita e incontornável. O automóvel ficou esquecido por alguém no meio de um percurso; a estrada alarga-se num ponto de fuga quase renascentista, 40 Algumas destas piscinas foram construídas no centro das aldeias e contribuem para o contacto entre visitantes e locais e a animação, durante o período estival, destes lugares pouco povoados durante o resto do ano.” Idem, ibidem. tendo sido construída pela força de uma intervenção na natureza em prol de um desenvolvimento comunitário…quer em função de um dimensionamento poético nocturno, quer na nitidez anímica da visão diurna. Aliás, na obra do artista, estas duas modalizações filosóficas fazem-nos retroceder até ao pensamento de Gilbert Durand (veja-se “Estruturas Antropológicas do Imaginário”). Muito frequentemente, a sua obra é dirigida por uma ou outra vertente e substância também na sua visibilização empática e, portanto, estética. As potencialidades psicoafectivas, societárias e críticas que são substância das suas imagens agarram o espectador, pois este reconhece as dúvidas e as certezas – ultrapassando-se o paradoxo – pois são realmente paisagens da estrutura do imaginário, quanto da razão e sensibilidade do humano. 12. PAISAGEM VERSUS SIMULACRO Samuel Rama - Sem Título #2, (série MAGMA), 2008 “Na sua acepção latina, MAGMA, significa vestígio de um perfume. Na acepção grega designa também o resíduo que fica após terem sido estriadas as partes mais fluidas de qualquer substância. MAGMA apresenta-se também como um modo de pensar o invisível, a camada ígnea que se encontra no centro incandescente da terra e que como sabemos quando atinge a superfície passa a designar-se lava. MAGMA é uma ideia sobre a terra. (…) As imagens fotográficas apresentam esculturas anónimas ou construídas e o desenho já incorporado na lógica de criação da imagem escava o espaço, empilha, agrega, opera continuidades e descontinuidades, marca alternadamente um fragmento, uma proximidade, luz e sombra, denuncia ravinas, cavernas, estruturas ambíguas, fissuras. Através do desenho a paisagem aparece segundo uma nova ordem proto-escultórica e o olhar é transportado para dentro da matéria microscópica da paisagem e da fotografia. Nas fotografias que fazem parte da exposição intitulada MAGMA interessa-me recuar a uma arqueologia do meio fotográfico analógico através da produção de calótipos, utilizando uma câmara de grande formato e simultaneamente fazer uma fuga para os novos processos fotográficos, digitalizando e imprimindo nas novas técnicas digitais. Conceptualmente procuro produzir imagens onde não há presente.” Samuel Rama Recuperando algumas reflexões relativas à estética implícita na obra de Samuel Rama, mencione-se que são os deuses do interior da Terra, do mundo subterrâneo, que o artista celebra. Na nomenclatura clássica, na mitologia grega, designavam-se por deuses ctónicos. Na série Magama, como posteriormente na série Escavação, esses deuses presentificam-se. Emergem das entranhas da terra, agridem a paisagem à superfície, revolvendo-lhe as vísceras. Por isso, existem minas, pedreiras, todos esses lugares onde as escavações podem desenvolver-se e moldar territórios. Por isso, ainda, os vulcões espreguiçam-se, revoltam-se e lançam a sua ira contra a própria Terra-Mãe, numa luta em que Electra não saberá, porventura manipular… Miguel Ângelo Buonarroti acreditava que a forma pré-existia na matéria e que ao escultor bastava retirar o excesso para que aquela fosse desocultada, alcançando a sua identidade singular. A terra (magma, matéria, pó, pedra…) seria, pois, uma espécie de epiderme densa e ávida que – em moldes auto-fágicos – poderia reabsorver tudo aquilo que germinasse. Assim, perecer, engolir ou enterrar eram actos previstos, pois as grandes forças o anunciavam em estado de culpa para os humanos. Esse efeito de “sucção”, de força centrípta, que se estende pela vastidão susceptível de ser demarcada pelo homem, pode ser corrompida pela a acção que tem um objectivo destinado e o acto do fotógrafo que persegue os locais que se estendem e mergulham sobre si, desvelando as suas marcas, vestígios, rastos ou indícios. A acção contrária exerce-se na expulsão dos fluxos, das substâncias repudiadas para esculpir novas rochas, montanhas, expandir territórios…Este dimensionamento quase peierciano – indícios, vestígios e que Samuel Rama pretende, domina e faz-se reconhecer num domínio que remete para o mundo ctónico mais do que para o telúrico… Duarte Belo - Sem Título, 2007 “Le rêve replonge le corps dans le jadis; dans l’état primitif et de satisfaction immédiate de la vie intra-utérine.Le sommeil est le vieux corps hôte où Ego vient se réenfouir en fusionnant.” 41 “Made in Heaven O abandono de um documentalismo na transformação digital da imagem. Partir de uma frase, made in heaven’, para trabalhar imagens já não numa condição de fidelidade à captura do visível, mas 41 Pascal Quignard, Sur le Jadis, p.131 utilizar a fotografia como imagem de pensamento, de realidade imaginada. A procura de novas linguagens de expressão pela fotografia, num mesmo universo que tem como base a paisagem, a arquitectura, o solo que pisamos.” Duarte Belo As Catedrais, as igrejas magnas do Cristianismo cumpriram funções complementares, de valência profana articulada a missão e dogmas religiosos e teológicos quase intemporais, apesar das mudanças nas sociedades europeias ocidentais. As tipologias arquitectónicas, neste recorte, estendem-se com mutações e variantes nos países europeus, tendo em consideração as especificidades artísticas algo diferenciadoras - embora inscrevendo-se em denominadores comuns a uma estética afecta a determinado período da história da arte. Quando a fotografia da arquitectura de uma Catedral se investe de valores estéticos que a distinguem da arquitectura em si, significa que o artista lhe procurou aderir valores singulares, diferenciadores. Os interiores das igrejas na série de imagens de Duarte Belo estão exactamente em concordância com a poética existente em toda a sua obra. Existe sempre uma axiologia estética – independentemente da natureza das tipologias dos conteúdos paisagísticos fixados, bem como uma axiologia poética que direccionam para a celebração sublime da experiência do contemplador. São imagens que carecem tempo para serem olhadas, pedem plenitude e duração. As figuras que atravessam como fuga barroca os interiores das igrejas são, decididamente, humanas. Podem voar, aparentarem uma evanescência e desaparição, materializarem quase auras mas trata-se de “gente”. Deixam atrás de si rastos, vestígios lumínicos que se, por um lado, são associáveis à acepção estética da Luz (afecta ao período medieval) também expõem a condição humana de superação de si mesmo e de transcendência espitirual. Assim, color, splendor e lumen são interpretações de Luz que auferem conhecimento não somente divino mas ao humano. Rita Magalhães - Memoria dos objectos, 2008 A artista pretende gerar imagens que suscitam a contemplação prolongada por parte do espectador, devendo este ir desvelando os elementos quase imperceptíveis que residem sob camadas sucessivas de transparências e de translucidez. Recorre para a concretização destes efeitos de deformação dos objectos “por detrás” da imagem, a lentes convexas. Nessas imagens reconhece-se a ancestralidade das pinturas flamengas e holandesas do séc. XVII que celebravam o virtuosismo pictórico através da minúcia e detalhismo na cativação de elementos especulares e seus respectivos conteúdos iconográficos quase mínimos. Rita Magalhães manipula a câmara como se fosse um instrumento de pintura, inserindo-se numa apropriação estética que se localiza na história da fotografia, sob a designação de picturalismo. As “afinidades electivas” entre a fotografia e a pintura já foram suficientemente analisadas. No presente caso, saliente-se a proximidade interrelacional, pois os objectos que vivem por detrás dessa cortina de vidro, são instrumentos do quotidiano (mais uma afinidade às cenas privadas e domésticas, mesmo alguma alusão ao que, posteriormente seriam as Conversation Pieces. Toda a ambiência remete para especulações sucessivas sobre as tipologias que se unem sob o grande conceito – aqui ontológico quanto antropológico – da memória. Os valores da memória na obra de Rita Magalhães possuem uma evidência e uma precisão irreversíveis. Sustentam, alimentam as suas metodologias, as suas opções e as suas fundamentações em prol de uma realização peculiar. A abordagem que a artista faz relativamente à luz, leva-nos, de novo aos territórios da pintura, convocando zonas luminares de Caravaggio, Georges de la Tour e, nalguns casos Vermeer e Rembrandt. Esta indexação prioritariamente, ainda que não exclusiva à Estética Barroca, expressa-se também na meticulosidade dinâmica com que trabalha as unidades de objectos, se bem que a ordenação dos elementos nas prateleiras esteja mais numa acepção quase geometrizando, donde se isente o dinamismo das formas e o impulso de movimento. São imagens de sublimidade, preconizando a experienciação que Caspar Friedrich dominou com mestria: esse cruzamento com a melancolia que se excede em afectos tempestuosos, antecipados no movimento Sturm und Drang. Manuela Marques - St. T, 2006 “L’image est péremptoire, elle a toujours le dernier mot; aucune connaissance ne peut la contradire, l’aménager, la subtiliser.” 42 As paisagens de Manuela Marques caracterizam-se por uma poética que não rejeita a afirmação objectiva do mundo. São excertos de paisagem natural – caso das duas fotografias desta mostra – que denotam ritmos vivenciais e observações do real complementares. Perante os conteúdos das duas fotografias não se evite relembrar Gaston 42 Roland Barthes, “Les Images”, Fragments d’un discours amoureux, p.157 Bachelard e a sua teorização sobre o poético e imaginário da matéria – ar, água, terra e fogo. A paisagem precisa, para se constituir, em termos epistemológicos e artísticos, de um sistema complexo de correlacionalidades entre diferentes elementos naturais, arquitectónicos, urbanos e entre tons, luz, cores e medidas em pluralidade; não se limita à apresentação isolada de tais elementos. Todos se embrenham, jogam e posicionam, numa organização decidida pelos actos decisórios da artista que retalha o excerto de paisagem que, consoante os casos, a emotividade ou a razão destinam. Tal explica porque a paisagem aparece apenas nas civilizações altamente evoluídas, exigindo um conjunto de procedimentos técnicos detalhistas. Na pintura, em certas estéticas canónicas, verificava-se, todavia, um desajuste de dimensões, por exemplo, entre as árvores e as montanhas, entre os rios e as personagens que, ainda que permanecendo susceptíveis de modificação, por motivos simbólicos ou representativos, deviam, contudo, ser sugeridos, confirmados, de uma qualquer maneira, de modo realista ou transfigurador... O monte verde emerge das entranhas da terra, rodeado por folhagem ressequida. É uma imagem que revela a inerência melancólica da paisagem, afectada por razões antropológicas que exprimem a lacuna e a memória dos ciclos do ano em regeneração. O céu azul evidencia mais ainda a lassidão da vegetação em pousio. É a quietude, a duração, a lentidão da vida que passa quando a ausência está: terra, ar e o fogo que, potencialmente pode deflagrar. Contrapondo, a água agitada em azul, cuja densidade expande, gerando um dinamismo que é derrotado pela austeridade das margens rochosas. Eis os quatro elementos agindo em plenitude, através de metáforas, extrapolações significativas ou consubstancializações imagéticas. Narra-se visualmente a paisagem para a dominar. Porto/Lisboa, março 2010