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A fotografia para além das suas margens

2011, Discursos Fotograficos

197 KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2010. 240 p. DOI 10.5433/1984-7939.2011v7n10p197 discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011 198 A fotografia para além das suas margens Photography beyond its borders Silvio Demétrio * Reeditado recentemente pela Editorial Gustavo Gilli, de Barcelona, a tradução em português de O fotográfico (2010), de Rosalind Krauss, é uma leitura fundamental para qualquer um que trabalhe ou simplesmente nutra um interesse diletante pela fotografia. A autora se integra numa linha diferencial de abordagem sobre o tema, convergindo com os procedimentos típicos de Gilles Deleuze quando esse elege como tema o cinema. Não se trata de um livro “sobre” fotografia, assim como Deleuze não escreve “sobre” cinema. Para ela, a fotografia é, acima de tudo, um objeto teórico, o que significa que o que interessa à professora da Universidade de Columbia é o que a fotografia permite pensar. Neste sentido, Krauss escreve “a partir da fotografia”, buscando cartografar os territórios que ela sugere para além de suas fronteiras estratificadas. Os ensaios que compõem essa coletânea são desconcertantes, como quando a autora percorre a atmosfera carregada de mistério que marcou a vida inteligente de Paris no século XIX. O fotográfico abre com um ensaio sobre a dimensão dos espectros – o registro fotográfico da emanação da luz de um corpo através do tempo do instante. O daguerreótipo com o retrato de Honoré de Balzac é o tema de abertura para a autora se lançar em sua análise do espírito fotográfico em seu estado nascente. A fotografia como índice, registro semiótico de uma presença que se coloca como causa no mundo que afeta o signo que a representa. Nesse contexto já está delineada a ideia estética que vai se insinuar tantas e tantas vezes, seja no senso comum quanto nas discussões teóricas sobre o ato de fotografar: a captação de uma essência do objeto ou do evento fotografado, tal como enuncia Cartier-Bresson a respeito do “instante * Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011 199 decisivo”. Em seu primeiro ensaio, a autora leva o leitor de encontro a uma visão de mundo típica do universo estético do século XIX, uma certa metafísica do olhar endereçada aos incorporais que se desprendem dos corpos fotografados – o registro fotográfico é um acontecimento porque a luz captada que emana do objeto é registrada de uma forma na qual ela já se organiza num sentido (o seu incorporal). Dada essa ancoragem no século XIX e a historicidade da técnica que tornou possível o registro de um instantâneo sobre um suporte sensível à luz, as relações estéticas entre a fotografia e o momento do impressionismo são inevitáveis – é daí que se compreende a presença de um ensaio que apenas furtivamente menciona a fotografia para se aprofundar na questão da luz como ela era tratada pelos gênios impressionistas de Monet e Degas. Na página 72 de seu livro, Krauss avalia a produção do pintor das Ninféias em relação à fotografia: Pensa-se o impressionismo como uma arte da cor, mas ele não o foi em seus primórdios. Antes de 1874, Monet era um pintor tonal, que estruturava as paisagens pelo jogo dos contrastes entre pretos e brancos. A adoção desse modo de pintura é uma indicação suficiente do papel essencial da fotografia: a imagem fotográfica e as ‘verdades’ que ela registrava orientaram as percepções de Monet quanto aos problemas internos da natureza e da arte. A autora mostra como a fotografia se colocou como elemento crucial também no desenvolvimento da estética de Degas, que desenvolveu sua sensibilidade impressionista somente a partir de seu encontro com os monotipos, técnica que articulou à sua pintura para desenvolver seu vocabulário estético. Ao avaliar a ambos, Krauss sintetiza, à página 74: “O que a fotografia havia revelado a Degas e Monet era a distância existente entre percepção e realidade.” Antes disso, porém, ela desenvolve uma discussão sobre “os espaços discursivos da fotografia”. Neste espaço, aborda as fotografias do americano Timothy O’Sullivan, detendo-se numa análise sobre uma reprodução litográfica de uma de suas imagens. Este fotógrafo registrou, durante 1860 e 1869, vistas topográficas para um projeto do governo discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011 200 americano que queria construir uma ferrovia ao longo de uma rota que integraria o centro do país à costa do Pacífico. A fotografia que serve de objeto para a análise crítica da autora é um registro feito em 1868 no estado de Nevada (costa Oeste dos EUA), intitulada Tufa Domes, Pyramide Lake. Ela mostra uma paisagem na qual três ilhas se distribuem ao longo de um lago cuja luz estabelece um contraste esfumado para a linha do horizonte, tornando a superfície da água um continuum espacial que carrega a imagem de um sentido que desloca o figurativismo de seu registro indicial para um plano abstrato, revestindo a cena de um sentido essencialmente moderno. Algo se faz significar por seu modo peculiar de fotografar a paisagem que não se resume à representação da cena natural como conteúdo denotativo da imagem. Antes de representar o espaço natural da paisagem, O’Sullivan trabalha seu enquadramento e o resultado formal que a cena constitui no plano de sua composição. É o plano abstrato do espaço de exposição que carrega suas fotografias de um sentido dado pelo seu efeito estético. Algum tempo depois sua imagem de Pyramide Lake foi reproduzida numa litografia que “corrigiu” várias de suas “imperfeições”: uma delas é a textura da água, que na litografia retira o peso abstrato que o plano horizontal antes estabelecia na imagem; outra diz respeito à linha do horizonte, que na reprodução ficou literalmente delimitada, o que dilui as possibilidades de um efeito estético potente como o que se dá na imagem original. Para Krauss, as fotografias de O’Sullivan foram recuperadas com valor artístico porque sua maneira de fotografar privilegiava o espaço de exposição da fotografia e não o mero registro de vistas com a finalidade topográfica que lhes deu origem. Uma vez explicitado esse procedimento do fotógrafo, a autora o estende na análise de outros fotógrafos fundamentais desse momento histórico e que vão contribuir para a consolidação da fotografia como meio de expressão artística. Outro exemplo analisado é o corpo de 10.000 imagens fotográficas de Eugène Atget, sobre o qual a autora interroga: será possível considerar um montante assim como uma obra e seu responsável como um artista? Para articular uma resposta consistente, busca amparo no conceito foucaultiano de arquivo, extraído de Arqueologia do saber. Classificadas discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011 201 segundo um código próprio, as imagens urbanas de Atget significam antes de tudo “o conjunto das condições segundo as quais se exerce uma prática, segundo as quais esta prática propicia enunciados parcialmente ou totalmente novos e segundo as quais, enfim, ela pode ser modificada”. É essa modificação que interessa a Krauss na primeira parte de seu livro: o deslocamento da prática da fotografia que inicialmente no século XIX se instaura num domínio icônico – e envolta numa atmosfera quase mística – para um outro contexto que se segue e a transporta para um novo estatuto fundamentalmente estético e moderno. A fotografia traz consigo para o campo da arte seu caráter indicial, que mais tarde vai se fazer perceber em obras onde o traço é o elemento primordial, seja nas pinceladas espessas do impressionismo ou nas action paintings de Jackson Pollock. A imagem se torna modernamente autoreferente ao significar também o próprio processo que lhe deu origem. Krauss cumpre, assim, o que enuncia na abertura dos ensaios que compõem O fotográfico: tomar a fotografia naquilo que lhe é específico como um objeto teórico que a permita discutir e pensar ao mesmo tempo as possíveis relações com outros campos de expressão artística. Uma vez sedimentado esse procedimento, a autora o desdobra e o faz proliferar em várias direções na segunda parte de seu livro, que aborda as relações entre a fotografia e outros campos artísticos. Ela dialoga com dois clássicos momentos da elaboração teórica do estatuto artístico da fotografia. O primeiro é o pensamento de Walter Benjamin e suas reflexões sobre o valor de exposição da obra não aurática (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica assim como sua Pequena história da fotografia – dois ensaios seminais); o segundo é a análise semiológica empreendida por Roland Barthes em A câmara clara. Quem assinala essa interlocução é Hubert Damisch, que assina o prefácio de O fotográfico. Rosalind Krauss executa dois movimentos argumentativos que convergem em sua obra – uma contraposição entre a fotografia e a história da arte assim como a especificidade estética da fotografia como modo de expressão. A intertextualidade entre seus ensaios e os de Walter Benjamin também se reforça pelo interesse mútuo pelo movimento surrealista. discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011 202 Um dos grandes momentos de O fotográfico é quando a autora desenvolve então um ensaio que tem como tema as imagens fotográficas dos surrealistas. Foto-grafia = luz + escrita. Rosalind Krauss estabelece uma relação formal entre o método de escrita automática desenvolvido pelos surrealistas e as fotomontagens dadaístas. Outros grandes nomes da fotografia e das artes plásticas passam pelo crivo da sensibilidade crítica da autora como a produção de Marcel Duchamp, Brassaï, Man Ray, Irving Penn até chegar ao universo estético dos simulacros de Cindy Sherman. A autora, inclusive, lhe dedica um momento especial no ensaio que fecha o livro. Ao utilizar a fotografia como registro de suas intervenções sobre o próprio corpo, Sherman reafirma o caráter indicial da fotografia e, ao mesmo tempo, problematiza a relação entre sujeito e objeto em sua estética pós-humana. Ao se colocar ao mesmo tempo como autora e modelo de suas fotografias, ela desconstrói o estatuto indicial da imagem ao desdobrá-la como um simulacro, devolvendo-a, portanto, ao domínio dos espectros. Neste momento, Rosalind Krauss (2010, p.224-225) então faz emergir sua referência à Deleuze, até então mantida no subtexto: Com este desabamento total, esta implosão radical da diferença, entramos no mundo do simulacro. Um mundo em que, à semelhança da caverna de Platão, nos é negada a possibilidade de diferenciar a realidade da fantasia, o que é a própria essência do simulacro. Gilles Deleuze, quando analisa no seu livro La Logique Du Sens (A lógica do sentido) o temor que o simulacro despertava em Platão, argumenta que o próprio trabalho da divisão, bem como a questão de saber como se deve aplicá-la, caracteriza o conjunto do projeto filosófico de Platão. Bem mais do que discorrer sobre a fotografia sobre uma base historicista numa linha temporal progressiva, o grande mérito de Rosalind Krauss é estabelecer um plano imanente para sua discussão que consegue localizar blocos históricos que entram em ressonância na construção da fotografia como uma mídia que problematiza e desloca outras dimensões da linguagem e da expressão artística. discursos fotográficos, Londrina, v.7, n.10, p.197- 202, jan./ jun. 2011