22 de fevereiro de 2016

sua cabra

Parece que foi noutra vida mas foi só há dez anos. Eu ia à Haagen-Dazs do Norte Shopping e almoçava meio litro de gelado. Dizia que era a morte ideal. Entrar lá e comer directamente da vitrine, até cair para o lado. O melhor alimento do mundo: gelado. Qualquer gelado.

Amanhã faz duas semanas que o meu filho mamou pela última vez. Nem eu sabia que aquela seria a última vez. Mas decidi dizer-lhe, na vez seguinte que me pediu "mai titá" que a titá tinha dói-dói e estava a dormir. Não lhe menti. Na verdade eu estava particularmente cansada e nesse dia tinha os mamilos doridos. Amamentar pode não ser um mar de rosas mas ao fim de quase dois anos e meio parece que somos um. Eu, o meu filho e as minhas mamas somos um e entendemo-nos tão bem. Com esta idade ele já percebe e aceita que eu não queira dar-lhe de mamar porque estamos no autocarro, ou porque bebi um copo de vinho, ou porque simplesmente não me apetece. Assim como é possível ele próprio se colocar em posição no meu colo, levantar-me a camisola, "servir-se", depois dizer que quer a outra, mudar de posição e enroscar-se mais um bocadinho em mim. E ali ficamos. Ele é a personificação do conforto, como diz a Mayim Bialik nesta entrevista. Eu, muitas vezes, sou a personificação do cansaço. Não só por amamentar há dois anos e meio, mas também.

A verdade é que nada mudou para melhor desde há duas semanas. A única diferença é que o meu bebé continua a pedir "mai titá" e eu continuo a dizer que ela está a dormir. "Tem dói-dói?" - pergunta-me. Digo-lhe que não, já está boa, mas está a dormir. Então pede-me colo e abraços de dez em dez minutos, para se consolar.  Come muito mais do que comia há duas semanas. Bebe litros de batidos e sumos de vegetais e água. Pede "mai titá" mais uma vez e eu sinto uma enorme vontade de lhe dar de mamar. Deixá-lo voltar ao seu ritual, ao colinho em que encaixava sem esforço e de olhos fechados, à minha pele e calor, à vacina diária. Tudo aquilo que nunca lhe faltou desde que nasceu. A única realidade que conhecia e que não sabia, até há duas semanas, que acabaria. Eu sempre soube mas ele não fazia ideia. Tirei-lhe a titá, para meu bem. Ele aceitou a justificação e repetiu, sem birras ou desespero, "tem dói-dói". E como sempre, mais nobre que eu, o meu filhinho respeita a minha decisão e atira-se, confiante mas muito carente, para o desconhecido. Um mundo onde ele pede titá e ela não vem. O desmame foi gradual mas o corte foi radical porque me parece desumano abrir uma excepção hoje e amanhã não. Decidir sozinha algo que também é tão dele, confundi-lo, torturá-lo com a expectativa.

Quanto ao meu corpo cansado, ao fim de duas semanas verifico a medo se ainda tem leite. Claro que tem. O meu corpo extraordinário não respirou de alívio e fechou a fábrica. Pelo contrário, parece estar tão confuso quanto o Diogo e parece manter a esperança de reaver o seu bebé, de o nutrir, de voltar a fazer o que fez ao longo de tanto tempo que parece já não saber fazer outra coisa.
Parece que precisamos os três de mais tempo para nos adaptarmos à nova realidade.

Poucas pessoas compreenderão o que sinto. Sofrer com o desmame dum menino já grande. O que tenho atravessado desde que decidi engravidar é outra dimensão. É viver e experienciar a Natureza da forma mais básica e elementar, em cada célula do meu corpo. É vê-lo expandir-se e sentir-me ramificar em todas as direcções e, quando me permito pensar menos e sentir mais, é ser bicho. Ser tão bicho como outro bicho qualquer.

O canal de televisão para bebés que deixo o meu filho ver mostra muitas vezes vacas e cabras a serem ordenhadas. Tal como eu via na Rua Sésamo. "De onde vem o leite?" - perguntam, ao que o coro de vozinhas inocentes responde "das vaaaaaaaaaaacas". Hoje vi uma cabra ser ordenhada e quando olhei para o conteúdo do balde de metal embrulhou-se-me o estômago. Só me ocorria Onde está o bebé? Onde está o bebé? Aquele leite é para um filho que foi tirado à sua mãe. E na ausência do filho, aquele leite é dela. Feito do corpo dela, do corpo confuso daquela mãe que o Mr. Bloom ordenha.
O meu sogro ridiculariza o meu recém-horror ao leite. Passei-me de vez. Ter pena das vacas. Do sofrimento das vacas. Ter pena das cabras, daquela cabra que vi hoje no Cbeebies. Consigo ver-me da perspectiva dele porque há dez anos eu sonhava em me afogar num mar de gelado. Mas dez anos depois vejo-me da perspectiva oposta, por mais ridículo que pareça: da pele duma mamífera. E hoje, quase duas semanas depois, a ver o Cbeebies, vejo-me na pele daquela cabra.


3 comentários:

Anónimo disse...

Andei à procura no blog e não encontrei forma de a contactar via email... A mensagem que lhe queria enviar era - apenas - a partilha da sensação de alguém que passou pelo mesmo: amamentei o meu filho durante 2 anos e a minha filha durante 3...
Sou também a feliz proprietária do livro "Histórias Pequeninas sobre coisas grandes #43", feito por si com muita dedicação e que me foi oferecido por uma amiga em 2007 (altura desde a qual a sigo... sempre em silêncio, até hoje que resolvi ganha coragem e tentar entrar em contacto).
Beijinhos e obrigada por escrever desta forma...
Elsa

nat disse...

Querida Elsa, muito obrigada por esta mensagem e todo o carinho e cumplicidade que me transmite...
Sempre que alguém me fala do meu primeiro livrinho, fico comovida.
Obrigada por me "seguir" e pela partilha. Eu sei que não estou sozinha, mas às vezes é mesmo muito bom senti-lo e ouvi-lo. A internet pode ser um sítio maravilhoso. :)
Um beijinho.

Anónimo disse...

Muito obrigada pela resposta... e sim, não está sozinha nesta procura incessante de seguirmos o nosso instinto de mães. Durante os anos que amamentei fui muitas vezes alvo de pressões sociais, de olhares de soslaio e de críticas de pessoas próximas.A minha mãe (que partiu há um ano...) foi uma das pessoas que mais me apoiou e incentivou a prosseguir com a amamentação. Achei também que era o melhor, que era o que nós - mãe e filho/a - queríamos e no dia em que terminou chorei de mansinho... das duas vezes. Hoje olho para eles (com 9 e 4 anos) e sei que fiz o que devia de ter feito. Voltaria a fazer o mesmo. Da mesma forma. Sempre e sempre.
Quanto o seu livro, está ali guardado na prateleira dos livros "preciosos" e especiais. Mas muitas vezes salta de lá e ganha vida ;)
Muita força, paciência e persistência nesta tarefa tão incógnita - e por vezes árdua - de criar um filho!
Beijinhos e tudo de bom,
Elsa