Não se pode
falar de “O processo” sem se falar, primeiramente, de seu autor – Franz Kafka.
Kafka, escritor Tcheco, formado em direito, funcionário num instituto de
seguros, judeu, considerado um dos mais influentes escritores do século XX,
era, todavia, aquele que não queria ser lido. E seu testamento deixou explícito
que tudo o que escrevera deveria ser queimado, nunca dado à estampa, como se
achasse que não merecia que o lessem. Felizmente, o amigo herdeiro, Max Brod,
contrariou o pedido; não foi capaz de jogar na fogueira “O processo” e outros
manuscritos, compilou-os e publicou.
Kafka era um
indivíduo inseguro, pessimista, senhor de um humor seco e de uma fina ironia.
“O Processo” comprova-o. Nele espelha sua visão de mundo, sua imagem de uma
sociedade arbitrariamente dominada por uma justiça inescrupulosa, que age sem
explicação e sem argumentos, exercendo o poder pelo poder.
Joseph K., seu
alter-ego, é um funcionário de um banco acusado e feito prisioneiro num
processo sem rosto, num processo cuja acusação desconhece e cuja prisão não
entende e nem lhe é dado conhecer o motivo. Essa é a story line de “O processo”. Simples, direta, certeira e surreal.
Mas o que há de espantoso nessa story
line e na criação kafkiana é que o surreal não é tão surreal assim, o
surreal tem contornos reais e, arrisco dizer, acontece. A prisão Kafkiana de K.
não é inverossímil. Devia ser, mas não é. São inúmeros os casos de prisões
indevidas, de violação das liberdades individuais, de não justificação de
cárcere, na época de Kafka e mesmo em tempos mais atuais. Aqui mesmo, no Rio
Grande do Norte, num documento de 1870 (poucos anos antes do tempo de Kafka,
que nasceu em 1883), o partido liberal norte-rio-grandense dava conta:
“O bacharel Joaquim Theodoro [...] de
Albuquerque precisa que V. Ex, pessoa respeitável despache, mande que o
comandante da fortaleza da barra lhe declare ao pé desta qual o motivo por que
se acha preso na mesma fortaleza o pratico da barra Ignácio Firmo da Trindade,
e bem assim a ordem de que autoridade foi determinada tal prisão.” (MACEDO et al,
1870, p. 10).
Ora, as semelhanças com o infortúnio de Joseph K. são evidentes.
Por isso, “O
processo”, de Kafka, não é apenas uma obra de ficção, é um documento histórico,
pois, por meio dele, é-nos dado a conhecer o funcionamento da Justiça de finais
do século XIX, início do século XX. E é um documento histórico tanto mais
relevante quanto se enquadra naquilo que Hobsbawn afirma no prefácio de “A era
dos extremos”: “As pessoas que nos esclarecem de fato são as que podem – ou
querem – falar livremente, de preferência quando não têm responsabilidade por
grandes questões” (HOBSBAWN, 2001, p. 8) e quanto se pode afirmar que não se
trata de um produto historiográfico. Aquilo que é produzido com determinada
finalidade resulta, não raras vezes, deformado por culpa das intenções do
autor.
Kafka escreve
num momento histórico de desconfiança (Pré-Guerra e pós-guerra), num contexto
em que o otimismo do século XIX começa a se esvair, em que as pessoas percebem
que o sentido da História não é assim tão linear, com vista ao sucesso e ao
progresso, quanto se preconizou. Surgem dúvidas sobre o rumo que a História
toma.
Na mesma
época, o Brasil vê surgir obras como “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, da
mesma forma vestido de uma ironia e de um pessimismo atrozes. Se Kafka
ridiculariza e põe a nu a estrutura da Justiça no contexto europeu, Lima
Barreto vai mais longe, sugere, por meio da sua metáfora, a reinvenção do país,
pois aqui, como nos tribunais de Kafka, está tudo errado, é tudo risível,
cotidianamente vivido e consentido, e pior, real. Aqui, como na Europa, é
atribuído um valor imensurável ao doutor. O doutor advogado de Kafka, que se
recusa a receber os clientes, que os humilha, que os deixa na agonia de alguma
informação, que não pode ser dispensado, é o mesmo doutor que vive na
Bruzundanga (o Brasil), que compõe o que Lima Barreto apelida de aristocracia
doutoral e que
“lá, [...] se arma de um título [...], obtém
privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos
costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito religioso
pela sua nobreza de doutores” (BARRETO, 2005, p. 33).
Ou seja, “O
processo” tem em sua trama um caráter universal. Talvez por isso o seu sucesso
enquanto livro – as pessoas reconhecem-se em K., as pessoas reconhecem a
Justiça que ali é descrita, e sentem-se, com razão, injustiçadas.
Kafka
coloca-nos, além disso, diante de uma Justiça que atropela um dos princípios
nobres da própria justiça, ao menos no nosso tempo: a presunção de inocência.
Na Constituição Brasileira, o artigo 5º, LVII, diz que “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”.
Esse princípio, que nasce com a Magna Carta Libertatum, de 1215, de
João-Sem-Terra, e que se consolida com a Revolução Francesa, somente se vê
consolidado na Europa depois de 1948, ano em que a ONU o insere na Declaração
dos Direitos Humanos. Fica a sensação de que Kafka propugnava a inserção do
mesmo princípio, ou algo equivalente, na Constituição alemã de Weimar, de 1919,
o que não se verificou. A referida constituição, no artigo 19, da restrição dos
direitos fundamentais – via judicial, alínea 4, apenas admitia que “toda a
pessoa, cujos direitos forem violados pelo poder público, poderá recorrer à via
judicial” (CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO ALEMÃO, 1919), além de, na alínea 1, afirmar
que um direito fundamental possa ser “restringido por lei ou em virtude de lei”
(CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO ALEMÃO), embora não limitado a um caso particular.
Além disso, “O
Processo” inverte o sentido normal da justiça ao exigir de K. que comprove sua
inocência. Na realidade, “o acusado não tem o dever de provar a sua inocência, cabe ao
acusador comprovar a sua culpa, sendo considerado inocente, até o trânsito em
julgado de uma sentença penal condenatória”.
A justiça, sendo
o ponto central da obra, é amplamente explorada nas suas características.
Prende K. “[...] embora ele não tivesse feito qualquer mal (KAFKA, 2000, p. 4)
e não se sente sequer na obrigação de lhe dar explicações, de tal forma que o
protagonista, que vive num Estado que assenta no Direito, julga, a princípio,
tudo tratar-se de uma comédia, de uma brincadeira dos colegas de trabalho. Essa
justiça não andava atrás das culpas das pessoas, mas era forçada pelos delitos
a enviar os guardas e, nela, os superiores atendiam os acusados quando a isso
estivessem dispostos, antes não. Exigia amabilidade e compreensão pelos seus procedimentos
e, todavia, mostrava um elevado grau de incompreensão pelos outros. É
arbitrária, age quando e como bem lhe apetece. Está acima de tudo.
K., a início
surpreendido com os procedimentos dessa justiça, é, no entanto, um homem que
não liga a surpresas. É acusado, mas isso quase não o surpreende, e parece
mesmo que a dado ponto da trama se resigna, quase como se, de fato, sentisse
que era culpado, talvez porque interiorizara a culpa. Absurdo, mas a isso o
impelem. À força da acusação, sente-se culpado.
Ao mesmo tempo,
deve atentar-se noutra particularidade da justiça kafkiana: a prisão. K.,
preso, continua, todavia, a poder viver como até ali, podendo, inclusive, ir
trabalhar; o que sugere que a prisão kafkiana é metafórica. Não é uma prisão de
verdade, é uma prisão, eu diria, social. As coisas, sendo do jeito que são,
asfixiam-no, limitam-no, aprisionam-no. Preso de maneira muito diferente da que
usam para prender ladrões, sua prisão é, nas palavras da Sra. Grubach, qualquer
coisa de sábio.
Interessante na
obra são alguns detalhes como a marcação da audiência em lugares inusitados, em
horários pouco habituais (aos domingos), a platéia nas audiências, a
localização das repartições da justiça, o acompanhamento da cena no primeiro
capítulo por dois velhotes, que olham da janela do outro lado da rua... Tais
fatores indicam que a justiça é onipresente. Aliás, melhor dizendo, creio que a
intenção do autor fosse dizer-nos que o “julgamento” é sempre presente, que
onde quer que estejamos, na hora que for, somos sempre alvos de julgamento por
parte dos outros.
Kafka é, afinal,
em “O Processo”, notoriamente, liberal. A prová-lo está a perspectiva de K. em
toda a trama, chegando a enfurecer-se com a Sra. Grubach por esta ser pouco
lisonjeira para com a menina Burstner. Decência!, grita, “se quiser manter a
sua pensão decente, tem de me mandar embora” (KAFKA, 2000, p. 19).
A terminar,
destaco as duas particularidades que, creio, fazem de “O Processo” um enorme
sucesso: a universalidade e a atualidade. O tema do livro, a Justiça aviltante
e sobranceira, é tão universal quanto atual, bem como o julgamento alheio
destacado acima.
BARRETO, Lima.
Os Bruzundangas. Rio - São Paulo -
Fortaleza: ABC Editora, 2005.
Constituição de Weimar. Disponível
em:< https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 24
de agosto de 2015.
HOBSBAWN,
Eric. A era dos extremos: o breve
século XX (1914-1991). 2.ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Gervásio Álvaro.
Linda-a-Velha: Abril/Controljornal, 2000.
MACEDO,
Antonio Soares de; MONTEIRO, Francisco Alvares (et al). Assalto às urnas. Notícias sobre a eleição senatorial do Rio Grande
do Norte. Natal: Typographia do Rio-Grandense, 1870.
Prinicípio da presunção de inocência. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/162/o-principio-da-presuncao-de-inocencia-e-sua-repercussao-infraconstitucional#ixzz3jmlMKyGV>.
Acesso em: 24 de agosto de 2015.