Cap.3 BasesfundamentaisdaBioetica
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Introdução
Desde o surgimento da Bioética no início dos anos 1970, neologismo teorizado por Van
Rensselaer Potter em seu Bioethics: a bridge to the future, as bases que a fundamentam
sofreram profundas alterações. O alcance epistemológico inicial, pela proposição de Potter,
versava sobre uma ação global voltada para a garantia da sobrevivência do humano em sua
totalidade; o que significava considerar o sujeito e meio ambiente, traspassar o coletivo, numa
dinâmica que alocava a pessoa como partícipe da transformação bio-sócio-cultural. Com o
desenrolar desse período histórico – definido por Garrafa, como visto no capítulo anterior,
como “Etapa de Fundação” –, motivado em grande parte pelo Relatório de Belmont (1978), e
pela obra de Beauchamp e Childress (1979) – The Principles of Bioethics –, a bioética se
voltou ao que se convencionou chamar de principialismo – uma orientação prática que se
resumia a observância de quatro princípios fundamentais, a saber: Autonomia, Beneficência,
Não maleficência e Justiça – análise que será feita adiante. De maneira direita, como explica
Garrafa (2006, p. 7):
A partir dos anos 80, durante o processo de expansão e consolidação da Bioética, a redução
de seus campos de ação e discussão ao domínio da ética biomédica (DURAND, 2003), a
supremacia da individualidade e a ênfase à autonomia, fizeram com que o mundo conhecesse
essa disciplina autônoma como uma ética aplicada meramente ao campo da saúde, em muito,
preocupada com a disposição de preceitos deontológicos. Tal disposição transportou a
bioética do público para o particular; do coletivo para o individual. Além disso, a bioética
principialista trouxe consigo uma ação transformadora dos objetivos primeiros, oriundos da
proposta de Potter, para uma prática baseada numa teoria puramente fundamentalista, que
acaba por se converter em disposição de modelos ético-morais, excluindo assim, qualquer
disposição epistemológica contrária.
Essa característica impositiva do principialismo como caminho bioético, acaba por fomentar o
nascimento de uma nova etapa, posterior à década de 1990, chamada de revisão crítica,
como visto. Dentro desse contexto, o primeiro movimento – ou mesmo contraposição teórica
– considera a pluralidade moral, cultural, étnica (bem como a impossibilidade de
desconsideração dessa realidade), os comportamentos e ações extremos daí derivados, tais
como: violência, injustiça, xenofobia, misoginia, homofobia, feminicídio entre outros. O
segundo movimento alavanca a discussão e a atenção da bioética para questões urgentes no
que tange à responsabilidade social, pública e estatal para com os cidadãos; uma viravolta às
questões coletivas, base da bioética.
A etapa que se segue à revisão crítica foi concebida como “etapa de ampliação conceitual”,
tendo como parâmetro cronológico a homologação, especificamente em 19 de outubro de
2005, da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), sob a tutela da
Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e Cultura (Unesco). Esse marco
na história da bioética transforma toda a realidade dessa disciplina autônoma, antes voltada
para práticas biomédicas e biotecnológicas, passando a ser reconhecida como um campo
para debates e ações de cunho político, social, acadêmico, tratando de temas variados com
impactos diversificados. Dentro dessa perspectiva, a DUBDH passou, por força de sua
envergadura social, a determinar o contexto de discussão da bioética contemporânea,
fazendo-se presente, inclusive, em aspectos ambientais e tecnológicos, antes, impensáveis.
Cria-se, assim, a pluralidade bioética.
Pesquisando na Web
Você pode ler a Declaração sobre Bioética e Direitos Humanos completa através deste
link:
http://fs.unb.br/images/Pdfs/Bioetica/DUBDH.pdf
Este capítulo tem como objetivo direto estabelecer as bases fundamentais da bioética. Para
tanto, tomaremos a DUBDH como referência de nossos estudos, passando por seus artigos
principais – não que os outros não escolhidos não o sejam – e apontando algumas reflexões
necessárias. Assim, o ponto de partida é a análise da dignidade humana e dos direitos
humanos, onde é possível determinar os aspectos primeiros para a atuação da bioética. A
partir daí, a segunda parte avança para a discussão sobre benefício, dano e consentimento,
limites existentes na prática da pesquisa com seres humanos e no atendimento à saúde. A
terceira parte passa a olhar para o estabelecimento de um valor, ou mesmo valores, que
poderiam ser universais. Assim, vulnerabilidade e integralidade passam a figurar como tais
valores, sendo defendidos como condições em que todas as pessoas se encontram. Já a
quarta parte propõe que haja uma reflexão acerca do que se entende por igualdade, passando
pela compreensão de equidade e de justiça. A quinta parte traz uma reflexão sobre
diversidade cultural e pluralismo, provando o necessário reconhecimento do diverso e do
plural como referenciais da bioética. A sexta parte apresenta o debate sobre solidariedade e
responsabilidade social, como aspectos necessários a toda e qualquer sociedade. Por fim, a
sétima parte analisa o meio ambiente, a biodiversidade e as gerações futuras, promovendo
uma reviravolta no projeto inicial de uma bioética meramente voltada para as ciências
biomédicas.
Objetivos
Uma vez compreendidas o contexto histórico do surgimento da bioética, trataremos neste
capítulo de suas bases fundamentais; aquilo que é essencial para seu pleno funcionamento.
A disposição do conhecimento e seus processos marcam o início de uma jornada pelo que se
entende da bioética, mas principalmente para a descoberta de sua real relevência e papel.
Para este capítulo, temos os seguintes objetivos:
Tomando a primeira consideração, cujo o intuito é estabelecer uma relação entre o respeito e
a justiça, faz-se necessário apontar e reconhecer o respeito como um valor fundamental para
que a sociedade possa ser justa. Não há, no que tange à formação coletiva, a possibilidade
de subsistência sem o respeito. É justamente essa compreensão que embasa a proposta de
uma “sociedade bem ordenada” (well ordered Society) de John Rawls; teoria na qual há a
necessidade de compartilhamento da noção de justiça, através de uma concepção equitativa.
Essa capacidade de entendimento deriva de uma possibilidade – fundamental – de que os
indivíduos membros debatam e acordem os princípios dessa mesma justiça, numa mesma
sociedade. Entretanto, a escolha dos princípios da justiça pelos indivíduos deve se dar em um
contexto de desconhecimento das condições, tanto pessoais, quanto sociais, em que exista a
igualdade. Assim, após encontrar o equilíbrio necessário, os princípios passarão a ser aceitos
publicamente, e teriam a seguinte formulação:
Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema total de liberdades básicas iguais compatível com um sistema similar
de liberdades para todos. Segundo princípio: desigualdades sociais e
econômicas devem ser dispostas de modo que tanto: (a) sejam de maior
benefício para os menos favorecidos, compatível com o princípio de
poupanças justas, e (b) esteja vinculada a cargos e posições abertos para
todos, sob condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS,
1999, p. 234).
Especificamente no primeiro princípio, Rawls faz menção aos bens sociais primários que
devem ser assegurados por um critério de justiça. Vale ressaltar, como complemento, que a
concepção de Rawls acerca da justiça está diretamente ligada à ideia de equidade, como o
próprio afirma: “Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as
bases sociais do autorrespeito – devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma
distribuição desigual de um, ou de todos, esses valores sejam para a vantagem de todos”
(RAWLS, 1999, p. 234). Importante observar que nesse fragmento, Rawls aponta a ideia de
“autorrespeito” como um bem social primário (direito, liberdade e oportunidade), escolhido
pelos responsáveis sociais pela construção da justiça. Entre esses bens, destaca-se a
evidência que o filósofo dá às “bases sociais do respeito por si mesmo”, propondo ao indivíduo
à aquisição de valor próprio.
O autorrespeito, dessa forma, torna-se bem social fundamental de toda e qualquer sociedade
que se pretende bem ordenada, critério para o desenvolvimento do respeito – pessoal e
coletivo –, fundamento da civilidade. Uma segunda ponderação necessária é a tomada do
autorrespeito como parâmetro para a concepção de bem dos sujeitos. Partindo do valor de si
mesmo, como orientação das atitudes pessoais para com relação aos outros e, em
contrapartida, o retorno dessas mesmas relações dos outros com relação aos sujeitos. Assim,
sem o respeito mútuo, que decorre do autorrespeito, não há sociedade bem ordenada e logo,
não há sociedade justa. Dessa forma, respeito é questão de justiça, garantia da dignidade e
possibilidade única de civilidade.
Ao se assumir a dignidade como uma questão de respeito, este passa a ser critério para a
existência da dignidade. Isso se evidencia quando se toma a dignidade como sustento dos
direitos humanos; pois “a ideia de dignidade humana como fundamento dos direitos humanos”
(KANT, 2009, p. 512) consagra o valor atribuído aos seres humanos em função de suas
crenças, sobre o modo como devem ser tratados: “os homens precisam ser reconhecidos
como titulares de direitos básicos” (KANT, 2009, p. 512) e a dignidade se inclui no rol desses
direitos. O respeito fundamenta a justiça, que por sua vez se constroi no estabelecimento de
princípios sociais básicos, e embasam e sustentam a dignidade humana, entendida como o
reconhecimento do humano como titular de direitos básicos, que se fundam, como
consequência, no respeito. Dessa forma, respeitar a diversidade cultural e o pluralismo, mais
do que uma questão de reconhecimento e consideração, supõe, obrigatoriamente, promover
a justiça e garantir a dignidade humana, à luz do respeito, possibilitando a efetivação das
identidades dos membros de uma sociedade.
A busca por se potencializar os benefícios deve vir acompanhada pela necessária redução
dos danos. Apesar de parecer algo inatingível, ou mesmo abstrato, a definição do que se
entende por minimização dos riscos e dos danos, bem como maximização dos benefícios,
ficam claras as preocupações quando lemos a análise feita por Miguel Kottow no que diz
respeito à limitação dessas ações:
Um ponto de análise importante que a DUBDH traz é o reconhecimento dos benefícios como
um bem social. Apesar da Declaração não ter caráter normativista – ela serve de orientação
para os países que quiserem produzir normas específicas –, seus artigos são observados e
respeitados por boa parte da comunidae internacional, inclusive com o seu reconhecimento.
Ao indicar que os benefícios precisam ser compartilhados, a Declaração possibilita que
pessoas desprovidas dos recursos básicos, ou mesmo aquelas que não conseguem efetivar
sua dignidade, possam ser auxiliadas pelos avanços da ciência em geral. Tal feito, além de
garantir um caminho para a busca da sobrevida, promove, pela equidade, a busca da
igualdade.
Glossário
Equidade
A equidade é a garantia de que as necessidades específicas de cada pessoa serão
atendidas, numa espécie de desigualdade positiva, para que, a partir da satisfação das
especificidades, alcance-se a igualdade e se promova a justiça.
Glossário
Paternalista
O paternalismo é a ação dos profissionais da saúde, ou qualquer pessoa diretamente
ligada à intervenção, que desconsidera a vontade do participante. Nesses casos, todas
as decisões são tomadas pelos profissionais, sem informar e esclarecer às pessoas, o
que impede a garantia da liberdade e da autonomia.
Paternalidade
A paternalidade é a prática dos profissionais da saúde, ou qualquer pessoa diretamente
ligada à intervenção, que se apoia na realidade social, econômica, familiar, entre outras,
para agir em prol do participante. Aqui, os profissionais exercem o papel de
representantes dos participantes limitados em sua capacidade de consentir. Em linhas
gerais, os profissionais passam a ser a “voz” daqueles que não possuem “voz”.
Há duas outras questões que precisam ser apresentadas no que diz respeito ao
consentimento: a terceirização e a quanto o consentimento não pode – ou não há necessidade
– de ser obtido. Sobre a terceirização, isso significa dizer que nos casos do participante estar
impossibilitado de emitir seu consentimento – por qualquer que seja o motivo –, este pode ser
dado por um representante legal. Nos casos em que o participante for menor de idade, além
do consentimento obtido com o responsável, deve haver o assentimento por parte do
participamente não emancipado.
Ao tomarmos o termo vulnerabilidade como primeira abordagem, observamos que sua origem
se dá na expressão latina vulnus, cujo significado é “feridada” (TORRINHA, 1939, p. 1127).
No mesmo dicionário ainda é possível encontrar algumas derivações do termo, de maneira
que a vulnerabilidade pode ser compreendida como fraqueza, ou sensibilidade. O Oxford
Dictionary, por sua vez, apresenta a vulnerabilidade como uma caracterísitca de quem é fraco,
ou que pode se machucar facilmente, seja física ou mentalmente (OXFORD, 2019). Tal
concepção abre margem para a aplicação da vulnerabilidade em inúmeros campos nos quais
o humano interfere, ou mesmo na análise da interferência desses campos na vida do humano.
Para Cunha e Garrafa (2016, p. 198), essa realidade se evidencia em campos como o
econômico, em questões climáticas e na saúde como um todo.
Glossário
Relatório Belmont
Criado em 1978 pela Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos e Pesquisa
Biomédica e Comportamental, o Relatório de Belmont – que recebeu este nome por ter
sido elaborado na cidade norte-americana de Belmont – foi um dos primeiros
documentos a mencionar princípios éticos para a pesquisa com seres humanos, a saber:
princípio do respeito às pessoas; o princípio da beneficência; e o princípio da justiça. Foi
a partir do Relatório de Belmont que se chegou à Bioética Principialista, como se verá
adiante.
Para além das definições do Relatório de Belmont, há autores que entendem que o ser
humano como um todo é vulnerável, não somente os que fazem parte de grupos em situação
específica. Miguel Kottow (2008. p. 340, tradução nossa), por exemplo, defende que “o ser
humano é vulnerável, como o é todo ser vivo”; e vai além, admitindo que o animal “[...] é
vulnerável em sua biologia; ao passo que o ser humano é, não só em seu organismo, mas
nos fenômenos vitais, como também na construção de sua vida e em seu projeto existencial”
(KOTTOW, Ibidem). O autor ainda faz um alerta para um comportamento global recorrente
para com a vulnerabilidade. Segundo Kottow (ibidem), há uma tentativa demonstrar um certo
excesso no que diz respeito à vulnerabilidade, além de buscar determinar que pessoas nessa
situação não são tão vulneráveis. Exatamente por tais aspectos é que a vulnerabilidade não
pode ser abandonada, requerendo uma forte definição e ampla defesa. Justamente por isso
que o termo integralidade deve fazer parte do princípio da vulnerabilidade. Não se
compreende o humano fracionado, dividido; mas o temos em sua completude, totalidade.
A análise do pluralismo ganha uma nova envergadura, que parte da concepção política,
atravessa a análise jurídico-cultural e alcança uma disposição ética. É exatamente aqui, na
abertura do pluralismo à ética, que se assenta a concepção de prática bioética: uma
compreensão que abandona o universalismo abstrato, o relativismo cultural, o positivismo
moralista e admite a existência de uma unidade pela pluralidade, um reconhecimento do eu
no outro e do outro no eu; é, como na propositura de Enrique Dussel, uma “Ética da
Libertação”, onde “aceitar o argumento do outro supõe aceitar ao outro como igual, e esta
aceitação do outro como igual é uma posição ética [...]” (DUSSEL, 2012, p. 234).
Importante se faz ressaltar que alcançar e suster a prática bioética (plural e tolerante; tolerante
e plural), ou uma bioética comprometida (crítica e coletiva), requer passos. O primeiro é
romper com fundamentalismos. Tal consideração exige que a bioética não imponha princípios
e valores, mas sim, aponte-os para a promoção do diálogo e o alcance do consenso. Numa
sociedade globalizada – em seus aspectos positivos – onde há, necessariamente, a
diversidade, a miscigenação, a multiculturalidade, não há de se falar em valores corretos e
errados; em práticas etnocêntricas ou monoculturais. Não cabe, nesse contexto, juízos
subjetivos que se apoiam em parâmetros particulares e entendimentos pessoais. É necessário
que se considere todas as possibilidades; é preciso chamar a todos para o debate, para a
proposição de ideias, cuja finalidade é a sobrevida humana. A bioética deve se ater às
situações de vida, variadas e diferentes em propositura e formas (OLIVEIRA; OSMAN, 2017,
p. 55).
Estabelecer um modelo onde há a participação direta de toda sociedade; eis a dialogia. Aqui,
não há espaço para a manipulação ou influência; determinação e obrigação; autoritarismos e
imposições. O processo dialógico supõe uma realidade fundada no ouvir, no compreender,
no respeitar, para que se alcance o consenso; o fundamento de toda e qualquer sociedade
democrática. O consenso, quinto passo da prática bioética, é esse acordo possível entre
pessoas que se colocam em situação dialógica. A representação plena desse feito se perfaz
na elaboração de direitos fundamentais que devem ser respeitados. A essa prática dá-se o
nome de universalização: possibilidade de uma convivência pacífica e harmoniosa a partir de
referenciais comuns. Ressalte-se que comum não significa igual, mas sim, a reunião das
possibilidades.
Essa pluralidade que obriga o reconhecimento de aspectos fundantes da vida humana, é
quem postula o surgimento de uma disciplina que consiga suster os debates e ponderações,
sem determinar modelos ou parâmetros. É, nos dizeres de Sánchez Vázquez (1977, p. 254),
a prática do fazer e refazer; é “o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais o sujeito ativo
(agente) modifica uma matéria prima dada”. É a propositura de uma ação pessoal com vistas
a transformar a realidade onde se está inserido. Reflexão que age na realidade; realidade que
transforma a reflexão, revolucionando o sistema e penetrando na história. Bioética.
Em sua famosa obra “Filosofia do Direito”, especificamente no §200, Hegel afirma que a
multiplicidade das circunstâncias produz a diversidade. Essa diversidade se traduz em todos
os graus e em todos os sentidos e afeta a todos os indivíduos. Entretanto, o termo diversidade
aponta para a qualidade ou condição daquilo que é diverso, as formas ou relações diversas
entre si, ponderadas acerca do ambiente, assunto, coisas. Dessa forma, é possível afirmar
que há diversidade de opiniões, de pontos de vista, de escolhas, de comportamentos, de
hábitos, de costumes, crenças. Fala-se da diversidade sexual, biológica, da biodiversidade
(KONZEN, 2012, p. 39). Numa concepção direta,
os diversos [Die Verschiedenen], que são uma e a mesma coisa, com que
ambas, a igualdade e a desigualdade, tornam-se vinculadas, são, pois, de
uma parte, iguais entre si, mas, de outra parte, são desiguais, e [isso]
enquanto elas são iguais, e enquanto elas são desiguais (HEGEL, 2017).
O que se percebe no pensamento hegeliano, que se converte numa análise fundamental para
a compreensão da diversidade, é a ligação existente entre essa e a formação da igualdade e
da desigualdade, e da necessária consideração de ambas para a existência da diversidade
(multiplicidade) e da identidade. O que Hegel afirma, apesar a complexidade filosófica do
fragmento, é que o abrangimento, ou a eliminação da diversidade, promove a igualdade ou a
desigualdade. De outra forma: se há a garantia da diversidade, há a igualdade; se, ao
contrário, elimina-se a diversidade, fundamenta-se a desigualdade. Essa realidade se torna
ainda mais evidente quando se considera
que todas as coisas sejam diferentes das outras, e uma proposição muito
trivial, pois no plural das coisas reside imediatamente a multiplicidade
[Mehrheit] e a total diversidade indeterminada [und die ganz unbestimmte
Verschiedenheit]. – Mas a proposição “não há duas coisas que sejam
totalmente iguais entre si” enuncia muito mais, a saber, enuncia a diversidade
determinada [bestimmte Verschiedenheit]. Duas coisas não são somente
duas – [pois] a pluralidade numérica [numerische Vielheit] e apenas a
uniformidade [Einerleiheit] –, porem elas são diversas [verschieden] mediante
uma determinação [Bestimmung] (HEGEL, 2017).
Aqui, Hegel enfatiza a necessária realidade da diversidade determinada que postula que duas
coisas não são só duas coisas, mas elas, apesar de duas, da pluralidade numérica, são
diversas entre si e iguais em cada uma das suas concepções. Observe-se que diversidade,
como pondera o filósofo, depende, obrigatoriamente, de uma igualdade em comum e do
reconhecimento da desigualdade necessária (diferentes na igualdade e iguais nas
diferenças). Portanto, a diversidade humana se justifica por conta da igualdade preexistente
(biológica, por exemplo) e da desigualdade real (como o desenvolvimento pessoal). Cabe
ressaltar que a definição de desigualdade positiva se funda na dinâmica do reconhecimento
das subjetividades e dos direitos de cada pessoa. Assim, a desigualdade – o reconhecimento
das diferenças – positivada é um dos fundamentos de sustentação da diversidade. A
desigualdade positiva se assemelha ao que se convencionou chamar de ações afirmativas;
ações com a finalidade de reconhecer as desigualdades existentes entre as pessoas e buscar
reduzi-las. O sobressalto fica à cargo da importância do reconhecimento da desigualdade. Tal
disposição fundamenta, e solidifica, a dinâmica da diversidade, que somente existe quando
há a igualdade e, ao mesmo tempo, a desigualdade. Somente assim, compreendendo essa
realidade múltipla, que há a possibilidade da formulação dos conceitos de identidade e
diferença das pessoas em sua subjetividade.
3.6 Conclusão
Resumo
A promulgação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH)
possibilitou um avanço na tentativa de se criar um caminho para a subsistência humana.
Entretanto, encontrar uma interpretação universal para seus artigos nem sempre é possível.
Diante disso, o que se pretendeu foi uma releitura das bases fundamentais da bioética,
recolocando algumas questões esseciais para a ação bioética. O respeito arranja e possibilita
a justiça e a dignidade, enquanto a diversidade, e sua garantia, permitem a geração da
identidade, em toda sua complexidade, e mantém a necessária diferença social. Por sua vez,
o pluralismo propõe o reconhecimento de todas essas condições anteriores para sua
existência. Somente assim é que se alcança um modelo de sociedade bem ordenada, onde
a sobrevivência do humano seja possível.
Referências
ALBUQUERQUE, A. Perspectiva bioética intercultural e direitos humanos. Revista Bioética,
v. 23, n. 1, p. 80–88, 2015.
CHAUÍ, M. Cidadania Cultural - o direito a cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006.
RAWLS, John. A theory of justice. 2. ed. Cambridge: Harvard University, 1999. 538 p.