Cap.3 BasesfundamentaisdaBioetica

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3 Bases fundamentais da Bioética

Savio Gonçalves dos Santos

Introdução
Desde o surgimento da Bioética no início dos anos 1970, neologismo teorizado por Van
Rensselaer Potter em seu Bioethics: a bridge to the future, as bases que a fundamentam
sofreram profundas alterações. O alcance epistemológico inicial, pela proposição de Potter,
versava sobre uma ação global voltada para a garantia da sobrevivência do humano em sua
totalidade; o que significava considerar o sujeito e meio ambiente, traspassar o coletivo, numa
dinâmica que alocava a pessoa como partícipe da transformação bio-sócio-cultural. Com o
desenrolar desse período histórico – definido por Garrafa, como visto no capítulo anterior,
como “Etapa de Fundação” –, motivado em grande parte pelo Relatório de Belmont (1978), e
pela obra de Beauchamp e Childress (1979) – The Principles of Bioethics –, a bioética se
voltou ao que se convencionou chamar de principialismo – uma orientação prática que se
resumia a observância de quatro princípios fundamentais, a saber: Autonomia, Beneficência,
Não maleficência e Justiça – análise que será feita adiante. De maneira direita, como explica
Garrafa (2006, p. 7):

É oportuno mencionar que sua visão original da bioética focalizava-a como


uma questão ou um compromisso mais global frente ao equilíbrio e
preservação da relação dos seres humano com o ecossistema e a própria
vida do planeta, diferentes daquela que acabou difundindo-se e
sedimentando-se nos meios científicos a partir da publicação do livro The
Principles of Bioethics.

A partir dos anos 80, durante o processo de expansão e consolidação da Bioética, a redução
de seus campos de ação e discussão ao domínio da ética biomédica (DURAND, 2003), a
supremacia da individualidade e a ênfase à autonomia, fizeram com que o mundo conhecesse
essa disciplina autônoma como uma ética aplicada meramente ao campo da saúde, em muito,
preocupada com a disposição de preceitos deontológicos. Tal disposição transportou a
bioética do público para o particular; do coletivo para o individual. Além disso, a bioética
principialista trouxe consigo uma ação transformadora dos objetivos primeiros, oriundos da
proposta de Potter, para uma prática baseada numa teoria puramente fundamentalista, que
acaba por se converter em disposição de modelos ético-morais, excluindo assim, qualquer
disposição epistemológica contrária.

Essa característica impositiva do principialismo como caminho bioético, acaba por fomentar o
nascimento de uma nova etapa, posterior à década de 1990, chamada de revisão crítica,
como visto. Dentro desse contexto, o primeiro movimento – ou mesmo contraposição teórica
– considera a pluralidade moral, cultural, étnica (bem como a impossibilidade de
desconsideração dessa realidade), os comportamentos e ações extremos daí derivados, tais
como: violência, injustiça, xenofobia, misoginia, homofobia, feminicídio entre outros. O
segundo movimento alavanca a discussão e a atenção da bioética para questões urgentes no
que tange à responsabilidade social, pública e estatal para com os cidadãos; uma viravolta às
questões coletivas, base da bioética.

A etapa que se segue à revisão crítica foi concebida como “etapa de ampliação conceitual”,
tendo como parâmetro cronológico a homologação, especificamente em 19 de outubro de
2005, da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), sob a tutela da
Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e Cultura (Unesco). Esse marco
na história da bioética transforma toda a realidade dessa disciplina autônoma, antes voltada
para práticas biomédicas e biotecnológicas, passando a ser reconhecida como um campo
para debates e ações de cunho político, social, acadêmico, tratando de temas variados com
impactos diversificados. Dentro dessa perspectiva, a DUBDH passou, por força de sua
envergadura social, a determinar o contexto de discussão da bioética contemporânea,
fazendo-se presente, inclusive, em aspectos ambientais e tecnológicos, antes, impensáveis.
Cria-se, assim, a pluralidade bioética.

Pesquisando na Web

Você pode ler a Declaração sobre Bioética e Direitos Humanos completa através deste
link:

http://fs.unb.br/images/Pdfs/Bioetica/DUBDH.pdf

Este capítulo tem como objetivo direto estabelecer as bases fundamentais da bioética. Para
tanto, tomaremos a DUBDH como referência de nossos estudos, passando por seus artigos
principais – não que os outros não escolhidos não o sejam – e apontando algumas reflexões
necessárias. Assim, o ponto de partida é a análise da dignidade humana e dos direitos
humanos, onde é possível determinar os aspectos primeiros para a atuação da bioética. A
partir daí, a segunda parte avança para a discussão sobre benefício, dano e consentimento,
limites existentes na prática da pesquisa com seres humanos e no atendimento à saúde. A
terceira parte passa a olhar para o estabelecimento de um valor, ou mesmo valores, que
poderiam ser universais. Assim, vulnerabilidade e integralidade passam a figurar como tais
valores, sendo defendidos como condições em que todas as pessoas se encontram. Já a
quarta parte propõe que haja uma reflexão acerca do que se entende por igualdade, passando
pela compreensão de equidade e de justiça. A quinta parte traz uma reflexão sobre
diversidade cultural e pluralismo, provando o necessário reconhecimento do diverso e do
plural como referenciais da bioética. A sexta parte apresenta o debate sobre solidariedade e
responsabilidade social, como aspectos necessários a toda e qualquer sociedade. Por fim, a
sétima parte analisa o meio ambiente, a biodiversidade e as gerações futuras, promovendo
uma reviravolta no projeto inicial de uma bioética meramente voltada para as ciências
biomédicas.

Objetivos
Uma vez compreendidas o contexto histórico do surgimento da bioética, trataremos neste
capítulo de suas bases fundamentais; aquilo que é essencial para seu pleno funcionamento.
A disposição do conhecimento e seus processos marcam o início de uma jornada pelo que se
entende da bioética, mas principalmente para a descoberta de sua real relevência e papel.
Para este capítulo, temos os seguintes objetivos:

 demonstrar as bases fundantes da bioética;


 estruturar as bases de sustentação de sua ação teórico-prática;
 relacionar as questões teóricas com o cotidiano;
 esboçar um caminho crítico para além dos referenciais limitadores do positivismo bioético.
Esquema
3.1 Dignidade humana e direitos humanos
3.2 Benefício, dano e consentimento
3.3 Vulnerabilidade e integralidade
3.4 Igualdade, justiça e equidade
3.5 Diversidade cultural e pluralismo
3.6 Conclusão

3.1 Dignidade humana e direitos humanos


Respeitar não quer dizer aceitar. Respeito é a consideração que se deve ter para com a outra
pessoa, sua posição, sua opinião, suas escolhas, suas divergências. É a prática da filiação,
da alteridade, sem que haja a submissão ou sujeição às vontades. É uma deferência
considerável; veneração, honra (FERREIRA, 2009). Entretanto, a pergunta que muitas vezes
se sobressai é: por que respeitar? Há várias possibilidades de resposta, que abarcam variadas
dimensões, indo desde uma proposição subjetiva (consciente, reflexiva, moral, ética) até a
objetiva (sociedade, interação, socialização, política). Há, porém, duas considerações que se
fazem necessárias para compor uma resposta aceitável que busque fundamentar o respeito
e sua aplicabilidade: a primeira leva em conta a justiça; é justo, portanto, respeitar. A segunda,
é a consideração do respeito e sua ligação com a dignidade (re-spectare); dignidade não é
nada mais do que respeito mútuo.

Tomando a primeira consideração, cujo o intuito é estabelecer uma relação entre o respeito e
a justiça, faz-se necessário apontar e reconhecer o respeito como um valor fundamental para
que a sociedade possa ser justa. Não há, no que tange à formação coletiva, a possibilidade
de subsistência sem o respeito. É justamente essa compreensão que embasa a proposta de
uma “sociedade bem ordenada” (well ordered Society) de John Rawls; teoria na qual há a
necessidade de compartilhamento da noção de justiça, através de uma concepção equitativa.
Essa capacidade de entendimento deriva de uma possibilidade – fundamental – de que os
indivíduos membros debatam e acordem os princípios dessa mesma justiça, numa mesma
sociedade. Entretanto, a escolha dos princípios da justiça pelos indivíduos deve se dar em um
contexto de desconhecimento das condições, tanto pessoais, quanto sociais, em que exista a
igualdade. Assim, após encontrar o equilíbrio necessário, os princípios passarão a ser aceitos
publicamente, e teriam a seguinte formulação:

Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema total de liberdades básicas iguais compatível com um sistema similar
de liberdades para todos. Segundo princípio: desigualdades sociais e
econômicas devem ser dispostas de modo que tanto: (a) sejam de maior
benefício para os menos favorecidos, compatível com o princípio de
poupanças justas, e (b) esteja vinculada a cargos e posições abertos para
todos, sob condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS,
1999, p. 234).

Especificamente no primeiro princípio, Rawls faz menção aos bens sociais primários que
devem ser assegurados por um critério de justiça. Vale ressaltar, como complemento, que a
concepção de Rawls acerca da justiça está diretamente ligada à ideia de equidade, como o
próprio afirma: “Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as
bases sociais do autorrespeito – devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma
distribuição desigual de um, ou de todos, esses valores sejam para a vantagem de todos”
(RAWLS, 1999, p. 234). Importante observar que nesse fragmento, Rawls aponta a ideia de
“autorrespeito” como um bem social primário (direito, liberdade e oportunidade), escolhido
pelos responsáveis sociais pela construção da justiça. Entre esses bens, destaca-se a
evidência que o filósofo dá às “bases sociais do respeito por si mesmo”, propondo ao indivíduo
à aquisição de valor próprio.

O autorrespeito não é tanto uma parte de qualquer plano racional de vida no


sentido quanto o é no sentido de que vale a pena levar a cabo um tal projeto.
Ora, nosso autorrespeito normalmente depende do respeito de outros. A
menos que sintamos que nossos esforços sejam respeitados por eles, é
difícil, se não impossível, para nós mantermos a convicção de que vale a
pena promover nossos fins [...]. Portanto, por essa razão, as partes aceitariam
o dever natural de respeito mútuo que lhes pede que tratem umas às outras
com civilidade e estejam dispostas a explicar os motivos de suas ações,
especialmente quando as reivindicações de outros são desconsideradas [...].
Além disso, pode-se supor que aqueles que respeitam a si mesmos muito
provavelmente respeitarão uns aos outros, e vice-versa. Autodesprezo
conduz ao desprezo por outros e ameaça o bem deles tanto quanto a inveja
o faz. Autorrespeito se autossustenta reciprocamente (RAWLS, 1999, p. 235).

O autorrespeito, dessa forma, torna-se bem social fundamental de toda e qualquer sociedade
que se pretende bem ordenada, critério para o desenvolvimento do respeito – pessoal e
coletivo –, fundamento da civilidade. Uma segunda ponderação necessária é a tomada do
autorrespeito como parâmetro para a concepção de bem dos sujeitos. Partindo do valor de si
mesmo, como orientação das atitudes pessoais para com relação aos outros e, em
contrapartida, o retorno dessas mesmas relações dos outros com relação aos sujeitos. Assim,
sem o respeito mútuo, que decorre do autorrespeito, não há sociedade bem ordenada e logo,
não há sociedade justa. Dessa forma, respeito é questão de justiça, garantia da dignidade e
possibilidade única de civilidade.

Compreender o respeito como respeito mútuo é, de certa maneira, defini-lo como


possibilidade da dignidade. Isso pelo fato de que resta:

[...] evidente que também o “respeito”, compreendido em seu sentido básico


e essencial, está necessariamente ligado ao valor da dignidade. Alguns
autores consideram, inclusive, que a dignidade não é senão o respeito mútuo.
É nesse contexto que o respeito passa a ser compreendido como um re-
spectare: [...] olhar novamente, olhar de dentro para dentro, vale a pena dizer,
da própria humanidade para a humanidade do outro (VELENZUELA, 2008, p.
657).

É um assumir-se e, consequentemente, assumir o outro; um processo de dignidade essencial.


Respeito, portanto, é dinâmica fundamental da dignidade humana. É, como define Kant, uma
qualidade inerente aos seres humanos relacionada a tudo aquilo que não tem preço, que não
pode ser substituído por outra coisa do mesmo valor. Dessa forma, não se pode atribuir valor
à humanidade. Atribui-se valor às coisas. Não se pode substituir pessoas. Substitui-se uma
coisa com determinado valor por outra coisa com o mesmo valor. A dignidade, portanto, está
acima de qualquer possibilidade de troca ou comércio. Ela não tem equivalência. É uma
qualidade intrínseca aos humanos que possuem personalidades individuais. É por isso que o
homem é a medida de todas as coisas; é fim em si mesmo, não o meio para se atingir um fim.
Dignidade, assim, está diretamente vinculada à sua autonomia, à sua personificação; ao
respeito (KANT, 2009, p. 512).

Ao se assumir a dignidade como uma questão de respeito, este passa a ser critério para a
existência da dignidade. Isso se evidencia quando se toma a dignidade como sustento dos
direitos humanos; pois “a ideia de dignidade humana como fundamento dos direitos humanos”
(KANT, 2009, p. 512) consagra o valor atribuído aos seres humanos em função de suas
crenças, sobre o modo como devem ser tratados: “os homens precisam ser reconhecidos
como titulares de direitos básicos” (KANT, 2009, p. 512) e a dignidade se inclui no rol desses
direitos. O respeito fundamenta a justiça, que por sua vez se constroi no estabelecimento de
princípios sociais básicos, e embasam e sustentam a dignidade humana, entendida como o
reconhecimento do humano como titular de direitos básicos, que se fundam, como
consequência, no respeito. Dessa forma, respeitar a diversidade cultural e o pluralismo, mais
do que uma questão de reconhecimento e consideração, supõe, obrigatoriamente, promover
a justiça e garantir a dignidade humana, à luz do respeito, possibilitando a efetivação das
identidades dos membros de uma sociedade.

3.2 Benefício, dano e consentimento


O segundo ponto das bases fundamentais da bioética se divide em três aspectos. Divisão que
não significa que cada uma das partes age de forma isolada. Benefício, dano e consentimento
estão juntos pelo fato de que um complementa o outro, mas cada qual possui sua
especificidade. Essa condição se evidencia, de maneira contundente, na área da saúde,
quando se considera a realidade do paciente submetido aos tratamentos diversos. Entretanto,
a aplicação dos três fundamentos na prática bioética deve ser realizada em qualquer
condição.

Curiosamente, a preocupação com a promoção de benefícios para as pessoas não é algo


novo. No contexto da história, o Juramento de Hipócrates, provavelmente do século V a.C., já
preconizava tal importância. De maneira direita, o Juramento estabelecia o caminho para a
atuação do profissional: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e
entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. (…) A ninguém darei por comprazer,
nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda” (CRMESP, 2019). Cumpre
observar que mesmo estabelecido o Juramento, a preocupação direta com a maximização
dos benefícios só se deu após a Segunda Guerra Mundial, com os relatos das atrocidades
cometidas contra as pessoas.

A busca por se potencializar os benefícios deve vir acompanhada pela necessária redução
dos danos. Apesar de parecer algo inatingível, ou mesmo abstrato, a definição do que se
entende por minimização dos riscos e dos danos, bem como maximização dos benefícios,
ficam claras as preocupações quando lemos a análise feita por Miguel Kottow no que diz
respeito à limitação dessas ações:

Há pelo menos três estratégias retóricas propostas, preferencialmente


utilizadas no recrutamento de sujeitos de pesquisa para amenizar a gravidade
de possíveis riscos: a) informação inadequada; b) comparação com riscos de
atividades alheias à pesquisa; c) tipificação como riscos mínimos (KOTTOW,
2010, p. 23-24, tradução nossa).

É comum encontrarmos situações que minimizam a importância da garantia dos benefícios e


a conteção dos danos. Isso pelo fato de que tais aspectos podem “atrapalhar” as pesquisas
científicas, ou “complicar” o atendimento à saúde. Exatamente por tais aspectos é que para a
efetivação de tais princípios, deve-se observar:

a) Os benefícios resultantes de qualquer pesquisa científica e suas


aplicações devem ser compartilhados com a sociedade como um todo e, no
âmbito da comunidade internacional, em especial com países em
desenvolvimento. Para dar efeito a esse princípio, os benefícios podem
assumir quaisquer das seguintes formas:
(i) ajuda especial e sustentável e reconhecimento aos indivíduos e grupos
que tenham participado de uma pesquisa;
(ii) acesso a cuidados de saúde de qualidade;
(iii) oferta de novas modalidades diagnósticas e terapêuticas ou de produtos
resultantes da pesquisa;
(iv) apoio a serviços de saúde;
(v) acesso ao conhecimento científico e tecnológico;
(vi) facilidades para geração de capacidade em pesquisa; e
(vii) outras formas de benefício coerentes com os princípios dispostos na
presente
Declaração.
b) Os benefícios não devem constituir indução inadequada para estimular a
participação em pesquisa (DUBDH, 2005, p. 7).

Um ponto de análise importante que a DUBDH traz é o reconhecimento dos benefícios como
um bem social. Apesar da Declaração não ter caráter normativista – ela serve de orientação
para os países que quiserem produzir normas específicas –, seus artigos são observados e
respeitados por boa parte da comunidae internacional, inclusive com o seu reconhecimento.
Ao indicar que os benefícios precisam ser compartilhados, a Declaração possibilita que
pessoas desprovidas dos recursos básicos, ou mesmo aquelas que não conseguem efetivar
sua dignidade, possam ser auxiliadas pelos avanços da ciência em geral. Tal feito, além de
garantir um caminho para a busca da sobrevida, promove, pela equidade, a busca da
igualdade.

Glossário

Equidade
A equidade é a garantia de que as necessidades específicas de cada pessoa serão
atendidas, numa espécie de desigualdade positiva, para que, a partir da satisfação das
especificidades, alcance-se a igualdade e se promova a justiça.

O terceiro princípio a ser garantido pela proposta da DUBDH é o consentimento. Tal


consentimento é, na prática, uma declaração, por parte de quem é envolvido no processo de
pesquisa – ou atendimento á saúde –, de maneira direta, que expressa a vontade e a
concordância das intervenções sobre si ou seu corpo. Entretanto, para que se alcance o
consentimento, há alguns aspectos fundamentais que precisam ser observados e garantidos:

1. Natureza e objetivo do procedimento: que sejam esclarecidos a natureza – no


que consiste – e o objetivo – o que se pretente – com determinada intervenção.
Para tanto, é necessário que as informações sejam claras e acessíveis, de
modo que o participante da pesquisa, ou do atendimento, compreenda
plenamente para ser capaz de consentir.
2. Riscos: apresentar de forma clara os riscos que o procedimento, ou
atendimento, pode apresentar, a magnitude, a imanência, bem como a
probabilidade de que o risco exista.
3. Benefícios: quais as possibilidades de melhora do participante, ou mesmo os
ganhos diretos que serão obtidos ao participar da pesquisa, ou realizando
determinada intervenção. Cumpre observar que os benefícios precisam ser
maiores que os riscos; ou quando isso não é possível, que o participante seja
plenamente informado.
4. Opções: apresentar ao participante, sempre de forma clara e compreensível,
quais as possíveis opções de tratamento, ou intervenções, os quais ele pode
se submeter. Isso possibilita que o participante seja capaz de optar por outras
terapias e procedimentos, bem como escolher não participar da pesquisa, ou
mesmo deteminado procedimento. A recusa é uma escolha permanente dos
participantes.
A observância a esses quatro aspectos garantem a liberdade e a autonomia dos participantes.
Isso evita, inclusive, que a ação dos profissionais da saúde, ou de pesquisa, seja classificada
como paternalista. Entretando, uma questão que tem preocupado a bioética – especialmente
a latino-americana – é quando a capacidade do participante em declarar seu consentimento.
Tal preocupação reside no fato de que há condicionantes específicos da realidade dos países
periféricos, que podem influenciar na construçao dessa autonomia e liberdade. A deficiência
na formação escolar, a inexistência de liberdade plena, a falta de opções de tratamento e
intervenção, sucateamento do sistema de saúde, ou mesmo sua restrição por questões
financeiras; todos esses aspectos podem minimizar a obtenção do consentimento, ou mesmo
levar ao questionamento de sua validade. Exatamente por isso é que a bioética latino-
americana defende que, nesses casos, haja a intervenção e a paternalidade.

Glossário
Paternalista
O paternalismo é a ação dos profissionais da saúde, ou qualquer pessoa diretamente
ligada à intervenção, que desconsidera a vontade do participante. Nesses casos, todas
as decisões são tomadas pelos profissionais, sem informar e esclarecer às pessoas, o
que impede a garantia da liberdade e da autonomia.

Paternalidade
A paternalidade é a prática dos profissionais da saúde, ou qualquer pessoa diretamente
ligada à intervenção, que se apoia na realidade social, econômica, familiar, entre outras,
para agir em prol do participante. Aqui, os profissionais exercem o papel de
representantes dos participantes limitados em sua capacidade de consentir. Em linhas
gerais, os profissionais passam a ser a “voz” daqueles que não possuem “voz”.

Há duas outras questões que precisam ser apresentadas no que diz respeito ao
consentimento: a terceirização e a quanto o consentimento não pode – ou não há necessidade
– de ser obtido. Sobre a terceirização, isso significa dizer que nos casos do participante estar
impossibilitado de emitir seu consentimento – por qualquer que seja o motivo –, este pode ser
dado por um representante legal. Nos casos em que o participante for menor de idade, além
do consentimento obtido com o responsável, deve haver o assentimento por parte do
participamente não emancipado.

Quanto à não obtenção do consentimento, ou a inexistência de sua obtenção, essas podem


se dar em alguns casos: 1. Quando não há como se prever – ou não há – riscos no tratamento
e intervenção; 2. Quanto o participante se nega a obter as informações necessárias; 3.
Quando o risco é obvio que justifica a presunção do conhecimento; 4. Quando há emergência
real onde não há como obter o consentimento; e 5. Quando a revelação das alternativas e
consequências da intervenção podem causar efeitos nocivos sobre a saúde do participante
(WIERZBA, 2008, p. 217). Entretanto, mesmo diante dessas condições em que o
consentimento não pode, ou não precisa, ser obtido, a prática da boa comunicação, uma
comunicação esclarecedora, é fundamental para o bom desenvolvimento do processo de
pesquisa, ou de atendimento à saúde, e a garantia da dignidade de pessoa humana –
preocupação fundamental da bioética.
3.3 Vulnerabilidade e integralidade
Ao longo de sua breve história como disciplina (breve pelo fato de a bioética ter somente 48
anos de existência), a bioética buscou estabelecer princípios norteadores para a prática em
diversos campos da atividade humana. Entre outros, ela tem se voltado para a construção de
referenciais que observem a sobrevida e a manutenção da dignidade humana. Assim, um dos
pontos principais é a definição de um valor universal que possa ser defendido em qualquer
instância ou lugar. Para muitos dos bioeticistas – especialmente os latino-americanos – esse
valor universal pode ser representado pela união da vulnerabilidade e da integralidade.

Ao tomarmos o termo vulnerabilidade como primeira abordagem, observamos que sua origem
se dá na expressão latina vulnus, cujo significado é “feridada” (TORRINHA, 1939, p. 1127).
No mesmo dicionário ainda é possível encontrar algumas derivações do termo, de maneira
que a vulnerabilidade pode ser compreendida como fraqueza, ou sensibilidade. O Oxford
Dictionary, por sua vez, apresenta a vulnerabilidade como uma caracterísitca de quem é fraco,
ou que pode se machucar facilmente, seja física ou mentalmente (OXFORD, 2019). Tal
concepção abre margem para a aplicação da vulnerabilidade em inúmeros campos nos quais
o humano interfere, ou mesmo na análise da interferência desses campos na vida do humano.
Para Cunha e Garrafa (2016, p. 198), essa realidade se evidencia em campos como o
econômico, em questões climáticas e na saúde como um todo.

Considerando as variantes da aplicação do princípio da vulnerabilidade, o que se obeserva,


de maneira geral, é que a condição de quem se encontra vulnerável é a de incapacidade de
responder às agressões sofridas, o que impossibilita a garantia de sua liberdade e autonomia
e, logo, impede a plena dignidade humana. Numa outra análise, vulnerável é quem não é
capaz de decidir em questões liagadas aos seus interesses, especialmente quando se trata
de práticas e ações relacionadas à saúde, ou pesquisas com seres humanos (CUNHA;
GARRAFA, 2016, p. 198). A conquista e manutenção das liberdades individuais e da
autonomia, sempre foram objeto de preocupação da bioética. Um dos primeiros documentos
a demonstrar a relação existente entre autonomia e vulnerabilidade foi o Relatório de
Belmont. Nele, é possível encontrar as bases conceituais para a defesa e proteção de
pessoas consideradas vulneráveis.

Glossário
Relatório Belmont
Criado em 1978 pela Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos e Pesquisa
Biomédica e Comportamental, o Relatório de Belmont – que recebeu este nome por ter
sido elaborado na cidade norte-americana de Belmont – foi um dos primeiros
documentos a mencionar princípios éticos para a pesquisa com seres humanos, a saber:
princípio do respeito às pessoas; o princípio da beneficência; e o princípio da justiça. Foi
a partir do Relatório de Belmont que se chegou à Bioética Principialista, como se verá
adiante.

Para além das definições do Relatório de Belmont, há autores que entendem que o ser
humano como um todo é vulnerável, não somente os que fazem parte de grupos em situação
específica. Miguel Kottow (2008. p. 340, tradução nossa), por exemplo, defende que “o ser
humano é vulnerável, como o é todo ser vivo”; e vai além, admitindo que o animal “[...] é
vulnerável em sua biologia; ao passo que o ser humano é, não só em seu organismo, mas
nos fenômenos vitais, como também na construção de sua vida e em seu projeto existencial”
(KOTTOW, Ibidem). O autor ainda faz um alerta para um comportamento global recorrente
para com a vulnerabilidade. Segundo Kottow (ibidem), há uma tentativa demonstrar um certo
excesso no que diz respeito à vulnerabilidade, além de buscar determinar que pessoas nessa
situação não são tão vulneráveis. Exatamente por tais aspectos é que a vulnerabilidade não
pode ser abandonada, requerendo uma forte definição e ampla defesa. Justamente por isso
que o termo integralidade deve fazer parte do princípio da vulnerabilidade. Não se
compreende o humano fracionado, dividido; mas o temos em sua completude, totalidade.

A defesa da integralidade como parte do princípio da vulnerabilidade, busca estabelecer os


aspectos contrários à vulneração. Compreendendo o humano como um todo, a proposta
supõe a garantia da inteireza de estado, seja físico, psicológico, moral, econômico, político,
legal entre outros. Assim, toda e qualquer ação para com pessoas deve, antes, requerer
autorização prévia; e mesmo nesses casos, a autorização não dá direito à exposição,
ridicularização, desrespeito, desprezo, humulhação, ou toda forma de dimunição da pessoa
humana e sua dignidade.

3.4 Igualdade, justiça e equidade


Considerando que “todo ponto de vista e a vista de um ponto” (BOFF, 2017), resta evidente
que não há como se pensar em inexistência do pluralismo. Numa sociedade diversa, múltipla
e, ao mesmo tempo igual sob as análises biológica, social e jurídica, impor a homogeneidade
é algo impensável e ilógico. Uma realidade plural garante a existência de humanos plurais;
humanos plurais respeitam e viabilizam a pluralidade; pluralidade que possibilita a identidade.
Em linhas gerais, o pluralismo é a possibilidade de coexistência de situações opostas e
diferentes dentro de realidades variadas, sejam sociais, políticas ou culturais. Pluralismo,
dessa forma, sobre

a perspectiva política, designa uma concepção de democracia liberal [...] em


estreita associação com a noção de tolerância. [...] Do ponto de vista jurídico,
é uma doutrina que afirma a coexistência de ordens de direito concorrentes.
[...] Do ponto de vista cultural, o ideal de "pluralismo cultural" como uma
concepção alternativa à de ação homogênea tomou forma no início do século
XX (ARPINI, 2008, p. 657).

A análise do pluralismo ganha uma nova envergadura, que parte da concepção política,
atravessa a análise jurídico-cultural e alcança uma disposição ética. É exatamente aqui, na
abertura do pluralismo à ética, que se assenta a concepção de prática bioética: uma
compreensão que abandona o universalismo abstrato, o relativismo cultural, o positivismo
moralista e admite a existência de uma unidade pela pluralidade, um reconhecimento do eu
no outro e do outro no eu; é, como na propositura de Enrique Dussel, uma “Ética da
Libertação”, onde “aceitar o argumento do outro supõe aceitar ao outro como igual, e esta
aceitação do outro como igual é uma posição ética [...]” (DUSSEL, 2012, p. 234).

Essa possibilidade ética da aceitação do outro, abre espaço para a compreensão de um


aspecto fundamental que garante o respeito pela diversidade cultural e pluralismo: a
tolerância. É somente pela tolerância que se pode falar de pluralismo; e é no pluralismo que
se centra a justiça, a dignidade, a diversidade, a identidade, a diferença. “[...] a tolerância torna
a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária” (WALZER, 1999, p. 32). Ser
tolerante é conviver com a alteridade. Pela tolerância busca-se, efetivamente, compreender
as outras pessoas, seus modos de pensar, agir e sentir. Tolerar não é abaixar a cabeça, mas
sim, ter a capacidade de aceitar opiniões, valores diferentes, estabelecer diálogo e buscar o
consenso. Aprender a tolerar é um passo necessário para transformar-se. Tem como objetivos
aceitar o outro; superar diferenças; permitir que o outro seja; vencer a indiferença, a
pusilanimidade e a comodidade; construir diálogos; desenvolver o consenso; aprimorar-se.
Há três aspectos fundamentais para a prática da tolerância, a saber: tolerância como norma
prudencial (exigência de um equilíbrio nas ações); tolerância como imperativo da
racionalidade (necessária presença da reflexão crítica dialógica); e a tolerância como
imperativo ético (proposta de uma análise ética universal) (MENDUS, 1990). É importante
ressaltar que as três concepções são interdependentes e complementares, apesar de
postularem, cada uma a sua maneira, uma relação com a tolerância. Essa realidade apresenta
a necessária existência e manutenção no contexto social de ações que busquem defender a
tolerância e, consequentemente, o pluralismo. É na concepção dessas ações que reside a
prática bioética; uma bioética “crítica e socialmente comprometida” (GARRAFA, 2005, p. 126),
não somente voltada para as questões clínicas ou biológicas.

Importante se faz ressaltar que alcançar e suster a prática bioética (plural e tolerante; tolerante
e plural), ou uma bioética comprometida (crítica e coletiva), requer passos. O primeiro é
romper com fundamentalismos. Tal consideração exige que a bioética não imponha princípios
e valores, mas sim, aponte-os para a promoção do diálogo e o alcance do consenso. Numa
sociedade globalizada – em seus aspectos positivos – onde há, necessariamente, a
diversidade, a miscigenação, a multiculturalidade, não há de se falar em valores corretos e
errados; em práticas etnocêntricas ou monoculturais. Não cabe, nesse contexto, juízos
subjetivos que se apoiam em parâmetros particulares e entendimentos pessoais. É necessário
que se considere todas as possibilidades; é preciso chamar a todos para o debate, para a
proposição de ideias, cuja finalidade é a sobrevida humana. A bioética deve se ater às
situações de vida, variadas e diferentes em propositura e formas (OLIVEIRA; OSMAN, 2017,
p. 55).

Ao mesmo tempo em que se evita a proposição de moralismos e fundamentalismos, não se


defende uma prática laica imposta. Não é incomum encontrar discursos que se colocam como
modelos norteadores, que acabem se transformando num autoritarismo. O respeito pelo
diferente é o ponto fulcral. É preciso “[...] pautar-se pela consideração e pelo respeito à
diversidade de culturas, crenças, valores e convicções individuais e coletivas” (MÖLLER,
2008). O terceiro passo consiste em reconhecer que não há somente um caminho para a
composição da bioética. Como afirma o Artigo 2 da Declaração Universal sobre a Diversidade
Cultural, da Unesco (2002, p. 3):

[...] torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas


e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e
dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam
a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social,
a vitalidade da sociedade civil e a paz.

A essência da bioética é a abertura permanente ao debate e a proposição de ideias. Ela é o


meio pelo qual se erigem as disposições práticas, baseando-se, permanentemente, nas
proposições epistemológicas abertas. Tal condição leva, inevitavelmente, à construção de um
modelo dialógico; o quarto passo, portanto.

Estabelecer um modelo onde há a participação direta de toda sociedade; eis a dialogia. Aqui,
não há espaço para a manipulação ou influência; determinação e obrigação; autoritarismos e
imposições. O processo dialógico supõe uma realidade fundada no ouvir, no compreender,
no respeitar, para que se alcance o consenso; o fundamento de toda e qualquer sociedade
democrática. O consenso, quinto passo da prática bioética, é esse acordo possível entre
pessoas que se colocam em situação dialógica. A representação plena desse feito se perfaz
na elaboração de direitos fundamentais que devem ser respeitados. A essa prática dá-se o
nome de universalização: possibilidade de uma convivência pacífica e harmoniosa a partir de
referenciais comuns. Ressalte-se que comum não significa igual, mas sim, a reunião das
possibilidades.
Essa pluralidade que obriga o reconhecimento de aspectos fundantes da vida humana, é
quem postula o surgimento de uma disciplina que consiga suster os debates e ponderações,
sem determinar modelos ou parâmetros. É, nos dizeres de Sánchez Vázquez (1977, p. 254),
a prática do fazer e refazer; é “o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais o sujeito ativo
(agente) modifica uma matéria prima dada”. É a propositura de uma ação pessoal com vistas
a transformar a realidade onde se está inserido. Reflexão que age na realidade; realidade que
transforma a reflexão, revolucionando o sistema e penetrando na história. Bioética.

3.5 Diversidade cultural e pluralismo


Propor uma análise da diversidade cultural e os aspectos dela derivados, supõe compreender,
assim como na análise promovida acerca do respeito, uma divisão metodológica: tratar da
diversidade em si (à luz da Filosofia) para, em seguida, demonstrar como ambas estão
diretamente ligadas com a identidade e a diferença do indivíduo na (e da) sociedade e, por
fim, volver os esforços na fundamentação da cultura.

Em sua famosa obra “Filosofia do Direito”, especificamente no §200, Hegel afirma que a
multiplicidade das circunstâncias produz a diversidade. Essa diversidade se traduz em todos
os graus e em todos os sentidos e afeta a todos os indivíduos. Entretanto, o termo diversidade
aponta para a qualidade ou condição daquilo que é diverso, as formas ou relações diversas
entre si, ponderadas acerca do ambiente, assunto, coisas. Dessa forma, é possível afirmar
que há diversidade de opiniões, de pontos de vista, de escolhas, de comportamentos, de
hábitos, de costumes, crenças. Fala-se da diversidade sexual, biológica, da biodiversidade
(KONZEN, 2012, p. 39). Numa concepção direta,

os diversos [Die Verschiedenen], que são uma e a mesma coisa, com que
ambas, a igualdade e a desigualdade, tornam-se vinculadas, são, pois, de
uma parte, iguais entre si, mas, de outra parte, são desiguais, e [isso]
enquanto elas são iguais, e enquanto elas são desiguais (HEGEL, 2017).

O que se percebe no pensamento hegeliano, que se converte numa análise fundamental para
a compreensão da diversidade, é a ligação existente entre essa e a formação da igualdade e
da desigualdade, e da necessária consideração de ambas para a existência da diversidade
(multiplicidade) e da identidade. O que Hegel afirma, apesar a complexidade filosófica do
fragmento, é que o abrangimento, ou a eliminação da diversidade, promove a igualdade ou a
desigualdade. De outra forma: se há a garantia da diversidade, há a igualdade; se, ao
contrário, elimina-se a diversidade, fundamenta-se a desigualdade. Essa realidade se torna
ainda mais evidente quando se considera

que todas as coisas sejam diferentes das outras, e uma proposição muito
trivial, pois no plural das coisas reside imediatamente a multiplicidade
[Mehrheit] e a total diversidade indeterminada [und die ganz unbestimmte
Verschiedenheit]. – Mas a proposição “não há duas coisas que sejam
totalmente iguais entre si” enuncia muito mais, a saber, enuncia a diversidade
determinada [bestimmte Verschiedenheit]. Duas coisas não são somente
duas – [pois] a pluralidade numérica [numerische Vielheit] e apenas a
uniformidade [Einerleiheit] –, porem elas são diversas [verschieden] mediante
uma determinação [Bestimmung] (HEGEL, 2017).

Aqui, Hegel enfatiza a necessária realidade da diversidade determinada que postula que duas
coisas não são só duas coisas, mas elas, apesar de duas, da pluralidade numérica, são
diversas entre si e iguais em cada uma das suas concepções. Observe-se que diversidade,
como pondera o filósofo, depende, obrigatoriamente, de uma igualdade em comum e do
reconhecimento da desigualdade necessária (diferentes na igualdade e iguais nas
diferenças). Portanto, a diversidade humana se justifica por conta da igualdade preexistente
(biológica, por exemplo) e da desigualdade real (como o desenvolvimento pessoal). Cabe
ressaltar que a definição de desigualdade positiva se funda na dinâmica do reconhecimento
das subjetividades e dos direitos de cada pessoa. Assim, a desigualdade – o reconhecimento
das diferenças – positivada é um dos fundamentos de sustentação da diversidade. A
desigualdade positiva se assemelha ao que se convencionou chamar de ações afirmativas;
ações com a finalidade de reconhecer as desigualdades existentes entre as pessoas e buscar
reduzi-las. O sobressalto fica à cargo da importância do reconhecimento da desigualdade. Tal
disposição fundamenta, e solidifica, a dinâmica da diversidade, que somente existe quando
há a igualdade e, ao mesmo tempo, a desigualdade. Somente assim, compreendendo essa
realidade múltipla, que há a possibilidade da formulação dos conceitos de identidade e
diferença das pessoas em sua subjetividade.

Compreendida a ideia de diversidade, é possível compor a defesa de uma diversidade


cultural. À luz do entendimento de que só há diversidade com o reconhecimento da igualdade
e da desigualdade, a postulação de um único modelo cultural é impensável e, no entendimento
hegeliano, inexistente. Em 1952, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn, no livro Culture: a critical
review of concepts and definitions, reeditado em 2018, apontaram a existência de mais de
164 conceitos de cultura. O que se percebe dessa forma, é que não há um consenso acerca
do que se entende como cultura, e nem deve existir. É exatamente essa variação, igualdades
e desigualdades culturais, a vastidão epistemológica, que engloba, obrigatoriamente, vários
aspectos da vida dos humanos em seus inúmeros grupos.

A posição assumida, da qual o presente texto concorda, é a do entendimento de um conceito


genérico de cultura que considera essa diversidade como fundamento existencial. Tal
conceito considera que há atributos compartilhados pelos humanos, que os diferem das
demais espécies, postulando essa variação como algo próprio da espécie humana. A única
concepção de cultura, portanto, advém da necessária composição das especificidades de
modelos culturais variados, e propõe a democratização cultural: o reconhecimento, por parte
de um Estado democrático, da diversidade cultural que forma as sociedades modernas
(BOTELHO, 2001). É fundamental que se reconheça, uma vez que se trata de uma
democracia participativa, que a cultura é a expressão da cidadania de determinado grupo
social, e que cada um desses grupos deve, como garantia de sua própria dignidade e a
afirmação de sua identidade, expressar suas formas culturais, segundo suas vontades e
necessidades. Esse reconhecimento dá origem ao que se convencionou chamar de cidadania
cultural. Cidadania cultural que supõe:

1) Definição antropológica de cultura, 2) política cultural como direitos


igualitários dos cidadãos, 3) criatividade e inovação, 4) resguardo das
memórias coletivas e 5) acatamento da legislação cultural considerada
legítima (CUNHA FILHO, 2010, p. 299).

Tal concepção evidencia o fato de que a cultura é mais do que o reconhecimento da


diversidade; é, em verdade, uma questão de direito dos cidadãos (CHAUÍ, 2006) (à produção
cultural; à participação nas decisões do fazer cultural; à formação cultural e artística pública;
à experimentação do novo; e à informação e à comunicação) (GOMES, 2014, p. 142). O
entendimento e a consideração da cidadania cultural ratificam a proposta da diversidade
cultural. Dignidade Humana, Direitos Humanos e as liberdades fundamentais compõe o
fundamento da cidadania; e, em contrapartida, ser cidadão e cidadã supõe o exercício e a
garantia da dignidade, direitos e liberdades. Ressalte-se aqui, a estreita ligação das garantias
previstas no DUBDH, com os critérios para a efetivação da identidade da pessoa.

Isso significa que a impossibilidade do exercício pleno da cidadania cultural, em todas as


dimensões e características, fundadas nas diversas práticas culturais existentes, na
diversidade, atinge, diretamente, a formação da identidade. As consequências diretas de tal
evento podem ser observadas em crises de identidades, dificuldades de relacionamento e
socialização, estado de anomia, esquizofrenias e isolamento sociais, enfim, uma agressão à
dignidade da pessoa humana, onde há a classificação do diferente como um “quase humano”
(ALBUQUERQUE, 2015). Assim, a propositura desse reconhecimento e das garantias
fundamentais, evidenciam o reconhecimento da humanidade das pessoas; é, portanto, uma
prática de humanização e de garantia da identidade de cada pessoa ou comunidade.

3.6 Conclusão

A proposta do presente capítulo foi a de estabelecer as bases fundamentais da bioética para,


a partir daí, a ação dessa disciplina autônoma ser possível. Isso significa que fomos capazes
de levantar aspectos não considerados pela epistemologia da chamada bioética tradicional.
Assim, o primeiro passo na realização dos nossos estudos foi a análise do DUBDH, como um
ponto divergente. Não é incomum que as ideias nela estabelecidas, e toda a sua
complexidade, acabe relegada a segundo plano, por conta da diversidade cultural e do
pluralismo, que se adianta. A bioética não pode ser pensada sem que haja o respeito, assim,
como um re-spectare; a promoção da justiça e da dignidade, fundamentais para se falar em
uma proposta de diversidade e pluralismo. Em contrapartida, justiça e dignidade promovem o
respeito.

O segundo passo foi a concepção de diversidade como promotora de identidade e diferença.


A garantia de que não há diversidade sem igualdade e desigualdade é uma realidade que
deve ser considerada. Para que haja igualdade é necessária, obrigatoriamente, a
desigualdade; somente pela existência da desigualdade é que se reconhece a igualdade. É
pelo outro que se chega ao eu e pelo eu que se alcança o outro. Essa concepção torna
possível a existência da cultura; entendendo que ela nasce da realidade social miscigenada
e que não há modelo cultural perfeito ou ideal.

O terceiro ponto foi a concretização do pluralismo como o processo possível, e necessário,


no qual respeito, justiça, dignidade, diversidade, identidade, diferença e cultura estão
abarcados, da prática bioética. É essa, e somente nessa realidade, que se pode pensar e
promover a Bioética. É o modelo plural, onde há a obrigatória necessidade do reconhecimento
do eu, do outro e do nós; uma releitura necessária.

Resumo
A promulgação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH)
possibilitou um avanço na tentativa de se criar um caminho para a subsistência humana.
Entretanto, encontrar uma interpretação universal para seus artigos nem sempre é possível.
Diante disso, o que se pretendeu foi uma releitura das bases fundamentais da bioética,
recolocando algumas questões esseciais para a ação bioética. O respeito arranja e possibilita
a justiça e a dignidade, enquanto a diversidade, e sua garantia, permitem a geração da
identidade, em toda sua complexidade, e mantém a necessária diferença social. Por sua vez,
o pluralismo propõe o reconhecimento de todas essas condições anteriores para sua
existência. Somente assim é que se alcança um modelo de sociedade bem ordenada, onde
a sobrevivência do humano seja possível.

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