Texto 1 - Introdução À Bioética - Garrafa
Texto 1 - Introdução À Bioética - Garrafa
Texto 1 - Introdução À Bioética - Garrafa
24. Bioética
Volnei Garrafa
Ética aplicada
Refere-se à necessidade de a filosofia (e a ética) dar respostas concretas aos conflitos, indo além da
teoria, das abstrações e do maniqueísmo entre temas como bem/mal, certo/errado, justo/injusto.
A ética prática ou aplicada ressurge a partir dos anos 60, com três campos: a ética dos negócios,
a ética ambiental (ecologia) e a bioética.
Ética biomédica
Também denominada deontologia. Refere-se, no presente contexto, à chamada ética profissional
que pauta os códigos éticos das diferentes profissões biomédicas. É direcionada preferencialmente
para os deveres e as obrigações morais dos participantes de uma determinada comunidade pro-
fissional da área biomédica.
Pluralismo moral
Situação constatada nas sociedades secularizadas contemporâneas, com coexistência de grupos
de pessoas de posições morais diversas e independentes de outros grupos. O respeito ao plura-
lismo moral significa a capacidade de ‘estranhos morais’ conviverem pacificamente com base no
referencial da tolerância. Trata-se, ainda, de requisito indispensável na composição de comitês
multidisciplinares e no próprio diálogo bioético.
Existe muita controvérsia nos meios acadêmicos sobre o sentido das palavras moral e
ética. ‘Ética’ deriva do grego ethos, que significa ‘modo de ser’ ou ‘caráter’, com sentido similar
a ‘forma(s) de vida(s) adquirida(s) pelo homem’. Já o termo ‘moral’ se origina do latim mos
ou mores, que quer dizer ‘alguma coisa que seja habitual para um povo’. As duas, portanto,
têm o mesmo significado. Quando o direito foi criado na Roma Antiga, os legisladores cons-
truíram as leis da época com base em situações concretas que mais se aproximassem do mores
vigente, ou seja, dos costumes e formas habituais dos cidadãos e comunidades procederem
cotidianamente na vida em sociedade. Como os romanos não encontraram uma tradução
que lhes fosse inteiramente satisfatória para o ethos, utilizaram de forma generalizada o mores,
que em português é traduzido por moral.
Resumindo, se, por um lado, o significado etimológico de ética e moral é similar;
por outro, existe uma diferença historicamente determinada entre ambas as expressões.
A moral romana é uma espécie de tradução latina de ética, que acabou adquirindo uma
conotação formal e imperativa, direcionada ao aspecto jurídico e não ao natural, a partir
da antiga polarização verificada entre o ‘bem’ e o ‘mal’. Para os gregos, o ethos significava o
conjunto de comportamentos e hábitos constitutivos de uma verdadeira ‘segunda natureza’
do homem. Na obra histórica Ética a Nicômaco, Aristóteles (1992) interpreta a ética como a
reflexão filosófica sobre o agir humano e suas finalidades. E é a partir dessa interpretação
aristotélica que a ética passou a ser referida como uma espécie de ‘ciência da moral’.
O desenvolvimento histórico da bioética pode ser estabelecido com base em quatro
etapas ou momentos bem determinados:
1) Etapa da fundação – relacionada com os anos 70, quando os primeiros autores que
sobre ela se debruçaram estabeleceram suas primeiras bases conceituais.
Principialismo
É uma corrente hegemônica da bioética estadunidense, baseada em quatro princípios pre-
tensamente universais, oriundos do Relatório Belmont (veja mais detalhes adiante): autonomia,
beneficência, não-maleficência e justiça. Trata-se da chamada bioética baseada em princípios ou
bioética principialista.
A corrente principialista anglo-saxônica da bioética tornou o princípio da autonomia, na prática,
uma espécie de ‘superprincípio’, hierarquicamente superior aos demais, deixando o princípio
da justiça como mero coadjuvante: importante, mas adicional no contexto da teoria. O ‘eu’ do
individualismo sufoca o ‘nós’ do coletivismo.
3) Etapa da revisão crítica – compreende o período posterior à década de 1990 até o início
do século XXI. Caracteriza-se por dois movimentos:
O aborto, tema frequente na agenda bioética, pode ser analisado isoladamente sob a
ótica biomédica, jurídica, sociológica, religiosa ou outra (multidisciplinaridade). Quando
a área jurídica, por exemplo, dialoga com as ciências biomédicas, com incorporação e
aproveitamento do conteúdo de uma e outra área para uma tomada de decisão, está ha-
vendo interdisciplinaridade. Já a multidisciplinaridade significa a construção e a obtenção
do resultado de um novo conhecimento, de uma nova ótica, de um outro ‘olhar’ sobre o
assunto estudado (no caso, o aborto) a partir da utilização harmônica dos conhecimentos
de várias e diferentes áreas ou disciplinas.
Criada a partir do Relatório Belmont e explicitada na primeira edição do livro Principles
Relatório Belmont
of Biomedical Ethics (Beauchamp & Childress, 1979), a bioética principialista tomou como Documento elaborado
fundamento os quatro princípios básicos já mencionados, os quais passaram a constituir uma por um grupo multidisci-
espécie de ‘mantra’, um instrumento acessível e tentadoramente prático para a análise dos plinar de especialistas por
solicitação do governo
conflitos surgidos no campo bioético. Como essa teoria foi construída a partir de uma cultura dos Estados Unidos, com
anglo-saxônica do mundo, o tema da autonomia terminou maximizado hierarquicamente o objetivo de criar novos
referenciais no sentido de
com relação aos outros três, tornando-se uma espécie de superprincípio. Este fato contribuiu conter os abusos verifica-
para que a visão individual dos conflitos passasse a ser aceita como a vertente decisiva para dos naquele país com re-
a resolução dos mesmos, o que nem sempre acontece (Selleti & Garrafa, 2005). lação às pesquisas clínicas
com seres humanos até os
A autonomia é um referencial indispensável na análise das questões éticas contempo- anos 70.
râneas. Introduzida por Kant na sua interpretação atual, em que o filósofo substituiu Deus
pela razão, sua aplicação modificou praticamente todas as formas de relações interpessoais e
o próprio trato do Estado democrático com cidadãos e usuários de seus serviços. No entan-
to, o que acontece no principialismo bioético é, muitas vezes, a interpretação da autonomia
como individualidade, que se aproxima do individualismo – o qual, por sua vez, pode cair no
egoísmo, visão exacerbada do ‘eu’, que tende a anular o ‘nós’ mesmo em situações públicas
e coletivas. A fragilidade da utilização maximalista da autonomia está na possibilidade de
esta ser direcionada a um individualismo extremado, que sufoca qualquer direcionamento
inverso, coletivo, indispensável para o enfrentamento dos grandes problemas sociais, cons-
tatados especialmente nos países do hemisfério Sul.
Immanoel Kant
Filósofo alemão, viveu em Königsberg, Alemanha (antiga Prússia), entre 1724 e 1804. É autor
de livros que até hoje fundamentam a ética moderna, entre eles: Crítica da Razão Pura, Crítica
da Razão Prática e A Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Este último é considerado uma das
mais importantes obras já escritas sobre a moral. Kant é reconhecido por muitos autores como o
verdadeiro introdutor do conceito de autonomia. Embora seguidor do protestantismo e crente
Bioética global
em Deus, foi quem formalizou o conceito de ‘liberdade de consciência’, simbolizada pela maiori-
Enfoque da bioética que
dade do homem no pensar, com o fim de tutelas (inclusive divinas) e com o uso público da razão
considera a ética da vida
(Selleti & Garrafa, 2005). em seu mais amplo senti-
do, incorporando, além
dos temas biomédicos e
Com a realização do IV Congresso Mundial de Bioética, da International Association biotecnológicos direta-
of Bioethics, em Tóquio, Japão, em 1998, a bioética começou a percorrer outros caminhos, mente inerentes ao ser
humano, os temas am-
a partir do estabelecimento do tema oficial do evento, que foi Bioética global. No apagar bientais e os relacionados
das luzes do século XX, a disciplina passa gradativamente a expandir seu campo de estudo com o próprio ecossiste-
e ação das questões individuais para os temas coletivos, incluindo na discussão temas mais ma planetário.
746 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
amplos relacionados com a qualidade da vida humana e outros assuntos, que até então apenas
tangenciavam sua pauta. Entre outros, passa a priorizar a alocação de recursos em saúde, a
exclusão social, a equidade, o racismo e outras formas de discriminação, as diferentes formas
de vulnerabilidade, a finitude dos recursos naturais planetários e o equilíbrio do ecossistema.
Assim, além dos quatro princípios tradicionais mencionados, novos referenciais e
critérios começaram a ser incorporados nos últimos anos por bioeticistas críticos em seus
estudos e pesquisas: responsabilidade, cuidado, solidariedade, ‘empoderamento’, libertação,
comprometimento, alteridade e tolerância, entre outros, além dos quatro ‘Ps’ para o exercício
de uma prática bioética comprometida com os mais vulneráveis, com a coisa pública e com o
equilíbrio ambiental e planetário do século XXI. São eles: ‘prevenção’ contra possíveis danos,
‘proteção’ dos mais frágeis, ‘prudência’ nos avanços e ‘precaução’ diante do desconhecido.
Para refletir
A bioética principialista dá conta de interpretar e propor soluções para os macroproblemas sociais
e sanitários comuns aos países pobres e em desenvolvimento do mundo? Por quê?
5) A análise dos fatos a partir dos referenciais do pensamento complexo (Morin, 2001) ou
da totalidade concreta (Kosik, 1976). Isso, contudo, não significa o simples somatório
das partes de uma determinada situação, mas sua interpretação estruturada em rede,
em que todos os conceitos e elementos se iluminam mutuamente, proporcionando uma
noção mais harmônica e palpável de realidade a partir da religação de diferentes saberes.
Totalidade concreta
Não é um mero conjunto de fatos. Trata-se da própria realidade como um todo estruturado, di-
nâmico e inter-relacionado, a partir do qual se pode compreender, racionalmente, qualquer fato
(classe de fatos, conjunto de fatos etc.). Reunir simplesmente todos os fatos não significa conhecer
a realidade, assim como todos os fatos, somados, não constituem a realidade. O paradigma da
totalidade concreta permite a melhor compreensão de muitos quadros mórbidos, principalmente
quando a causalidade da doença em foco extrapola o campo exclusivamente biológico, estendendo-
se às razões sociais, econômicas, políticas e outras.
6) A necessidade de estruturação do discurso bioético, que deve ter como base a comu-
nicação e a linguagem (para se manifestar), a argumentação (que deve primar pela
homogeneidade e lógica), a coerência (na exposição das ideias) e a tolerância (relativa
ao convívio pacífico diante de visões morais diferenciadas).
A bioética, como foi mencionado, é ‘ética prática’, ‘aplicada’. Atualmente, este campo
específico da filosofia, apesar de ainda contestado por muitos filósofos, tem sua utilização
mais aperfeiçoada, mais acabada, exatamente com a bioética. Isso é, até certo ponto, natural,
uma vez que os grandes dilemas que passaram a se apresentar às pessoas e coletividades,
na vida cotidiana e na prática, principalmente nas últimas décadas, começaram a exigir
respostas ou decisões geralmente imediatas e sempre concretas. Ao lado de problemas
748 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Para refletir
Quais as diferenças entre a teoria principialista da bioética estadunidense e a proposta conceitual
latino-americana da Redbioética/Unesco, no sentido do enfrentamento dos macroconflitos e di-
lemas relacionados com as políticas e o sistema de saúde em curso no Brasil?
Reflita sobre a seguinte situação: a Secretaria de Saúde de um pequeno município constata
que o orçamento disponível é mínimo e permite apenas a implantação do programa anual de
atenção primária (vacinação infantil, aleitamento materno, vigilância sanitária...), não sobrando
recursos, por exemplo, para atender aos quatro pacientes da cidade que necessitam diálise renal
para sobreviver.
Qual o procedimento que deve ser tomado com base na fundamentação bioética aqui apresentada?
Cortar recursos da atenção primária e desviá-los para atenção aos quatro pacientes que necessitam
se deslocar até uma cidade vizinha onde o atendimento é pago? Buscar uma forma adicional de
resolver as duas situações? Nesse caso, qual? Como proceder eticamente diante de conflitos cole-
tivos como este, relacionados com a priorização na alocação de recursos escassos ou insuficientes?
cessibilidade das camadas mais pobres da população tanto aos benefícios do desenvolvimento
científico e tecnológico, como a bens básicos de consumo sanitário indispensáveis para uma
vida digna. Incontáveis exemplos também acontecem no campo específico da saúde pública,
em que recursos financeiros imprescindíveis para projetos que visam à sobrevivência de
milhares de pessoas são frequentemente desviados, por políticos ou técnicos, para atividades
de importância secundária, que não guardam qualquer relação com as finalidades originais
dos referidos projetos (Berlinguer & Garrafa, 2001).
Todos estes variados temas, portanto, que vão desde os dilemas éticos enfrentados
pelo administrador de saúde com relação à repartição de verbas insuficientes para ativida-
des impostergáveis até problemas gerados pela aplicação universalizada de tecnologias de
ponta, fazem parte do campo de estudo da bioética. E esta, em poucos anos de existência,
ampliou substancialmente seu campo de estudo, ação e influência.
A discussão bioética surge para contribuir na procura por respostas equilibradas frente
aos conflitos atuais e aos das próximas décadas. Já tendo sido sepultado o mito da neutrali-
dade da ciência, requer abordagens pluralistas e transdisciplinares a partir de interpretações
complexas, no sentido anteriormente exposto, da totalidade concreta que nos cerca, onde
vivemos e onde os conflitos morais acontecem.
De acordo com esse contexto e objetivando melhor sistematização e compreensão de
sua área de estudo e abrangência, a bioética pode ser classificada em dois grandes campos
de atuação, de acordo com sua historicidade: a bioética das situações emergentes e a bioética
das situações persistentes (Garrafa & Porto, 2003). Bioética das situações
emergentes
Com relação à bioética das situações emergentes, estão relacionados, principalmente,
É o campo da bioética
os temas surgidos mais recentemente e que derivam do grande desenvolvimento científico temática que trata das
e tecnológico experimentado nos últimos cinquenta anos. Entre estas questões, podem ser situações que emergiram
historicamente nas últi-
mencionados: 1) o projeto genoma humano e todas as situações relacionadas com a enge-
mas décadas, como pro-
nharia genética, incluindo a medicina preditiva (que atua de modo interventivo e corretivo/ duto do desenvolvimento
preventivo diretamente no embrião, em nível ainda intrauterino) e o uso terapêutico de científico e tecnológico.
Também chamada de
células-tronco; 2) as doações e os transplantes de órgãos e tecidos humanos, com todas as bioética das situações re-
suas inferências que se refletem na vida e na morte das pessoas na sociedade e a relação disso lacionadas aos limites ou
tudo com as ‘listas de espera’ e o papel controlador e moralizador do Estado; 3) o tema da às fronteiras do desenvol-
vimento.
saúde reprodutiva, que passa por diversos capítulos, como a fecundação assistida propria-
mente dita, a seleção e o descarte de embriões, a eugenia (escolha de sexo e determinadas
características físicas do futuro bebê), as ‘mães de aluguel’, a clonagem etc.; 4) as questões Bioética das situações
persistentes
relacionadas com a biossegurança, cada dia mais importantes e complexas; 5) as pesquisas
É o campo da bioética
científicas envolvendo seres humanos e seu controle ético. temática que trata das
A expressão biossegurança, especificamente, deve ser entendida além da interpretação situações historicamente
persistentes no processo
que a reduz exclusivamente ao tema dos organismos geneticamente modificados. Ao contrá- evolutivo da humanidade
rio, tem um significado mais amplo no sentido da proteção, diminuição e/ou controle dos e que continuam se repe-
riscos decorrentes de atividades biotecnológicas que possam comprometer a vida humana, tindo, apesar do atual es-
tágio de desenvolvimen-
animal ou ambiental. to do mundo. Também
No que se refere à bioética das situações persistentes, que são aquelas que persistem chamada de bioética das
situações cotidianas: que
teimosamente desde a Antiguidade, incluem-se todas as que dizem respeito à exclusão social; acontecem todos os dias
às discriminações de gênero, raça, sexualidade e outras; aos temas da equidade, da univer- e não mais deveriam estar
ocorrendo.
salidade e da alocação, distribuição e controle de recursos econômicos em saúde; à atenção a
750 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
crianças e idosos; aos direitos humanos e à democracia, de modo geral, e suas repercussões
na saúde e na vida das pessoas e das comunidades; ao aborto; à eutanásia. Embora outros
autores prefiram colocar estas duas últimas situações entre os temas ‘emergentes’ ou de
‘limites’, parece ser mais adequado classificá-las como persistentes, levando-se em conta sua
conotação histórica, uma vez que se enquadram entre as situações que se mantêm teimosa-
mente na pauta da ‘comédia humana’ desde os tempos do Antigo Testamento.
Ética da responsabilida-
Para que se enfrente de modo mais adequado toda esta gama de questões, em vez de
de individual
Trata-se do compromisso simplesmente importar referenciais éticos provenientes de outras realidades, é mais adequado
moral e da responsabili- que cada país ou região do mundo interprete e atue junto a seus problemas ou situações
dade pessoal e intrans- moralmente conflitivas de acordo com seus próprios contextos sociais, culturais, econômi-
ferível de cada cidadão
para com a alteridade. cos e biológicos. Alguns movimentos políticos e sociais – como aqueles relacionados com as
É a visão do semelhante, mulheres e os negros – têm conseguido mostrar de forma clara ao mundo a importância de
do outro, principalmente
aquele mais vulnerável
se compreender e respeitar as diferenças.
e desassistido. Resgata, O conceito de diferença nas questões de gênero, do mesmo modo que nos temas ra-
também, a responsabi-
lidade e a ética no trato
ciais ou de preferência sexual, não significa desigualdade (ou inferioridade). Pelo contrário,
das questões públicas de resgata a necessidade democrática de que cada situação seja contextualizada exatamente a
parte dos servidores go- partir desses parâmetros diferenciais para que, assim, se dê a verdadeira igualdade. Desde
vernamentais do setor
saúde. aspectos mais simples e diretos, como aqueles referentes aos direitos de uma gestante, até os
que dizem respeito à igualdade de acesso para todas as pessoas indistintamente na disputa
por postos de trabalho – conquistas consideradas longínquas para alguns grupos sociais há
Ética da responsabilida-
de pública algumas décadas –, apesar das dificuldades ainda enfrentadas, ganharam novo impulso com
Refere-se ao compromis- os avanços destes movimentos democráticos.
so e à responsabilidade
do Estado diante dos
Em praticamente todos os assuntos relacionados com a bioética, independentemente
cidadãos e de toda a so- de serem emergentes ou persistentes, existe uma questão que atravessa longitudinalmente
ciedade, a partir do cum- os temas a serem abordados e estudados: a ética da responsabilidade. Com relação a ela, três
primento rigoroso das
normas constitucionais e aspectos podem ser considerados e analisados: 1) a ética da responsabilidade individual, que
das legislações comple- se refere ao papel e aos compromissos que cada cidadão ou cidadã deve assumir frente a si
mentares no campo da
mesmo(a) e aos seus semelhantes, seja em ações privadas ou públicas, singulares ou coletivas;
saúde, no caso deste livro.
2) a ética da responsabilidade pública, que diz respeito ao papel e aos deveres dos Estados
democráticos frente não somente a temas universais, mas também à cidadania e aos direitos
Ética da responsabilida-
de planetária
humanos, bem como ao cumprimento das cartas constitucionais de cada nação e, no caso do
Diz respeito ao compro- Brasil, especialmente dos capítulos que se referem diretamente à saúde e vida das pessoas;
misso e à responsabilida- 3) a ética da responsabilidade planetária, que significa o compromisso de cada cidadão ou
de de todos os cidadãos,
cidadã do mundo, de cada país e do próprio conjunto de todas as nações diante do desafio
empresas, governos e
Estado diante da preser- da preservação do planeta, em respeito àqueles que virão depois de nós (Jonas, 2006).
vação dos ambientes na-
Outro aspecto a ser analisado e relacionado ao contexto aqui desenvolvido é a pro-
turais, da biodiversidade
e do próprio ecossistema. teção necessária – e até mesmo indispensável – às pessoas mais frágeis, mais vulneráveis,
Trata-se, principalmente, especialmente aquelas que vivem nos países periféricos. Essa linha de pensamento bioético
de considerar a finitude
dos recursos naturais e de com base na proteção, diferenciada do simples paternalismo estatal, tem como objetivo
assumir um papel prote- dar conta dos conflitos e dilemas morais enfrentados pela saúde pública, que muitas vezes
tor e fiscalizador desses não podem ser resolvidos concretamente por outras ferramentas da bioética mundial, em
recursos não renováveis,
além de estimular o cha- particular o principialismo (Schramm & Kottow, 2001).
mado desenvolvimento Em seu sentido estrito, a bioética que trata da proteção se refere especificamente às
sustentável.
medidas que devem ser tomadas “para proteger indivíduos e populações que não dispõem
Bioética 751
de outras medidas que lhes garantam as condições indispensáveis para levar adiante uma
vida digna e não somente dispor de uma sobrevida (...) e que são, portanto, excluídos da
‘comunidade política’ e das políticas dos direitos humanos” (Schramm, 2005: 21-22 – tra-
dução livre). Considerando que a bioética tem pelo menos duas funções reconhecidas – a
analítica, que é teórica e crítica, e a normativa, que, por sua vez, é prática –, parece razoável
a proposta de agregar a essas funções tradicionais uma adicional: a de instrumento prote-
tor, que objetiva ‘dar amparo’ e defender a vida no seu mais amplo sentido, seja humana
ou não humana.
Com a homologação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos,
a agenda bioética do século XXI foi definitivamente ampliada. Projeta-se para além das
situações exclusivamente biomédicas e biotecnológicas, as quais foram reduzidas nos anos
80 e 90 com base nos interesses unilaterais dos países desenvolvidos. A nova referência
conceitual da disciplina, como foi dito, proporciona um vasto leque de possibilidades de
atuação, incorporando os campos sanitário e social, fator indispensável para a consecução
de uma bioética realmente empenhada com a ética das diferentes situações relacionadas
com a qualidade da vida humana. O novo conceito de bioética ampliou substancialmente o
campo de atuação da disciplina, oxigenando-a e politizando-a ao incorporar no seu escopo
temas de interesse direto das nações periféricas do hemisfério Sul, como a inclusão social, a
universalidade do acesso das pessoas a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos
essenciais, a proteção da biodiversidade, o compartilhamento dos benefícios decorrentes do
avanço científico-tecnológico, entre outros (Unesco, 2005).
A ampliação conceitual da bioética permitiu incorporar ao seu campo de estudo e ação
as diferentes situações relacionadas com a saúde pública, as políticas e o sistema de saúde em
vigor no Brasil. Não há dúvidas de que o país avançou com relação às questões sanitárias,
especialmente nas duas últimas décadas. Esses avanços, no entanto, sob a ótica da ética da
responsabilidade pública, são relativos. Para o filósofo Hans Jonas (2006), diante das profun-
das contradições que a humanidade (e os países...) se vê obrigada a enfrentar, é necessário
que a racionalidade ética caminhe com a mesma velocidade do progresso técnico-científico,
o que por aqui infelizmente, não vem acontecendo. Apesar de não usar a expressão ‘ética
prática’, Jonas afirma que a filosofia pode dizer várias coisas concretas: que tipos de vida
são melhores que outros, que coisas trazem benefícios ou danos. Segundo ele, o progresso
moral coletivo pode ser evidenciado de três formas: nas legislações dos Estados modernos,
em certos valores incorporados nos códigos das leis e nos comportamentos públicos.
O Brasil evoluiu significativamente nos últimos anos com relação aos dois primeiros
pontos citados. Nossa Constituição está entre as mais avançadas do mundo no que se refere
ao capítulo da saúde e das questões médico-sanitárias, assim como a Lei Orgânica que opera-
cionaliza o Sistema Único de Saúde (SUS) está assentada sobre modernos conceitos teóricos
relacionados com a descentralização administrativa, universalização, equidade e outros.
Depois de diversos avanços e retrocessos políticos relativos à efetiva implementação do SUS,
a maior dificuldade continua incidindo na implementação prática das conquistas legais; ou Para conhecer a legislação
geral do SUS, consulte o
seja, de acordo com o terceiro item mencionado, significa, definitivamente, adicionar aos capítulo 12.
comportamentos públicos o progresso moral já presente na legislação.
Procurando sintetizar o que foi dito, encontramo-nos frente à necessidade de algumas
mudanças no campo sanitário com relação aos compromissos públicos e às responsabilidades
752 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
sociais, o que não significa obrigatoriamente a dissolução dos valores já existentes, mas sua
transformação. Há uma tradição na sociedade brasileira, no entanto, de certos segmentos
hegemônicos estabelecerem unilateralmente os direitos do indivíduo e os rumos a serem
seguidos pela sociedade. Esta tradição – que tem mudado, mas em proporção ainda insufi-
ciente – não só é geradora de desigualdades profundas, mas também limita e condiciona o
exercício dos próprios direitos (individuais e coletivos). O direito, que é elemento fundante
da ordem da cidadania, não deve ser atribuído; ao contrário, o princípio ético-político que
rege a noção mais elementar de direito é aquele decorrente da própria existência humana,
pois, na medida em que a pessoa nasce, já se configuram seus direitos. Mais do que confi-
gurados, portanto, esses direitos precisam ser acessíveis e materializáveis, para o alcance da
verdadeira cidadania. No caso brasileiro, é necessário que cada vez mais, por meio de um
controle social realmente participativo e atuante, a sociedade passe a exigir o cumprimento
das conquistas legais já verificadas.
Comitês de bioética
Neste sentido, a bioética tem a oferecer de seu rico instrumental teórico-prático a
Conjunto de pessoas com proposta de criação de comitês de bioética institucionais, hospitalares e outros – pluralistas,
moralidades diversas e no que se refere à moralidade de seus membros; multidisciplinares, quanto às formações
formações profissionais
diferenciadas, que se
profissionais dos mesmos, incluindo representantes populares. Estes comitês têm o papel
reúnem periódica ou de analisar diferentes situações de conflito, interpretar problemas biomédico-sanitários das
excepcionalmente para
mais diversas origens, discutir moralmente a definição de prioridades, assim contribuindo
fornecer pareceres sobre
conflitos éticos, dirimir com seu caráter democrático para o encaminhamento mais satisfatório dos diferentes pro-
dúvidas morais e resolver blemas a eles confiados.
conflitos éticos no campo
biomédico-sanitário.
Para refletir
Quais problemas relacionados com a ética da responsabilidade pública poderiam ser elencados
no Brasil com relação ao funcionamento do SUS e o bem-estar e os direitos da população?
e econômicas existentes entre as nações dos hemisférios Norte e Sul do planeta e, princi-
palmente, a interpretação do acesso universal à atenção sanitária e dos medicamentos como
um direito de cidadania.
das; 2) no campo privado e individual, a busca de soluções viáveis e práticas para conflitos
identificados com o próprio contexto onde os mesmos acontecem. Inclui a reanálise de Ressurgimento da ética
diferentes dilemas, entre os quais: autonomia versus justiça/equidade, benefícios individuais As discussões éticas, que
versus benefícios coletivos, individualismo versus solidariedade, omissão versus participação e estavam abandonadas
desde o final do século
mudanças superficiais versus transformações concretas e permanentes. XIX e principalmente
As últimas décadas do século passado passaram a conviver com o ressurgimento da nas primeiras décadas do
século XX, retornam com
ética. A pluralidade cultural e a evolução dos costumes, em conjunto com novos referenciais
todo vigor a partir dos
morais que foram construídos no dia a dia, levaram grande parte das sociedades humanas anos 90. O surgimento
a abandonar paulatinamente os princípios e valores que vinham norteando suas decisões da bioética, como ética
aplicada, é prova disso.
e comportamentos, tanto na esfera individual como na coletiva. E foi nesse contexto que a
754 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Para refletir
Com base no que foi discutido neste capítulo, acredita-se que seria aconselhável que os membros
dos conselhos de saúde (municipais, estaduais e nacional) tivessem alguma formação em bioética.
Em que situações concretas essa formação poderia ser útil?
Bioética 755
mas também nas populações marginadas das nações ricas, como: exclusão social, po-
breza, analfabetismo, discriminação e estigmatização, equidade, alocação de recursos
escassos, aborto, entre outros.
6) Ética na pesquisa com seres humanos – histórico do controle ético das pesquisas de-
senvolvidas com seres humanos a partir do início do século XX, com apresentação e
discussão de casos e situações reais analisadas por comitês de ética em pesquisa regu-
larmente registrados no Ministério da Saúde.
Leituras recomendadas
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Sites de interesse
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Referências
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