TCC - Maria Tereza de Melo Cavalcanti
TCC - Maria Tereza de Melo Cavalcanti
TCC - Maria Tereza de Melo Cavalcanti
RECIFE
2021
MARIA TEREZA DE MELO CAVALCANTI
RECIFE
2021
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Sistema Integrado de Bibliotecas
Gerada automaticamente, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
1. Indígenas Atikum. 2. Cangaço. 3. Sertão de Pernambuco. I. Dantas, Mariana Albuquerque, orient. II.
Bandeira, Elcia de Torres, coorient. III. Título
CDD 909
MARIA TEREZA DE MELO CAVALCANTI
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
Prof.ª Dra. Mariana Albuquerque Dantas
Coordenadora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (Orientadora)
_______________________________
Prof.ª Dra. Marcília Gama da Silva
Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Rural
de Pernambuco (Examinadora Interna)
_______________________________
Prof.º Dr. Edson Hely Silva
Professor no Centro de Educação/Colégio de Aplicação da Universidade
Federal de Pernambuco (Examinador Externo)
RECIFE
2021
3
Para Abi e Milu, minhas eternas cãopanheiras;
4
AGRADECIMENTOS
“Continue a nadar”, era a frase mais comum dita por Dory, personagem
do filme “Procurando Nemo”. Durante a graduação essa sentença ecoou por
diversas vezes em minha mente. Para mim significava que, independentemente
do caminho que estivesse sendo percorrido, era preciso continuar. É um lema
que levo para vida, acreditando que não podemos desistir de nossos sonhos.
5
importantes em sala de aula, e me orientaram na idealização da pesquisa. Sem
deixar suprimida a figura de Joyce, da Coordenação do Curso de Licenciatura
Plena em História, a qual foi e é de suma importância para o departamento. Esta
é uma pessoa que auxiliou meus primeiros passos quando entrei no curso e
sempre esteve disponível para nós discentes. Como também todos os
funcionários da nossa “Ruralinda”, que em todo o tempo estavam à postos para
nos ajudar, principalmente aos que integram o CEGOE. Por fim, agradeço à
UFRPE, que foi a minha segunda casa durante a minha formação, por essa eu
só tenho amor e gratidão.
Aos amigos que fiz durante a graduação, com quem pude discutir diversas
vezes sobre inúmeros assuntos, podendo compartilhar as angústias e as
alegrias durante os períodos da graduação, esses são: Ermírio, Kerol, Rafael,
Raul, Taylor e Vinícius, e em especial a Kerol, que trouxe leveza ao período EaD,
fortalecendo nossos laços.
Agradeço também aos meus amigos que torceram por mim, apoiando-me
e acompanhando ao longo desse trajeto, ajudando-me de inúmeras formas.
Ailton, Ana Cecília, Igor, Márcio, Rafael, Rayane e Rháyra, por todos os
aperreios, desabafos e pelas várias versões que pedi para lerem durante a
escrita deste trabalho, pela paciência e compreensão de sempre. Em referência
a este momento, como bem canta Milton Nascimento, “amigo é coisa pra se
guardar, debaixo de sete chaves dentro do coração”.
7
RESUMO
8
ABSTRACT
The current study sought to analyze the relationship between the Atikum
Indigenius people and the bandits of the Lampionic Period, betwenn 1922 to
1938, time when Lampião, was heading one of the biggest gangs of ‘social
bandits’ in the Northeast Hinterlands. In this way, we seek to understand the
processes that built those interactions, pointing the dynamics lived by those two
groups, taking in consideration that the social context of the period in question
indicates some of the reasons for the establishment of those relationships. The
Umã Sierra is a space of privilege to analyze because it’s historically inhabited
by indigenous people and, in the begging of the 20th century, it was a refuge to
‘social bandits’.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
CAPÍTULO UM: OS PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO VIVENCIADOS
PELOS POVOS INDÍGENAS NO SERTÃO PERNAMBUCANO .................... 18
1.1 O território Atikum-Umã: a Serra do Umã e as relações
socioculturais ............................................................................................. 22
1.2 Os movimentos dos aldeamentos dos indígenas Atikum nas serras
no Semiárido nordestino............................................................................ 25
1.3 Os processos de territorialização dos indígenas Atikum Umã ..... 28
CAPÍTULO DOIS: O FENÔMENO SOCIAL DO CANGAÇO NO SEMIÁRIDO
NORDESTINO, UM MOVIMENTO NÔMADE E AS INFLUÊNCIAS DO
CORONELISMO E DOS COITEIROS ............................................................. 32
2.1 Os poderosos da terra, o surgimento do cangaço e o imaginário no
Sertão........................................................................................................... 33
2.2 As relações no Sertão e o cangaço de Lampião ................................ 39
2.3 Estratégias de sobrevivência, os coiteiros e as tropas volantes ..... 42
CAPÍTULO TRÊS: A CONSTRUÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIOCULTURAIS
ENTRE INDÍGENAS E CANGACEIROS NO SERTÃO DE PERNAMBUCO .. 47
3.1 Nos recortes de jornais: os embates entre as forças volantes e os
cangaceiros na Serra do Umã ................................................................... 48
3.2 O bandoleiro “Serra Uman”: os contatos entre os cangaceiros e os
indígenas Atikum ........................................................................................ 51
3.3 Confrontos na Serra do Umã, perseguições aos cangaceiros e o
declínio do cangaço de Lampião .............................................................. 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 59
FONTES ........................................................................................................... 62
REFERÊNCIAS................................................................................................ 63
10
INTRODUÇÃO
1 As Tropas Volantes foram uma Força Pública policial do Estado para a repressão do fenômeno
social do Cangaço. Ver: ALBUQUERQUE, André Carneiro de. Capitães do fim do mundo: as
tropas volantes pernambucanas. (1922-1938) – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Autografia: Recife – PE:
EDUPE, 2016.
2 Na documentação analisada foram encontradas três grafias utilizadas para referenciar a Serra
do Umã. No decorrer do texto, utilizaremos a grafia “Serra do Umã”, mais atual, quando for
necessário fazer referência à região. Entretanto, as formas “Serra Uman”, “Serra Umã” ou “Serra
do Uman” aparecem com frequência nas documentações, sendo estas mantidas quando citados
trechos dos documentos.
11
entre esses grupos quando os indígenas Atikum3 forneceram abrigo aos
cangaceiros do bando de Lampião.
3 O mesmo ocorre com a grafia “Atikum” ou “Atikum-Umã”, mais atuais, que serão utilizadas para
referenciar os povos indígenas. No entanto, a outra grafia “Aticum” aparece com frequência nas
documentações e na historiografia, sendo referenciada assim quando forem citadas por meio
dos trechos dos documentos.
4 Atual cidade de Floresta, em Pernambuco.
12
que circulava em Pernambuco durante os anos de 1898 e 1955, encontramos
informações indicando que a Serra do Umã tinha “um verdadeiro clima
europeu”5, diferenciando-a das demais regiões no Semiárido, por oferecer aos
seus habitantes “vantajosas condições de conforto”6.
Entretanto, esse território também era visto como um lugar de refúgio para
os fugitivos na região do Semiárido. Os habitantes na Serra muitas vezes foram
apontados de maneira generalizante pelos sertanejos da época como pessoas
“perigosas” ou “criminosas”, desconsiderando que a Serra do Umã, muito antes,
era ocupada por diversas etnias. Entre os séculos XVII e XVIII, por exemplo, é
possível observar a presença de povos indígenas na região, vivenciando um
processo de territorialização7 que os antepassados de Umã construíram naquele
espaço.
5 Ver em: Gente Criminosa. Pequeno Jornal: Jornal Pequeno, Recife, 8 de jan. de 1929.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800643&pesq=%22serra%20uman%2
2%20%22canga%C3%A7o%22&pagfis=44875>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
6 Ibidem.
7 Ver: OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”,
em grupos e viviam armados, nômades que percorriam o Semiárido nordestino, desde o final do
século XIX até as primeiras décadas do século XX. Dessa forma, o bandido rural se referia a um
inimigo não só do Estado, mas da ordem legal, mesmo que pudesse contar com a simpatia de
parte da população sertaneja (HOBSBAWM, 2010, p. 21).
13
força em campo raso e de surpresa receberam as primeiras
descargas, travando-se luta verdadeiramente encarniçada
durante algumas horas. Após o tiroteio grupo foi encontrado
romando direcção Serra Uman [...] (ALBUQUERQUE, 2016, p.
71).
14
O objetivo do estudo foi compreender a participação indígena na História,
as trajetórias e suas organizações na Serra do Umã, bem como entender o
fenômeno do cangaço a partir de seus aspectos sociais, culturais e econômicos.
Para isso, as obras de Marilourdes Ferraz (2012) e do historiador Frederico
Pernambucano de Mello (1985) foram consultadas para compreendermos as
percepções de determinados grupos sociais acerca dos povos indígenas na
região, sobre os cangaceiros e os negros, principalmente daqueles que viveram
na Serra do Umã.
16
dos recortes de jornais e dos Boletins Diários da Polícia Militar quanto por meio
de um debate historiográfico acerca das temáticas. Para tanto, discutimos sobre
o cangaceiro Serra Uman, sobre a própria Serra do Umã e sobre a perseguição
policial ao cangaço e aos povos indígenas da serra, bem como sobre as múltiplas
contendas e as invasões no território.
17
CAPÍTULO UM: OS PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO VIVENCIADOS
PELOS POVOS INDÍGENAS NO SERTÃO PERNAMBUCANO
11 O termo Norte era bastante comum nos documentos à época, uma vez que o Nordeste até
então não “existia”. E, de acordo com Durval Muniz de Albuquerque Júnior, apenas durante a
década de 1920 o “espaço ‘natural’ do antigo Norte cedera lugar a um espaço artificial, a uma
nova região, o Nordeste”. O país era dividido entre Norte e Sul, e a região que hoje é demarcada
pelo Nordeste fazia parte do Norte. Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção
do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011, p. 51.
12 Conhecida também como Sertão, a região com uma área extensa com aproximadamente
900mil km², corresponde a 8% do Brasil. O Semiárido abrange diversos estados como Minas
Gerais e Espírito Santo, além de 86% dos estados do Nordeste. As chuvas nessa área são
irregulares, se limitando a três ou quatro meses do ano, seguindo-se de um longo tempo de seca.
Outrossim, o solo é raso, arenoso e rochoso, o que impede a acumulação de água, quando em
períodos de chuva. Assim, a região é propensa a desertificação, sendo suas atividades basilares
a pecuária extensiva e a agricultura familiar, com a finalidade de subsistência. Dados disponíveis
em: https://www.embrapa.br. Acesso em: 02 de out. de 2021.
19
Por outro lado, ao se depararem com a resistência indígena na região, os
europeus organizaram as guerras justas em combate aos índios de corso13. AS
guerras justas tinham como objetivo exterminar as populações inimigas, garantir
a escravização dos indígenas que se negavam à conversão, como também
invadir os territórios indígenas a partir de artifícios jurídicos. As ações
indigenistas, em decorrência dos conflitos e das invasões europeias, aconteciam
habitualmente nas fronteiras de expansão da região, uma vez que as populações
indígenas “mantinham sob seu controle amplos espaços territoriais (ou,
inversamente ameaçavam o controle das frentes sobre estes)” (OLIVEIRA, 2004,
p. 19). Dessa forma, era necessária uma política para “pacificar”14, disciplinar e
também mediar as convivências entre os índios e não índios, com os
aldeamentos e a instituição da tutela, exemplos de políticas indigenistas
adotadas pelos invasores.
Figura 1: o mapa mostra, por meio da seta em destaque, a localização da área indígenas do
povo Atikum, no Estado pernambucano. Fonte: Funai, Situação Fundiária Indígena (2000).
O espaço era visto como uma fortaleza natural, pois no lugar existia um
topo aplainado e uma inclinação bastante acentuada, tornando um território de
da. A Serra Negra: refúgio dos últimos “bárbaros” do Sertão de Pernambuco. Recife: UFPE,
1988. (Monografia de Bacharelado em História).
22
difícil acesso (FERRAZ, 2012, p. 96). Sendo ressaltado ainda, as matas
fechadas existentes no caminho (MENDONÇA et al, 2012, p. 87). Esses
aspectos fortaleceram a proteção dos indígenas em relação aos invasores,
criadores de gado e moradores na região.
Os povos indígenas muitas vezes eram vistos como “criminosos” pelos não
indígenas no período e pelos criadores de gado, uma forma de deslegitimar os
indígenas.
17Ver em: Gente Criminosa. Pequeno Jornal: Jornal Pequeno, Recife, 8 de jan. de 1929.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800643&pesq=%22serra%20uman%2
2%20%22canga%C3%A7o%22&pagfis=44875>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
23
estudado, na Serra era difícil, devido às secas e a outras dificuldades impostas,
fossem elas de ordem natural, política ou por conta das criações de gado,
realizadas pela “solta de bicho”, durante esse mesmo período (GRÜNEWALD,
2003, p. 57).
Ressaltando que, além dos diversos embates dos criadores de gado com
os povos indígenas, na região ocorreram múltiplas violências, das quais destaca-
se aqui os conflitos beligerantes entre as famílias Ferraz e Novaes no munícipio
de Floresta (FERRAZ, 2004). Por esses motivos, o território indígena era visto
como um local de esconderijo para os fugitivos daquela região. Contudo, a Serra
do Umã desde o século XVII era habitada por diversos grupos indígenas
(COSTA, 1951, vol. 5, p. 165-171).
24
estabelecida a coexistência entre o coronelismo, o mandonismo e também o
clientelismo, pelo cangaço e tantos outros aspectos sociais, como os processos
e protestos vivenciados pelos povos indígenas, os saques às vilas, as invasões
pela população com as secas. Nesses processos intensos e conflituosos,
observa-se, no início do século XX, múltiplas relações socioculturais,
entrelaçamentos de hábitos e também de costumes oriundos dos grupos étnicos
que constituíram aquele espaço, marcado por uma pluralidade sociocultural18.
não é precisa. Grünewald (1993) ressaltou o ano de 1801, como início das atividades. Pereira
da Costa (1987, vol. 5, p. 165; 167; 171) apontou que foi durante os anos de 1804 e 1806 que
as ações desse aldeamento tiveram início, concomitantemente às atividades do aldeamento da
Baixa Verde, no Sertão do Pajeú.
25
primeiras décadas do período oitocentista. Uma delas era às margens do Vale
do São Francisco, onde viviam os Bancararu, Rodela, Tamaqueu e Tuxá, e a
outra os arredores do rio Pajeú, ocupados pelos Chocó, Oê, Pipipã e os Umã
(COSTA, 1987, vol. 5, p. 165-171).
20 Os registros dos documentos oficiais acerca dos Umãs constam desde o início do século XVII,
possuindo a grafia de várias formas: Imans, Imaus, Humaés, Humam, Humoi, Omaris, Umão,
entre outros etnôminos.
21 Em 1849, o Governo da Província de Pernambuco criou um destacamento pela Lei de nº 247,
indígenas aliados à Coroa Portuguesa, enquanto a segunda eram os grupos sem vínculo com a
Coroa, eram considerados os “índios bravios” (PERRONE-MÓISES, 2006, p. 117).
26
dos índios da província, com José Rodrigues Moraes, relatou em um ofício ao
Presidente da Província de Pernambuco a dificuldade que a presença dos Umã
trazia à Aldeia e à Comarca de Floresta23, solicitando que as devidas
providências fossem tomadas quanto a esses grupos.
23APEJE, Diverso II 19, 1861-1871. Ofício, s.n., 30 de mar. 1866. Acerca dos “índios bravios”
atacando a Comarca de Floresta, folha, 99.
27
Portanto, esses processos vivenciados pelos indígenas Atikum definiram a
etnicidade desse povo na atualidade. Essa etnicidade24 pressupõe uma origem
e também um percurso, um sentimento de pertença, principalmente espiritual
com os antepassados (GRÜNEWALD, 2002, p. 99).
24 A etnicidade construída pelos povos indígenas foi analisada a partir da conceituação de João
Pacheco de Oliveira, afirmando que “supõe necessariamente uma trajetória (histórica e
determinada por múltiplos fatores) e uma origem (uma experiência primária, individual, mas que
também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio
das identidades étnicas é que nelas a atualização história não anula o sentimento de referência
à origem, mas até mesmo o reforço. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que
decorre a força política e emocional da etnicidades” (OLIVEIRA, 2004, p. 32-3).
25 Entende-se o termo “assimilação” pela definição do antropólogo Rui Pereira, como um projeto
cuja representação é a relação de dominação, uma vez que os aspectos da cultura dominada
são transformados ou até mesmo extintos frente à cultura dominante (PEREIRA, 1986, p. 217).
28
cercanias e determinando o controle de terras nas regiões (OLIVEIRA, 2004, p.
25-6)
26 Utilizamos a definição de Clarice Novaes da Mota (2007), para quem “a identidade étnica é
construída sobre sistemas culturais e ideologias, tendo pouco a ver com traços biológicos” (p.
29), como também o conceito defendido por Rodrigo Grünewald, “as identidades são muitas e
se fragmentam em pertencimentos que não reconhecem fronteiras étnicas, as culturas também
são dinâmicas e, como já insinuei, não automaticamente limitadas às suas sociedades ou povos
específicos (2009, p. 13).
27 A etnogênese ou a “emergência étnica” é bastante utilizada para descrever os múltiplos
processos de formação dos grupos étnicos, como, por exemplo, as construções dos postos
indígenas, de reconhecimento territorial e dos próprios processos das populações indígenas para
(re)conquistarem os seus direitos, como aponta Rodrigo Grünewald (2004, p. 151). O processo
de “etnogênese” para João Pacheco de Oliveira significando “em termos teóricos, a aplicação
dessa noção, bem como de outras igualmente singularizantes – a um conjunto de povos e
culturas pode acabar substantivando um processo que é histórico, com a falsa impressão de
que, nos outros casos quando não foi tratado de “etnogênese” ou de “emergência étnica” o
processo de formação de identidade estaria ausente (OLIVEIRA, 2016, p. 212).
29
que aconteceu juntamente com os processos de identificação e de
reconhecimento de direitos e de terras. Nesse sentido, os Atikum vivenciaram
um processo de etnogênese, construção da identidade étnica e do sentimento
de pertencimento àquela comunidade.
Além das alianças pelas redes de relações interétnicas, foi possível observar na
organização social dos povos Atikum, o sistema de compadrio. Essa associação
era estabelecida por meio do batismo da criança, apadrinhada por um indivíduo
que se torna compadre dos genitores, criando-se, assim, um laço de troca de
favores entre os mesmos (GRÜNEWALD, 1993). Nesse sentido, o sistema de
compadrio pode acontecer de duas formas, tanto para fortalecer as alianças
28 Uma tradição dos povos indígenas, uma dança que vem a consagrar aquele grupo étnico. A
respeito desse assunto ver: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Toré e Jurema: emblemas
indígenas no Nordeste do Brasil. Cienc. Cult. vol.60 no.4. São Paulo, 2008. Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252008000400018.
30
étnicas já vivenciadas no núcleo do grupo como também para estabelecer novas
relações com pessoas de fora das fronteiras daquele espaço.
31
CAPÍTULO DOIS: O FENÔMENO SOCIAL DO CANGAÇO NO SEMIÁRIDO
NORDESTINO, UM MOVIMENTO NÔMADE E AS INFLUÊNCIAS DO
CORONELISMO E DOS COITEIROS
32
Esta é uma das características das serras, como as próximas Serra do Arapuá,
Serra Negra e Serra do Umã. Contudo, a predominância nos espaços planos no
Semiárido é a vegetação das caatingas, adaptadas ao clima sertanejo, quente e
seco (ANDRADE, 1963, p. 6), com temperaturas elevadas e precipitações
pluviométricas baixas.
29Eram indivíduos protegidas pelos coronéis, a quem estavam subordinadas, fossem elas
parentes de uma classe mais pobre, moradoras nas propriedades dos coronéis ou afilhadas
33
campo como nas cidades. Essa relação resultava da
desigualdade social, da impossibilidade de os cidadãos
efetivarem seus direitos, da precariedade ou inexistência de
serviços assistenciais do Estado (FAUSTO, 2000, p. 263).
desses senhores de terras. Assim, “gente do coronel fulano” era a forma de identificação utilizada
para se referenciar a quem os protegia. A esse respeito, ver: QUEIROZ, 1997.
34
suspensão dos trabalhos rurais, lançam a miséria às classes mais
desafortunadas e atiram na ociosidade milhares de braços impossibilitados de
ganhar os meios de subsistência” (MONTENEGRO, 1973, p.192). Com a seca
da década de 1720, por exemplo, surgiram os primeiros grupos de bandoleiros
em vista dos impactos econômicos e das migrações provocadas pela longa
estiagem (VILLA, 2000, p. 19).
36
1974, p. 87). Nesse ínterim, a seca de 1919 evidenciou ainda mais o
cangaceirismo profissional, caracterizado de três formas. A primeira, o “cangaço
meio de vida”, ou o “cangaço de rapina”, que é o de maior frequência, tendo
Lampião e Antônio Silvino como suas figuras representativas. O segundo tipo é
o “cangaço de vingança”, com Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira, o antecessor
de Lampião, como representantes, sendo uma forma menos frequente do que o
primeiro. O “cangaço de refúgio” foi o mais diferente. Era um cangaço de
estratégias de defesa, do qual destacou-se o cangaceiro Ângelo Roque depois
de entrar no bando de Lampião (MELLO, 1974, p. 80).
37
mas, sim, a figura de “homem valente” que eles representavam (CASCUDO,
1984, p. 160).
39
Não é um fenômeno novo no complexo social brasileiro. Pode-
se mesmo dizer que ele nasceu com a nação, nas correrias dos
exploradores através do sertão, na caça ao índio. A insegurança
e a falta de garantias para uma vida tranquila determinaram o
ambiente de guerrilhas, tropelias e assaltos, que fez do sertão
um campo aberto a toda espécie de truculência. [...] Os que se
tornavam mercenários, ao serviço dos mais ricos, era da mesma
massa daqueles que se entregavam às aventuras do cangaço
(LINS, 1960, p. 44).
40
ponto da caatinga, e se estendem por anos a fio. A honra do
sertanejo continua sendo mais importante do que a vida. E
embora as velhas garruchas e espingardas soca-soca tenham
sido trocadas pelos fuzis AR-15 e submetralhadoras Uzi, o
componente emocional da vingança a um parente morto
continua o mesmo desde 1848, quando os Carvalho e os Pereira
começaram a duelar em Serra Talhada (Diario de Pernambuco,
1 de agosto de 1997 IN MARQUES, 2002, p. 420-421).
42
O relato do cangaceiro Antônio dos Santos, de codinome Volta Seca31, às
autoridades enquanto esteve preso na Bahia, evidenciou a importância dos
coiteiros para a extensão do cangaço: “Lampião, sem os coiteiros, é metade”
(MELLO, 2018, p. 212). As relações dos coiteiros com os cangaceiros eram
muitas vezes construídas através do medo, do dinheiro, da pressão ou até
mesmo da simpatia pelo fenômeno do cangaço e pela figura de Lampião. Nesse
contexto, as alianças com os poderosos locais eram fundamentais, pois esses
detinham a política como legitimação de seu poder, enquanto os cangaceiros
utilizavam as armas e seus homens para expandir seu poder. Como os
cangaceiros eram nômades, precisavam estabelecer múltiplas relações no
decorrer de suas trajetórias para alcançarem seus objetivos. Portanto, as
relações de troca com os coiteiros e principalmente com os coronéis estavam
“solidamente enraizadas na proteção e na lealdade, a sociedade rural repousava
na troca de favores, de homem para homem. O coronel oferecia proteção e
exigia irrestrita adesão” (JANOTTI, 1992, p. 57).
31O cangaceiro nasceu em Saco Torto, um povoado de Itabaiana, no Estado de Sergipe, iniciou
no cangaço ainda menino, com cerca de 11 ou 12 anos, por questões econômicas e até mesmo
em razão de vingança, não sendo certo afirmar o motivo. “Volta Seca desempenha vários papéis
importantes, distinguindo-se dos outros componentes do bando”, sendo muitas vezes
considerado o braço direito de Lampião (MENEZES, 2018, p. 36).
43
eficazes pistoleiros” (NARBER, 2003, p. 35). Além disso, os latifundiários
exerciam o papel de controladores dos subordinados, da região e também das
urnas, com o “voto de cabresto”32. Dessa forma, a autoridade desses
proprietários de terra era exercida nesses territórios, permanecendo até a
Revolução de 1930, quando se deu uma grande limitação dos poderes dos
coronéis.
32 O voto de Cabresto era bastante comum durante a Primeira República do Brasil, quando surgiu
a “política dos governadores” onde os coronéis se aproveitavam desse tipo de voto para garantir
as eleições por meio da relação de troca de favores entre os políticos e os coronéis, uma vez
que era aberto e, de certa forma, possibilitava que os chefes políticos fraudassem as eleições.
Ver: QUEIROZ, 1976, p. 182.
33 Os nazarenos eram cidadãos do povoado de Nazaré, na Comarca de Floresta, local próximo
à fazenda da família Ferreira, parentes de Lampião. Posteriormente, o espaço, que era “um
ambiente de pessoas pacíficas” foi transformado, segundo relatos da população, em um espaço
de rixas com a família Ferreira, transformando-se, assim, em um local de resistência contra as
ações dos bandos de cangaceiros. A esse respeito ver: ALBUQUERQUE, 2016, p. 73-74.
44
Mesmo entre a polícia que perseguia Lampião, havia pouco
entusiasmo para a tarefa. O treinamento era inadequado, e
rancho e o soldo, escassos e irregulares. [...] Tanto os soldados
como os oficiais eram, muitas vezes, venais, e era
frequentemente, a principal fonte de abastecimento de munições
de Lampião (1980, p. 64).
34 Theophanes Ferraz Torres foi um oficial da Polícia Militar de Pernambuco que nasceu na
cidade de Floresta, o mesmo teve uma longa carreira nos ofícios policiais, sendo considerado
um maiores perseguidores dos grupos de cangaceiros no Estado de Pernambuco.
35 Boletim Diário de nº 252, 19 de nov. de 1926, p. 5, Caixa S/N. Arquivo do 2º Batalhão da Polícia
47
eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos” (O Ceará, 17 de
março de 1926 IN DUTRA, 2011, p. 88). Deste modo, Lampião tentava construir
e estabelecer as relações com a sociedade e com os demais grupos sociais,
ainda mais quando as campanhas contra o cangaço alcançaram uma maior
proporção nos estados nordestinos durante o século XX. Durante essas
campanhas, entendiam que “um indivíduo podia passar a ser conhecido como
coiteiro apenas por ter dado uma caneca de água a um cangaceiro” (AMAURY;
FERREIRA, 1997, p. 18).
49
Evidenciando, assim, as múltiplas formas de violências implantadas pelas forças
volantes contra o banditismo no Sertão pernambucano.
51
e indo abater gados no Olho D’água no pé da Serra do Uman,
Município de Floresta37.
37 Pela Política. Jornal A Província. Pernambuco, 2 de jun. de 1928. nº 128. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=128066_02&Pesq=Serra%20Uman&pag
fis=20988. Acesso em: 27 de out. de 2021.
38São encontradas nos jornais menções ao cangaceiro Domingos dos Anjos Oliveira das
seguintes formas: Serra Uman, Mão Foveira, Serra do Mar e Serra do Man, esse último
possivelmente um equívoco de digitação por parte dos editores.
52
esconderijos da serra. Passou-se algum tempo [...] quando
“Serra Uman” se apresenta candidato às hostes de “Lampeão”39.
39 Gente Criminosa. Pequeno Jornal: Jornal Pequeno, Recife, 8 de jan. de 1929. Disponível
em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800643&pesq=%22serra%20uman%2
2%20%22canga%C3%A7o%22&pagfis=44875>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
40 Os bandidos de “Lampeão” estão transformados em verdadeiros veados. Gazeta de Notícias.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=128066_02&pasta=ano%20192&pesq=&
pagfis=18858. Acesso em: 07 de nov. de 2021.
43 Ver em: Gente Criminosa. Pequeno Jornal: Jornal Pequeno, Recife, 8 de jan. de 1929.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800643&pesq=%22serra%20uman%2
2%20%22canga%C3%A7o%22&pagfis=44875>. Acesso em: 12 de maio de 2021. E em:
Interessantes declarações de um companheiro do capitão legalista Virgolino Lampeão. Diário
Carioca. Rio de Janeiro, 14 de fev. de 1929. nº 181. Disponível em:
53
Entretanto, foi dentro desse contexto de conflitos familiares, algo
frequente na região sertaneja, que o cangaceiro Serra Uman começou a
participar dos assaltos realizados pelo bando de Lampião. Ainda assim, apesar
da rápida passagem, o citado cangaceiro ampliou os laços que estavam sendo
construídos e estabelecidos entre os cangaceiros e os indígenas Atikum, o que
acabou por elevar aquela população a ser considerada um dos maiores coitos
de cangaceiros de Pernambuco (GUEIROS, 1956), por parte da sociedade e
para as tropas volantes.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093092_01&hf=memoria.bn.br&pagfis=2
080. Acesso em: 4 de nov. de 2021.
54
soldados feridos a Força seguio em perseguição grupo que
tomou direcção Serra Uman (FILHO, 2003, p. 450).
Nessa perspectiva, podemos observar uma solidez nas relações entre os Atikum
e os cangaceiros do bando de Lampião, pelos inúmeros embates ocorridos
naquele território. Os bandoleiros ainda tinham certa segurança ao se abrigarem
em algum dos muitos esconderijos na Serra do Umã e contarem com a apoio
dos Atikum
55
Mesmo que o foco da pesquisa se atenha ao bando de Lampião,
observamos outros cangaceiros de outros grupos aproveitando-se das relações
e começaram a prestar serviços nas empreitadas (FILHO, 2003, p. 193-194). A
polícia, por sua vez, começou a adentrar cada vez mais na Serra do Umã,
buscando alternativas para que as emboscadas elaboradas pelos cangaceiros e
indígenas não fossem o flagelo das tropas, pois era um espaço onde vários
oficiais das volantes já haviam sido feridos ou mortos.
Com essa ação da tropa comandada por Manoel Neto, diversas pessoas foram
presas e acusadas de forma generalista. Para a força volante pouco importava
se aquele indivíduo tinha ajudado Lampião ou não, fosse de forma voluntária ou
forçada. Cada morador na Serra do Umã era considerado um coiteiro em
potencial. Para o Estado e a força pública, a ação foi positiva, visto que
57
Assim, com o avanço tecnológico no ambiente sertanejo, o grupo de Lampião
quase não conseguia mais praticar os saques e grandes ações, tornando-se
cada vez mais sedentários e se acomodando por mais tempos em seus
esconderijos (ALBUQUERQUE, 2016, p. 157).
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
59
fazerem a jurema44, e que estes “a bebiam em situações que envolviam violência
e bebedeiras alcóolicas” (GRÜNEWALD, 2005b, p. 118). Dessa forma,
observamos a dialética de vivência entre esses dois grupos por meio do coito
fornecido pelos Atikum aos cangaceiros na Serra do Umã.
44A designação jurema está associada a plantas, a bebidas e até mesmo a expressões religiosas
específicas. A utilização originária da jurema é atribuída aos povos indígenas no Nordeste
brasileiro. (GRUNEWALD, 2018).
60
evidenciaram o cotidiano e as concepções que a sociedade possuía sobre os
dois grupos sociais, através de uma perspectiva de análise de Michel de Certeau,
como compreender as questões cotidianas e os entendimentos da sociedade.
Além disso, realizamos uma revisão bibliográfica e uma discussão entre a
Antropologia e a História para melhor elucidação das situações e dos conteúdos
apresentados. Dessa forma, acreditamos que a pesquisa apontou as múltiplas
articulações vivenciadas entre os indígenas Atikum e cangaceiros, como estas
foram construídas e como se estabeleceram.
61
FONTES
62
REFERÊNCIAS
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