Tese PriscilaDantas PPGE
Tese PriscilaDantas PPGE
Tese PriscilaDantas PPGE
MANAUS
2022
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MANAUS
2022
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Ficha Catalográfica
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a).
BANCA EXAMINADORA:
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Madrugada Camponesa
Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.
Madrugada da esperança,
Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.
Thiago de Mello
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RESUMO
Esta pesquisa se propôs a investigar, tomando a dialogia freiriana como método e partindo de
uma abordagem histórico-cultural, se a compreensão crítico-reflexiva é desenvolvida na
formação inicial do/a professor/a de literatura de modo a contribuir, quando de sua docência na
educação básica, para um ensino de literatura que se faça espaço de reflexão e vozeamento. A
perspectiva crítico-reflexiva de construção do saber é aquela em que existe espaço para o
questionamento e a reflexão sobre o ordenamento das coisas, o que viabiliza a construção de
sentidos e significados. A partir dessa proposta, definiu-se, como sujeito da pesquisa, o sujeito-
professor de literatura, o qual foi observado em sua relação com o texto literário na prática
docente. Com fundamento nos pressupostos da dialogia freiriana e considerando a abordagem
histórico-cultural, os procedimentos adotados para condução da pesquisa e análise dos dados
foram a análise documental discursiva, as entrevistas individuais narrativas abertas e a
observação participante. O lugar da investigação sobre a formação inicial foi a licenciatura no
Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas.
Para a investigação da prática docente, buscaram-se escolas de ensino médio da rede pública
estadual de ensino da Coordenadoria Distrital de Educação 05 da Secretaria de Estado de
Educação e Desporto. Os sujeitos acompanhados longitudinalmente na pesquisa foram dois, em
duas escolas da referida Coordenadoria. A escolha desta Coordenadoria apoiou-se no interesse
da pesquisa de investigar o ensino de literatura também em perspectiva geopolítica, em um
contexto amazônico urbano e periférico, no qual se insere a Universidade Federal do Amazonas.
Os resultados apontaram que o não desenvolvimento, durante a licenciatura, de um olhar
pedagógico da formação inicial, apoiado numa perspectiva crítico-reflexiva do ensino de
literatura, dificulta o trabalho com o texto literário no exercício da docência. O que se verificou,
em campo, é que os sujeitos enfrentam dificuldades para discutir o texto literário a partir do
contexto sócio-histórico-cultural, focando o trabalho na conceituação/periodização literária. No
desenvolvimento das ações realizadas pela pesquisa, buscou-se dirimir essas dificuldades,
estabelecendo-se um trabalho contextualizado do texto literário, desenvolvido a partir da
mediação docente pautada no diálogo com os/as estudantes, considerando suas vivências como
pontes no processo de construção do pensamento crítico-reflexivo oportunizado pelo trabalho
com a literatura. Evidenciou-se, a partir dos resultados, a necessidade de maior alinhamento
entre formação inicial e docência na educação básica, o que pode ser viabilizado tanto por meio
de ações de pesquisa e extensão quanto pela discussão e reflexão acerca do ensino de literatura
durante as aulas das disciplinas de estudos literários na formação inicial, a fim de que se
oportunize uma educação literária ativa, fundamentada na criticidade, que colabore para o
desenvolvimento da subjetividade.
ABSTRACT
This research aimed to investigate, taking the freirian dialogy as a method and starting from a
historical-cultural approach, if the critical-reflective understanding is developed in the initial
formation of the literature teacher in order to contribute, during his teaching in basic education,
for a teaching of literature that becomes a space for reflection and voicing. The critical-
reflective perspective of knowledge construction is one in which there is space for questioning
and pondering about the ordering of things, which enables the construction of senses and
meanings. Based on this proposal, the subject-teacher of literature was defined as the subject of
the research, who was observed in his relationship with the literary text in teaching practice.
Based on the assumptions of freirian dialogy and considering the historical-cultural approach,
the procedures adopted to conduct the research and data analysis were the discursive document
analysis, individual open narrative interviews and participant observation. The place of research
on initial formation was the degree in the Letters Course – Portuguese Language and Literature
– at the Federal University of Amazonas. For the investigation of teaching practice, high schools
of the state public education network of the District Education Coordination 05 of the State
Department of Education and Sports were sought. The subjects followed longitudinally in the
research were two, in two schools of the aforementioned Coordination. The choice of this
Coordination was based on the research interest of investigating the teaching of literature also
from a geopolitical perspective, in an urban and peripheral Amazonian context, in which the
Federal University of Amazonas is inserted. The results showed that the non-development,
during the degree, of a pedagogical view of initial formation, supported by a critical-reflexive
perspective of literature teaching, makes it difficult to work with the literary text in the teaching
practice. What was verified, in the field, is that the subjects face difficulties to discuss the
literary text from the socio-historical-cultural context, focusing the work on the
conceptualization/literary periodization. In the development of the actions carried out by the
research, sought to resolve these difficulties, establishing a contextualized work of the literary
text, developed from teacher mediation based on dialogue with students, considering their
experiences as bridges in the process of building critical-reflexive thinking provided by the
work with literature. The results showed the need for greater alignment between initial
formation and teaching in basic education, which can be made possible both through research
and extension actions and by discussing and pondering about the teaching of literature during
the classes of literary studies subjects in initial formation, in order to provide an active literary
education, based on criticality, which contributes to the development of subjectivity.
RESUMEN
Esta pesquisa se propuso a investigar, tomando la dialogía freiriana como método y partiendo
de un abordaje histórico-cultural, si la comprensión crítico-reflexiva es desarrollada en la
formación inicial del/de la profesor/a de literatura de modo que contribuya, cuando de su
docencia en la educación básica, para una enseñanza de literatura se haga espacio de reflexión
y voceamiento. La perspectiva crítico-reflexiva de construcción del saber es aquella en que
existe espacio para el cuestionamiento y la reflexión sobre el ordenamiento de las cosas, lo que
viabiliza la construcción de sentidos y significados. A partir de esa propuesta, se definió, como
sujeto de la pesquisa, el sujeto-profesor de literatura, el cual fue observado en su relación con
el texto literario en la práctica docente. Con fundamento en los presupuestos de la dialogía
freiriana y considerando el abordaje histórico-cultural, los procedimientos adoptados para
conducción de la pesquisa y análisis de los datos fueron el análisis documental discursivo, las
entrevistas individuales narrativas abiertas y la observación participante. El lugar de la
investigación sobre la formación inicial fue la licenciatura en el Curso de Letras – Lengua y
Literatura Portuguesa – de la Universidad Federal del Amazonas. Para la investigación de la
práctica docente, se buscaron escuelas de enseñanza media de la red pública estadual de
enseñanza de la Coordinación Distrital de Educación 05 de la Secretaría del Estado de
Educación y Deporte. Los sujetos acompañados longitudinalmente en la pesquisa fueron dos,
en dos escuelas de la referida Coordinación. La elección de esta Coordinación se apoyó en el
interés de la pesquisa de investigar la enseñanza de literatura también en perspectiva
geopolítica, en un contexto amazónico urbano y periférico, en el cual se insiere la Universidad
Federal del Amazonas. Los resultados apuntaron que el no desarrollo, durante la licenciatura,
de una visión pedagógica de la formación inicial, apoyada en una perspectiva crítico-reflexiva
de la enseñanza de literatura, dificulta el trabajo con el texto en el ejercicio de la docencia. Lo
que se verificó, en campo, es que los sujetos enfrentan dificultades para discutir el texto literario
a partir de un contexto socio-histórico-cultural, enfocando el trabajo en la
conceptualización/periodización literaria. En el desarrollo de las acciones realizadas por la
pesquisa, se buscó dirimir esas dificultades, estableciéndose un trabajo contextualizado del
texto literario, desarrollado a partir de la mediación docente pautada en el diálogo con los/las
estudiantes, considerando sus vivencias como puentes en el proceso de construcción del
pensamiento crítico-reflexivo oportuno por el trabajo con la literatura. Se evidenció, a partir de
los resultados, la necesidad de mayor alineamiento entre formación inicial y docencia en la
educación básica, lo que puede ser viabilizado tanto por medio de acciones de pesquisa y
extensión cuanto por la discusión y reflexión acerca de la enseñanza de literatura durante las
clases de las asignaturas de estudios literarios en la formación inicial, con la finalidad de que
se posibilite una educación literaria activa, fundamentada en la criticidad, que colabore para el
desarrollo de la subjetividad.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE SIGLAS
Federal do Amazonas
SUMÁRIO
Narrar sobre mim, mesmo que em breves palavras, é um exercício reflexivo necessário
à minha trajetória. Meus passos são de um caminhar com e pela literatura; minha vida é
alinhavada pelos sentidos e significados que a leitura literária fez brotarem em mim.
Ainda criança, quando, nas condições objetivas de nossa vida familiar, as coisas eram
duras e a escassez era muita, minha mãe me ensinou o caminho da leitura literária. Professora
da educação básica, tendo que nos deixar, eu e minhas irmãs, sozinhas em casa para que pudesse
ir trabalhar, minha mãe pedia, nas editoras, amostras de distribuição gratuita dos mais diversos
livros, a fim de que nós sempre tivéssemos companhia.
Foi assim que descobri a alegria de ler. Fiz amizades que durariam por toda a minha
vida com tantos autores, de tantos paradidáticos e clássicos da literatura brasileira diferentes.
Eram tempos difíceis e, muitas vezes, matamos a fome com a merenda escolar, uma fruta de
alguma árvore perto de casa ou um achocolatado com bolacha oferecido por uma vizinha. Mas,
mesmo que eu não pudesse mudar aquelas condições, eu podia sair dali nas viagens que a
literatura me proporcionava. Desse modo, com os livros, eu fui a lugares em que eu não iria e
aprendi a ver a vida na dimensão do sonhar. Conforme eu crescia, eles me permitiam perceber
as coisas ao redor, o mundo em suas contradições.
Morávamos em uma casa pequena e inacabada, nos fundos da casa de meus avós
paternos. Frequentávamos, eu e minhas irmãs, a Escola Estadual Marechal Hermes, uma escola
próxima de nossa casa, a mesma em que nossa mãe lecionava. Ali ficamos do pré-escolar à 8ª
série do ensino fundamental. Naquele tempo, ouvimos, em mais de uma ocasião, de parentes
que tinham melhor condição financeira, que não seríamos mais que balconistas de lojas (como
se isso fosse demérito), afinal, éramos as meninas do quintal, as que estudavam “perto de casa”.
A narrativa sobre nós era a de que a vida não nos seria favorável. Nunca acreditei nessa
narrativa. Nesses tempos de falta de quase tudo, fiz da literatura meu aconchego, meu lugar de
sorrir. Em sua estratégia de sobrevivência, minha mãe me deu o passaporte para um novo
mundo, o da literatura, que me fez ressignificar meu próprio caminho.
Na adolescência, quando eu cursava Magistério no Instituto de Educação do
Amazonas, os caminhos da literatura começaram a se desenhar diferentes, pois experimentei a
vivência da sala de aula pela primeira vez. No estágio na educação infantil, no primeiro ano do
Curso, a contação de histórias me ajudou a estabelecer diálogo com as crianças, que entravam
comigo nas trilhas da literatura. Mas foi na educação de jovens e adultos que esse viver literário
tomou outra dimensão. Aos dezesseis anos, no segundo ano do Curso, eu alcancei minha
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num espaço temporal que se distancia por uma década e, como docente, vi minhas inquietações
se avolumarem, ao me deparar com os mesmos problemas de quando eu era estudante e ao
receber, no primeiro período do Curso, jovens que demonstravam praticamente nenhuma
proximidade com o texto literário. Diante das dificuldades, resgatei os ensinamentos daquelas
professoras e busquei o desenvolvimento da minha própria compreensão acerca da literatura
como instrumento pedagógico, o que viabilizou, no meu cotidiano docente, que eu pudesse
traçar o meu próprio caminho para uma educação literária.
O que me encaminhou para o desenvolvimento desta pesquisa veio, portanto, de minha
vivência com a literatura, que passa tanto por quem eu me tornei desde a minha relação de
criança com os livros, quanto pela formação inicial e continuada e, ainda, pela prática docente
que vivenciei no Curso de Letras-LP/UFAM.
A criança que eu fui experimentou o mundo pela literatura. Essa criança viu nos livros
a possibilidade de ressignificar a própria história. Foi isso que me conduziu para além daquele
quintal dos meus avós. Por meio da educação, eu aprendi a falar, eu entendi a palavra como
espaço também meu, apesar das muitas tentativas de silenciamento que enfrentei ao longo da
vida. E a minha palavra é literária, porque eu acredito na educação literária como educação para
a percepção sensível das coisas do mundo.
Findado o mestrado e experimentadas as vivências da docência, veio a vontade de
ingressar no doutorado. Quando eu escolhi o Curso de Doutorado em Educação da Universidade
Federal do Amazonas (PPGE/UFAM), havia, em mim, o desejo de discutir o ensino de
literatura, lançando olhar para a formação inicial com a qual eu escrevi capítulos da minha
história de vida tanto formativa quanto profissional. Essa discussão, contudo, não podia deixar
de considerar a menina leitora que fui, naquele espaço de subalternidade e silenciamento. Era
preciso que essa menina dialogasse, então, com outras meninas e meninos como ela nas
comunidades escolares do campo de tese. Isso certamente atravessou o trabalho de campo que,
nesta pesquisa, desenvolvi.
Foi levando comigo, portanto, as muitas faces de mim, construídas ao longo da minha
trajetória, que cheguei ao Curso de Doutorado em Educação e, em suas instâncias, desenvolvi
a pesquisa que ora apresento. Minha caminhada é, como eu disse, com e pela literatura e a
crença na educação dialógica e poética me move. Freire (2020) lembra-nos que a educação para
a libertação é aquela em que o diálogo estabelece relação de igualdade entre os sujeitos, fazendo
do espaço de aprendizagem um espaço de construção dos saberes de educadores com educandos
e não de educadores para educandos. Essa é a educação dialógica, que me move ao ensino de
literatura de concepção sensível, que entende a literatura como espaço de significação e
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INTRODUÇÃO
O diálogo tem, então, força na nossa constituição enquanto sujeitos. Ora, se nos
constituímos sujeitos na dialogicidade, as múltiplas dimensões do nosso existir também assim
se constituem. As subjetividades docentes, portanto, têm natureza dialógica. Logo, se o sujeito-
professor é um sujeito que interage no processo social e, claro, em uma realidade escolar
diversa, muitas vozes permeiam as ações e interações de sua prática cotidiana, desde os
discursos que reverberam da formação inicial, passando pelas falas oficiais do sistema de
ensino, até as interações discursivas com seus alunos/as e colegas docentes no ambiente escolar.
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A formação deste vocábulo se dá pelo que Luft (2013, p. 65) define como composição vocabular: “Composição
é o processo de formação de palavras pelo qual se cria uma nova palavra (denominada composta) por meio de dois
radicais, a qual tem um significado único e autônomo, diferente das noções expressas por seus componentes. [...]
Emprega-se o hífen para sinalizar a aderência semântica unificativa dos componentes”. A construção do vocábulo
sujeito-professor, neste trabalho, é, portanto, uma escolha que faço com o fim de enfatizar a discussão que
proponho. Em alinhamento ao que aponta Luft, o que busco, nesta composição vocabular, é, ao unir duas categorias
– sujeito e professor – estabelecer uma terceira categoria, de significação autônoma, com delineamento próprio.
Para esta pesquisa, interessa discutir o sujeito que é professor, ou seja, aquele que se forja, conforme Tardif (2010),
no conhecimento pedagógico, experiencial e reflexivo.
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Freire (1967, p. 95-97) aponta que a consciência crítica é o fundamento para uma
educação democrática, na qual o diálogo vai se estabelecer como caminho para que os sujeitos
do processo educacional assumam posições indagadoras, inquietas e criadoras. Na construção
dialogada do conhecimento, professores/as e alunos/as são sujeitos na enunciação e o processo
cultural permeia as falas, sendo o conhecimento não apenas memorização, mas,
fundamentalmente, elaboração e reelaboração. Assim, na pedagogia dialógica freiriana, os
saberes se formulam não do educador para o educando e sim do educador com o educando e é
nesse entre que se desenvolve o pensamento crítico-reflexivo.
O sujeito-professor aqui em investigação é o sujeito-professor de literatura. Sendo
a literatura espaço de formação humana (CANDIDO, 2011), é preciso que a discussão acerca
da formação inicial e da prática docente deste sujeito busque compreender se a literatura tem
sido lugar de reflexão e ação, que oportuniza o vozeamento daqueles que dialogam a partir dela.
Na perspectiva desta pesquisa, alinha-se esse dialogar a partir da literatura ao pensamento
freiriano (FREIRE, 1967), que percebe o diálogo como viabilidade enunciativa entre sujeitos,
o que só se faz se as enunciações nascerem da criticidade e se propuserem ao exercício crítico.
Para Freire, se não há construção crítica, não há diálogo, há a palavra oca, apenas reverberação
dos discursos organizadores do poder vigente, que ele chama de antidiálogo.
O pensamento crítico-reflexivo, a consciência crítica, no entendimento aqui assumido,
alinha-se a Dewey (1979), que compreende o pensar crítico como sendo aquele que aciona tanto
nosso arcabouço de informações quanto nossa capacidade de inquirição, levando-nos à
reflexão, que nos faz organizar os mecanismos necessários para a aquisição do conhecimento.
No processo de reflexão, colocamo-nos diante das incertezas, que nos movimentam e nos fazem
revisitar e repensar sobre o que já tínhamos consolidado. Assim, a perspectiva crítico-reflexiva
de construção do saber é aquela em que existe espaço para o questionamento e a reflexão sobre
o ordenamento das coisas, o que viabiliza a fruição e a ressignificação.
O lugar de enunciação dos sujeitos desta pesquisa é um lugar periférico. Dizer sobre
isso importa para aclarar em que contexto se produzem, então, sentidos significados. No
encontro cotidiano com os/as estudantes de espaços escolares da periferia manauara, os
sujeitos-professores revisitam a formação inicial e exercitam a docência, em significação e
ressignificação. A fim de compreender esse movimento, definiu-se, como objeto de pesquisa,
o processo de desenvolvimento da perspectiva crítico-reflexiva na formação inicial e na
docência do/a professor/a de literatura.
Na vivência como docente de literatura, construída em minha experiência como
professora substituta no Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade
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Federal do Amazonas (Letras-LP/UFAM), sobre a qual tratei no breve memorial que abriu este
trabalho, formulou-se o principal disparador das inquietações que me trouxeram à esta pesquisa:
o modo como chegavam, ao primeiro período letivo do Curso, os/as alunos/as vindos/as da
educação básica. Quando professora de Teoria da Literatura I para as turmas de primeiro
período (disciplina que ministrei em mais de um semestre letivo, em espaços temporais que se
distanciam por uma década), lidei diretamente com o processo que envolve a leitura em nível
crítico-reflexivo e o que observei é que, com poucas exceções, os/as alunos/as não conseguiam
compreender as camadas da linguagem que se sobrepõem nos textos, tanto teóricos quanto
literários; faltava leitura de contexto e, em muitos casos, faltavam leituras prévias de textos
outros, especialmente literários, os quais deveriam sedimentar neles um conhecimento geral das
estruturas literárias, além é claro, de despertar-lhes a percepção da própria condição humana,
uma vez que o texto literário, humanizador que é, por natureza, encaminha a isso. Ora, se os/as
alunos/as chegam, em sua maioria, no primeiro período do Curso, com as dificuldades
apontadas acima, isso parece ter relação com o modo como eles/as acessaram a leitura literária
durante a educação básica.
Diante disso, centrou-se o foco da investigação no/a professor/a de literatura e sua
relação com o texto literário na prática docente, no ensino de literatura, traçando-se diálogo
com suas narrativas acerca da formação inicial, com o currículo e a legislação vigentes, bem
como com as ações da vivência no chão de escola. O locus de investigação da formação inicial
foi a licenciatura no Curso de Letras-LP/UFAM, considerando-se o fato de ser a UFAM a
instituição pública de ensino que forma nesta habilitação docente há mais tempo no Estado e
também pela relação desta formação com a minha própria vivência/docência, conforme pontuei
no memorial. No que tange à prática docente, o foco de interesse colocou-se no trabalho
desenvolvido em escolas de ensino médio da rede pública estadual de ensino, mais
especificamente escolas que integram a Coordenadoria Distrital de Educação 05 da Secretaria
de Estado de Educação e Desporto (Seduc-AM), por haver interesse de, nesta pesquisa, lançar
olhar para o ensino de literatura em um contexto amazônico urbano e periférico, no qual se
insere, geograficamente, a UFAM.
A pergunta que norteia este trabalho é, então, a seguinte: caso o sujeito-professor de
literatura não construa, na formação inicial, uma compreensão crítico-reflexiva do ensino,
encontrará dificuldades de, na prática docente, ensinar literatura numa perspectiva de
vozeamento? E a suposição que se formula a partir da pergunta é: o sujeito-professor de
literatura que não constrói, na formação inicial, uma compreensão crítico-reflexiva do ensino,
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Vygotsky (2004, p. 368) diz que: “[...] cada pessoa é, em maior ou menor grau, o
modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, já que nela se reflete a totalidade das
relações sociais”. O ser humano é, portanto, o elemento ativo de sua própria história e da história
social e essa história, esse existir humano, é heterogeneidade, ou seja, é multiplicidade
discursiva:
caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu
organismo biológico, mas pela totalidade das condições vitais e sociais em
que esse organismo se encontra colocado (BAKHTIN, 1981, p. 59).
O que Said nos mostra é que, para uma compreensão efetiva do processo cultural, é
preciso trabalhar no campo da integração de tudo aquilo que faz parte da cultura. A cultura é
orgânica e, assim sendo, a literatura – que, aliás, é o exemplo de que ele parte no excerto acima
– não deve ser observada apenas em sua natureza estruturalista. Compreendê-la como parte
organicamente articulada da cultura é elementar para compreender a própria cultura. No que
tange ao escopo deste trabalho – em termos de formação inicial do/a professor/a de literatura e
de docência, portanto – interessa-me olhar para a literatura como modal de integração, lugar de
fala dentro do processo sócio-histórico-cultural, espaço da subjetividade.
Passemos ao que postula Foucault (2000) acerca dos mecanismos de controle social:
observemos o que ele classifica como biopoder. Ele diz que, em tempos antigos, os tempos da
soberania, o poder do soberano era sobre a vida e a morte, ou seja, era essencialmente um poder
de espada (FOUCAULT, 2000, p. 286-287). A partir do século XVIII, no entanto, e mais
especialmente a partir do XIX, instaurou-se o biopoder, que é a regulação do próprio existir,
em suas mais diversas faces, inclusive aquela que comporta a perspectiva biológica
(FOUCAULT, 2000, p. 290).
O biopoder, portanto, normatiza o existir, normatização essa que, muitas vezes, não é
sequer percebida, embora regulamente todas as frentes de atuação do sujeito. Quando não se
encaminha o sujeito para o desvelamento, para uma compreensão de si, do outro e do próprio
processo social, permanece-se sob essa normatização, sob essa regulação, que se articula, no
espaço da cultura, a partir dos mecanismos de controle da hegemonia. É a normatização
hegemônica, que, no âmbito do biopoder, compreende-se como:
Ainda discutindo sobre a atuação do biopoder, Foucault (1986) destaca que o corpo do
soberano foi substituído pelo corpo social, o qual passou a ser objeto da regulação das forças
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hegemônicas e, nessa regulação, prima-se pelo uníssono, pelo que soa na mesma nota, na
linearidade, eliminando-se tudo que seja desarmonia (FOUCAULT, 1986, p. 145-146).
Nessa linha de pensamento, vale citar Silva & Tavares (2019, p. 105), que,
estabelecendo uma analogia com a função materna no corpo social, tocam na questão do
uníssono:
A função materna (termo teórico) pode ser exercida e pensada de forma ampla,
não exatamente pela mãe biológica. E, na linha de pensamento que aqui
queremos fazer, a mãe pode ser tomada a partir de uma esfera das instituições.
Daí já começamos a pensar no tipo de sociedade que nós temos. Uma
sociedade que vende tudo em grandes pacotes, não respeitando os tempos e os
processos individuais. Uma sociedade da intolerância. Não toleramos loucos,
gays, travestis, transexuais, indígenas, negros, crianças, jovens.
Fazendo uma ligação com essa lógica, podemos observar que Mbembe (2018), ao
discutir as questões do poder hegemônico, destaca que a morte tem assumido um papel
regulador no corpo social, que ele chama de necropolítica, necropoder. Para demonstrar como
isso se dá, Mbembe aponta como o poderio bélico, associado, é claro, ao poderio econômico,
cria “mundos de morte”, estruturas sociais em que “[...] vastas populações são submetidas a
condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’’’ (MBEMBE, 2018, p. 71).
Ele aponta, ainda, como se estabelece uma falsa perspectiva de que o corpo social é composto
por iguais, por sujeitos livres, sejam homens ou mulheres. Dessa perspectiva falseada, a política
seria, então, a representação de sujeitos complexos, autoconscientes, autossuficientes e, por
isso, de igualdade de condições para todos, diferenciando-se da política de guerra. Seria, desse
modo, política de vida, não de morte. Para o autor, é nessa concepção falseada de política e de
corpo social, de uma pseudoigualdade, que o poder vigente engendra uma falsa noção de
soberania (como correspondente de autossuficiência), daí estabelecer-se, no caminho inverso
ao do discurso oficial, uma política de morte, uma necropolítica. Mas isso não se dá de modo
desarticulado. É fazendo o sujeito crer que sua condição de existência é a da soberania de si que
a necropolítica engendra-se, subverte a realidade (MBEMBE, 2018, p. 8-10). E isso se dá no
exercício desta “razão da morte” na esfera pública, articulando-se em todos os campos do poder.
ela não tem poder, adaptar a ele seu mercado de trabalho e suas formas de
proteção social.
Freire (2020, p. 26) diz que “[...] a palavra instaura o mundo do homem”; ela constrói sentidos,
significa para o ser humano, coloca-o no mundo. Existimos, então, pela palavra – que, aqui,
representa o próprio discurso, a nossa enunciação –, pela voz que tomamos no corpo social, de
modo que o vozeamento dos sujeitos, no ambiente escolar, faz-se lugar de resistência aos
discursos de poder vigentes.
Acerca da reflexão e do pensamento, observemos o que diz Dewey (1979, p. 162):
O que postula Dewey vai ao encontro do que tenho discutido neste trabalho: ensinar e
aprender precisam ser ações do pensar crítico-reflexivo. Diante disso, tanto no campo da
formação inicial quanto no campo da docência é necessário refletir sobre como temos ensinado
e como esse ensinar se coloca nas dimensões do colonialismo, do biopoder e da necropolítica.
Parece-me necessário refletir, então, sobre que ensinar tem sido centro de nossas
preocupações. Saviani (2013, p. 13) aponta que “[...] a natureza humana não é dada ao homem,
mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica”. Se ela é produzida, não podemos
deixar de apontá-la como parte do processo sócio-histórico-cultural em que o ser humano se
integra. Consequentemente,
Esta é a prática que Freire (1996) vai chamar de prática educativo-crítica ou prática
progressista, na qual, por meio da reflexão, constrói-se o saber, em processo de troca, de
diálogo entre educadores/as e educandos/as. Para Freire, o saber é uma construção sócio-
cultural e a constância do nosso estar-sendo é o que organiza dialogicamente o nosso saber. A
dialogicidade verdadeira, segundo o autor, é aquela em que os sujeitos aprendem e crescem na
diferença, no respeito a ela. Nas trocas que estabelecem, consolidam um saber que se faz teórico
e prático, dado que não se separa “[...] ensino de conteúdos de chamamento ao educando para
que se vá fazendo sujeito do processo de aprendê-los” (FREIRE, 1996, 125).
Na dialogicidade, o sujeito se abre para o mundo e se firmam a sua inquietação e a sua
curiosidade como bases de um processo reflexivo que o situa na realidade concreta e o faz
entender os contornos cultural, social e econômico que o cercam. A atividade pedagógica,
portanto, precisa se pautar na dialogia para que possa ser uma atividade efetivamente de partilha
do saber. Assim, cabe ao sujeito-professor buscar reconhecer seu/sua aluno/a como
interlocutor/a, fazendo da sala de aula espaço de vozeamento, lugar de expressão da
subjetividade.
Nessa perspectiva, Freire (1996, p. 145) aponta que a prática educativa deve ser um
exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia tanto dos/das
educadores/as quanto dos/as educandos/as. Em uma analogia entre o/a educador/a e o/a líder
revolucionário/a, Freire destaca que é na dialogicidade que se estabelece entre o/a líder e a
massa oprimida que se pode trilhar um caminho para a libertação, para a superação verdadeira
da situação de opressão. É nessa condição que educador/a e educando/a vão, então, assumir
seus papéis de sujeitos da transformação (FREIRE, 2020, p. 170). Um educar da poiesis,
portanto, firma-se no diálogo que se estabelece entre educadores/as e educandos/as e deles/as
com o mundo.
A dialogicidade deste educar poético é fundamentalmente ação. E ação é esperança,
mas não esperança de espera, pois espera é estaticidade, é desesperança. Assim, na perspectiva
freiriana, diálogo é ação porque se estabelece no quefazer, a partir do pensar crítico que percebe
a realidade como processo e a capta em constante devir (FREIRE, 2020, p. 114).
Sem dúvida, aquilo que a classe dominante mais teme é a concretização do
compromisso político transformador e teme de tal forma que se apropria do discurso de
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Não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não
é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não
há amor que a infunda. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também,
diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa dos sujeitos e que não possa
verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é a patologia de amor:
sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é
um ato de coragem, nunca de medo, o amor é um compromisso com os
homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em
comprometer-se com a causa. A causa de sua libertação. Mas, este
compromisso, porque é amoroso, é dialógico. [...] A autossuficiência é
incompatível com o diálogo (itálicos do autor – FREIRE, 2020, p. 111-113).
Fica evidente, a partir da fala de Gonçalves & Furtado (2016), que a subjetividade é
uma construção que se dá nas interações sociais e culturais do ser humano, as quais ocorrem
dentro da sua historicidade. Considerando esta noção de experiência histórica, é preciso
lembrar, conforme apontam Gonçalves & Furtado (2016, p. 29-30), que a afirmação do ser
humano como sujeito, desde a modernidade, foi viabilizada pelo desenvolvimento das forças
produtivas capitalistas.
Nesse contexto, faz-se necessário destacar que, se as forças de poder vigentes
engendram a experiência histórica do sujeito, elas, por conseguinte, impõem limites na
formação desse sujeito e acabam por atrelá-la às condições sociais e políticas impostas pelos
interesses do mercado. Logo, a noção de “sujeito livre”, como vimos em Mbembe (2018), é
claramente limitada. Na prática, o que se concretiza
Ora, se cada um dos aspectos apontados por Pimenta & Lima integra o sujeito-
professor, observamos que ele precisa estar preparado para lidar com o chão de escola e suas
complexidades, que são fruto do embate das forças de poder que compõem o corpo social, como
vimos. Considerando a formação inicial do/a professor/a de literatura no Curso de Letras-
LP/UFAM, a indagação gira em torno de como a formação tem pensado, enquanto conjunto
ensino/pesquisa/extensão, em forjar este tipo de professor/a definido por Pimenta & Lima.
Considerando a docência, os questionamentos vão na direção do desenvolvimento de uma
prática emancipadora no espaço escolar. É preciso fazer, então, algumas reflexões tanto sobre
a formação inicial quanto sobre a docência, tomando como ponto de partida o sujeito-professor.
Nossas políticas educacionais, historicamente, têm sido inconsistentes no que tange à
formação do pensamento crítico-reflexivo, que leva ao processo de significação e construção
de sentidos. Mesmo quando oficialmente tocam em reflexão e emancipação, segundo Nóvoa
(2009), não vão além de uma apropriação de fala, o que faz disso mais um mecanismo de
controle das forças de poder vigentes. E onde não se desenvolve adequadamente o pensamento
crítico-reflexivo, onde a simples transmissão de conteúdos se abriga no patamar mais alto do
processo educacional, transborda o silenciamento, que é parte do projeto de poder hegemônico.
Aquele/a que não pensa sobre si, sobre seu entorno e sobre o outro consigo não vozeia a própria
experiência de existir e, assim, em silêncio, sem que sequer perceba, serve à hegemonia. A
subjetividade, que tem caráter simultaneamente social e individual, precisa ser, portanto,
expressada, pois é por meio dessa expressão que se pode “[...] enxergar de maneira distinta,
recursiva e contraditória a articulação entre o social e o individual [...].” (MARTÍNEZ &
GONZÁLEZ REY, 2017, p. 67).
Compreender a expressão da subjetividade em contexto social é, na perspectiva
histórico-cultural (MARTÍNEZ & GONZÁLEZ REY, 2017, p. 19-20), compreender o lugar
social da aprendizagem. Desse modo, torna-se necessário olhar para o processo educacional
como espaço de expressão e construção do indivíduo enquanto sujeito de si e sujeito no mundo.
Kátia Curado da Silva (2017, p. 6), a partir da epistemologia da práxis, aponta que
(2010, p. 109-111), discutindo essa questão, aponta que este é um saber de muitas faces: é
prático, pois adequado à necessidade de ação no cotidiano; interativo, dado que se coordena
objetiva e subjetivamente com os demais atores do processo educacional; sincrético e plural,
posto que se viabiliza a partir do conhecimento plurissignificativo do sujeito-professor, o qual
ele constrói ao longo da própria vivência; heterogêneo, pois aciona as múltiplas vivências desse
sujeito, nas dimensões pessoal e profissional; aberto, poroso, permeável, uma vez que sempre
integra o novo àquilo que já foi adquirido ao longo do caminho, remodelando o “saber-fazer”,
o que também o torna complexo; existencial, pois não se faz fora do ser/estar no mundo do
sujeito-professor, o que o faz, por fim, um saber social, construído na interação desse sujeito
no processo histórico-cultural.
O saber experiencial não pode, então, ser suplantado pelo saber teórico. Se aquilo que
buscamos é formar o sujeito-professor, precisamos ensinar considerando a indissolubilidade de
teoria e prática, de ciência e técnica, de modo a garantir aos sujeitos da formação a compreensão
das realidades socioeconômica e política, a fim de que possam transformar as condições que
lhes são impostas (SILVA, K. C., 2017, p. 09-10). A formação do sujeito-professor de literatura,
no entendimento que aqui busco construir, alinha-se a essa perspectiva.
Diante disso, evidencia-se a necessidade de olhar para o sujeito-professor da ótica de
sua historicidade, entendendo que a realidade por ele experimentada, seja na formação inicial,
seja na docência, é a realidade histórica. Nas palavras de Queiroz (2018, p. 213-214),
Ao refletir acerca da formação inicial e sabendo que esta tem natureza dialógica e
polifônica, sendo as forças de poder que operacionalizam as ações no corpo social vozes ativas
em seu discurso, faz-se necessário discutir currículo e a relação deste com os enviesamentos
dessas forças de poder.
Para examinar isso, é preciso considerar o currículo como espaço (ou não) de práxis e
de construção do conhecimento e, no caso da formação inicial e da docência do/a professor/a
de literatura, é necessário refletir sobre a construção do conhecimento que considera a literatura,
o trabalho com o texto literário, lugar de poiesis, de formação humana, de compreensão de si,
do outro e do contexto sócio-histórico-cultural.
Chamando para essa reflexão o que aponta Krenak (2020) acerca da ideia de
humanidade que estamos, como civilização, construindo ao longo de nossa história, podemos
observar que, cada vez mais, temos feito distinções e categorizações que forjam uma espécie
de verdade, uma concepção acerca da forma “adequada” de estar na Terra. Essa concepção
finda por estruturar os processos e mecanismos que apoiam nosso existir e, num viés
colonialista, aceitamos um sectarismo que nos afasta da nossa ancestralidade, que nos tira da
nossa conexão com a própria natureza.
Essa “verdade” sobre nós impele-nos para uma série de ausências e, no nosso tempo,
essas ausências buscam nos tirar o próprio experienciar da vida. Assim, somos, cada vez mais,
intolerantes com quem é capaz de sentir a existência subjetivamente, dado que buscamos uma
homogeneização que nos padronize e nos “faça pertencer”. Como no episódio Nosedive, da
série Black Mirror, não queremos estar fora do picadeiro social. Esse processo de padronização
que ora experimentamos, Krenak categoriza como “zumbificação”, que ele diz nos impedir de
fruir a vida. Fruir é construir sentido sobre nossas próprias histórias, é significá-las. Se o mundo
da padronização, controlado pelas forças que detêm o poder e ainda nos colonizam nos quer
zumbis, precisamos aprender a fruir nossas próprias histórias para, por meio de nossas vozes,
retomar nossa conexão ancestral. E resistir, retomar nosso fio originário, passa pela literatura
oral, pela contação de histórias. Para o autor, contar uma história é resistir porque é “adiar o
fim do mundo”; é adiar nossa homogeneização. Na literatura – lugar de fruição, de expressão
do nosso processo sócio-histórico-cultural – está posta, dessa perspectiva, a manutenção do
nosso existir.
Diante disso, parece-me claro que o ensino de literatura e a formação inicial do/a
professor/a de literatura precisam ser contraposição aos discursos de homogeneidade, uma vez
46
alcance sua máxima eficácia, é necessário que ela não apareça como tal, que
ela não apareça justamente como o que ela é, como uma definição arbitrária
[...] baseada apenas na força [...] da classe dominante. É essa força original
que permite que a classe dominante possa definir sua cultura como a cultura
(SILVA, 2016, p. 41).
O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que
conduzem à realização pessoal de cada um. O caminho tomado atualmente
pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte [...], arrisca-se a nos
conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como
consequência o amor pela literatura.
Se assim o é, o que se deveria esperar da formação inicial era que esta viabilizasse um
trabalho com a literatura que se constituísse espaço de expressão da subjetividade, lugar de
vozeamento. Morin (2018, p. 15) postula, contudo, que os nossos sistemas de ensino elaboram
currículos que reduzem o complexo ao simples, decompõem ao invés de recomporem e
eliminam tudo que causa “desordem” ou “contradição”. Diante disso, quando pensamos em
desordem e contradição, precisamos pensar no referente: o que se desordenaria e se contradiria
neste caso?
O que ocorre, na prática, portanto, é o que identifica Morin: os currículos se reduzem
ao que deve ser ensinado, àquilo que, dentro de uma estrutura de disciplinas, precisa ser
transmitido e isso finda por suplantar a noção ampla de currículo enquanto vivência, enquanto
identidade e discursividade político-ideológica. Arroyo (2013, p. 28), chama atenção para essa
mesma questão:
Os currículos, o que ensinar, têm marcado nossas identidades profissionais
como referente único. Os cursos de licenciatura formam o professor que as
escolas exigem: a tempo completo, a vida completa. O termo aulista é a
síntese: passar a matéria, a tempo completo, sem outras atividades que nos
desvirtuem dessa função nos tempos de aula. Uma exigência totalitária
dirigida aos professores, que vinha de uma concepção conteudista do
currículo. O resultado tem sido conflitivo: atender ou renunciar a atender os
alunos, seus problemas, suas inseguranças, seus processos tensos de formação
moral, cultural, identitária? Renunciar a atendê-los até em seus percursos
tensos de aprendizagem?
Ora, o que observamos em Arroyo parece estar bem próximo da perspectiva que
apresento aqui: que identidade profissional nós forjamos? Que identidade profissional
assumimos? De que literatura tratamos nas salas de aula da formação inicial e,
consequentemente, da educação básica? Essa literatura que “ensinamos” (em aspas mesmo,
pois há que se refletir sobre esse nosso ensinar) dialoga com aqueles que são, organicamente,
parte daquelas comunidades escolares em que atuamos? Temos sido capazes de transitar entre
teoria e prática ou nosso heterônimo puramente intelectual assume sempre a nossa voz
formativa? Esses são questionamentos que precisamos nos fazer. Precisamos refletir sobre que
direções temos seguido, no campo do currículo, e onde essas direções têm nos encaminhado.
49
Silva (2016, p. 210) nos lembra que o currículo atua ideologicamente, mantendo as
estruturas de poder vigentes em sua plena funcionalidade. “Através das relações sociais do
currículo, as diferentes classes sociais aprendem quais são seus respectivos papéis nas relações
sociais mais amplas”. O autor pontua, ainda, que o currículo é forjado dentro de um mapa do
poder que operacionaliza os processos de dominação, centrando-os na raça, na etnia, no gênero
e na sexualidade (SILVA, 2016, p. 212).
Nessa lógica de que o currículo mantém o status quo das condições sociais, vale trazer
à luz a questão de como isso se coloca em termos práticos: ao invés de lidar com o ensino de
uma perspectiva humanizadora, lida-se a partir da busca dos índices. Refiro-me às muitas metas
traçadas, tanto na formação inicial quanto na educação básica, para que se atinjam índices de
aprovação e produtividade nas universidades e nas escolas, aplicando-se, portanto, uma lógica
de mercado à educação. Obviamente, não carrego a ingenuidade de achar que os/as
professores/as, por seu querer apenas, poderão romper com isso. Apego-me mais à lógica do
dissenso, da fissura: se algumas ações, dentro desse grande mecanismo, forem levadas a cabo,
será possível, mesmo que minimamente, fazer algo na contramão do sistema. Se não podemos
destituir esse currículo, por que não usar, então, as próprias estruturas dele para modificar o
possível? Quando discuto disso, refiro-me a ações, a projetos que podem se viabilizar tanto no
campo da formação inicial quanto no chão de escola e, em se tratando do ensino de literatura,
isso significaria levar à reflexão, ao desenvolvimento da subjetividade daqueles que habitam as
comunidades escolares.
À formação inicial cabe, desse modo, encaminhar o trânsito teórico-prático a que já
fiz menção. Entretanto, se a formação se limita, também ela, à simples transmissão de
conteúdos, o/a professor/a sai da universidade sem desenvolver adequadamente o senso crítico-
reflexivo e, nesse caso, a sensibilidade de enxergar o chão de escola como campo social vai
depender apenas da própria prática docente. O que defendo não é que isso não aconteça, afinal,
o campo de trabalho do/a professor/a sempre deverá ser lugar de formação; a questão, para
mim, é que não deveria ser apenas isso; a formação inicial deveria enxergar essa questão como
necessidade estrutural.
Em termos de currículo, preocupa-me que a formação inicial do/a professor/a de
literatura reverbere os engendramentos do colonialismo, do biopoder e da necropolítica, pois
isso a reduz ao cartesianismo da periodização/conceituação. Penso ser necessário, reafirmo,
buscar o dissenso, fazendo da literatura lugar de poiesis e tornando seu ensino espaço de práxis.
A formação inicial, nessa perspectiva, deve buscar colocar-se a serviço da
transformação dos sujeitos, do caminhar para o desvelamento, para a emancipação. É essa
51
Há, no trecho citado, uma importante reflexão acerca da formação inicial que me
parece caber aqui: é claro que não é apenas a formação e a atuação do/a professor/a na educação
básica que vão reverter todo o nosso quadro histórico de silenciamento e subalternização.
Entretanto, é necessário, na visão do autor, que os cursos de formação inicial tenham a
responsabilidade de discutir os processos estruturantes de segregação e essa é mais uma questão
que me parece relevante destacar quando da discussão da formação inicial do/a professor/a de
literatura.
É diante disso que se poderia viabilizar uma formação política do/a professor/a, na
qual a formação inicial seria o ponto de partida para que este/a entendesse suas possibilidades
de atuação no contexto em que se insere. A formação política do/a professor/a pressupõe, desde
a formação inicial, um engajamento, uma presença nos debates sobre os temas da educação.
Compreender a educação como um projeto social e lutar para que esta se viabilize em amplo
acesso é fundamental para que o/a professor/a não se limite a um discurso reformista da
52
educação, no qual o próprio poder vigente, por meio do Estado, defende mudanças que, muitas
vezes, estão mais relacionadas a nomenclaturas e deslocamentos de estruturas do que,
efetivamente, a transformações sociais. É nas reformas do sistema educacional que, por
exemplo, vemos com mais clareza o embate entre projetos de poder divergentes, o
tensionamento entre campos políticos opostos e é aí que entra a necessidade da formação
política do/a professor/a. Sem ela, torna-se mais difícil perceber os movimentos que o poder
faz para, em novas roupagens, manter sempre as coisas como estão.
Curado da Silva (2018, p. 57-58), destaca que
Fica evidente, portanto, que a dimensão política do professorar não pode ser ignorada.
Quando falo nisso, falo para enfatizar que a formação inicial se reflete na docência e, se nega
essa dimensão política, finda por não formar de uma perspectiva crítico-reflexiva. Quando se
vai ao chão de escola e se ouve os sujeitos, percebe-se, claramente, as lacunas e como essas
lacunas precisaram (ou precisam) ser supridas na própria prática cotidiana. Essas falas e a
percepção do campo de tese serão apresentadas, neste trabalho, nas seções posteriores,
entretanto era necessário registrar, neste primeiro momento, essa questão.
Por fim, quero apontar que compreender a importância da dimensão política da
educação é compreender que teoria e prática são enunciações de poder, fluxo, movimento em
constante mobilização dentro do jogo político que tudo rege. Na maior parte do tempo,
tendemos a buscar, na teoria, as bases para a prática, como se a elaboração de um saber teórico
puro, acadêmico, fosse o único norteador possível para a implementação de ações no cotidiano
escolar. O que esquecemos, nessas circunstâncias, é que a prática, a vivência do cotidiano é,
por si, formativa, dado que é transformadora da realidade. Na prática, muitas vezes o saber
teórico purista não se viabiliza e o/a professor/a se vê diante da necessidade de intervir e criar
soluções a partir da realidade ali posta, o que evidencia que teoria sem prática é esvaziamento.
Essa inviabilidade de uma teoria sem prática – o que, muitas vezes, é parte do jogo de
poder que joga com a precarização da educação, daí a importância do/a professor/a
compreender a dimensão política da educação – é evidenciada por Saviani (2013), ao discutir a
53
Quando entendemos que a prática será tanto mais coerente e consistente, será
tanto mais qualitativa, será tanto mais desenvolvida quanto mais consistente e
desenvolvida for a teoria que a embasa, e que uma prática será transformada
à medida que exista uma elaboração teórica que justifique a necessidade da
sua transformação e que proponha as formas de transformação, estamos
pensando a prática a partir da teoria. Mas é preciso também fazer o movimento
inverso, ou seja, pensar a teoria a partir da prática, porque se a prática é o
fundamento da teoria, seu critério de verdade e sua finalidade, isso significa
que o desenvolvimento da teoria depende da prática.
O que podemos concluir, tomando essa fala de Saviani para a formação inicial, é que
esta não pode se isentar de tratar das questões da prática quando de suas abordagens teóricas.
Fechar-se nos muros da academia e reduzir a formação a um desfiar de novelos teóricos é
reduzi-la a uma visão unilateral. Não dar, portanto, ao campo da prática a devida importância
na formação inicial é falhar do ponto de vista político, social, pedagógico, histórico e cultural,
desfazendo os sentidos que colocam a teoria e a prática em um continuum, num mesmo fluxo.
Ao limitar a discussão e as ações da prática, finda-se por dar à formação uma perspectiva
estruturalista, hegemônica e de silenciamento.
A seguir, na seção 2, será feita a contextualização do campo de tese, apresentando-se
os espaços da prática, de onde falam e se colocam sócio-histórico-culturalmente os sujeitos-
professores de literatura acompanhados nesta pesquisa.
54
2.1 Primeiros caminhos: a decisão de olhar para a formação inicial a partir das vozes dos
sujeitos-professores de literatura e a escolha da Zona Leste manauara como campo
[...] o significado das palavras evolui. Este ponto de vista deve substituir o
postulado da imutabilidade dos significados das palavras. [...] A associação
entre a palavra e o seu significado pode desenvolver-se mais forte ou mais
debilmente, pode ser enriquecida pela relação com outros objetos de tipo
semelhante, difundir-se por sobre um vasto domínio, ou tornar-se mais
limitada, isto é, pode sofrer transformações quantitativas e externas, mas não
pode modificar a sua natureza psicológica. Para que tal acontecesse teria que
deixar de ser uma associação.
O significado está posto, portanto, no dinamismo das nossas relações, do nosso existir
sócio-histórico-cultural. Já o sentido, como vimos na seção 1, habita um plano mais próximo
da subjetividade (VYGOTSKY, 2000, p. 465).
Dentro das questões da dialogicidade, vale destacar a seguinte fala de Bakhtin (2010,
p. 221):
55
Dessa forma, a escolha pelo campo de tese tomou o caminho do cotidiano escolar e,
na convivência com sujeitos-professores de literatura, eu pude traçar contrapontos aos discursos
dos documentos da formação inicial. Na interação com eles, portanto – e na própria
compreensão de que é a partir de suas subjetividades em ação objetiva na realidade que os
caminhos são percorridos –, eu pude ter maior clareza das questões que envolvem o currículo
e o enredamento deste nas enunciações do poder vigente.
Aclarada a questão da escolha por falar da formação inicial a partir da perspectiva dos
sujeitos-professores de literatura, passo agora a comentar a escolha do campo de tese enquanto
local de vivência dos/com os sujeitos da pesquisa.
Um dos pontos de interesse, para mim, no desenvolvimento deste trabalho, era refletir
sobre o nosso lugar. Falo nosso porque a pesquisa, na perspectiva da dialogicidade freiriana,
distante da isenção, é ação entre mim, como pesquisadora, e os/as professores/as de literatura
que foram acompanhados como sujeitos da pesquisa. É nessa noção de ação e associação,
portanto, que sempre conduzi os passos deste trabalho. E que lugar é o nosso? Que lugar é esse,
nossa terra, um lugar amazônico, carregado de sentidos e significados, individual e
coletivamente experienciado por nós?
Muitas vezes, quando vislumbramos a Amazônia, não somos capazes de refletir, com
a devida clareza, acerca de nossa identidade. Manaus é uma cidade na floresta, que carrega as
marcas da colonialidade e as promessas de um futuro que envelheceu sem chegar. Assim,
Manaus é tanto terra do Encontro das Águas, do Teatro Amazonas, do Largo São Sebastião,
quanto é terra da Beira, do Mercadão, do Distrito Industrial e de uma periferia de invasões
desordenadas, amontoadas sobre nossos igarapés e sobre a floresta urbana. Há, portanto, uma
identidade que não se define efetivamente para nós. Como aponta Souza (1977, p 165):
No excerto de Souza, vemos a leitura mítica que se faz da cidade, a partir do imaginário
que sobre ela se construiu. O manauara urbano vive, então, a negação da ancestralidade e do
pertencimento à identidade amazônica e não percebe Manaus como uma urbis da floresta. O
autor aponta, ainda, que a arquitetura desorganizada é apenas a expressão mais visível da
alienadora anomalia de apagamento de nossos traços amazônicos, que morrem à medida em
que morre nossa tradição e nossa cultura (SOUZA, 1977, p. 166).
57
Para a definição dos bairros, o norte estava em trabalhar com aqueles do entorno da
universidade e que fossem vizinhos um do outro, a fim de observar semelhanças e diferenças,
no entanto, não havia interesse, de minha parte, em pesquisar no mesmo bairro de localização
da universidade, por conta de a principal escola da Seduc-AM situada neste bairro ser
costumeiramente utilizada pelo Curso aqui pesquisado para a aplicação de seus estágios
supervisionados e práticas curriculares. A universidade, na perspectiva que venho construindo
neste processo – olhando a partir do Curso de Letras-LP/UFAM, situando-me na compreensão
que construí ao longo de minha vivência em seus espaços, tanto como estudante como enquanto
professora –, embora se situe na periferia, não se enuncia, de forma ampla, deste lugar e com
ele dialoga menos do que poderia; sua presença na periferia em seu entorno, no que tange ao
Curso, limita-se ao que foi mencionado acima. Assim, interessava-me ir um pouco mais
distante, embora ainda na mesma vizinhança, o que me levou a focar em buscar os/as
professores/as nos dois próximos bairros, São José Operário e Zumbi dos Palmares, sobre os
quais falarei mais especificamente adiante.
A fim de melhor entender essa Manaus urbana e periférica, vale chamar ao texto
algumas vozes de estudiosos da geopolítica de nossa cidade. Comecemos com a seguinte fala
de Oliveira (2003, p. 29-33):
Ora, importante entender, de início, que a cidade é produto das relações sociais. É,
então, espacialização do próprio sistema social e é por meio da compreensão dessa
espacialização do sistema social que vamos conseguir perceber, em ação, as diversas forças que
regem o corpo social. É assim que se torna possível “[...] ver o que se esconde atrás da paisagem
visível” (OLIVEIRA, 2003, p. 30), ou seja, viabiliza-se, desse modo, perceber as ações dos
chamados agentes produtores do espaço urbano, dos donos dos meios de produção
59
A autora destaca que, embora o Coroado não tenha sido a primeira ocupação da cidade,
foi a ocupação responsável por promover a ampliação da malha urbana de Manaus para o Leste.
Destaca também que a universidade, detentora das terras, resistiu, num primeiro momento, à
ocupação da área, chegando a promover repressão policial contra os ocupantes, sem, contudo,
obter sucesso, uma vez que estes fizeram um levante de resistência.
É importante pontuar que a ampliação da malha urbana da cidade acentuava as
contradições extremas tanto em nível social quanto espacial, como é possível deduzir a partir
do que já foi posto até aqui na discussão de Oliveira (2003) e Barbosa (2017). A oposição
centro-periferia parece aclarar, portanto, não apenas a espacialidade do distanciamento, mas
também – e talvez de modo mais efetivo – o distanciamento sócio-político-econômico-cultural.
Comentando, da perspectiva do pós-colonialismo, acerca da diferença dos mundos de
colonos e colonizados, Fanon (1968, p. 28-29) diz o seguinte:
A fala de Fanon parece corroborar com o que estou discutindo aqui: não há espaço,
nem na geografia territorial nem na geografia política, para a integração de classe dominante e
62
2
Ao avaliar a questão da identificação das escolas, entendi que, caso eu decidisse fazê-la, tornaria viável a
identificação dos sujeitos da pesquisa, uma vez que eles são apenas dois, sendo um em cada escola. A escolha por
me referir às escolas com nomenclaturas poéticas tem, portanto, a finalidade de proteger as identidades dos
sujeitos. As escolas são, num educar poético, espaços frutíferos; para designá-las, então, escolhi os vocábulos Açaí
e Buriti, que são frutos de forte presença no cotidiano da cultura local.
64
Federal de Minas Gerais. Já a docente da Escola Buriti tinha 28 anos de idade, com 8 anos de
atuação docente (começou ainda durante a licenciatura) e 2 anos de atuação docente pela Seduc-
AM; em nível de titulação acadêmica, possuía especialização em Língua Latina e Filologia
Romana pela Universidade Cândido Mendes, e cursava, presencialmente, Mestrado em Letras
e Artes no Programa do Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do
Amazonas.
Uma outra limitação importante que é preciso mencionar é em relação à Coordenadoria
Distrital de Educação 05 da Seduc-AM. Embora o primeiro contato tenha sido bastante
amistoso, na prática, não foi possível contar com a Coordenadoria para desenvolver um dos
produtos do trabalho de campo que havia sido planejado na fase de projeto: a realização de um
seminário formativo para professores/as de literatura de toda a Coordenadoria. Cheguei a entrar
em contato com professores/as da própria Universidade Federal do Amazonas, alguns dos que
se disponibilizam para este tipo de atividade; também contatei professores/as da Universidade
do Estado do Amazonas e, ainda, membros da Academia Amazonense de Letras e todos/as com
os quais falei demonstraram bastante interesse em contribuir com a pesquisa por meio da
realização do evento.
Infelizmente, contudo, em todos os contatos que fiz com a coordenadora para que
tentássemos viabilizar uma data e a mobilização dos/as professores/as da Coordenadoria, houve
sempre resistência para a realização do evento e isso acabou me levando à decisão de
desmobilizar os/as convidados/as mencionados/as – à exceção de uma professora do Curso de
Letras-LP/UFAM, que gentilmente atendeu ao meu convite de colaborar com um novo formato
de evento que acabei precisando planejar. Esse novo formato, mais viável diante das
circunstâncias, seria a realização de diálogos formativos com os/as professores/as nas duas
escolas, com a participação não apenas dos sujeitos-professores acompanhados na pesquisa,
mas também dos/as demais professores/as de literatura docentes ali. Sobre isso, falo com maior
detalhamento na seção 4 deste trabalho.
Destaco que considero importante registrar essas limitações, seja com relação aos
sujeitos, seja com relação à Coordenadoria, porque penso que são reflexo das questões
estruturais que discuto no transcorrer do trabalho. A resistência, seja a de participar de uma
pesquisa como esta, seja a de viabilizar a realização de uma atividade formativa, parece-me
estar no campo das ações hegemônicas, onde as coisas se conduzem sempre sob o panóptico
(FOUCAULT, 1987, p. 219-221).
65
2.3 Contextualizando o campo de tese: o bairro São José Operário e a Escola Açaí
Avanço trazendo o campo de tese. O primeiro bairro em que faremos parada é o bairro
São José Operário. De acordo com Barbosa (2017, p. 117), o bairro surgiu no ano de 1979, a
partir de loteamento planejado pelo Estado, mas foi se modificando, com o passar dos anos, por
conta de ocupações irregulares. Após a ocupação das terras da Universidade Federal do
Amazonas que formaram o Coroado, a prefeitura, na gestão de José Fernandes, que esteve à
frente do Executivo Municipal de 1978 a 1982, decidiu levar a cabo o projeto iniciado por seu
antecessor, Jorge Teixeira (que foi gestor municipal de 1975 a 1978), de viabilizar habitações
para moradores de áreas de risco da cidade. O prefeito José Fernandes, então, desapropriou
terras, abriu ruas e construiu algumas casas de madeira, que foram distribuídas para pessoas
que, antes, habitavam em áreas de risco em diferentes pontos da cidade. Se a intenção era, com
essa intervenção, conter as ocupações irregulares, o que findou por acontecer foi exatamente o
contrário: diversas pessoas que não tinham onde morar migraram para a localidade, expandindo,
de forma desordenada, o novo bairro (BARBOSA, 2017, p. 117-125).
Vale destacar o que diz Barbosa acerca do modo como a expansão do bairro tomou
forma:
Foto 1: acesso à Escola Açaí. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 2: vizinhança. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Das observações do diário de bordo, vale destacar que o poder aquisitivo, embora a
escola se localize em uma região periférica, é relativamente maior que o de outras comunidades
da Zona Leste, notando-se isso, por exemplo, pela quantidade de pais que buscam seus filhos,
no final das aulas, em veículos particulares, sejam eles carros ou motocicletas.
A escola atende apenas ao público de ensino médio nos três turnos, havendo, no turno
noturno, além da oferta regular, a oferta em modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(EJA); é bem cuidada, limpa e tem boa infraestrutura de trabalho para os/as professores/as,
tendo, também, boa área de convivência para os/as estudantes. Conta, em todas as salas de aula,
com projetores, de modo que os/as professores/as podem trabalhar com projeção de slides em
suas aulas. Possui acesso à Internet em todas as dependências, via wi-fi, o que facilita o trabalho
de professores e técnicos. O acesso, contudo, não é disponibilizado aos/às alunos/as, a fim de
evitar, segundo a gestora, contratempos de ordem disciplinar. Há, ainda, sistema de som e
monitoramento de câmeras de segurança em todas as salas. Em conversa com a gestora durante
a imersão no campo, fui informada de que a aquisição e a manutenção desses equipamentos são
viabilizadas por meio de recursos da Associação de Pais e Mestres, os quais são repassados via
67
verba federal diretamente para a escola, seguindo o disposto na Lei n. 11.947, de 16 de junho
de 2009, regulamentada pela Resolução n. 15/FNDE, de 16 de setembro de 2021.
Foto 3: fachada da Escola Açaí. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 4: área de convivência. Registro: Priscila Vasques, 2021.
A escola possui também uma biblioteca equipada e organizada, que costuma ser
utilizada pelos/as alunos/as e, embora não haja bibliotecário lotado para o atendimento, um dos
funcionários administrativos é responsável pelo empréstimo de livros para os/as estudantes. Há,
ainda, um laboratório de informática, que é utilizado pelos/as alunos/as em contraturno, quando
são ofertados cursos por meio de parceria com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas
(CETAM). Além disso, conta com refeitório, onde é servida, diariamente, a merenda escolar.
Para melhor aproveitamento do espaço, a escola possui dois horários, por turno, para o serviço
de merenda.
Foto 5: biblioteca. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 6: refeitório. Registro: Priscila Vasques, 2021.
professor de História junto ao corpo discente. O Museu foi construído coletivamente pela
comunidade escolar e o acervo é de objetos da cultura amazônica, adquiridos pela escola e pelo
próprio professor.
No espaço, são realizadas aulas de História do Amazonas nas quais os/as estudantes
podem, pelo contato com os objetos, melhor compreender a formação da identidade regional.
De acordo com o relato do professor responsável, uma vez por ano, é realizada uma excursão
com os discentes para uma comunidade de um município do interior, em barco regional fretado
para a atividade, para que eles possam vivenciar a experiência amazônida, compreendendo, na
prática, a cultura de nossa terra. Sem dúvida, é um projeto de grande relevância para o
desenvolvimento da subjetividade e do processo identitário daqueles/as jovens, que pode ajudar
a dirimir as dificuldades apontadas por Souza (1977) e Paes Loureiro (1995) acerca da formação
e compreensão do nosso lugar enquanto amazônidas.
Foto 7: Museu da Identidade Amazônica. Foto 8: Museu da Identidade Amazônica: detalhe: canoa.
Registro: Priscila Vasques, 2021. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Foto 9: Museu da Identidade Amazônica: detalhe: monumento. Foto 10: Museu da Identidade Amazônica: detalhe: mobiliário.
Registro: Priscila Vasques, 2021. Registro: Priscila Vasques, 2021.
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Há, ainda, um projeto bastante importante da escola que, desde 2020, por conta da
pandemia, está suspenso: o Aulão de sábado. Numa parceria entre professores/as, gestão e
comunidade, até o ano de 2019, a escola contava com um projeto pré-vestibular gratuito aos
sábados, tendo alcançado bons resultados de aprovação nos vestibulares das universidades
públicas. Existe a intenção, segundo a gestora e os/as próprios/as professores/as, de retomar o
projeto Aulão no início do ano letivo de 2023. É preciso enfatizar, aliás, a força da política de
incentivo do acesso ao ensino superior na comunidade escolar. Docentes e discentes, de fato,
empenham-se em torno disso. Há, inclusive, um mural na área de convivência que, digamos,
coroa essa atividade, no qual ficam afixadas as fotos de egressos da escola que alcançaram a
aprovação nos vestibulares de universidades públicas locais.
Foto 12: Projeto Aulão: aprovados 2019 nas universidades públicas. Registro: Priscila Vasques, 2021.
70
Importante registrar, também, que, nas entradas das salas de aula, a escola afixou
dispensers com álcool em gel, sendo feito abastecimento diário, a fim de manter o alinhamento
com as medidas de sanitização implementadas pela Seduc-AM.
Foto 13: entrada de sala de aula: dispenser com álcool em gel. Registro: Priscila Vasques, 2021.
A escola conta, ainda, com um grêmio estudantil, que mobiliza os/as alunos/as em
torno de questões do cotidiano estudantil, o que, sem dúvida, é um importante instrumento de
desenvolvimento, pois oportuniza espaço de fala e compreensão das questões dos processos
educacional, social, político e cultural.
Quanto ao público, nos turnos matutino e vespertino, este é, predominantemente, de
jovens que se encontram na faixa etária prevista para as séries do ensino médio: entre 15 e 17
anos, sendo a maioria deles apenas estudantes, mas havendo alguns que já atuam no mercado
de trabalho, por conta das necessidades econômicas. No turno noturno, há um público de faixa
etária variada, até pela oferta de EJA. Ressalto que esses são dados que trago das conversas e
da própria vivência no cotidiano durante os meses em que estive acompanhando o professor de
literatura que é docente nesta escola. Destaco, ainda, que o detalhamento de minha imersão no
cotidiano escolar constará da seção 4, quando da apresentação das observações do diário de
bordo.
71
2.4 Contextualizando o campo de tese: o bairro Zumbi dos Palmares e a Escola Buriti
Chegamos à segunda parada, agora no bairro Zumbi dos Palmares. De acordo com
Barbosa (2017, p. 32), o bairro, atualmente, tem por característica principal ser uma zona de
comércio de materiais de construção, madeireiras e variedades. O surgimento do bairro é parte
do fenômeno de expansão territorial da Zona Leste da cidade, tendo ocorrido de maneira
desordenada. Em 1986, o bairro tomou corpo a partir de movimentos de ocupação e isto está
diretamente relacionado ao trabalho das pastorais da Igreja Católica junto aos pobres. Acerca
desse trabalho das pastorais, Barbosa (2017, p. 114-115) destaca as iniciativas da irmã Helena
Augusta Walcott, líder da Pastoral da Terra, que atuou fortemente nas regiões periféricas de
Manaus na luta por moradia. Barbosa pontua que a irmã Helena foi pessoalmente responsável
por iniciativas de ocupação em, pelo menos, 15 localidades na cidade, as quais vieram a se
tornar bairros posteriormente:
Como podemos notar, o surgimento do bairro Zumbi dos Palmares está relacionado à
atuação da irmã Helena à frente da Pastoral da Terra. Barbosa (2017, p. 130) destaca que,
embora irmã Helena costumasse declarar que suas iniciativas de ocupação de terras se davam
apenas em terras da União, do Estado ou do Município, no caso do bairro Zumbi dos Palmares,
as terras ocupadas sob a liderança da religiosa eram de propriedade da congregação salesiana
do Amazonas, que nunca reouve a propriedade, tendo o bairro se consolidado como mais uma
das áreas de expansão da cidade para o setor Leste.
Oliveira (2003) ressalta que a expansão de Manaus, ao mesmo tempo em que ganhava
os contornos da industrialização, por meio da consolidação do Polo Industrial, espraiava a
exclusão social. E Barbosa reforça (2017, p. 169): “O Zumbi dos Palmares é reflexo das
mudanças espaciais e estruturais oriundas do capitalismo que ao mesmo tempo em que exclui
os indivíduos se adequa às suas necessidades”.
Uma questão importante a se destacar no que tange à produção do espaço urbano no
bairro Zumbi dos Palmares e, de modo geral, em toda a zona Leste manauara, é que essa
72
produção se faz, em grande medida, a partir de ocupações irregulares e sob a sombra do Distrito
Industrial. Pela proximidade com o Polo Industrial de Manaus, os bairros da Zona Leste findam
por ter não só a característica da ocupação de terras pela necessidade da moradia, mas também
a da ocupação pela necessidade da moradia próxima ao local de trabalho. Outro ponto a ser
destacado é a idade da maioria dos residentes dos bairros da região, que é de 25 a 29 anos,
população não só economicamente ativa, mas dentro da faixa etária compreendida pelo setor
industrial como capaz de pleno desempenho de funções fabris de base. Estamos falando,
portanto, do chão de fábrica. Essas pessoas cresceram nessas localidades e sob a perspectiva de
virem a se tornar mão de obra do Polo Industrial (BARBOSA, 2017, p. 136; 195).
de indivíduos que, segundo pude presenciar em algumas ocasiões durante o campo de tese,
circulam pelas ruas do bairro com armas nas mãos. Esse acesso, por questões evidentes de
segurança, não pude fotografar, daí ficar aqui apenas o relato. Abaixo, apresento a fachada da
escola e a rua em que ela se localiza (de maior movimento, por conta dos comércios, e larga,
de melhor acesso, como já mencionado).
Fachada rua
Foto 14: fachada da Escola Buriti. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 15: entono. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Foto 16: pátio. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 17: quadra. Registro: Priscila Vasques, 2021.
74
A escola conta com sala de recursos para os/as estudantes, que, em contraturno,
podem, a partir do trabalho de uma pedagoga responsável, receber acompanhamento (são
desenvolvidas atividades específicas com alguns/mas alunos/as com deficiência, os quais são
atendidos/as na oferta regular tanto de ensino fundamental quanto de ensino médio).
Foto 20: sala de recursos. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 21: sala de recursos: interior. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Há, ainda, uma sala que funciona como um miniauditório, em que são realizadas
reuniões com a comunidade. Existe também um laboratório de informática, contudo o mesmo
está desativado, por falta de equipamentos.
sem que fosse utilizada por estudantes e professores/as para sua atividade fim (alguns/mas
professores/as a utilizam para planejar aulas e corrigir trabalhos de alunos/as, durante seus
Horários de Trabalho Pedagógicos – HTPs).
Foto 23: biblioteca. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 24: biblioteca em uso de HTP. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Foto 25: área de higienização contra a Covid-19 compartilhada. Registro: Priscila Vasques, 2021.
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Gostaria de abrir a reflexão final desta seção retomando seu ponto de partida: as
questões dos sentidos e significados e da dialogicidade. Cada sujeito enuncia a partir do modo
como significa e constrói sentido para as coisas e essa construção se dá tanto no campo da
individualidade quanto no campo da coletividade. Estamos, portanto, diante da existência no
contexto sócio-histórico-cultural. Nossos discursos e nossa construção de sentidos e
significados não se dão de modo deslocado da história, fora de nossa comunidade social e nem
sem imersão em uma cultura. Nossa subjetividade, portanto, faz-se nessa interação e é dessa
perspectiva que olho para os sujeitos-professores de literatura que foram acompanhados, nesta
pesquisa, na realidade do chão de escola. O contato com esses sujeitos a partir do lugar em que
eles enunciam, sem dúvida, possibilitou-me olhar para a formação inicial a partir do que
Libâneo (In PIMENTA & GHEDIN, 2006, p. 77) chama de reflexividade comunitária:
Curso de Letras – LP/UFAM e aquela que vem da voz dos sujeitos formados por este Projeto
Pedagógico, que enunciam a partir do chão de escola.
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Interessante registrar, sobre o excerto acima, que a preocupação tão severa com a
norma culta expressada pelo PPC de Letras – LP/UFAM parece não se aplicar a ele mesmo,
dado que o texto não é um primor de coerência, coesão e correção.
Outro ponto que não pode passar despercebido é que, neste trecho, em que o
documento destaca o que “deve saber o graduado em Letras”, não há qualquer menção à
literatura. A preocupação posta é, exclusivamente, com o domínio da norma culta da língua,
que, sabemos, é apenas uma de suas faces, visto que a língua é orgânica e sua multiplicidade é
expressão da própria existência de nosso povo, enquanto diversidade cultural. A literatura é
manifestação de nossa multiculturalidade e simplesmente silenciá-la nesse discurso é, na leitura
que venho construindo neste trabalho, colocar a formação inicial em alinhamento com os
mecanismos de controle do poder vigente, é trabalhar em favor do antidiálogo, portanto.
Em relação aos objetivos do Curso, o PPC apresenta que estes são os seguintes:
processos segregadores no corpo social se expande até os limites da educação e impõe um jogo
político-pedagógico que trabalha para desmontar os avanços do campo educacional em prol da
conscientização e do descondicionamento da subcidadania. É o que parece acontecer no caso
aqui em questão: as enunciações do PPC de Letras alinham essa formação ao jogo político-
pedagógico a que Arroyo faz menção. Para o autor, é urgente a necessidade de os currículos
serem revisitados, na intenção de se subverter as regras desse jogo de condicionamento social
que perpetua a condição de subcidadania (ARROYO, 2013, p. 452-453), o que me parece
bastante pertinente.
Certamente, um currículo da subcidadania é um currículo do antiálogo (FREIRE,
1967; 1996; 2020). A segregação é silenciamento, ela limita a quase nulas as possibilidades da
conscientização, da construção do pensamento crítico-reflexivo. Ao não discutir, de forma
efetiva, a importância do ensino de literatura na formação do/a licenciado/a em Letras e ao
elevar a norma culta ao topo da formação, sendo ela um símbolo tão forte da dominação
hegemônica, o PPC se desalinha da dialogicidade. E um currículo antidialógico forma os
profissionais “sem-lugares” a que Arroyo (2013) se refere.
Passando às disciplinas de estudos literários no PPC de Letras – LP/UFAM, o que
vemos é um perfil que se centra em conceituação e periodização da literatura, sem grande
preocupação em discutir para além disso, o que implicaria olhar para o texto literário em seu
contexto e em suas múltiplas discursividades, a fim de inferir sobre os processos estruturantes
que articulam a cena político-social-cultural que se avizinha à literatura. Isso me parece também
estar em alinhamento com o jogo político-pedagógico ao qual Arroyo (2013) faz menção.
Vejamos como se apresentam as disciplinas obrigatórias da área de estudos literários
do Curso em questão. De acordo com o PPC de Letras – LP/UFAM (2010), as disciplinas de
literatura distribuídas da seguinte forma: a) 1º período: Teoria da Literatura I; b) 2º período:
Teoria da Literatura II; c) 3º período: Teoria da Literatura III; d) 4º período: Literatura Brasileira
I e Literatura Portuguesa I; e) 5º período: Literatura Brasileira II e Literatura Portuguesa II; f)
6º período: Literatura Brasileira III e Literatura Portuguesa III; g) 7º período: Literatura Latina
e Literatura Brasileira IV; h) 8º período: Literatura Amazonense; i) 9º período: Prática
Curricular VII – O Ensino de Literatura.
Falemos, primeiro, das Teorias da Literatura. A primeira delas é Teoria da Literatura
I, cuja ementa é “Introdução ao estudo da arte literária”. No quadro de objetivos, lemos:
Observemos que as disciplinas não são divididas, por exemplo, por agrupamento
temático, o que, na perspectiva dialógica defendida nesta pesquisa, viabilizaria, com mais
propriedade, o debate em torno do texto literário, compreendendo-o como fruto da cultura e das
estruturas que a operacionalizam. Assim, seria possível trazer, para a sala de aula, por meio das
obras de autores que não foram necessariamente contemporâneos temporais, temas do interesse
cotidiano, que possibilitam o reconhecimento de si e do outro no processo social.
Agora, lancemos olhar para as disciplinas Literatura Latina e Literatura Amazonense,
cujas ementas são, respectivamente, “Conceito, periodização. Obras representativas do ‘estilo
clássico’ dos principais autores. Os gêneros e as espécies literárias latinas” (PPC DE LETRAS-
LP/UFAM, 2010, p. 81) e “Estudo dos principais períodos da literatura que se realizou no
Amazonas, das origens ao Clube da Madrugada” (PPC DE LETRAS-LP/UFAM, 2010, p. 89),
nas quais, mais uma vez, vemos a periodização norteando o trabalho a ser desenvolvido. Se, em
Literatura Latina, seria possível debater as questões fundantes da nossa compreensão de
processo social, em Literatura Amazonense, seria possível discutir a questão amazônica e o
texto literário como força de expressão de nossa cultura, mas não é esse o caminho proposto.
Por fim, há a disciplina Prática Curricular VII – O Ensino de Literatura, cuja ementa é
“O ensino das literaturas brasileira e portuguesa no ensino médio. Métodos e técnicas. Teorias
linguísticas aplicadas ao ensino de literatura” (PPC DE LETRAS-LP/UFAM, 2010, p. 95).
Aqui, há dois problemas claros.
O primeiro problema é o fato de haver uma disciplina específica para discutir o ensino
de literatura, o que, da perspectiva que aqui apresento, em se tratando de uma formação inicial
docente, deveria ser pontuado em todas as disciplinas de estudos literários, por meio de debates
temáticos, que olhassem para o texto literário fora da “caixinha” da periodização (há o trabalho
88
com os conceitos, claro, mas a periodização finda por ser o grande norte de todas as disciplinas
de estudos literários, o que me parece algo que precisa ser revisto), relacionando-o com uma
compreensão bem mais ampla e complexa do próprio existir em um lugar da cultura que é,
acima de tudo, lugar de poder e de regulação e segregação. Sendo essa uma formação inicial
docente, é preciso pautar o trabalho que se desenvolve em suas disciplinas na didática, ou seja,
é importante que haja a preocupação do/a professor/a de ensinar de que modo é viável trabalhar,
na educação básica, com determinado conteúdo, usando a teoria como base. Além dos debates
temáticos que mencionei acima, é possível solicitar, por exemplo, numa aula de Teoria da
Literatura III, que os/as futuros/as docentes desenvolvam, após uma discussão em torno da
crítica literária, sequências didáticas que interliguem a base teórica discutida, uma obra literária
e o contexto, em linguagem e nível acessíveis para a educação básica. Esse tipo de movimento
oportuniza o desenvolvimento do pensamento crítico e viabiliza a reflexão na ação e não pode
ser feito apenas em uma disciplina; deve, antes, ser comum em todo o percurso da literatura na
formação.
O segundo problema é a proposta de aplicar teorias linguísticas ao ensino de literatura,
o que, no entendimento que aqui construo, nada tem a somar num debate que deveria se centrar
em discutir a abordagem do texto literário no contexto da sala de aula. Vale destacar, no que se
relaciona à aplicação das teorias linguísticas ao texto literário, que o que se finda por observar,
na prática das salas de aula da educação básica, é o texto literário tornar-se simples pano de
fundo para as aulas de gramática, numa distorção de seu objetivo maior, que é formar para a
reflexão-ação, uma vez que o ensino de literatura deve buscar exercitar sua face humanizadora.
O grande ponto me parece ser, afinal, o da ausência de um debate, de uma tomada de
posição acerca da questão do currículo. Não parece estar claro, para o Curso, que esta é uma
formação docente e, quando digo que não parece estar claro, refiro-me ao fato de não se lançar,
com organicidade, um olhar pedagógico para a formação. Ainda há (e este é um problema
antigo, talvez de todas as licenciaturas) uma distinção entre as “disciplinas curriculares”, por
assim dizer, e as “disciplinas pedagógicas”, como se não fossem, todas as disciplinas, parte de
um mesmo currículo formador. Quando falo em “disciplinas curriculares”, refiro-me àquelas
ligadas à teoria e, quando menciono “disciplinas pedagógicas”, falo daquelas que se associam
à prática.
Pérez Gómez (In NÓVOA, 1997), discutindo a questão da formação a partir da
racionalidade técnica, aponta que essa, pautada no positivismo, vê a atividade profissional
como essencialmente instrumental, na qual o enfrentamento dos problemas concretos se faz a
partir da aplicação de rigorosos conceitos e procedimentos técnico-científicos. Segundo o autor,
89
a formação docente fundamentada na racionalidade técnica é aquela que estabelece esse tipo de
distinção que notamos se desenhar como basilar no Curso de Letras – LP/UFAM. Pelos
princípios da racionalidade técnica, ganha corpo uma hierarquização dos conteúdos da
formação e, dessa forma, faz-se a distinção entre as disciplinas ligadas à prática e as que se
ligam à teoria, sendo o espaço da prática, quase sempre, além de reduzido, um espaço de ação
pela ação, ao invés de ser um espaço de ação reflexiva, de dialogicidade.
Pérez Gómez (In NÓVOA, 1997, p. 108-110) defende, então, que a formação docente
busque não a distinção entre teoria e prática e sim a construção de sentidos que viabilizem a
práxis docente, na qual a prática, longe de ser um lugar de ação pela ação, é o espaço da ação
transformadora, que se constrói pela aplicação reflexiva da teoria, pela ressignificação dela a
partir dos desafios concretos da realidade.
Parece se aclarar, portanto, que a dissociação entre teoria e prática finda por não
contribuir para o exercício de uma futura docência que se paute pela reflexão na ação. Sair da
licenciatura com uma grande carga de conhecimento teórico, mas sem saber traduzir esse
conhecimento em aulas de literatura que estabeleçam conexão com os/as estudantes do chão de
escola, entendendo que a realidade é uma construção cultural, social e histórica, é antidialógico
e se coloca na contramão da construção de uma práxis transformadora.
É importante destacar também que, pelas diretrizes do PPC de Letras – LP/UFAM,
perde-se a oportunidade de trabalhar a literatura em sua instância educacional nas disciplinas
curriculares, especialmente nas Teorias da Literatura. A meu ver, nas Teorias, tanto quanto na
Prática Curricular VII, poderia se operacionalizar a discussão acerca dos caminhos do ensino
de literatura nas escolas, afinal, o conhecimento teórico adquirido na formação inicial deveria
90
servir, como pontuei há pouco, para melhor percorrer, na posterior prática docente, os caminhos
do ensinar.
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima
de três anos, terá como finalidades: I – a consolidação e o aprofundamento dos
conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o
prosseguimento de estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a
cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se
adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico; IV – a compreensão dos fundamentos científico-
tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática,
no ensino de cada disciplina (LDB, 2017, p. 24-25).
Evidencia-se, pelo texto da Lei, que o trabalho a ser desenvolvido ao longo das três
séries da etapa seja capaz de promover “o aprimoramento do educando como pessoa humana”,
com desenvolvimento de sua autonomia intelectual e do pensamento crítico, o que, pressupõe,
da perspectiva apresentada neste trabalho, uma articulação currículo-cultura, na qual haja o
vozeamento dos sujeitos no espaço escolar.
Nos incisos I e II do Parágrafo Único do Art. 36, a LBD (2017, p. 42) aponta que a
formação do profissional da educação deve se ater a uma base sólida, que propicie
conhecimento tanto dos fundamentos científicos quanto sociais de suas competências de
trabalho, com associação entre teorias e práticas. Mais uma vez se apresenta como necessária a
articulação currículo-cultura, o que enfatiza a necessidade de se trabalhar as chamadas
“disciplinas curriculares” em conjunto com as “disciplinas pedagógicas”, pois é nessa
associação que se viabiliza a base sólida da formação inicial.
O que as enunciações da LDB parecem desenhar é a necessidade de uma formação
inicial conduzida em perspectiva dialógica, complexa, que considera as multiplicidades do
processo sócio-histórico-cultural. Para que o/a professor/a possa encaminhar seus/suas
alunos/as à cidadania, essa formação se faz necessária e, no caso específico da literatura, isso
significa conduzir a formação inicial de uma perspectiva humanizadora (CANDIDO, 2011).
Entretanto, se retomarmos as questões do currículo já discutidas neste trabalho, observaremos
91
que, embora a Lei enuncie desse modo, na prática, o que vemos é a contramão desse discurso,
havendo, nos currículos, tanto da educação básica quanto da formação inicial, uma série de
atravessamentos que dificultam o alcance dessa perspectiva de formação cidadã.
Vejamos, agora, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN),
homologadas pela Resolução n. 4, de 13 de julho de 2010, do Conselho Nacional de Educação
– Câmara da Educação Básica, aprovada pelo Parecer CNE/CEB n.7/2010:
3
Durante o processo de construção do documento que se tornou a Base, o MEC assumiu o compromisso de realizar
rodadas de audiências públicas pelo país, para coletar sugestões ao texto. No entanto, o que, de fato, ocorreu foram
audiências que não viabilizaram uma discussão dialógica do texto, uma vez que a maior parte das sugestões
apresentadas pelos/as professores/as em todo país não foram consideradas para o texto final.
92
Já de início, podemos notar que o discurso da Base é de que haja um trabalho integrado,
que interliga diferentes modais midiáticos. Mais uma vez, contudo, vale chamar ao discurso a
realidade prática: se o documento enuncia uma integração, um trabalho para a construção de
uma consciência social nos estudantes, isso vem sendo oportunizado? Precisamos lembrar que,
na realidade do chão de escola, a partir das estruturas dos sistemas de ensino públicos, o acesso
de professores/as e alunos/as a ferramentas necessárias a esse formar complexo quase nunca se
dá com facilidade. Nos diálogos que construí na vivência da prática com os sujeitos da pesquisa,
o que pude perceber é que a formação inicial pautada numa visão estruturalista e a falta de
materiais didáticos complementares, para além do livro didático, dificulta o desenvolvimento
desse trabalho integrado.
Vejamos agora o que o documento diz sobre a literatura.
Em seguida, a BNCC traz a literatura como um dos campos de atuação do/a estudante,
o campo artístico-literário. O documento aponta que, neste campo, os/as estudantes devem
ampliar seu repertório de leituras, sendo capazes de selecionar obras que constroem sentido
para si e apreendendo as diversas camadas de significação que os textos contêm,
compreendendo, portanto, os discursos no plano central e nas subjacências. Indica-se também
que o trabalho com os textos literários se preocupe com a contextualização histórica,
enfatizando produção, circulação e recepção das obras, bem como a contribuição destas para a
manutenção ou a ruptura com a tradição. O que se espera dos/as estudantes é que estes sejam
capazes de fruir os textos literários, identificando, portanto, o papel crítico das obras cultural e
politicamente e sugere-se que, para tal, eles participem não apenas das aulas em sala de aula,
mas também de projetos e eventos que viabilizem a discussão coletiva do texto literário e
oportunizem a construção estética por meio de produções artísticas individuais e coletivas
dos/as estudantes (BNCC, 2018, p. 523-524).
Certamente a proposta se vende como algo pautado numa leitura da realidade.
Entretanto, é preciso refletir acerca de algumas questões. A primeira delas é o Novo Ensino
Médio, regulamentado pela Lei n. 13.415/2017. A proposta, que alterou a LDB, define uma
nova organização curricular, permanecendo como obrigatórias, no ensino médio, apenas as
disciplinas Língua Portuguesa e Matemática, nas três séries, e se estabelecendo uma
flexibilização dos demais conteúdos, por meio de itinerários formativos, à escolha dos/as
estudantes. Ganham protagonismo os projetos e afins e há ênfase na formação profissional. O
grande norteador é a própria Base, que encaminha a flexibilização e integração dos conteúdos.
No site do MEC, na aba “Novo Ensino Médio – perguntas e respostas”, consultada em 02 de
março de 2022, lê-se o seguinte no trecho final da resposta à pergunta “O que é o Novo Ensino
Médio?”:
detrimento do acesso ao ensino superior, que, para a maioria dos brasileiros, era uma realidade
distante. O que vemos, agora, é, portanto, um retorno dessa política de incentivo da formação
imediata para suprir as demandas mais basilares do mercado de trabalho. Sabemos que a mão-
de-obra médio-técnica é mais barata e de acesso mais rápido, logo o incentivo do discurso
oficial a esse tipo de formação, da leitura que empreendemos aqui, intenciona a manutenção do
status quo de subalternização.
Para reforçar esse entendimento sobre o Novo Ensino Médio, destaco a seguinte fala
de Silva & Tavares (2019, p. 101-102):
Nas diretrizes do Novo Ensino Médio, organizadas a partir do discurso bem articulado
da BNCC, no que tange à literatura, é preciso observar com bastante cautela o seguinte: uma
vez que ela é parte do componente Língua Portuguesa e, por isso, deve deixar de aparecer como
uma disciplina específica, muitos/as professores/as, até por falta de preparação adequada na
formação inicial, podem vir a tomar o texto literário apenas como pretexto para as discussões
da textualidade, usando-o como simples pano de fundo para o ensino de gramática e para a
prática textual, ponto de preocupação que já destaquei anteriormente neste trabalho. Da
perspectiva que empreendo, essa questão parece tornar a evidenciar a importância de a
formação inicial se posicionar com clareza acerca do ensino de literatura. Posturas como a do
PPC de Letras – LP/UFAM, portanto, findam por pouco contribuírem para o impedimento de
apagamentos como este que se anuncia.
O Novo Ensino Médio está sendo implementando a partir do ano corrente de 2022,
para os discentes da 1ª série e sua total implementação será, obviamente, progressiva. Logo, o
trabalho com 2ª e 3ª séries, neste ano, permanece como realizado nos anos anteriores. Para os
sujeitos-professores de literatura acompanhados nesta pesquisa, não houve, ainda, a adequação
à nova diretriz, dado que nenhum deles trabalha com a 1ª série neste ano letivo. Vem, então, a
segunda questão a ser discutida aqui no que tange ao trabalho com a literatura a partir da BNCC:
nas aulas tradicionais de literatura, com tempos de aula dedicados exclusivamente para os
conteúdos literários, como tratar dela em transversalidade e multiculturalidade se há, por parte
de gestores e do próprio sistema de ensino, cobrança em relação à aprovação nos vestibulares
e bom desempenho nas avaliações do sistema? Esse é um questionamento que ouvi
96
Nesta subseção, a análise aqui empreendida avança para o vozeamento dos sujeitos-
professores de literatura acompanhados nesta pesquisa, a fim de depreender, de suas falas, as
construções de sentido que suscitam acerca da formação inicial em interface com a docência.
Assim, o procedimento apresentado, neste ponto, é o das entrevistas individuais narrativas,
realizadas nos dias 27 e 30 de setembro de 2021, no início do trabalho de campo, com gravação
via aplicativo de celular, em encontros presenciais nas escolas do campo de tese, com duração
média de 47min07seg (43min30seg a entrevista com o Docente da Escola Açaí e 52min25seg
a entrevista com a Docente da Escola Buriti). Para proceder às entrevistas, foram respeitados
os protocolos de proteção contra a Covid-19 estabelecidos pela Seduc-AM vigentes na ocasião.
Quando da realização, os dois professores já haviam assinado o TCLE, visto que tinham
manifestado interesse em serem acompanhados longitudinalmente no transcurso da pesquisa.
A escolha da entrevista narrativa alinha-se aos vieses dialógico e histórico-cultural que
norteiam esta pesquisa, pois a entrevista narrativa viabiliza uma compreensão tanto do que é
subjetivo para o entrevistado quanto do que é cultural, que se instaura na sua compreensão de
coletividade (DUARTE, 2004). Buscou-se realizá-las no campo de tese, a fim de coletar os
dados em ambiente orgânico para os sujeitos. Por meio das enunciações construídas pelos
sujeitos, foi possível perceber de que forma eles dialogam com a formação inicial e, ainda,
como situam essa formação em seu existir enquanto sujeitos-professores que atuam na periferia
da cidade.
A análise que apresento a seguir se orienta pela perspectiva dialógica da pedagogia
freiriana e é dividida em duas etapas. Na primeira, apresentam-se, à luz de Vygotsky (1991;
2000; 2001; 2004), as categorias de sentido que emergiram nas enunciações de cada um dos
sujeitos, privilegiando-se, na transcrição de trechos, as falas que se mostraram mais relevantes
para a construção dessas categorias. Na segunda, expõem-se, a partir de Bakhtin (2002), em
sistematização imagética, as aproximações entre as categorias de sentido suscitadas pelos
sujeitos.
A pergunta disparadora que funcionou como tópico inicial para a narração, em cada
entrevista, foi: “Como você vê a trajetória da sua formação inicial no Curso de Letras –
LP/UFAM em relação à sua prática docente enquanto professor de literatura?”
98
As menções aos sujeitos da pesquisa, deste ponto em diante, são feitas a partir de
nomenclatura poética. Docente Embaúba e Docente Sumaúma4 nomeiam, respectivamente, os
sujeitos-professores da Escola Açaí e da Escola Buriti.
Na primeira entrevista, feita com o Docente Embaúba, da Escola Açaí, emergiram 4
categorias de sentido, que são: 1) relação inicial com a literatura; 2) dificuldades no trânsito
teórico-prático nas disciplinas de literatura; 3) formação na prática; 4) distanciamento entre
formação inicial e docência.
Na categoria 1, o Docente Embaúba falou sobre sua relação com a literatura, antes de
ingressar na licenciatura, não ter sido construída de modo positivo, de forma que, durante sua
trajetória no ensino médio, ele desenvolveu maior habilidade nos estudos da linguagem. Isso
foi, de tal modo, significativo para ele que o fez escolher o Curso de Letras com a intenção de
aprimorar seus conhecimentos linguísticos. Faço uma observação neste ponto: em minha
experiência docente no Curso de Letras – LP/UFAM, nas turmas em que ministrei a disciplina
Teoria da Literatura I, que, como já apontado no texto, é uma disciplina de 1º período, sempre
que, em roda de conversa, no início do período, eu perguntava aos/às alunos/as o que os havia
motivado a escolher o Curso, grande parte respondia que era ampliar os conhecimentos
gramaticais para alcançar aprovação em concursos públicos. O que me parece, ouvindo o relato
do Docente Embaúba e rememorando as falas de meus/minhas alunos/as, é que se tem, no
imaginário coletivo, uma definição do Curso de Letras como guardião (e exclusivamente isso)
da gramática normativa. A reflexão que fica sobre essa questão gira em torno do que motiva a
construção dessa imagem. Certamente isso se relaciona com o modo como, na educação básica,
é conduzido o trabalho com o componente Língua Portuguesa e, especialmente, como é
conduzido o trabalho com a sua vertente literária.
Sobre essa questão, o Docente Embaúba disse:
Então, na realidade, logo no primeiro momento, a minha ideia não era, a minha
pretensão não era me formar docente. Na verdade, eu fiz o Curso de Letras
apenas para tentar aperfeiçoar as minhas habilidades e competências
linguísticas. [...] [...] a minha experiência com literatura, pelo menos no ensino
médio, ela não foi tão boa, isso porque eu sempre tive mais afinidade com os
estudos linguísticos. Então, eu criei essa afinidade no ensino médio e só
aperfeiçoei, só desenvolvi mais esse gosto, né, pela linguística assim que eu
4
O uso da nomenclatura poética tem a finalidade de manter o sigilo sobre as identidades dos sujeitos. Seguindo
um viés regional, como o adotado na nomenclatura das escolas, optei por nomes de árvores da Amazônia para
designar os sujeitos-professores. Segundo Chevalier & Gheerbrant (2002, p. 84), a árvore é um símbolo da vida
em perpétua evolução e regeneração, o que, metaforicamente, eu aproximo do professorar, sempre em movimento
de ressignificação.
99
[...] na prática em literatura que nós tivemos, eu acho que... parece... parece
que a gente... nessa prática, a gente atuou em uma escola, a gente desenvolveu
algum projeto e foi uma experiência muito boa. Assim, se a gente pensar, as
práticas, elas aconteceram logo nos últimos períodos. Então, nos últimos
períodos, a gente já firmava ali alguma... alguma decisão, né, de se tornar ou
não professor e... e já afirmava também o gosto por um desses... desses dois
lados e... O problema, a crítica que eu devo... que eu devo fazer em relação a
isso tudo é que faltou muito, né, a articulação entre teoria e prática durante
toda a graduação, porque sempre nos enchiam com teorias e teorias e mais
100
teorias e esqueciam daquilo que nos interessava mais, que era como trabalhar
uma abordagem... é... literária, né, pensando na realidade da escola pública,
do ensino público, do ensino básico, né, público. E isso, pra mim, é... pode ser
levado em consideração, né, pensando assim nas dificuldades que eu tive na
minha formação.
Um outro ponto específico que eu posso mencionar aqui, né, que contribuiu
muito durante a minha trajetória, né, e até mesmo minha formação no Curso
de Letras foi o projeto de extensão do Pibid. Eu acho que eu vi no projeto, eu
vi no Pibid a oportunidade de me aproximar mais da realidade da escola,
acompanhar o trabalho direto com o professor em sala de aula, entender qual
abordagem ele trabalhava, né, a forma como ele desenvolvia o trabalho da
literatura e até mesmo outros segmentos e eu tive a chance, portanto, antes de
iniciar o período de estágio supervisionado, né, de...é... me aproximar da
realidade da escola. Isso também facilitou muito...é... me ajudou muito na
minha formação.
O que podemos inferir da fala do Docente Embaúba neste excerto é que, mesmo em
nível de formação inicial, para ele, um aprendizado mais completo se deu nas experiências de
prática, especialmente na do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid)
– criado pelo Decreto n. 7. 219/2010 e regulamentado pela Portaria 096/2013 - MEC/CAPES –
no qual ele vivenciou a necessidade de saber traduzir em linguagem e ações do cotidiano o
saber teórico. Isso nos aponta que estamos diante da questão colocada por Nóvoa (2022), que
discutiremos na última subseção: a necessidade de se trabalhar a aproximação entre a
universidade e a educação básica é real e projetos como o Pibid, a Residência Pedagógica e
tantos outros de extensão possíveis são um importante caminho a trilhar para se alcançar uma
formação crítico-reflexiva.
Passando, por fim, à categoria 4, notamos a preocupação e a crítica do Docente
Embaúba ao distanciamento entre a formação inicial e a docência, o que em sua enunciação,
traduz-se na própria dificuldade encontrada por ele ao se deparar com a sala de aula. Ele
menciona, ainda, que, na estrutura da rede pública de ensino, perpetua-se um olhar tradicional
101
para a literatura, o que leva a crer que, num primeiro momento, o tipo de abordagem da literatura
que o docente encontrou sendo realizada no chão de escola era aos moldes da
periodização/conceituação, que já discutimos nesta seção.
Apesar das dificuldades vivenciadas na formação inicial, o Docente Embaúba
demonstra preocupação em ressignificar a si mesmo, tentando viabilizar para seus/suas
alunos/as uma experiência diferente da que ele próprio teve na trajetória do ensino médio (e eu
pude constatar, no campo de tese, esse esforço).
Nas falas da Docente Sumaúma elencadas acima, sob o abrigo da categoria 1, é preciso
pontuar acerca de alguns aspectos. O primeiro deles é a dificuldade de apreensão dos conteúdos
estudados nas aulas dos estudos literários, uma vez que, segundo a docente, cada professor/a
trabalhava de um modo distinto; isso parece ter sido o ponto de maior incômodo para ela, tendo
dificultado sempre o seu entendimento dos estudos literários.
103
Foi horrível! Professor XXX, ele exigia um nível de leitura bem alto; eu
conseguia realizar, mas eu me sentia muito insegura, porque ele é uma pessoa
intimidadora, então...é... tudo que eu falava parecia errado ou eu me sentia
errada, porque parecia que não era bom o suficiente. E eu não tenho problema
de não ser boa o suficiente, mas o problema é que ele deixava a gente
desconsertado em público.
[...]
Até hoje eu lembro dele rindo da minha cara porque eu não entendi o livro de
José Saramago lá; eu nem lembro, é plataforma, continente, não sei, uma coisa
assim. Eu lembro que ele lia em francês na sala e falava que era uma vergonha
a gente não dominar línguas estrangeiras. Cara, eu odiava! A aula toda ele
dando em francês e a gente não entendia nada e eu falava: meu Deus, o quanto
eu sou burra e desprivilegiada! Aí eu ficava assim: meu Deus, que que eu tô
fazendo aqui? Toda aula do professor XXX [...], eu tinha vontade, sei lá, de
desistir do Curso de Letras, porque era tão inacessível pra minha realidade
aquele conteúdo que, cara, nem quem gostava de literatura gostava daquela
aula, de verdade.
Essas falas da Docente Sumaúma são bastante impactantes. Elas demonstram o quanto
o distanciamento, a postura academicista (e até arrogante) são outro ponto de dificuldade que
se desenha na formação inicial. A falta de um ambiente de diálogo e a postura que imprime
no/a aluno/a a aceitação da sua condição subalterna (destaco, aqui, o trecho em que ela se diz
burra e desprivilegiada por não saber ler francês, o que o professor mencionado considerava
inaceitável para um estudante de graduação), certamente não contribui com a perspectiva de
formação crítico-reflexiva que defendo nesta pesquisa. Cândido (2011, p. 177) diz: “A literatura
confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas”. A literatura é, então, expressão do próprio existir e trabalhá-la
104
fora dessa perspectiva é se colocar na contramão dela mesma. Formar fora dos muros da
subcidadania, para retomar Arroyo (2013), só se viabiliza, portanto, na contramão desse
distanciamento.
Indo à categoria 3, notamos que a docente aponta para a importância da preocupação
com a face pedagógica da formação inicial, dando ênfase ao lidar didático com a literatura,
muitas vezes ausente nas aulas da graduação.
Eu lembro que eu gostava muito mais de ouvir meu colega de sala, chamado
XXX, explicando as coisas do que o professor, porque era o mesmo conteúdo
[...], mas ele explicava de uma maneira mais didática, ele demonstrava aquele
conteúdo de uma maneira mais ilustrativa, então aquilo ali se tornava algo
mais concreto pra mim, porque eu precisava ver a aplicabilidade daquilo, eu
preciso ver aquilo ilustrado pra eu enraizar o conceito. E, às vezes, o professor
só falava do conceito, mas não explicava aonde esse conceito se aplicava ou
em que parte do texto eu poderia ver aquilo. E o XXX já fazia isso. Então eu
já conseguia entender mais.
[...]
Então, assim, da minha formação na UFAM, professora XXX, professor XXX
e professora XXX foram realmente os professores que tiveram didática pra
ensinar, no sentido de explicar conceitos prévios, de distribuir o material, de
pegar na mão desse professor em formação e dizer: olha, você precisa saber
esses conceitos, você precisa saber explicar esses conceitos, você precisa fazer
com que o aluno enxergue esses conceitos em tais textos.
Olhemos o relato da Docente Sumaúma sobre buscar apoio com um colega de turma
para estudar literatura porque considerava o modo como o colega dialogava com ela mais
produtivo para a sua compreensão do que as aulas do professor de uma determinada disciplina.
O que observamos, nesse ponto, e considerando também o que foi apresentado na categoria
anterior, é que, na ausência de diálogo na sala de aula e diante da incompreensão dos conteúdos,
muitas vezes a única forma de viabilizar a formação, para os/as estudantes, é recorrer a uma
rede de apoio entre si.
Na sequência, ela elenca três professores que considera terem contribuído, de maneira
efetiva, para sua formação docente, destacando que estes tiveram, em suas aulas, a preocupação
didática. O interessante aqui é refletirmos sobre o fato de haver um grupo pequeno que destoa
do restante do relato dela, o que demonstra que, apesar da ausência de discussão coletiva em
torno da face pedagógica da formação, sempre há alguma ruptura possível e essa se faz pela
mão de professores como os que a docente menciona, que, mesmo sem um PPC adequado e
sem um norteamento colegiado das questões didáticas da formação, fazem-se voz de dissenso
e encaminham seus trabalhos na direção da cidadania, do vozeamento, da reflexão crítica. O
105
educar literário que defendo ao longo deste trabalho é um educar poético, que encaminha ao
desvelamento (FERNANDES, 2017). Petit (2009, p. 30) aponta que:
[...] eu entendia o seguinte: que a universidade tinha que me formar pra eu ser
uma boa profissional. Mas o que eu entendi? Eu entendi que pessoas como eu
não são bem vistas, porque a universidade não quer formar professores,
querem formar possíveis mestrandos, possíveis desenvolvedores de teorias, de
análise, de produção textual, de produção de artigos e tudo mais.
[...]
A Universidade Federal do Amazonas não me preparou pra dar aula de
literatura. Três professores, durante a minha formação, me explicaram
conceitos que eu poderia aplicar em sala de aula.[...] eu senti que o Curso de
106
Letras não me preparou pra minha realidade em sala de aula. Quando é que eu
percebi isso? Quando eu tava na sala de aula.
[...]
[...] quando eu fui pro ensino médio, na Seduc, numa escola de periferia, eu
trouxe, da literatura, as aulas da professora XXX e do professor XXX,
principalmente deles, porque aquilo que eles me explicaram na universidade,
foi possível de ser aplicado, os conteúdos serem aplicados naquela realidade
de sala de aula. Então, eu comecei a fazer conexões, como a professora XXX
ensinava. A professora XXX, ela sempre ensinou assim: pra você dar aula de
literatura, [...] você tem que fazer conexões visuais. Então, como ela foi
professora do Colégio Militar muitos anos, ela dizia o seguinte: que a gente
tinha que criar estratégias pra que o aluno entendesse o conteúdo e, quando
ele entendesse, ele iria fazer essas conexões entre o conteúdo e as coisas que
ele tava lendo ou vendo. Então, eu tentei reproduzir em sala o que ela fazia
nas aulas. Eu não criei um método meu, eu tentei me espelhar em situações
que os professores apresentavam pra poder explicar conteúdos, mas, mesmo
assim, eu não me sinto uma professora de literatura preparada pra dar aula de
literatura só com a minha formação. Eu preciso estudar, eu preciso preparar a
aula, eu preciso, às vezes, assistir a videoaulas pra eu me sentir
suficientemente preparada pra explanar conteúdo pros meus alunos. Eu [...]
não gosto de dar aula de literatura. Eu tenho dificuldade de entender o
conteúdo e repassá-lo. [...] Eu sinto necessidade de uma formação continuada
na área da literatura, pra que eu me sinta apta, ou plenamente apta a lecionar.
Então é uma coisa que, se eu tivesse oportunidade, eu faria. Algum curso,
alguma coisa que pudesse contribuir pra minha formação porque eu sinto
necessidade de rever conteúdos ou reaprender aquilo que eu posso ter
esquecido ou não ter aprendido com plenitude pra me tornar uma professora
de língua portuguesa e literatura melhor. É isso.
que essa fala foi recorrente no acompanhamento cotidiano desta docente e também no
acompanhamento do Docente Embaúba e, ainda, nas conversas com os/as outros/as
professores/as de literatura das escolas que são campo da pesquisa. Isso, sem dúvida, reforçou
meu desejo prévio de contribuir na prática e ouvir suas necessidades e dificuldades e, durante
o trabalho de campo, ajudou-me a planejar os diálogos formativos, que abordarei na seção
seguinte.
Fechando esta primeira etapa da análise, lembremos o que nos ensina a pedagogia
dialógica freiriana. Freire diz que “[...] os homens são seres da práxis. São seres do quefazer”
(2020, p. 167, itálico meu). Sobre o quefazer, Freire destaca que essa categoria se faz na ação
e na reflexão, sendo, portanto, práxis. Para alcançarem um caminho de revolução, de mudança
no corpo social, homens e mulheres precisam, então, ser pessoas do quefazer e não apenas do
fazer puro. É assim, para Freire (2020, p. 168-169), que se estabelece uma práxis
revolucionária, na qual não cabem “[...] a sloganização, o depósito, a condução e a prescrição”
justamente por serem estes mecanismos da dominação.
Desse modo, observamos que, na perspectiva freiriana, o caminho da dominação é
trilhado pela negação da palavra, ou seja, pelo engendramento do poder vigente para distanciar
a classe trabalhadora do desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo. Ora, esse
desenvolvimento crítico-reflexivo se dá, em grande medida, pela via da educação, mas não a
educação bancária e sim a educação para a liberdade; a criticidade reflexiva se constrói, dessa
feita, em contraposição ao antidiálogo, pela dialogicidade que encaminha à revolução.
Sem dúvida, o caminho da literatura, nesta perspectiva, é um caminho de liberdade, de
ação contra-hegemônica. O trabalho, em sala de aula, com o texto literário, então, deve ser
aquele que, pelo vozeamento, pelo diálogo, viabiliza as ações dos sujeitos do processo
educacional – estudantes e professores/as. Tomando para a educação a fala de Freire acerca da
necessidade de se estabelecer uma práxis revolucionária, na qual não cabem os slogans, o
depósito, a condução e a prescrição, o caminho que se desenha é o da fissura nas estruturas do
sistema. Nas aulas de literatura, isso se oportuniza na reflexão sobre o contexto a partir do texto
literário, estabelecendo diálogo entre os sujeitos, o texto e a própria realidade. Viabilizar isso
é, portanto, ensinar a literatura humana, que se põe além da simples periodização/conceituação.
Refletir acerca dessa prática do ensino de literatura se faz, então, uma necessidade do chão de
escola, dado que “Não há história sem homens, como não há uma história para os homens, mas
uma história de homens que, feita por eles, também os faz” (FREIRE, 2020, p. 175).
Freire (1979) aponta ainda que o compromisso que assumimos profissionalmente é,
acima de tudo, um compromisso social, da nossa própria condição enquanto sujeitos. Assim,
108
Se de seu compromisso como homem [...] não pode fugir, fora deste
compromisso verdadeiro com o mundo e com os homens, que é solidariedade
com eles para a incessante procura da humanização, seu compromisso
profissional, além de tudo isto, é uma dívida que assumiu ao fazer-se
profissional [...] Quanto mais me capacito como profissional, quanto mais
sistematizo minhas experiências, quanto mais me utilizo do patrimônio
cultural, que é patrimônio de todos e ao qual todos devem servir, mais aumenta
minha responsabilidade com os homens (FREIRE, 1979, p. 9-10).
como ponto crucial para as dificuldades enfrentadas durante a formação inicial. Freire (1997,
p. 60) diz que:
Fica evidente, portanto, que o educar poético, aquele que se conduz pelo diálogo e para
o desvelamento é um educar político e social, pautado na reflexão crítica. A ausência de uma
compreensão da formação inicial alinhada a isso traduz-se em experiências como as relatadas
pelos sujeitos nas entrevistas. Assim, parece se fazer claramente necessária uma compreensão
da formação inicial que a entenda não apenas como instância teórica, mas também – e
fundamentalmente – como instância da prática. conforme discuto a seguir.
Nóvoa indica uma proposta de espaço físico mesmo, algo aos moldes de colégios de
aplicação provavelmente, no entanto, penso ser possível viabilizar também outras alternativas
igualmente integrativas, como um maior protagonismo de projetos de extensão da universidade
que pudessem oportunizar o trabalho conjunto dos atores da formação inicial e da docência.
Nesse tipo de modelo viabiliza-se uma formação na perspectiva da epistemologia da
práxis, dado que a triangulação professor/formação inicial/sistemas de ensino se estabelece. Na
próxima seção, como já colocado, será ampliada essa discussão e serão também apresentados
resultados desta pesquisa que se colocam em aproximação. É preciso enfatizar, contudo, que a
aproximação realizada se viabilizou no âmbito da própria pesquisa e não como um movimento
do CLLP enquanto colegiado ou da rede pública de ensino. É claro, entretanto, que, para
realizar, no campo de tese, ações que consideram tanto o saber da formação inicial quanto o
saber profissional dos sujeitos-professores de literatura acompanhados nesta pesquisa foi
necessário contar com o apoio de peças dentro desses dois sistemas (CLLP/Seduc-AM).
114
Foto 26: gincana literária. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 27: gincana literária: participação de aluna. Registro: Priscila
Vasques, 2021.
Nas turmas de 2ª série, a participação dos/as estudantes não era ampla. Notei, em
diversas aulas, que muitas equipes não realizavam as leituras semanais, daí não participarem
das aulas como se esperava. O professor insistia sempre na importância de participação,
reforçava que aquele era também um processo avaliativo, mas, mesmo assim, a participação
não aumentava.
Já nas turmas de 3ª série, a adesão era bem mais efetiva; poucas equipes tinham baixa
participação na atividade. Muitas vezes, havia até alvoroço na hora de ir à frente responder,
pois várias equipes tinham certeza de saber as respostas.
117
Essa nos parece ser uma boa interpretação e aplicação empírica da afirmação
de Vygotsky (1974, p. 307), segundo a qual “eficaz é somente o ensino que
precede o desenvolvimento” [...] a característica da instrução é constituir uma
zona de desenvolvimento iminente, isto é, de incitar à vida, de despertar e
movimentar, na criança, toda uma série de processos interiores de
desenvolvimento que são, naquele momento, possíveis para ela somente no
âmbito da comunicação com o adulto e na colaboração com os colegas.
Tomando essa compreensão dada por Pontecorvo, à luz de Vygotsky, a fim de ampliar
a interação com os alunos e, desse modo, desenvolver a chamada zona de construção, passamos
a adotar, o professor e eu, estratégias de aproximação com os/as alunos/as (estratégias essas que
discutíamos durante seus HTPs). As estratégias eram: trabalhar o texto literário em analogia
capaz de instituir contextualização com o tempo de vivência dos/as estudantes; adotar
linguagem próxima a dos/as estudantes; discutir o vocabulário das obras, buscando aproximá-
lo de expressões usadas contemporaneamente no arcabouço linguístico; apresentar as temáticas
das obras, abrindo debate sobre elas. São estratégias simples, mas muito funcionais para a
construção de sentido e compreensão das significações em torno do texto literário.
Adotado esse novo caminho estratégico, as atividades fluíram bastante e o trabalho
avançou para um processo de significação, pelo diálogo que conseguimos, o professor e eu,
estabelecer com os/as estudantes. Trilhar esse caminho, portanto, viabilizou enriquecer a
atividade, que se ampliou em relação à proposta original de perguntas e respostas adotada pelo
professor. Quando passamos às novas estratégias, obtivemos, como resposta, uma expressiva
ampliação na participação das turmas de 2ª série e, ainda, a melhoria no desempenho dos/as
estudantes da 3ª série. Nos debates, os/as estudantes traziam muitas perguntas relacionadas ao
contexto histórico das obras, por meio do que íamos desenhando o processo social dos períodos
de escrita tanto de uma quanto de outra obra, traçando paralelo com a vivência histórica que
ora experimentamos, o que viabilizou que os/as estudantes pudessem se colocar no processo,
fazendo aproximações entre os “fatos ficcionais” e a própria vivência.
Foto 28: gincana literária: grupos. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 29: gincana literária: interação. Registro: Priscila Vasques,
2021.
Na fase final das gincanas, o professor e eu fizemos uma cota para compra de obras
literárias diversas e foi com esse material que premiamos as equipes vencedoras. Para as
119
equipes que ficaram em segundo lugar, compramos alguns chocolates, na intenção de prestigiar
a motivação dos/as estudantes.
Foto 30: livros para premiação. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 31: premiação de segundo lugar. Registro: Priscila Vasques,
2021.
A dinâmica da gincana findou por aproximá-los/las das obras literárias, tendo como
resultado, inclusive, um aumento no movimento de empréstimos na biblioteca após a atividade.
Foi bastante significativo, afinal, tanto para eles/elas como para nós, o processo.
No ano de 2022, o docente trabalhou apenas com turmas da 2ª série do ensino médio.
Nessas turmas, desenvolvemos, eu e o professor, o projeto Oficina de Contos e Crônicas, que
se originou a partir de uma conversa que tivemos por conta daquilo que foi discutido no diálogo
formativo que realizei, em parceria com a Prof.ª Dr.ª Rita Barbosa de Oliveira, da UFAM, no
campo de tese. Neste ano, portanto, a imersão no campo de tese se concentrou no
desenvolvimento do segundo instrumento da observação participante, que foi o das inserções
120
Foto 33: aula expositiva 1. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 34: aula expositiva 2. Registro: Priscila Vasques, 2021.
Foto 35: intervenção em aula dialogada. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 36: aula dialogada. Registro: Priscila Vasques, 2021.
[...] a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em
que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre
cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma
separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida
em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de
fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos e a
fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é
um direito inalienável.
É entendendo a literatura nessa perspectiva trazida por Candido (2011) que traçamos
os rumos do trabalho com a literatura brasileira contemporânea. Acredito que este tenha sido o
momento mais relevante da imersão no ano de 2021. Nos nossos diálogos em HTPs, sugeri, ao
trazer os textos literários contemporâneos, que debatêssemos contos de Olhos d’água, de
Conceição Evaristo, obra de amplo alcance para a discussão das questões da subjetividade e do
contexto sócio-histórico-cultural. A professora, então, aceitou a sugestão e montamos as aulas
juntas. Para nossa felicidade, os textos foram capazes de estabelecer profundo diálogo com as
turmas. Começávamos sempre pela leitura de um dos contos. Em seguida, abríamos para as
manifestações dos/as alunos/as e, posteriormente, comentávamos os textos, à luz dos estudos
culturais e do pós-colonialismo (numa utilização, na prática docente, de aportes teóricos da
literatura adquiridos na formação inicial, o que debati com ela, também nos HTPs, sobre como
fazer). Falo em nós porque a professora, num movimento crescente, foi enxergando como
aplicar o conhecimento teórico aos textos, a partir do diálogo com os/as estudantes.
Nessas aulas em que trazíamos as Marias e Natalinas de Conceição Evaristo, muitas
foram as Marias e Natalinas de que ouvimos falar nas salas de aula. Elas eram mães, tias, irmãs
de vários/as daqueles/as jovens. Ouvir suas histórias de vida e construir sentidos sobre os textos
literários ali trabalhados a partir dessas histórias foi, sem dúvida, fator de crescimento para cada
123
um de nós que ali estava. Preciso dizer da minha alegria por ter conseguido desenvolver, com
a professora, esse tipo de trabalho. E foi com essas aulas de literatura brasileira contemporânea
que encerramos o campo no ano de 2021.
Foto 37: diálogo sobre conto. Registro: Priscila Vasques, 2021. Foto 38: leitura de conto. Registro: Priscila Vasques, 2021.
e matam, pois onde o Estado não chega o crime se operacionaliza como estrutura de poder e se
impõe no cotidiano das pessoas.
Mesmo com esse clima, segui o planejamento de realização do diálogo formativo com
os/as docentes de literatura da escola. Infelizmente, contudo, embora eu tenha procurado a
gestão e tenha feito o convite aos/às professores/as, que chegaram a confirmar presença, no dia
previsto para a realização da atividade – 04 de abril de 2022 – os/as professores/as não
compareceram, à exceção da Docente Sumaúma, já acompanhada por mim. Esperamos por
cerca de uma hora e meia, sem retorno. Isso certamente se faz um dado nesta pesquisa e precisa
ser registrado porque nos leva à reflexão se consideramos todas as questões já discutidas até
aqui epistemologicamente.
É preciso dizer, contudo, que, apesar de não termos conseguido realizar o diálogo
formativo na Escola Buriti com o corpo docente de literatura, dialoguei com a Docente
Sumaúma e o professor de artes, que estava na escola no dia em que realizaríamos a atividade
e, dessa nossa conversa, surgiu um projeto, aos moldes do que foi realizado na Escola Açaí. No
caso da Escola Buriti, o projeto foi o de Oficina de Cordéis, executado entre os meses de abril
e maio de 2022. Vale registrar que a Oficina contribuiu muito para que os/as estudantes
pudessem expressar o seu sentir e ver sobre as coisas. Eles/as ficaram muito animados/as com
o processo e demonstraram interesse não apenas na realização dos cordéis, mas também de
apresentações musicais, com canto e dança. Falo mais detalhadamente sobre o projeto na
subseção 4.3 deste trabalho.
Foto 41: diálogo formativo. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 42: Prof.ª Rita Barbosa. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 43: diálogo formativo: interação. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 44: material elaborado. Registro: Priscila Vasques, 2022.
essas atividades práticas de trabalho com a literatura, pensadas para utilização como estratégias
a serem adotadas em sala de aula.
No diálogo, muitas foram as enunciações dos/as professores/as acerca de seu
sentir/perceber o ensino de literatura em seus atuais (nem tão atuais assim) desafios. A análise
destas enunciações, que trago a seguir, alinha-se à dialógica freiriana e é dividida em duas
etapas. Na primeira, apresentam-se, à luz de Vygotsky (1991; 2000; 2001; 2004), as categorias
de sentido que emergiram das falas dos/as docentes, privilegiando-se, na transcrição de trechos,
aquelas que se mostraram mais relevantes para a construção dessas categorias. Na segunda,
realiza-se, com base em Bakhtin (2002), uma sistematização imagética, em que se organizam,
a partir dos cronotopos, as categorias de sentido suscitadas.
Para a identificação das falas, refiro-me ao professor acompanhado nesta pesquisa
como Docente Embaúba e, aos demais docentes participantes do diálogo formativo, como
docentes Andiroba, Copaíba, Castanheira e Seringueira, seguindo a nomenclatura poética
adotada na pesquisa, que se refere aos docentes com nomes de árvores da Amazônia.
As categorias de sentido que emergiram foram as seguintes: 1) formação inicial e
continuada; 2) a escola e as questões sociais; 3) dificuldades do ensino de literatura; 4)
discrepâncias entre o Novo Ensino Médio e os vestibulares.
Na categoria 1, no que tange à formação inicial, os/as professores destacaram as
dificuldades que eles sentem de fazer o trânsito téorico-prático, ou seja, de transformar em
material de ensino aquilo que foi absorvido durante a formação inicial. Para eles/as, a formação
inicial não tem proximidade com a realidade da educação básica e a pouca exploração da face
pedagógica, durante a formação inicial, finda por trazer dificuldades para a sua atuação no chão
de escola.
A esse respeito, o Docente Andiroba disse o seguinte:
A faculdade, ela não prepara o professor pra encarar a realidade dos alunos,
assim, ainda mais a questão individual. Você chega e quer dar aula, a mesma
aula pra 45 alunos, aí uns entendem e tal... aqui a gente tem muito aluno
focado, que quer realmente ganhar uma vaga pública [nas universidades
públicas], então eles tão dedicados mesmo... às vezes, eles passam mais [nos
vestibulares] por questão pessoal que da escola. Esses vão aproveitar bem a
aula. Agora os outros, que tão se arrastando aí, eles não. Aí tu tens que ver
como vais atingir esse aluno aí. Na faculdade a gente aprende muita coisa, mas
aí, chega na sala de aula, tu chegas cheio de vontade de ensinar aquele monte
de teoria lá dos gregos e tal, chegas na sala de aula e o menino tá passando
fome, tá sendo espancado, tá sendo abusado pelo pai e mais um monte de
outros fatores que vão influenciar diretamente nesse processo de
aprendizagem. A gente tem que ter toda essa visão psicológica, sociológica e
mais outras áreas aí pra poder conseguir, realmente, atingir e a gente não
129
Também falando sobre essa questão, o Docente Embaúba disse: “Na verdade, essa
preocupação [do contato com a realidade docente] deveria começar desde muito cedo, né? Não
lá nos últimos períodos [da formação inicial], praticamente só no estágio” (Docente Embaúba;
colchetes meus).
Seguindo na discussão da formação inicial, a Docente Copaíba pontuou:
O que podemos perceber é que eles evidenciaram, com mais propriedade, que é muito
mais no exercício da docência do que nas teorias que trouxeram da formação inicial que eles
têm desenvolvido suas estratégias de ensino, buscando superar as dificuldades que encontram
na realidade do chão de escola na própria prática docente. Para eles, o trânsito teórico-prático
parece ser uma questão a ser resolvida na formação inicial, que deveria priorizar, dentre outras
faces da licenciatura, a proximidade efetiva com a prática, num exercício de práxis, portanto. É
preciso refletir, nesse ponto, acerca de alternativas que podem ser pensadas para resolver esse
problema na formação inicial. Conforme apontei na seção 3, quando da discussão do PPC de
Letras – LP/UFAM, é necessário viabilizar, desde as aulas de teoria da literatura, uma
aproximação com a face pedagógica da formação, o que poderia vir, de acordo com o exemplo
que mencionei na seção 3, por meio da elaboração de sequências didáticas associadas ao estudo
da crítica literária. Outra possibilidade seria a atividade de extensão, em que se realizariam
aproximações entre a discussão da obra literária – no entrecruzamento teórico-crítico, com
escolhas de eixos temáticos norteadores a partir de debates em sala de aula – e atividades de
campo, em que seria aplicada a discussão teórico-crítica, por meio da realização de rodas de
conversa com os/as estudantes da educação básica que pudessem mostrar, pelos eixos
temáticos, um caminho para o estudo do texto literário. Esses são apenas exemplos de atividades
130
possíveis para trabalhar o texto literário em aplicação pedagógica; o ponto central, sem dúvida,
é que essas atividades precisam ser reflexivas, pois devem sempre viabilizar o trânsito entre
teoria e prática e esse trânsito precisa se dar em diálogo com os sujeitos.
Em relação à formação continuada, observa-se que os/as professores/as centraram a
discussão na ausência dessa modalidade de formação para os/as preparar para atuação no
formato do Novo Ensino Médio, que privilegia o trabalho interdisciplinar. O que relataram é
que o processo foi atropelado, dado que, segundo eles, a Seduc-AM não fez formações com
toda a categoria, tendo-as realizado por amostragem (era escolhido um/a professor/a de cada
escola para fazer a formação e repassar as informações recebidas para os/as colegas docentes).
Para complicar ainda mais a situação, acerca dos projetos interdisciplinares, que vêm
sendo o centro das ações no Novo Ensino Médio, segundo os/as professores/as, a Seduc-AM
não realizou nenhuma formação específica, o que tem dificultado muito o trabalho no ano letivo
vigente, em que eles/as estão se vendo diante da necessidade/obrigatoriedade de desenvolver
projetos dessa natureza para o ensino de literatura.
Sobre isso, o Docente Andiroba disse o seguinte:
Passando à categoria 2, vale destacar que os/as professores/as apontaram que a escola,
enquanto espaço social, precisa lidar com as muitas dificuldades que fazem parte da realidade
em que os/as alunos/as se inserem, especialmente na periferia, como é o caso da escola em que
eles/as lecionam. São problemas das mais diversas ordens que são levados para a escola, que
se torna, desse modo, um microcosmo social.
Observemos a seguinte fala da Docente Copaíba:
A escola acaba sendo um bote de salvação da sociedade. Como é que você vai
trazer esse aluno que tá em condições precárias? Hoje, vários alunos não
foram pra escola hoje porque moram em lugares que são alagadiços. Vários
alunos não conseguem chegar justamente por conta desse entorno, de onde
eles habitam. O habitat deles é realmente fora de uma estrutura social que é
padrão. Nossa sociedade, ela é totalmente desproporcional e despreparada e a
escola seria o lugar onde a gente poderia inserir esses nossos alunos, mas a
gente ainda continua na distância, por causa dessa metodologia que é aplicada
para gente lá [na formação inicial], mas como a gente vai trazer isso pra cá?
(Docente Copaíba; colchetes meus).
O que se evidencia é que cada professor/a precisa aprender, na prática docente, a lidar,
para além das questões do ensino, com as situações de vulnerabilidade social de sua
comunidade escolar, uma vez que, na formação inicial, pouco se discute sobre as questões
sociais do entorno da docência, as quais atravessam diretamente o processo ensino-
aprendizagem. É preciso, portanto, superar as dificuldades de aplicação da teoria que se traz da
formação inicial, entendendo que, para a lida cotidiana no chão de escola, é necessário saber
fazer as aproximações com a realidade do/a aluno/a; caso contrário, as aulas de literatura serão
esvaziadas de sentido e significado.
Na categoria 3, os/as professores/as colocaram diversas dificuldades que encontram
para trabalhar o ensino de literatura, seja por conta do novo formato – desde a BNCC e
especialmente a partir do ano letivo vigente, com o advento no Novo Ensino Médio –, que
requer o trabalho com projetos e em modalidade interdisciplinar, fazendo aproximações com
outros campos de ensino, seja por conta da dificuldade em lidar com a linguagem dos jovens –
e, a partir disso, refletir sobre como abordar os textos literários com eles –, seja por conta da
ampliação do distanciamento entre professores/as e alunos/as que se deu a partir da pandemia
de Covid-19, pois a realidade social desses/as alunos/as os colocou mais longe do que o de
costume da escola.
Outro ponto que trouxeram nessa categoria foi o da divergência entre as abordagens
didáticas adotadas nas escolas da rede, enfatizando não haver, por exemplo, a adoção de um
único livro didático para todas, já nos moldes do Novo Ensino Médio. Relataram, ainda, que
132
nem sempre chega à escola o livro que eles/as escolheram adotar, sendo, muitas vezes, enviado
um material que havia sido listado por eles/as como segundo ou terceiro plano de trabalho.
Vejamos, a seguir, algumas falas sobre essas questões.
Esses novos livros [didáticos], eles trabalham em conjunto com as áreas, mas
a gente tem aqui na escola aquele volume único com os conteúdos só de língua
portuguesa, ou seja, a escola não trabalha, pelo menos na língua portuguesa,
com a articulação entre áreas. [...] O livro segue ainda a abordagem de antes
(Docente Embaúba; colchetes meus).
Sobre o trabalho a partir da adaptação dos conteúdos de literatura para uma abordagem
de acordo com a BNCC, a Docente Castanheira compartilhou uma experiência bastante
interessante:
O que eu fiz com as minhas turmas de primeiro [ano]: a BNCC fala que a
gente tem que trabalhar no primeiro ano o processo de construção de
identidade, de ele [o aluno] conseguir se visualizar no mundo e aí o primeiro
gênero que ela quer que trabalhe é poema. Só que trabalhar poema com uma
turma de primeiro ano, que veio do fundamental, que tá defasada há dois anos,
devido à pandemia, é extremamente complicado. Aí eu pensei: tenho dois
irmãos da mesma faixa etária; o que eles fazem da vida? Escutam música.
Peguei e fui estudar rap, trap e rip-hop, que são gêneros bastante atuais pra
eles, levei a música e, depois que a gente escutou as músicas, trabalhou, eu
trouxe um poema, um rap também, pra destrinchar o processo de construção
de identidade dentro do poema e o poema que eu utilizei, ele fala sobre
periferia e os jovens que moram na periferia. Antes de eu iniciar a leitura com
os alunos, eu tentei fazer com que eles pensassem onde que eles estão, a que
lugar eles pertencem, porque eu queria que eles percebessem “olha, vocês
também, assim como a temática do poema vai falar sobre a construção do
jovem da periferia, vocês também são essas pessoas que estão na periferia,
que são...” E depois que a gente iniciou a leitura, eles perceberam que eles não
se consideravam pessoas periféricas ou que vivem na favela; eles não
conseguiam se perceber assim. Então eu falei: “a gente mora num bairro
periférico, nós somos periféricos, nós somos favelados. Vocês têm que parar
com esse pensamento de que quem mora na favela é alguém que mora lá no
133
morro. Não! A partir do momento que a segurança pública não chega aqui,
que a saúde não chega aqui, o saneamento básico não chega aqui, onde as
coisas turísticas e artísticas da cidade também não chegam, quando a gente
não é pensado, a gente é periférico. Imaginem o que que falam da gente
quando a gente diz que mora na Zona Leste, mora em bairros como São José,
Tancredo Neves? O que que pensam?” (Docente Castanheira; colchetes
meus).
O que vemos, nesse caso, é que, embora a professora tenha buscado elaborar uma
estratégia, a partir da própria vivência dela como sujeito da e na periferia, para comunicar com
seus/suas alunos/as, isso não se fez dialógico porque esteve muito centrado na própria
professora, no seu próprio discurso e nas suas próprias percepções. Para que isso funcionasse
como uma estratégia dialógica de ensino, seria necessário que a professora oportunizasse um
debate, abrindo espaços de fala para os/as estudantes. A partir das falas deles/as, então, a
professora poderia, usando, por exemplo, a técnica da nuvem de palavras, extrair os temas a
serem discutidos em alinhamento com leituras literárias, que, no caso em questão, eram letras
de músicas escolhidas que tratavam da temática da identidade.
Nesse mesmo ponto do diálogo, o Docente Andiroba disse: “Eu só consigo fazer os
meninos entenderem realismo/naturalismo quando eu passo Cidade de Deus pra eles; aí eles
vão entender o que é realidade”. O que vemos aqui é que se reforça a necessidade de trabalhar
em proximidade com a linguagem e a realidade dos/as estudantes e essa aproximação pode ser
alcançada pela estratégia de utilização do interdiálogo, associando obras do
realismo/naturalismo com a discussão da realidade proposta em Cidade de Deus. Trabalhar a
linguagem literária e a linguagem cinematográfica em interface é muito válido, desde que,
reforço, seja feito em proposta de vozeamento dos/as estudantes.
Falando sobre a interdisciplinaridade que se coloca como desafio do ensino de
literatura a partir da BNCC, as Docentes Copaíba e Castanheira pontuaram que essa era uma
questão bastante delicada, porque, para desenvolver atividades e projetos interdisciplinaridades,
era preciso contar com a parceria de professores/as de outras disciplinas, o que nem sempre se
viabilizava, pois muitos/as professores/as não se dispunham para isso:
E aí vai depender muito se o professor vai topar, né? Por exemplo, lá na outra
escola eu tenho um trabalho interdisciplinar com o professor de filosofia. A
gente escolheu uma obra específica, que foi O banquete, pra trabalhar. Mas aí
depende muito do outro colega, né, se ele tá disposto a ter trabalho, porque,
querendo ou não, requer todo um planejamento a mais, né, do que nós estamos
acostumados a fazer (Docente Castanheira).
professor poderia trabalhar o texto com pequenas inserções de todos/as os/as estudantes e dele
próprio, o que tornaria mais confortável, para aquele aluno que apresentou a dificuldade de
leitura, construir, gradativamente, sua participação/compreensão/superação.
Agora falando sobre a leitura literária, o Docente Andiroba apontou:
Pegar um texto literário pro cara falar “caraca, isso não tem nada a ver com a
minha vida” e tentar inserir ele nesse processo. Eu, por exemplo, quando eu
vou usar os exemplos – no terceiro ano a gente usa muito o
realismo/naturalismo – eu uso exemplos típicos dos alunos que têm nas salas
de aula, que a gente encontra nos personagens dos textos literários (Docente
Andiroba).
Nesse ponto, vemos que o professor busca fazer, na exemplificação, uma aproximação
do texto literário com o cotidiano dos/as alunos/as. Esse certamente é um mecanismo
necessário, mas, na perspectiva dialógica, isso vai funcionar com efetividade se os/as
próprios/as estudantes puderem apontar esses exemplos. Na interação entre estudantes e
professor, portanto, essa construção se viabilizará como um processo dialógico de significação.
Outro ponto em que tocaram foi a diferença de estrutura entre as escolas, o que,
segundo eles/as, dificulta o desenvolvimento do trabalho em torno da leitura literária.
Sobre essa questão, a Docente Castanheira destacou que:
O que se percebe é que se fica entre aquilo que está em vigência e aquilo que é o real
centro da coisa: o texto literário. As dificuldades relatadas pelos/as professores/as demonstram
como os atropelamentos e discrepâncias seguem se perpetuando no ensino de literatura na
educação básica. A reflexão que busquei fazer com eles, diante desses relatos, foi a de
pensarmos em que medida, apesar do que está posto como realidade na rede, podemos lidar
com o ensino de literatura como espaço de protagonismo, de subjetividade dos/as estudantes
que são o público do ensino médio, tomando como centro disso o texto literário. Se os projetos
são hoje uma realidade, de que forma podemos, então, buscar torná-los espaço de protagonismo
da literatura? E como podemos fazer do nosso saber teórico ferramenta para um ensino
dialógico de literatura?
Fazendo essa reflexão junto comigo, eles/as foram pontuando estratégias de
aproximação que têm buscado fazer com os/as estudantes nas aulas de literatura, destacando
como têm procurado usar músicas, exemplos do cotidiano e textos literários que dialoguem
diretamente com a realidade dos/as alunos/as para alcançar essa aproximação. O Docente
Seringueira destacou também a importância de associar as aulas de língua portuguesa com as
aulas de literatura para encontrar estratégias de compreensão da linguagem literária, apontando,
por exemplo, a necessidade de trabalhar figuras de linguagem e interpretação textual com os/as
estudantes.
Fechando a discussão dessa categoria, deixo a seguinte fala da Docente Castanheira:
Eu ainda bato na tecla de que eu vou priorizar sempre que o meu aluno reflita,
repense; que ele consiga refletir, de fato, sobre quem ele é no mundo e o que
ele quer, porque, se eu conseguir fazer com que ele entenda, quando ele lê, ele
compreenda, ele critique, ele pense nele como um todo, em sociedade, aí é
meio caminho andado pra ele conseguir ser independente depois daqui,
entendeu? E aí ele que vai tomar as decisões, mas a gente tem que estar
trabalhando essa construção pra ele se entender, pegar um texto e conseguir
ler, compreender e refletir sobre (Docente Castanheira).
Como vai aumentar mil horas nas aulas da carga horária do ensino médio,
essas mil horas seriam de cursos profissionalizantes, só que, quando foi no
início de 2020, a Seduc foi atrás de uma instituição pra proporcionar esses
cursos pra rede. Aí tem o CETAM: CETAM disse que não tinha condições;
foi atrás do IFAM: o IFAM se negou totalmente; o SENAI: também. Então
todas as instituições se negaram; não tinha nenhuma instituição que desse
conta de proporcionar cursos pra rede, pros alunos do ensino médio da Seduc.
Então eles ficaram assim “e agora, o que a gente vai fazer?” [...] Pela proposta,
o aluno pode fazer um curso técnico em uma instituição privada e trazer o
certificado pra ser anexado ao certificado dele de ensino médio, como parte
da carga horária do novo ensino médio. A ideia é do ensino tecnicista. [...] E
foi assim que [tempos atrás] duas ou três gerações de brasileiros morreram em
curso técnico (Docente Andiroba; colchetes meus).
Uma coisa que eu tô batendo na tecla desde o início [do Novo Ensino Médio]:
o vestibular tem que mudar. O vestibular tem que mudar, porque, senão, a
gente não muda nosso modo de ensino, porque a UFAM...por que ela não
muda o vestibular dela? Ela continua fazendo um vestibular, como PSC, de
maneira tradicional, então ela também tem que mudar, porque, se ela não
mudar a reformulação da prova, nós, professores – e eu sou uma – vou
continuar ensinando sim pro meu aluno onde que vai o acento tal, qual é esse
período literário, quais são as características...porque o vestibular pede isso.
Então o vestibular também tem que mudar (Docente Castanheira; colchetes
meus).
O que observamos, nas falas dos/as docentes, é a preocupação destes/as com o fato de
os sistemas educacionais vigentes estarem, atualmente, promovendo um retorno ao tecnicismo,
à formação de mão de obra imediata e barata, o que precisa ser olhado com cautela, pois esse
perfil que vai se desenhando, com o Novo Ensino Médio, parece distanciar a realidade
educacional do país do caminhar em direção à emancipação, uma vez que dificulta o acesso à
formação em nível superior, à formação acadêmica, deixando, para as camadas mais pobres da
população, apenas a “oportunidade” de vender sua força de trabalho ainda nos anos de
juventude e saúde.
Fica claro, portanto, a partir das falas dos sujeitos, que é preciso refletir a fim de
viabilizar caminhos para o ensino de literatura. Cosson (2009), em seus estudos sobre o
letramento literário, aponta que o trabalho com a literatura precisa se pautar na construção de
comunidades de leitores. Nessas comunidades, os/as alunos/as poderiam ampliar seu repertório
cultural nas trocas que construiriam juntos/as em torno da leitura literária. Algumas
possibilidades, então, precisam ser pensadas para que se possa tornar viáveis essas
comunidades.
Estratégias como a de execução de oficinas e projetos literários nas escolas me
parecem caminhos possíveis. Pode-se, por exemplo, fazer, nas oficinas, a leitura dialogada da
obra literária, na qual vão sendo lidos e debatidos os capítulos. Desses debates, podem-se extrair
138
temáticas para a elaboração de projetos literários, nos quais os/as estudantes passariam ao
exercício interpretativo-escrito. Viabiliza-se realizar, ainda, um registro longitudinal dos
resultados das oficinas e projetos, a fim de construir, ao longo do ano letivo, uma percepção do
que foi sendo debatido e construído como estudo literário. Foi usando estratégias dessa natureza
que realizamos, em campo, os projetos literários desta pesquisa, que serão discutidos adiante.
O que se aclara, pelas falas dos sujeitos que suscitaram as categorias de sentido no
diálogo formativo realizado na Escola Açaí, é que não se pode pensar as questões curriculares
– seja em se tratando da formação, seja em se tratando da docência – fora do processo histórico
e das realidades socioeconômicas e políticas que as permeiam. Se a educação estiver a serviço
da transformação dos sujeitos, seu caminho será sempre o da reflexão crítica, na qual se busca
uma compreensão da sociedade humana, capaz de significar e ressignificar para a emancipação.
É somente assim que a educação poderá romper com o jogo de poder que a enreda e se fazer
lugar de construção efetiva de uma identidade cidadã.
Feita a análise a partir das categorias de sentido, trago, neste ponto, a sistematização
imagética, que apresenta as categorias de sentido em fluxo, organizadas a partir dos dois
grandes temas que se apresentam nas enunciações dos sujeitos: docência e formação. De um
lado, a prática docente se apresenta como espaço de desafios que se formulam tanto à luz das
mudanças na legislação educacional quanto por conta do próprio campo de atuação docente.
Do outro, a formação reverbera sentidos que a colocam em alinhamento à racionalidade técnica,
não dialógica, sendo ora mobilizada por uma memória nada nostálgica dos sujeitos sobre a
licenciatura, ora desenhada como lugar de distanciamento, quando é pensada na modalidade
continuada, ofertada pelo sistema de ensino.
O cronotopo organizador deste fluxo enunciativo é o cronotopo de encontro Escola
Açaí, lugar de atuação dos sujeitos, onde se tocam, então, os sentidos construídos por eles tanto
na docência quanto na formação inicial e onde reverberam as polifonias dos discursos
organizadores e estruturantes de uma e de outra. Bakhtin (2002, p. 221-223) aponta o cronotopo
do encontro como um dos mais importantes organizadores da composição do romance, sendo
ponto de culminância ou peripécia no enredo na maioria das vezes.
139
Figura 3: relações dialógicas dos sujeitos a partir do cronotopo de encontro Escola Açaí. Elaboração: Priscila Vasques, 2022.
Foto 45: passo 1: leitura. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 46: passo 1: diálogo. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 47: passo 2: conceituação. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 48: passo 2: debate. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 49: passo 3: orientações turma 1. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 50: passo 3: orientações turma 2. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 51: passo 4: produção turma 1. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 52: passo 4: produção turma 2. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 53: culminância: autores. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 54: culminância: visitação. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 55: culminância: material. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 56: culminância: premiação. Registro: Priscila Vasques, 2022.
No passo 3, passamos à orientação para a produção dos textos e dos desenhos, bem
como aos ensaios de canto e dança, coordenados pelo professor de artes, com escolha dos/as
alunos/as de músicas no estilo nordestino, mantendo a aproximação com o gênero cordel. Além
da produção dos cordéis e dos ensaios, todos/as se empenharam também em fazer o cenário
para arrumarmos a quadra para a realização da culminância, além de conseguirem instrumentos
musicais emprestados para os ensaios e a execução das atividades musicais.
Foto 59: passo 3: orientação: textos. Registro: Foto 60: passo 3: orientação: música. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Priscila Vasques, 2022.
146
Foto 61: passo 4: confecção. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 62: passo 4: produção finalizada. Registro: Priscila Vasques,
2022.
Foto 63: culminância: preparativos. Registro: Foto 64: culminância: painel de cordéis. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Priscila Vasques, 2022.
Foto 65: culminância: música. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 66: culminância: declamação. Registro: Priscila Vasques, 2022.
Foto 67: culminância: dança. Registro: Priscila Vasques, 2022. Foto 68: culminância: público. Registro: Priscila Vasques, 2022.
148
Freire (2020, p. 115-117) diz que o diálogo começa quando o educador busca, no
conteúdo programático, espaço para a reflexão diante da realidade. Para o “educador bancário”,
o conteúdo é apenas um emaranhado de informes que precisa ser depositado nos educandos,
sendo sua transmissão pura e simples o objetivo do trabalho. Para o “educador-educando”, o
conteúdo não é uma doação ou imposição, mas a devolução organizada, sistematizada daquilo
que o educando, no diálogo que estabeleceu com o educador, colocou como elemento de seu
saber, parte de sua reflexão sobre as coisas do mundo. Dessa feita, para o autor, a educação
dialógica é aquela que se faz não do educador para o educando, mas do educador com o
educando, importando aos conteúdos não apenas as definições temáticas e conceituais, mas
também as dúvidas, anseios, esperanças e desesperanças dos sujeitos do processo.
Nos passos da execução dos dois projetos, buscamos trabalhar nessa linha de
compreensão dos conteúdos, levando aos/às estudantes não apenas aquilo que era
conceito/tema, mas também aquilo que se ligava aos conceitos/temas a partir da leitura de
mundo dos/as estudantes. Assim, vimos surgirem, nos trabalhos produzidos, reflexões
profundas sobre temas que, atravessados pela literatura, pertencem à vida prática dos sujeitos.
Ser e estar no mundo, na cidade que habitamos, no lugar a que pertencemos, desse modo, foi
expressado pelas vozes dos/as estudantes na literatura por eles produzida. A literatura se fez,
então, o direito inalienável a que Candido (2011) faz referência, pois oportunizou a fala de cada
um/a deles/as e, ao se construir espaço de vozeamento, opôs-se ao antiálogo, sendo pronúncia
do mundo (FREIRE, 2020, p. 111).
O que a execução dos dois projetos mostrou, portanto, vai ao encontro daquilo que
esteve em reflexão neste trabalho: a necessidade de pautar o ensino de literatura pelo educar
poético, fazendo das aulas de literatura um espaço dialógico. Os diálogos entre os sujeitos-
professores, eu e os/as estudantes, em cada passo dos projetos, permitiram a troca de
aprendizagens e assentiram olhar para o texto literário por um olhar de significação do mundo.
Realizar as atividades nessa perspectiva oportunizou, então, aos sujeitos, a reflexão-crítica
sobre a própria prática, sobre os instrumentos e abordagens desta, construindo, dessa forma um
novo saber sobre si como sujeito docente (TARDIF, 2010). É esse tipo de movimento que
viabiliza o vozeamento, a construção de sentidos e significados e o crescimento dos sujeitos no
processo.
149
CONCLUSÃO
também algumas ações que se colocam no campo do dissenso (RANCIÈRE, 2012) nas
comunidades escolares, como os projetos desenvolvidos pelo coletivo da Escola Açaí.
O que se verificou, na análise dos dados, foi tanto um avizinhamento do currículo aos
discursos de poder, havendo alinhamento com aquilo que Pérez Gómez (In NÓVOA, 1997)
referencia como formação pautada na racionalidade técnica, quanto uma aproximação dos
sujeitos com essa referência, pois suas falas demonstraram que trabalhavam, em sala de aula,
dentro dessa compreensão formativa, desenvolvendo um ensino de literatura amarrado à
conceituação/periodização, que afasta as possibilidades de um educar poético e tem como
consequência um ensino antidialógico, sedimentado na hierarquia e não na mediação, distante
da cultura e da historicidade inerentes ao processo.
No desenvolvimento dos projetos literários, em prática reflexiva, buscou-se realizar
um trabalho contextualizado do texto literário, em alinhamento aos postulados da abordagem
histórico-cultural, que considera fundamental o trabalho de contextualização, nas instâncias da
cultura, da realidade histórica dos sujeitos e do próprio processo social. Isso se deu a partir da
mediação docente pautada no diálogo com os/as estudantes, considerando suas vivências como
pontes no processo de construção do pensamento crítico-reflexivo oportunizado pelo trabalho
com a literatura.
Com isso, foram dados os primeiros passos de um caminhar para a mudança da
perspectiva da racionalidade técnica para os sujeitos, em um processo de ressignificação de sua
prática docente, desenvolvendo-se, por meio dos projetos, um ensino de literatura que
oportunizou aos/às alunos/as a reflexão sobre a própria literatura, sobre si e sobre o mundo, em
alinhamento ao que postula Cosson (2006, p. 29): “Ao professor, cabe criar as condições para
que o encontro do aluno com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário,
para o próprio aluno e para a sociedade em que todos estão inseridos”. Esse caminhar para uma
prática dialógica do ensino de literatura parece-me ser uma trilha que futuras pesquisas sobre a
docência em literatura podem seguir, pautadas no encontro entre a formação inicial e a prática,
de modo a desenvolver as ferramentas necessárias à ressignificação do educar literário.
Nesse processo investigativo, portanto, a reflexão foi o maior aliado para que se
desenhassem, com clareza, os passos necessários à caminhada. Os projetos literários
mostraram-me que, neste percurso, o passo mais efetivo que pude dar foi o de desenvolver, em
processo de significação e ressignificação do trabalho com a literatura, um diálogo reflexivo
com os sujeitos e com os/as estudantes no chão de escola. As relações que estabelecemos não
apenas renderam frutos dentro dos dois projetos desenvolvidos, mas permanecem frutificando
o que construímos juntos, uma vez que o contato com os sujeitos e também com seus/suas
151
colegas docentes se mantém e a colaboração estabelecida se pôs para além dos limites da
pesquisa.
A partir do que se desenvolveu, em análise e prática, alcançou-se resposta para a
suposição levantada pela pesquisa, pois se confirmaram as dificuldades trazidas da formação
no exercício docente dos sujeitos, o que evidenciou a necessidade de alinhamento entre
formação inicial e docência na educação básica, a fim de que se viabilize, na instância da práxis,
uma educação literária ativa, fundamentada na reflexão e na criticidade.
O que apontaram os resultados, dessa feita, é que o não desenvolvimento, durante a
formação inicial, do olhar pedagógico, apoiado numa perspectiva crítico-reflexiva do ensino de
literatura, dificulta o trabalho com o texto literário no exercício da docência. O que se verificou,
em campo, é que os sujeitos enfrentavam dificuldades para discutir o texto literário situando-o
no contexto sócio-histórico-cultural, o que os levava a repetir o modelo da
periodização/conceituação literária que lhes veio da formação inicial e os afastava da
dialogicidade, colocando-os em oposição ao perfil de “educador-educando”, que não vê os
conteúdos como um emaranhado de informações a serem depositadas no/a estudante, pois
entende a educação como construção coletiva (FREIRE, 2020).
A pesquisa buscou dirimir essas dificuldades, pois, no exercício prático-reflexivo do
desenvolvimento dos projetos literários, os sujeitos começaram a viabilizar um ensino de
literatura dialogado, com o olhar voltado para a contextualização e compreensão histórico-
social do texto literário, oportunizando, ainda, na prática escrita dos/as estudantes, o
vozeamento.
Diante disso e considerando que o olhar que aqui se lança para a literatura parte da
compreensão desta como espaço de formação humana (CANDIDO, 2011), evidenciou-se que
é preciso – tanto em nível de formação inicial como de prática docente – trabalhar a literatura
da perspectiva crítico-reflexiva, a fim de oportunizar, por meio dela, o diálogo e a construção
de saberes pautada no olhar sensível, na compreensão poética da realidade.
A pesquisa, é claro, não se encerra no que foi desenvolvido neste trabalho. O que se
realizou nos projetos literários no campo de tese oportuniza desdobramentos futuros. Assim,
novos projetos, buscando estabelecer diálogo entre a formação inicial e a docência na educação
básica, podem e devem vir a ser desenvolvidos, em pesquisas futuras relacionadas ao campo do
ensino de literatura.
Viver a experiência literária é inscrever-se no mundo. O educar poético vozeia. A
“escrevivência” – para usar o termo forjado por Conceição Evaristo na definição da escrita
literária como uma escrita do viver – nele se viabiliza e, assim, o modo como o olhar paira sobre
152
as coisas se modifica. A literatura nos atravessa e, nessa travessia, ela nos encaminha à reflexão
crítica e nos faz ver as operacionalizações do poder imprimindo, sobre nós, sua marca,
cotidianamente.
Ao ler aquilo que produziram, no desenvolvimento dos projetos literários, os/as
estudantes do campo de tese, observou-se o exercício da escrevivência. Ao escrever, ao se
envolver no processo literário, aqueles/as jovens puderam exercitar esse pertencer ao mundo.
Assim, os temas do cotidiano, as vivências da periferia, os modos de olhar e sentir a existência
tomaram forma em sua escrita literária, o que faz ver que a vida metaforizada pela literatura se
ressignifica (PETIT, 2009).
O que a pesquisa apontou, portanto, é que, apesar dos tensionamentos do poder vigente
e das enunciações que ele profere a partir do currículo, o ensino de literatura precisa se viabilizar
em perspectiva dialógica, sendo voz de dissenso (RANCIÈRE, 2012). Para isso, é necessário
que haja preocupação, em toda a cadeia formativa, com o trânsito teórico-prático, com a
aproximação entre formação inicial e docência, viabilizada não apenas por ações de pesquisa e
extensão, mas também por um PPC dialógico, que coloque as aulas da graduação em
alinhamento com uma compreensão pedagógica da formação em Letras, para um ensino de
literatura que se faça um educar poético. É um ensino de literatura pensado a partir dessas
preocupações que permite a ampliação do processo de significação dos sujeitos, sejam eles os
próprios sujeitos-professores de literatura, sejam eles os sujeitos-alunos do chão de escola.
Ações do educar poético são necessárias à construção de sentidos da existência.
A literatura salva porque faz ver não apenas as coisas do “alinhamento do mundo”,
mas também aquelas que habitam sua margem. Candido (2011) nos lembra que a literatura nos
oportuniza, pelo olhar sensível, problematizar a dialética do viver. Que nossos “olhos
literários”, então, estejam sempre abertos e atentos a ver, perceber e sentir o mundo em suas
múltiplas discursividades e significações.
153
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB. Edição atualizada até março
de 2017. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.p
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BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica – DCN, 2013. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13448-
diretrizes-curiculares-nacionais-2013-pdf&Itemid=30192. Acesso em 11 fev. 2022.
BREAKWELL, Glynis M.; ROSE, David. Teoria, método e delineamento de pesquisa. In:
BREAKWELL, Glynis M.; HAMMOND, Sean; FIFE-SCHAW, Chris; SMITH, Jonathan A.
(Orgs.). Métodos de pesquisa em Psicologia. Tradução de Felipe Rangel Elizalde. Porto
Alegre: Artmed, 2010, p. 22-41.
154
CANDIDO, Antonio. Direito à Literatura. In: Vários escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul / São Paulo: Duas Cidades, 2011.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
DALLOS, Rudi. Métodos observacionais. In: BREAKWELL, Glynis M.; HAMMOND, Sean;
FIFE-SCHAW, Chris; SMITH, Jonathan A. (Orgs.). Métodos de pesquisa em Psicologia.
Tradução de Felipe Rangel Elizalde. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 134-155.
FANON, Franz. Os condenados da Terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
FERNANDES, Frederico. Por uma Poética da Cura: a poesia oral e seus desígnios
socioculturais. In BARZOTTO, Leoné Astrid (Org.). Literatura e práticas culturais:
linguagens e intercâmbios. Campinas: Pontes Editores, 2017.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução de Raquel
Ramalhete. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1967.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
155
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 73. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém:
CEJUP, 1995.
LUFT, Celso Pedro. Novo guia ortográfico. 3. ed. São Paulo: Globo, 2013.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 24. ed.
Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.
OLIVEIRA, José Aldemir de. Manaus de 1920 – 1967: a cidade doce e dura em excesso.
Manaus: EDUA; VALER, 2003.
PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. Tradução de Arthur Bueno e
Camila Boldrini. São Paulo: Editora 34, 2009.
156
PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. 7. ed. São
Paulo: Cortez, 2012 apud LEITE, Eliana Alves Pereira; RIBEIRO, Emerson da Silva; LEITE,
Kécio Gonçalves; ULIANA, Márcia Rosa. Alguns desafios e demandas da formação inicial de
professores na contemporaneidade. Revista Educação e Sociedade. Campinas, v. 39, n. 144,
p. 721-737, 2018. Disponível em: www.scielo.br/pdf/es/v39n144/1678-4626-es-es0101-
73302018183273.pdf. Acesso em 06 fev. 2022.
PIMENTA, Selma Garrido. Professor Reflexivo: construindo uma crítica In PIMENTA, Selma;
GHEDIN, Evandro (Orgs.). O professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito.
4. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 17-52.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In NOVAES, Adauto (Org). A crise da razão. São Paulo:
Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de
Arte, 1996.
SILVA, Iolete Ribeiro da; TAVARES, Enio de Souza. O tempo, a juventude e o precário –
reflexões sobre as (im)possibilidades de uma vida livre, ética e bela. In LEMOS, Flávia Cristina
Silveira; GALINDO, Dolores; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de; REIS JR., Leandro
157
Passarinho; OLIVEIRA, Paulo de Tarso Ribeiro de; REIS, José de Arimatéia Rodrigues;
SAMPAIO, Válber Luiz Farias; CORRÊA, Michelle Ribeiro; CARDOSO, Márcia Roberta de
Oliveira (Orgs.). Subjetividades e democracias: escritas transdisciplinares. Curitiba: CRV,
2019, p. 101-116. (Coleção Transversalidade e criação – ética, estética e política, vol. 9).
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart
de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 11. ed. Tradução de Francisco
Pereira. Petrópolis: Vozes, 2010.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel,
2009.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. Tradução de Maria Encarción Moya. São
Paulo: Expressão Popular, 2011.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. Tradução de José Cipolla Neto, Luís
Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VYGOTSKY, Lev S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e linguagem. Edição eletrônica de Ridendo Castigat
Moraes. [s.l.]: EbooksBrasil, 2001, 243 p. (pdf). Disponível em:
www.ebooksbrasil.org/adobeebook/vigo.pdf. Acesso em 02 fev 2022.
ANEXO
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
ANEXO:
DADOS DO PARECER
Apresentação do Projeto:
INTRODUÇÃO
O ser humano é sujeito social, formado histórica e culturalmente a partir de suas interações no corpo social,
as quais não se dão de modo linear, uma vez que este é, por natureza, um processo dialético. Nessa
interação, é preciso compreender que as enunciações, as falas dos sujeitos, são polifônicas, carregam
diferentes discursos e, assim, encampam múltiplos modos de olhar e vivenciar o processo social. Partindo
dessa compressão, ao pensar no sujeito-professor, também nos colocamos diante de um sujeito que
interage em um processo social e, claro, em uma realidade escolar
diversa, em que muitas vozes permeiam as ações e interações de sua prática cotidiana, desde os discursos
que ele traz da formação inicial até os que reverberam a partir das falas oficiais da secretaria de educação
responsável por nortear as ações do cotidiano escolar. Quando falamos em discursos, em polifonia,
precisamos compreender que, como representações das vozes que compõem o corpo social, os discursos
têm força de ação, seja de modo mais explícito, seja de modo mais velado. E, tendo força de ação, os
discursos vão se traduzir em práticas, em norteadores dos processos do corpo social, dentre os quais estão
o processo de formação inicial do professor e também o processo de vivência da docência, ou seja, a
prática docente. Ao pensar tanto na formação inicial quanto na prática docente e sabendo que ambas têm
natureza dialética e
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polifônica, sendo as forças de poder que operacionalizam as ações no corpo social vozes ativas nesses
processos, faz-se necessário refletir acerca do desenvolvimento
do pensamento crítico-reflexivo. Nesse embate das muitas vozes que compõem o corpo social, que vozes
se sobressaem na formação inicial? E que vozes reverberam na prática docente? Há espaço para o
desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo na formação e na prática?É preciso pontuar, de início, que
o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo passa, necessariamente, pela formação do sujeito-leitor.
Essa formação se constrói a partir não só do ato de ler em nível de decodificação alfabética, mas também
das interações do sujeito no contexto sócio-históricocultural. Essas interações incluem, então, a passagem
pela escola e, consequentemente, o convívio com o/a professor/a e com o trabalho deste/a em torno da
leitura. Quando falo em leitura, lanço luz também sobre o trabalho com o texto literário, considerando que
este é campo muito fértil para o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo, tornando-se, a partir da
reflexão, espaço de vozeamento dos sujeitos no ambiente escolar, sendo, desse modo, lugar de resistência
aos discursos de poder vigentes.Assim, interessa-me investigar o/a professor/a de literatura em sua prática
no chão de escola, considerando, para tal, suas narrativas acerca da formação inicial e a observação de sua
prática docente, a fim de verificar se a
escola se faz ou não lugar de práxis, de construção do conhecimento a partir da ressignificação daquilo que
se conhece teoricamente e da construção de novos saberes no cotidiano escolar. Quanto à formação inicial
do/a professor/a de literatura, que será analisada a partir das narrativas docentes, é preciso mencionar que
o recorte escolhido é o da licenciatura no Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da
Universidade Federal do Amazonas (Letras-LP/UFAM), considerando-se o fato de ser a UFAM a instituição
pública de ensino que forma nesta habilitação docente há mais tempo no Estado e também pela relação
desta formação com a minha própria vivência/docência. Já no que tange à prática docente, o foco de
interesse está no trabalho docente desenvolvido em escolas de Ensino Médio da rede pública estadual de
ensino, mais especificamente as que integram a Coordenadoria Distrital de Educação 05 da Secretaria de
Estado de Educação e Desporto (SEDUC-AM), por haver interesse de, nesta pesquisa, lançar olhar para um
contexto amazônico urbano e periférico. A Amazônia das migrações ribeirinhas, das construções no entorno
do Distrito Industrial, da consolidação de um espaço periférico tão específico é a que se quer apresentar
aqui. Os sujeitos da pesquisa serão, portanto, professores/as de literatura que atuam na referida
Coordenadoria e que são egressos/as, em nível de formação inicial, do Curso de Letras-LP/UFAM e se foca
o interesse em pensar acerca do desenvolvimento (ou não) da perspectiva crítico-reflexiva na formação
inicial e os desdobramentos disso na prática docente.
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Hipótese:
A perspectiva crítico-reflexiva, quando desenvolvida na formação inicial do professor de literatura, contribui
para a sua atuação, na prática docente, como formador de leitores capazes de perceberem o contexto sócio
-histórico-cultural em que se inserem e atuam, tornando a literatura um espaço de reflexão e de
vozeamento.
Metodologia Proposta:
Pesquisa de cunho qualitativo (BREAKWELL & ROSE, 2010), abordagem dialética (CUNHA; SOUSA &
SILVA, 2014) e viés dialógico de análise dos dados documentais e narrativos (BAKHTIN, 2010; 2016),
associada às perspectivas da pedagogia histórico-crítica, da teoria histórico-cultural e da inter-relação
literatura e sociedade (SAVIANI, 2013; FREIRE, 1996; 2020; SILVA, T. T., 2016; OLIVEIRA, 2003;
VYGOTSKY, 2001; MARTÍNEZ &
GONZÁLEZ REY, 2017; VÁZQUEZ, 2011; SILVA, K. C., 2017; CANDIDO, 2011; COSSON, 2006;
COMPAGNON, 2009; LAJOLO, 2011; TODOROV, 2009; FANON, 1968; SPIVAK, 2010; KRENAK, 2020). A
partir de uma perspectiva crítico-reflexiva, o que se pretende investigar é o sujeito-professor de literatura, em
sua prática docente, considerando-se como ponto de partida desta prática a sua vivência durante a
formação inicial no Curso de Letras-LP/UFAM.
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Critério de Inclusão:
Os/as participantes serão egressos/as, em nível de formação inicial, do Curso de Letras-LP/UFAM que
atuam como professores/as de literatura no Ensino Médio na Coordenadoria Distrital de Educação 05 da
SEDUC-AM. Os convites serão feitos por contato (presencial ou remoto) com os sujeitos, a partir da
identificação destes junto à mencionada Coordenadoria. Considerando-se o fato que nem todos decidam
aderir à pesquisa, pretende-se contatar todos os egressos formados pelo referido Curso para atingir o
número de até 06 participantes atuantes em escolas da Coordenadoria localizadas em até 03 bairros
distintos, mas vizinhos. A coleta dos dados será feita entre os meses de agosto de 2021 e dezembro de
2022, para que se tenha, assim, a oportunidade de observar possíveis mudanças na dinâmica ao longo do
processo. Assegurar-se-á, e isto será registrado no TCLE, a privacidade e a não identificação dos/as
participantes deste estudo.
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Objetivo da Pesquisa:
Objetivo Primário:
Investigar, à luz da dialética, em abordagem histórico-cultural, se a perspectiva crítico-reflexiva é
desenvolvida na formação inicial do/a professor/a de literatura no Curso de Letras – Língua e Literatura
Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas (Letras-LP/UFAM) de modo a contribuir para um
ensino de literatura que se faça espaço de reflexão e vozeamento no contexto de escolas da rede pública
estadual de ensino na periferia de Manaus.
Objetivo Secundário:
a)Evidenciar as contradições presentes na formação inicial do sujeito-professor, discutindo dialeticamente o
ensino de literatura;
b)Analisar as contradições dos discursos oficiais na legislação educacional (LDB, BNCC, Referencial
Curricular Amazonense e afins) e no Plano Pedagógico de Curso – PPC/Letras-LP/UFAM (2010) vigentes,
bem como em outros documentos oficiais do Curso de Letras-LP/UFAM;
c)Apontar, à luz da perspectiva histórico-cultural, a partir das narrativas dos sujeitos docentes, como a
formação inicial do professor de literatura no Curso de Letras-LP/UFAM comparece na prática docente.
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fundamentais: Comitê de Ética e Pesquisa, TCLE, confidencialidade e a privacidade dos dados. Para tanto,
caso ocorra constrangimento ou desconforto durante o desenvolvimento da pesquisa aos participantes,
visando o bem-estar dos mesmos, a pesquisadora suspenderá a aplicação dos instrumentos de coleta de
dados e realizará, se necessário, encaminhamento para o Centro de Serviços de Psicologia Aplicada -
CSPA/UFAM. Cumpre esclarecer que a pesquisa, por meio da instituição que a acolhe, garantirá
indenização aos participantes (cobertura material), em reparação a dano imediato ou tardio, que
comprometa o indivíduo ou a coletividade, sendo o dano de dimensão física, psíquica, moral, intelectual,
social, cultural ou espiritual do ser humano e jamais será exigida dos participantes, sob qualquer argumento,
renúncia ao direito à indenização por dano. Os valores respectivos aos danos serão estimados
pela instituição proponente quando os mesmos ocorrerem, uma vez que não há valores pré-estabelecidos
de acordo com os riscos, uma vez que não há previsibilidade dos mesmos em seus graus, níveis e
intensidades na Resolução em tela e nem na Res. 510/2016, que trata da normatização da pesquisa em
ciências humanas e sociais, uma vez que não há definição da gradação do risco (mínimo, baixo, moderado
ou elevado). No que tange aos riscos que se relacionam à coleta em ambiente virtual, caso seja essa a
modalidade em que se desenvolva a coleta de dados da pesquisa, ressalta-se que serão seguidas as
recomendações da Carta Circular n. 1/2021-CONEP/SECNS/MS, sendo os sujeitos da pesquisa contatados
via e-mail ou telefone, fornecidos pela SEDUC-AM e, em sendo realizado o primeiro contato, serão
agendadas reuniões individuais virtuais com os que se enquadrarem nos critérios de inclusão e
manifestarem interesse em participar da pesquisa para esclarecimento dos procedimentos a serem
adotados – grupos focais, entrevistas individuais narrativas abertas, webnários formativos e rodas de leitura
literária virtuais (realizados via Google Meet, Zoom ou Skype) e quinzenários (coletados via WhatsApp ou
Telegram), esclarecendo-se aos participantes como os procedimentos serão realizados nas plataformas
digitais mencionadas, bem como informando-os acerca do sigilo e da privacidade assegurados pela
pesquisa. Destaca-se, ainda, que os links das reuniões serão gerados pela pesquisadora responsável pela
coleta e enviados por e-mail, individualmente, aos participantes, com data e horário previamente agendados,
respeitando-se sempre a disponibilidade de tempo e condições de acesso à internet especificados por cada
participante. Ainda no que tange aos procedimentos de coleta em ambiente virtual, acerca dos Termos de
Consentimento Livre Esclarecido, destaca-se que todos os participantes serão orientados quanto ao seu
preenchimento e os mesmos serão disponibilizados, via e-mail, a partir de link de acesso. Ressalta-se, por
fim, que, para minimizar os riscos de violação da confidencialidade, não haverá armazenamento de
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qualquer dado em “nuvem”, plataforma virtual ou ambiente compartilhado e o resguardo dos dados será
assegurado por utilização de dispositivos eletrônicos locais (notebook e HD externo) para dos dados
coletados, utilizando-se, também, programas de antivírus durante durante todo o processo.
Benefícios:
As informações empíricas produzidas neste projeto científico promoverão avanços na compreensão sobre
como a formação inicial do/a professor/a de literatura se desdobra, em sentidos e significados, em sua
prática docente. Será possível compreender o quanto a universidade responde às demandas desses/as
profissionais e, assim, produzir conhecimentos que contribuam para a gestão do ensino-aprendizagem na
educação superior e na educação básica. No âmbito das instituições, espera-se que os resultados desse
estudo possam ser utilizados na reorganização de normas e
procedimentos de ensino-aprendizagem, entendendo-se que a construção dos saberes se dá a partir de
diferentes bases culturais e numa perspectiva crítico-reflexiva, considerando-se o contexto amazônico em
que esta pesquisa se insere, uma vez que urge o comprometimento de toda a sociedade local com a
formação e a prática docentes em perspectiva sensível às demandas regionais.
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Recomendações:
Este CEP/UFAM analisa os aspectos éticos da pesquisa com base nas Resoluções 466/2012-CNS,
510/2016-CNS e outras complementares. A aprovação do protocolo neste Comitê NÃO SOBREPÕE
eventuais restrições ao início da pesquisa estabelecidas pelas autoridades competentes, devido à pandemia
de COVID-19. O pesquisador(a) deve analisar a pertinência do início, segundo regras de sua instituição ou
instituições/autoridades sanitárias locais, municipais, estaduais ou federais. Pesquisas no âmbito da
Universidade Federal do Amazonas devem atender ao estabelecido no Of.
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Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não
Assinado por:
Eliana Maria Pereira da Fonseca
(Coordenador(a))
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APÊNDICES
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
APÊNDICES:
APÊNDICE A: TCLE
APÊNDICE - A
Fls. 1/2
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Fls. 2/2
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Cumpre esclarecer que a pesquisa será desenvolvida com base nas Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, do Conselho Nacional de Saúde,
Resolução n. 466/12 e, por meio da instituição que a acolhe, garantirá indenização aos participantes
(cobertura material), em reparação a dano imediato ou tardio, que comprometa o indivíduo ou a
coletividade, sendo o dano de dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou
espiritual do ser humano e jamais será exigida dos participantes, sob qualquer argumento, renúncia
ao direito à indenização por dano. Os valores respectivos aos danos serão estimados pela instituição
proponente quando os mesmos ocorrerem, uma vez que não há valores pré-estabelecidos de acordo
com os riscos, já que que não há previsibilidade dos mesmos em seus graus, níveis e intensidades
na Resolução em tela e nem na Res. 510/2016, que trata da normatização da pesquisa em ciências
humanas e sociais, pois não há definição da gradação do risco (mínimo, baixo, moderado ou
elevado).
Uma vez finalizada a pesquisa, ela poderá trazer benefícios coletivos, pois os resultados
deste doutorado deverão ser apresentados em eventos científicos na instituição e em outros locais,
como projetos de cunho social em comunidades variadas, no sentido de divulgar os resultados e
sensibilizar a sociedade sobre a necessidade avanços em relação ao tema investigado, podendo os
resultados contribuírem, também, com as instituições pertencentes à Rede Estadual de Educação do
Amazonas, na cidade de Manaus. Contudo, explicita-se que sua decisão de participar do estudo não
está de maneira alguma associada a qualquer tipo de recompensa financeira ou em outra espécie,
entretanto, você pode ser ressarcido de despesas como transporte e alimentação (no momento da
coleta de dados).
Após ler este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e aceitar participar do estudo,
solicitamos a assinatura do mesmo em duas vias, ficando uma em seu poder.
Eu, Sr/a ................................................................................................................. fui informado/a
sobre a pesquisa “Ensino de literatura: subjetividades docentes, formação inicial e chão de
escola em uma região periférica de Manaus”, e concordo em participar da mesma e que as
questões discutidas sejam usadas nesta pesquisa.
Manaus,
_____/_____/_______
______________________________
Assinatura do participante Impressão dactiloscópica
_____________________________________________________________________
COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Escola de Enfermagem de Manaus/UFAM Rua Teresina, 495– Adrianópolis – CEP:
69057-070 – Manaus-AM Fone: (92) 3305-1181, Ramal 2004 –
E-mail: [email protected]
173
APÊNDICE - B
Fls. 1/1
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Nome:
Idade: ( ) Entre 20 a 35 anos ( ) Entre 36 a 45 anos ( ) Entre 46 e 55 anos ( ) Mais de 55 anos.
Email:_________________________________________________________________________
Titulação ( ) Graduação ( ) Especialização ( ) Mestrado ( ) Doutorado
Tempo de atuação docente como professor de literatura no Ensino Médio ( ) De um a dois
anos ( ) De três a cinco anos ( ) De seis a dez anos ( ) mais de 10 anos
2.1 Como você vê a trajetória da sua formação inicial no Curso de Letras-LP/UFAM em relação à
sua prática docente enquanto professor de literatura?
_____________________________________________________________________
COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Escola de Enfermagem de Manaus/UFAM Rua Teresina, 495– Adrianópolis – CEP:
69057-070 – Manaus-AM Fone: (92) 3305-1181, Ramal 2004 –
E-mail: [email protected]
174
APÊNDICE - C
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
DIÁLOGOS FORMATIVOS
Literatura e sociedade: diálogos com a realidade
Professoras:
Priscila Vasques Castro Dantas
Rita Barbosa de Oliveira
Manaus - 2022
LITERATURA E SOCIEDADE: DIÁLOGOS COM A REALIDADE
PROPOSTA DE TRABALHO
Objetivos específicos: Realizar roda de conversa para dialogar com os professores acerca
do ensino de literatura;
Discutir estratégias de trabalho com o texto literário;
Esboçar um projeto, com participação discente, priorizando o
diálogo do texto literário com a realidade.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................03
1. A BNCC PARA A LITERATURA .............................................................................06
2. O LETRAMENTO LITERÁRIO ................................................................................10
3. LITERATURA E SOCIEDADE EM SALA DE AULA ............................................11
REFERÊNCIAS .............................................................................................................12
ANEXOS .........................................................................................................................13
3
INTRODUÇÃO
Zemaria Pinto (2009, p. 9) nos lembra: “Sem leitor, o texto não existe; é
literalmente letra morta, sem nenhum valor. Daí a importância que a Teoria da Literatura
empresta ao leitor”. Ele, então, propõe cinco ações-etapas que compõem esse processo,
essa relação do leitor com o texto lido, que detalham melhor a equação – por assim dizer
– leitor + texto = leitura = fruição. Vejamos na figura elaborada por Pinto (2009, p. 10):
4
Bem, e nós, neste processo? Nós somos os navegantes, os que estão a bordo da
canoa e que, no navegar, aportam nos beiradões da literatura. Nossa relação com a
literatura, que começa com cada obra literária lida, desde nossa infância, que se faz das
contações de histórias que ouvimos no tempo da meninice, vai se fortalecendo ao longo
da descida do Grande Rio da Literatura, no qual aportamos, lá na formação em Letras,
5
Essa não é, contudo, uma tarefa fácil. O que faremos aqui nestes Diálogos, então,
é pensar juntos em estratégias de trabalho com o objeto literário que viabilizem
estabelecermos, com nossos alunos e alunas, uma perspectiva interdisciplinar sobre a
literatura, compreendendo que ela é expressão humana e, por isso, toca nas questões
sociais, históricas, culturais e subjetivas.
Vamos lá?!
Interação 1
Nuvem de palavras
Vamos começar pensando sobre a nossa relação com a literatura? Nos próximos
minutos, vamos fazer a dinâmica da nuvem de palavras, deixando vir ao papel tudo aquilo
que sentimos quando pensamos na nossa relação com a literatura.
.
6
À luz dos seus conhecimentos de Teoria Literária, você tem conseguido viabilizar
esse trabalho transdisciplinar com a literatura, conforme previsto na Base? Vamos
interagir pensando sobre isso?
8
Interação 2
Pensando a literariedade
Poema 2: Soneto ecológico. Fernando Aguiar. Criação: 1985; plantação: 2005; finalização: 2007. Fonte:
https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/tridimensionais/fernando-aguiar-soneto-ecologico/
O LETRAMENTO LITERÁRIO
Interação 3
Interação 4
Ainda tomando como pressuposto o que foi pontuado por Cosson (2009) no texto
que lemos, vamos nos propor a ler para além da leitura?
Interação 5
Esboçando projetos
REFERÊNCIAS
ANEXOS
História do Brasil
PERO VAZ CAMINHA
a descoberta
os selvagens
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o sglto real
as meninas da gare
1
O rondó dos cavalinhos
1 Os cavalinhos correndo,
2 E nós, cavalões, comendo . . .
3 Tua beleza, Esmeralda,
4 Acabou me enlouquecendo.
5 Os cavalinhos correndo,
6 E nós, cavalões, comendo . . .
7 O sol tão claro lá fora,
8 E em minh'alma — anoitecendo!
9 Os cavalinhos correndo,
10 E nós, cavalões, comendo . . .
11 Alfonso Reyes partindo,
12 E tanta gente ficando . . .
13 Os cavalinhos correndo,
14 E nós, cavalões, comendo . . .
15 A Itália falando grosso,
16 A Europa se avacalhando . . .
68
CARROSSEL .69
17 Os cavalinhos correndo,
18 E nós, cavalões, comendo . . .
19 O Brasil politicando,
20 Nossa! A poesia morrendo . . .
21 O sol tão claro lá fora,
22 O sol tão claro, Esmeralda,
23 E em minh'alma — anoitecendo!
69
70. NA SALA DE AULA
de maneira a configurar um estribilho, ou refrão. Além disso, não deve ter mais
de duas rimas.
A rigorosa construção d'"O rondó dos cavalinhos" requer tratamento
igualmente rigoroso, como tentaremos fazer, abordando os elementos mais
fáceis de observar: pontuação, rima, ritmo, categoria gramatical, estrofação —
que contêm sentidos, mais do que se poderia pensar à primeira vista. Da sua
descrição atomizada passa-se à correlação entre eles, a fim de procurar a fórmula
segundo a qual o poema foi construído; e, com isso, chegar ao significado.
2
Observando a pontuação, percebemos o seguinte:
1. todos os versos são pontuados no fim;
2. há 8 versos terminados por reticências. Num total de 23, o índice é
elevado — pouco mais da terça parte. Note-se que desses 8 versos, 5 são o 2.°
do estribilho;
3. nesse segundo verso do estribilho (repetido 5 vezes), há vírgulas fortes,
isto é, forçando pausas acentuadas;
4. no verso 8 (que é o mesmo 23) o verbo está destacado por um travessão
e seguido por um ponto de exclamação.
Passando às rimas, nota-se que são muito parecidas:
é quase uma só, pois pouco muda a sonoridade a substituição da rima endo pela rima
ando 1.
1
MORAES, EManuel de. Manuel Bandeira; análise e interpretação lite-raria, Rio de Janeiro. J. Olympio, 1962. p.
211.
70
CARROSSEL .71
a
estrofe (verso 4) rima com o último da 2. estrofe (verso 8), ambos com a mesma
terminação do estribilho (endo); o último verso da 3.a estrofe (verso 12) rima
com o último da 4.a (verso 16), com terminações diferentes do estribilho (ando).
O 3.° verso de cada uma das quatro estrofes e solto, isto é, não rima com
nenhum outro (versos 3, 7, 11,15).
A última estrofe é maior, formada por uma quadra igual às outras, acrescida
de três versos, que são uma retomada dos dois últimos da 2. a estrofe (versos 7-
8), o primeiro dos quais repetido de forma modificada (verso 22). Nesta última
estrofe predominam as rimas do estribilho (endo); mas os versos 21 e 22 são
soltos, e o verso 19 rima em ando com os finais da 3.a e da 4.a estrofe (versos 12
e 16).
Esses dados permitem uma primeira correlação entre a disposição das
estrofes e a disposição das rimas. Sob este aspecto, note-se que a l.a e a 2.a
estrofes são idênticas quanto à rima (deixando de fora os versos soltos): endo-
endo-endo; endo-endo-endo. A 3.a e a 4.a estrofes são diferentes delas, mas
iguais entre si: endo-endo-ando; endo-endo-ando. A estrofe final parece uma
duplicação das duas primeiras, entremeada por um ponto de ligação com a 3.a e
a 4.a: endo-endo-(ando)-endo-endo. Dessas observações decorre que a
correlação entre as rimas e as estrofes mostra que o poema é formado por três
blocos, caracterizados por estes elementos materiais, a saber: (1) estrofes 1 e 2
(versos 1-8); (2) estrofes 3 e 4 (versos 9-16); (3) estrofe 5 (versos 17-23). Esta
circunstância é relevante no plano do significado, como se verá mais longe.
3
Passando a outro elemento material, o ritmo, verifica-se inicialmente que o
metro é de 7 sílabas, e que uma leitura meramente silábica não adianta nada para
a compreensão. Seja o estribilho:
1 2 3 4 5 6 7
Os / ca / va / li / nhos / co / nem / do
E / nós / ca / va / lões / co / men / do.
71
72. NA SAI A DE AULA
Mas se lermos obedecendo rigorosamente à pontuação acima verificada,
isto é, dando força às pausas determinadas pelas vírgulas, teremos a combinação
de um ritmo corredio com um ritmo picado:
Os cavalinhos correndo //
E nós // cavalões // comendo.
Ou:
▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬
▬▬▬▬ ▬▬▬▬ ▬▬▬▬▬
72
CARROSSEL .73
que nos leva a indagar se haverá a mesma coisa no plano do significado, além do
que sugere a metáfora ("homens" = "cavalões").
Para isso, imaginemos a seguinte proposição:
C=g H = ng
C = ng H= g
73
74. NA SALA DE AULA
cial decisivo, sugerindo que a ação de comer, quando atribuída ao homem, se
processa como galope, e isso o reduz ao nível do cavalo. Esse desvendamento se
faz pelo choque entre os dois planos, o léxico e o rítmico. Com efeito, a
contradição estabelecida pelo ritmo perturba a verificação "normal" e obriga a
ler assim: "os inofensivos cavalos, delicadamente deslizando na pista conforme
a visão a distância, são seres inocentes, domesticados para nos divertirem, a nós,
homens, que na verdade somos mais brutos do que eles, e comemos
comodamente em meio às iniqüidades e frustrações do mundo, enquanto eles se
esbofam".
O fato dos cavalos estarem em ritmo, digamos, humano, e os homens em
ritmo cavalar, destaca a idéia de contradição, contraste, oposição, que é o
elemento mais importante entre os que revistamos. Trata-se de uma tensão de
significados, um dos fatores principais da linguagem poética.
4
Até agora, só estudamos praticamente o dístico-estribilho. É tempo de
perguntar qual é a sua ligação com os outros dísticos, separados dele por
reticências e formando a segunda parte de cada quadra (versos 3-4, 7-8, 11-12,
15-16, 19-20). A resposta é que não há ligação. As estrofes são formadas por
dísticos desligados, pelo menos aparentemente, como indica a pontuação que os
delimita. Para averiguar se há entre elas algum traço unificador, podemos usar o
elemento mais geral que percebemos até agora, a contradição, aplicando-o à
análise dos segundos dísticos de cada estrofe. O resultado é o seguinte:
Beleza X loucura
Sol claro X alma escura
um bom que vai X maus que ficam
país prepotente X países submissos
politiqueiro ativo X poesia perecendo
75
76. NA SALA DE AULA
devido à situação de contraste e do próprio ar meio grandiloqüente; no segundo
dístico, devido à banalidade das imagens. Um patético infiltrado de ressaibo
irônico.
Na 3.a e na 4.a estrofe os dísticos que seguem ao estribilho (versos 11-12 e
15-16) são igualmente baseados numa contradição, que, todavia, não parece
patética, mas predominantemente irônica, o que é marcado pelas reticências.
"Tanta gente que poderia ir sem fazer falta, e, no entanto, quem vai é logo
alguém da qualidade de Alfonso Reyes, que poderia ficar. . ." "A Itália fascista
falando grosso e se impondo à maioria das nações, que tentaram chamá-la à
ordem, mas acabaram se rebaixando. . ." No entanto, simetricamente ao que
observamos antes, a ironia aqui não é pura, porque há um toque de patético nas
duas situações: a do homem bom (avis rara) que vai embora no lugar dos
medíocres e maus; e sobretudo a do país prepotente, que, entretanto, prevalece
na empresa de esmagar um pobre país primitivo. Ironia infiltrada de ressaibo
patético.
Nesses termos, verifica-se a importância da análise das rimas, que
caracterizam dois blocos, diferenciados pelo teor do discurso. Com efeito:
1.° bloco = estrofes 1 + 2, com rimas endo-endo-endo e o seguinte tipo de
discurso: Irônico + Patético (irônico);
2.° bloco = estrofes 3 + 4, com rimas endo-endo-ando e o seguinte tipo de
discurso: Irônico + Irônico (patético).
Há, portanto, funcionalidade das rimas e correspondência entre os aspectos
estruturais e os aspectos semânticos, determinando uma oposição geral entre o
1.° e o 2.° bloco. Sobre a base comum do estribilho irônico, eles se diferenciam
e se opõem pela tonalidade dos dísticos terminais de cada estrofe.
O terceiro bloco é misto, como as rimas que nele ocorrem. A quadra virtual
(versos 17-20) é interessante, porque é francamente irônico o verso 19, que
termina em ando e rima com os versos finais da 3.a e 4.a estrofes,
respectivamente versos 12 e 16. O verso 20, terminado em endo, que rima com o
estribilho, seria patético pelo conteúdo, mas com forte marca de ironia,
assinalada pelo ponto de exclamação e as reticências. Mas o retorno dos versos
da 2.a estrofe, com rima em endo (versos 20 e 23), reintroduz a nota patética.
Assim, essa estrofe é sincrética, não apenas pela solda de uma quadra e mais três
versos, mas pela mistura
76
CARROSSEL .77
bastante íntima de ironia e patético. Isso talvez permita concluir a análise desse
aspecto do poema, dizendo que as estrofes se ordenam segundo uma dialética da
ironia e do patético, com a unidade formada pelas oposições de tonalidades. Seja
como for, a nossa conclusão seguiu o rumo do levantamento dos elementos
"materiais", para extrair deles os significados, passando pela percepção da
estrutura. Fiquemos assim com uma noção que tem bastante valor prático no
trabalho sobre os textos: na análise, que não pode se limitar às intuições, mas
precisa suscitá-las ou confirmá-las, a estrutura tem precedência como elemento
de compreensão objetiva. Pelo menos como etapa do método, o significado pode
ser considerado como contido nela.
5
Este árido exercício deveria prosseguir, orientado agora pela constatação de
que o poema se rege por contradições; de que a sua estrutura é contraditória,
marcada pela recorrência de um dístico irônico. A ironia deve ser levada sempre
em conta, porque e o gerador da contradição, ou seja, da oposição entre os
elementos. Ela domina de tal modo que não dá muito lugar para as outras
figuras, usualmente mais importantes ou mais freqüentes do que ela, como a
metáfora, a metonímia, a sinédoque. Neste poema, as metáforas são do tipo
usual, isto é, desgastadas pela incorporação à fala corrente: enlouquecer de
amor, anoitecer na alma, morrer a poesia. É verdade que a ironia central se
constrói sobre uma metáfora (homem = cavalo); mas de importância menor em
face do seu envolvimento por aquela.
De fato, a ironia aqui é ampla e misturada, abrangendo uma nota de
patético e de melancolia; e sabemos que se fala em "ironia trágica", "ironia do
destino", "cruel ironia" etc. Há uma ironia de conotação cômica, ou
simplesmente alegre, e outra de conotação trágica, ou simplesmente
melancólica. Entre ambas, a gama e vasta.
Uma última observação de reforço, a respeito da correlação entre o
vocabulário e o gênero. O vocabulário deste poema se caracteriza pelo uso
coloquial das palavras e frases, com extrema simplicidade, seja do lado da nota
irônica, seja do lado da nota
77
78. NA SAIA DE AULA
patética. Linguagem popular, como "cavalão", "falando grosso", "se
avacalhando", "politicando", "nossa!". Locuções sem formalismo, como "acabou
me enlouquecendo", "tanta gente ficando". Ora, isso contradiz a própria essência
do gênero, cortesão e elegante, que em princípio exige linguagem requintada.
Portanto há choque entre a norma e o seu uso, mostrando a ironia do poeta ao se
servir de um antigo gênero polido para descrever um acontecimento mundano
atual (primeiro nível da ironia), mas desfigurando-o essencialmente pela
identificação daquela burguesia cavalar à natureza animal (nível segundo e mais
forte da ironia). É como se o poeta degradasse uma forma literária antiga,
associada a idéias de elegância e finura, associando-a à esterilidade mesquinha
do mundo burguês, que procura imitar sem êxito comportamentos esvaziados do
seu significado (como em A terra desolada, de T. S. Eliot).
Isso encerra o nosso exercício voluntariamente incompleto, pois já ficou
dito o que se queria dizer, isto é: para uma conclusão objetiva sobre o
significado do poema (inclusive a fim de confirmar intuições eventuais),
convém partir de verificações elementares, que permitem desmontar a estrutura.
6
Agora só falta terminar, resumindo assim: o poema descreve a oposição
entre uma cena vivida e as reflexões ou sentimentos que vão-se desenrolando
simultaneamente no íntimo do poeta. Na tribuna de um prado de corridas (que
naquele tempo era lugar muito elegante), há um almoço em homenagem,
enquanto os cavalos correm. Parecem quase brinquedos, inofensivos, deslizando
ao longe. Páreos e almoço duram algum tempo, registrado pela recorrência do
estribilho, que descreve a ação exterior e se transforma, de exigência do tipo de
poema, em traço funcional; e o fato dele marcar a duração temporal mostra que,
no caso, a forma do rondo é operativa como registro da realidade. No salão, os
convidados parecem na verdade uns animais, indiferentes ao que vai no espírito
do poeta, insensíveis à beleza da tarde, inconscientes da gravidade do mundo. O
poeta divaga sobre tudo isso, mas
78
CARROSSEL .79
só lembra coisas frustrantes, em oposição e contraste com o movimento externo,
a euforia da corrida e da festa. Frustradoras — sejam as de cunho pessoal
(insatisfação amorosa, melancolia), sejam as de cunho social (partida de um
homem eminente, descalabro da paz no mundo, politicagem no país). Há
mistura, oposição constante entre a cena exterior e a "ladeira do devaneio" (para
falar como Victor Hugo). E parece que as coisas brilhantes recobrem no fundo
as coisas deprimentes. No entanto tudo isso deve ser tomado como um grão de
sal, porque afinal de contas a vida é assim mesmo, e nela tudo se mistura, não
havendo estados de pureza da percepção ou das emoções. O que não impede que
o balanço, nessa tarde de domingo festivo, seja melancólico. Uma ironia
melancólica, que atenua o patético, mas também embota a amargura e o
sarcasmo.
Dito assim, tudo fica meio pedestre, como são as paráfrases. Mas dito pelo
poeta, é admirável, porque a poesia não depende do "tema", e sim da capacidade
de construir estruturas significativas, que dão vida própria ao que de outro modo
só se exprimiria de modo banal. Aqui, o essencial está no fato da mensagem ser
organizada por meio de um determinado sistema de oposições, manifestado em
ritmos, sonoridades, cortes, surpresas, fulgurações verbais, num dado contexto.
Essa organização realça na complexidade do discurso a função poética, espelho
de Narciso da palavra e, para nós, uma espécie de plumagem sexual que ela
reveste.
Assim, truques como a simples repetição dos versos 7 e 8 em contexto
novo, além da duplicação de um deles, modificado pela evocação da Esmeralda
referida no verso 3 (versos 21-23). ampliam o significado e transmitem uma
extraordinária carga de patético, destilado paradoxalmente pela ironia:
79
80. NA SALA DE AULA
estribilho, que lhe serve de modelo; e ambas mostram como as regras do rondó-
rondel podem ser úteis para sublinhar a mensagem. Quanto a esta, diz Emanuel
de Moraes (na obra e página citadas) que o "conteúdo lírico" não se encontra no
assunto ocasional da homenagem mundana a Alfonso Reyes, mas nestes versos,
"cujo significado é o dominante do poema". Depois da análise feita aqui, talvez
se possa dizer que o significado dominante decorre do sistema de oposições e
contradições, que constituem o princípio estrutural e explodem como jóia rara
nessa contradição suprema do amor que escurece a alma, dentro do fulgor do dia
claro, restaurando inesperadamente a pujança da metáfora (mesmo usual), como
coroamento de um poema dominado pela ironia.
80
215
168
APÊNDICE - D
PODER EXECUTIVO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
Produções
literárias
2º ano 04
2º ano 05
Produções
literárias
Antonio Candido
Os textos a seguir são fruto do trabalho
realizado na 1º Oficina de Contos e Crônicas
da E. E. Roderick Castelo Branco.
A Oficina é uma parceria entre o trabalho
docente do Prof. Romário Fernandes e a
pesquisa de doutoramento da Prof. ª Priscila
Vasques e foi realizada no 2º bimestre letivo
do ano de 2022, com as turmas 2º ano 04 e
2º ano 05, no turno matutino.
Um assalto muito azarado
O ladrão já estava preso há mais de cinco anos numa penitenciária do interior do estado de
São Paulo e, pela primeira vez, ele havia recebido a oportunidade de ficar em casa por conta do
benefício do indulto de páscoa.
Assim que o criminoso saiu da cadeia, ele resolveu viajar para uma pequena cidade do
interior. Ali, não resistindo à tentação: na primeira oportunidade que ele teve, roubou a
carteira e o celular de uma garota.
Depois do roubo, a moça começou a gritar muito alto pedindo socorro. Logo apareceu um
policial para ajudá-la. Prontamente, o policial saiu em perseguição ao ladrão. Depois de correr
atrás do ladrão por mais de quatro quarteirões sem sucesso, o policial ficou muito
impressionado com a agilidade do esperto ladrão.
Durante a corrida, o ladrão, assim que entrou em uma rua, viu um grande muro.
Rapidamente escalou o paredão e saltou para o outro lado. O policial, ao ver aquilo, parou
imediatamente, ainda bastante surpreso com a agilidade do picareta. O policial foi, então, até
o portão daquela propriedade onde o marginal havia pulado para ver o que estava
acontecendo.
Ao chegar lá, qual foi a surpresa do policial: o ladrão havia sido imobilizado por um homem
naquele local. Era um outro policial. Sim, um outro policial, pois aquele ladrão pra lá de
azarado havia pulado justamente dentro do batalhão da polícia militar daquela pequena
cidade do interior.
No final de semana, no domingo, eu e minha família fomos para um passeio na casa do meu
tio Baixinho, que fica ali pelo Porto da Ceasa. Esse foi um dia que dá pra chamar de
emocionante; aconteceram várias coisas. Eu e minha família saímos de casa por volta de dez
horas da manhã e chegamos ao nosso destino umas dez e trinta. Chegando lá, nosso primeiro
contato foi com o rio. Coisa boa de se ver é o rio! A vista é linda! Sentir o vento bater no rosto,
que sensação boa. Meu pai, Gildo, e meu tio, Baixinho, compraram peixe pra fazer um almoço
maravilhoso. Enquanto eles compravam mais algumas coisas pro almoço, eu e meus irmãos,
Gustavo, Pedro e Jéssica, e minha mãe, Cídia, juntamente com meu padrinho Adalto, fomos
até um flutuante ver o rio um pouco mais de perto. Era lindo demais! Foram momentos alegres
ali, juntos. Tiramos muitas fotos.
Depois de voltarmos do flutuante, fomos encontrar meu pai e meu tio. Meu pai, minha mãe,
meu tio e meu irmão caçula foram a pé para casa do meu tio, enquanto eu e meus outros dois
irmãos fomos de carro, com meu padrinho. Chegamos à casa do meu tio por volta das onze e
trinta e esperamos o restante da família chegar. Acontece que os que tinham ido a pé
encontraram o caminho da chuva! Eles chegaram todos molhados, coitados. Tinha começado a
chover na metade do caminho. Depois que eles se secaram, todos nos concentramos em
aprontar o almoço.
Minutos depois, uma reviravolta: minha mãe chega dizendo que minha prima Rebeca ligou e
disse que estava com uma alergia muito forte. Nessa hora, todo mundo se desesperou, final, a
prima Rebeca estava lá na casa dela, muito longe de nós. Mas meu padrinho se ofereceu pra
irmos buscar ela de carro e assim fomos, eu, minha mãe e meu padrinho. Aproveitamos pra
buscar também o remédio pra alergia que estava em nossa casa. Feitas as buscas todas,
voltamos pra Ceasa, trazendo não só a prima Rebeca, mas também outras duas primas que
não queriam mais ficar sozinhas em casa. Medicamos a prima Rebeca, embarcamos de volta e
fomos em direção ao almoço que nos esperava.
Quando chegamos à Ceasa, o almoço já estava pronto. Almoçamos e pensamos que tudo ia ser
só lazer, mas a minha prima começou a piorar da alergia. Então resolvemos levá-la ao
hospital. A coitada de branca estava toda vermelha! No hospital, minha mãe resolveu entrar
junto com minha prima e eu e meu padrinho ficamos esperando elas voltarem. Como
demoravam muito, meu padrinho teve a ideia de irmos ao shopping, que, por sinal, ficava
próximo ao hospital. Fomos. Passeamos um pouco pelo shopping. Fazia um tempão que não
saía com meu padrinho! Foi muito bom. Algumas horas depois, minha mãe ligou pra mim,
dizendo que já iam sair do hospital. Fomos buscá-las, então.
A aventura do dia continuou. Do hospital, fomos para a o Porto de Manaus, buscar uma
encomenda de minha mãe e também buscar minha tia Débora, que estava chegando de
viagem. Ficamos lá, esperando o barco chegar e, enquanto isso, eu e minha prima tiramos
várias fotos. Aquela foi a primeira vez que a minha prima via o rio tão de perto e ela amou.
Finalmente o barco chegou. Minha mãe foi buscar a encomenda, meu padrinho foi procurar
minha tia. Tudo organizado. Voltamos pra casa do meu tio na Ceasa. Chegando lá,
merendamos e, quando nos demos conta, já eram cinco e meia da tarde. Foi então que
decidimos ficar um pouco mais de tempo lá. Não dava pra perder aquela vista linda para o rio
que tinha na casa do meu tio! O pôr do sol mais lindo! Olhar o rio, vendo o sol ir embora: que
sensação bonita de liberdade!
Quando anoiteceu e tínhamos que voltar pra casa, ficamos todos um pouco tristes. Como a
família é grande, nove pessoas, tivemos que voltar em carros diferentes: no carro do meu
padrinho e em um Uber. Precisamos fazer uma certa caminhada até o Uber. A rua era enorme e
não tinha quase nenhum carro passando, então era bem legal de andar. Apostei uma corrida
com minha prima e ganhei. Fiquei tão feliz! Fazia um bom tempo que não corria. Aliás, fazia
um bom tempo que não me sentia tão feliz. Acho que, na verdade, nunca tinha me sentido tão
feliz e tão livre como naquele dia! Até hoje, guardo com muito carinho na memória as
lembranças daquele que foi o melhor passeio de toda a minha vida.
Metade da manhã se passou. Infelizmente, o plano de se esconder de Guilherme não deu muito
certo e eles acabaram se encontrando pelos corredores. Guilherme correu atrás de Ravena e
gritou:
- Tá fugindo de mim?
As pessoas que estavam no corredor olharam e Ravena ficou vermelha, suas pernas tremiam.
Tudo isso era novo para a garota que dizia “não sentir nada”.
- Não, não estou fugindo não. Disse ela nervosa.
- Ravena, me desculpe pelo que eu fiz na festa, não era minha intenção. Você me fascina e eu
acabei não me controlando.
- Está tudo bem!
Ravena e Guilherme se olharam e ficaram vermelhos. Então, Ravena, em um ato de impulso,
perguntou:
- Você quer ir ao Parque depois daqui?
Guilherme, surpreso, disse:
- Claro, eu te espero no portão às 17h, ok?
- Ok!
Eles, então, foram juntos ao parque e se divertiram muito. Ele fazia muito bem a ela e todo
aquele sentimento ruim que ela sentia havia passado. E assim Ravena e Guilherme se
apaixonaram e se tornaram o casal mais fofo da escola. Foram até ao baile juntos. Ravena
finalmente experimentava o amor: estava apaixonada e feliz.
Mas o tempo passou e Ravena havia percebido que Guilherme estava cada vez mais distante.
Tentou conversar com ele e nada. Então, ela decidiu ir para a casa de Guilherme durante a
noite, já que ele havia saído aquela noite e seus pais estavam viajando. Era sua chance de
descobrir o que estava acontecendo com ele. Ravena, então, entrou pela janela do quarto do
garoto naquela noite.
Mexeu aqui e ali. Até então, parecia tudo normal; ela chegou a pensar que estava ficando
louca, mas, quando estava indo embora, a garota se deparou com uma pequena gaveta
trancada com cadeado no armário do garoto. Sem pensar duas vezes, ela pega um martelo na
caixa de ferramentas do pai de Guilherme e bateu, bateu, até que conseguiu quebrar o cadeado.
A garota se deparou com algo perturbador e muito assustador na caixa. Dentro dela havia
fotos dela, mas não eram fotos comuns, eram fotos dela, dormindo, tomando banho, se
tocando etc... era completamente assustador. E havia fotos de outras garotas da escola. Havia
armas, cordas, e até o seu canivete que tinha perdido na festa naquela noite.
Ravena, tão surpresa com tudo aquilo, não ouviu Guilherme chegando:
- O que você está fazendo aqui? Diz ele, flagrando-a com suas coisas.
Ravena, assustada, não conseguiu dizer uma palavra. Então conseguiu pegar o seu canivete
de volta e correr. Guilherme correu atrás dela.
- Sai de perto de mim, seu psicopata. Gritou Ravena.
Guilherme, por sua vez, deu uma risada debochada e rebateu:
- Você achava mesmo que você era a única psicopata?
Em um movimento brusco, Ravena correu e Guilherme a pegou. Com força e coragem, ela
conseguiu desferir com um golpe no braço de Guilherme. Ele a solta e saiu correndo. Ela, então,
conseguiu pegar um celular da casa, correu para fora da casa e ligou para o 190, mas, antes que
ela conseguisse falar, Guilherme cortou sua garganta e Ravena caiu no chão, morta!
Guilherme, apesar de ferido, conseguiu limpar todas as evidências contra si. E assim que
terminou tudo, ele “desmaiou”, ao lado do corpo da garota. Acordou já no hospital e, depois de
uns dias, ele deu o seu depoimento à Polícia.
“Legítima defesa”, afirmou ele. Sem provas, foi liberado e Ravena, mesmo morta, foi
considerada culpada. A louca que invadiu a casa para agredir. Ninguém nunca descobriu a
verdade sobre o que tinha acontecido. Ninguém.
Depois de alguns dias, Guilherme voltou à escola como se nada tivesse acontecido, voltou a ser
o garoto mais “importante” da escola. E quem será a próxima vítima de Guilherme?
produções
literárias
2022