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PENSAMENTO FEMINISTA Introdução

NO PLANEJAMENTO URBANO: O presente artigo busca construir e apresentar um desenvolvimento do pensamento


feminista/perspectiva de gênero no campo do Planejamento Urbano. Como se chega
Pensar o território pela perspectiva de gênero à aplicação da questão de gênero no Planejamento Urbano? O que é partir desta
- prática e epistemologia perspectiva? Como se pode agir nesse campo levando o gênero e, principalmente,
as desigualdades de gênero em consideração? Para isso, parte-se do entendimento
do Planejamento Urbano como um campo de conhecimento submetido às estruturas
Isabela Rapizo Peccini 1 e relações sociais e de desigualdade como qualquer outro campo da ciência. E
se busca explicitar como essas estruturas se apresentam na cidade e na vida das
mulheres.

É importante, aqui, considerar que o espaço estudado não é somente o espaço


Resumo tradicionalmente definido pela Arquitetura e pelo Urbanismo, de edificações projetadas
O artigo a seguir propõe uma reflexão acerca da produção de conhecimento na por profissionais da área, mas um espaço vivenciado, ocupado e transformado pelas
sociedade moderna afim de chegar à proposição de um Planejamento Urbano que pessoas em seu dia a dia (RENDELL, 2000). A produção desse espaço, portanto,
considere, em sua estrutura de pensamento, questões de gênero e raça. Construir não se dá de forma imparcial, ou seja, se dá pelos olhos e mãos do patriarcado e do
a associação entre as desigualdades de gênero estabelecidas historicamente, a capital e pode funcionar, portanto, como agente de manutenção das desigualdades
produção do espaço e a consequente vivência especifica de mulheres no território frutos destes sistemas. Pretende-se, de forma ampla, entender como, então, as
é essencial para que se possa construir uma epistemologia e prática do campo que relações de gênero se manifestam no espaço e, pelo outro lado, como as relações
proporcione cidades que não se apresentem enquanto agentes de manutenção espaciais se manifestam na construção do gênero. Ao analisar o espaço, entender
das desigualdades. Assim, perceber essas relações em aspectos como moradia, quais relações se dão nele a partir do recorte construído pelas relações de gênero
mobilidade e lazer para as mulheres na cidade é concretizar essas relações para a e classe e como isto ocorre. Assim, é possível mapear e espacializar lugares,
construção de outras perspectivas. diagnosticando problemáticas e conflitos ali existentes, onde possamos atuar através
Palavras-chave: ciência moderna, gênero, território, mulher trabalhadora. do olhar de arquiteto e urbanista para a produção de espaços que proporcionem
outra vivência, ou seja, outra relação das pessoas com o espaço em si. Busca-se,
inclusive, entender como o seu lugar social interfere nas suas vivências enquanto
mulher e se há uma relação entre ambas as características.
FEMINIST THINKING IN URBAN PLANNING: Essa reflexão, porém, precisa se iniciar em outra. Se vivemos, então, uma sociedade
Think the territory from a gender perspective pautada por sistemas fincados nas desigualdades de gênero, raça, classe e
practice and epistemology sexualidade há de se esperar que o que é produzido por essa sociedade possa
funcionar como elemento agente de manutenção das desigualdades frutos destes
sistemas. Porém, não é esse o entendimento adotado historicamente pelos cientistas.
A Ciência Moderna se estabelece através do pensamento Iluminista pautando como
Abstract determinante a consolidação de uma verdade, a produção de um conhecimento
The following article proposes a reflection about knowledge production in the modern científico neutro através da definição de uma autoridade científica que se destaca
society in order to consider the urban planning through gender and race thoughts. da pessoa comum, ou seja, estabelecendo um conhecimento científico puro
The relation between the historical gender inequalities, the space construction and desenvolvido por um ser, o cientista, imparcial perante o resto da sociedade. Faz-se,
the women experience in the city is crucial to develops a urban planning practice assim, um questionamento sobre a própria Ciência Moderna e a construção histórica
and epistemollogy that provides more inclusive cities. These associations must be do conhecimento científico. Além de introduzir a crítica da teoria feminista e como se
analysed within various aspects of the women experience like habitation, mobility and pode pensar a realidade através de outras epistemologias. Entendendo a construção
recreation to materialize the gender perspective of the urban planning. do pensamento científico e trazendo esse pensamento ao Planejamento Urbano,
Keywords: modern science, gender, space, women. busca-se tratar da realidade dos elementos aqui observados. A construção do papel
social das mulheres e a divisão sexual do trabalho são elementos estruturantes da
sociedade e também da cidade. Cidade, essa, que se estabelece, por esses sistemas,
como uma cidade marcada pelas segregações e desigualdades.

Por fim, trata-se de como se pode estabelecer essa perspectiva na vida e na cidade,
em quais aspectos podemos aplicar o pensamento feminista ao olhar para o espaço,
entendendo gênero e raça como estruturas não só sociais, mas também espaciais.
Perpassa-se por diferentes aspectos tanto da cidade como da vida das mulheres
para fazer a reflexão sobre o espaço e as possibilidades de ação sobre ele.

Observar a cidade a partir da produção e reprodução das relações sociais é


1 Mestranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
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visibilizar a diferenciação de vivência nesses espaços entre os diferentes grupos. construções ditas científicas nas ciências naturais nos é oferecido
A necessidade, portanto, de incluir as mulheres no pensar da cidade como agentes por Londa Schienbinger (1996). De acordo com essa autora, a
transformadoras e usuárias dos espaços é o maior incentivo para a produção deste associação do feminino com a natureza e do masculino com a
trabalho. É preciso entender que não há ser humano padrão e que a cidade precisa mente se faz presente no Systema naturae de Carolus Linnaeus –
dar conta de atender as necessidades de todas as pessoas que nela habitam – em que precisamente, na sua designação da espécie humana como Homo
se pese as desigualdades existentes entre elas e a devida compensação. Enxergar o sapiens (homem sábio), ao mesmo tempo em que situa nossa
Planejamento Urbano e a cidade à luz de novas perspectivas, que complementem as espécie na classe dos mamíferos ou Mammalia. De acordo com
ferramentas, práticas e conhecimentos que já nos utilizamos, é um caminho para que Schienbinger (1996, p.144): “Na terminologia de Linnaeus, uma
possamos construir cidades que proporcionem esta outra vivência, menos desigual. característica feminina (a mama lactente) liga os seres humanos
aos brutos, enquanto uma característica tradicionalmente masculina
(razão) marca a sua separação”(SARDENBERG, 2001, p. 9).
Sobre a ciência moderna
Essas associações passam a permear, então, também o senso comum, o mundo
O conhecimento científico se funda, na Modernidade, como a forma de conhecimento das ideias fora do espaço acadêmico-científico, e influenciam diretamente a vida das
universal, como o único caminho possível na busca pelas respostas das questões pessoas e também a ideia delas sobre a educação e a ciência. A luta constante do
da vida e do mundo. Somente a racionalidade da ciência seria, nesse sentido, capaz homem contra a sensibilidade, a ideia de que meninos e homens não devem chorar,
de analisar, desenvolver e estabelecer a verdade sobre as coisas. Essa busca o azul para meninos e rosa para as meninas, a responsabilidade masculina pelo
por uma verdade através das tramas da racionalidade demandaria, portanto, um trabalho remunerado e feminina pelo trabalho doméstico, a doença e a cura como
distanciamento. A racionalidade aqui não deve ser construída por qualquer campo algo científico e não natural, o corpo branco como um corpo centrado e o corpo
passional do ser, mas pela precisão. É assim que vemos o desenvolvimento das negro como um corpo selvagem, entre outras, são tentativas de estabelecer o certo
construções tanto da ideia do conhecimento científico como do sujeito que se propõe e o errado corroborando com as binaridades difundidas pelas ideias de racionalidade
a dar explicações científicas sobre o mundo enquanto instâncias que devem almejar da Ciência Moderna. Mas, se as associações da verdade da Ciência se fundem
uma neutralidade. Nessa lógica, o conhecimento científico seria um conhecimento com as binaridades sociais e colocam em confronto não só ideias abstratas como
puro, não contaminado pelas vicissitudes da história ou pelas diferenças de status também ações e grupos sociais, como poderia ser ela mesma – a Ciência – universal
social e o cientista seria o ser imparcial responsável por sua produção. e neutra? Diferentemente de como se coloca o produtor de conhecimento, o cientista
racional é a figura do majoritário por excelência: homem, branco, falante de uma
O processo de endurecimento desse ideal de verdade e neutralidade se dá, na língua dominante, ocidental, cisgênero, heterossexual, objetivo, imparcial.
prática, pela construção de binarismos acerca da vida e do conhecimento, além
da dominação de corpos, pensamentos e territórios. Esse olhar sobre as coisas se Esse questionamento é realizado, aqui, em consonância com as reflexões da
pauta entre um modo supostamente correto e um modo supostamente errado de antropóloga Cecilia Sardenberg (2001) e da filósofa Isabelle Stengers (1949), que
se apreender a realidade. O primeiro, que cabe à Ciência, racional e o segundo, juntamente a outras autoras da Antropologia e Filosofia da Ciência constroem extensa
que cabe à Natureza, irracional. A partir dessa dicotomia, então, se funda uma bibliografia no questionamento à neutralidade da Ciência Moderna e na proposição
série de associações. Razão versus emoção, objetividade versus subjetividade, de outras epistemologias. Stengers reflete:
imparcialidade versus parcialidade, mente versus natureza, máquina versus corpo.
Não por acaso, essas associações se aproximam de outras, pois são binárias Por que traço, nessa perspectiva, se reconhece uma definição
também as divisões dos corpos ou grupos sociais: homens versus mulheres, brancos positivista da ciência? Pelo fato de que esta age, antes de mais
versus não brancos (negros, indígenas, latinos), ricos versus pobres, heterossexuais nada, pela desqualificação da não-ciência a qual sucede. Essa
versus homossexuais, cisgêneros versus transgêneros. E, ainda, se expandem desqualificação, para Gaston Bachelard, está associada à noção
à especificidade de cada campo do conhecimento. Cidade versus campo, espaço de opinião que pensa mal, não pensa, traduz necessidades em
privado versus espaço público, trabalho versus casa ou espaço de trabalho versus conhecimento. A ciência constitui-se, portanto sempre contra o
espaço de lazer, por exemplo, no campo do Planejamento Urbano e Arquitetura. obstáculo constituído pela opinião, um obstáculo que Bachelard
Dessas associações se estabelece a imparcialidade como necessária à produção definiu como um dado quase antropológico. A luta da ciência contra
científica e a deslegitimação de características que fogem à suposta neutralidade. As a opinião torna-se, nos momentos mais líricos, o confronto entre os
características condenadas pela Ciência, portanto, seguem sendo associadas aos interesses da vida (aos quais a opinião está sujeita) e os interesses
grupos não dominantes socialmente: mulheres, pessoas não brancas, trabalhadores, do espírito (vetores da ciência) (STENGERS, 1949, p. 36).
assim como se associam a determinados territórios e populações atreladas a cada
um deles. Essas associações são justificadas pela noção de que esses grupos seriam Se entendo, então, que qualquer ser social que se coloque na posição de produtor
parciais, marcados pelos afetos, localizados em um ponto de vista específico ou, de conhecimento está localizado em um lugar social determinado, que implica
ainda, inferiores intelectualmente. determinadas conexões com outros sujeitos num campo estruturado por relações de
poder e que não há esse lugar de neutralidade criado pelo racionalismo da Ciência
Cecilia Maria Bacellar Sardenberg (2001) nos apresenta a associação entre a Moderna, há de se buscar entender como se dá historicamente esse processo de
binaridade razão/emoção e a binaridade masculino/feminino em um exemplo dado invisibilização de outras possibilidades de conhecimento e como esse processo se
pela autora e professora de História da Ciência Londa Schienbinger: rebate na produção de conhecimento especificamente do campo do Planejamento
Urbano e, consequentemente, na vida cotidiana das pessoas ao vivenciar e ocupar
Um caso ilustrativo de como essa dicotomia tem permeado as os espaços.
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Corpo, dominação e construção de saberes reprodutivo, capacidade de cura e aproximação com a natureza e a espiritualidade.
Essa perseguição não só provoca um extermínio da população feminina, como
A autora italiana Silvia Federici, em seu livro “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e constrói legal e culturalmente uma demonização do corpo e mente das mulheres,
acumulação primitiva” (2017) realiza análise do período de transição do feudalismo associando-as à irracionalidade e, consequentemente, as distanciando do ideal
para o capitalismo a partir de um ponto de vista não tradicionalmente utilizado pela racional estabelecido pela ciência filosófica da época. Esse processo é a destruição de
maioria dos autores sobre esse período, que é a inclusão do advento da chamada todo o poder social das mulheres, retirando-as de qualquer papel de desenvolvimento
caça às bruxas na Europa como elemento essencial para a consolidação desse de conhecimento e de protagonismo social, construindo um imaginário teórico e
sistema e das relações econômicas e sociais que se desenvolvem até a atualidade. popular sobre as mulheres pautado pelo controle e dominação.
Como um dos mecanismos para o desenvolvimento capitalista, Federici irá tratar
do conceito denominado por Foucault como disciplinamento do corpo. A dominação A caça às bruxas foi também a primeira perseguição, na Europa,
dos corpos é preocupação da Ciência em todos os processos de estruturação dos que usou propaganda multimídia com o objetivo de gerar uma
sistemas sociais desde o século XVI. Será através da reconstrução do conceito e psicose em massa entre a população. (...) foram os juristas, os
identificação do corpo que se desenvolverão justificativas para a erradicação de uma magistrados e os demonólogos, frequentemente encarnados
série de práticas e imposição de outras. A aproximação ideal do corpo com a máquina na mesma pessoa, os que mais contribuíram na perseguição:
e o distanciamento do que é natural corrobora para a dominação de determinados eles sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos
grupos sociais, do que vem a ser a classe trabalhadora, das mulheres enquanto e aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do
responsáveis pela reprodução biológica, dos povos colonizados como submissos. século XVI, deu um formato padronizado, quase burocrático, aos
julgamentos, o que explica as semelhanças entre as confissões
O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de para além das fronteiras nacionais. No seu trabalho, os homens
poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval. Na da lei contaram com a cooperação dos intelectuais de maior
realidade, este conceito foi destruído. Por trás da nova filosofia prestígio da época, incluindo filósofos e cientistas que ainda hoje
encontramos a vasta iniciativa do Estado, a partir da qual o que os são elogiados como os pais do racionalismo moderno (FEDERICI,
filósofos classificaram como irracional foi considerado crime. Esta 2017, p. 299).
intervenção estatal foi “subtexto” necessário da filosofia mecanicista.
O “saber” apenas pode converter-se em “poder” se conseguir fazer Os processos de subalternização das mulheres e de assimilação de parte da
cumprir suas prescrições. Isso significa que o corpo mecânico, população enquanto proletariado estão entrelaçados e co-relacionados. As divisões
o corpo-máquina, não poderia ter se convertido em modelo de sexual, social e internacional do trabalho são intrínsecas, se mantém e mantém os
comportamento social sem a destruição, por parte do Estado, de sistemas de dominação funcionando. Federici irá ressaltar a importância do trabalho
uma ampla gama de crenças pré-capitalistas, práticas e sujeitos reprodutivo como um trabalho gratuito e realizado exclusivamente pelas mulheres
sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento para as engrenagens do sistema de exploração da classe trabalhadora. Essas
corporal prometido pela filosofia mecanicista. [...] Assim é como relações, por seus papeis estruturantes dos sistemas de dominação, reverberam
devemos ler o ataque contra a bruxaria e contra a visão mágica do até os dias de hoje. Seguimos, como veremos mais adiante, enraizados nessas
mundo que, apesar dos esforços da Igreja, seguia predominante em mesmas formas de divisão sexual e social do trabalho, gerando, inclusive, divisões e
escala popular durante a Idade Média (FEDERICI, 2017, p. 257). configurações espaciais a partir dessas estruturas.

A dominação dos corpos é, então, essencial para a virada de um novo sistema social. O mecanismo de construção de binaridades e de subalternização de grupos sociais
Essa dominação é, assim, marcada por violência e pela construção ideal de quais se dá, também, nos processos de colonização indígena e africana. O avanço
corpos fazem parte do espectro científico e quais não fazem. Nesse contexto, então, espanhol em terras americanas, por exemplo, é marcado pela construção de uma
de dominação de povos, de consolidação de um novo sistema político e econômico justificativa racional para a dominação violenta pautada justamente na bestialização
e de racionalização dos conhecimentos, as mulheres são vistas como o grupo que dos povos dominados. Assim como acontece com as mulheres consideradas bruxas
centraliza em suas práticas o conhecimento da magia, todo conhecimento que é e perseguidas na Europa, a acusação de adoração ao diabo tem, também, papel
relacionado à natureza, e passam a ser, então, o grupo social diretamente perseguido essencial na colonização de indígenas americanos. E se repetirá no processo de
sob a acusação de bruxaria. Aqui, entende-se que o que se considera como escravização de povos do continente africano no Brasil.
magia nesse momento é qualquer forma de conhecimento ou prática relacionada
à espiritualidade, mas também à natureza, pela utilização de elementos naturais No Brasil, desde o momento do dito descobrimento se instaura, também, um regime
como métodos de cura ou superstição, ao entendimento do próprio corpo, como pelo de escravização. Homens, mulheres e crianças são trazidos do continente Africano
desenvolvimento de métodos naturais contraceptivos2, entre outros. forçadamente para servir de mão de obra para o desenvolvimento econômico do
mercado de cana e açúcar. Os mesmos argumentos de bestialização e selvageria
O crime de bruxaria é, portanto, um crime feminino, uma reação à resistência utilizados em relação às mulheres na caça às bruxas e aos índios nativos são
das mulheres às lógicas capitalistas e à seu poder sobre a sexualidade, controle também demarcados aos corpos e mentes negros. O processo de diáspora africana,
portanto, além de violento fisicamente, se dá de forma violenta em relação à cultura,
identidade e conhecimento e é elemento essencial para o desenvolvimento do que
se entende enquanto trabalho, educação, racionalidade, para o desenvolvimento
2 É importante citar que, nesse momento, a Europa vive, também, uma crise de natalidade e a da modernidade e para as associações e estruturas pautadas nas desigualdades
criminalização do controle reprodutivo por parte das mulheres é essencial para reverter esse quadro e de raça, gênero e classe para todos estes campos. A escravidão no Brasil é parte
dar aos homens o poder deste conhecimento/prática.
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estruturante da nossa história e determina todos os aspectos de construção desta meninos. De acordo com as relações, também, se desenvolvem variações em como
sociedade desde então - política, econômica, cultural e, inclusive, espacialmente esse padrão aparece. Se, além de patriarcal a sociedade é também racista, haverá
falando. As estruturas de poder determinam espaços, abstratos e concretos. A uma construção de papel social que se difere entre mulheres brancas e negras, mas
sociedade colonial se estrutura a partir do corpo negro, que lhe serve como mão de que estão ainda sendo pautadas por um comportamento ideal. Como vimos no item
obra, como mercadoria, como demonstração de poder e status, além de afirmação anterior, essas estruturas vão se consolidando a partir de uma série de processos de
de superioridade. dominação que atingem corpo, mente, espacialidade.

O território corporal é o primeiro lugar de ataque do colonialismo. Em todos os dados colhidos no processo de pesquisa sobre a história
Seja através da morte física, genocídio, objetificação, sequestro, das condições de vida das mulheres através dos tempos, pode-se
tortura, estupro, ou da morte simbólica, regulação do corpo através sentir que as pobres sempre foram o burro de carga, afundadas no
das instâncias do pecado e da conversão. Em ambos os processos trabalho, as ricas ou privilegiadas sempre viveram mergulhadas em
são praticados os ataques a outros modos de saber (SIMAS e seus triunfos intelectuais e mundanos, e todas elas foram sempre
RUFINO, 2018, p. 94). apenas reprodutoras da espécie, escravas declaradas incapazes
pelas leis e códigos (ALAMBERT, 1997, p.51).
Se gênero e raça são, então, estruturantes para a produção de conhecimento e para
a determinação das características desse conhecimento, exaltando determinada A divisão do trabalho por homens e mulheres se reflete na vivência dessas pessoas
produção e subjugando outra, essa divisão é uma expressão de poder e esses nos espaços públicos e privados. Se o trabalho da mulher é, predominantemente, no
fatores precisam ser considerados quando pensamos sobre qualquer campo de âmbito do espaço privado, ela não viverá de forma tão intensa o espaço público e,
conhecimento. A Ciência não está fora da história, ela é – assim como a cidade, consequentemente, este espaço não será pensado para ela e nem por ela.
como veremos mais a frente – produto e reprodutora das estruturas da sociedade,
dos mecanismos de dominação e hierarquização, da segregação intelectual, física Na cidade metropolitana e contemporânea, a mulher ocupa de forma mais plural os
e espacial. E se esses elementos – gênero e raça – são estrutura para a ciência, espaços público e privado, pois passa a acumular funções. Diferente das mulheres
propomos então uma quebra de paradigma, propomos que esses elementos sejam dos séculos anteriores, nós não mais nos dividimos em mulheres exclusivamente do
categoria de análise da ciência e, no caso desta pesquisa, de análise do espaço. lar e mulheres trabalhadoras, o que não exclui, porém, que os padrões continuem
sendo reforçados. O seu papel de responsável pela reprodução da vida ainda se
Diferentemente do que é apresentado pela Ciência hegemônica, consideraremos, mantém, cresce a possibilidade de vivência do espaço público, principalmente como
aqui, o espectro das possibilidades, levando em consideração que estamos mão de obra. A mulher trabalhadora é também responsável pelo lar, estabelecendo
passíveis de divergências e erros, mas também de mais possibilidades de acertos e as duplas ou triplas jornadas.
potências. Trataremos as diferenças inerentes a um novo fazer epistemológico como
meios de (re)pensar a própria prática, atualizar lugares epistêmicos, inclusive o de Hoje, as mulheres constituem 45,5% da População Economicamente Ativa (PEA)
pesquisadora, se colocando como interlocutora e também aprendiz, como qualquer no Brasil, havendo um crescimento gradativo desse dado nas últimas décadas3.
ser humano que toque a possibilidade do conhecimento. Retirar os moldes coloniais Apesar disso, a condição da inserção delas no mercado de trabalho ainda se dá de
do saber perpassa, além de enxergar o saber em outras práticas que não só as forma desigual. As mulheres, de maneira geral, ocupam esse espaço através dos
racionalmente definidas enquanto Ciência, ver a diversidade inclusive dentro de cada empregos mais precários, informais ou em domicílio, ou ainda, recebendo salários
nova perspectiva. Portanto, entender que a própria ótica feminista se constrói em mais baixos que o dos homens por funções iguais (SILINGOWSCHI, 2007). Esse fato
diferentes correntes e formas de ver o mundo e a própria desigualdade de gênero, é recorrente na história, vide as relações de trabalho estabelecidas desde os séculos
assim como o que chamaremos aqui de ótica das macumbas, trazendo a pluralidade XVII e XVIII pelas mulheres pobres e negras, antes escravizadas.
da vivência, do saber e do fazer conhecimento de negros e negras.
A cultura da responsabilidade doméstica designada para a mulher faz com que 86%
Nesse sentido, esses são os pontos de partida dessa virada epistêmica: a inclusão dos trabalhadores domésticos sejam mulheres. Além disso, 60% dos lares com
de uma visão a partir de uma perspectiva feminista e antirracista sobre a ciência e empregadas domésticas são chefiados por homens. As funções de doméstica e
o mundo. Mais do que isso, uma construção feminista e antirracista da ciência e do cuidadora empregam 20% das mulheres ocupadas no país. Ainda de acordo com
mundo. a PNAD 2014, mulheres receberam em média 74,5% do rendimento de trabalho
dos homens em 2014. Em 2013, essa proporção era de 73,5% . Analisar o emprego
feminino levou a perceber a divisão sexual do trabalho como estruturante de uma
Pressupostos sobre o ser mulher e a cidade nova divisão internacional do trabalho.

Mulheres: papel social e divisão sexual do trabalho [...], apesar de ocorrer um aumento da maior inserção da mulher
trabalhadora, tanto no espaço trabalho formal quanto informal
Os papéis que exercemos enquanto mulheres ou homens nos são designados, do mercado de trabalho, ele traduz-se majoritariamente nas
são a forma com que a sociedade em que vivemos construiu para que fôssemos e áreas onde predominam os empregos precários e vulneráveis
agíssemos. Como colocado por Beauvoir (1967), a construção social e cultural do (SILINGOWSCHI, 2007, P.63).
que é feminino e masculino nos é imposta como um padrão natural. Esses padrões
são construídos, reforçados ou desconstruídos pela forma como se organizam as
sociedades ao longo da história e estabelecidos desde o nascimento de meninas e
3 Dado retirado da Síntese dos Indicadores Sociais realizada pelo IBGE em 2016.
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Os espaços sociais se compenetram e/ou se superpõem. Não são
Essa inserção desigual se dá como consequência (e manutenção) da lógica que coisas, limitadas umas pelas outras, se chocando por seu contorno
designa à mulher a responsabilidade do trabalho doméstico e de discriminações ou pelo resultado de inércias. [...]Resta compreender o que produz
e restrições sofridas por elas em nossa sociedade, e influenciam diretamente em os diversos movimentos, ritmos, frequências, o que os entrelaça e
sua vivência cotidiana do espaço da cidade. Na ocasião da pesquisa parte de mantém a hierarquia precária de grandes e pequenos, de estratégias
Trabalho Final de Graduação defendido no ano de 2016 na Faculdade de Arquitetura e táticas, de redes e lugares (LEFEBVRE, 2000, p.76-77).
e Urbanismo da UFRJ, busquei entender a relação das mulheres trabalhadoras
terceirizadas da Universidade com a cidade. A partir de entrevistas, conheci um A cidade capitalista é o espaço do mercado e ao mesmo tempo é, em si, o mercado.
grupo majoritariamente morador da zona norte e baixada, trabalhando na Cidade Rolnik (1995) aponta que a cidade está à venda e é marcada pela segregação, que
Universitária como responsáveis por trabalhos de manutenção. Elas, majoritariamente, acontece fisicamente por muros, grades, pontes, placas; de forma abstrata, pela
moravam com outras pessoas, principalmente seus filhos, sendo a maioria solteira. divisão de territórios diferentes por classes sociais, cor, gênero, idade; e também
Dividindo seu tempo entre o trabalho na Universidade e o trabalho em casa, por funções, espaço do trabalho, da moradia, do lazer. No Rio de Janeiro (e em toda
realizado principalmente a noite e nos fins de semana, essas trabalhadoras realizam metrópole) existem diversas cidades em uma só e suas estruturas são essenciais
seu deslocamento casa-trabalho principalmente de ônibus. Durante o processo de para as estruturas da sociedade. A marca das desigualdades se dá através do
aproximação com elas, identificou-se a falta do aspecto do lazer em suas vidas, espaço privado de vivência, a moradia, e também do espaço público pela falta de
principalmente se realizado no espaço da cidade. Este era, para a maioria delas, infraestrutura e recursos em certas localidades. Equipamentos públicos, áreas de
um desejo e não havia nenhuma identificação de um espaço na cidade utilizado lazer, saneamento básico, manutenção e serviços são pensados e distribuídos
para esse momento. Esse é um panorama específico, mas que pode ser rebatido de de formas diferentes para cada parte da cidade, conformando os processos de
forma mais generalizada em relação às mulheres trabalhadoras no Rio de Janeiro, valorização ou desvalorização dos espaços urbanos. De acordo com Maricato
que em sua maioria fazem o deslocamento zona norte/baixada para o centro ou (2000), essas áreas mais desvalorizadas e que acabam, portanto, invisibilizadas na
zona sul, principalmente de ônibus, sendo principais responsáveis pelos seus filhos cidade podem ser entendidas como áreas de exclusão urbanística. As mulheres, por
e, portanto, acumulando essas funções em seus cotidianos. sua vez, sentem essa diferença de forma mais incisiva, visto que seu cotidiano é
diferenciado em relação ao ser humano tomado como modelo.
Com a dupla jornada, a mulher passa a ter dois espaços de trabalho: dentro e fora
de casa. A dinâmica de seu dia a dia passa por ir e voltar do local de seu trabalho A esfera da circulação e difusão de ideias acerca da produção dos espaços a partir da
produtivo, mas também por realizar as compras de alimentos e produtos necessários construção de agendas políticas para o urbano será, nessa mesma lógica, perpassada
para a casa, levar filhos na escola, acompanhar pessoas mais idosas e crianças da (e desenvolvida) pela argumentação científica da racionalidade. Da mesma forma
família à médicos, entre outras tarefas, o que faz com que seu percurso na cidade que a Ciência constrói o imaginário do cientista como descolado da vida cotidiana ou
seja distinto do homem que, normalmente, vai de casa para o trabalho e do trabalho do senso comum, será construída a ideia de um sujeito que é possuidor do domínio
para casa, ou tem paradas para o lazer após o expediente. Faz-se necessária a do conhecimento e capacitado para elaborar e resolver os problemas dos territórios.
utilização de mais de um meio de transporte para se chegar de um ponto a outro Nas últimas décadas, se estabelece uma conexão entre a agenda urbana e a agenda
devido às paradas, o que é intensificado pela má qualidade dos transportes públicos de reestruturação produtiva (ARANTES, 2006). O discurso de uma crise urbana
e pela vulnerabilidade da mulher nesses espaços, sofrendo, ainda, por assédios e que se daria por causa da gestão pública é construído, inclusive, pelos agentes
agressões. Essas situações de conflito proporcionam uma vivência específica do de organizações internacionais que participam da construção e difusão de ideias
espaço, a serem desenvolvidas mais a frente nesse trabalho. (problemas e soluções) sobre as cidades. Cresce o discurso de defesa de diminuição
da participação estatal, de terceirização e privatização de serviços, se estabelecendo
como solução dos problemas territoriais, justamente, o desmantelamento da
A cidade como espaço social, a cidade capitalista estrutura pública, o rebaixamento de parâmetros como manutenção, infraestrutura e
habitação localizados, essencialmente, nas áreas periféricas. Assim, se retorna à (ou
Se todo conhecimento é e nós mesmos, enquanto indivíduos e grupos sociais, somos, se reafirma) a racionalidade dos consultores e organizações que se colocam como
então, localizados não há como pensar que a produção do espaço e o desenvolvimento imparciais e independentes como caminho. Os negócios passam a elemento central
do campo do Planejamento Urbano enquanto campo de conhecimento tenha se dado da gestão urbana e o âmbito público passa a ser gestor não mais de políticas, mas de
até aqui de forma imparcial. A cidade é, assim como afirmado por autores como parcerias entre o campo público e o campo privado (solucionador). Nesse processo,
Harvey (2005), Rolnik (1995) e Maricato (2002), produto histórico, político e social há também uma necessidade de distanciamento (assim como desenvolvido no início
da vida coletiva, e reflete espacialmente as relações que se estabelecem entre as desse texto acerca da própria Ciência), um distanciamento territorial. As decisões
pessoas que a vivem. Se estamos construindo e vivendo em uma cidade regida por deixam de ser tomadas em âmbitos públicos e locais e passam a ser tomadas em
um sistema capitalista, patriarcal e racista, podemos entender que a cidade está espaços externos, globais. A aplicação de modelos universais através do ideal de
sendo pensada para os beneficiários diretos deste sistema: homens, brancos e best practice coloca a técnica como distanciada do aspecto político e social e, por
detentores de capital. isso, mais eficiente. Uma mesma solução pode ser aplicada em diferentes lugares
com parâmetros amplos, pois essas soluções são tecnicamente eficientes, assim
A cidade não é um objeto estático, é produto e (re)produtora de relações sociais como seus idealizadores.
construídas ao longo dos tempos e contextos. Henri Lefebvre (2000) constrói o
conceito de urbano a partir da existência, em seu espaço, dos conflitos sociais e, O alinhamento entre as diversas instâncias de poder e gestão dos territórios (municipal,
nesse sentido, denomina a cidade como o espaço social. estadual e federal), a construção de um objetivo patriótico comum conformam os
elementos essenciais do Planejamento Estratégico como forma de intervir na cidade
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em resposta a uma conjuntura de crise. Essas intervenções são marcadas pelo viés da ciência para que outros posicionamentos sejam levados em consideração.
tecnicista e, portanto, pelo esvaziamento dos espaços amplos de decisão sobre a Incluo, ainda, nessa proposição, o conceito elaborado pela Kimberle Creanshaw, de
cidade e pela abertura para que o mercado seja o principal agente transformador do interseccionalidade. Entendendo que essas estruturas que excluíram as mulheres
espaço, imperando a lógica empresarial de solução da cidade sobre os interesses historicamente de uma série de lugares sociais não só o fizeram às mulheres e,
sociais de uso do solo. portanto, se queremos construir outras epistemologias não podemos nos esquivar
de interseccioncalizar as estruturas, enxergar e considerar as diferenças dentro das
Vê-se, então, que em diferentes momentos históricos a interferência direta do mercado diferenças. No caso da cidade, deve ser essencial perceber que, se vivemos cidades
na construção e organização das cidades se manifesta de forma determinante na diferentes enquanto homens e mulheres, também vivemos cidades diferentes
vida da população pobre e, ainda mais, na vida das mulheres deste contexto social. enquanto mulheres brancas e negras, por exemplo, e esses fatores devem estar
E se o processo de transformação da cidade se repete ao longo dos anos, se repete sendo levados em consideração no pensar a cidade.
também a resistência das mulheres.
A partir desse entendimento, é possível identificar de que forma e sob que aspectos
Rachel Soihet (1989) em seu livro sobre as mulheres pobres dos as questões das desigualdades de gênero se aplicam de forma prática no campo do
cortiços do centro e área portuária do Rio de Janeiro, entre 1890- Urbanismo, atingindo a vivência das mulheres nos espaços e como pensadoras do
1920, sobretudo, no período Pereira Passos, captura a importância território podem utilizar essa perspectiva.
histórica do papel da mulher na sociedade na época. São mulheres
moradoras de cortiços e de habitações coletivas que exerciam
atividade no setor terciário, ou seja, atividades menos remuneradas Moradia
que as operárias da época, como prostitutas (além de faxineiras,
lavadeiras, artesãs, cartomantes, etc). Mulheres que se apropriavam Os espaços de moradia, por mais diferentes que sejam, possuem áreas principais:
intensamente do espaço público da cidade, diferentemente da sala, quarto, cozinha, banheiro. A forma como esses espaços são distribuídos nas
mulher burguesa (TAVARES, 2015, p. 136). casas e a própria relação da casa como um todo com o resto da cidade se construiu
ao longo do tempo de acordo com as nossas relações e formas de vida. A partir dos
Apesar de seu lugar e papel designados socialmente e do impacto intenso do anos 50, com o desenvolvimento do Modernismo no Brasil há uma mudança drástica
desenvolvimento da cidade capitalista em sua vida cotidiana, as mulheres aparecem, na organização espacial das casas. O modernismo passa a pensar o espaço de
em cada um dos diferentes contextos históricos, como resistência a esse modelo de forma funcionalista, e esse pensamento funcional faz com que sejam determinados
cidade, seja de forma organizada em movimentos sociais como visto anteriormente, espaços específicos pra cada uma das atividades na casa, assim como faz com
seja pelo simples ato de ocupar a rua. que haja uma setorização desses espaços em um tripé: social, íntimo e serviço.
Essas três funções são separadas na casa, colocando limites mais claros sobre
quem percorre cada um desses espaços e como eles se relacionam. No contexto das
Planejamento urbano pela perspectiva de gênero casas burguesas, produzidas pelo campo da Arquitetura, a área de serviço se coloca
quase que isolada, sempre aos fundos das casas. Se são as mulheres (da família ou
Se, como visto anteriormente, na Ciência estabelecemos historicamente verdades empregadas) que realizam o trabalho doméstico, há a possibilidade de estar nesse
pautadas por binaridades, tanto de conceito como por associações à binaridades espaço se ter tido nenhuma ou quase nenhuma conexão com os espaços sociais. E
sociais, podemos identificar também essa estruturação de pensamento no campo essa divisão constrói uma relação específica das mulheres com o espaço da casa.
do Planejamento Urbano. Ao pensar o espaço, podemos identificar oposições como Para elas, a moradia não é só abrigo, mas é também espaço de trabalho – trabalho
campo versus cidade, casa versus trabalho, espaço público versus espaço privado, doméstico. Se esse trabalho fosse pensado de forma mais coletiva, socialmente,
espaço de trabalho versus espaço de lazer. Todas essas binaridades determinam sendo dividido por todos os sujeitos da família, esse espaço não seria tão segregado
noções sobre esses espaços, sobre suas funções e também sobre quem pode e, por outro lado, se os espaços da casa possibilitassem mais integração, todas
ocupar cada um deles. Nessa lógica que determina não só oposições, mas também as pessoas estariam vivendo esses espaços ao mesmo tempo e, assim, haveria
hierarquias, a cidade é o espaço da modernidade, o campo o espaço do atraso, a incentivo para a divisão das tarefas.
casa é o espaço da família, o trabalho do sustento, o espaço público foi muito dito
como o espaço do homem enquanto o espaço privado o espaço das mulheres. Nesse Em outro campo de debate acerca da moradia, ao tratarmos de déficit habitacional e
caso se pensamos as interseccionalidades, vamos ver também que essa binaridade movimentos de luta por moradia, chega-se a uma série de outros aspectos da relação
se dá de forma mais complexa, pois o espaço privado é, na verdade, o espaço de das mulheres com esse espaço. Em meio a movimentos de luta pela moradia, vê-se
determinadas mulheres, não todas. Mulheres negras sempre estiveram trabalhando que a moradia, para elas, não é vista como mercadoria, por seu valor de troca, mas sim
no espaço público, mas não seriam dignas da família do espaço privado burguês. pelo seu valor de uso, pela necessidade de manter o próprio abrigo e, principalmente,
da família. Nesse contexto, a vida das mulheres é ainda mais impactada. No Rio
Essa proposição é apoiada em produção de algumas das autoras da filosofia da de Janeiro dos últimos anos, os movimentos de resistência nas comunidades têm
Ciência como Sandra Harding, Cecilia Sardenberg, Isabelle Stengers que constroem como liderança4, muitas vezes, mulheres. Mulheres que costumam ser moradoras
a crítica à Ciência Moderna e a proposição de outra epistemologia, uma epistemologia
que não só utilize o gênero como elemento descritivo das relações, mas que o entenda
enquanto elemento estruturante. A histórica exclusão das mulheres no mundo da 4 Dona Penha, liderança da Vila Autódromo, teve sua casa demolida em 8 de março de 2016, Dia
Ciência não só as retira enquanto indivíduos e grupo social, mas impacta diretamente Internacional de Luta das Mulheres e, mesmo assim, se manteve na luta e incentivando outros
no conteúdo do conhecimento. É necessário assumir o posicionamento na produção moradores e moradoras. Alessandra, do Morro da Providência, utiliza sua crença, evangélica, para
proferir discursos fortes sobre a vida e luta. Socorro, na Indiana, participa de diversos eventos levando
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antigas daquela comunidade, que predominantemente são a pessoa referência da dá majoritariamente por transporte público e não se dá com origem e destino únicos.
família, responsáveis pelo bem estar e sobrevivência de filhas(os) e outros parentes As mulheres exercem uma série de atividades que demanda uma série de paradas.
e também pela renda que os sustenta. Várias delas ainda fazem complemento desta Deixar os filhos na escola, buscar os filhos, ir ao mercado, levar alguém da família
renda com trabalhos feitos em casa como faxinas, artesanato ou venda de comida. ao médico. A precariedade do transporte tanto em termos físicos como em termos
Para estas mulheres, os processos de remoção não são somente a perda de uma de trajetos e linhas, portanto, afeta diretamente e mais intensamente as mulheres.
casa, mas também a perda de seu sustento. Pensar outras formas de locomoção, pensar redes viárias com mais conexões e,
ainda, pensar a distribuição de serviços na cidade de forma diferente, ou seja, para
Assim sendo, por exemplo, o Programa Minha Casa Minha Vida/PMCMV do que trabalho produtivo, reprodutivo, moradia, educação, saúde e lazer estejam mais
Governo Federal (Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009) nos apresenta uma próximas, impacta diretamente na vivência das mulheres na cidade, no seu dia a dia
profunda contradição. Ao mesmo tempo em que dá a titularidade da casa à mulher, e na sua mobilidade.
possibilitando a ela a garantia da moradia sem nenhuma dependência de marido
ou qualquer figura masculina, retira esta mulher de seu lugar. Como grande parte
dos empreendimentos é localizada em áreas afastadas da de origem de suas(seus) Insegurança
moradoras(es) e, inclusive, afastada de qualquer centralidade na cidade, além da
proibição da utilização do imóvel como qualquer forma de comércio, a mulher perde A insegurança, a impossibilidade de percorrer ou estar onde quer que seja em
sua possibilidade de renda, afinal, a maioria delas utilizava o próprio espaço da casa determinados dias e horários e o medo são causados pelo social, no sentido de
e sua vizinhança como sustento. Nesse contexto, em depoimento dado por uma que o mal que temos medo é causado por outra pessoa e nossas relações, mas
das moradoras resistentes da Vila Autódromo5, vê-se que tanto a transferência para são reforçados pelo espaço e seus elementos. Conforme metodologia utilizada
um condomínio do PMCMV quanto o recebimento de indenização pela remoção no Manual de Análisis Urbano (2010) utilizam-se alguns aspectos dados como
retiram destas mulheres a independência. Enquanto moradoras da Vila Autódromo, importantes para a análise do espaço em busca de um lugar seguro para a mulher:
possuem a concessão do direito de uso da terra, mas quando são removidas, na reconhecer facilmente o entorno; ver e ser vista; ouvir e ser ouvida; ter sempre visível
maior parte das vezes a titularidade passa ao homem e, no caso da indenização, o uma saída ou lugar para pedir ajuda; limpeza e cuidado do entorno; atuação coletiva
dinheiro é repassado também à figura masculina. Fatos esses que se repetem em no espaço público; iluminação eficiente. Além de considerar os tipos e horários de
outras comunidades removidas na cidade. uso, as possibilidades de transporte e a movimentação nos espaços.

É importante perceber que todas essas relações são demonstradas na maioria de A insegurança é um tema que toca a todas as pessoas que vivem a cidade mas
mulheres como lideranças e resistências nos movimentos de luta pela moradia, pra é importante considerar que há perigos e medos vividos exclusivamente ou mais
elas, a casa é resistência. intensamente pelas mulheres. As diferenças dessas vivências não são somente
materiais, são fruto da forma como a mulher é vista e construída pela sociedade, o
lugar designado à ela e sua sensação de pertencimento ou não ao espaço.
Mobilidade

Outro espaço de vulnerabilidade para as mulheres é o espaço do trânsito pela Lazer


cidade. A segurança é ponto central ao pensar sobre mobilidade entre mulheres, o
assédio. A partir do momento que o corpo feminino é entendido socialmente como um Ao olharmos os espaços públicos recorrentes na cidade do Rio de Janeiro, é possível
corpo público, como o é na nossa sociedade, se entende que esse corpo no espaço identificar quadras de futebol, esporte majoritariamente praticado por homens,
público está à mercê de outros. Essa questão vem ao encontro ao fato do nosso parquinhos com brinquedos para crianças e mobiliário para atividades físicas voltadas
corpo ser “delimitado por uma moralidade a que os homens não são submetidos. para idosos na maioria deles. Não se identifica, porém, um espaço público planejado
Uma moral que nos localiza na cidade” (TAVARES, 2015, p.115), afirmando que não especificamente para as mulheres. Veremos como isso se dá de forma concreta nas
pertencemos a esse espaço. O transporte público - ônibus, metrô, trem – é, apesar análises a seguir.
de em locomoção, um espaço fechado. A vulnerabilidade e o medo de se estar em
um espaço fechado só é vivida por esse corpo, pelo corpo feminino estabelecido Em estudo e projeto realizado em Vienna, Austria6, tentou-se identificar como
como corpo público. homens e mulheres utilizavam os parques públicos. Os resultados mostraram que,
a partir dos nove anos de idade, o número de meninas que utilizam os parques cai
Essa situação se agrava, ainda, quando conectamos as responsabilidades drasticamente, enquanto o número de meninos se mantém. Isso se dava pois, a
determinadas como femininas à necessidade de percorr mulheres trabalhadoras se partir do momento em que se estabelecia uma disputa de interesses pelo espaço,
as meninas não conseguem se sobrepor aos meninos, que tomam o espaço para
si. Tendo esse diagnóstico, foram feitas algumas transformações em dois parques
suas experiências, dores e lutas, sua resistência. O Movimento Nacional de Luta Pela Moradia /MNLM da cidade. Foram colocadas quadras de vôlei e badminton, para pluralizar os locais
tem como liderança Lurdinha, sempre acompanhando as ocupações do movimento e, organizando de esportes, o paisagismo passou a subdividir grandes áreas em áreas menores e
a luta. E, se aproximando do nosso objeto de estudo, a classe das trabalhadoras terceirizadas da
mais aconchegantes e elementos de acessibilidade foram inseridos. O resultado foi
UFRJ também tem como liderança duas mulheres, Nea e Terezinha, presidenta e vice-presidenta da
Associação de Trabalhadores terceirizados da UFRJ /ATTUFRJ.
5 Depoimento dado no evento “Seminário Mulheres e Direito à Cidade: Narrativas de Resistência”
realizado em 09 de junho de 2016 no Rio de Janeiro, contando com a presença de mulheres que
pesquisam ou vivem situações intensas de desigualdade no território carioca, como moradoras da Vila 6 Para saber mais sobre a experiência em Vienna: http://www.citylab.com/commute/2013/09/how-
Autódromo e do Complexo da Maré, além de liderança indígena e de favelas. design-city-women/6739/. Acesso em 07/07/2016.
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imediato. Houve um aumento visível do uso dos espaços do parque por parte de Condiserações Finais
meninas e mulheres, sem que um grupo prevalecesse sobre o outro.
Se as mulheres são as principais responsáveis pelos trabalhos de reprodução,
Nós também abordamos projetos de parques com a perspectiva (trabalho doméstico e o cuidado com filhas/os) são elas as maiores prejudicadas
de gênero, encorajando políticos a promoverem espaços livres que pela precariedade dos serviços públicos como luz, abastecimento de água, redes de
também levassem em consideração as necessidades específicas esgoto, drenagem, coleta de lixo e pela precariedade ou inexistência de equipamentos
de meninas e mulheres, visto que, como demonstram estudos e públicos comunitários como creches, escolas, lavanderias, cozinhas comunitárias.
análises, são necessidades específicas. As pesquisas de base Planejar o território a partir do entendimento das necessidades e vivências específicas
realizadas por sociólogos – que nós promovemos – demonstra das mulheres e outros grupos sociais marginalizados deve ser, portanto, debruçar-se
que as meninas têm menos chances e oportunidades de ocupar sobre uma escala menor, menos generalista e funcional e mais atenta às diferenças.
o espaço livre – parquinhos e parques públicos – por se sentirem A utilização de dados característicos do cotidiano das mulheres para inserção de
inseguras ou porque o desenho dos parques e a estrutura dos ações gerais e específicas na cidade se apresenta como passo inicial e essencial
espaços são orientadas para os interesses dos meninos. O estudo, para a visibilização das diferentes formas de uso do espaço e adequação a essa
com seus resultados evidentes, criou esta consciência entre os pluralidade. Diversidade de funções em uma mesma área, iluminação, sinalização,
responsáveis políticos em Vienna. Então, conduzimos seis projetos mobilidade plena em distâncias curtas, acesso a serviços públicos de saúde, educação
piloto, quatro deles com ampla participação em seu processo, e e creche nas proximidades de moradia, equipamentos de lazer com diversidade de
avaliamos posteriormente que as meninas tiveram melhores atividades são alguns fatores urbanísticos que interferem diretamente na vida de
chances de usar e ocupar o espaço livre com um planejamento mulheres e, mais ainda, de mulheres trabalhadoras. Fazer, então, com que esse
com a perspectiva de gênero, o que impulsionou a visibilidade de espaço seja mais acessível e agregador para as mulheres passa, essencialmente,
meninas e mulheres na esfera pública (KAIL, 2013, s/p, tradução por proporcionar novas possibilidades de uso que incorporem as necessidades e
nossa)7. desejos delas.

A partir da análise das situações vividas pelas mulheres nos espaços, é possível A transformação no olhar do planejamento da cidade não é, portanto, excludente.
indicar exemplos de atitudes projetuais iniciais que podem influenciar diretamente Pelo contrário, ela se propõe a reafirmar a diversidade e a inclusão dos diversos
nessa vivência. Quando observamos a organização dos espaços públicos de lazer corpos e relações assumindo que todo ser pertencente a essa sociedade estará
atuais na cidade do Rio de Janeiro, identificamos uma tipologia predominante que localizado por suas relações de poder. Essa categorização, portanto, proporcionará
possui, entre outras características, a escassez de possibilidades de uso. Um melhor uma cidade que se apresenta na busca por ser cada vez mais democrática e inclusiva.
zoneamento da área da praça faz com que o espaço não tenha que ser disputado No fim, pensar o espaço por uma perspectiva feminista e antiracista é tratar cada
por quem tem interesse de ocupá-lo, possibilitando o uso simultâneo por diferentes parte da cidade entendendo as desigualdades e demandas diversas dos grupos
grupos e, mais importante, a criação de espaços para uma maior diversidade de sociais e buscar proporcionar espaços que deixem de funcionar como manutenção
atividades. A própria inserção de outros tipos de atividades, inclusive, já faz com que das estruturas desiguais e passem a buscar a diminuição dessas desigualdades.
o espaço seja mais receptivo às mulheres, visto que as atividades principais das
praças atualmente focam em atividades masculinas ou infantis. Isto e a inclusão de A gestão do território, em disputa por uma série de agentes sociais e institucionais,
novas centralidades além dos campos de futebol fazem, não só com que a mulher desenvolvida através da possibilidade de circulação de ideias e políticas, é muito
tenha opções de uso naquele local, mas que ela olhe pra ele ou chegue até ele e mais do que a gestão de espaços, mas também da divisão desses espaços, de
perceba que o objetivo da existência daquele equipamento é, também, suprir a sua suas importâncias econômicas e políticas, da garantia de direitos para determinados
demanda de lazer e não só a do homem, uma questão de representatividade, de grupos, por fim, da possibilidade de vida de quem ocupa esses espaços.
proporcionar uma sensação de pertencimento. Quadras de outros esportes, que não
sejam construídos socialmente enquanto masculinos, pistas de ciclovia ou de corrida
são algumas possibilidades. E ainda, a construção de mais espaços de convivência, Referências bibliográficas
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aos parques infantis, o pensar no mobiliário urbano como um objeto confortável e ALAMBERT, Zuleika Mulher, Uma Trajetória Épica. São Paulo: Imprensa Oficial do
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7 No original: We also tackled projects of gender-sensitive parks encouraging politicians to promote ARANTES, Otília. VAINER, Carlos B. MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento
the design of open space which should take also into account the specific needs of girls and women Único: desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. (Coleção Zero à
since, as studies and analysis noticed, these needs are different. The broad scope research done by Esquerda)
sociologists -we promoted- shows girls have less chances and opportunities to occupy the open space
– playgrounds and public parks- by feeling unsafe or because the design of playgrounds and spatial
structures are orientated on boys interests only. The study, with its evident results, created awareness for BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. II. A Experiência Vivida. Rio de Janeiro:
the responsible politicians in Vienna. Then, we conducted six pilot projects, four of them with participatory Difusão Europeia do Livro, 1967.
processes; and we made evaluations afterwards showing girls have really better chances to freely use
and occupy open space with a gender-sensitive design what increases the visibility of women and girls Coletivo Hiria Kolektiboa. Manual de análisis urbano. Género y vida cotidiana.
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