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Figura 1. O processo de evolução urbana de Ouro Preto (fonte: Costa e Netto, 2015).
foram fundadas pelo geógrafo Conzen e pelo tradicionais de morfologia urbana, inglesa e
arquiteto Muratori, respetivamente, a partir dos italiana, permitem observar que a metodologia
anos de 1960. O livro ‘Fundamentos de desenvolvida por cada escola divergia e convergia
morfologia urbana’, publicado em 2015 no Brasil, paradoxalmente. Divergia, pois a escola inglesa
se propõe a apresentar as escolas tradicionais de iniciava os estudos pela escala ampliada da cidade
morfologia urbana e introduzir suas bases e sucessivamente reduzia a escala para observar
conceituais, com aplicação prática na cidade de os tecidos urbanos e os lotes, enquanto que a
Ouro Preto. Os diferenciais da obra consistem na escola italiana propunha o processo inverso,
maneira didática da aplicação das técnicas e na iniciando pela edificação, ampliava-se a escala
inauguração em língua portuguesa de referência aos tecidos e por fim ao território. A convergência
bibliográfica sobre o assunto (Costa e Netto, explica-se por compreender que ambas as escolas
2015). reconheciam que a variação das escalas de
Pesquisas realizadas com foco nas interações observação dos elementos formais e o
entre os conceitos e aplicações das escolas conhecimento dos processos culturais ao longo do
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Esse texto é fruto de uma reflexão estimulada construção do conhecimento potencializado pelas
pelo questionamento: para que serve a morfologia operações de analise e síntese de forma dialética.
urbana? Seu desenvolvimento segue o grande Lefebvre nunca se aventurou pelos estudos da
desafio de responder a questão travestida de morfologia urbana. Entretanto com seu livro ‘O
simplicidade, mas que na verdade guarda, entre direito a cidade’ de 1969, e ‘A revolução urbana’,
suas possíveis respostas, o coletivo de pensadores em 1970, o autor analisa as relações de forças
que auxiliaram na construção do conhecimento exercidas entre grupos sociais, destacando em
referente à morfologia urbana. seus estudos, a necessidade, de determinados
Procura-se não cair no ciclo vicioso onde os grupos em dar forma à cidade para atender seus
fundantes da matéria são citados por ordem interesses (Lefebvre, 1969, 1999 [1970]).
cronológica de contribuição, destacando seus Estes estudos sociológicos permitem afirmar
diversos estudos emblemáticos que motivaram o que a forma urbana não está descontextualizada
aprofundamento do saber referente à matéria. A das contradições sociais que a produzem.
pergunta não se refere a como foi construído o Portanto, adota-se a morfologia como estudo das
conhecimento que temos hoje a respeito da formas e dos fenômenos que lhes deram origem
morfologia urbana, mas sim ao significado desse como muito bem colocado por Lamas (1993). No
conhecimento para a vida prática ou para a caso brasileiro tal interesse nos é lembrado por
construção das ideias. Costa (2007), quando afirma que os primeiros
Decide-se então tomar o rumo da prática e o estudos sobre o tema estão relacionados aos
empréstimo de saberes outros, que não aspetos económicos, sociais e políticos das
necessariamente se debruçaram sobre a formas urbanas brasileiras, empreendidos por
morfologia urbana. historiadores, como Sérgio Buarque de Holanda, e
Algumas experiências profissionais (Silva e sociólogos, como Gilberto Freire na 1ª metade do
Manetti, 2012; Silva et al. 2013) e académicas século XX.
(Macedo, 1997; Magalhães, 2016; Silva, 2013) Podemos concluir que o interesse pelo estudo
documentam a contribuição da morfologia urbana da forma urbana nasce despido de qualquer
para levantamentos, diagnósticos e proposições de máscara disciplinar. Pode-se afirmar que
transformações urbanas. Entretanto a pergunta interessa-nos entender a forma, para assim,
ínsita em buscar a resposta nas causas primeiras, conhecer a sociedade e seus grupos sociais
isto é, nas razões mais fundamentais que compostos por individualidades.
justificam os estudos e usos dos saberes referentes Entretanto, nos distintos campos disciplinares
a morfologia urbana. a morfologia urbana toma diferentes matizes.
Partimos então a analisar a obra de Henri Assim como, conforme a estrutura educacional de
Lefebvre, sociólogo francês, que trata da cada país, os campos disciplinares são moldados
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eventos. O evento considerado como uma relação Kosik, K. (2011) Dialética do concreto (Paz e
entre objetos perdeu a sua passagem e neste Terra, Rio de Janeiro).
aspeto é em si mesmo um objeto. Este objeto não Lamas, J. M. R. G. (1993) Morfologia urbana e
é o evento, mas apenas uma abstração intelectual. desenho da cidade (Fundação Calouste
O mesmo objeto pode ser situado em muitos Gulbenkian & Junta Nacional de Investigação
eventos e, neste sentido, até o evento como um Científica e Tecnológica, Lisboa).
todo, visto como um objeto, pode voltar a ocorrer, Lefebvre, H. (1969) O direito à cidade (Ed.
embora não o próprio evento com a sua passagem Documentos, São Paulo).
e com as suas relações com outros eventos’ Lefebvre, H. (1999 [1970]) A revolução urbana
(Whitehead, 1929, p. 54). (UFMG, Belo Horizonte).
É preciso, portanto conhecer o objeto a ser Macedo, S. S. (ed.) (1997) ‘Litoral urbanização:
estudado por meio da leitura de suas ambientes e seus ecossistemas frágeis’,
‘rugosidades’, tendo a consciência do constante Paisagem e Ambiente 12.
processo de ‘totalização’ e dos nossos limites de Magalhães, N. C. T. (2016) ‘Unidades morfo-
percepção da ‘totalidade’ mutante. territoriais: estratégias de entendimento dos
Uma análise morfológica se mostra processos de produção da forma urbana’,
insuficiente para chegarmos a identificar as Dissertação, Pontifícia Universidade Católica de
relações de forças existentes. Por ‘onde’ ocorrera Campinas, Brasil.
a intervenção ou ação de planejamento? ‘Quem’ Santos, M. (1996) ‘A natureza do espaço: técnica
será impactado por elas? ‘Como’ se interfere no e tempo; razão e emoção’ (Editora Hucitec, São
território? Quais ‘conexões’ de facto serão Paulo).
estabelecidas? Entretanto o estudo da forma Silva, J. M. P. (2013) ‘As unidades de paisagem
possibilita ler concretamente os movimentos de como método de analise da forma urbana:
transformação da cidade. reflexões sobre sua incorporação pelo campo
Finalmente, respondendo à pergunta em uma disciplinar da arquitetura e urbanismo’,
única frase: a morfologia urbana nos serve para Cadernos do PROARQ 20, 71-93.
analisar o legado da ação humana sobre o Silva, J. M. P. e Manetti, C. (2012) ‘Memória,
território e desta maneira potencializa refletir mobilidade e complexidade: consideração pela
sobre como provocar deslocamentos convenientes história local’, Risco: Revista de Pesquisa em
a um querer socialmente construído. Arquitetura e Urbanismo 16, 61-77.
Silva, J. M. P., Manetti, C. e Tângari, V. R. (2013)
Referências ‘Compartilhamentos e unidades de paisagem:
método de leitura da paisagem aplicado à linha
Costa, S. A. P. (2007) ‘O estudo da forma urbana férrea’, Paisagem e Ambiente 31, 61-80.
no Brasil’ (http://vitruvius.es/revistas/read/ Spinoza, B. (2009) Short treatise on God, man
arquitextos/08.087/220) consultado em 10 de and human welfare (A. & C. Black, Londres).
Janeiro de 2013. Whitehead, A. N. (1929) The aims of education
Hall, S. (2006) A identidade cultural na pós- and other essays (Macmillan Company, Nova
modernidade (DP&A, Rio de Janeiro). Iorque).