Cartilha - Introducao Genero PDF

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SUMÁRIO

MORGANTE, Mirela. NADER, Maria Beatriz. “Patriarcado nos estudos


TEXTO 1 feministas”. Anais do XVI Encontro Regional de História – ANPUH-Rio:
Saberes e práticas científicas. 2014.
COSTA, Ana Alice. Gênero, poder e empoderamento das mulheres. Salvador:
TEXTO 2 NEIM/UFBA, s/d. Disponível em:
https://pactoglobalcreapr.files.wordpress.com/2012/02/5-empoderamento-
ana-alice.pdf
SARDENBERG, Cecília M.B.; MACEDO, Márcia. “Relações de Gênero: uma
TEXTO 3 breve introdução ao tema”. In: COSTA, Ana Alice et. al.. Ensino e Gênero –
perspectivas transversais. Salvador: UFBA-NEIM, 2011.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica Educação &
TEXTO 4 Realidade, v.lS, n.2, jul./dez. 1990 (versão consideravelmente revisada e
COMPLEMENTAR publicada em Educação & Realidade. Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento”. Estudos avançados 17 (49),
TEXTO 5 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v17n49/18400.pdf

MOTTA, Alda Britto. “As dimensões de gênero e classe social na análise do


TEXTO 6 envelhecimento”. cadernos pagu (13) 1999: pp.191-221
COMPLEMENTAR

SCOTT, Joan. “O enigma da igualdade”. Estudos Feministas, Florianópolis,


TEXTO 7 13(1): 216, janeiro-abril/2005.
PISCITELLI, Adriana. Re-criando a categoria mulher?. Articulação de mulheres,
TEXTO 8 s/d. Disponível em http://articulacaodemulheres.org.br/wp-
COMPLEMENTA content/uploads/2015/06/TC-2-PISCITELLI-Adriana-Re-criando-a-categoria-
Mulher.pdf
O patriarcado nos estudos feministas: um debate teórico

1
Mirela Marin Morgante

Maria Beatriz Nader 2

No campo dos estudos feministas, o termo patriarcalismo foi comumente utilizado para
explicar a condição feminina na sociedade e as bases da dominação masculina. As
abordagens, contudo, se mostraram bastante heterogêneas e controversas, a ponto de algumas
intelectuais optarem por não fazerem uso do conceito. Diante deste quadro conflituoso e
carente de coerência teórica, este artigo pretende realizar um esclarecimento do conceito. Para
tanto, procurar-se-á demonstrar os argumentos daqueles que propugnam e dos que não
advogam pelo uso de patriarcado nas pesquisas feministas, evidenciando algumas das linhas
interpretativas do conceito.

Mary G. Castro e Lena Lavinas fazem parte do rol das intelectuais que refutam a necessidade
teórica do uso do termo patriarcado. Para as autoras, o conceito é usado nos textos e obras na
sua forma adjetiva – como família patriarcal ou ideologia proletária e patriarcal – em
detrimento da referência ao patriarcado na sua forma substantiva – como um sistema, uma
organização ou uma sociedade patriarcal. Segundo elas, a forma adjetiva como amiúde é
usado, remete ao conceito weberiano de patriarcalismo, ou seja, “trata-se de um tipo de
dominação em que o senhor é a lei e cujo domínio está referido ao espaço das comunidades
domésticas ou formas sociais mais simples, tendo sua legitimidade garantida pela tradição”
(CASTRO; LAVINAS, 1992: 237). O patriarcado em Weber se refere a um período anterior
ao advento do Estado, sendo, portanto, inadequado falar em patriarcalismo nas sociedades
capitalistas.

1
Mestranda do programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal
do Espírito Santo. Vitória, Brasil. Bolsista da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo).
2
Professora Associada do Programa de pós-graduação mestrado e doutorado em História Social das relações
Políticas da UFES. Vitória. Brasil.
Quando se considera o patriarcado sob o prisma weberiano, é patente a ineficácia do conceito
para problematizar as relações de gênero na sociedade contemporânea. Como aponta Heleieth
Saffioti, as feministas da segunda onda, radicais ou marxistas, ao denunciar a dominação
patriarcal, faziam-no negligenciando o termo conforme a definição de Weber (SAFFIOTI,
2011). Ou seja, pode-se falar em patriarcado sem remeter a Weber, em uma formulação mais
abrangente e mais adaptada à complexidade das relações e instituições na contemporaneidade.

Castro e Lavinas alegam ainda, que as feministas se utilizam do termo patriarcado de maneira
heterogênea e sem concordância conceitual, exceto no que tange à referência de patriarcado
enquanto o poder e a dominação dos homens sobre as mulheres. Elas acrescentam, “para
algumas, ele se dá ao nível da família, para outras, num plano mais geral, na relação com o
Estado” (CASTRO; LAVINAS, 1992: 237). E as autoras concluem: “[...] parece-nos correto
afirmar que ele perde seu estatuto de conceito para firmar-se como uma referência implícita e
sistemática da dominação sexual” (CASTRO; LAVINAS, 1992: 238).

Segundo Christine Delphy, há mesmo uma falta de unanimidade quanto à utilização do


conceito de patriarcado entre as feministas, e as dessemelhanças nas funções atribuídas ao
termo nas diversas análises são reveladoras das clivagens mais elementares existentes no
interior do movimento feminista. Para as feministas socialistas a opressão das mulheres se
deve, em última instância, ao capitalismo, e seus beneficiários são os capitalistas, enquanto
para as feministas radicais a opressão feminina deve-se a um sistema diferente e original – o
sistema patriarcal – e seus beneficiários são os homens como uma categoria social (DELPHY,
1981). Para Heleieth Saffioti há ainda uma clivagem no interior do feminismo marxista, entre
aqueles que acreditam ser o patriarcado uma “[...] organização social de gênero autônoma,
convivendo, de maneira subordinada, com a estrutura de classes sociais” (SAFFIOTI, 1992:
194) – exatamente como as feministas socialistas apontadas por Delphy – e os que
consideram o patriarcado somente uma ideologia, de forma adjetivada. Mas a
desconformidade na maneira como se faz referência ao conceito nos estudos feministas não é
um problema para o uso do termo, desde que ele seja devidamente precisado.

Quanto aos níveis, apontados por Castro e Lavinas, nos quais os estudos feministas variam em
utilizar o termo patriarcado, é justamente pela possibilidade do conceito ser utilizado de
forma abrangente, abarcando todos os níveis da organização social, que patriarcado no seu
sentido substantivo é tão frutífero para analisar as diversas situações de dominação e
exploração das mulheres. O uso de patriarcado enquanto um sistema de dominação dos
homens sobre as mulheres permite visualizar que a dominação não está presente somente na
esfera familiar, tampouco apenas no âmbito trabalhista, ou na mídia ou na política. O
patriarcalismo compõe a dinâmica social como um todo, estando inclusive, inculcado no
inconsciente de homens e mulheres individualmente e no coletivo enquanto categorias sociais.

Mary Castro e Lena Lavinas criticam o uso do termo patriarcado conforme Weber, de
domínio de um patriarca sobre toda a comunidade doméstica ou econômica, em um sentido
adjetivo do conceito. Nesta perspectiva, realmente o termo é ineficaz para tratar das famílias
contemporâneas, muito diferentes das famílias consideradas por Weber, e ainda mais ineficaz
quando o patriarcado weberiano é utilizado para abordar os outros níveis do corpo social.
Além disso, as autoras apelam para a heterogeneidade no uso do conceito pelas feministas,
para justificar sua opção por não fazer referência a ele nos seus estudos de gênero. Mas a falta
de concordância conceitual não diminui a eficácia do uso de patriarcado para analisar as
questões referentes às mulheres, desde que o conceito seja bem precisado.

Elisabeth Souza Lobo, por sua vez, também prefere não utilizar o conceito patriarcalismo em
suas pesquisas. Discorrendo sobre algumas abordagens do trabalho feminino na Sociologia do
Trabalho e na História Social, ela esclarece que uma parcela da produção acadêmica brasileira
que abordou a divisão sexual do trabalho, relacionou esta questão com o patriarcado (LOBO,
1992). Nestas perspectivas, a ordem patriarcal seria uma estrutura determinante da divisão
sexual do trabalho, levando-se em conta as diferenças históricas dessa divisão. O
patriarcalismo estaria, assim, na base da divisão sexual do trabalho, dando início a ela, e
surge, por sua vez, dos fundamentos materiais da sociedade. “Ou, o que me parece seguir um
raciocínio semelhante: as relações sociais organizam as divisões da sociedade, e a divisão
sexual do trabalho é um locus fundamental das relações entre os sexos” (LOBO, 1992: 259).

Para a autora, o conceito patriarcado como é utilizado pressupõe ligações de determinação


estrutural, negligenciando as relações históricas e as construções culturais da divisão sexual
do trabalho. Nesse sentido, o uso do conceito acarreta em um padrão de percepção feminista
de base-superestrutura, de estruturas definitivas e imutáveis, em detrimento da concepção das
relações entre os sexos como relações mutáveis e historicamente definidas, isto é, inseridas
em culturas e sociedades específicas que estabelecem ligações recíprocas e antagônicas entre
mulheres e homens (LOBO, 1992). Assim, Lobo afirma não concordar com a utilização do
conceito de patriarcado, preferindo o termo gênero para tratar da divisão do trabalho entre os
que são vividos e pensados como sendo mulheres e homens, em uma relação social e
simbólica sem qualquer dinâmica determinante. Como ela coloca: “neste sentido, a divisão
sexual do trabalho é um dos muitos locus das relações de gênero” (LOBO, 1992: 260).

A perspectiva na qual a divisão sexual do trabalho é consequência de uma estrutura patriarcal


determinante, isto é, a percepção teórica de base e superestrutura, evidencia uma das possíveis
interpretações do conceito de patriarcado, provavelmente uma interpretação de filiação
marxista. Como já foi observado, para Saffioti, o feminismo marxista pode ser dividido entre
aqueles que admitem a subordinação do patriarcado ao sistema capitalista – as socialistas de
Delphy – e aqueles que se utilizam do conceito patriarcado unicamente na forma de ideologia
– que parece ser o caso da visão de base e superestrutura (SAFFIOTI, 1992).

A postura teórica do patriarcado como uma ideologia se insere do grupo dos estudos
feministas que utilizam o termo no sentido adjetivo – ideologia patriarcal. Para Christine
Delphy, a forma adjetiva do conceito de patriarcado é um uso clássico do termo, pode-se
dizer que é um uso pré-feminista de patriarcado, muito presente na literatura do século XIX,
que dava ao conceito “[...] connotations psychologisantes et biologisantes” (DELPHY, 1981:
62-63). 3 Para a autora, tanto Marx quanto Victor Hugo utilizavam o termo na forma adjetiva
e, por consequência, com um sentido positivo (DELPHY, 1981). Como ela aponta, “le
patriarcat est, dans cet usage, une espèce de noyau à la fois inexplicable et irréductible de la
«nature humaine»” (DELPHY, 1981: 63).4 Assim, no sentido adjetivo, o conceito adquire o
caráter de natureza humana e, enquanto tal, sua existência é inevitável e sem explicação
precisa. E Delphy acrescenta, “[...] il est vu comme une structure mentale a-historique,
produite non par une ou des sociétés concrètes, mais par la Société. En effet, il est presente
comme étant la base même de la constitution de toute société” (DELPHY, 1981: 63). 5 Isto é,

3
“[...] conotações psicologizantes e biologizantes”. Tradução nossa.
4
“O patriarcado é, nesse uso, uma espécie de núcleo tanto inexplicável quanto irredutível da natureza humana”.
Tradução nossa.
5
“Ele é visto como uma estrutura mental a-histórica, produzida não por uma ou mais sociedades concretas, mas
pela Sociedade. Com efeito, ele é apresentado como estando na base mesma da constituição de toda sociedade”.
Tradução nossa.
a referência clássica ao patriarcado, evidencia-o como uma estrutura mental natural de
constituição da sociedade como um todo.

Carole Pateman explica que essa concepção de patriarcado, segundo a qual ele é a gênese de
constituição de toda a vida social, um atributo universal da sociedade humana, é uma
concepção literal – de governo do pai, paterno – e genérica de patriarcado, estritamente
relacionada com o pressuposto de que as relações sociais patriarcais se referem à família
(PATEMAN, 1993). Como afirma a autora, para as interpretações literais do conceito de
patriarcado, “a gênese da família (patriarcal) é frequentemente entendida como sinônimo da
origem da vida social propriamente dita, e tanto a origem do patriarcado quanto a da
sociedade são tratadas como sendo o mesmo processo” (PATEMAN, 1993: 43).

Nesta perspectiva, como já explicitado por Delphy, o patriarcado assume um caráter natural e
positivo, na medida em que foi necessário – e natural – o seu advento para o paralelo
nascimento da sociedade civil organizada. Para Pateman, segundo as primeiras histórias, no
início da história da humanidade – em uma época primitiva – imperava o direito materno, a
prática livre de relações sexuais impedia a visualização da linhagem paterna e a descendência
era então reconhecida por meio das mães (PATEMAN, 1993). A gênese da civilização se deu
com a vitória do pai, com o surgimento da família patriarcal. Assim, “o patriarcado foi um
triunfo social e cultural. O reconhecimento da paternidade foi interpretado como um exercício
da razão, um avanço necessário que forneceu as bases para a emergência da civilização –
todas elas realizações dos homens” (PATEMAN, 1993: 50). Daí o caráter positivo que o
patriarcado adquire quando é interpretado de forma literal, genérica e adjetivada.

É exatamente essa visão de patriarcado, enquanto uma estrutura definitiva, imutável, a-


histórica, universal e com conotações biológicas, que Elisabeth Lobo critica nos estudos sobre
a divisão sexual do trabalho. Mas o conceito neste sentido está em sua forma adjetiva e, como
tal, apresenta-se realmente como uma estrutura determinante de todas as sociedades humanas,
cujo fundamento é natural e, por isso, muito difícil de mudar. O conceito de patriarcado deve
ser utilizado na forma substantiva, como um sistema de dominação e exploração das
mulheres, muito bem situado historicamente e geograficamente.
Lia Zanotta Machado critica o uso do termo patriarcado em seu sentido fixo, universal e
totalizante, mas afirma que não advoga pela sua não utilização. Para ela, é possível falar em
um patriarcado contemporâneo, na perspectiva de um não essencialismo, considerando as
mutações ocorridas ao longo do tempo e nos mais variados grupos sociais. Ou seja, para
Machado, existem relações patriarcais na contemporaneidade, mas estas devem ser muito bem
definidas “[...] em suas novas formas e na sua diversidade [...]” (MACHADO, 2000: 3).
Portanto, para a autora, diante das modificações nas relações de gênero, das contradições e
das transformações sociais que as sociedades ocidentais modernas vêm passando, pode-se
falar apenas em um patriarcado contemporâneo.

Contudo, apesar de não considerar inapropriado o uso do termo patriarcado contemporâneo,


a autora adverte que utilizá-lo significa empobrecer “[...] os sentidos contraditórios das
transformações [...]”, na medida em que ele tem um sentido totalizador que não dá conta das
mutações das relações de gênero do mundo moderno (MACHADO, 2000: 3). Isto porque,
para Machado, patriarcado diz respeito a uma forma de organização ou de dominação sociais,
cujo significado remete à matriz conceitual weberiana. Ela expõe a definição de
patriarcalismo em Weber, no qual o conceito se refere à dominação exercida por um
indivíduo – na maioria dos casos – em uma comunidade econômica ou familiar, conforme as
normas hereditárias próprias destes agrupamentos sociais (MACHADO, 2000: 3).

O patriarcalismo para Weber é um tipo ideal, ou seja, é um conceito que pode ser utilizado
para fazer alusão a qualquer organização social historicamente definida que tenha no patriarca
a autoridade central do grupo doméstico. Conforme Machado, “a autoridade familiar e
doméstica é que funda o patriarcado e implica uma determinada divisão sexual que Weber
denominava ‘normal’ [...]” (MACHADO, 2000: 3). Como um tipo ideal, o patriarcado
weberiano tem um sentido a-histórico, haja vista sua possibilidade de ser usado em diversos
momentos históricos para fazer referência à dominação exercida por um patriarca em uma
comunidade familiar ou econômica (MACHADO, 2000: 3).

Nesta perspectiva, Lia Zanotta Machado salienta que na sociedade contemporânea os direitos
paternais e sexuais não são naturalizados e legitimados da mesma maneira como o caso
típico-ideal weberiano, o que torna muito pouco adequado referir-se ao conceito de
patriarcado nas sociedades de princípios do século XXI. Para a autora, as relações sociais
contemporâneas são muito mais complexas e dinâmicas do que as comunidades familiais
weberianas, daí ser impróprio aplicar um conceito historicamente datado – que remete a uma
forma de organização social mais simples – às relações de gênero da contemporaneidade.
Como aponta Heleieth Saffioti, “[...] é grande o peso da esfera doméstica no conceito típico-
ideal. Rigorosamente, também a dimensão econômica tem a marca familiar, pois o poder
patriarcal se organiza na economia de oikos” (SAFFIOTI, 1992: 194). Segundo Saffitoi, o
patriarcado enquanto um tipo-ideal weberiano não pode ser utilizado para fazer um exame
totalizante das relações de gênero contemporâneas.

Já foi apontada acima a impossibilidade do uso do patriarcado de Weber para analisar a


situação das mulheres na modernidade. Tanto é assim que a segunda onda do movimento
feminista fez referência ao termo sem nenhuma conotação weberiana, o que evidencia que ele
pode ser utilizado sem necessariamente referir-se ao tipo-ideal de Weber. Como salienta
Heleieth Saffioti, “a teoria weberiana é constituída por conceitos genéticos fechados, que não
admitem nem multivocidade, nem matizes. O termo patriarcado, contudo, não constitui
propriedade da teoria weberiana ou de filiação weberiana” (SAFFIOTI, 1992: 194). A autora
esclarece que o patriarcado pode ser concebido como um esquema de dominação e
exploração das mulheres, o que, por si só, significa um total distanciamento em relação ao
tipo-ideal weberiano (SAFFIOTI, 1992: 194). Ou seja, o conceito pode sim ser utilizado na
contemporaneidade, desde que ele seja redefinido e bem precisado.

As observações de Lia Zanotta Machado são muito pertinentes quanto às limitações do


conceito patriarcado para fazer referência às relações de gênero na contemporaneidade, mas
somente na medida em que ela o considera como sendo de matriz teórica weberiana.
Enquanto um tipo-ideal weberiano, o patriarcado se apresenta como a-histórico, fixo,
inflexível e natural. Mas não é nesse sentido que ele deve ser pensado para analisar a
dinâmica social de gênero da modernidade. A própria Machado admite a dominação
masculina na contemporaneidade “[...] sempre, no entanto, contestada em nome do
enraizamento social e cultural da legitimidade política do código dos direitos individuais à
igualdade e liberdade” (MACHADO, 2000: 16). Ela propugna, assim, o uso de dominação
masculina em detrimento de patriarcado para examinar as relações de gênero na sociedade
contemporânea.
Falar em dominação masculina, como o fez Pierre Bourdieu, é mesmo muito promissor para
abranger a dimensão simbólica, inconsciente e as representações sociais da dominação
masculina (BOURDIEU, 2010). Mas abordar somente a dominação, sem colocar em relevo a
exploração sofrida e vivenciada pelas mulheres, é subsumir uma dimensão significativa da
organização social de gênero da contemporaneidade. O conceito patriarcado permite
visualizar estes dois âmbitos, a dominação e a exploração das mulheres, que estão
estreitamente interligados.

Lia Zanotta Machado apresenta, todavia, uma alternativa promissora quando se pretende fazer
referência ao termo patriarcado na sociedade moderna atual: falar em um patriarcado
contemporâneo, o que possibilita situar historicamente patriarcado, considerando as
complexas transformações nas relações de gênero da sociedade moderna. Apesar de Machado
não advogar por seu uso, ela admite que o conceito seja utilizado em outros estudos
feministas desde que seja referido desta maneira – patriarcado contemporâneo – e muito bem
definido conceitualmente.

Carole Pateman, por seu turno, ao invés de fazer referência ao termo patriarcado
contemporâneo, se utiliza do conceito patriarcado moderno contrapondo-o ao argumento
patriarcal tradicional e à premissa patriarcal clássica. Para a autora, a história do contrato
social colocou em silencio profundo o contrato sexual, na medida em que “o contrato original
é um pacto sexual-social, mas a história do contrato sexual tem sido sufocada” (PATEMAN,
1993: 15). Pateman explica que o patriarcado moderno surgiu com o advento da sociedade
civil contratual, ou seja, com o estabelecimento do contrato original. A autora evidencia como
os teóricos do contrato social negligenciaram o contrato sexual e implementaram o
patriarcado moderno.

Por enquanto, contudo, importa salientar que “[...] não há nenhum bom motivo para se
abandonar os termos patriarcado, patriarcal e patriarcalismo. Grande parte da confusão surge
porque ‘patriarcado’ ainda está por ser desvencilhado das interpretações patriarcais de seu
significado” (PATEMAN, 1993: 39). Isto é, continua sendo muito frutífero analisar as
relações de gênero da sociedade contemporânea com a base conceitual de patriarcado,
particularmente referindo-se ao patriarcado moderno. Deve-se, contudo, realizar um
distanciamento das definições patriarcais de patriarcado, como a que interpreta o conceito
“[...] no seu sentido literal de governo do pai ou de direito paterno” (PATEMAN, 1993: 43).
Assim como é imperativo o afastamento em relação ao uso de patriarcado na sua forma
adjetiva e como tipo-ideal weberiano. Como destaca Pateman: “é urgente que se faça uma
história feminista do conceito de patriarcado. Abandonar o conceito significaria a perda de
uma história política que ainda está para ser mapeada” (PATEMAN, 1993: 40).

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CASTRO, Mary G.; LAVINAS, Lena. Do feminino ao gênero: a construção de um objeto. In:
COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de
Janeiro: Rosa dos tempos, 1992.

DELPHY, Christine. Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles. Nouvelles


Questions Féministes, n 2, Féminisme: quelles politiques? p. 58-74, out. 1981.

LOBO, Elisabeth Souza. O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho. In: COSTA,
Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa
dos tempos, 1992.

MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado


contemporâneo? In: Sociedade Brasileira de Sociologia (Ed.) Simpósio Relações de Gênero
ou Patriarcado Contemporâneo, 52ª Reunião Brasileira para o Progresso da Ciência.
Brasília: SBP, 2000.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, Albertina de


Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos,
1992.

______. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2011.
GÊNERO, PODER E

EMPODERAMENTO DAS MULHERES1

Os problemas ligados a questões de poder têm sido um dos principais entraves aos
projetos de desenvolvimento. Mas ao contrário do que os apressados possam imaginar,
estes problemas não se referem exclusivamente a hierarquia funcional ou as esferas de
decisão. Eles fazem parte do cotidiano do trabalho, nas relações entre os técnicos, entre
técnicos e a comunidade, dentro da própria comunidade. Apesar de se manifestarem mais
explicitamente na aplicabilidade das ações específicas do enfoque de gênero, eles estão
presentes em todos os componentes desses projetos.

Entender a questão do poder e em especial do poder nas relações de gênero, bem


como sua importância no processo de incorporação das mulheres é fundamental na prática
daqueles que são responsáveis pela execução de projetos de desenvolvimento social, a
exemplo do Pró-Gavião.

Nesse sentido, neste texto, nos propomos a discutir as questões básicas do poder, da
relação entre gênero e poder e do empoderamento das mulheres e seus reflexos nos
projetos de desenvolvimento.

O poder

Julieta Kirkwood2 ao discutir os nós do poder afirma:

1
Texto elaborado por Ana Alice Costa, Doutora em Sociologia Política pela Universidad Nacional Autonoma
de México, Professora Adjunta IV do Departamento de Ciência Política da UFBa. e do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da UFBA, e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher – NEIM/UFBA. Coordenadora Executiva da REDOR.

2
Kirkwood, Julieta. Ser política en Chile: las feministas y los partidos políticos. Santiago: Flacso. Março,
1986.
“... o poder não é, o poder se exerce. E se exerce em atos, em
linguagem. Não é uma essência. Ninguém pode tomar o poder e guardá-lo em
uma caixa forte. Conservar o poder não é mantê-lo escondido, nem preserva-lo
de elementos estranhos, é exercê-lo continuamente, é transforma-lo em atos
repetidos ou simultâneos de fazer, e de fazer com que outros façam ou
pensem. Tomar-se o poder é tomar-se a idéia e o ato”.

Seguindo esta mesma linha, Marcela Lagarde3 vai mais adiante ao definir o poder
como :

“... a capacidade de decidir sobre a própria vida: como tal, é um fato


que transcende o indivíduo e se plasma nos sujeitos e nos espaços sociais: aí
se materializa como afirmação, como satisfação de objetivos (...). Mas o
poder consiste também na capacidade de decidir sobre a vida do outro, na
intervenção com fatos que obrigam, circunscrevem ou impedem. Quem
exerce o poder se arroga o direito ao castigo e a postergar bens materiais e
simbólicos. Dessa posição domina, julga, sentencia e perdoa. Ao fazê-lo,
acumula e reproduz o poder”.

Como podemos ver, estes conceitos de poder vão além do poder político, do poder
formal presente no âmbito do Estado, do poder resultante das hierarquias funcionais. Na
verdade, o poder opera em todos os níveis da sociedade, desde as relações interpessoais até
o nível estatal. As instituições e estruturas do Estado são elementos dentro de certas esferas
de poder, cujas concepções se fundem na complexa rede de relações de força. Nesse
sentido, o poder pode ser visto como um aspecto inerente a todas as relações econômicas,
sociais e pessoais. Pode-se afirmar que o poder está presente do leito conjugal de um casal
a sala presidencial do Palácio do Planalto. Estas relações de poder que operam em distintos
níveis estão em constante conflito de interesses.
As relações de poder se mantém porque os vários atores – tanto os dominadores
como os dominados – “aceitam” as versões da realidade social que negam a existência de
desigualdades, que afirmam ser estas desigualdades resultantes de desgraça pessoal ou da
injustiça social4. Esta aceitação é construída através dos mecanismos de socialização, da
força da ideologia, das crenças religiosas, etc.., conforme vimos no 1º capítulo.

Mas, voltando às citações de Kirkwood e Lagarde, se analisarmos detidamente


estes dois conceitos de poder, e afastarmo-nos desse campo abstrato tentando pensá-lo
enquanto personificação humana, certamente o veremos como uma prática tipicamente
masculina, afinal, historicamente as mulheres têm estado do outro lado do poder, do lado da
subalternidade.

Gênero e poder

Ainda hoje, pese todas as transformações ocorridas na condição feminina, muitas


mulheres não podem decidir sobre suas vidas, não se constituem enquanto sujeitos, não
exercem o poder e principalmente, não acumulam este poder, mas o reproduzem, não para
elas mesmas, mas para aqueles que de fato controlam o poder. As pequenas parcelas de
poder ou os pequenos poderes que lhes tocam e que lhes permitem romper, em alguns
momentos ou circunstâncias, a supremacia masculina, são poderes tremendamente
desiguais5.

Como já vimos em muitas outras oportunidades, esta subalternidade, determinante


na condição feminina, é fruto do seu papel de gênero. Sabemos que a sociedade através de
suas instituições (aparelhos ideológicos), da cultura, das crenças e tradições, do sistema
educacional, das leis civis, da divisão sexual e social do trabalho, constróem mulheres e
homens como sujeitos bipolares, opostos e assimétricos: masculino e feminino envolvidos
em uma relação de domínio e subjugação.

3
Lagarde, Marcela. Cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas. México:
UNAM, 1993. P.154
4
Kabeer, Naila. Empoderamiento desde abajo: Qué podemos aprender de las organizaciones de Base?. In.
Leon, Magdalena (org) Poder y empoderamiento de las mujeres. Bogotá: MT Editores, 1997
5
Costa, Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/Ufba e Assembléia
Legislativa da Bahia. 1998 (Coleção Bahianas, vol.2)
Quando falamos relações de Gênero, estamos falando de poder. Na
medida em que as relações existentes entre masculino e feminino são
relações desiguais, assimétricas, mantém a mulher subjugada ao homem e
ao domínio patriarcal.

Patriarcado é organização sexual hierárquica da sociedade tão necessária


ao domínio político. Alimenta-se do domínio masculino na estrutura familiar
(esfera privada) e na lógica organizacional das instituições políticas (esfera
pública) construída a partir de um modelo masculino de dominação (arquétipo
viril).

Isso significa dizer que o domínio patriarcal (masculino) apresenta na sociedade


distintas manifestações. Ele esta presente no cotidiano do mundo doméstico e do mundo
público. Não é preciso praticar a discriminação aberta contra a mulher ou a violência
explícita para demonstrar sua presença na medida em que esse poder de gênero esta
assegurado através dos privilégios masculinos e das desigualdades entre homens e
mulheres.

Apesar das diferenças de classe, de raça e cultura, alguns aspectos derivados da


condição de subordinação são comuns a todas as mulheres:

• O controle masculino do trabalho das mulheres;

• O acesso restrito das mulheres aos recursos econômicos e sociais e ao poder político,
cujo resultado é uma distribuição muito desigual dos recursos entre os sexos;

• A violência masculina e o controle da sexualidade.

Durante mais de um século, o movimento de mulheres articulou-se em torno do


enfoque da igualdade sem se dar conta que o próprio conceito de igualdade existia a partir
de um modelo masculino e patriarcal de organização política. Somente após a conquista
dos chamados direitos civis a partir dos anos 30, onde a tão propalada igualdade foi
finalmente conquistada, é que as mulheres puderam se dar conta de que não era suficiente
a conquista legal, seria necessário um processo de transformação mais amplo, onde o
próprio conceito de igualdade fosse questionado6. Essa será a tônica do movimento de
mulheres dos anos 80.

Esse processo de descoberta foi vivenciado também nos projetos de


desenvolvimento que durante muito tempo buscaram a melhoria da condição feminina
através dos enfoques de bem-estar social, de combate a pobreza e de geração de renda,
conforme vimos no Capítulo II.

Esses projetos, por não fazerem uma distinção entre “condição” e “posição” das
mulheres7, não conseguiram trazer mudanças significativas na vida da população feminina.
Na verdade, muitos deles conseguiram ampliar a renda familiar, garantir o acesso das
mulheres à saúde, a educação etc., mas não proporcionaram mudanças significativas na
posição das mulheres. Estas continuaram subjugadas, excluídas de qualquer esfera de
decisão e autonomia8.
Condição é o estado material no qual se encontram as mulheres: sua
pobreza, salário baixo, desnutrição, falta de acesso a saúde pública e a
tecnologia moderna, educação e capacitação, sua excessiva carga de
trabalho, etc.

6
“No particular, o movimento feminista tem procurado demonstrar que a mudança nas leis por si só não é
suficiente para promover uma mudança nos comportamentos, nas mentalidades e na estrutura social. É que
mesmo com a conquista do sufrágio, as mulheres permaneceram subjugadas à estrutura patriarcal da
sociedade
A conquista da igualdade jurídica, que por várias décadas foi meta do movimento feminista, não tem
conseguido incorporar as mulheres nesse modelo de cidadania dominante. Cada vez mais avança a
consciência da necessidade do estabelecimento de políticas públicas que possam estimular e mesmo garantir
uma maior integração feminina, à estrutura de poder, ao mundo da política formal.” Costa. Ana Alice. Em
busca de uma cidadania plena. In. Álvares, Ma. Luzia e Santos, Ma. Eunice. Olhares & diversidade: os
estudos sobre gênero no Norte e Nordeste. Belém: GEPEM/REDOR. 1999.
7
Os conceitos de condição e posição femininas na ótica desenvolvimentista foram desenvolvidos por Yong,
Kate. El potencial transformador en las necesidades práticas: empoderamiento colectivo y el proceso de
planificación. In. Leon, Magdalena. Op.cit.
8
Não podemos esquecer que a incorporação massiva das mulheres no mercado de trabalho, em especial na
industria, apesar de garantir um incremento na renda familiar e retirar a mulher do isolamento doméstico, não
proporcionou uma autonomia do sujeito feminino ou qualquer divisão sexual do trabalho. Acarretou, isso sim,
numa sobrecarga de trabalho (a segunda jornada), num aumento de responsabilidades, no abandono dos
filhos, uma maior vulnerabilidade ao assedio e a violência sexual.
Posição é o status econômico, social e político das mulheres
comparado com o dos homens, isto é, a forma como as mulheres tem acesso
aos recursos e ao poder comparado aos homens.

Este erro permaneceu durante muito tempo dominando os projetos de


desenvolvimento. A falsa preocupação com a preservação da chamada cultura popular
(mesmo que ela seja opressora e violenta), o medo de proporcionar mudanças qualitativas
na divisão sexual do trabalho e na estrutura familiar pondo em risco o poderio masculino,
serviu apenas para manter o domínio patriarcal intacto9.

Outro tipo comum de prática entre os planejadores e executores que têm mantido as
mulheres afastadas dos benefícios desse tipo de projeto, é a concepção de que as
necessidades das mulheres são idênticas às dos homens ou a de agrupações mais amplas
como trabalhadores rurais, liderança local, etc, Geralmente, as mulheres são vistas e
tratadas apenas como provedoras do bem-estar da família ou como meio de bem-estar de
outros, como mães e esposas, nunca como sujeitos autônomos com demandas próprias.

Como consequência estes projetos resultaram ser ineficazes e até mesmo contra-
producentes, na medida em que planejadores e executores não haviam entendido as
desigualdades de gênero e portanto implementavam ações que só aumentavam a carga de
trabalho das mulheres sem o correspondente em termos de benefícios, aumentando assim a
brecha de gênero, isto é, o fosso existente entre os direitos do homem e os direitos da
mulher.

Superar as desigualdades de gênero é um dos


primeiros passos para o desenvolvimento da mulher.

9
Aqui, podemos citar o exemplo da repercussão da oficina sobre conquistas femininas realizada pela equipe
do NEIM junto ao Grupo de Interesse Feminino de Lagoa Seca (UAP Jânio Quadros) em que foi tratada a
questão da violência doméstica. Aí pode-se identificar entre alguns maridos o medo de ver seu domínio
abalado, mas em especial, a falta de compreensão por parte da equipe técnica sobre o significado do enfoque
de gênero em um projeto de desenvolvimento e sua consequênte preocupação em manter intacta estas
estruturas de dominação, mesmo que tal prática, a exemplo da violência, venha de contra a própria legislação
brasileira.
A partir dos anos 80, as feministas começaram a questionar as estratégias de
desenvolvimento e as intervenções destes projetos que não atacavam os fatores estruturais
que perpetuam a opressão e exploração das mulheres, em especial das mulheres pobres.
Nesse contexto é que o movimento de mulheres passa a utilizar o conceito de
empoderamento.

Empoderamento

O conceito de empoderamento surgiu com os movimentos de direitos civis nos


Estados Unidos nos anos setenta, através da bandeira do poder negro, como uma forma de
auto valoração da raça e conquista de uma cidadania plena.

Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações,


as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida,
de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e competência para
produzir e criar e gerir.

O termo começou a ser usado pelo movimento de mulheres ainda nos anos setenta.
Para as feministas o empoderamento compreende a alteração radical dos processos e
estruturas que reduzem a posição de subordinada das mulheres como gênero. As mulheres
tornam-se empoderadas através da tomada de decisões coletivas e de mudanças individuais.

Segundo Stromquist10, os parâmetros do empoderamento são:

• construção de uma auto-imagem e confiança positiva;


• desenvolvimento da habilidade para pensar criticamente;
• a construção da coesão de grupo;
• a promoção da tomada de decisões;
• a ação.

Esse processo de avanço da mulher se dá através de cinco níveis de igualdade:

10
Stromquist, Nelly. La busqueda del empoderamiento: en qué puede contribuir el campo de la educación. In.
Leon, Magdalena. Op. cit. p.105.
Bem-estar:
Acesso aos recursos
Maior Maior
Conscientização
igualdade empoderamentoo
Participação
Controle

Segundo ainda esta autora, uma perfeita definição de empoderamento, deve incluir
os componentes cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos:

• componente cognitivo refere-se a compreensão que as mulheres têm da sua


subordinação assim com as causas desta em níveis micro e macro da sociedade.
Envolve a compreensão de ser e a necessidade de fazer escolhas mesmo que possam ir
de encontro às expectativas culturais e sociais. Este componente cognitivo do
empoderamento também inclui um novo conhecimento sobre as relações e ideologias
de gênero, sobre a sexualidade, os direitos legais, as dinâmicas conjugais etc .(80);

• componente psicológico inclui o desenvolvimento de sentimentos que as mulheres


podem por em prática a nível pessoal e social para melhorar sua condição, assim como
a ênfase na crença de que podem ter êxito nos seus esforços por mudanças:
autoconfiança e auto-estima são fundamentais;

• componente político supõe a habilidade para analisar o meio circundante em termos


políticos e sociais, isto também significa a capacidade para organizar e promover
mudanças sociais;

• componente econômico supõe a independência econômica das mulheres, esse é um


componente fundamental de apoio ao componente psicológico. (81)

Stromquist, apresenta o seguinte esquema sobre o processo de empoderamento (84)


Participando em pequenos Compreensão da dominação,
grupos com demandas organização e mobilização,
coletivas constituição de uma demanda
política mais ampla

Nível micro Nível macro


Maior liberdade e sentido
Agenda política ampla, novos
de competência pessoal, acordos coletivos, cidadania
redefinição de valores transformada
maternos e renegociação
das relações domésticas

O empoderamento das mulheres representa um desafio às relações patriarcais, em


especial dentro da família, ao poder dominante do homem e a manutenção dos seus
privilégios de gênero. Significa uma mudança na dominação tradicional dos homens sobre
as mulheres, garantindo-lhes a autonomia no que se refere ao controle dos seus corpos, da
sua sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um rechaço ao abuso físico e a
violação sem castigo, o abandono e as decisões unilaterais masculinas que afetam a toda a
família.

Segundo Magdalena León, o empoderamento das mulheres libera e empodera


também aos homens no sentido material e o psicológico, já que a mulher logra ter acesso
aos recursos materiais em beneficio da família e da comunidade, a compartir
responsabilidades, e também devido a que se permitem novas experiências emocionais para
os homens e os libera de estereótipos de gênero 11

O processo de empoderamento da mulher traz a tona uma nova concepção de poder,


assumindo formas democráticas, construindo novos mecanismos de responsabilidades
coletivas, de tomada de decisões e responsabilidades compartidas.

11
León, Magdalena. El empoderamiento en la teoria y práctica del feminismo. In. León, Magdalena. Op. cit.
p.21
© 2011 by autores.

Todos os direitos autorais deste material são de propriedade dos Autores. Qualquer parte desta
publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

Organizadores
Ana Alice Alcantara Costa
Alexnaldo Teixeira Rodrigues
Iole Macedo Vanin

Revisão
Vanda Bastos

Capa
Gabriel Cayres

Sistema de Bibliotecas - UFBA

Ensino e Gênero: Perspectivas Transversais / Ana Alice Alcantara Costa, Alexnaldo Teixeira
Iole Macedo Vanin , organização. - Salvador : UFBA - NEIM, 2011.
247 p.

ISBN: 978-85-60667-90-1

1. Escolas - Organização e administração. 2. Professores - Formação. 3. Mulheres.


4. Educação multicultural. I. Costa, Ana Alice Alcântara. II. Rodrigues, Alexnaldo Teixeira.
III. Passos, Elizete Silva.

CDD - 371.207
RELAÇÕES DE GÊNERO

uma breve introdução ao tema

1
Cecilia M. B. Sardenberg
Márcia S. Macedo2

Ao iniciar uma reflexão sobre gênero, o primeiro desafio que se apresenta é o de reconhecer
que ser homem ou ser mulher não é simplesmente um feito natural, biológico e isso porque há vários
fatores de ordem econômica, social, política, étnica e cultural que contribuem, de forma diversa, para a
maneira como pensamos, como nos comportamos e atuamos enquanto homens ou mulheres, mas nem
sempre nós os levamos em consideração quando procuramos compreender as diferenças entre homens e
mulheres. De um modo geral, é comum que se dê importância apenas aos aspectos biológicos, tomando
como “naturais” diferenças que são construídas socialmente a partir de outros elementos.
No caso das mulheres, no particular, tende-se a pensá-las, sobretudo, como “fêmeas da
espécie”, definindo-se o seu mundo a partir da constituição biológica que lhes permite gestar, dar à luz e
amamentar os filhos. Aloca-se, assim, às mulheres a responsabilidade do cuidado e educação das crianças,
como extensão da sua condição biológica. Ademais, conforme observa Ivania Ayales:

[...] essa maternidade biológica foi acompanhada de uma maternidade social, que se
estendeu a atividades como lavar a roupa, cozinhar, varrer, costurar e toda uma série de
trabalhos quase inumeráveis, que comprometem grande parte do tempo das mulheres.
(AYALES, 1993, p. 13).

Mais importante, porém, é o fato de que, pensadas como biológicas e, portanto, como
“naturais”, as diferenças entre os sexos têm servido de pretexto para se edificar e legitimar relações
desiguais entre homens e mulheres, historicamente caracterizadas por uma situação de subordinação das
mulheres.
Por certo, isso não acontece só na nossa sociedade. Muito ao contrário, quando se compara
as noções sobre homens e mulheres em uma perspectiva transcultural, observa-se que a tendência a tomar
as diferenças estéticas entre os sexos e suas diferentes funções na reprodução da espécie como base para a
diferenciação social de papéis se manifesta como fenômeno de âmbito universal. Invariavelmente, em
todas as sociedades sobre as quais se tem notícia, “masculino” e “feminino” figuram como categorias e/ou
domínios opostos, a partir dos quais se organiza e legitima uma divisão social/sexual do trabalho.

1
Doutora em Antropologia pela Universidade de Boston. Diretora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher (NEIM) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2
Mestra e Doutora em Ciências Sociais pela UFBA. Pesquisadora Associada do NEIM/UFBA. Professora do Curso de
Serviço Social da Universidade Católica do Salvador (UCSal).

33
Entretanto, como lembra Saffiotti (1994a, p. 271), “todas as atividades humanas são
mediadas pela cultura”, assim, em que pese tal constante, verifica-se que as elaborações culturais em torno
dessas categorias e domínios e a forma pela qual são apropriadas na prática social, divergem
consideravelmente, muitas vezes, de forma radical. Não raro, aliás, atividades, comportamentos ou traços
que, em uma determinada sociedade ou época, são considerados “naturalmente” masculinos, podem ser,
justamente, aqueles que, em outras, se configura como de domínio feminino por excelência. Isso nos leva
a concluir, portanto, e com bastante segurança, que as identidades sexuais não são inerentes à biologia dos
sexos e sim construções sociais, histórica e culturalmente específicas, logo, passíveis de transformação.
Sem dúvida, a identificação desse fenômeno da cultura não se descortina como algo
inteiramente novo para áreas do conhecimento como a Antropologia. Margaret Mead (1988), em sua
conhecida e pioneira obra, Sexo e temperamento, publicada pela primeira vez na década de 1930, trouxe à
tona a falácia do determinismo biológico em que se apoiam as noções do senso comum sobre homens e
mulheres3. Ao ressaltar o papel determinante dos processos de socialização e internalização da cultura na
formação do indivíduo, vai mostrar como cada sociedade molda meninos e meninas de forma que eles(as)
adquiram os traços de personalidade (“temperamento”) e comportamentos culturalmente definidos em
suas sociedades, assumindo, portanto, papéis e tarefas previamente alocados na divisão sexual do
trabalho.

3
Essa obra é o resultado de dois anos de trabalho de campo, na Nova Guiné, onde Mead estudou três povos vizinhos –
Tchambuli, Arapesh e Mundugumor – e, através de um trabalho comparativo, mostrou a importância da cultura no
processo de modelagem dos indivíduos, padronizando tipos de comportamento/temperamento variáveis entre essas
sociedades. O mais interessante é que ela mostra, ainda na primeira metade do século XX, que o que consideramos em
nossa sociedade como “naturalmente” feminino ou masculino, difere nas sociedades estudadas, rompendo com
qualquer determinação de ordem sexual, portanto, biológica.

34
Todavia, até décadas mais recentes, o fenômeno da construção social das identidades e
papéis sexuais (ver quadros conceituais) identificado por Mead (1988) foi pouco problematizado ou
merecedor de maiores elaborações teóricas. Isso significou que, na prática, apesar da sua ênfase na
relevância do estudo da cultura, o discurso antropológico também não escapou de reproduzir uma visão
naturalizante da divisão sexual do trabalho e dos papéis sexuais, do feminino em particular, não
rompendo, assim, de todo, com as noções do “senso comum” sobre masculino e feminino. Felizmente,
essa trilha aberta pela antropologia de Mead será retomada e ratificada pela filósofa Simone de Beauvoir
(1980), ao afirmar, em O segundo sexo, categoricamente, que “não se nasce, torna-se mulher”4. Com essa
afirmação, Beauvoir lança as bases para a posterior formulação de uma postura que vai defender a
construção social das relações entre (e intra) sexos, isto é, das relações de gênero, mostrando, assim, que
elas vão muito além da regulação da relação homem-mulher, também entre as mulheres e entre os
homens.

IDENTIDADE
Esse conceito é uma construção que diz respeito à forma como apreendemos e
interpretamos a realidade e, ao mesmo tempo, compreendemos a nossa posição no
mundo. Nesse processo, é fundamental a percepção de um sentido de ‘nós’ (igualdade)
e de ‘outro’ (alteridade).

PAPEL SEXUAL
Este é um conceito que é geralmente utilizado para referir comportamentos e atitudes
de uma pessoa, de acordo com o seu sexo. Portanto, expressa a obediência a normas,
expectativas e deveres socialmente estabelecidos, a depender do pertencimento do
indivíduo a um determinado sexo. A crítica feminista a esse tipo de visão é que ela está
assentada em uma perspectiva androcêntrica que naturaliza a divisão sexual do
trabalho e as relações hierárquicas que vêm determinando a subordinação da mulher.

Mas, disse bem Bachelard quando afirmou: “o objeto de uma ciência não é dado de
imediato e não pré-existe ao processo de sua construção” (apud LECOURT, 1975, p. 7). E, de fato, ainda
que o fenômeno da construção social das identidades sexuais tivesse sido identificado, a sua delimitação
enquanto objeto de estudo e, em especial, o aprofundamento das reflexões teóricas de como se processa e
se manifesta esse fenômeno não se dariam senão algumas décadas mais tarde. Somente a partir do final

4
É inegável a dívida do feminismo com Beauvoir, diante da tarefa de construção do campo de estudos sobre a mulher e
as relações de gênero. O segundo sexo, publicado na França em 1949, depois traduzido para mais de trinta idiomas, é
uma das mais importantes obras já produzidas sobre a chamada “questão da mulher”. Escrito por uma filósofa
existencialista, critica as abordagens do determinismo biológico, do materialismo histórico e da psicanálise, por serem
reducionistas da complexa teia que envolve o processo de construção social, portanto, historicamente determinado, de
um sujeito “feminino” e subordinado – ao qual é negado o direito de construir seus próprios projetos (transcendência) –,
a que chamará de “o outro”, isto é, “o segundo sexo” e que lhe inspira a dar título a essa obra magistral.

35
dos anos 60 e, mais precisamente, no bojo da retomada do projeto feminista, autoras inglesas e
americanas, para melhor identificar e analisar esse fenômeno e, ao mesmo tempo, enfatizar o caráter
social das relações entre os sexos, passaram a empregar o termo “gênero”, em oposição a “sexo”, tal como
se expressa na definição de Ann Oakley:

SEXO
Sexo é um termo que se refere às diferenças entre machos e fêmeas: as diferenças
visíveis da genitália e as respectivas funções procriativas. Gênero, porém, é uma
questão de cultura: diz respeito à classificação social em masculino e feminino.
(OAKLEY, 1972, p. 86).

GÊNERO x SEXO

Gênero não é sinônimo de sexo, pois, quando falamos em sexo, estamos nos referindo
aos aspectos físicos/fisiológicos que distinguem os machos das fêmeas da espécie
humana. Por outro lado, quando nos referimos a gênero, estamos refletindo acerca de
processos de construção cultural de relações que não decorrem de características
sexuais diferenciadas entre homens e mulheres, mas de processos construtores dessas
diferenças, produzindo, nesse movimento, desigualdades e hierarquias.

Note-se que o termo gênero foi tomado emprestado da Linguística, mais precisamente da
Gramática, que o aplica às desinências diferenciadas existentes em determinados idiomas para designar
não apenas o que se refere a indivíduos de sexos diferentes, mas, também, a classes de termos, palavras ou
“coisas” sexuadas5. Na Gramática, por definição, gênero se refere à “propriedade que têm certas classes
de palavras de se flexionarem (por via de regra), para indicar o sexo (ou, de modo geral, ausência de
sexo)” (FERREIRA, 1975).
No português, por exemplo, os substantivos são geralmente “sexualizados”, sendo ou do
gênero masculino ou do feminino, não existindo o neutro. Já no inglês, os substantivos comuns são
sempre neutros, a não ser em casos específicos, ou seja, quando se referem a animais e, portanto, a seres
que são, de fato, sexualizados. O que importa observar é que, tanto no português como no inglês ou em
qualquer outro idioma, a designação do gênero das palavras é algo essencialmente arbitrário. Trata-se de
uma convenção social que se fundamenta na tradição linguística, logo, histórica-cultural de uma
determinada comunidade idiomática.
Diferenciando “sexo” de “gênero”, as pensadoras feministas pretendem, portanto, ressaltar o
caráter arbitrário de “masculino” e “feminino”, razão pela qual “gênero” tem sido objeto de contínuas

5
A desinência é o elemento da língua portuguesa que permite a diferenciação, no caso dos nomes, além de gênero,
também de número e, no caso dos verbos, além de número, também de pessoa, tempo e modo.

36
teorizações, tornando-se, dessa maneira, conceito-chave do campo de estudos sobre as relações entre
homens e mulheres e a condição feminina.
Originalmente, embora constatando que as “[...] noções culturais sobre as mulheres
frequentemente gravitam em torno de características biológicas [...]” (ROSALDO, 1974, p. 31), tais como
a menstruação, gravidez e parto, as discussões enfatizaram a diversidade cultural, definindo sexo e gênero
como fenômenos essencialmente distintos. De um lado, teríamos “sexo”, um fenômeno natural resultante
da evolução da espécie, que se manifesta, de uma forma ou de outra, entre todos os organismos do planeta
que se propagam através da reprodução sexuada e, de outro lado, o fenômeno cultural do gênero,
manifestado nas diferentes maneiras que as sociedades humanas têm elaborado em torno dessas diferenças
e delas têm se apropriado, historicamente, distinguindo, definindo e delimitando o masculino e o
feminino.
Embora hoje se reconheça que tal conceituação já é efetivamente uma construção de
gênero6, as definições de sexo e gênero, nos termos originais, têm permitido que entendamos não apenas
“masculino” e “feminino”, mas, também, “homem” e “mulher” como categorias socialmente construídas,
possibilitando o rompimento com o essencialismo implícito na questão das origens da subordinação da
mulher, questão motivadora das investigações e elaborações que fundamentaram a própria construção do
conceito de gênero. (SARDENBERG, 1994, p. 3-4).
Ao mesmo tempo, a insistência nessa distinção se tornou fundamental como contra-
argumento ao determinismo biológico, vez que possibilitou a desnaturalização tanto das identidades
sexuais como da divisão sexual do trabalho e das assimetrias/hierarquias sociais com base no sexo,
demonstrando a sua historicidade e, assim, a possibilidade da sua transformação e transcendência. Essa
perspectiva tem emprestado ao construto gênero, para além dos avanços teórico-metodológicos, uma
conotação prático-política fundamental: a de se prestar como instrumento científico de legitimação das
lutas feministas, tanto na sociedade como um todo quanto no campo mais restrito da produção de
conhecimentos sobre essa realidade. (SCOTT, 1988).
Observe-se, porém, que o conceito de gênero não substitui a categoria social “mulher”,
tampouco torna irrelevantes pesquisas e reflexões sobre “mulheres” enquanto um grupo social
discriminado. Muito ao contrário, permite que se pense essa categoria como uma construção social
historicamente específica e em como tal construção legitima a situação “real” de discriminação,
exploração e subordinação das mulheres. Ao mesmo tempo, a categoria social/relacional “gênero” não
nega a diversidade da condição social e da experiência femininas, em sociedades distintas no tempo e
espaço, e, ressalte-se, inclusive, no seu interior. Como categoria analítica, gênero possibilita pensar em

6
Ver, por exemplo: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.

37
como os recortes de classe, raça/etnia e idade/geração permeiam as vivências de “gênero”, de sorte a
construírem experiências femininas e masculinas bastante distintas. (SARDENBERG, 1992).
Nessa perspectiva, portanto, é possível pensar as relações entre os sexos (entre mulheres e
homens, bem como entre mulheres e entre homens), ou seja, as relações de gênero, também como
relações sociais e, assim, como relações determinadas não “naturalmente” pela biologia dos sexos, mas
sim por forças sociais, econômicas, políticas, culturais e ideológicas historicamente específicas, o que
implica dizer que a forma que as relações de gênero

[...] tomam em uma dada situação histórica é específica àquela situação e tem que ser
construída indutivamente; ela não pode ser assumida em termos de outras relações
sociais, tampouco da forma em que manifestam em outras sociedades. (PEARSON;
WHITEHEAD; YOUNG, 1981, p. X).

Isso ocorre porque as relações de gênero, em última instância, são relações de poder e, como
tal, não são fixas e sim, fluidas e mutáveis. Elas podem variar de sociedade para sociedade, no tempo e no
espaço, ou mesmo em uma dada sociedade, a depender dos espaços em que homens e mulheres
interagem. (SARDENBERG, 1992). Destarte, as mulheres não são necessariamente desprovidas de poder
em relação aos homens, porém, nem sempre, esse “poder feminino” é legitimado.
Com efeito, historicamente, o “feminino” tem sido construído como subordinado ao
“masculino”, sendo que, no Brasil, como, de resto, na América Latina (ou mesmo em nível mundial),
dominam as relações de gênero patriarcais. Na verdade, na maioria das sociedades contemporâneas, tanto
no nível simbólico quanto no da prática social, o “masculino” se sobrepõe hierarquicamente ao feminino
resultando em uma situação “real” de prestígio, privilégios e poder maior para os homens. Um exemplo
evidente dessa assimetria está expresso na violência doméstica que, no Brasil, tem um vetor recorrente:
ela se manifesta na violência masculina sobre a mulher e é um claro traço constitutivo da organização
social de gênero no país. (SAFFIOTI, 1994b).
Daí porque é extremamente relevante e estratégico reconhecer a necessidade da construção e
implementação de projetos e programas de ação que, partindo de uma perspectiva de gênero, logo, do
reconhecimento da especificidade da condição feminina, se voltem para a promoção social e econômica
da mulher, na busca da equidade – o que, nesse caso, pode ser considerado como uma “discriminação
positiva” já que, ao tratar de forma “desigual” os diferentes, cria condições para a superação progressiva
das assimetrias.
Diante do exposto acima, importa ressaltar que o construto gênero diz respeito a um
princípio universal, organizador tanto do mundo exterior (o “social”, econômico, político) quanto interior,
ou seja, que diz respeito à construção das subjetividades e das identidades. De fato, gênero organiza e
legitima não apenas a divisão sexual do trabalho e a construção de papéis sociais correspondentes, como,
também, a divisão sexual de direitos e responsabilidades, o acesso e controle sexualmente diferenciado a
oportunidades de trabalho, bem como a instrumentos e meios de produção, recursos e fontes de renda e

38
crédito, capital, conhecimento, educação, instâncias decisórias etc. Mais especificamente, por força das
ideologias de gênero e da consequente divisão sexual do trabalho, homens e mulheres se engajam em
diferentes tipos de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais, tendo “fontes diferentes de renda e
diferentes formas de acesso e controle dos recursos (materiais: terra, capital, ferramentas, tempo; e não-
materiais: poder, conhecimento, educação)”7.

Aspectos Práticos do Enfoque de Gênero

A categoria gênero vista como um dos principais elementos articuladores das relações
sociais vai possibilitar a compreensão acerca de como os sujeitos sociais estão sendo constituídos
cotidianamente por um conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos
normativos, institucionalidades e subjetividades sexuadas (SCOTT, 1988) que atribuem a homens e
mulheres um lugar diferenciado no mundo, sendo essa diferença atravessada por relações de poder que
conferem ao homem, historicamente, uma posição dominante.
Logicamente, discutir relações de gênero requer cuidado, para que não se caia na armadilha
das fórmulas simplificadoras que convertem o “masculino” e o “feminino” em campos estanques e
homogêneos, como se homens e mulheres não apresentassem convergências nas suas experiências e
representações ou como se entre homens e homens e mulheres e mulheres não existissem também
divergências (SORJ, 1993), afinal não podemos esquecer das chamadas identidades sobrenomeadas
(“mulher negra”, “mulher trabalhadora rural” etc.). Assim, refletir sobre relações de gênero implica
realizar uma releitura de todo o nosso entorno, o que significa, por exemplo, repensar a cultura e a
linguagem, os meios de comunicação social, as instituições, como a família, o sistema educacional ou
mesmo a religião, e os processos políticos, como os movimentos sociais ou os partidos.
A adoção de um recorte transversal em torno das relações de gênero funciona como uma
lente que possibilita a visibilização de uma série de aspectos que a sociedade vem naturalizando e que
vem assegurando a perpetuação de relações assimétricas entre homens e mulheres. A partir dos “filtros de
gênero”, torna-se perceptível que as mulheres não dispõem das mesmas condições que os homens para
enfrentar os problemas da vida cotidiana, especialmente aquelas pertencentes ao contingente das classes
trabalhadoras e isso porque, conforme apontado anteriormente, ainda há uma grande concentração de
poder e de recursos produtivos nas mãos dos homens (meios de produção, como terra e capital, por
exemplo), bem como, também, em termos do acesso diferenciado que esses têm ao conhecimento
(domínio da tecnologia).

7
Elza Suely Anderson em Tecnologia, Conceitos e Definições, panfleto distribuído durante o Seminário “Gênero e
Energia Renovável”, IDER/WINROCK, Praia da Caponga, CE, 27-30 de maio de 1997.

39
Nesse sentido, partimos do referencial básico de que, por conta dessas assimetrias, mulheres
e homens vivem e pensam o mundo a partir de diferentes “lugares”, tendo, dessa forma, necessidades
diferenciadas. O desafio, portanto, é a busca da compreensão dos vários espaços e relações em que o
gênero se constrói como o contexto educacional, o mercado de trabalho, a família, as instituições, as
políticas públicas, os meios de comunicação etc., que influenciam diretamente a construção das
subjetividades de mulheres e homens.
Portanto, quando falamos de “enfoque de gênero”, nos referimos ao fato (e às suas
consequências) de que o masculino e o feminino e, assim, o que é “ser homem” ou “ser mulher” se
constrói socialmente através de valores e símbolos que são por nós assimilados e interiorizados desde a
mais tenra infância, em um dado contexto histórico, social e cultural. Vários estudos têm demonstrado
que, na sociedade brasileira, como na América Latina, de um modo geral, masculino e feminino são, de
fato, construídos simbolicamente como polos opostos, mas não necessariamente simétricos. Conforme
observa Ayales:

Se tomarmos em conjunto as características que socialmente são atribuídas aos homens


em comparação às mulheres, pode-se comprovar que cada uma tem sua contrapartida
no outro pólo. Homens e mulheres em nossa sociedade se complementam a partir de
relações assimétricas e desiguais. Por exemplo, mantém-se a noção de que para umas
pessoas serem fortes as outras devem ser fracas, para que uns dominem, outros devem
ser dominados. Desta maneira, instauram-se relações de poder com base na assimetria e
na negação de uns em termos do outro. (1996, p. 21).

Podemos, por exemplo, delinear um quadro dessas características:

Mulheres Homens
Delicadas Bruscos/Rudes
Frágeis Fortes
Dependentes Independentes
Submissas/Sem Iniciativa Tomam iniciativas e decisões
Passivas-receptivas Dominantes
Incapazes Inteligentes
Fiéis Infiéis
Temperamentais Equilibrados
Obedientes Autoritários
Necessitadas de Proteção Provedores/protetores
Conformistas Visionários

Idealizados como diferentes, homens e mulheres são modelados para ser, de fato, diferentes
e isso ocorre desde a escolha do nome e do enxoval para os bebês – azul para os meninos, rosa para as
meninas –, reforçando nas crianças os comportamentos, atitudes e modos de ser e entender o mundo que
mais se identificam com o que é culturalmente tido como mais apropriado ao seu sexo. Assim, espera-se

40
que as meninas sejam dóceis, vaidosas, que estejam sempre “limpinhas e bem vestidinhas”, que não sejam
violentas, não façam uso de palavras de baixo calão, enquanto o comportamento inverso é o esperado dos
meninos.
Vale observar que as brincadeiras infantis ou mesmo os brinquedos oferecidos às crianças
trazem imbricados as ideologias de gênero e os papéis sexuais atribuídos a homens e mulheres. Meninas
brincam de “casinha” com bonecas, panelinhas, fogõezinhos e outras miniaturas de objetos utilizados nas
“tarefas domésticas”, sendo assim modeladas e treinadas para a maternagem e para assumirem, na vida
adulta, o papel de boas mães e donas-de-casa. Pouco se lhes oferece em termos de brincadeiras ou
brinquedos que incentivem o desenvolvimento das capacidades intelectuais, físicas e de liderança, ou que
as prepare para uma vida profissional. São treinadas, desde cedo, para a “domesticidade” ou, então, para
ocupações majoritária e tradicionalmente tidas como “femininas”  professoras primárias, enfermeiras,
secretárias, assistentes sociais. Para os meninos, em contrapartida, tudo é feito e proporcionado para que
se desenvolvam, física e intelectualmente, se tornem homens fortes, tenham uma profissão e capacidade
de liderança e assumam posições no mundo da produção e no espaço público.

A educação formal nas escolas contribui para essa diferenciação sexual de papéis, a começar
pelo fato de que a esmagadora maioria dos professores primários é constituída por mulheres, chamadas
familiarmente de “tias”, o que reflete ser essa ocupação, feminina, uma extensão das atividades
domésticas. Ademais, os livros didáticos reforçam os estereótipos e as próprias professoras punem muito
mais as meninas que não se comportam, dando maior latitude de expressão para os meninos.
Também a mídia, particularmente a televisiva, através de comerciais e novelas, ou mesmo a
indústria cultural como um todo, contribui para a disseminação e o reforço dos estereótipos de gênero, ao
tempo em que também reflete o que ocorre na realidade observada. Sem dúvida, pode-se pensar em uma
centena de provérbios, mitos, lendas, “piadinhas”, contos infantis, poesias e inúmeras canções que

41
constroem e, simultaneamente, refletem as ideologias de gênero, criando um mundo sexualmente
dividido.
É claro que tudo isso é interiorizado por meninos e meninas, contribuindo para que quando
cheguem à idade adulta, homens e mulheres se vejam como essencialmente diferentes, pensem e se
comportem, de fato, de forma diferente, o que reforça as noções de que as diferenças observadas são
“naturais” aos sexos. Além disso, uma vez socializados(as), modelados(as) e treinados(as) para
desempenharem tarefas diferentes e assumirem papéis diferenciados no trabalho, na família e na
sociedade como um todo, não é de surpreender que isto, de fato, ocorra. De outra feita, como explicar por
que os técnicos agrícolas e engenheiros sejam geralmente homens e as professoras e assistentes sociais,
mulheres?

Sem dúvida, nesse processo de diferenciação social entre os sexos, o modelo dominante de
família tem um papel preponderante. De fato, a moral familiar burguesa tem sustentado os princípios
básicos do modelo de família patriarcal, propondo que ao homem/marido/pai caiba o papel de chefe da
família e do grupo doméstico destinando-lhe a responsabilidade de provedor. A mulher/esposa/mãe e
os(as) filhos(as) comporiam a parte dependente, compartilhando os frutos do trabalho do “chefe”, a
“cabeça do casal”. Nessa qualidade, cabe ao homem deter a autoridade sobre o grupo: esposas e filhos são
subordinados à vontade do pai-marido e as filhas mulheres à de seus irmãos. (SARDENBERG, 1997).
Esse modelo ou ideal de família tem sido interiorizado, de tal forma, nas sociedades
ocidentais que a família assim constituída tende a ser vista como algo “natural”. Segundo nos aponta
Eunice Durham, isso se dá, sobretudo, “pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, à regulamentação social de atividades de base nitidamente biológica: o sexo e a
reprodução”. Mas esse processo de naturalização da família se estende, também, à organização
doméstico-familiar, sobretudo à divisão sexual do trabalho e aos diferentes papéis que cabem ao homem e

42
à mulher na família. Em suas palavras: “A relação dessa divisão sexual do trabalho com o papel da mulher
no processo reprodutivo permite que se vejam todos os papéis femininos como derivados de funções
biológicas” (1983, p. 15).
Não resta dúvida de que, nas últimas décadas, esse modelo ou ideal de família vem sendo
bastante contestado, inclusive porque as mulheres têm saído da sua domesticidade, tornando-se presentes
no mundo da produção. A bem da verdade, as mulheres brasileiras vêm conquistando novos espaços de
atuação, avançando, também, na luta pelo direito à cidadania plena. No entanto, ainda são muito poucas as
mulheres que atuam nesses “novos” espaços e que desfrutam das conquistas obtidas ou mesmo que delas
têm conhecimento. Quando atentamos para as condições de vida e de trabalho da maioria da população e,
em particular, das mulheres das camadas mais pobres, constatamos que – longe daquela sociedade mais
justa, mais igualitária que preconiza a Nova Constituição Federal (CF/88) – as desigualdades sociais e,
dentre elas, as desigualdades de gênero, não só se mantém ainda bem vivas em nosso meio, como
permanecem profundamente arraigadas na estrutura socioeconômica hierarquizante, concentradora de
renda e de poder vigente no país8.
Basta observar, por exemplo, que, apesar das mulheres representarem hoje cerca de 45% da
população economicamente ativa (PEA) do país, o que corresponde a um índice bastante significativo em
relação aos países mais desenvolvidos e a um acréscimo surpreendente da participação da mulher no
mercado de trabalho em relação a décadas anteriores, 70% da força de trabalho feminina ainda se
concentra, paradoxalmente, como no passado, e de forma marcante,

em um pequeno número de ‘trabalhos femininos’: empregadas domésticas, lavradoras e


operárias para as menos instruídas, secretárias e balconistas para as que possuem nível
médio de instrução, professoras para as que alcançam escolaridade mais elevada, ou
mesmo média. (BRUSCHINI, 1985, p. 39).

Além disso, mesmo que as mulheres estejam cada vez mais qualificadas, em decorrência da
ampliação do processo de educação formal entre amplos grupos populacionais, ainda ganham menos que
os homens.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2007), 60% das mulheres
ocupadas no país, hoje, possuem, pelo menos, o ensino médio e, no entanto, ganham apenas 71,3% do
rendimento auferido pelos homens e, mais, paradoxalmente, à medida que essa escolarização avança para
o curso de nível superior, a diferença salarial em relação aos homens se torna ainda maior, fazendo com
que percebam apenas 60% dos rendimentos masculinos, ainda que ambos trabalhem sobre as mesmas
condições. Associado a esse fator, as mulheres terminam, também, por ser maioria entre aqueles que não
possuem carteira assinada e não contribuem para a previdência social, sem mencionar o fato de que o
trabalho feminino tende a ser sempre subestimado, ou mesmo “mascarado”, a começar pelo trabalho da

8
Ver, a esse respeito, SARDENBERG, Cecilia. Análise Crítica da Metodologia de Grupos Solidários: relatório de
consultoria elaborado para o UNICEF/CNDM. Salvador, 1989. mimeo.

43
dona de casa (que inclui uma diversidade de tarefas), que só é considerado “trabalho” se remunerado
(quando feito pela empregada doméstica) e, ainda assim, pouco valorizado, só sendo apreciado mesmo,
justamente quando não é feito.
Estudos de famílias de trabalhadores têm revelado uma importante faceta do trabalho
feminino: sua invisibilidade, principalmente, quando realizado em casa e no mercado informal. Vale
ressaltar que a renda assim auferida é de grande importância para a economia doméstica, tornando-se
efetivamente fundamental, à medida que o processo de pauperização das classes trabalhadoras brasileiras
se acentua. Esse processo tem obrigado muitas famílias a se valerem de estratégias diversas para garantir
sua subsistência e reprodução, sendo a incorporação do trabalho feminino na esfera produtiva, uma das
estratégias principais. E, no caso das famílias chefiadas por mulheres – que chegam a representar mais de
um quarto do total das unidades domésticas em muitas cidades do Nordeste – verifica-se a incorporação
do trabalho infantil na produção, uma vez que todos os membros do grupo doméstico são geralmente
obrigados a contribuir para a renda familiar, o que não impede que essas famílias se mantenham, na sua
maioria, entre as mais carentes, muitas sobrevivendo em situação de miséria.
Mas, apesar da sua comprovada importância para a sobrevivência da família, principalmente
em momentos de crise, a inserção da mulher no mercado de trabalho desencadeia outra crise no âmbito
familiar, pois entra em choque com as atribuições “femininas” definidas por uma desigual divisão sexual
do trabalho. Assim, representa, quase sempre, um acúmulo ou sobrecarga para a mulher, pois se sobrepõe
às tarefas domésticas, dando lugar ao fenômeno da “dupla-jornada” de trabalho, pois, embora as mulheres
atualmente participem em grande escala no mercado de trabalho, os padrões tradicionais da divisão sexual
do trabalho no âmbito doméstico-familiar têm se mantido. No que tange ao campesinato brasileiro, os
padrões tradicionais da divisão do poder decisório ainda permanecem concentrando no homem a
autoridade legitimada, o que não implica em dizer que as mulheres não usufruam de autonomia,
exercendo também poder na esfera doméstica e na família, um poder, porém, nem sempre reconhecido.
Outro aspecto bastante ilustrativo dessas desigualdades se refere à persistência da violência
de gênero, mais precisamente da violência contra a mulher, que ainda é uma das formas de violência mais
aceitas como “normais” e de maior presença no cotidiano de nossa sociedade.

Os dados das pesquisas sobre a violência de gênero no Brasil mostram a gravidade da


situação: a) entre todos os casos de violência ocorridos no final da década de 80, mais
da metade tinha mulheres como vítimas; b) enquanto o homem é vítima de violência na
rua, a maioria das mulheres agredidas sofre violência dentro da própria casa; c) grande
parte dessa violência sofrida pela mulher é provocada por parentes e cônjuge.
(MACEDO, 2002, p. 67-68).

No Brasil, calculava-se, ainda no início da década de 90, que a cada quatro minutos era
registrada na polícia uma queixa de agressão física contra uma mulher. Estudiosos do tema, como Saffioti
(1994b), comentam que esse número é alarmante, mas ainda não espelha a realidade, já que muitas

44
mulheres vítimas de violência não prestam queixa na polícia por várias razões  medo, dependência
financeira ou emocional, existência de filhos pequenos, vergonha, esperança de que o marido mude de
atitude etc. – o que leva à conclusão de que o número de mulheres agredidas é bem maior do que o
apresentado. Outro dado é que muitas das que chegam a registrar queixa, pelos motivos apontados e até
sob a ameaça do marido, voltam à delegacia de polícia para retirá-la.
É muito importante a busca de informações que ajudem a desfazer alguns mitos ligados a
essa problemática. O primeiro deles é a ideia de que a violência doméstica é um fenômeno ligado à
pobreza; na verdade, ela ocorre em todas as classes sociais, mas, entre as classes médias e alta, muitas
vezes, ela não chega a público por razões como o medo de um escândalo que venha a “manchar o nome
da família”, buscando-se alternativas como terapeutas, advogados, entre outros profissionais. Outro
equívoco é a associação direta da violência com a crise econômica, o desemprego e o alcoolismo, fatores
que podem ser o estopim de uma briga, pelo fato de aumentarem o estresse e diminuírem o autocontrole,
mas não podem ser considerados como causas da violência.
Mas, um aspecto que dá o que pensar é o fato de que muitos homens que agridem suas
esposas são descritos por essas mulheres como “pessoa amigável”, “homem trabalhador”, “bom pai” etc.,
apesar de cometerem esse tipo de violência, o que nos leva a perguntar: Por que um homem considerado
bom pai, trabalhador e pessoa amigável é o mesmo que espanca e, até mesmo, mata a sua esposa? O que
faz um homem – aparentemente incapaz de cometer violências – ferir, mutilar e até tirar a vida de sua
companheira, muitas vezes por um motivo fútil como a queima da comida ou um atraso de dez minutos na
volta do supermercado?
Temos que buscar compreender esse fenômeno no campo das discussões das relações de
gênero, tentando articulá-las às reflexões realizadas até aqui. A violência contra as mulheres está
diretamente relacionada às desigualdades existentes entre homens e mulheres e às ideologias de gênero
expressas nos pensamentos e nas práticas machistas, na educação diferenciada, na construção de uma
noção assimétrica em relação ao valor e aos direitos de homens e mulheres, na noção equivocada da
mulher enquanto objeto ou propriedade de seu parceiro. Quanto a esse último ponto, as estatísticas
apontam que 70% dos homicídios de mulheres no Brasil são cometidos por ex-maridos e ex-namorados,
na maioria das vezes, por não aceitarem o desejo das mulheres de ruptura do relacionamento amoroso
(SAFFIOTI, 1994b).
Logicamente, precisamos entender toda essa discussão de forma bastante ampla para não se
criar uma noção equivocada dos homens como apenas “agressores” e as mulheres como “pobres vítimas”.
A violência de gênero é uma realidade bastante complexa e envolve uma série de questões que têm suas
raízes na sociedade, na omissão do Estado, sem falar em aspectos ligados às relações interpessoais e
trocas afetivas entre os seres humanos. Dessa forma, por ocorrer, principalmente, na vida privada
(particularmente, na família), a violência de gênero esteve, por muito tempo, encoberta por uma certa

45
invisibilidade social. A sociedade, o Estado e seus representantes tardaram em intervir nesse tipo de
violência e até hoje ainda resistem.
Mesmo na atualidade, mantém-se com bastante força o famoso ditado “em briga de marido e
mulher ninguém mete a colher”, o que remete à permanência de uma ideia de privacidade que deve ser
respeitada e preservada em qualquer circunstância. Essa noção precisa ser superada e a própria
Constituição Brasileira é bastante clara a esse respeito quando, no capítulo VII (artigo 226, parágrafo 8º)
referente à família, diz que a violência no interior da família deve ser coibida e que é obrigação do Estado
a sua proteção.
A sociedade como um todo e, em especial, as instâncias mais diretamente envolvidas na
prevenção e punição da violência precisam lançar um novo olhar para essa forma particular de violação
dos direitos humanos. Os caminhos para a desnaturalização da violência contra a mulher passam pela
retirada dessa problemática da privacidade do lar e pela criação de espaços e formas de enfrentamento que
vão desde a prontidão da ação policial de socorro à vítima de violência e o aprisionamento do agressor, ao
atendimento digno à mulher que se dirige à Delegacia Especial para registrar uma queixa, passando,
ainda, por maior eficiência da Justiça na punição dos agressores até a criação de espaços de apoio para as
mulheres agredidas e sob ameaça de morte.
Para concluir, importa ressaltar que trabalhar com um enfoque de gênero implica em
reconhecer, desvendar e levar em consideração esses fatos, procurando desenvolver estratégias que
contribuam para o desmonte dessas relações desiguais entre os seres humanos. No particular, é preciso ter
claro que os condicionamentos e desigualdades de gênero resultam em condições de vida e trabalho
bastante distintas para homens e mulheres, que se estabelecem e se cristalizam a partir das assimetrias que
colocam as mulheres em uma posição social subordinada. Daí porque, homens e mulheres, mesmo
situados em condições semelhantes de pobreza ou como membros de um mesmo grupo doméstico-
familiar, vivenciam essa situação de maneira distinta, tendo, portanto, diferentes necessidades de gênero
que devem, logicamente, ser atendidas de forma diferenciada, através de políticas de construção da
equidade.
Torna-se, assim, fundamental conceber estratégias de gênero distintas para atender a essas
necessidades, pois, ao acreditar na equidade de gênero e envidar esforços para a transformação dessas
relações se constrói uma das mais importantes vias para a reafirmação de valores e princípios como a
dignidade humana, a justiça, a igualdade com respeito à diferença, a solidariedade, a parceria/cooperação
e a participação efetiva.
Logicamente, “nem tudo é uma questão de gênero”, mas, por outro lado, todas as mudanças
nas relações sociais estão, de alguma forma, ligadas a essa dimensão, fazendo com que gênero não seja a
mais importante, mas seja uma instância imprescindível para a construção da utopia da sociedade mais
justa com a qual sonhamos e que acreditamos colocar em movimento com a nossa prática cotidiana.

46
Referências

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48
A

GENERO:
20(2):71-99
jul./dez. 1995

UMA CATEGORIA UTIL DE , ,

ANALISE HISTORICA*
Joan Scott

"Gênero (gender), s., apenas um termo gramatical. Seu uso para falar de
pessoas ou criaturas do gênero masculino ou feminino, com o significado de
sexo masculino ou feminino, constitui uma brincadeira (permissível ou não,
dependendo do contexto) ou um equívoco " (Fowler, Dictionnary of Modem
English Usage, Oxford 1940).

Aquelas pessoas que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam


por uma causa perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas
pretendem significar, têm uma história. Nem os professores de Oxford nem a
Academia francesa têm sido plenamente capazes de represar, de aprisionar e
fixar o significado, de uma forma que seja independente do jogo da invenção e
da imaginação humanas. Mary Wortley Montagu juntou mordacidade à sua
irônica denúncia do "belo sexo" ("meu único consolo de pertencer a este gênero

* O presente artigo constitui uma versão consideravelmente revisada (com consulta ao


original em inglês) daquele publicado em Educação & Realidade, v.lS, n .2, jul./dez.
1990, traduzido da versão em francês.
tem sido a certeza de nunca ter sido casada com uma delas"), ao fazer um uso
deliberadamente errôneo da referência gramatical.' Através dos séculos, as
pessoas utilizaram de modo figurado os termos gramaticais para evocar os traços
de caráter ou os traços sexuais. Por exemplo, a utilização proposta pelo Dicti­
onnaire de la langue française de 1876, é: "On ne sait de quel genre il est, s'il
est mâle ou femelle, se dit d'un homme tres caché, dont on ne connait pas les
sentiments." (Não se sabe de que gênero ele é, se ele é macho ou fêmea, diz-se
de um homem muito dissimulado, do qual não se conhecem os sentimentos)2 E
Gladstone fazia esta distinção em 1878: "Atenas não tinha nada do sexo além
do gênero, nada da mulher além da forma".3 Mais recentemente - demasiado
recente para que pudesse entrar nos dicionários ou na Encyclopedia of Social
Sciences - as feministas começaram a utilizar a palavra "gênero" mais seria­
mente, num sentido mais literal, como uma maneira de se referir à organização
social da relação entre os sexos. A referência à gramática é ao mesmo tempo
explícita e plena de possibilidades não-examinadas.
Explícita, porque o uso gramatical envolve regras formais que resultam da
atribuição do masculino ou do feminino; plena de possibilidades não-examinadas,
porque em muitas línguas indo-européias há uma terceira categoria - o sem
sexo ou o neutro. Na gramática, o gênero é compreendido como uma forma de
classificar fenômenos, um sistema socialmente consensual de distinções e não
uma descrição objetiva de traços inerentes. Além disso, as classificações sugerem
uma relação entre categorias que torna possíveis distinções ou agrupamentos
separados.
Na sua utilização mais recente, o termo "gênero" parece ter feito sua aparição
inicial entre as feministas americanas, que queriam enfatizar o caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava
uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como "sexo"
ou "diferença sexual". O termo "gênero" enfatizava igualmente o aspecto rela­
cional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocu­
padas pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres se centrava nas
mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo "gênero"
para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário analítico. Segundo
esta visão, as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não
se poderia compreender qualqur um dos sexos por meio de um estudo inteira­
mente separado. Assim, Natalie Davis afirmava, em 1975: "Penso que devería­
mos nos interessar pela história tanto dos homens como das mulheres, e que não
deveríamos tratar somente do sexo sujeitado, assim como um historiador de
classe não pode fixar seu olhar apenas sobre os camponeses. Nosso objetivo é
compreender a importância dos sexos, isto é, dos grupos de gênero no passado
histórico. Nosso objetivo é descobrir o leque de papéis e de simbolismos sexuais
nas diferentes sociedades e períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como
eles funcionavam para manter a ordem social ou para mudá-la".4

72
Além disso, o que é talvez mais importante, "gênero" era um tenno proposto
por aquelas que sustentavam que a pesquisa sobre as mulheres transfonnaria
fundamentalmente os paradigmas disciplinares. As pesquisadoras feministas assi­
nalaram desde o início que o estudo das mulheres não acrescentaria somente
novos temas, mas que iria igualmente impor um reexame crítico das premissas
e dos critérios do trabalho científico existente. "Nós estamos aprendendo", es­
creviam três historiadoras feministas "que inscrever as mulheres na história im­
plica necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais
daquilo que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal
e subj etiva quanto as atividades públicas e políticas. Não é demais dizer que
ainda que as tentativas iniciais tenham sido hesistantes, uma tal metodologia
implica não somente uma nova história de mulheres mas também uma nova
história".5 A maneira pela qual esta nova história iria, por sua vez, incluir a
experiência das mulheres e dela dar conta dependia da medida na qual o gênero
podia ser desenvolvido como uma categoria de análise. Aqui as analogias com
a classe e com a raça eram explícitas; de fato as pesquisadoras feministas que
tinham uma visão política mais global, invocavam regularmente as três categorias
como cruciais para a escrita de uma nova história.6 O interesse pelas categorias
de classe, de raça e de gênero assinalava, em primeiro lugar, o envolvimento doi
a pesquisador/a com uma história que incluía as narrativas dos/as oprimidos/as
e uma análise do sentido e da natureza de sua opressão e, em segundo lugar,
uma compreensão de que as desigualdades de poder estão organizadas ao longo
de, no mínimo, três eixos.
A litania "classe, raça e gênero" sugere uma paridade entre os três tennos
mas, na verdade, eles não têm um estatuto eqüivalente. Enquanto a categoria
"classe" tem seu fundamento na elaborada teoria de Marx (e seus desenvolvi­
mentos ulteriores) sobre a detenninação econômica e a mudança histórica, "raça"
e "gênero" não carregam associações semelhantes. É verdade que não existe
nenhuma unanimidade entre aqueles/as que utilizam o conceito de classe. Alguns/
mas pesquisadores/as se servem de noções weberianas, outros utilizam a classe
como um dispositivo heurístico temporário. Entretanto, quando invocamos a
classe, trabalhamos com ou contra uma série de definições que, no caso do
marxismo, implicam uma idéia de causalidade econômica e uma visão do cami­
nho ao longo do qual a história avançou dialeticamente. Não existe nenhuma
clareza ou coerência desse tipo para a categoria de raça ou para a de gênero. No
caso do gênero, seu uso implicou uma ampla gama tanto de posições teóricas
quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos.
Os/as historiadores/as feministas que, como a maioria dos/as historiadores/
as são treinados/as para estarem mais à vontade com a descrição do que com a
teoria, têm, entretanto, procurado, cada vez mais, encontrar fonnulações teóricas
utilizáveis. Eles/elas têm feito isto ao menos por duas razões. Em primeiro lugar,
porque a proliferação de estudos de caso, na história das mulheres, parece exigir

73
uma perspectiva sintética que possa explicar as continuidades e descontinuidades
e dar conta das persistentes desigualdades, assim como de experiências sociais
radicalmente diferentes. Em segundo lugar, porque a discrepância entre a alta
qualidade dos trabalhos recentes de história das mulheres e seu status marginal
em relação ao conjunto da disciplina (que pode ser avaliado pelos manuais,
programas universitários e monografias) mostram os limites de abordagens
descritivas que não questionam os conceitos disciplinares dominantes ou, ao
menos, que não problematizam esses conceitos de modo a abalar seu poder e,
talvez, a transformá-los. Para os/as historiadores/as das mulheres, não tem sido
suficiente provar que as mulheres tiveram uma história, ou que as mulheres
participaram das principais revoltaS políticas da civilização ocidental. A reação
da maioria dos/as historiadores/as não feministas foi o reconhecimento da história
das mulheres e, em seguida, seu confinamento ou relegação a um domínio sepa­
rado ("as mulheres tiveram uma história separada da dos homens, em conse­
qüência deixemos as feministas fazer a história das mulheres que não nos diz
respeito"; ou "a história das mulheres diz respeito ao sexo e à família e deve ser
feita separadamente da história política e econômica"). No que se refere à par­
ticipação das mulheres na história, a reação foi, na melhor das hipóteses, um
interesse mínimo ("minha compreensão da Revolução Francesa não muda por
saber que as mulheres dela participaram"). O desafio colocado por essas reações
é, em última análise, um desafio teórico. Isso exige uma análise não apenas da
relação entre a experiência masculina e a experiência feminina no passado, mas
também da conexão entre a história passada e a prática histórica presentes. Como
o gênero funciona nas relações sociais humanas? Como o gênero dá sentido à
organização e à percepção do conhecimento histórico? As respostas a essas
questões dependem de uma discussão do gênero como categoria analítica.

Na sua maioria, as tentativas dos/as historiadores/as para teorizar o gênero


permaneceram presas aos quadros de referência tradicionais das ciências sociais,
utilizando formulações há muito estabelecidas e baseadas em explicações causais
universais. Estas teorias tiveram, no melhor dos casos . um caráter limitado,
..
porque elas têm tendência a incluir generalizações redutivas ou demasiadamente
simples, que se opõem não apenas à compreensão que a história como disciplina
tem sobre a complexidade do processo de causação social, mas também aos
compromissos feministas com análises que levem à mudança. Um exame crítico
destas teorias exporá seus limites e permitirá propor uma abordagem alternativa.
As abordagens utilizadas pela maioria dos/as historiadores/as se dividem
em duas categorias distintas. A primeira é essencialmente descritiva; quer dizer,
ela se refere à existência de fenômenos ou de realidades, sem interpretar, explicar

74
ou atribuir uma causalidade. O segundo uso é de ordem causal e teoriza sobre a
natureza dos fenômenos e das realidades, buscando compreender como e porque
eles tomam as formas que têm.
Na sua utilização recente mais simples, "gênero" é sinônimo de "mulheres".
Os livros e artigos de todos os tipos que tinham como tema a história das mulheres
substituíram, nos últimos anos, nos seus títulos o termo "mulheres" por "gênero".
Em alguns casos, mesmo que essa utilização se refira vagamente a certos
conceitos analíticos, ela visa, de fato, obter o reconhecimento político deste
campo de pesquisas. Nessas circunstâncias, o uso do termo "gênero" visa sugerir
a erudição e a seriedade de um trabalho , pois "genêro" tem uma conotação
mais objetiva e neutra do que "mulheres". "Gênero" parece se ajustar à termi­
nologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da política (su­
postamente ruidosa) do feminismo. Nessa utilização, o termo "gênero" não
implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o
poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível). Enquanto o
termo "história das mulheres" proclama sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos
válidos, o termo "gênero" inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim,
não constituir uma forte ameaça. Esse uso do termo "gênero" constitui um dos
aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade acadêmica
para os estudos feministas, nos anos 80.
Mas esse é apenas um aspecto. O termo "gênero", além de um substituto
para o termo mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer informação
sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um
implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das
mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse
mundo masculino. Esse uso rejeita a validade interpretativa da idéia de esferas
separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o
mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a
ver com o outro sexo. Além disso, o termo "gênero" também é utilizado para
designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente
explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum,
para divessas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres
têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força muscular
superior. Em vez disso, o termo "gênero" torna-se uma forma de indicar
"construções culturais" - a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às
origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mu­
lheres. "Gênero" é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre
um corpo sexuado.7 Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade,
"gênero" tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de
distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens.

75
Ainda que os/as pesquisadores/as reconheçam a conexão entre sexo e aquilo
que os/as sociólogos/as da família chamaram de "papéis sexuais", esses/as
pesquisadores/as não postulam um vínculo simples ou direto entre os dois. O
uso de "gênero" enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo,
mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a
sexualidade.
Esses usos descritivos do termo "gênero" foram empregados pelos/as his­
toriadores/as, na maioria dos casos, para delimitar um novo terreno. À medida
que os/as historiadores/as sociais se voltavam para novos objetos de estudo, o
gênero tornava relevante temas tais como mulheres, crianças, famílias e
ideologias de gênero. Em outras palavras, esse uso de "gênero" refere-se apenas
àquelas áreas, tanto estruturais quanto ideológicas, que envolvem as relações
entre os sexos. Uma vez que, aparentemente, a guerra, a diplomacia e a alta
política não têm a ver explicitamente com essas relações, o gênero parece não
se aplicar a estes objetos, continuando, assim, a ser irrelevante para o pensamento
dos/as historiadores/as preocupados/as com questões de política e poder. Isto
tem como efeito a adesão a uma certa visão funcionalista, fundamentada, em
última análise, na biologia e na perpetuação da idéia de esferas separadas na
escrita da história (sexualidade ou política, família ou nação, mulheres ou ho­
mens). Ainda que, nessa utilização, o termo "gênero" sublinhe o fato de que as
relações entre os sexos são sociais, ele nada diz sobre as razões pelas quais
essas relações são construídas como são, não diz como elas funcionam ou como
elas mudam. No seu uso descritivo, o tenno "gênero" é, então, um conceito
associado ao estudo de coisas relativas às mulheres. "Gênero" é um novo tema,
um novo domínio da pesquisa histórica, mas não tem poder analítico suficiente
para questionar (e mudar) os paradigmas históricos existentes.
Alguns/mas historiadores/as estavam, certamente, conscientes deste pro­
blema; daí os esforços para empregar teorias que pudessem explicar o conceito
de gênero e dar conta da mudança histórica. De fato, o desafio consistia em
reconciliar a teoria, que estava concebida em termos universais e gerais, com a
história, que estava comprometida com o estudo da especificidade contextual e
da mudança fundamental. O resultado foi muito eclético: empréstimos parciais
que enfraquecem o poder analítico de uma teoria particular ou, pior, que empre­
gam seus preceitos sem ter consciência de suas implicações; ou tentativas para
dar conta da mudança que, por terem como inspiração teorias universais, apenas
ilustram temas invariantes; ou, ainda, estudos extremamente imaginativos, nos
quais a teoria está, entretanto, tão escondida que esses estudos não podem servir
de modelos para outras pesquisas. Uma vez que, com freqüência, não se têm
explicitado todas as implicações das teorias nas quais as/as historiadores/as
têm-se inspirado, vale a pena dedicar-lhes aqui um pouco de tempo. Somente
através deste exercício, pode-se avaliar a utilidade dessas teorias e, talvez,
começar a formular uma abordagem teórica mais potente.

76
Os/as historiadores/as feministas têm empregado uma variedade de abor­
dagens na análise do gênero, mas essas podem ser resumidas a três posições
teóricas.R A primeira, uma tentativa inteiramente feminista, empenha-se em
explicar as origens do patriarcado. A segunda se situa no interior de uma tradição
marxista e busca um compromisso com as críticas feministas. A terceira, funda­
mentalmente dividida entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo­
americanas de relação do objeto (object-relation theories), se inspira nessas
diferentes escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da
identidade de gênero do sujeito.
As teóricas do patriarcado têm dirigido sua atenção à subordinação das
mulheres e encontrado a explicação dessa subordinação na "necessidade" mas­
culina de dominar as mulheres. Na engenhosa adaptação que Mary O'Brien fez
de Hegel, ela definiu a dominação masculina como o efeito do desejo dos homens
de transcender sua alienação dos meios de reprodução da espécie. O princípio
da continuidade geracional restaura a primazia da paternidade e obscurece o
trabalho real e a realidade social do esforço das mulheres no ato de dar à luz. A
fonte da libertação das mulheres reside numa "compreensão adequada do pro­
cesso de reprodução", numa avaliação das contradições entre a natureza do
trabalho reprodutivo das mulheres e a mistificação ideológica (masculina) desteY
Para Sulamith Firestone, a reprodução também era uma "amarga armadilha"
para as mulheres. No entanto, na sua análise mais materialista, a libertação viria
das transformações na tecnologia da reprodução que poderiam, num futuro não
demasiadamente longínquo, eliminar a necessidade dos corpos femininos como
agentes da reprodução da espécie. 10
Se a reprodução era a chave do patriarcado para algumas, para outras a
resposta se encontrava na própria sexualidade. As fortes formulações de Cathe­
rine MacKinnon são-lhe não apenas caracteristicamente próprias, mas também
representativas de uma certa abordagem: "A sexualidade está para o feminismo
assim como o trabalho está para o marxismo: é aquilo que mais nos pertence e
o que todavia nos é mais subtraído". "A objetificação sexual é o processo primário
de sujeição das mulheres. Ela liga o ato com a palavra, a construção com a
expressão, a percepção com a efetivação, o mito com a realidade. O homem
fode a mulher; sujeito verbo objeto".ll Continuando sua analogia com Marx,
MacKinnon propõe como método de análise feminista não o materialismo
dialético mas os grupos de consciência. Ao expressar a experiência partilhada
de objetificação, sustentava ela, as mulheres são levadas a compreender sua
identidade comum e são conduzidas à ação política. Na análise de MacKinnon,
ainda que as relações sexuais sej am definidas como sociais, não há nada -
salvo a desigualdade inerente à relação em si mesma - que possa explicar
porque o sistema de poder funciona assim. A fonte das relações desiguais entre
os sexos está, no fim das contas, nas relações desiguais entre os sexos. Apesar
de afirmar que a desigualdade, tendo suas origens na sexualidade, está corpori-

77
fiC;aPíI em.,"todqum s�stem.a. de relações sociais:', ela nãoexplica,çomo este
siste1,llq t\lnciona. 2� '. "
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intern.a ao ,prQprio s,istema deg�nero, elas também afirmam a primazia deste.


sistj::ma na, organização social consici.erada em s,eu conjunto, M<;ts as teorias do
patriarcado :não mostram .o ql/.e a desigualdade de gênero: tem a verGom as
outras desigualdades. Em segundo lugar,a análise continua baseada na difer,ença
físh:;a, q\,ler, a dowinação tollfe aJorIt\a cia apropriaçãq �o trabalho repJ:odutivo
dal1)ulh�rp�lo hç)Jnel,ll quer tome a forma ,dq objetificação sexual das mulheres
peloshOIl1enS..Qualquer difer�nça física aSSUme. umçaráter univer.sal e imutável,
mes,m,o quandp ,as. teóricas, elo patriarcado levam em considerélção a existência
de mutações}nas f�nnas e lIos sistemas de desigualdades de gênero.13 Uma teoria
quese,baseia na':élriável única da diferença física é problemátiça para os/a�
historiadores/as: �la pressupõe, um significado permanente ou inerente para o
corpo huma)1o �. fora de uma construção social ou cultural,� e, em conSe­
qüência,a a-;historic.idage do próprio gênero, N,um certo sentido, li história torna;
se umepiferômeno, fOrnecendo variaçõt:;s intermináveis'para o' mesmo,teIl1a
imut;ív.el de uma d,esigualdade de gênero vista corno fixa ..
As/os, femülistas I1\arxistas t�m up1a abordagem mais histórica,jáque .elasl.
eles sãog\l'<L�\l,s/os por uma, teoriil da história. ,Mas, sejam q\lais forem as,
variações:e ,ad,aptaç9,"s, a exigênçia auto-impostá degue haja uma explicação.
"material" para o gênero tem limitado ou,ao menos,retardado o desenvolvimento.
de n�vas linhas de análise, Tallto; no caso em que se propõe uma solução baseada
no conceHo de. sistt;mas, duais (que afi1�ma a existência dos. domínios separados,
mas em. il)teraçii</, do . capitalismo. e (.lo patriarcado), quanto nq,çaso de uma
aná,Vse, l?asea�a m,,:is flnnel11ente. em discussões ,marxistas ortoóoxas sobre os ,
modos de prodl,lção', a.explicação das origens e das transformaçÕes dOs s�steW\ls ..
d�. gêneroenCQ�tra-se fora da divisão sexual do tJ:abalh,(). Famíli\is" jarese,
sexualidad�� �ão,no fim dascontas,todos, prqdutos de mOGos ç,ambia�es de
pr9duç�0. É a�� �mque Engels c . oncluí.a suas exploraçõe�. sobre A Ol(ig,emd,a
.
.

Farnília, l� é aí, que rep()usam, .em última instância, asanálisys da economista. '
Heidi fIartm<,lnl). Hartmal1n enfatiza a necessid\lde de considerar o patriFlIcad0 e
oc�pital;sm,ocomo�ois sistemas separados,m.<,lSi em,interação. Mas. à m�dida.
ew qUe çlá <lr.�enyolve:�ua argumentaç�o! a. caysalicl(,lde econôll1ica t'Qrna-se
pri.or�tá�ia.eQpatrü).(cado está sempre ,se desenvolvendo t} mudando em fU)1ç�q,
das relaçpes d�produção.15 ,'. . . " .. ,
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...
. Os prime�rosçlebates entre . as/osfeministas marxist(isgir a mm em torno,dos
meSmOs problemas: a rejeição do essencialisl,llo daquelas/es.que sust.entayam
que "as exigências da. reprodução biológica" determinam a divisão sexualdo
traqalho sob o capitalismo; a futi lidade de se inserir "modos de reprodução" nas

78"
" \
discussões sobre os modos de produção (a reprodução permanece uma categoria
de oposição e não tem um status equivalente ao do modo de produção); o reco­
nhecimento de que os sistemas econômicos não determinam de maneira direta
as relações de gênero e que, de fato, a subordinação das mulheres é anterior ao
capitalismo e continua sob o socialismo; a busca, apesar de tudo, de uma expli­
cação materialista que exclua as diferenças físicas naturais.16 Uma tentativa
importante de sair deste círculo de problemas veio de Joan Kelly, em seu ensaio
"The Doubled Vision ofFeminist Theory", onde ela sustentava que os sistemas
econômicos e os sistemas de gênero interagiam para produzir as experiências
sociais e históricas; que nenhum dos dois era causal, mas que os dois "operam
simultaneamente para reproduzir as estruturas sócio-econômicas e as estruturas
de dominação masculina de uma ordem social particular". A idéia de Kelly de
que os sistemas de gênero teriam uma existência independente constituiu uma
abertura conceitual decisiva, mas sua determinação em permanecer dentro de
um quadro marxista levou-a a enfatizar o papel causal dos fatores econômicos
até mesmo na determinação do sistema de gênero: "a relação entre os sexos
opera de acordo com (e através das ) estruturas sócio-econômicas e também de
acordo com as estruturas de sexo-gênero"P Kelly introduziu a idéia de uma
"realidade social sexualmente baseada" mas ela tendia a enfatizar o caráter so­
cial mais do que sexual desta realidade e, freqüentemente, o "social", em sua
utilização, era concebido em termos de relações econômicas de produção.
A análise da sexualidade que foi mais longe, entre as feministas marxistas
americanas, encontra-se em Powers of Desire, um volume de ensaios publicado
em 1983.18 Influenciadas pela crescente atenção dada à sexualidade entre ativistas
políticos/as e pesquisadores/as, pela insistência do filósofo francês MichelFou­
cault de que a sexualidade é produzida em contextos históricos, pela convicção
de que a "revolução sexual" contempcrânea exigia uma análise séria, as autoras
centraram suas interrogações na "política sexual". Assim fazendo, elas colocaram
a questão da causalidade e propuseram uma série de soluções; de fato, o mais
instigante neste volume é a falta de unanimidade analítica, seu sentido de tensão
analítica. Se as autoras individuais tendiam a sublinhar a causalidade dos
contextos sociais (que, com freqüência, quer dizer "econômicos"), elas, não
obstante, incluíam sugestões sobre a importância de se estudar a "estruturação
psíquica da identidade de gênero". Embora se afirme algumas vezes que a "ide­
ologia de gênero" "reflete" as estruturas econômicas e sociais, há também um
reconhecimento crucial da necessidade de compreender "o vínculo" complexo
"entre a sociedade e uma estrutura psíquica persistente" .19 De um lado, as orga­
nizadoras desta coletânea endossam o argumento de Jessica Benjamim de que a
política deve conceder atenção "aos componentes eróticos e fantasmáticos da
vida humana", mas, por outro lado, nenhum outro ensaio, salvo este de Benjamim,
aborda completa ou seriamente as questões teóricas que ela levanta.2o Há, em
vez disso, um pressuposto tácito que percorre o volume, segundo o qual o marxis-

79
mo pode ser ampliado para incluir discussões sobre ideologia, cultura e psicolo­
gia, e que esta ampliação será efetuada através do mesmo tipo de exame concreto
dos dados efetuados na maioria dos artigos. A vantagem de uma tal abordagem
é que ela evita divergências agudas de posição; sua desvantagem é que ela deixa
intacta uma teoria já plenamente articulada, que remete as relações entre os
sexos às relações de produção.
Uma comparação entre as tentativas exploratórias e relativamente amplas
das/os feministas marxistas americanas/os e as de suas/seus homólogas/os
inglesas/es, mais estreitamente ligadas/os à política de uma tradição marxista
forte e viável, revela que as/os inglesas/es tiveram maior dificuldade em contestar
os fatores limitantes das explicações estritamente deterministas. Essa dificuldade
pode ser vista de maneira mais espetacular nos debates recentes, surgidos na
New Lefi Review, entre Michele Barret e seus/suas críticos/as, os/as quais a
acusavam de abandonar uma análise materialista da divisão sexual do trabalho
sob o capitalismo.21 Ela pode ser vista também no fato de que os/as pesquisadores/
as que tinham inicialmente empreendido uma tentativa feminista de reconciliação
entre a psicanálise e o marxismo, e que tinham insistido na possibilidade de
uma certa fusão entre os dois, escolheram hoje uma ou outra dessas posições
teóricas.22 A dificuldade tanto para as/os feministas inglesas/es quanto para as/
os americanas/os que trabalham dentro do quadro do marxismo é evidente nos
trabalhos que mencionei aqui. O problema que elas/eles enfrentam é o inverso
daquele colocado pela teoria do patriarcado, pois, no interior do marxismo, o
conceito de gênero foi, por muito tempo, tratado como um sub-produto de
estruturas econômicas cambiantes; o gênero não tinha aí um status analítico
independente e próprio.
Um exame da teoria psicanalítica exige uma distinção entre escolas, já que
se teve a tendência de classificar as diferentes abordagens segundo as origens
nacionais de seus fundadores ou da maioria daqueles/as que as aplicam. Há a
Escola Anglo-americana, que trabalha nos termos das teorias de relação de objeto
(object-relation theories). Nos Estados Unidos, Nancy Chodorow é o nome
mais prontamente associado com esta abordagem. Além disso, o trabalho de
Carol Gilligan teve um impacto muito vasto sobre a produção científica
americana,incluindo a história. O trabalho de Gilligan se inspira no de Chodorow,
embora ela esteja menos preocupada com a construção do sujeito do que com o
desenvolvimento moral e o comportamento. Em contraste com a escola anglo­
americana, a escola francesa está baseada em leituras estruturalistas e pós­
estruturalistas deFreud no contexto das teorias da linguagem (para as feministas
a figura central é Jacques Lacan).
Ambas as escolas estão preocupadas com os processos pelos quais a
identidade do sujeito é criada, ambas se centram nas primeiras etapas do
desenvolvimento da criança a fim de encontrar pistas sobre a formação da
identidade de gênero. As teóricas das relações de objeto enfatizam a influência

80
da experiência concreta (a criança vê, ouve, tem relações com aqueles que se
ocupam dela, em particular, obviamente, com seus pais), enquanto os/as pós­
estruturalistas enfatizam o papel central da linguagem na comunicação, na
interpretação e na representação do gênero. (Para os/as pós-estruturalistas, "lin­
guagem" não designa palavras, mas sistemas de significação - ordens simbólicas
- que precedem o domínio real da fala, da leitura e da escrita). Uma outra
diferença entre essas duas escolas de pensamento refere-se ao inconsciente, que
para Chodorow é, em última instância, suscetível de compreensão consciente,
enquanto que, para Lacan, não o é. Para os/as lacanianos/as, o inconsciente é
um fator decisivo na construção do sujeito; ademais, é o lugar da divisão sexual
e, por esta razão, um lugar de instabilidade constante para o sujeito "generificado"
(gendered).
Nos últimos anos, as/os historiadoras/es feministas foram atraídas/os por
essas teorias, seja porque elas servem para endossar dados específicos com base
em observações gerais, seja porque elas parecem oferecer uma formulação teórica
importante no que concerne ao gênero. Cada vez mais, os/as historiadores/as
que trabalham com o conceito de "cultura feminina" citam os trabalhos de
Chodorow e Gilligan tanto como prova quanto como explicação de suas
interpretações; aquelas/es que têm problemas com a teoria feminista se voltam
para Lacan. Ao final das contas, nenhuma destas teorias me parece inteiramente
utilizável pelos/as historiadores/as; um olhar mais atento sobre cada uma pode
ajudar a explicar por quê.
Minha reserva para com a teoria de relações de objeto concentra-se em seu
literalismo, no fato de basear a produção de identidade de gênero e a gênese da
transformação em estruturas de interação relativamente pequenas Tanto a divisão
de trabalho na família quanto a atribuição real de tarefas a cada um dos pais
desempenham um papel crucial na teoria de Chodorow. O resultado dos sistemas
ocidentais dominantes é uma divisão clara entre masculino e feminino: "O sentido
feminino do eu é fundamentalmente ligado ao mundo, o sentido masculino do
eu é fundamentalmente separado"Y Segundo Chodorow, se os pais (homens)
estivessem mais envolvidos no cuidado com os/as filhos/as e mais presentes nas
situações domésticas, as conseqüências do drama edipiano seriam provavelmente
diferen tes. 24
Esta interpretação limita o conceito de gênero à esfera da família e à expe­
riência doméstica e, para o historiador, ela não deixa meios para ligar esse con­
ceito (nem o indivíduo) a outros sistemas sociais, econômicos, políticos ou de
poder. Sem dúvida está implícito que os arranjos sociais que exigem que os pais
trabalhem e as mães executem a maioria das tarefas de criação das crianças
estruturam a organização da família. Mas não estão claras a origem nem as
razões pelas quais eles estão articulados em termos de uma divisão sexual do
trabalho. Tampouco se discute a questão da desigualdade, por oposição à da
assimetria. Como podemos explicar, no interior desta teoria, a persistente asso-

81
ciação entre masculinidade e poder, o fato de que se valoriza mais a virilidade
do que a feminilidade? Como podemos explicar a forma pela qual as crianças
parecem aprender essas associações e avaliações mesmo quando elas vivem
fora de lares nucleares, ou no interior de lares onde o marido e a mulher dividem
as tarefas familiares? Penso que não podemos fazer isso sem conceder uma
certa atenção aos sistemas de significado, quer dizer, aos modos pelos quais as
sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de
relações sociais ou para construir o significado da experiência. Sem significado,
não há experiência; sem processo de significação, não há significado.
A linguagem é o centro da teoria lacaniana; é a chave de acesso da criança
à ordem simbólica. Através da linguagem é construída a identidade generificada
(gendered). Segundo Lacan, o falo é o significante central da diferença sexual.
Mas o significado do falo deve ser lido de maneira metafórica. O drama edipiano,
para a criança, coloca em ação os termos da interação cultural, já que a ameaça
de castração representa o poder, as regras da lei (do Pai). A relação da criança
com a lei depende da diferença sexual, de sua identificação imaginativa (ou
fantasmática) com a masculinidade ou a feminilidade. Em outras palavras, a
imposição de regras de interação social é inerente e especificamente generificada,
pois a relação feminina com o falo é forçosamente diferente da relação masculina.
Mas a identificação de gênero, mesmo que pareça sempre coerente e fixa, é, de
fato, extremamente instável. Como sistemas de significado, as identidades
subjetivas são processos de diferenciação e de distinção, que exigem a supressão
de ambigüidades e de elementos de oposição, a fim de assegurar (criar a ilusão
de) uma coerência e (de) uma compreensão comum. A idéia de masculinidade
repousa na repressão necessária de aspectos femininos - do potencial do sujeito
para a bissexualidade - e introduz o conflito na oposição entre o masculino e o
feminino. Os desejos reprimidos estão presentes no inconsciente e constituem
uma ameaça permanente para a estabilidade da identificação de gênero, negando
sua unidade, subvertendo sua necessidade de segurança. Além disso, as idéias
conscientes sobre o masculino ou o feminino não são fixas, uma vez que elas
variam de acordo com as utilizações contextuais. Sempre existe um conflito,
pois, entre a necessidade que tem o sujeito de uma aparência de totalidade e a
imprecisão da terminologia, seu significado relativo, sua dependência da re­
pressão.25 Este tipo de interpretação torna problemáticas as categorias de
"homem" e "mulher", ao sugerir que o masculino e o feminino não são caracte­
rísticas inerentes, mas constructos subjetivos (ou ficcionais). Essa interpretação
implica também que o sujeito se acha em um processo constante de construção
e oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente,
ao destacar a linguagem como um objeto apropriado de análise. Enquanto tal eu
a considero instrutiva.
Entretanto, sinto-me incomodada pela fixação exclusiva em questões
relativas ao sujeito individual e pela tendência a reificar, como a dimensão cen-

82
traI do gênero, o antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres.
Além do mais, mesmo que a maneira pela qual "o sujeito" é construído permaneça
aberta, a teoria tende a universalisar as categorias e as relações entre masculino
e feminino. A conseqüência para os/as historiadores/as é uma leitura redutiva
dos dados do passado. Mesmo que essa teoria tome em consideração as relações
sociais, ao ligar a castração à proibição e à lei, ela não permite introduzir uma
noção de especificidade e de variabilidade histórica. O falo é o único significante,
o processo de construção do sujeito generificado é, em última instância, previsível
já que é sempre o mesmo. Se, como sugere a teórica do cinema Teresa de Lauretis,
temos necessidade de pensar a construção da subjetividade dentro dos contextos
sociais e históricos, não há nenhum meio de precisar estes contextos nos termos
que propõe Lacan. De fato, mesmo na tentativa de Lauretis, a realidade social
(quer dizer, as relações "materiais, econômicas e interpessoais que são, de fato,
sociais e, numa perspectiva mais ampla, históricas") parece se situar fora do
sujeito.26 O que está faltando é uma forma de conceber a "realidade social" em
termos de gênero.
O problema do antagonismo sexual nessa teoria tem dois aspectos. Em
primeiro lugar, ele projeta um certo caráter intemporal, mesmo quando está
bem historicizado, como no caso de Sally Alexander. Sua leitura de Lacan a
conduziu à conclusão de que "o antagonismo entre os sexos é um aspecto inevi­
tável da aquisição da identidade sexual...Se o antagonismo está sempre latente,
é possível que a história não possa oferecer nenhuma solução final, mas apenas
a remoldagem e reorganização permanente da simbolização da diferença e da
divisão sexual do trabalho"Y É talvez meu incorrigível utopianismo que faz
com que eu duvide dessa formulação, ou então o fato de que eu não soube ainda
me desfazer da episteme do que Foucault chamava de Idade Clássica. Seja o
que for, a forrn:ulação de Alexander contribui para fixar a oposição binária entre
masculino-feminino como a única relação possível e como um aspecto perma­
nente da condição humana. Ela perpetua, mais do que põe em questão, aquilo
que Denise Riley designa como o "terrível ar de constância da polaridade sexual".
Ela escreve: "o caráter historicamente construído da oposição (entre masculino
e feminino) produz como um de seus efeitos precisamente este ar de uma oposição
invariante e monótona entre homens/mulheres".28
É precisamente esta oposição, em todo o seu tédio e monotonia, que (para
voltar ao lado anglo-saxão) é posta em evidência no trabalho de Carol Gilligan.
Gilligan explica as trajetórias divergentes de desenvolvimento moral seguidas
por meninos e meninas, em termos de diferenças de "experiência" (de realidade
vivida). Não é surpreendente que os/as historiadores/as das mulheres tenham
recuperado suas idéias e as tenham utilizado para explicar as "vozes diferentes"
que os trabalhos desses/as historiadores/as lhes haviam possibilitado ouvir. Os
problemas com esses empréstimos são múltiplos e eles estão logicamente
conectados.2Y O primeiro problema é um deslizamento que freqüentemente ocorre

83
na atribuição da causalidade: a argumentação começa por uma afirmação do
tipo "a experiência das mulheres leva-as a fazer escolhas morais que dependem
de contextos e de relações" para se transformar em "as mulheres pensam e
escolhem este caminho porque elas são mulheres". Está implícita nessa linha de
raciocínio uma idéia a-histórica, senão essencialista, de mulher. Gilligan e outros!
as extrapolaram sua descrição, baseada numa pequena amostra de alunas
americanas do fim do século XX, a todas as mulheres. Essa extrapolação é
evidente, principalmente, mas não exclusivamente, nas discussões de alguns!
mas historiadores/as da "cultura feminina" que reúnem dados desde as santas
da Idade Média às militantes sindicalistas modernas e os reduzem para provar a
hipótese de Gilligan sobre a suposta preferência feminina universal por
estabelecer e cultivar relações pessoais.30 Esse uso das idéias de Gilligan se
coloca em oposição flagrante com as concepções mais complexas e historicizadas
da "cultura feminina" que podem ser encontradas no simpósio de Feminist Studies
de 1980.31 De fato, uma comparação desta série de artigos com as teorias de
Gilligan revela a que ponto sua noção é a-histórica, definindo a categoria homem!
mulher como uma oposição binária universal que se auto-reproduz - fixada
sempre da mesma maneira. Ao insistir sempre nas diferenças fixadas (no caso
de Gilligan, ao simplificar os dados através da utilização das mais heterogêneas
informações sobre o sexo e o raciocínio moral, para sublinhar a diferença sexual),
as/os feministas reforçam o tipo de pensamento que desejam combater. Ainda
que insistam na reavaliação da categoria do "feminino" (Gilligan sugere que as
escolhas morais das mulheres poderiam ser mais humanas do que as dos homens),
elas não examinam a oposição binária em si.
Temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da oposição
binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da
diferença sexual. Devemos nos tornar mais auto-conscientes da distinção entre
nosso vocabulário analítico e o material que queremos analisar. Devemos
encontrar formas (mesmo que imperfeitas) de submeter sem cessar nossas cate­
gorias à crítica e nossas análises à auto-crítica. Se utilizamos a definição de
desconstrução de Jacques Derrida, essa crítica significa analisar , levando em
conta o contexto, a forma pela qual opera qualquer oposição binária, revertendo
e deslocando sua construção hierárquica, em vez de aceitá-la como real ou auto­
evidente ou como fazendo parte da natureza das coisas.32 É evidente que, num
certo sentido, as/os feministas vêm fazendo isso por muitos anos. A história do
pensamento feminista é uma história da recusa da construção hierárquica da
relação entre masculino e feminino, em seus contextos específicos, e uma tentativa
para reverter ou deslocar suas operações. Os/as historiadores/as feministas estão
agora bem posicionados/as para teorizar suas práticas e para desenvolver o gênero
como uma categoria analítica.

84
11

A preocupação teórica com o gênero como uma categoria analítica só e­


mergiu no fim do século XX. Ela está ausente das principais abordagens de
teoria social formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX. De
fato, algumas destas teorias construíram sua lógica a partir das analogias com a
opo-sição entre masculino/feminino, outras reconheceram uma "questão
feminina", outras ainda se preocuparam com a formulação da identidade sexual
subjetiva, mas o gênero, como uma forma de falar sobre sistemas de relações
sociais ou sexuais não tinha aparecido. Esta falta poderia explicar em parte a
dificuldade que tiveram as feministas contemporâneas de incorporar o termo
"gênero" às abordagens teóricas existentes e de convencer os adeptos de uma
ou outra escola teórica de que o gênero fazia parte de seu vocabulário. O termo
"gênero" faz parte da tentativa empreendida pelas feministas contemporâneas
para reinvindicar um certo terreno de definição, para sublinhar a incapacidade
das teorias existentes para explicar as persistentes desigualdades entre as mulheres
e os homens. É, na minha opinião, significativo que o uso da palavra "gênero"
tenha emergido num momento de grande efervescência epistemológica que toma
a forma, em certos casos, da mudança de um paradigma científico para um
paradigma literário, entre os/as cientistas sociais (da ênfase posta na causa para
a ênfase posta no significado, confundindo os gêneros da investigação, segundo
a formulação do antropólogo Clifford Geertz)Y Em outros casos, esta mudança
toma a forma de debates teóricos entre aqueles/as que afirmam a transparência
dos fatos e aqueles/as que enfatizam a idéia de que toda realidade é interpretada
ou construída, entre os/as que defendem e os/as que põem em questão a idéia de
que o homem é o dono racional de seu próprio destino.
No espaço aberto por este debate, posicionadas ao lado da crítica da ciência
desenvolvida pelas humanidades e da crítica do empirismo e do humanismo
desenvolvido pelos/as pós-estruturalistas, as feministas não somente começaram
a encontrar uma voz teórica própria; elas também encontraram aliados/as
acadêmicos/as e políticos/as. É dentro desse espaço que nós devemos articular
o gênero como uma categoria analítica.
O que poderiam fazer os/as historiadores/as que, depois de tudo, viram sua
disciplina rejeitada, por alguns/mas teóricos/as recentes, como uma relíquia do
pensamento humanista? Não penso que devemos deixar os arquivos ou abandonar
o estudo do passado, mas acredito, isto sim, que devemos mudar alguns de
nossos hábitos de trabalho, algumas questões que temos colocado. Devemos
examinar atentamente nossos métodos de análise, clarificar nossas hipóteses de
trabalho, e explicar como a mudança ocorre. Em vez da busca de origens únicas,
temos que pensar nos processos como estando tão interconectados que não podem
ser separados . É evidente que isolamos certos problemas para serem estudados
e que estes problemas constituem pontos de partida ou de entrada para processos

85
complexos. Mas são os processos que devemos ter sempre em mente. Devemos
nos perguntar mais seguidamente como as coisas se passaram para descobrir
por que elas se passaram; segundo a formulação de MichelIe Rosaldo, devemos
buscar não uma causalidade geral e universal, mas uma explicação baseada no
significado:"Vejo agora que o lugar da mulher na vida social humana não é, de
qualquer forma direta, um produto das coisas que ela faz, mas do significado
que suas atividades adquirem através da interação social concreta". 34 Para buscar
o significado, precisamos lidar com o sujeito individual, bem como com a
organização social, e articular a natureza de suas interrelações, pois ambos são
cruciais para compreender como funciona o gênero, como ocorre a mudança.
Finalmente, é preciso substituir a noção de que o poder social é unificado,
coerente e centralizado por algo como o conceito de poder de MichelFoucault,
entendido como constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente
constituídas em "campos de força" sociais.35 No interior desses processos e
estruturas, há espaço para um conceito de agência humana, concebida como a
tentativa (pelo menos parcialmente racional) para construir uma identidade, uma
vida, um conjunto de relações, uma sociedade estabelecida dentro de certos
limites e dotada de uma linguagem - uma linguagem conceitual que estabeleça
fronteiras e contenha, ao mesmo tempo, a possibilidade da negação, da resistên­
cia, da reinterpretação e permita o jogo da invenção metafórica e da imaginação.
Minha definição de gênero tem duas partes e diversas subconjuntos, que
estão interrelacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo
da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero
é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações
de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre
a mudanças nas representações do poder, mas a mudança não é unidirecional.
Como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas,o gênero implica quatro elementos interrelacionados: em primeiro
lugar, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações sim­
bólicas (e com freqüência contraditórias) - Eva e Maria como símbolos da
mulher, por exemplo, na tradição cristã ocidental - mas também mitos de luz e
escuridão, purificação e poluição, inocência e corrupção. Para os/as historiadores/
as, a questão importante é: que representações simbólicas são invocadas, como,
e em quais contextos? Em segundo lugar, conceitos normativos que expressam
interpretações dos significados dos símbolos, que tentam limitar e conter suas
possibilidades metafóricas. Esses conceitos estão expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica
de uma oposição binária fixa, que afirma de maneira categórica e inequívoca o
significado do homem e da mulher, do masculino e do feminino. De fato, essas
afirmações normativas dependem da rejeição ou da repressão de possibilidades
alternativas e, algumas vezes, elas são abertamente contestadas ("quando e em

86
quais circunstâncias" é a questão que deveria preocupar os/as historiadores/as).
A posição que emerge como posição dominante é, contudo, declarada a única
possível. A história posterior é escrita como se essas posições normativas fossem
o produto do consenso social e não do conflito. Um exemplo desse tipo de
história é dado por aqueles que tratam a ideologia vitoriana da dpmesticidade
como se ela tivesse sido criada em bloco, e tivesse sido contestada apenas depois
disso, invés de ser o objeto constante de grandes diferenças de opinião. Um
outro exemplo vem dos grupos religiosos fundamentalistas atuais, que querem
ligar necessariamente suas práticas à restauração do papel "tradicional" das
mulheres, supostamente mais autêntico, embora, na realidade, haja poucos
antecedentes históricos que testemunhem a existência inconteste de um tal papel.
O desafio da nova pesquisa histórica consiste em fazer explodir essa noção
de fixidez, em descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva à aparência
de uma permanência intemporal na representação binária do gênero. Esse tipo
de análise deve incluir uma concepção de política bem como uma referência às
instituições e à organização social - este é o terceiro aspecto das relações de
gênero.
Certos/as pesquisadores/as, principalmente os/as antropólogos/as, têm
restringido o uso do gênero ao sistema de parentesco (centrandq�.se no lar:ê .��
família como a base da organização social). Temos necessidade de uma .visão
mais ampla que inclua não somente o parentesco mas também (especialmente
para as complexas sociedades modernas) o mercado de trabalho ( um mercado
de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção de
gênero), a educação ( as instituições de educação somente masculinas, não mistas,
ou de co-educação fazem parte do mesmo processo), o sistema político (o sufrágio
universal masculino faz parte do processo de construção do gênero). Não tem
muito sentido reconduzir à força estas instituições à sua utilidade funcional para
o sistema de parentesco, ou sustentar que as relações contemporâneas entre os
homens e as mulheres são artefatos de sistemas anteriores de parentesco baseados
na troca de mulheres.36 O gênero é construído através do parentesco, mas não
exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização
política, que, pelo menos em nossa sociedade, operam atualmente de maneira
amplamente independente do parentesco.
O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva. Concordo com a idéia
da antropóloga Gayle Rubin de que a psicanálise fornece uma teoria importante
sobre a reprodução do gênero, uma descrição da "transformação da sexualidade
biológica dos indivíduos enquanto passam por um processo de enculturação".37
Mas a pretensão universal da psicanálise constitui, para mim, um problema.
Embora a teoria lacaniana possa ser útil para a reflexão sobre a construção da
identidade generificada, os/as historiadores/as precisam trabalhar de uma forma
mais histórica. Se a identidade de gênero está baseada única e universalmente
no medo da castração, nega-se a relevância da investigação histórica. Além

87
disso os homens e as mulheres reais não cumprem sempre, nem cumprem
literalmente, os termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias
analíticas. Os/as historiadores/as precisam, em vez disso, examinar as formas
pelas quais as identidades generificadas são substantivamente construídas e
relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e
representações sociais historicamente específicas. Não é de se estranhar que as
melhores tentativas neste domínio tenham sido, até o presente, as biografias: a
interpretação de Lou Andreas-Salomé por Biddy Martin, o retrato de Catharine
Beecher por Kathryn Sklar, a vida de Jessie Daniel Ames por Jacqueline Hall e
a reflexão de Mary Hill sobre Charlotte Perkins Gilman.38 Mas os tratamentos
coletivos são igualmente possíveis, como o mostram Mrinalini Sinha e Lou
Ratté, em seus respectivos estudos, sobre a construção de uma identidade de
gênero entre os administradores coloniais britânicos na Índia, e para os hindus
educados na cultura britânica que se tornaram dirigentes nacionalistas anti­
imperialistas.39
A primeira parte da minha definição de gênero, então, é composta desses
quatro elementos e nenhum dentre eles pode operar sem os outros. No entanto
eles não operam simultaneamente, como se um fosse um simples reflexo do
outro. De fato, é uma questão para a pesquisa histórica saber quais são as relações
entre esses quatro aspectos. O esboço que eu propus do processo de construção
das relações de gênero poderia ser utilizado para examinar a classe, a raça, a
etnicidade ou qualquer processo social. Meu propósito foi clarificar e especificar
como se deve pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais,
porque essa reflexão nem sempre tem sido feita de maneira sistemática e precisa.
A teorização do gênero, entretanto, é desenvolvida em minha segunda proposição:
o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Seria
melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do
qual, o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas ele parece ter
sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder
no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Como tal, esta parte da
definição poderia aparentemente pertencer à seção normativa de meu argumento,
mas isso não ocorre, pois os conceitos de poder, embora se baseiem no gênero,
nem sempre se referem literalmente ao gênero em si mesmo. O sociólogo francês
Pierre Bourdieu tem escrito sobre como a "di-visão do mundo", baseada em
referências às "diferenças biológicas, e, notadamente, àquelas que se referem à
divisão do trabalho de procriação e de reprodução", operam como "a mais
fundada das ilusões coletivas". Estabelecidos como um conjunto objetivo de
referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
concreta e simbólica de toda a vida social. 40 Na medida em que essas referências
estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos
recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e
na construção do próprio poder. O antropólogo francês Maurice Godelier assim
o formulou: "( . . .) não é a sexualidade que assombra a sociedade, mas antes a
sociedade que assombra a sexualidade do corpo. As diferenças entre os corpos,
relacionadas ao sexo, são constantemente solicitadas a testemunhar as relações
sociais e as realidades que não têm nada a ver com a sexualidade. Não somente
testemunhar, mas testemunhar para, ou seja, legitimar".41
A função de legitimação do gênero age de várias maneiras. Bourdieu, por
exemplo, mostrou como, em certas culturas, a exploração agrícola era organizada
segundo conceitos de tempo e de estação que se baseavam em definições
específicas da oposição entre masculino e feminino. Gayatri Spivak fez uma
análise perspicaz dos usos do gênero e do colonialismo em certos textos de
escritoras britânicas e americanas.42 Natalie Davis mostrou como os conceitos
de masculino e feminino estavam relacionados à aceitação e ao questionamento
das regras da ordem social no primeiro período da França moderna.43 A
historiadora Caroline Bynum deu nova luz à espiritualidade medieval pela
importância atribuída às relações entre os conceitos do masculino e do feminino
e o comportamento religioso. Seu trabalho nos permite melhor compreender as
formas pelas quais esses conceitos orientaram a política das instituições
monásticas e as crenças individuais.44 Os/as historiadores/as da arte abriram um
novo território ao extrair implicações sociais das representações literais dos
homens e das mulheres.45 Essas interpretações estão baseadas na idéia de que as
linguagens conceituais empregam a diferenciação para estabelecer o significado
e que a diferença sexual é uma forma primária de dar significado à diferenciação.46
O gênero, então, fornece um meio de decodificar o significado e de compreender
as complexas conexões entre várias formas de interação humana. Quando os/as
historiadores/as buscam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero
legitima e constrói as relações sociais, eles/elas começam a compreender a
natureza recíproca do gênero e da sociedade e as formas particulares e
contextualmente específicas pelas quais a política constrói o gênero e o gênero
constrói a política.
A política é apenas uma das áreas na qual o gênero pode ser utilizado para
análise histórica. Escolhi os exemplos seguintes, ligados à política e ao poder,
no sentido mais tradicional, quer dizer, naquilo que enfatizam o governo e o
Estado-nação, por duas razões. Em primeiro lugar, porque se trata de um território
praticamente inexplorado, já que o gênero tem sido percebido como uma cate­
goria antitética às tarefas sérias da verdadeira política. Em segundo lugar, porque
a história política - ainda o modo dominante de pesquisa histórica - tem sido
o bastião de resistência à inclusão de materiais ou questões sobre as mulheres e
o gênero.
O gênero tem sido utilizado literal ou analogicamente na teoria política
para justificar ou criticar reinado de monarcas e para expressar as relações entre
governantes e governados. Obviamente era de se esperar que os debates dos
contemporâneos sobre os reinados de Elizabeth I da Inglaterra e de Catarina de

89
Medici na França tivessem tratado da questão da capacidade das mulheres para
a direção política; mas em um período onde parentesco e realeza estavam intrin­
secamente ligados, as discussões sobre os reis homens também estavam
preocupadas com a masculinidade e a feminilidade.47 As analogias com a relação
marital dão uma estrutura para os argumentos de Jean B odin, Robert Filmer e
John Locke. O ataque de Edmund Burke contra a Revolução Francesa se desen­
volve ao redor de um contraste entre as harpias feias e assassinas dos sans­
culottes (as megeras do inferno, sob a forma desnaturada da mais vil das mulhe­
res) e a doce feminilidade de Maria Antonieta, que escapa à multidão "para
procurar refúgio aos pés de um rei e de um marido" e cuja beleza tinhajá inspirado
o orgulho nacional. (É em referência ao papel apropriado ao feminino dentro da
ordem política que Burke escreveu: "para que possamos amar nossa pátria, nossa
pátria deve ser amável").48 Mas a analogia não concerne sempre ao casamento
nem mesmo à heterossexualidade. Na teoria política da Idade Média islâmica,
os símbolos do poder político fizeram mais freqüentemente alusão às relações
sexuais entre um homem e um rapaz, sugerindo não somente a existência aceitável
de formas de sexualidade comparáveis às que descreve Foucault em seu último
livro a respeito da Grécia clássica, mas também a irrelevância das mulheres
para qualquer noção de política e de vida pública.49
Para que este último comentário não seja interpretado como uma afirmação
de que a teoria política reflete simplesmente a organização social, parece im­
portante observar que as mudanças nas relações de gênero podem se produzir a
partir de considerações sobre as necessidades de Estado. Um exemplo surpre­
endente é fornecido pela argumentação de Louis de B onald, em 1816, sobre as
razões pelas quais a legislação da Revolução francesa sobre o divórcio tinha
que ser rejeitada:

"Do mesmo modo que a democracia política permite ao povo, parte fraca da
sociedade política, se voltar contra o poder estabelecido, também o divórcio,
verdadeira democracia doméstica, permite à esposa, parte fraca, rebelar-se
contra a autoridade marital... A fim de manter o Estado fora das mãos do
povo, é necessário manter afamíliafora das mãos das esposas e dos filhos. "50

B onald começa com uma analogia para estabelecer, em seguida, uma cor­
respondência direta entre o divórcio e a democracia. Retomando argumentos
bem mais antigos, à propósito da boa ordem familiar como fundamento da boa
ordem de Estado, a legislação que implementou esta visão redefiniu os limites
da relação marital. Da mesma maneira, em nossa época, as ideologias políticas
conservadoras desejariam fazer passar toda uma série de leis sobre a organização
e o comportamento da família, que mudariam as práticas atuais. A conexão
entre os regimes autoritários e o controle das mulheres tem sido observada, mas
não tem sido estudada a fundo. No momento crítico para a hegemonia jacobina,
durante a Revolução francesa, no momento em que Stalin se apoderou do controle

90
da autoridade, na implementação da política nazista na Alemanha ou no triunfo
do Ayatolá Komehini no Irã, em todas essas circunstâncias, os governantes
emergentes legitimaram a dominação, a força, a autoridade central e o poder
dominante como masculinos (os inimigos, os forasteiros, os subversivos e a
fraqueza como femininos) e literalmente traduziram esse código em leis que
puseram as mulheres no seu lugar (interditando-lhes a participação na vida
política, declarando o aborto ilegal, impedindo o trabalho assalariado das mães,
impondo códigos de trajar para as mulheres).51 Essas ações e o momentode sua
ocorrência fazem pouco sentido em si mesmas; na maior parte dos casos, o
Estado não tinha nada de imediato ou de material a ganhar com o controle das
mulheres. Essas ações não fazem sentido a menos que sejam integradas numa
análise da construção e consolidação do poder. Uma afirmação de controle ou
de força corporificou-se numa política sobre as mulheres. Nesses exemplos, a
diferença sexual foi concebida em termos da dominação e do controle das
mulheres. Esses exemplos podem nos dar alguma idéia sobre os tipos de relações
de poder que se constroem na história moderna, mas esse tipo particular de
relação não constitui um tema político universal. Por exemplo, sob diferentes
aspectos, os regimes democráticos do século XX também têm construído suas
ideologias políticas a partir de conceitos generificados, traduzindo-os em políticas
concretas: o estado de bem-estar, por exemplo, demonstrou seu paternalismo
protetor através de leis dirigidas às mulheres e crianças.52 Historicamente, alguns
movimentos socialistas ou anarquistas recusaram inteiramente as metáforas de
dominação, apresentando de maneira imaginativa suas críticas de regimes ou de
organizações sociais particulares, em termos de transformações de identidades
de gênero. Os socialistas utópicos na França e na Inglaterra, nos anos 1830 e
1840, conceberam seus sonhos de um futuro harmonioso em termos das naturezas
complementares dos indivíduos, ilustradas pela união do homem e da mulher, o
"indivíduo social" .53 Os anarquistas europeus eram conhecidos por sua recusa
das convenções do casamento burguês mas também por suas visões de um mundo
no qual a diferença sexual não implicava hierarquia.
Trata-se de exemplos de conexões explícitas entre gênero e poder, mas eles
não são mais que uma parte da minha definição de gênero como uma forma
primária de dar significado às relações de poder. Com freqüência, a atenção
dada ao gênero não é explícita, mas constitui, não obstante, uma parte crucial da
organização da igualdade e da desigualdade. As estruturas hierárquicas dependem
de compreensões generalizadas das assim chamadas relações naturais entre
homem e mulher. No século XIX, o conceito de classe dependia do gênero para
sua articulação. Quando, por exemplo, na França, os reformadores burgueses
descreviam os trabalhadores em termos codi ficados como femininos
(subordinados, fracos, sexualmente explorados, como as prostitutas), os líderes
trabalhadores e socialistas respondiam insistindo na posição masculina da classe
trabalhadora (produtores, fortes, protetores de suas mulheres e crianças). Os

91
tennos desse discurso não se referiam explicitamente ao gênero, mas eram
reforçados por referências a ele. A "codificação" generificada de certos tennos
estabelecia e "naturalizava" seus significados. Nesse processo, definições nor­
mativas de gênero, historicamente específicas (e tomadas como dadas) eram
reproduzidas e incorporadas na cultura da classe trabalhadora francesa. 54
O tema da guerra, da diplomacia e da alta política surge com freqüência
quando os/as historiadores/as da história política tradicional põem em questão a
utilidade do gênero para seu trabalho. Mas, também aqui, devemos olhar para
além dos atores e do valor literal de suas palavras. As relações de poder entre
nações e a posição dos sujeitos coloniais têm sido compreendidas (e então
legitimadas) em termos das relações entre homem e mulher. A legitimação da
guerra - sacrificar vidas de jovens para proteger o Estado - tomou fonnas
diversificadas, desde o apelo explícito à virilidade (a necessidade de defender
mulheres e crianças que de outro modo seriam vulneráveis), até à crença no
dever que teriam os filhos de servir a seus dirigentes ou ao rei (seu pai), e ainda
as associações entre a masculinidade e o poderio naciona1.55 A alta política é,
ela própria, um conceito generificado, pois estabelece sua importância crucial e
seu poder público, suas razões de ser e a realidade de existência de sua autoridade
superior, precisamente às custas da exclusão das mulheres do seu funcionamento.
O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem
sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao signifi­
cado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece. Para proteger o
poder político, a referência deve parecer certa e fixa, fora de toda construção
humana, parte da ordem natural ou divina. Desta maneira, a oposição binária e
o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio significado
de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema
inteiro.
Se as significações de gênero e de poder se constroem reciprocamente, como
as coisas mudam? De um ponto de vista geral, a resposta é que a mudança pode
ser iniciada em muitos lugares. As revoltas políticas de massa que lançam velhas
ordens no caos e fazem surgir novas podem revisar os termos (e por isso a
organização) do gênero na sua busca de novas fonnas de legitimação. Mas elas
podem não o fazer; noções antigas de gênero têm também servido para validar
novos regimes. 56 Crises demográficas, causadas pela fome, pestes ou guerras,
podem ter colocado em questão visões nonnativas de casamento heterossexual
(como foi o caso em certos meios e certos países no correr dos anos 1 920); mas
elas igualmente provocaram políticas pró-natalistas que insistiam na importância
exclusiva d as funções maternais e reprodutoras das mulheres. 57 Padrões
cambiantes de emprego podem levar a novas estratégias matrimoniais e a dife­
rentes possibilidades de construção de subjetividades, mas eles também podem
ser vividos como novas arenas de atividade para filhas e esposas obedientes.58
A emergência de novos tipos de símbolos culturais pode tornar possível a re-

92
interpretação ou, mesmo, a reescrita da narrativa edipiana, mas ela pode também
servir para reatualizar esse terrível drama em termos ainda mais eloqüentes.
São os processos políticos que vão determinar qual resultado prevalecerá -
político no sentido de que atores diferentes e significados diferentes lutam entre
si para assegurar o controle. A natureza desse processo, dos atores e de suas
ações, só pode ser determinada de forma específica, no contexto do tempo e do
espaço. Nós só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos
que "homem" e "mulher" são, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordan­
tes. Vazias, porque não têm nenhum significado último, transcendente. Trans­
bordantes, porque mesmo quanto parecem estar fixadas, ainda contêm dentro
delás definições alternativas, negadas ou suprimidas.
Num certo sentido, a história política tem sido jogada no terreno do gênero.
Trata-se de um terreno que parece fixo, mas cujo significado é contestado e está
em fluxo. Se tratamos a oposição entre homem e mulher como problemática e
não como conhecida, como algo que é contextualmente definido, repetidamente
construído, então devemos constantemente perguntar não apenas o que está em
j ogo em proclamações ou debates que invocam o gênero para explicar ou
justificar suas posições, mas também como compreensões implícitas de gênero
estão sendo invocadas ou reinscritas. Qual é a relação entre as leis sobre as
mulheres e o poder de Estado? Por que (e desde quando) as mulheres são invi­
síveis como sujeitos históricos, ainda que saibamos que elas participaram de
grandes e pequenos eventos da história humana? O gênero legitimou a emergência
de carreiras profissionais?59 Para citar o título de um artigo recente da feminista
francesa Luce Irigaray, o suj eito da ciência é sexuado?60 Qual é a relação entre
a política estatal e a descoberta do crime de homosexualidade?61 Como as insti­
tuições sociais incorporaram o gênero nos seus pressupostos e nas suas organi­
zações? Houve, em algum momento, conceitos de gênero verdadeiramente i­
gualitários sobre os quais fossem projetados ou mesmo fundados sistemas
políticos?
A exploração dessas questões fará emergir uma história que oferecerá no­
vas perspectivas sobre velhas questões (como, por exemplo, é imposto o poder
político, qual é o impacto da guerra sobre a sociedade), redefinirá velhas questões
em novos termos (introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a
sexualidade no estudo da economia e da guerra), tornará as mulheres visíveis
como participantes ativas e criará uma distância analítica entre a linguagem
aparentemente fixa do passado e nossa própria terminologia. Além disso, esta
nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre atuais estratégias
políticas feministas e o futuro (utópico), pois ela sugere que o gênero deve ser
redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e
social que inclua não somente o sexo, mas também a classe e a raça.

93
Notas

1 . Oxford English Dictionary (Oxford University Press, 1 96 1 ) 4.

2. E . Littré, Dictionnaire de la langue française (Paris, 1 876).

3. Raymond Williams, Keywords (Nova York: Oxford University Press, 1 983), p.285.

4. Natalie Zemon Davis, "Women's History in Transition: The European Case", Femi­
nist Studies ( 1 975-76) 3 : 90.
5 . Ann D. Gordon, Mari Jo Buhle e Nancy Shrom Dye, "The problem of Women 's
History", in Berenice Carrol , ed., Liberating Women s History (Urbana: University of
Illinois Press), p. 89.

6. O melhor e mais sutil exemplo é o de Joan Kelly, "The Doubled Vision of Feminist
Theory", em seu Women, History and TheOly (Chicago: University of Chicago Press,
1 984), pp.5 1 -64, especialmente p.6 1 .

7 . Para um argumento contra o uso de "gênero" para enfatizar o aspecto social da diferença
sexual, veja Moira Gates, "A Critique of the SexJGender Distinction", in J. Allen e P.
Patton,eds., Beyond Marxism? (Leichardt, N.S.W.: Intervention Publications, 1 985)
pp. 1 43 -60. Concordo com seu argumento de que a distinção sexo/gênero atribui uma
determinação autônoma ou transparente ao corpo, ignorando o fato de que aqui l o que
sabemos sobre o corpo constitui conhecimento culturalmente produzido.

8.Para uma diferente caracteri zação da análise feminista, veja Linda J. Nicholson, Gen­
der and history: The limits of Social Theory in the Age of the Family (Nova York:
Co1umbia University Press, 1 986).

9. Mary O'Brien, The Politics of Reproduction (Londres: Routledge and Kegan Paul,
1 9 8 1 ), pp.8. 1 5 , 46.

1 0. Shul amith Firestone, The Dialectic of Sex ( Nova York: Bantam Books, 1 970). A
frase "amarga amardilha" é de O'Brien, Politics of Reproduction, p. 8 .

l I . Catherine McKinnon, "Femininism, Marxism, Method, and State: A n Agenda for


Theory", Signs ( 1 982) 7 : 5 1 5 , 54 1 .
1 2 . Ibid., pp.54 1 , 543.

1 3 . Para uma interessante discussão dos pontos fortes e dos limites do termo "patriarca­
do",veja o debate entre as historiadoras Sheila Rowbotham, Sally A1exander e Barbara
Taylor in Raphael Samuel, ed., People s History and Socialist Theory (Londres:
Rout1edge and Keagan Paul, 1 9 8 1 ), pp. 363-73.

14. Friedrich Engels, The Origins ofthe Family, Private Property, and the State ( 1 884;
reimp., Nova York: International Publishers, 1 972).

1 5. Heidi Hartmann, "Capitalism, Patriarchy and 10b Segregation by Sex", Sings ( 1 976)
I : 1 68. "The Unhappy Marriage of marxismo and Feminism: Towards a more Pro­
gressive Union", Capital and Class ( 1 979) 8 : 1 -3 3 ; "The Family as the Locus of
Gender, Class, and Political Struggle: The Example of Housework", Sings ( 1 98 1 )
6 : 3 66-94.

1 6 . Discussões sobre o feminismo marxista incluem: Zillah Eisenstein, Capitalist Patri­


archy and the Case for Socialist Feminism (Nova ork: Longman , 1 98 1 ) ; A. Kuhn,
"Structures of Patriarchy and Capital in the Family", in A. Wolpe, eds., Feminism
and Materialism: Women and Modes ofProductioll (Londres: Routledge and Kegan

94
Paul, 1978); Rosalind Coward, Patriarchal Precedents (Londres: Routledge and
Kegan Paul, 1983); Hilda Scott, Does Socialism Liberate Women? Experiencesfrom
Eastern Europe (Boston: Beacon Press , 1974); Jane Humphries, "Working Class
Family, Women ' s Liberation and Class Struggle: The Case of Nineteenth-Century
British History," Review of Radical Political Economics ( 1977) 9 : 25-4 1 ; Jane
Humphries , "Class Struggle and the Persistence of the Working Class Family", Cam­
bridge Journal of Economics ( 1971) 1 :24 1-58; e vej a o debate sobre o trabalho de
Humphries em Rewiew of Radical Political Economics ( 1980) 12:76-94.

17. Kelly, "Doubled Vision of Feminist Theory" , p.6 1.


18. Ann Snitow, Christine Stansell e Sharon Thompson, eds., Powers of Desire: The
Politics of Sexuality (Nova York: Monthly Review Press, 1983).
19. Ellen Ross e Rayna Rapp, "Sex and Society: A Research Note from Social History
and Anthropology", in Powers of Desire,p. 53.

20. "Introduction ", Powers of Desire, p. 12; e Jessica Benjamin, "Master and Slave: The
Fantasy of Erotic Domination", Powers of Desire, p. 297.

21. Johanna Brenner e Maria Ramas, "Rethinking Women 's Oppression", New Left Re­
view ( 1984) 144:33-7 1; Michele Barrett, "Rethinking Women's Oppression: A Re­
ply to Brenner and Ramas", New left Review ( 1984) 146: 123-28; Angela Weir e
Elizabeth Wilson, 'lhe British Women 's Movement", New Left Review ( 1984)
148:74- 103 ; Michele B arrett, "A Reponse to Weir and Wilson", New Left Review
( 1985) 150: 143-47; Jane Lewis, "The Debateon Sex and Class", New Left Review
( 1985) 149: 108-20. See also Hugh Armstrong e Pat Armstrong, "Beyond Sexless
Class and Classless Sex: Towards Feminist Marxism", Studies in Political Economy
( 1983) 10:7-44; Hugh Armstrong e Pat Armstrong, "Comments: More on Marxist
Feminism", Studies in Political Economy ( 1984) 1 5 : 179-84; e Jane Jenson, "Gender
and Reproduction: Or, Babies and the State" , trabalho inédito, junho 1985, pp. I -7.

22. Para formulações teóricas iniciais, veja Papers on Patriarchy: Conference, London
76 (Londres: sem editora, 1976). Sou grata a Jane Caplan por me contar sobre a
experiência dessa publicação e por sua disposição a me emprestar seu exemplar e
por partilhar suas idéias sobre isso comigo. Para a posição psicanalítica, veja Sally
Alexander, "Women, Class and Sexual Difference", History Workshop ( 1984) 17: 125-
35. Em seminários na Universidade de Princeton, no começo de 1986, Juliet Mitchell
pareceu retornar a uma ênfase na prioridade das análises materialistas do gênero.
Para uma tentativa de ir além do impasse teórico do feminismo marxista, veja Cow­
ard, Patriarchal Precedents. Veja também o brilhante esforço americano nessa direção
feito pela antropóloga Gayle Rubin, "The Traffic in Women: Notes on the Political
Economy of Sex", in Rayna R. Reiter, ed., Towards an Anthropology of Women
(Nova York: Monthly Review Press, 1975), pp. 167-68.

23. Nancy Chodorow, The Reproduction ofMothering: Psychoanalysis and the Sociology
of Gender (Berkeley : University 01' California Press, 1978), p. 169.
24. "Minha descrição sugere que essas questões relacionados ao gênero podem ser
influenciadas durante o período do complexo de Édipo, mas elas não são seu único
foco ou efeito. A negociação dessas questões ocorre no contexto de processos mais
amplos de relação com o objeto e com o ego. Esses processos mais amplos têm igual
influência sobre a formação da estrutura psíquica e sobre a vida psíquica e os modos
relacionais de homens e mulheres. Eles explicam os diferentes modos de identificação

95
e orientação em relação aos objetos heterossexuais, para as questões edipianas mais
assimétricas que a psicanálise descreve. Esses efeitos tal como os efeitos edipianos
mais tradicionais, surgem da organização assimétrica da maternidade/paternidade,
com o papel da mãe como a figura primária e o distanciamento tipicamente maior do
pai e seu investimento na socialização, especialmente nas áreas que dizem respeito à
tipificação de gênero". Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering, p. 1 66.
Denise Riley, War in the Nursery (Londres: Virago, 1984). É importante observar
que existem diferenças de interpretação e de abordagem entre Chodorow e os/as
téoricos/as britânicos/as da relação do objeto que seguem o trabalho de D. W. Winicott
e de Melanie Klein. A abordagem de Chodorow pode ser caracterizada, de uma
forma mais apropriada, como uma teoria mais sociológica ou sociologizada, mas é a
lente dominante através da qual a teoria da relação do objeto tem sido vista pelas
feministas americanas. Sobre a história da teoria britância da relação do objeto na
formulação de políticas sociais, veja Denise Riley, War in the Nursery (Londres:
Vi rago, 1984).
25. Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, eds., Jacques Lacan and the Ecole Freudienne
(Nova York: Norton, 1983); Alexander, "Women, Class and Sexual Difference".
26. Teresa de Laurentis, Alice Doesn 't: Feminism, Semiotics, Cinema (Bloomington:
Indiana University Press, 1984), p. 159.
27. Alexander, "Women, Class and Sexual Difference", p. 135
28. E.M. Denise Riley, "Summary of Preamble to Interwar Feminist History Work",
trabalho inédito, apresentado no Pembroke Center Seminar, maio 1985, p. l l . O
argumento é mais plenamente desenvolvido no brilhante livro de Riley, "Am I That
Name?: Feminism and the Category of "Women " in History (Londres: Macmillan,
1988).
29. Carol Gilligan, In a Different Voice: Psychological Theory and Women's Develop­
ment (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982).
30. Críticas úteis do livro de Gilligan podem ser encontradas em: J.Auerbach et aI.,
"Commentary on Gilligan's In a different Voice", Feminist Studiews ( 1985) 1 1 : 149-
62, e "Women and Morality", um número especial de Social Research ( 1983) 50.
Meus comentários sobre a tendência dos/as historiadores/as a citarem Gilligan devem­
se à minha leitura de manuscritos inéditos e de propostas de pesquisa. Por isso, não
me parece justo citá-los aqui. Venho registrando essas referências há mais de cinco
anos, e elas são muitas e continuam crescendo.
3 1. Feminist Studies ( 1980) 6:26-64.
32. Para um discussão sucinta e acessível de Derrida, vej a Jonathan Culler, On
Deconstruction: Theory and Criticism after structuralism (Ithaca, N.Y. : Cornell
University Press, 1982),especialmente pp. 156-79. Veja também Jacques Derrida,
Of Grammatology, traduzido por Gayatri Chakravotry Spivak (Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1974); Jacques Derrida, Spurs ( Chicago; University of
Chicago Press, 1979); e a transcrição do Seminário do Pembroke, 1983 in Subjectsl
objects (outono 1984).
33. Cliffórd Geertz, "Blurred Gemes", American Scholar ( 1980) 49: 165-79.
34. Michelle Zimbalist Rosaldo, "The Uses and Abuses of Anthropology: Reflections
on Feminism and Cross-Cultural Understanding", Signs( l 980) 5:400.

96
3 5 . Michel Foucault, The History ofSexuality, vol . l , /ntroduction (Nova York: Vintage,
1 9 80); Michel Foucault, Power/Knowledge:Selected /nterviews and Other Writtings,
1972-1977 (Nova York: Pantheon, 1980).
36. Para esse argumento, veja Rubin, "The Traffic in Women", P. 199.
37. /bid., p. 189.
38. B iddy Martin, "Feminism, Criticism and Foucault", New German Critique ( 1 982)
27:3-30; Kathryn Kish Sklar, Catharine Beecher: A Study in American Domesticity
(New Haven : Yale University Press, 1 973); Mary A. Hill, Charlotte Perkins
Gilman: The Making of a Radical Feminist, /860-1896 (Philadelphia: Temple Uni­
versity Press, 1 980); Jacqueline Dowd Hall, Revo/t Against Chivalry: Jesse Daniel
Ames and the Women 's Campaign Against Lynching (Nova York: Columbia Uni ver­
sity Press, 1974.).
39. Lou Ratté, "Gender Ambivalence in the Indian Nationalist Movement", trabalho
inédito, Pembroke Center Seminar, primavera 1983 ; e Mrinalina Sinha, "Manli­
ness: A Victorian Ideal and the British Imperial Elite in India", trabalho inédito,
Department of History, State University of Nova York, S�ony Brook, 1984, e Sinha,
"The Age of Consent Act: The Ideal of Masculinity and Colonial Ideology in Late
1 9th Century Bengal", Proceedings, Eight Intemational Symposium on Asian stud­
ies, !986, pp. 1 l 99 - 1 2 14.
40. Pierre Bourdieu, Le Sens Pratique (Paris: Les Editions de Minuit, 1980), pp.246-47,
333-46 1 , especialmente p. 336.
4 1 . Maurice Godelier, "The Origins of Male Domination", New Left Review ( 1 98 1 )
1 27 : 1 7.
42. Gayatri Chakravorty Spivack, "Three Women's Texts and a Critique of Imperial­
ism", Criticai /nquiry ( 1 985) 1 2:243-46. Veja também Kate Millett, Sexual Politics
(Nova York: Avon, 1969). Um exame de como as referências femininas são tratadas
em textos importantes da filosofia ocidental pode ser encontrado em Luce Irigaray.
Speculum ofthe Other Woman, traduzido por Gillian C. Gill (Ithaca, N.Y. : Comell
University Press, 1985).
43. Natalie Zemon Davis, "Women on Top", em seu Society and Culture in Early Mo­
dem France (Stanford: Stanford University Press, 1975), pp. 1 24-5 1 .
44. Caroline Walker B ynum, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality ofthe High Middle
Ages (Berkeley: University of Califomia Press, 1982); Caroline Walker Bynum. "Fast,
Feast, and Flesh: The Religious Significance of Food to Medieval Women" Represen­
tations ( 1 985) l I : 1 -25; Caroline Walker Bynum, "Introduction", Religion and Gen­
der: Essays on theComplexity of SYlllbols (Boston: Beacon Press, 1987).
45. Veja, por exemplo, T. J. Clark, The Painting of Modem Life (Nova York: Knopf,
1985).
46. A diferença entre as/as teóricos/as estruturalistas e os/as pós-estruturalistas, em relação
a essa questão, está no grau de abertura ou fechamento das categorias de diferença.
Na medida em que os/as pós-estruturalistas não fixam um significado universal para
as categorias ou para a relação entre elas, sua abordagem parece levar com mais
facilidade ao tipo de análise histórica que estou defendendo.
47. Rachei Weil, "The Crown Has Fallen to the Distaff:gender and Politics in the Age 01'
Catherine de Medici", Criticai Mall'ix ,(Priceton Working Papers in Women's Stud-

97
ies) ( 1985), 1 . Veja também Louis Montrose, "Shaping Fantasies: Figurations of
Gender and Power in Elizabethan Culture", Represetations ( 1993) I :6 1-94; e Lynn
Hunt, "Hercules and the Radical Image in the French Revolution", Representations
( 1983) 1 :95- 1 17.
48. Edmund 8urke, Reflections on the French revolution ( 1 892; reimp., Nova York,
1909), pp. 208-9, 2 14. Veja Jean 80din, Six Books of the Commonwealth ( 1606;
reprint ed., Nova York: 8arnes and Noble, 1967); Robert Filmer, Patriarchia and
Other Political Works (Oxford: 8 . 8lackwell, 1949); e John Locke, Two Treatises of
Government ( 1690; reimp., Cambridge University Press, 1970). Veja também Eliza­
beth Fox-Genovese, "Property and Patriarchy in Classical 80urgeois Polítical Theory,
Radical History Review( 1 977) 4:36-59; e Mary Lyndon Shanley, "Marriage Con­
tract and Social Contract in Seventeenth Century English Political Thought", West­
em Political Quaterly ( 1979) 3:79-9 1.
49. Sou grata a 8ernard Lewis pela referência ao Islã. Michel Foucault, Histoire de la
Sexualité, Vol. 2, L 'usage des Plaisirs (Paris: Gallimard, 1984). Sobre as mulheres
na Atenas clássica, veja Marilyn Arthur, "'Liberated Woman' : The Classical Era,"
in Renate 8ridenthal e Claudia Koonz, eds., Becoming Visible: Women in European
Histol)' (80ston: Houghton Miffin, 1977), pp.75-78.
50. Citado em Roderick Phillips, "Women and Family 8reakdown in Eighteenth Cen­
tury France: Rouen 1780- 1 800", Social History ( 1976) 2:2 17.
5 1 . Sobre a Revolução Francesa, veja Dar1ene Gay Levy, Harriet Applewhite, e Mary
Durham Johnson, eds. , Women in Revolutionary, 1 789-1 795 (rbana: University of
Illinois Press, 1979), pp.209-20; sobre a legislação soviética, veja os documentos
em Rudolph Schlesinger, Changing A ltitudes in Soviet Russia: Documents and Read­
ing, Vol . l , The Family in the USSR (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1949), pp.
62-7 1 , 25 1-54; sobre a política nazista, veja Tim Mason, "Women in Nazi Germany,
History Workshop ( 1976) I :74 - 1 1 3 , e Tim Mason, "Women in Germany, 1925-40:
Family, Welfare and Work", History Workshop ( 1976) 2:5-32.
52. Elizabeth Wilson, Women and the Welfare State (Londres: Tavistock, 1977); Jane
Jenson, "Gender and Reproduction"; Jane Lewis, The Po/itics ofMotherhood: Child
and Maternal Welfare in England, 1900-1939 (Londres: Croom Helm, 1980); Mary
Lynn McDougall, "Protecting Infants: The French Campaign for Maternity Leaves,
1 890s- 19 13", French Historical Studies ( 19 1 3) 13 :79-105.
53. Sobre os utópicos ingleses, veja 8arbara Taylor, Eve and New Jerusalem(Nova York:
Pantheon, 1983).
54. Louis Devance, "Femme, famille, travail et Morale sexuelle dans I' idéologie de
1848", in Mythes et représentations de lafemme au X1Xe sii!cle (Paris: Champion,
1977); Jacques Ranciere e Pierre Vauday, "En allant à I' éxpo: L' ouvrier, sa femme et
1es machines", Les Révoltes Logiques ( 1975) 1 : 5-22.
55. Gayatri Chakravorty Spivak, "Draupadi' by Mahasveta Devi", Critical 1nquiry ( 1981)
8:38 1-40 1 ; Homi 8habha, "Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial
Discourse", outubro ( 1984) 28: 125-33; Karin Hausen, "The German Nation's Obliga­
tions to the Widowsof World War I", in Margaret R. Higonnet et aI., Behind the
Lines: Gender and two World Wars (New Haven: Yale University Press, 1987), pp.
126-40. Ken Inglis, "The Representation of Gender on Australian War Memoriais",
Daedalus ( 1987) 116:35-59.

98
56. Sobre a Revolução Francesa, veja Levy et aI., Women in Revolutionary Paris. Sobrea
Revolução Americana, veja Mary Beth Norton,Liberty 's Daughters: The Revolu­
tionary Experience 01American Women (Boston: Little, Brown, 1980); Linda Kerber,
Women 01 the Republic (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1980);
Joan Hoff-Wilson, "The Illusion of Change: Women and the American Revolution",
in Alfred Young, ed., The American Revolution: Explorations in the History 01Ameri­
can Radicalism (Dekalb: Northem Illinois University Press, 1976), pp. 383-446.
Sobre a Terceira República Francesa, veja Steven Hause, Women s Suffrage and
Social Politics in the French Third Republic (Princeton: Princeton University Press,
1 9 84). Um tratamento extremamente interessante de um caso recente pode ser
encontrado em Maxine Molyneux, "Mobilization Without Emancipation? Women's
Interests, the State and Revolution in Nicaragua", Feminist Studies ( 1985) 11:227-
54.
57. Sobre a questão do pró-natalismo, veja Riley, War in the nursery, e Jenson, "Gender
and Reproduction". Sobre os anos 20, veja os ensaios contidos em Stratégies des
Femmes (Paris: Editions Tierce, 1984).
58. Para interpretações variadas do impacto do novo trabalho sobre as mulheres, veja
Louise A. Tilly e Joan W. Scott, Women, Work and Family (Nova York: Holt, Rinehart
and Winston, 1 978: Methuen, 1987); Thomas Dublin, Women at Work: The Trans­
lormation 01 Work and Community in Lawell, Massachusetts, 1826-1860 (Nova
York: Columbia University Press, 1979); e Edward Shorter, The Making olthe Modem
Family (Nova York: Basic Book, 1975).
59. Veja, por exemplo, Margaret Rossiter, Women Scientists in America: Struggles and
Strategies to 1914 (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1 982).
60. Luce lrigary, "Is the Subject of Science Sexed?" Cultural Critique ( 1985) 1 :73-88.
6 1 . Louis Crompton, Byron and Greek Lave: Homophobia in Nineteenth-Century En­
gland (Berkeley: University of Califomia Press, 1985). Essa questão é tratada em
Jeffrey Weeks, Sex, Politics and Society: The Regulation 01 Sexuality Since 1800
(Londres: Leyman, 198 1 ).

Publicação em inglês:
SCOTT, Joan. Gender on the Politics 01History. New York: Columbia University Press,
1988 (p.28-50).
Publicação em francês:
Les Cahiers du Grif. n.37/38. Paris: Editions Tierce, 1988

Tradução de Guacira Lopes Louro, versão em francês. Revisão de Tomaz


Tadeu da Silva, de acordo com o originai em inglês.

Joan Scott é professora do Institute for Advanced Study in Princeton.

99
MULHERES EM MOVIMENTO

Mulheres em movimento
SUELI CARNEIRO

de mulheres do Brasil é um dos mais respeitados do mundo

O
MOVIMENTO
e referência fundamental em certos temas do interesse das mulheres no
plano internacional. É também um dos movimentos com melhor perfor-
mance dentre os movimentos sociais do país. Fato que ilustra a potência deste
movimento foram os encaminhamentos da Constituição de 1988, que contem-
plou cerca de 80% das suas propostas, o que mudou radicalmente o status jurídi-
co das mulheres no Brasil. A Constituição de 1988, entre outros feitos, destituiu
o pátrio poder.
Esse movimento destaca-se, ainda, pelas decisivas contribuições no proces-
so de democratização do Estado produzindo, inclusive, inovações importantes
no campo das políticas públicas. Destaca-se, nesse cenário, a criação dos Conse-
lhos da Condição Feminina – órgãos voltados para o desenho de políticas públi-
cas de promoção da igualdade de gênero e combate à discriminação contra as
mulheres. A luta contra a violência doméstica e sexual estabeleceu uma mudança
de paradigma em relação às questões de público e privado. A violência doméstica
tida como algo da dimensão do privado alcança a esfera pública e torna-se objeto
de políticas específicas. Esse deslocamento faz com que a administração pública
introduza novos organismos, como: as Delegacias Especializadas no Atendimen-
to à Mulher (Deams), os abrigos institucionais para a proteção de mulheres em
situação de violência; e outras necessidades para a efetivação de políticas públicas
voltadas para as mulheres, a exemplo do treinamento de profissionais da segu-
rança pública no que diz respeito às situações de violência contra a mulher, entre
outras iniciativas. De acordo com Suárez e Bandeira:
Apesar de suas imperfeições, as Deams são instituições governamentais re-
sultantes da constituição de um espaço público, onde se articulou o discurso
relativo aos direitos das mulheres de receberem um tratamento eqüitativo
quando se encontram em situações de violências denunciadas. Diferente-
mente das outras delegacias, as Deams, evitam empregar métodos de con-
dutas violentas, promovendo a negociação das partes em conflito. A grande
particularidade dessas instituições policiais é admitirem a mediação como
um recurso eficaz e legítimo. Nesse sentido, não é demais lembrar que a
prática da mediação é crescentemente considerada um recurso valioso na
administração dos conflitos interpessoais, na medida em que diminui o risco
de os conflitos administrados terem desdobramentos violentos1 .
No campo da sexualidade, “a luta das mulheres para terem autonomia so-
bre os seus próprios corpos, pelo exercício prazeroso da sexualidade, para pode-

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 117


SUELI CARNEIRO

rem decidir sobre quando ter ou não filhos, resultou na conquista de novos
direitos para toda a humanidade: os direitos sexuais e reprodutivos”2 .
A desigualdade sofrida pelas mulheres em relação ao acesso ao poder foi
enfrentada por diversas campanhas das quais resultaram a aprovação de projeto
de lei, de iniciativa da então deputada Marta Suplicy, de reserva de 20% das le-
gendas dos partidos para as candidatas mulheres.
Embora as desigualdades salariais significativas entre homens e mulheres
que ocupam as mesmas funções permaneçam, é inegável que a crítica feminista
sobre as desigualdades no mercado de trabalho teve papel importante na intensa
diversificação, em termos ocupacionais, experimentada pelas mulheres nas últi-
mas três décadas. Um dos orgulhos do movimento feminista brasileiro é o fato
de, desde o seu início, estar identificado com as lutas populares e com as lutas
pela democratização do país.
São memoráveis, para as feministas, o protagonismo que tiveram nas lutas
pela anistia, por creche (uma necessidade precípua das mulheres de classes popula-
res), na luta pela descriminalização do aborto que penaliza, inegavelmente, as mulhe-
res de baixa renda, que o fazem em condições de precariedade e determinam em
grande parte os índices de mortalidade materna existentes no país; entre outras ações.
Porém, em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da
sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro
da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A conseqüência disso foi a
incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo
feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e
os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além
do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.
As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade
brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o
sexismo, vêm exigindo a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminis-
mo. E o elemento determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente mo-
vimento de mulheres negras sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil.
Enegrecendo o feminismo
Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar
a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro.
Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clás-
sica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática po-
lítica para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em socieda-
des multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma
agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e
intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge
da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por
fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil.

118 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulhe-


res em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a
partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam proces-
sos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de
mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem deman-
das específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob
a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que
definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo,
paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o pro-
tagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades.
Isso é o que determina o fato de o combate ao racismo ser uma prioridade política
para as mulheres negras, assertiva já enfatizada por Lélia Gonzalez, “a tomada de
consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial”3 .
A fortiori, essa necessidade premente de articular o racismo às questões
mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a “variável” racial pro-
duziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina
estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos
homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racial-
mente dominante (das mulheres brancas).
Em face dessa dupla subvalorização, é válida a afirmação de que o racismo
rebaixa o status dos gêneros. Ao fazê-lo, institui como primeiro degrau de
equalização social a igualdade intragênero, tendo como parâmetro os padrões de
realização social alcançados pelos gêneros racialmente dominantes. Por isso, para
as mulheres negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre
homens e mulheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobili-
dade social, uma vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais,
encontram-se abaixo das mulheres brancas.
Nesse sentido, racismo também superlativa os gêneros por meio de privilé-
gios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos. Institui para
os gêneros hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis numa competição igua-
litária. A recorrência abusiva, a inflação de mulheres loiras, ou da “loirização”, na
televisão brasileira, é um exemplo dessa disparidade.
A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das mulhe-
res dos grupos subalternizados introduzem no feminismo é resultado de um
processo dialético que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres em
geral como novos sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversi-
dade e desigualdades existentes entre essas mesmas mulheres.
Lélia Gonzalez faz sínteses preciosas que balizam a discussão: a primeira
delas diz respeito às contradições que historicamente marcaram a trajetória das
mulheres negras no interior do Movimento Feminista Brasileiro, e a segunda
refere-se à crítica fundamental que a ação política das mulheres negras introdu-
ziu no feminismo e que vem alterando significativamente suas percepções, com-

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 119


SUELI CARNEIRO

portamentos e instituições sociais. De acordo com González, as concepções do


feminismo brasileiro:
padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés
eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão
de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar
os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mu-
lheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e explo-
ração que estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-
se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de
branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da rea-
lidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistên-
cias e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica
de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo
desse tipo de feminismo 4.
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente
em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no
interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que
o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente
entre negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidarie-
dade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem
que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desi-
gualdades raciais na agenda dos Movimentos Negros Brasileiros.
Essas avaliações vêm promovendo o engajamento das mulheres negras nas
lutas gerais dos movimentos populares e nas empreendidas pelos Movimentos
Negros e Movimentos de Mulheres nos planos nacional e internacional, buscan-
do assegurar neles a agenda específica das mulheres negras. Tal processo vem
resultando, desde meados da década de 1980, na criação de diversas organiza-
ções de mulheres negras que hoje se espalham em nível nacional; de fóruns espe-
cíficos de discussões programáticas e instâncias nacionais organizativas das mu-
lheres negras no país a partir dos quais os temas fundamentais da agenda feminis-
ta são perscrutados pelas mulheres negras à luz do efeito do racismo e da discri-
minação racial. Nesse sentido, apontamos a seguir os principais vetores que
nortearam as propostas do movimento, o que resultou em mudanças efetivas na
ótica feminista.
Mercado de trabalho
É sobejamente conhecido a distância que separa negros e brancos no país
no que diz respeito à posição ocupacional. O movimento de mulheres negras
vem pondo em relevo essa distância, que assume proporções ainda maiores quando
o tópico de gênero e raça é levado em consideração.
Nesse sentido, é mister apontar que os ganhos obtidos pela luta feminista
no mercado de trabalho. Malgrado se constituírem em grandes avanços, não

120 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

conseguiram dirimir as desigualdades raciais que obstaculizam maiores avanços


para as mulheres negras nessa esfera. Sendo assim, as propostas universalistas da
luta das mulheres não só mostram a sua fragilidade, como a impossibilidade de as
reivindicações que daí advêm, tornarem-se viáveis para enfrentar as especificidades
do racismo brasileiro.
Em relação às mudanças na estrutura ocupacional do país, Carlos Hasenbalg
e Nelson do Valle Silva afirmavam, na década de 1980, que
Em definitivo, as mulheres não só tendem a conseguir uma melhor distribui-
ção na estrutura ocupacional, como também abandonam os setores de
atividade que absorvem a força de trabalho mais qualificada e pior remune-
rada, para ingressar em proporções crescentes na indústria e nos serviços
modernos. As tendências observadas permitem sugerir, de maneira provisó-
ria, a possibilidade de uma diferenciação dos mercados de trabalho para as
mulheres: enquanto as mulheres oriundas das classes populares, com baixos
níveis de escolaridade, tendem a concentrar-se na prestação de serviços e nos
empregos ligados à produção na indústria, as mulheres de classe média, do-
tadas de níveis mais elevados de educação formal, dirigem-se para os serviços
de produção e de consumo coletivo5 .
Em outros estudos, como o de Márcia Lima sobre Trajetória educacional e
realização sócio-econômica das mulheres negras, torna-se evidente que
o fato de 48% das mulheres pretas [...] estarem no serviço doméstico é sinal
de que a expansão do mercado de trabalho para essas mulheres não signifi-
cou ganhos significativos. E quando esta barreira social é rompida, ou seja,
quando as mulheres negras conseguem investir em educação numa tentativa
de mobilidade social, elas se dirigem para empregos com menores rendi-
mentos e menos reconhecidos no mercado de trabalho6 .
Os diferentes retornos auferidos pelas mulheres de uma luta que se preten-
dia universalizante tornava insustentável o não reconhecimento do peso do racis-
mo e da discriminação racial nos processos de seleção e alocação da mão-de-obra
feminina, posto que as desigualdades se mantêm mesmo quando controladas as
condições educacionais. Em síntese, o quesito “boa aparência”, um eufemismo
sistematicamente denunciado pelas mulheres negras como uma forma sutil de
barrar as aspirações dos negros, em geral, e das mulheres negras, em particular,
revelava em números, no mercado de trabalho, todo o seu potencial discricionário.
A questão política que decorre dessa realidade será a exigência de que o
combate ao racismo, à discriminação racial e aos privilégios que ele institui para
as mulheres brancas seja tomado como elemento estrutural do ideário feminista;
um imperativo ético e político que reflita os anseios coletivos da luta feminista de
representar as necessidade e os interesses do conjunto de mulheres.
No entanto, se é crescente no âmbito do movimento feminista brasileiro a
compreensão da imperiosidade do combate às desigualdades raciais de que pade-
cem as mulheres negras no mercado de trabalho, permanece no senso comum, e

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 121


SUELI CARNEIRO

mesmo na percepção de importantes formadores de opinião, as visões consagra-


das pelo mito da democracia racial, tal como demonstrado no artigo da juíza
federal Mônica Sifuentes “Direito e justiça” publicado no Jornal Correio
Braziliense, de 18 de fevereiro de 2002. Na oportunidade, a juíza argumenta
contra a adoção das políticas de cotas para negros. Peremptoriamente, ela diz:
[...] para nós mulheres não houve necessidade de se estipular quotas. Bastou a
concorrência em igualdade de condições com os homens para que hoje fôssemos
maioria em todos os cursos universitários do país.
Em resposta a esse artigo, reagimos ao pronome nobre utilizado pela juíza,
com o artigo “Nós?”, publicado no mesmo jornal em 22 de fevereiro de 2002,
no qual fazíamos os seguintes questionamentos:
O argumento da juíza não leva em conta o fato de os homens entrarem mais
cedo do que as mulheres no mercado de trabalho com prejuízos para a sua
permanência no sistema educacional e que apesar disso, os estudos recentes
sobre a mulher no mercado de trabalho revelam que elas precisam de uma
vantagem de cinco anos de escolaridade para alcançar a mesma probabilida-
de que os homens têm de obter um emprego no setor formal. Para as mu-
lheres negras alcançarem os mesmos padrões salariais das mulheres brancas
com quatro a sete anos de estudos elas precisam de mais quatro anos de
instrução, ou seja, de oito a onze anos de estudos. Essa é a igualdade de
gênero e de raça instituídas no mercado de trabalho e o retorno que as mu-
lheres, sobretudo as negras, tem do seu esforço educacional7 .

Violência: os outros aspectos da questão


Em relação ao tópico da violência, as mulheres negras realçaram uma outra
dimensão do problema. Tem-se reiterado que, para além da problemática da vio-
lência doméstica e sexual que atingem as mulheres de todos os grupos raciais e
classes sociais, há uma forma específica de violência que constrange o direito à
imagem ou a uma representação positiva, limita as possibilidades de encontro no
mercado afetivo, inibe ou compromete o pleno exercício da sexualidade pelo pe-
so dos estigmas seculares, cerceia o acesso ao trabalho, arrefece as aspirações e
rebaixa a auto-estima.
Esses são os efeitos da hegemonia da “branquitude” no imaginário social e
nas relações sociais concretas. É uma violência invisível que contrai saldos nega-
tivos para a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade e sexua-
lidade destas. Tal dimensão da violência racial e as particularidades que ela assu-
me em relação às mulheres dos grupos raciais não-hegemônicos vem despertan-
do análises cuidadosas e recriação de práticas que se mostram capazes de cons-
truir outros referenciais. A historiadora e cineasta negra Beatriz Nascimento, em
seu belo artigo “A mulher negra e o amor”, salienta que:
Convivendo em uma sociedade pluriracial, que privilegia padrões estéticos
femininos como ideal de um maior grau de embranquecimento, (desde a

122 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

mulher mestiça até à branca), seu trânsito afetivo é extremamente limitado.


Há poucas chances para ela numa sociedade em que a atração sexual está
impregnada de modelos raciais, sendo ela representante da etnia mais sub-
metida. Sua escolha por parte do homem passa pela crença de que seja mais
erótica ou mais ardente sexualmente do que as demais, crença relacionada às
características do seu físico, muitas vezes exuberante. Entretanto, quando se
trata de um relacionamento institucional, a discriminação étnica funciona
como um impedimento, mais reforçado à medida que essa mulher alça uma
posição de destaque social [...] No contexto em que se encontra, cabe a essa
mulher a desmistificação do conceito de amor, transformando este em
dinamizador cultural e social (envolvimento na atividade política, por exem-
plo), buscando mais a paridade entre os sexos do que a “igualdade iluminista”.
Rejeitando a fantasia da submissão amorosa, pode surgir uma mulher preta
participante, que não reproduza o comportamento masculino autoritário, já
que se encontra no oposto deste, podendo, assim, assumir uma postura crí-
tica, intermediando sua própria história e seus ethos. Levantaria ela a propos-
ta de parcerias nas relações sexuais que, por fim, se distribuiria nas relações
sociais mais amplas8 .
A médica negra Regina Nogueira em seu artigo “Mulher negra e obesida-
de” questiona a tirania estética que o padrão branco hegemônico impôs a todas
as mulheres não-brancas e advoga um novo direito: “A mulher negra deve exigir
que sua imagem represente toda a diversidade de seus valores culturais”9 .
Saúde
Dentre as contribuições do feminismo negro, ocupa lugar privilegiado a
incorporação da temática da saúde e dos direitos reprodutivos na agenda da luta
anti-racista e o reconhecimento das diferenças étnicas e raciais nessa temática.
Nessa perspectiva, a luta pela inclusão do quesito cor, sobretudo nos siste-
mas de classificação da população, tem se constituído um desafio permanente e
objeto da ação política de aguerridas ativistas para as quais, como afirma a médi-
ca negra Fátima Oliveira:
[...] a compreensão da dimensão das diferenças e diferenciais raciais/étnicos,
da opressão de gênero e do racismo na manutenção, recuperação e perda da
saúde em sociedade classista. As controvérsias são tantas e tamanhas que o
quesito cor – a identificação racial – é um problema/desafio nos meios cien-
tíficos, entre profissionais, serviços, formuladores e implementadores das
políticas de saúde. [...] Os argumentos a favor e contra o preenchimento da
cor das pessoas são inúmeros. As acusações de posturas racistas partem de
ambos os lados. Quando o item existe nos formulários, a negligência no seu
preenchimento é regra. Mesmo quando preenchido por autodeclaração ou
por observação do(a) profissional, não se sabe muito bem nem para que
serve e nem o que fazer com ele. Em geral, os serviços não o consideram um
dado epidemiológico essencial10 .

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 123


SUELI CARNEIRO

A esterilização ocupou lugar privilegiado durante anos na agenda política


das mulheres negras que produziram campanhas contra a esterilização de mulhe-
res em função dos altos índices que esse fenômeno adquiriu no Brasil, funda-
mentalmente entre mulheres de baixa renda (a maioria das mulheres que são
esterilizadas o fazem porque não encontram no sistema de saúde a oferta e diver-
sidade dos métodos contraceptivos reversíveis que lhes permitiriam não ter de
fazer a opção radical de não poder mais ter filhos). Esse tema foi, também, objeto
de proposições legislativas, numa parceria entre parlamentares e ativistas feminis-
tas que culminou no projeto de Lei nº 209/91, que regulamentou o uso da
esterilização.
Outro tema de relevância na luta das mulheres negras na área da saúde é a
implantação de um programa de atenção à anemia falciforme, que consiste “numa
anemia hereditária e constitui a doença genética mais comum da população ne-
gra”. No Brasil, é “uma questão de saúde pública”11, e as ações por políticas pú-
blicas para a atenção aos portadores dessa doença de ativistas negras e outros
atores da área da saúde resultaram no Programa de Anemia Falciforme do Mi-
nistério da Saúde – PAF-MS.
Apesar da importante conquista que o PAF representa para o enfrentamento
da anemia falciforme, somente no Estado de Minas Gerais esse programa foi
adotado integralmente, havendo ainda iniciativas esparsas em alguns municípios
de outros Estados do país. A doença atinge, segundo as estimativas, cerca de 10%
da população brasileira, notadamente negros ou seus descendentes.
Uma nova área de pesquisa e intervenção política – a da bioética – vem
sendo desenvolvida quase que solitariamente por Fátima de Oliveira numa pers-
pectiva feminista e anti-racista, cujas preocupações fundamentais são:
as interfaces dos novos saberes das biociências, em particular da genética,
sobretudo os oriundos dos megaprojetos da genética humana (Projeto
Genoma Humano – PGH e Projeto da Diversidade do Genoma Humano –
PDGH) e a utilização distorcidas deles pelas teorias racistas12 .
Oliveira aponta os riscos de desenvolvimento de práticas eugenistas nas
pesquisas com seres humanos. E, sobretudo, convoca feministas e anti-racistas
para atuarem nos fóruns em que esses temas são tratados, pois considera que:
Na atualidade, bioeticistas e fóruns de bioética, majoritariamente masculi-
nos e brancos, são os setores da sociedade que adquiriram legitimidade, no
mundo, perante legisladores e governos. Movimentos sociais com tradição
de luta como o feminista, o anti-racista e da juventude ainda estão fora dos de-
bates e das decisões na área de bioética. O que é preocupante, pois a bioética
aborda assuntos que dizem respeito à toda a sociedade, tais como: os temas
dos direitos reprodutivos (concepção, contracepção, esterilização, aborto.
Infertilidade e NTRc – Novas Tecnologias Reprodutivas conceptivas), saú-
de pública, sexualidade, doentes terminais, eutanásia e manipulação ge-
nética13 .

124 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

Meios de comunicação
Os meios de comunicação vêm se constituindo em um espaço de interfe-
rência e agendamento de políticas do movimento de mulheres negras, pois a
naturalização do racismo e do sexismo na mídia reproduz e cristaliza, sistematica-
mente, estereótipos e estigmas que prejudicam, em larga escala, a afirmação de
identidade racial e o valor social desse grupo. Segundo Antonia Quintão
a exclusão simbólica, a não-representação ou distorções da imagem da mu-
lher negra nos meios de comunicação são formas de violência tão dolorosas,
cruéis e prejudiciais que poderiam ser tratadas no âmbito dos direitos hu-
manos14 .
Se partimos do entendimento de que os meios de comunicação não apenas
repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas tam-
bém se instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem no inte-
rior da sua lógica de produção os sistemas de representação, levamos em conta
que eles ocupam posição central na cristalização de imagens e sentidos sobre a
mulher negra. Muito tem se falado a respeito das implicações dessas imagens e
dos mecanismos capazes de promover deslocamentos para a afirmação positiva
desse segmento.
A presença minoritária de mulheres negras nas mídias, bem como a fixação
dessa presença em categorias específicas (a mulata, a empregada doméstica) foi
um dos assuntos mais explorados nesse aspecto.
A despeito de algumas mudanças, pois presenciamos gradativamente a pre-
sença de mulheres negras em espaços outros que não somente os de subserviên-
cia, consideramos que mudanças radicais ainda precisam ser efetivadas (temos,
atualmente, uma apresentadora negra no Fantástico, exibido pela Rede Globo,
as novelas passam a contar com personagens que ocupam posições de certo pres-
tígio e destaque). De acordo com os produtores dos meios, essa mudança refle-
te, igualmente, mudanças radicais na situação da mulher negra brasileira, que
não mais estão ocupando apenas posições subalternas.
Embora proceda sob certos aspectos, consideramos que essa afirmativa
possui uma conotação capciosa e perversa, que encobre as manobras de padrão já
estabelecidas pela mídia e que são encobertas por uma possível correlação com a
realidade. Esperamos que a mulher negra seja representada levando-se em conta
o espectro de funções e as habilidades que ela pode exercer, mesmo em condi-
ções econômicas adversas.
Nesse sentido, segundo Nilza Iraci15 , são ainda grandes os desafios na área
dos meios de comunicação e da imagem em prol da construção de um novo
imaginário da mulher negra nesse espaço, e, por extensão, nas instâncias de deci-
são política e na sociedade. Existe uma consciência crescente entre as mulheres
negras de que os processos relacionados à globalização e à nova ordem mundial
requerem novas formas de ação e, nesse sentido, tratar a comunicação como um

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 125


SUELI CARNEIRO

nexo de empoderamento tem sido fundamental para garantir-lhes uma represen-


tação positiva bem como a visibilização do processo de mobilização e de lutas.
As mulheres negras vêm atuando no sentido de não apenas mudar a lógica
de representação dos meios de comunicação de massa, como também da capaci-
tar suas lideranças para o trato com as novas tecnologias de informação, pois falta
de poder dos grupos historicamente marginalizados para controlar e construir
sua própria representação possibilita a crescente veiculação de estereótipos e
distorções pelas mídias, eletrônicas ou impressas.

Novas utopias e as novas agendas feministas


A conseqüência do crescente protagonismo das mulheres negras no interi-
or do Movimento Feminista Brasileiro pode ser percebido na significativa mu-
dança de perspectiva que a nova Plataforma Política Feminista adota. Essa Plata-
forma, proveniente da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras realizada
em 6 e 7 de junho de 2002, em Brasília, reposiciona a luta feminista no Brasil
nesse novo milênio, sendo gestada (como é da natureza feminina) coletivamente
por mulheres negras, indígenas, brancas, lésbicas, nortistas, nordestinas, urba-
nas, rurais, sindicalizadas, quilombolas, jovens, de terceira idade, portadoras de
necessidades especiais, de diferentes vinculações religiosas e partidárias... que se
detiveram criticamente sobre as questões mais candentes da conjuntura nacional
e internacional, nos obstáculos contemporâneos persistentes para a realização da
igualdade de gênero e os desafios e mecanismos para a sua superação tendo os
seguintes princípios como orientadores das análises e propostas:
• reconhecer a autonomia e a autodeterminação dos movimentos sociais de
mulheres;
• comprometer-se com a crítica ao modelo neoliberal injusto, predatório e
insustentável do ponto de vista econômico, social, ambiental e ético;
• reconhecer os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulhe-
res;
• comprometer-se com a defesa dos princípios de igualdade e justiça econômica
e social;
• reconhecer o direito universal à educação, saúde e previdência;
• comprometer-se com a luta pelo direito à terra e à moradia;
• comprometer-se com a luta anti-racista e a defesa dos princípios de eqüidade
racial-étnica;
• comprometer-se com a luta contra todas as formas de discriminação de gênero,
e com o combate a violência, maus-tratos, assédio e exploração de mulheres
e meninas;
• comprometer-se com a luta contra a discriminação a lésbicas e gays;
• comprometer-se com a luta pela assistência integral à saúde das mulheres e
pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos;

126 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

• reconhecer o direito das mulheres de ter ou não ter filhos com acesso de
qualidade à concepção e/ou contracepção;
• reconhecer o direito de livre exercício sexual de travestis e transgêneros;
• reconhecer a discriminalização do aborto como um direito de cidadania e
uma questão de saúde pública e reconhecer que cada pessoa tem direito as
diversas modalidades de família e apoiar as iniciativas de parceria civil registrada
[...] 16 .
Diz a feminista e cientista política norte-americana Nancy Fraser que a um
conceito amplo de gênero que incorpore a diversidade de femininos e feminis-
mos historicamente construídos, deve corresponder “um conceito de justiça tão
abrangente quanto, e que seja capaz de englobar igualmente a distribuição e o
reconhecimento”17 .
Nessa direção, como já apontamos no artigo citado anteriormente, a Plata-
forma Política Feminista que resulta da Conferência Nacional das Mulheres Bra-
sileiras representa o coroamento de quase duas décadas de luta pelo reconheci-
mento e incorporação do racismo, da discriminação racial e das desigualdades de
gênero e raça que eles geram. Tal concepção constitui-se em um dos eixos estru-
turais da luta das mulheres brasileiras. A Plataforma, ao incorporar esse princípio,
sela um pacto de solidariedade e co-responsabilidade entre mulheres negras e
brancas na luta pela superação das desigualdades de gênero e entre as mulheres
no Brasil. Redefine os termos de uma verdadeira justiça social no Brasil. Como
afirma Guacira César de Oliveira da AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras e
uma das integrantes da Comissão Organizadoras da Conferência:
reafirmamos que os movimentos de mulheres e feministas querem radicalizar
a democracia, deixando claro que ela não existirá enquanto não houver igual-
dade; que não haverá igualdade sem distribuição das riquezas; e não há dis-
tribuição sem o reconhecimento das desigualdades entre os homens e mu-
lheres, entre brancos e negros, entre urbanos e rurais, que hoje estruturam a
pobreza. Não almejam a mera inversão dos papéis, mas um novo marco civi-
lizatório18 .
Diz-nos Fraser ainda: “[...] situo lutas de gênero como uma das facetas de
um projeto político mais amplo que busque uma justiça democrática institucio-
nalizante, cruzando os múltiplos eixos da diferenciação social”19.
Nessa perspectiva, a Plataforma Política Feminista oferece à sociedade a
contribuição para uma sociedade democrática e socialmente justa. Sinaliza, clara-
mente, para a urgência de instituição de um novo marco civilizatório no qual são
colocados em questão a necessidade de avançar a democracia política:
A democracia política representativa – que tem no voto seu instrumento
básico de funcionamento – vigora no Brasil como se fosse a única prática le-
gítima de exercício de poder, apesar da forte crise de legitimidade de suas
instituições. [...] A democracia representativa ainda está impregnada dos perfis

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 127


SUELI CARNEIRO

racista, sexista e classista da sociedade brasileira, que consolidaram um poder


hegemônico de face masculina, branca e heterossexual, em que pesem as
diferenças político-ideológicas entre os partidos. Essa situação tem sido ain-
da agravada pela política liberal/conservadora vigente que, com seus mecanis-
mos de poder junto ao sistema econômico e ao sistema de comunicação de
massa, restringe as possibilidades de disputa política para muitos segmentos20 .
A crítica incide também sobre o Estado Democrático de Direito e Justiça
Social onde se aponta a concentração de riqueza, a dimensão de gênero e raça/
etnia das desigualdades e exclusão social:
a desigualdade cresce também através das atuais práticas fiscais, que favore-
cem a acumulação livre do capital e restringem o acesso à riqueza nacional
por parte da grande maioria da população, principalmente as mulheres ne-
gras e indígenas. (parágrafo 31)
E, fundamentalmente, em busca de um novo marco civilizatório, as mu-
lheres se posicionam claramente contra a ordem neoliberal:
Os movimentos brasileiros de mulheres opõem-se às políticas neoliberais e de
ajuste estrutural e reafirmam a necessidade de que o Estado desenvolva políticas
públicas afirmativas para a superação da pobreza, a geração de renda e emprego
e a garantia de bem-estar. (parágrafo 33)
O grande desafio é propor, articular e implementar propostas conseqüentes
que estejam afinadas com um projeto radical de superação desses problemas e
vislumbre novos ideais. Paulatinamente, o movimento de mulheres negras vem si-
nalizando para iniciativas fundamentais nas imbricações entre racismo e sexismo.
Nas últimas décadas o movimento de mulheres vem se firmando como sujeito
político ativo no processo brasileiro de democratização política e de mudança
de mentalidades. É nessa condição que convidamos toda a sociedade para
debater os entraves que, ainda nesse início de milênio, dificultam em nosso
país o estabelecimento da justiça social de gênero, de raça/etnia e de classe,
para todos as pessoas em todos os aspectos de suas vidas21. (parágrafo 11)
Essa articulação permanente das exclusões de gênero e raça determinadas
pelas práticas sexistas e racistas constituía um dos pré-requisitos fundamentais
para selar uma perspectiva de luta comum entre mulheres negras e brancas no
contexto da luta feminista.
O jornal Folha de S. Paulo assim noticiou o evento de lançamento da Plata-
forma Política Feminista em 6 de agosto de 2002 na OAB – São Paulo: “um
grupo de ONGs lançará hoje a Plataforma Política Feminista. O documento traz
propostas de interesse das mulheres para reforma agrária e meio ambiente e de
combate ao racismo”22.
Os conteúdos destacados pelo jornal são indicativos do impacto da pers-
pectiva das mulheres negras sobre a agenda feminista brasileira. O combate ao
racismo, antes questão periférica ou inexistente, torna-se um dos elementos es-

128 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

truturais da Plataforma Política Feminista. De igual maneira, as questões de


reforma agrária e meio ambiente sublinhadas pelo jornal são temas do interesse
das mulheres populares nas quais as mulheres negras estão diretamente imbricadas
pela prevalência da população negra nas áreas rurais do país. Some-se a isso a
conflituosa situação das comunidades remanescentes de quilombos em disputa
de suas terras ancestrais com empreendimentos agropecuários, madeireiros e
grilagens para fins de especulação imobiliária que operam para postergar a titulação
de suas terras um direito conquistado e reconhecido pelo artigo 68 da Constitui-
ção Federal.
Seguindo em frente...
Pensar a contribuição do feminismo negro na luta anti-racista é trazer à tona
as implicações do racismo e do sexismo que condenaram as mulheres negras a uma
situação perversa e cruel de exclusão e marginalização sociais. Tal situação, por seu
turno, engendrou formas de resistência e superação tão ou mais contundentes.
O esforço pela afirmação de identidade e de reconhecimento social repre-
sentou para o conjunto das mulheres negras, destituído de capital social, uma
luta histórica que possibilitou que as ações dessas mulheres do passado e do
presente (especialmente as primeiras) pudessem ecoar de tal forma a ultrapassa-
rem as barreiras da exclusão. O que possibilitou, por exemplo, que a primeira
romancista brasileira fosse uma negra a despeito das contingências sociais em que
ela emergiu?
Os efeitos do racismo e do sexismo são tão brutais que acabam por impulsio-
nar reações capazes de recobrir todas as perdas já postas na relação de dominação.
O efervescente protagonismo das mulheres negras, orientado num primei-
ro momento pelo desejo de liberdade, pelo resgate de humanidade negada pela
escravidão e, num segundo momento, pontuado pelas emergências das organi-
zações de mulheres negras e articulações nacionais de mulheres negras, vem de-
senhando novos cenários e perspectivas para as mulheres negras e recobrindo as
perdas históricas.
Sumariamente, podemos afirmar que o protagonismo político das mulhe-
res negras tem se constituído em força motriz para determinar as mudanças nas
concepções e o reposicionamento político feminista no Brasil. A ação política das
mulheres negras vem promovendo:
• o reconhecimento da falácia da visão universalizante de mulher;
• o reconhecimento das diferenças intragênero;
• o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como fatores de pro-
dução e reprodução das desigualdades sociais experimentadas pelas mulheres
no Brasil;
• o reconhecimento dos privilégios que essa ideologia produz para as mulheres
do grupo racial hegemônico;

ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003 129


SUELI CARNEIRO

• o reconhecimento da necessidade de políticas específicas para as mulheres


negras para a equalização das oportunidades sociais;
• o reconhecimento da dimensão racial que a pobreza tem no Brasil e, conse-
qüentemente, a necessidade do corte racial na problemática da feminização
da pobreza;
• o reconhecimento da violência simbólica e a opressão que a brancura, como
padrão estético privilegiado e hegemônico, exerce sobre as mulheres não-
brancas.
E a introdução dessas questões na esfera pública contribuem, ademais, para
o alargamentos dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social, noções
sobre as quais gênero e raça impõem-se como parâmetros inegociáveis para a
construção de um novo mundo.

Notas
1 Mireya Suárez e Lourdes Bandeira, 2002, p. 299.
2 Plataforma Política Feminista, parágrafo 8 – Aprovada na Conferência Nacional de
Mulheres Brasileiras em 6-7 de junho de 2002. Distribuição CFEMEA – Centro
Feminista de Estudos e Assessoria. Brasília, 2002.
3 Apud Luiza Bairros, 2000, p. 56.
4 Lélia Gonzalez citada por Luiza Bairros, 2000,p. 57.
5 Carlos Hasenbalg e Nelson Silva Valle, p. 37.
6 Márcia Lima, 1995, p. 28.
7 Sueli Carneiro, 2002b, p.5.
8 Beatriz Nascimento, 1990, p. 3.
9 Regina Nogueira, 2000, p. 201.
10 Fátima Oliveira, 1998, p. 43.
11 Idem, p. 133.
12 Idem, p. 132.
13 Idem, p. 130.
14 Antonia Aparecida Quintão, 1999.
15 Em Nós mulheres negras – Diagnóstico e propostas da Articulação de ONGs de
Mulheres Negras rumo à III Conferência Mundial contra o Racismo, 2001, pp. 22-
23.
16 Sueli Carneiro, 2002e, p.5
17 Nancy Fraser, 2002, p. 63.
18 Esses comentários foram, originalmente, publicados no jornal na Coluna Opinião do
Jornal Correio Braziliense de 14/6/2002.
19 Nancy Fraser, 2002, p.63
20 Plataforma Política Feminista aprovada na Conferência Nacional de Mulheres Brasi-
leiras (CNMB) em 6 e 7 de junho de 2002. Parágrafos 12 e 13.

130 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


MULHERES EM MOVIMENTO

21 Plataforma Política Feminista aprovada na Conferência Nacional de Mulheres Brasi-


leiras (CNMB) em 6 e 7 de junho de 2002. Parágrafo 11.
22 Jornal Folha de S. Paulo de 6 de agosto de 2002. Painel – A4.

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34, São Paulo, 2002.

RESUMO – ESSE artigo busca demarcar a trajetória de luta das mulheres negras brasileiras
no interior do movimento feminista nacional. Trata-se de colocar em questão a perspec-
tiva feminista clássica fundada numa concepção universalista de mulher, que tem o seu
paradigma na mulher branca ocidental, o que obscurece a percepção das múltiplas con-
tradições intragênero e entre gêneros que a racialidade aporta. Dessas contradições, im-
põem-se para as mulheres negras a sua afirmação como um novo sujeito político, porta-
dor de uma nova agenda, esta resultante de uma identidade específica na qual se articu-
lam as variáveis de gênero, raça e classe, colocando novos e mais complexos desafios para
realização da eqüidade de gênero e raça em nossa sociedade.
ABSTRACT – THIS ESSAY seeks to define the course of Brazilian black women’s struggle
within the national feminist movement. It questions the classic feminist perspective foun-
ded on a supposedly universal notion of woman that takes Western white women as its
paradigm, obscuring the perception of the multiple intra- and inter-gender contradic-
tions brought about by racial issues. Given these contradictions, black women are called
upon to establish themselves as a new political entity, bearing a new agenda that derives
from a specific identity wherein the variables of gender, race and class interact, posing
new and more complex challenges to our society effort’s in attaining equitableness of
gender and race.

Sueli Carneiro é diretora do Geledés Instituto da Mulher Negra; filósofa, doutoranda


em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo;
pesquisadora do CNPq e articulista do jornal Correio Braziliense.
Texto recebido e aceito para publicação em 15 de setembro de 2003.

132 ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003


As dimensões de gênero e classe social
na análise do envelhecimento*
Alda Britto da Motta**

Resumo

Gênero e geração, como dimensões fundamentais da vida social,


correspondem a categorias básicas – e mutuamente articuladas –
de análise das relações sociais. Ser velho é uma situação vivida
em parte homogeneamente e em parte diferencialmente, de
acordo com o gênero e a classe social dos indivíduos em um
grupo de idade ou geração. O gênero e a classe social estruturam
as expectativas e conformam a ação social. Nesse sentido, a
perspectiva de gênero e classe é especialmente importante na
explicação das diferentes trajetórias de vida percorridas
socialmente por homens e mulheres. Também ajuda a explicar
como ambos, como sujeitos genderificados, socializados conforme
sua situação de classe, experienciam o processo de
envelhecimento e são afetados pelas políticas públicas
concernentes à velhice. Ilustra-se essa dinâmica com resultados de
estudos e pesquisas realizados em Salvador, Bahia.

Palavras-Chave: Gênero, Geração, Envelhecimento, Classe


Social, Articulação de Categorias.

*
Este texto é parte do capítulo 2 da minha tese de doutorado – Não tá morto
quem peleia: a pedagogia inesperada nos grupos de idosos. Tese de Doutorado,
Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1999. Uma versão modificada, mais
circunscrita à dimensão de gênero – La Dimension du Genre dans l’analyse du
vieillissement: le cas du Brésil – foi publicada em Cahiers du Genre, nº 24, Paris,
1999. Recebido para publicação em setembro de 1999.
**
Universidade Federal da Bahia, Salvador.

cadernos pagu (13) 1999: pp.191-221


Gênero e classe social na análise do envelhecimento

The Dimensions of Gender and Class


in the Analysis of Aging

Abstract

Gender and generation, as fundamental dimensions of social life, also


correspond to basic – and mutually articulated – categories of analysis of
social relations. Being old is a situation lived both homogeneously and
differentially according to the gender and social class of individuals in an
age group or generation. Gender structures social expectations and
informs social action as much as class does; so, a gender and class
perspective is specially important in clarifying different life trajectories
traced by men and women. It also helps to explain how they, as gendered
subjects, informed by an habitus of class, experience their process of
aging, and are affected by age-related public policies. This dynamics is
illustrated by findings from research conducted in Salvador, Bahia.

Key words: Gender, Aging, Generation, Social Class, Articulation of


Categories.

192
Alda Britto da Motta

Categorias de análise

A vida social é estruturada em conjuntos de relações que,


em interface, ou articuladas dinamicamente, lhe dão sentido (ou
ensejam ao analista entrever um sentido...). Os mais
determinantes desses sistemas de relações são as classes sociais, os
gêneros, as idades/gerações e as raças/etnias. Cada conjunto
desses constitui-se, então, numa dimensão básica da vida social,
mas nenhum deles, analisado isoladamente, dá conta da sua
complexidade. Inclusive porque são aspectos co-extensivos, isto é,
“recobrem-se parcialmente uma à outra”.1
Essas dimensões realizam-se no cotidiano e na História e
podem ser também definidas como categorias relacionais ou da
experiência. Expressam diferenças, oposições, conflitos e/ou
alianças e hierarquias provisórias. Provisórias, porque na dialética
da vida os lugares sociais se alternam, as situações sociais
desestruturam-se e reconstróem-se em outros moldes. Do ponto
de vista de cada indivíduo ou grupo, isto significa a múltipla
pertinência de classe, de sexo/gênero, de idade/geração e de
raça/etnia, com a formação de subjetividades ou de identidades
correspondentes.
Essas categorias relacionais mais determinantes, e
analiticamente valiosas, referem-se quase todas ao biossocial: o
sexo, a idade e a cor estão inscritos no corpo e na cultura como
gênero, geração e etnia. Somente a classe, categoria
sobredeterminante, refere-se apenas ao social, mas não deixa de
ser um coletivo – teórico, político e da prática – que se corporifica
em homens e mulheres de diferentes idades e raças. O elemento
fundador de ordem biológica é, com freqüência, destacado para
justificar, ideologicamente, o poder e a dominação – o sexo
“frágil” e “burro”, a raça “preguiçosa” e “feia”, a idade imatura

1
HIRATA, Helena e KERKOAT, Danièle. La classe ouvrière a deux sexes. Politis,
Paris, jul./août/sept., 1993.

193
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

ou da “esclerose” –, não fosse a essência da ideologia a


naturalização do social.
Isto significa que o conhecimento de cada uma das
categorias remete, sempre, a uma análise de relações de poder.
Análise que, anteriormente, quase só se fazia em relação a classes,
em termos de lutas e conflitos. Mas a classes secamente estruturais,
sem suas dissensões (frações) e divisões internas: “sem sexo, sem
idade e sem cor”, como ainda encontrei terreno para criticar, há
poucos anos.2
Entretanto, no bojo das discussões da multireferida crise de
paradigmas na ciência atual, desenvolveu-se um novo debate
sobre o alcance analítico das classes sociais, que oscila entre seu
abandono teórico (ou conclusão sobre sua ineficácia analítica em
relação à sociedade atual) e recurso a outros sujeitos teóricos ou
atores coletivos, tais como gênero, etnia, região e nacionalidade3;
ou, por outro lado, uma abertura de visão que percebe/incorpora,
a uma análise de classes, a de outras categorias analíticas, de
ordem bio-cultural que, em grande parte, referem-se aos sujeitos
alternativos referidos anteriormente, mas que realizam-se em
interface com as classes, articulam-se entre si e são por estas
condicionados.
Esta última postura foi a do feminismo mais recente na sua
trajetória de afirmação da importância das relações e de uma
visão de subjetividade de gênero.4 A ela me filio.5

2
BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos coletivos de bairro
em Salvador. Encontro Anual da ANPOCS, 15, Caxambu-MG, outubro de 1991
– GT-Relações Sociais de Gênero.
3
LARANJEIRA, Sônia M. G. Faz sentido falar em classes sociais? Natureza, história
e cultura, Porto Alegre, Sociedade Brasileira de Sociologia, Editora da UFRS,
1993, p.89.
4
Cf: SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. New York, Columbia
University Press, 1988; SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos.
São Paulo, Brasiliense, 1991 –Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia a dia das
representações; KERGOAT, Danièle. Em defesa de uma sociologia das relações
sociais. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et alii. O sexo do trabalho. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1986; COMBES, Danièle e HAICAULT, Monique. Produção e

194
Alda Britto da Motta

A análise de classes, tradicionalmente considerada de ordem


apenas estrutural, é melhor resgatada, atualmente, na proposta de
Thompson:

A classe é uma relação e não uma coisa (...) Ela não existe
para ter um interesse ou uma consciência ideal...
É um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma
estrutura, (...) mas como algo que ocorre efetivamente e
cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações
humanas.
A classe acontece quando alguns homens, como resultado
de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem
e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra
outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se
opõem) aos seus.6

Alternativa ou complementarmente, uma outra dimensão da


análise de classe, não diretamente referida ao político e
particularmente útil no estudo de grupos, refere-se a uma sinopse
de vivências e experiências, ou de práticas socializadoras,

reprodução. Relações Sociais de sexos e de classes. In: KARTCHEVSKY-BULPORT,


Andrée et alii. O sexo do trabalho. Op.cit.; LAVINAS, Lena. Identidade de Gênero:
um conceito da prática. Encontro Anual da ANPOCS, 13, Caxambu/MG, 1989;
CASTRO, Mary Garcia. Alquimias de categorias sociais na produção dos sujeitos
políticos. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, nº 0, 1992.
5
BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos coletivos... Op.cit.;
e Familiarizando (-se com) o público e politizando o privado. In: XIMENES, Tereza.
(org.) Novos paradigmas e realidade brasileira. Belém, NAEA//UFPA, 1993.
6
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária na Inglaterra. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1987, pp.9-11.

195
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

expressa pelo conceito de habitus.7 Na tradução interpretativa de


Laranjeira:

Conjunto de condicionantes comuns em relação à atuação


no cotidiano que produz experiências comuns e que, por
sua vez, gera um conjunto de disposições internalizadas em
relação a agir de determinada forma.8

No Brasil, o sentido teórico de classe e de categorias


importantes, como experiência, desenvolvidas por Thompson9, foi
trabalhado mais profundamente, e com criatividade, por Souza-
Lobo. Seus textos mais antigos formaram parte significativa da
produção pioneira de estudos e pesquisas sobre a dinâmica de
classe e gênero e – um pouco menos – geração; os mais recentes,
enfeixados na obra póstuma A Classe Operária tem dois Sexos10,
tiveram reflexos nas pesquisas, inclusive internacionais.11
Expondo a definição de experiência de Thompson:
“Resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um
grupo social, a muitos acontecimentos interrelacionados ou a

7
BOURDIEU, Pierre. What makes a social class? On the theoretical and practical
existence of groups. Berkeley Journal of Sociology, nº 22, Berkeley, 1987; O
poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989.
8
LARANJEIRA, Sônia M. G. Faz sentido falar em classes sociais? Op.cit.
9
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária na Inglaterra. Op.cit.; A miséria
da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1991.
10
SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. Op.cit.
11
Também participaram desse debate, entre outras, SAFFIOTI, Heleieth B.
Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, Albertina e BRUSHINNI, Cristina.
(orgs.) Uma questão de gênero. São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos
Chagas, 1992, pp.183-215; CASTRO, Mary Garcia. Alquimias de categorias
sociais... Op.cit; BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos
coletivos... Op.cit.

196
Alda Britto da Motta

muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento”12, Souza-


Lobo vai mais além, em direção à categoria gênero:

O conceito parece-me adequado na medida em que


permite articular trajetórias e representações (...) quebrando
a dicotomia objetividade-subjetividade, que (...) parece
levar sempre a um impasse...13

O conceito de experiência é particularmente útil no estudo


do envelhecimento, mas é também de importância geral, para
pensar similitudes e diferenças de vivências no interior de cada
categoria social. O exemplo do gênero: existem homens e
mulheres (dois gêneros). Ao mesmo tempo, cada um deles
apresenta variações internas à sua condição – diferenças de idade,
de classe, de cor, etc. – o que se pode concluir que há diversidade
de experiências de gênero e esta depende da valorização social de
cada um desses aspectos e/ou da vivência que se tem deles. Há,
então, hierarquias internas a cada dimensão.
É interessante pensar que essas diversidades e similitudes no
interior de cada categoria – não apenas, é claro, do gênero – se
dão exatamente em função da existência de outras categorias da
mesma magnitude. É como um jogo, porém, sempre pleno de
hierarquias.
Na prática da pesquisa as articulações são visíveis. Castro
relata:

As sindicalistas (trabalhadoras domésticas) contam casos de


racismo filtrado por relações de classe, indicam casos de
sexismo no interior das relações raciais e rotulam como

12
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Op.cit., p.15.
13
SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. Op.cit.

197
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

distintos os problemas das mulheres mais jovens e das mais


velhas (...) O sindicato seria lugar de mulher mais velha.14

Estudando, também, trabalhadoras domésticas, analisei:

Mulheres, esposas, enquanto gênero são social e


familiarmente subordinadas; enquanto classe, são aliadas
dos maridos. Como empregadas domésticas, e
empregadoras, enquanto gênero são consideradas de
“natureza” social comum; enquanto classe, são
antagonistas.15

Essas categorias expressam diferentes dinamismos segundo


o tempo e o lugar. Por exemplo, o ser negra na Bahia é uma
determinação fundamental em movimentos culturais, políticos, ou
até de trabalhadores, como os empregados domésticos, mas não é
assim em todo o Nordeste, muito menos no Sul do país. Ser jovem
ou madura importou, diferencial e decisivamente, para a mulher
afrontar dificuldades familiares de inserção nos movimentos de
bairro, pujantes de 70 e 80, mas certamente as condições de
participação serão diferentes para a próxima geração.16
O gênero como categoria analítica é de constituição
recente, do feminismo da década de 70. Elaborado mais
sistematicamente por Gayle Rubin como “sistema de sexo-
gênero”17, apresenta a opressão da mulher como socialmente
construída. Estuda os sistemas de parentesco na produção das
identidades de gênero e da subordinação da mulher.

14
CASTRO, Mary Garcia. Alquimias de categorias sociais... Op.cit., p.61.
15
BRITO DA MOTTA, Alda. Emprego Doméstico: revendo o novo. Caderno CRH,
nº 16, Salvador, jan./jun. 1992, pp.31-49.
16
ID. Relações de gênero em movimentos coletivos... Op.cit., p.7.
17
RUBIN, Gayle. The traffic in women : notes on the “political economy” of sex.
In: RAITER, Rayna. (ed.) Toward an anthropology of women. New York, Monthly
Review Press, 1975.

198
Alda Britto da Motta

A categoria é, em seguida, adotada com uma certa


universalidade, referente à gradativa construção social/cultural
realizada no ser biológico/natural que se é ao nascer. Torna-se
uma categoria analítica ao mesmo tempo demonstrativa e crítica
dos fatores ideológicos que informam a vida das mulheres.
Constitui-se, por isso mesmo, como um certo gesto político, no
conter, por definição, a negação da existência de uma “natureza”
feminina e outra masculina. (Lembre-se, um dos mais persistentes
estereótipos que se tentava apagar, na época, era o da mulher
“mais perto da natureza” – pela maternidade, afetividade, etc. – e
os homens da cultura, como seus produtores).
Propunha manter uma tendência desse novo campo de
conhecimento, que se revelara desde o início dos estudos sobre
mulher, de aliar a prática acadêmica à militância. O que já
registravam Franchetto et alii como “extremamente interessante,
pois obriga os sujeitos do fazer ciência a uma reflexão a um só
tempo política e epistemológica”.18
Pensado também como um passo adiante da categoria
mulher, que fora recuperada do cotidiano pelo movimento
feminista como conscientizadora e instigadora de práticas políticas
renovadoras, a categoria gênero postula ainda expressar a
existência de um sistema de relações em que o homem está mais
diretamente incluído, num movimento que expressei como de
“recomposição da totalidade”.19
O conceito difundiu-se com rapidez na literatura feminista,
principalmente nos women’s studies da Inglaterra e dos Estados
Unidos, onde, com Joan Scott, iria ter, na década de 80, amplo
desenvolvimento como categoria de análise histórica.20

18
FRANCHETTO, Bruna; CAVALCANTI, Laura V. C. e HEILBORN, Maria Luiza.
Apresentação e Antropologia e Feminismo. Perspectivas Antropológicas da
Mulher, nº 1, Rio de Janeiro, 1981.
19
BRITO DA MOTTA, Alda. Emprego Doméstico: revendo o novo. Op.cit.
20
SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. Op.cit.

199
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

No Brasil, no começo da década de 80, algumas autoras


trabalham a visão do gênero como uma dimensão básica da vida
social. Franchetto, Cavalcanti e Heilborn, em artigo pioneiro, já
expressavam: “Um ângulo de leitura do mundo”.21
Heilborn retoma, mais recentemente, essa análise:

(N)uma perspectiva simbólica da sociedade (...) o gênero


está arrolado entre as categorias universais do pensamento
humano.22
[explica]
Gênero é um constructo abstrato, um princípio de
classificação que emerge da observação do real:
diferenciação sexual do reino animal e vegetal. Entretanto,
o que a operação lógica mantém do real é o princípio da
descontinuidade, do que não é idêntico, inscrito na
biologia. Representa, portanto, a marca elementar da
alteridade. (citando Héritier23)
[continua]
...Masculino e feminino possuem significados distintos em
cada cultura. Este par classificatório, tomado como idioma,
impera sobre atividades e objetos que a eles são associados
(...) O universo circundante passa, portanto, por uma
categorização de gênero.
[adiante]
Pode-se ir mais além e indagar se ele (gênero) se constitui
em uma espécie de matriz de outras classificações

21
FRANCHETTO, B., CAVALCANTI, L. V. C. e HEILBORN, M. L. Apresentação e
Antropologia e Feminismo. Op.cit, p.7.
22
HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo Gênero?: a antropologia da mulher no Brasil.
In: COSTA, Albertina e BRUSHINNI, Cristina. (orgs.) Uma questão de gênero.
Op.cit., pp.103-104.
23
HERITIER, Françoise. Symbolique de l’inceste et de sa prohibition. In: ISARD, M.
e SMITH, P. (eds.) La fonction symbolique. Paris, Gallimard, 1979, pp.209-243.
Citado por HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo Gênero?... Op.cit., pp.93-128.

200
Alda Britto da Motta

simbólicas, isto é, se possui, diante de outras atividades do


pensamento, alguma precedência...

Outras autoras se aproximam de afirmações desse sentido


fundante do gênero. Lavinas afirma: “A constituição de uma
identidade social, qualquer que seja ela, implica necessariamente o
processo simultâneo de construção da identidade de gênero”.24
Em apoio inicial disto, cita o conhecido – na época, recente –
trabalho de Souza-Lobo, que demonstra diferenças na assunção
de identidades masculina e feminina. Os homens se identificando
como trabalhadores e as mulheres sobretudo pela maternidade.
Aquelas mulheres, porém, que já vivenciaram regularmente o
trabalho fabril, “ao se enunciarem como operárias costumam
identificar-se como ‘mulheres trabalhadoras’, incluindo o gênero
como diferença constitutiva, e inseparável da sua condição de
classe”.
Também discutindo gênero, os usos feministas da categoria
e a difusão inicial de uma análise mais sistemática das outras
categorias relacionais, analisei que:

A perspectiva das relações de gênero também lembra/


demonstra outras dimensões analíticas fundamentais na
sociedade. Além de não ser necessariamente alternativa,
mas co-extensiva à de relações de classe, também
exemplifica ou enseja enfoques em outras categorias ou
determinações sociais, como idade e raça, que têm
diferentes dinamismos...25

Uma afirmação pessoal básica como gênero, venho


encontrando na pesquisa com idosos, principalmente da parte das
mulheres. Sua identidade de gênero parece ser, realmente,

24
LAVINAS, Lena. Identidade de Gênero: um conceito da prática. Op.cit., p.6.
25
BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos coletivos... Op. cit.,
p.7.

201
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

constitutiva da sua identidade (geracional) de idosas. Trajetórias


sociais de gênero são determinantes na situação real e nos
sentimentos dessas pessoas como idosas – ultrapassando, não
raro, a diversidade de situação de classe – quando homens e
mulheres se colocam diferencialmente quanto a possibilidades e
sentimentos de bem-estar, liberdade e auto-realização na velhice.26
A categoria idade/geração, como as outras categorias sociais
referidas, também se expressa no marco das relações sociais de
poder.27 É grande sua complexidade analítica: além de referir-se a
uma dimensão fundante de relações sociais, em articulação
inextrincável a outras categorias de semelhante magnitude,
projeta-se, mais que aquelas, em uma outra dimensão (ou
abrangência), a temporal, ao mesmo tempo “natural” e social,
através da qual faz e refaz seus sentidos.
As idades constituem importante fator de organização social,
mesmo no capitalismo, com posições e situações especificamente
definidas em todas as sociedades, e variados graus de
formalização e reconhecimento institucional. Margaret Mead
expressa belamente essa sucessão organizatória das idades,
referindo-se particularmente aos velhos como “os imigrantes no
tempo”28 (O que, em certo grau, todos os grupos de idade
também são).

26
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. In: LINS DE BARROS, Myriam
Moraes. (org.) Velhice ou terceira idade? (Estudos antropológicos sobre
identidade, memória e política). Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998;
e DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, vol. 2, nº 3, 1994.
27
ID. Chegando pra idade. Op. Cit.
28
Mead, Margaret. Culture and Commitment: a study of the generation gap. New
York, The American Museum of Natural History Press/Doubleday & COmpany
Inc., 1970, p.56.

202
Alda Britto da Motta

A noção de tempo é também inerente ao conceito de


habitus29 – um tempo social, uma construção de práticas
“imediatamente ajustadas ao presente”. Esse conceito multívoco
(habitus de classe, talvez também segundo o gênero), poderá,
ainda mais, contribuir para a compreensão da categoria velhice no
processo de reprodução social. Em Coisas Ditas, essa construção é
sugerida:

O “habitus”, que é o princípio gerador de respostas mais ou


menos adaptadas às exigências de um campo, é produto de
toda a história individual, bem como, através das
experiências formadoras da primeira infância, de toda a
história coletiva da família e da classe...
Os “habitus” individuais são produto da interseção de
séries causais parcialmente independentes. Percebe-se que
o sujeito não é o ego instantâneo de uma espécie de cogito
singular, mas o traço individual de toda uma história
coletiva.
Basta que os agentes se deixem levar por sua “natureza,
isto é, pelo que a história fez deles, para estarem...
ajustados ao mundo histórico com o qual se defrontam,
para fazerem o que é preciso...” (...) O contra-exemplo é o
de Dom Quixote, que coloca em ação num espaço
econômico e social transformado, um “habitus” que é
produto de um estado anterior desse mundo. Mas bastaria
pensar no envelhecimento.30

Realmente, há muito a refletir sobre o sentimento do velho


no mundo, e neste mundo atual, considerando-se que muitas das
suas construções mentais e experiências foram forjadas e
vivenciadas em um outro tempo social, desde um tempo
passado. Mas não vejo porque a remissão apenas ao passado,

29
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
30
ID., IB., pp.130-132.

203
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

porque o idoso vive também hoje e a experiência é uma jornada


que não (tem que) termina(r).
Bourdieu, em outro momento, já havia discutido a
alternância ou sucessão das gerações em termos de leis específicas
de envelhecimento para cada campo:

Para saber como se recortam as gerações é preciso


conhecer as leis específicas de funcionamento do campo, os
objetos de luta e as divisões operadas por essa luta
(“nouvelle vague”, “novo romance”, “novos filósofos”...)
Isto (...) mostra que a idade é um dado biológico
socialmente manipulado e manipulável.31

Chega às diferenças que geram conflitos mas que são


também conseqüências de diversidades no tempo social:

Uma coisa muito simples e na qual não se pensa, é que as


aspirações das sucessivas gerações, de pais e filhos, são
constituídas em relação a estados diferentes da estrutura de
distribuição de bens e de oportunidades de acesso aos
diferentes bens: aquilo que para os pais era um privilégio
extraordinário (...) se tornou banal, estatisticamente. E
muitos conflitos de gerações são conflitos entre sistemas de
aspirações constituídos em épocas diferentes. Aquilo que
para a geração 1 foi uma conquista de toda uma vida, é
dado, imediatamente, desde o nascimento, à geração 2.32

A idéia de tempo social concentra outras articulações e


formas de análise possíveis, por exemplo, entre o tempo histórico

31
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983 –
A Juventude é apenas uma palavra.
32
ID., IB., p.118.

204
Alda Britto da Motta

e o tempo biográfico, ou como expressa Zárraga Moreno33, o


tempo da mudança social e o tempo dos indivíduos enquanto
agentes sociais. Ou um tempo social etário e um tempo social
geracional. Existem muitas categorias e enfoques para expressar as
clássicas dimensões da relação indivíduo/coletivos/contexto social,
é impossível a análise sem articulá-las, ainda que em intensidades
muito diferenciadas de abordagem.
O tempo dos indivíduos é expresso mais perceptivelmente
pela idade, mas, sabemos, é socialmente construído, e
institucionaliza-se, isto é, adquire significado mais diretamente
social como grupos de idade – jovens, adultos, velhos – ou como
legitimidades para realizar, ou não, tal ou qual ação social.
O tempo das gerações tem um sentido eminentemente
social e histórico. Conta com uma tradição de análise filosófica34,
mas apenas começa a ter um estatuto teórico construído nas
Ciências Sociais, bastante esquecidas, de Mannheim.35 Na
discussão sobre categorias relacionais e construções culturais,
tem-se sugerido a equivalência do par de conceitos idade/geração
com outros pares já mais trabalhados teoricamente: geração
estaria para idade como gênero está para sexo e etnia para raça.
Isto é, ter-se-ia uma elaboração de ordem cultural sobre o seu
correspondente par biológico. Reluto, diante dessa dualidade tão
simples. O “biológico” idade, referente ao tempo “natural”, não é
também de inscrição tão subjetiva nos indivíduos e nos grupos,
no seu desconstruir-se/(re)construir-se anual, ao sabor das
representações culturais da cada grupo? (Por exemplo, ainda é

33
ZÁRRAGA MORENO, José Luis de. Generaciones y grupos de edad.
Consideraciones teóricas. Congresso Español de Sociología, 4., Madrid, sept.
1992, pp.1-2.
34
Cf. ORTEGA & GASSET, José. El tema de nuestro tiempo. Revista de Occidente,
Madrid, 1929; MARÍAS, Julian. El método histórico de las generaciones. Revista
de Occidente, Madrid, 1949.
35
MANNHEIM, Karl. Essays on the Sociology of Knowledge. London, Routledge &
Kegan Paul, 1952 – The problem of generations.

205
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

muito mais simples um homem aceitar – ou ter aceitos – os seus


60 anos de idade, que uma mulher. Que haveria de biológico
nessa diferença de atitudes?)
A inseparabilidade e intercambialidade analítica das duas
categorias de experiência – ou de situação – podem ser
exemplificadas na asserção de Zárraga Moreno:

Toda geração é determinada pela sucessão de conjunturas


históricas em que vive, ainda que o efeito... de cada
conjuntura seja distinto de acordo com a categoria de idade
em que se encontra cada geração.36

Assim como a inseparabilidade analítica entre idade/


geração e outras categorias relacionais: “A determinação
geracional não é, em cada conjuntura, nem única nem unívoca.
(...) É distinta em cada classe social, em cada categoria de sexo,
etc. É específica para cada uma delas”.
Como geração, os indivíduos, inescapavelmente, se
reconhecem, como projeção coletiva. A grande realização dos
grupos geracionais está na identificação como construtores de
cultura, ou de mudanças políticas em determinados momentos
históricos.37 As gerações figuram, então, uma categoria mais
abrangente que as idades (em relação à sucessão no tempo e
sobretudo a esse sentido coletivo que encerram), mas não em
todos os sentidos. Debert expõe outro ângulo da questão:

Enquanto as gerações têm como referência a família, as


idades são institucionalizadas, política e juridicamente. A
organização geracional subsume a ostensiva
descontinuidade geral. A idade, em contraste, opera
atomisticamente, com o indivíduo formalmente isolado (...)

36
ZÁRRAGA MORENO, José Luis de. Generaciones y grupos de edad. Op.cit., p.28.
37
MANNHEIM, Karl. Essays on the Sociology of Knowledge. Op.cit.

206
Alda Britto da Motta

e deixa a questão da continuidade (...) para a ordem


institucional não-familiar.38

Isto é, para o Estado. As ações estatais, através do aparato


jurídico e das políticas sociais, definem grande parte das formas de
inclusão e exclusão social dos indivíduos segundo sua condição
etária. Assim, o que figura mais definidamente individual e
particular pode projetar-se como o mais público e formal.
Idades e gerações são importantes fatores de organização
social. Isto é tão universal, “tão evidente”, que não se costuma
referir. Entretanto, a condição etária e, principalmente, o
envelhecimento ainda são, como assinala Debert, “mecanismos
fundamentais de classificação e separação de seres humanos”.39
Numa perspectiva de idade/geração, ser jovem ou ser velho
é uma “situação” vivida, em parte, homogeneamente e, em parte,
diferencialmente segundo o gênero e a classe social dos indivíduos
de cada grupo etário. Na perspectiva de gênero, a trajetória de
vida de homens e mulheres, como construção social e cultural,
vem determinando diferentes representações e atitudes em relação
à condição de velho(a).
Dessa forma, gênero e idade/geração são dimensões
fundantes de análise da vida social. Expressam relações básicas,
por onde se (entre)tecem subjetividades, identidades e se traçam
trajetórias. Proposta uma análise da condição social atual de
velho, não há como faze-la sem esse conhecimento sobre os
diferenciais de gênero e de classe social que a constituiriam
internamente e lhe dariam específicos sentidos.

38
DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Op.cit.
39
ID., IB., p.22.

207
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

Velhice: condição sexuada e de classe

Sobre os velhos, a informação por todos conhecida é a do


grande crescimento como grupo etário por toda parte e, no Brasil,
acentuadamente, com os problemas e “ameaças” que isso traz
para a sociedade. Pouco se fala sobre a predominância de
mulheres de um ponto de vista que não seja estatístico/
demográfico. No entanto, o envelhecimento torna-se, realmente,
uma questão global e particularmente “feminina”, demandando
pesquisas sobre as características e conseqüências desse
“desequilíbrio” em sua complexidade social e subjetiva. Há mais
de dez anos já sentenciava Laslett: “The Third Age, always so
much a feminine affair, is now becoming more so.”40 No Brasil de
hoje, as mulheres dão muito do tom social que assumem os
grupos de “terceira idade”, com exceção dos do movimento de
aposentados.41
O tardio Censo Demográfico de 1991 registrou tanto uma
desaceleração do crescimento populacional – apenas 1,9% entre
1980 e 1990, quando havia sido de 2,49% ao ano entre 1970 e
1980 – como um crescimento relativamente mais acentuado do
grupo dos idosos em relação a outros grupos etários. “Uma
estrutura etária que se altera profundamente”, já registrava o
Relatório do Brasil para Conferência do Cairo.42 Dos sete milhões
de idosos computados em 1990, “cerca de 60% eram mulheres”.
Como mais numerosos, os velhos estão socialmente mais
visíveis no cotidiano e no espaço público, sobretudo, como
resposta existencial geracional à própria dinâmica da sociedade
contemporânea. Identificados, recentemente, como “questão

LASLETT, Peter. The Emergence of the Third Age. Ageing and Society,
40

Cambridge, 1987, p.143.


41
BRITTO DA MOTTA, Alda. Os velhos baianos (e a “música” é cada vez mais
nova). Bahia, Análise & Dados-SEI, Salvador, vol. 6, nº 1, junho de 1996.
42
BRASIL. Relatório do Brasil para a Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento. Brasília, dezembro de 1993, p.46.

208
Alda Britto da Motta

pública”43, são objeto do discurso ambíguo – protecionista e ao


mesmo tempo temeroso – das instituições e do Estado.
Também descobertos como nova e promissora fatia de
mercado consumidor, estão postos diante de uma sociedade
sempre em movimento, no acelerado ritmo de mudança
tecnológica, intensificação paroxísmica da comunicação e
enfraquecimento do Estado, características do processo de
globalização. Os idosos respondem e também se movimentam,
estão em toda parte, agarram-se a todas as propostas. Entretanto,
fazem isso, não num sentido de grupo etário internamente
indiferenciado, homogêneo abstrato, “subcultura” à moda dos
anos 40/50, agem como coletivo etário ou geracional, portanto,
específico, segundo diferenciações sociais, heterogeneidades
constitutivas, segundo as quais todos sempre viveram enquanto
indivíduos de diferentes sexos/gêneros, de diferentes classes sociais
e etnias.
Auto-afirmar-se no cotidiano é a primeira forma de
diferenciação da velhice segundo os gêneros e as classes sociais.
As mulheres, voltadas desde o início à domesticidade e ao
cotidiano, e alguns dos mais pobres, que não têm quem os proteja
ou os substitua em tarefas e na provisão da família, têm
permanecido mais ativos. E reconhecem-se assim. Declaram-se
vigorosos, saudáveis, independentes, principalmente as mulheres.
Diferem quanto a atitudes, práticas e representações,
porque as relações de gênero, como construções sociais de
formas de dominação e subordinação, têm resultado,
historicamente, em experiências e trajetórias sociais diferenciadas
para homem e para mulher. Para esta, a prescrição tradicional
foi: domesticidade e maior repressão social e sexual, desestímulo
ou dificuldade de acesso e permanência no mercado de trabalho,
desigualdades de formação e de condições de trabalho em
relação às dos homens, negação aparente de interesse e

43
DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Op. cit.

209
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

capacidade para a política e apropriação social do seu corpo


expresso no controle familiar e na medicalização das funções
reprodutivas. Sintetizando, a expectativa obrigatória de uma
“feminilidade” que significa obediência e conformismo. Este
padrão encontra-se em franco desmonte, mas norteou a vida das
mulheres que hoje são velhas. Do mesmo modo que a prescrição,
ora cômoda, ora desconfortável, de uma fórmula de intensa e
variada parceria sexual, afirmação de “masculinidade” como
dominação da mulher e filhos, obrigação de ser o provedor único
da família e expectativa de recebimento de “serviços” domésticos
das mulheres, foi o que vigorou – e em parte ainda persiste – para
os homens dessa mesma geração.
Diferentes expectativas sociais nortearam a trajetória desses
homens e mulheres de mais idade com tal intensidade, que os
diferenciais de gênero obscurecem ou ultrapassam, com
freqüência, as diferenças de classe desses velhos e velhas de hoje.
Também por isso a categoria gênero é de grande relevância nesta
análise.
Dependendo da classe social e dos arranjos familiares, ser
velha pode significar viver em grande pobreza, ou até na miséria,
mesmo para aquelas originalmente de classe média, por tratar-se
de uma geração de escassa participação no mercado de trabalho
e, portanto, com poucos recursos pessoais de sobrevivência. Pode
significar, também, falta de companheiro ou solidão mais
freqüente, devido ao maior número de viúvas, ao crescente
número de separadas, ou de solteiras com filhos, mulheres
chefiando famílias que nunca se constituíram “completas”. Ao
mesmo tempo, não raro são arrimos de família dos filhos adultos,
como encontrado entre as classes populares de Salvador.44

44
SOUZA, Nadiesel, PONTES, Paula e ROCHA, Sérgio. As representações do
envelhecimento. Trabalho final de graduação em Ciências Sociais - Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994.

210
Alda Britto da Motta

Mas podem ser sós também as casadas, desde que as


trajetórias tradicionais dos gêneros não foram traçadas para
confluir em companheirismo. Depõe D. Engrácia, 70 anos, como
várias outras idosas:

Me sinto sozinha demais. Ele trabalha o tempo todo. Saiu


de manhã, chegou agora [Fim de tarde]. Toma banho,
descansa um pouquinho, só chega dez horas, onze horas,
vai bater um papo com os camaradas.45

Na modernidade ocidental, ser velha é, sobretudo, ter


perdido uma importante e não-falada condição social de
reprodutora, é colher um pouco dos frutos desta nos filhos – uma
compensação afetiva, um apoio ou uma carga, a depender do
caso. Mas é, também, ir conseguindo (ou ter conseguido) a
libertação de certos controles societários que se referiam
justamente à reprodução e a tolheram durante toda a juventude.
Essa libertação vem, surpreendentemente, entusiasmando as
mulheres idosas, a ponto de, por vezes, obscurecer-lhes a
percepção de toda uma gama de preconceitos sociais ainda
vigentes em relação aos velhos e às mulheres.
Este é, certamente, o ponto nodal da diferença entre práticas
e representações de velhas e velhos. Estes ficam mais “realistas”
ou mais dominados pela “ideologia da velhice”, enquanto elas se
deixam levar pelo entusiasmo dessa “liberdade” recém-
conquistada46 e se tornam mais ativas, meio triunfalistas.
Pesquisas recentes vêm revelando que grande número de
mulheres, independente da classe social, considera sua etapa
atual de vida, como idosas, o momento mais tranqüilo, feliz e
livre que já tiveram.47 O fato de a maioria das velhas atuais não

45
ID., IB., p.38.
46
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. Op. cit.
47
FERREIRA, Adilton Roque e RODRIGUES JUNIOR, Valdomiro B. Idosos: esse novo
velho objeto (um estudo do preconceito contra a terceira idade). Trabalho final
de Graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,

211
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

ter alcançado uma vida profissional ativa e, ao mesmo tempo, ter


tido uma vida social muito mais limitada que os homens da sua
geração, conduziu-as a um sentimento de maior satisfação e
plenitude. Justamente na velhice, um tempo de consolidação de
experiências, de libertação das obrigações e controles
reprodutivos, tendo encontrado um tempo social propício à
mudança, inclusive fermentado no caldo de cultura do feminismo,
podem experienciar modos de vida novos. Essas mulheres falam,
então, em liberdade, como se uma “liberdade de gênero” se
sobrepusesse à condição (menos favorável) geracional ou de
classe48:

Estou feliz. Agora que eu estou velha, ele [o marido] não se


incomoda que eu saia, não. Eu me considero uma pessoa
jovem, porque quando eu estava jovem eu nunca tive
direito de ir a lugar algum. (D. Celina, 73 anos, de um
Centro Assistencial)
Tudo bem (...) aqui tranqüila. [No grupo] Ninguém me
manda mais, chego em casa na hora que eu quero, não
tem ninguém pra perguntar a hora que eu chego.
(D. Regina, de associação de bairro)

Entretanto, como analisei em trabalho anterior,

...é uma estranha liberdade, a de todas elas. Estranha, pela


dupla valência: como liberdade de gênero, assinala-se
positivamente – mulheres que podem circular, viver

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1992; ANDRADE, Eliane Schmaltz


Ferreira. Somando Papéis Sociais: trajetórias femininas e seus conflitos.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1992; BRITTO DA MOTTA,
Alda. Chegando pra idade. Op. cit.; DEBERT, Guita Grin. Gênero e
Envelhecimento. Op. cit.
48
BRITTO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. Op. cit.

212
Alda Britto da Motta

conforme sua vontade; mas como liberdade geracional


e, sobretudo, existencial, tem também o sentido do
marginalismo: podem sair porque já não importam tanto; já
não serão bonitas (velho = gasto, feio), não irão atrair os
homens – nem os da sua idade; já não reproduzem, não há
muito o que preservar.49

Algumas dessas mulheres não deixam de se referir a


problemas de saúde que julgam “da idade”, mas ao mesmo
tempo podem se afirmar como “jovens”, porque certas
experiências e prazeres referenciados à juventude elas só estão
conhecendo na velhice.
Os homens também falam em liberdade, mas com outros
significados. Para os de classe média, liberdade se refere a
“independência” ou “tranqüilidade” econômica.50 Para os mais
pobres, essa “liberdade geracional” guarda um forte sentido de
classe: falam como ex-trabalhadores que atingiram uma época de
descanso em que, desobrigados do trabalho, têm mais tempo para
o lazer.51
Sr. Manoel, 73 anos, do grupo da associação de bairro,
declara, taxativo: “Eu me aposentei pra me sentar”. Sobre o
grupo, majoritariamente de mulheres: “Venho aqui pra dar risada
e passar o tempo”.

Lugares sociais de gênero e de classe

Numa sociedade que não prevê um lugar social para os


velhos e redireciona agora seu curso com extraordinária rapidez,
eles se colocam como parte desse movimento, ou são

49
ID., IB., p.13.
50
DEBERT, Guita Grin. Envelhecimento e representação da velhice. Ciência Hoje,
Rio de Janeiro, vol. 8, julho de 1988.
51
SOUZA, Nadiesel, PONTES, Paula e ROCHA, Sérgio. As representações do
envelhecimento. Op.cit., p.36.

213
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

estimulados a acompanhá-lo pelos agentes sociais e institucionais


que percebem as possibilidades lucrativas do seu consumo de
bens variados e de formas de lazer para “terceira idade”.
Organizam-se grupos e programas de variada natureza, prioritária
ou totalmente constituídos pelos de mais idade. Esses grupos
tecem grande parte da estrutura que está visibilizando socialmente
os velhos.
Vivenciando uma experiência nova, de atividade social fora
do âmbito da família, esse processo tem sido liberador. Afastados
do protecionismo cerceador dos filhos – costumeira e equivocada
expressão que pode ser (ou não) de genuína afetividade – ou de
uma nada incomum exploração dos “serviços” de avós como
auxiliares domésticos (as queixas são agora freqüentes),
redescobrem-se em sua individualidade e autonomia justamente
na participação coletiva.
Nesse encontro com seus iguais geracionais, (re)descobrem
interesses, memórias, experiências e até possibilidades de atuação
que a vida no âmbito familiar – de aposentados ou de donas de
casa menos exigidas – não deixava entrever. Esse movimento de
autonomia em relação à família e um sentimento de proximidade
e companheirismo geracionais são agora comuns a diferentes
classes sociais, embora nuançados culturalmente: os das classes
populares, principalmente as mulheres, como companheirismo e
liberação das “tristezas” e conflitos da vida familiar na pobreza; os
de camadas médias, mais facilmente percebendo as injunções
sociais. Nesse sentido, os depoimentos de idosos de camadas
médias em Salvador têm muito a dizer:

Foi uma coisa maravilhosa, me levantou mais, tomei mais


conhecimento. Você fica na luta de casa, de filho, vai
esquecendo as coisas. Prá mim foi maravilhoso. (D. Elisa,
69 anos)
A Faculdade me transporta para o passado, com o
reencontro de pessoas da minha faixa de idade, em troca
de cultura, conhecimentos e experiência. Amadureci sem

214
Alda Britto da Motta

viver, quando passava catorze a dezesseis horas por dia


dentro do trabalho... (D. Lícia, 61 anos)
...aqui a gente encontra ambiente em que a gente se sente
à vontade, porque pressente que todos estão carentes de
viver melhor. (...) A Faculdade aqui desperta potenciais e
coisas que você nem pensava que era capaz ou nunca teve
espaço para mostrar. Nós estamos avançando dentro da
sociedade, mesmo encontrando barreiras impostas pela
própria sociedade, como: “Já está velho para determinadas
coisas...” (Sr. Orlando, 62 anos).

Também estes, de pessoas de classes populares:

Agora estou me despertando e começando a participar das


coisas, sendo até atriz e participando de peças. Me sinto
mais animada e sinto prazer em participar das coisas. (D.
Natividade, 65 anos)
Depois que eu vim pra aqui [o grupo] vi uma coisa melhor,
a gente se distrai tanto aqui, uma dá risada, os passeios que
a gente faz... É uma turma de “coroa”! (D. Flora, 69 anos)

No Brasil, os idosos têm respondido às provocações mais


instigantes da sociedade de duas principais maneiras, que
implicam em diferentes práticas também de gênero:
1) Participando desses grupos com propostas culturais ou de
lazer ampliado (inclusive com viagens), organizados tanto por
agências governamentais (à maneira de serviço social), como
privadas – entre os quais destacam-se os Centros de Convivência,
os Clubes da “Maior Idade” e as “Universidades” para a “Terceira
Idade”, majoritariamente constituídos por mulheres.
2) Organizando-se em associações (federações e
confederações) de aposentados e pensionistas para lutar por
direitos sociais, principalmente homens.
Estudando esse processo, me apoiei diretamente em
pesquisa desenvolvida ao longo de quatro anos, além de algumas

215
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

realizadas por estudantes sob minha orientação – todas em


Salvador. Estudei idosos de ambos os sexos e diferentes classe
sociais, que se reúnem em quatro grupos: três organizados e um
informal. A abrangência de idades foi ampla, concentrando-se
entre 62 e 76 anos, mas incluindo alguns com menos de sessenta e
mais de noventa.
Foram observadas suas expressões de sociabilidade e as
atividades nos grupos, acompanhadas mais diretamente em
algumas delas, e longamente entrevistadas. Das 125 entrevistas, a
maior parte, “naturalmente”, com mulheres, a maioria dos
participantes estava nos grupos organizados: comissão de idosos
de uma associação de bairro, um grupo auto-organizado para fins
de lazer associativo, uma amostra de alunos de uma “faculdade da
terceira idade” (o único com participantes de classe média) e um
grupo de homens que se reúne diariamente em uma praça pública
de bairro popular.
As pesquisas dos estudantes foram realizadas em três
espaços sociais diferentes: um Clube da Terceira Idade
patrocinado pela Bahiatursa, um Centro Assistencial da rede
estadual e a Associação dos Aposentados e Pensionistas da Bahia.
Os grupos com interesses culturais de sociabilidade e lazer
têm sido propostos pelos discutidos agentes sociais de gestão da
velhice, fenômeno mundial52, de que são ilustração, no Brasil,
além dos pioneiros SESC e LBA – com atuação, em certos
momentos, apreciável53 –, os pequenos e sempre desentrelaçados
programas governamentais das várias esferas. Também agora os
grandes programas governamentais da publicizada Política
Nacional do Idoso, que ainda não saiu suficientemente “do

52
LENOIR, Remi. L’invention du troisième age (constitution du champ des agents
de gestion de la vieillesse). Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris,
mar./avr. 1979, pp.26-27; ARIÈS, Philipe. Une Histoire de la vieillesse?
Communications, Paris/Seuil, nº 37, 1983.
53
Cf. SEADE. O Idoso na Grande São Paulo. São Paulo, 1990.

216
Alda Britto da Motta

papel”, além de variadas e ativas organizações privadas. As


associações de aposentados constituem-se em respostas políticas,
por vezes vigorosas, aos prejuízos impostos pelo Estado (um
Estado que cada vez mais se desvencilha de obrigações sociais)
aos “inativos”.
Esse movimento, como expressou Haddad,

abriu um espaço político extremamente rico, que ao


questionar os limites impostos pela Previdência Social, ao
recorrer de forma veemente ao envolvimento sindical,
coloca a questão dos direitos dos inativos como uma
extensão do direito do trabalho.54

Proclamando-se, com ênfase, “a maior categoria do país”55


conseguiram – durante a agora histórica “luta pelos 147%” de
reposição devida nos seus benefícios previdenciários – realmente
aglutinar aposentados e pensionistas em geral, mesmo os que não
seriam diretamente atingidos pela incorporação daquele benefício,
num processo muito interessante de construção identitária, e
simbólica, da qual não estava ausente a questão diretamente da
idade.56
Na prática, em todo o País, além do recurso ao judiciário,
os aposentados foram às ruas e às praças em passeatas e outras
manifestações públicas, multiplicaram as entrevistas aos órgãos
da imprensa, do mesmo modo como já se tinham organizado
eficientemente em lobby no Congresso no período da
Constituinte. Todos sabem da vitória no caso dos 147% da
Previdência, mas é importante assinalar que os aposentados em

54
HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. El movimiento de los jubilados y
pensionistas. Congresso Español de Sociología, 4, Madrid, setembro de 1992.
55
SIMÕES, Júlio de Assis. A maior categoria do País (Notas sobre o aposentado
como ator político). Encontro Anual da ANPOCS, 27, Caxambu-MG, 1994.
OLIVEIRA, Gilson Costa. Entrevista. Caderno do CEAS, nº 139, Salvador,
56

maio/junho de 1992.

217
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

movimento transformaram-se, ao longo dessas lutas, em fator


definitivo de visibilização e de mudança da imagem dos idosos no
Brasil. A imprensa documentou abundantemente essa trajetória
até alcançar o registro histórico, pela Folha de S.Paulo, em 1992,
de que a vanguarda política do País, naquele momento, era
constituída pelos idosos.57
A associação da Bahia (ASPEBA) foi bastante ativa naquele
momento.58 Estruturalmente, apresentava características comuns a
esse tipo de organização no país, tanto do ponto de vista das
categorias de associados e das formas de luta, como dos
quantitativos e papéis de gênero ali representados. Eram
majoritariamente constituídas por homens, que tangenciavam a
quase totalidade dos aposentados e das lideranças, várias destas
oriundas das lutas sindicais. Situação que seria de esperar-se de
uma geração em que as mulheres participavam escassamente da
força de trabalho e, portanto, não poderiam estar em grande
número aposentadas. Essas mulheres eram basicamente
pensionistas e apenas uma fazia parte da Diretoria, condizente
com o padrão tradicional de participação das mulheres nessas
agremiações – Diretora Social –, cuidando e obsequiando as
pessoas nas reuniões, figurava a jovem equipe da pesquisa, uma
eficiente anfitriã... Situações que remetem a posições de classe
eram, entretanto, naquele momento de luta, assim comentadas:
“... As profissões foram as mais variadas, indo desde o médico ao
ajudante de cozinha, o que, entretanto, não parece criar qualquer
embaraço na convivência do grupo”.59
Sete anos depois a luta continua, mas agora muito mais
difícil, quase esmagada pelo rolo-compressor da famigerada

57
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. Op. cit.
58
Ver PEREIRA, Idma Alves, FRANCO, Nanci H. R., SOUZA, Railda A. de e MOREIRA,
Rita de Cássia C. Idosos em Movimento (a conquista de um direito). Trabalho
final de graduação em Ciências Sociais - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1992.
59
ID., IB., p.55

218
Alda Britto da Motta

Reforma da Previdência Social. De alguma forma, o balanço de


gênero também está mudando na Bahia, a Associação foi
recentemente presidida por uma mulher.
Outras formas principais de participação em grupo e de
visibilização social dos idosos referem-se às citadas atividades
culturais e de lazer. Sua grande variedade de classificações e seu
número, surpreendentemente, crescente podem ser distinguidos
nos três grandes tipos já referidos: grupos de convivência, clubes
da “maior” idade e programas ou cursos para a “terceira idade”.
Os dois primeiros direcionam-se claramente para o lazer e têm,
não raro, algum apoio estatal para isso, particularmente os
“clubes” filiados à EMBRATUR e/ou órgãos estaduais de turismo
oficial.
Reitero que a maioria dos participantes desses grupos
organizados para o lazer ou a cultura é de mulheres. Elas estão
sempre em programas que tenham alguma organização formal,
uma maneira, talvez, de justificar para a família (e para si próprias)
sua “saída” de casa – reúnem-se em grupos, associações e clubes
específicos para idosos, freqüentam cursos e “universidades” para
a terceira idade”. Os homens, excetuando-se os dos movimentos
de aposentados – não apenas porque demograficamente
minoritários, mas até por tradição – reúnem-se em grupos mais
espontâneos ou informais nos bancos das praças, nos jogos de
dominó, nos clubes sociais, dependendo da classe social a que
pertençam. Somente agora estão aumentando a participação em
grupos mistos de lazer e de atividades culturais, mas de forma
lenta.
Os grupos ou programas de propostas culturais ou
educacionais são de variadas formas e eficácia e, freqüentemente,
têm a equivocada pretensão de ensinar os velhos... a viver! Na
Bahia tenho encontrado programas estruturados em variados
níveis e temáticas para a classe média e propostas praticamente
nominais para as classes populares. Os cursos são de extensão,
em Universidades, ou os “laboratórios” e “oficinas” de curta

219
Gênero e classe social na análise do envelhecimento

duração, organizados por profissionais também de origem


universitária. As mais amplas e conhecidas dessas iniciativas são as
denominadas Universidades da Terceira Idade.
Estas, como proposta, alinham-se, com outros programas
culturais e de lazer, na atitude crítica em relação ao ainda vigente
preconceito contra os idosos e, sobretudo, ao propor a vivência do
processo de envelhecimento como um momento de retomada de
atividades, de possibilidade de realizações pessoais, de sensação
“de plenitude”, como gostam de expressar. Diferenciam-se dos
outros programas ao propor processos de educação continuada
que – associados às oportunidades de ampliação da sociabilidade,
nem sempre previstas, mas que ocorrem claramente na prática –
lhes dão configuração própria.60
Quanto a definições de classe social, as associações e
federações de aposentados são policlassistas61 e, apesar das
variações ocupacionais de categoria, têm-se mantido coesas
quanto às grandes reivindicações sociais, mas, ao mesmo tempo,
evidentemente tocam mais às camadas médias e populares. A
grande bandeira de luta do movimento concentra-se na defesa da
Previdência Pública, tanto como instrumento de justiça social e
expressão da solidariedade entre as gerações, quanto questão de
sobrevivência para muitos.
Os grupos e programas de propostas culturais e de lazer, de
participação feminina majoritária, têm uma expressão de classe
mais evidente. Grupos de convivência são, em geral, constituídos

60
GUERREIRO, Patrícia. A universidade para a terceira idade da PUC de
Campinas e a experiência de envelhecimento. Trabalho final de Graduação,
Universidade Estadual de Campinas, outubro de 1994; BRITTO DA MOTTA, Alda.
Gênero, envelhecimento e universidade para a terceira idade. In: ÁLVARES, Maria
Luzia Miranda e SANTOS, Eunice Ferreira. (orgs.) Desafios de Identidade: espaço-
tempo de mulher. Belém, CEJUP, 1997; PEIXOTO, Clarice. De volta às aulas ou
como ser estudante aos 60 anos. In: VERAS, Renato. Terceira Idade. Desafios
para o terceiro milênio. Rio de Janeiro, Relume Dumará/UnATI, 1997.
61
PEREIRA, Idma Alves; FRANCO, Nanci H. R.; SOUZA, Railda A. de e MOREIRA,
Rita de Cássia C. Idosos em Movimento (a conquista de um direito). Op.cit.

220
Alda Britto da Motta

por mulheres das classes populares, as “universidades” para a


terceira idade e clubes da “maior idade” são freqüentados, em sua
maioria, por idosas de classe média.
Com novas propostas sociais, o movimento dos
aposentados e os programas para a terceira idade são os grandes
responsáveis não apenas pelo maior dinamismo e visibilidade
atuais dos velhos, mas, sobretudo, para que essa imagem social
seja realmente nova e mais positiva. Por isso, ainda que
permaneçam visíveis práticas diferenciadas de gênero e, na
maioria dos grupos, cada um em “sua” classe, a condição social
de idosos – vivência de geração, reação ao desprivilegiamento
social, etc. – os une.

221
Ar tigos
Artigos

Joan W. Scott
Princeton University

O enigma da igualdade1
Resumo
esumo: Scott estabelece, através deste artigo, uma discussão sobre os conceitos de igualdade
e diferença, do gênero, das identidades individuais e de grupo, enfatizando a necessidade de
historicidade do tema dentro da sociedade contemporânea. O artigo trata também de questões
que envolvem as políticas de ação afirmativa, diferenças de gênero e raça no mundo do trabalho
ou acesso de minorias a universidades. Scott argumenta que a questão da igualdade precisa
ser entendida em termos de paradoxo.
Palavras-chave
alavras-chave: igualdade/diferença, gênero, ação afirmativa, minorias, paradoxo.

Copyright  2005 by Revista Gostaria de começar com uma citação de Olympe


Estudos Feministas de Gouges, uma das primeiras feministas, que escreveu
1
Esta é a tradução de um paper uma grande variedade de coisas interessantes durante a
(título original: The Conundrum of
Equality) publicado pela escritora Revolução Francesa. Ela é mais conhecida pela sua
na série Occasional Papers da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791,
Escola de Ciências Sociais do na qual argumentava que todos os direitos dos homens,
Instituto de Estudos Avançados – enumerados pelos revolucionários em 1789, também
Princeton, lançado em março de
1999.
pertenciam às mulheres. Mas as suas mais memoráveis
linhas são encontradas em um longo tratado escrito em
1788. Foi a sua versão do Contrato Social, que ela, sem
falsa modéstia, considerou igual ou até superior ao de
Rousseau. Nesse tratado, Olympe de Gouges oferecia uma
dezena de propostas de reformas políticas e sociais, bem
como longas críticas às atitudes e práticas de seus
contemporâneos. A certa altura, ela interrompeu uma longa
discussão com uma observação astuta. “Se eu continuar
com esse tema”, comentou, “irei longe demais e atrairei a
inimizade daqueles que, sem refletirem sobre minhas boas
idéias ou apreciarem minhas boas intenções, condenar-
me-ão sem piedade como uma mulher que somente tem
paradoxos a oferecer e não problemas fáceis de serem
2
Todas as referências sobre de resolvidos.”2
Gouges podem ser encontradas Venho até vocês hoje arriscando uma “condenação
em SCOTT, 1996, p. 19-56.
penosa”, “como uma mulher que somente tem paradoxos

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 216, janeiro-abril/2005 11


JOAN SCOTT

a oferecer e não problemas fáceis de serem resolvidos.”


De fato, meu argumento será o de que não existem soluções
simples para as questões, debatidas calorosamente, da
igualdade e da diferença, dos direitos individuais e das
identidades de grupo; de que posicioná-los como conceitos
opostos significa perder o ponto de suas interconexões. Pelo
contrário, reconhecer e manter uma tensão necessária
entre igualdade e diferença, entre direitos individuais e
identidades grupais, é o que possibilita encontrarmos
resultados melhores e mais democráticos.
Acho que vocês estão cientes de que os debates
atuais sobre igualdade e diferença, direitos individuais e
identidades de grupo, tomam forma polarizada. Darei
alguns exemplos, os quais não são exaustivos e creio que
vocês conhecerão ainda outros.
A ação afirmativa tem sido atacada como uma
forma de “preferência de grupo” que discrimina indivíduos;
leis de antidiscriminação gay têm sido repelidas na medida
em que conferem direitos especiais que indivíduos não
precisam e não apreciam; a pressão para transformar
corpos docentes de universidades, faculdades de direito e
de medicina, em grupos mais diversificados tem sofrido
resistência na medida em que a atenção à identidade de
grupo subvaloriza avaliações sobre o mérito objetivo de
qualquer candidato individual; os proponentes do
multiculturalismo insistem para que grupos de identidade
sejam representados em toda sua diversidade no currículo
educacional, enquanto seus oponentes advertem que
histórias separadas de grupos raciais e étnicos promovem
o que um intelectual considera “o virus do tribalismo”, e
outro “a desunião da América.” A pressão para contratar
representantes de grupos minoritários para ensinar sobre
minorias tem sofrido resistência na medida em que não há
correlação necessária entre etnicidade, raça ou gênero,
de um lado, e capacidade profissional, de outro. É
necessário ser mulher para lecionar história das mulheres?
Negro para ensinar literatura afro-americana? Judeu para
dirigir um programa de Estudos Judaicos? Tem havido
também uma disputa acirrada sobre a questão de escolas
separadas para homens e mulheres, meninos e meninas.
Será que a igualdade exige as mesmas condições para
todos, seja qual for o seu sexo? Quando é que instalações
separadas – como na Citadel ou no Instituto Militar da
Virgínia – são prejudiciais (como considerou a Suprema
Corte no ano passado)? E quando é que elas são
vantajosas, como insistem as defensoras das prestigiosas
faculdades de mulheres ou as fundadoras da Escola para
Meninas no Harlem? A questão de onde e de como
reconhecer grupos de identidade e de quando ignorá-los

12 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

também se estende aos espaços econômicos e políticos.


O fato de se considerar a gravidez como uma desvantagem
nos planos de saúde coloca as mulheres em pé de
igualdade com os homens no local de trabalho ou
desvaloriza uma experiência (e função social) que é
exclusiva das mulheres? Retraçar as fronteiras de distritos
eleitorais para aumentar o número de representantes de
minorias em cargos públicos tem sido uma proposta
rejeitada, não só devido à “consciência de raça”, mas
também porque fere o princípio de que qualquer indivíduo
pode – e deve – ser capaz de representar os diferentes
interesses de seus/suas constituintes. A democracia
representativa, argumenta-se, não se baseia na
representação proporcional de grupos. Questões sobre
grupos e suas representatividades chegam ao teatro – o
espaço da ilusão e da imaginação, no qual se considera
que temas literais são transcendidos. Poderiam negros
serem escolhidos para papéis de brancos ou vice-versa?
Caucasianos podem representar eurasiáticos? A
controvérsia sobre essa última questão quase causou o
cancelamento da produção da Broadway, do musical Miss
3
MINOW, 1997. Saigon, em 1990. (Baseio esse parágrafo no livro Not Only
for Myself: Identity, Politics, and the Law, de Martha Minow.3)
Grupos ou indivíduos? Na atualidade essa questão
é posta como uma escolha clara. Se você seleciona um,
ignora o outro. Alguns argumentam que grupos impedem
de tratar os outros como indivíduos. Os indivíduos devem
ser avaliados por eles mesmos, não por características
atribuídas a eles como membros de um grupo. A igualdade
só pode ser implementada quando os indivíduos são
julgados como indivíduos. Essa é uma posição
freqüentemente legitimada por interpretações rígidas da
Constituição e da Carta de Direitos, as quais tomam a
igualdade para significar simplesmente a presumida
igualdade de indivíduos perante a lei. O outro lado diz que
os indivíduos não serão tratados com justiça (na lei e na
sociedade) até que os grupos com quais eles são
identificados sejam igualmente valorizados. Enquanto o
preconceito e a discriminação permanecerem,
argumentam os partidários dessa posição, os indivíduos não
serão todos avaliados de acordo com os mesmos critérios;
a eliminação da discriminação requer atenção ao status
econômico, político e social dos grupos. Mas quais grupos?
Ser negro ou afro-americano é uma categoria grande o
suficiente para tratar das necessidades específicas e das
experiências de americanos birraciais? Sob qual categoria
deveriam gays e lésbicas descendentes de irlandeses
marchar na Parada do Dia de Saint Patrick? Seria qualquer
categoria grande o suficiente para abarcar os diferentes

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 13


JOAN SCOTT

tipos de pessoas que inclui? É nesses termos que o filósofo


Anthony Appiah alerta sobre a política de identidade de
grupo:
Exigir respeito a pessoas porque elas são negras ou gays
requer que existam alguns padrões para o que seja
considerado afro-americano ou desejo sexual pelo mesmo
sexo. Haverá formas apropriadas para ser um negro ou um
gay, haverá expectativas a serem alcançadas, demandas
a serem atendidas. É nesse momento que alguém que leva
seriamente em consideração a autonomia poderá
4
MINOW, 1997, p. 56. perguntar se nós não estamos substituindo uma espécie de
tirania por outra.4

Appiah coloca o problema em termos de grupos versus


indivíduos, mas ele não escolhe, não pode escolher
qualquer uma das posições. A possibilidade de autonomia
individual para um homem negro ou gay, diz ele, depende
do respeito assegurado para esses grupos. Ao mesmo
tempo, a autonomia individual é limitada pelos padrões
providos pelos próprios grupos. O comentário de Appiah
desnuda o que, em outro contexto, a jurista Martha Minow
denominou de “o dilema da diferença” e que eu quero
pensar em termos de paradoxo.
Há várias definições do que seja um paradoxo. Na
lógica, um paradoxo é uma proposição que não pode ser
resolvida e que é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. O
exemplo clássico é a afirmação do mentiroso: “Eu estou
mentindo”. Na Retória e na Estética, paradoxo é um signo
da capacidade de equilibrar, de forma complexa,
pensamentos e sentimentos contrários, e, assim, a
criatividade poética. O uso comum emprega “paradoxo”
para designar uma opinião que desafia a ortodoxia
prevalente, que é contrária a opiniões preconcebidas. De
certa forma, meus paradoxos compartilham de todos esses
significados, porque desafiam o que, para mim, parece
ser uma tendência generalizada de polarizar o debate pela
insistência de optar por isso ou aquilo. Argumentarei, ao
contrário, que indivíduos e grupos, que igualdade e
diferença não são opostos, mas conceitos
interdependentes que estão necessariamente em tensão.
As tensões se resolvem de formas historicamente específicas
e necessitam ser analisadas nas suas incorporações
políticas particulares e não como escolhas morais e éticas
intemporais.
Listarei meus paradoxos para que vocês tenham uma
idéia sobre o que vou dizer. Nesse momento eles podem
parecer terrivelmente abstratos, mas penso que farão mais
sentido na medida em que eu estiver fornecendo exemplos
históricos concretos do que quero dizer.

14 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

1. A igualdade é um princípio absoluto e uma prática


historicamente contingente.
2. Identidades de grupo definem indivíduos e
renegam a expressão ou percepção plena de sua
individualidade.
3. Reivindicações de igualdade envolvem a
aceitação e a rejeição da identidade de grupo atribuída
pela discriminação. Ou, em outras palavras: os termos de
exclusão sobre os quais essa discriminação está amparada
são ao mesmo tempo negados e reproduzidos nas
demandas pela inclusão.

***

A igualdade é um princípio absoluto e uma prática


historicamente contingente. Não é a ausência ou a
eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da
diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em
consideração. R. R. Palmer, escrevendo no Dictionary of
the History of Ideas, coloca isso assim: “A igualdade requer
5
PALMER, 1973-74, p. 139. um ato de escolha, pelo qual algumas diferenças são
minimizadas ou ignoradas enquanto que outras são
maximizadas e postas a se desenvolver”.5
Na época da Revolução Francesa, a igualdade foi
anunciada como um princípio geral, uma promessa de
que todos os indivíduos seriam considerados os mesmos
para os propósitos de participação política e representação
legal. Mas a cidadania foi conferida inicialmente somente
para aqueles que possuíam uma certa quantia de
propriedade; foi negada para aqueles muito pobres ou
muito dependentes para exercerem o pensamento
autônomo que era requerido dos cidadãos. A cidadania
também foi negada (até 1794) aos escravos, porque eles
eram propriedade de outros, e para as mulheres porque
seus deveres domésticos e de cuidados com as crianças
eram vistos como impedimentos à participação política.
“Desde quando é permitido abrir mão de seu sexo?”,
trovejava o jacobino Pierre-Gaspard Chaumette, ao
confrontar-se com mulheres que exigiam participar em
clubes políticos.
Desde quando é decente ver as mulheres abandonarem
os pios cuidados de suas casas, os berços de seus filhos,
6
Darlene Gay LEVY, Harriet para virem a espaços públicos, discursarem nas galerias,
Branson APPLEWHITE e Mary
nos foros do Senado? Foi aos homens que a natureza confiou
Durham JOHNSON, 1979, p. 219.
os cuidados domésticos? Foi a nós que ela deu seios para
amamentar nossas crianças?6

Diferenças de nascimento, de posição, de status social entre


homens não eram levadas em consideração naquele

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 15


JOAN SCOTT

momento; diferenças de riqueza, cor e gênero sim. O


marquês de Condorcet (de quem a morte em 1792
desproveu as mulheres de uma voz forte) questionava as
razões para a exclusão das mulheres da cidadania quando,
disse ele, elas tinham as mesmas capacidades morais e
racionais dos homens.
Seria difícil provar que as mulheres são incapazes de exercer
a cidadania. Por que indivíduos expostos à gravidez e outras
7
CONDORCET, 1976, p. 98.
indisposições passageiras não estariam aptos a exercitarem
direitos que ninguém jamais cogitou negar a pessoas que
sofrem de gota durante o inverno ou pegam resfriados
facilmente?7

Enquanto Condorcet afirmava que as mulheres poderiam


exercer a cidadania, não tinha tanta certeza de que negros
deveriam – a questão para ele, bem como para outros
tantos revolucionários, era a de quais diferenças
importariam ou não para a concessão de direitos políticos
iguais.
De acordo com o Oxford English Dictionary, na
matemática a igualdade significa quantidades idênticas
de coisas, correspondências exatas. Mas a igualdade como
conceito social é menos preciso. Embora sugira uma
identidade matemática, na prática significa “possuir um
grau semelhante de uma qualidade ou atributo
especificado ou implícito; estar no mesmo nível em termos
de posição, dignidade, poder, habilidade, realização ou
excelência; ter os mesmos direitos ou privilégios”. A relação
entre qualidades, posições sociais e direitos tem variado
de uma época para outra. Desde as revoluções
democráticas do século XVIII, a igualdade no Ocidente
tem geralmente se referido a direitos – direitos que eram
considerados possessão universal dos indivíduos não
obstante suas diferentes características sociais. De fato, a
noção abstrata de indivíduo não era tão universalmente
8
LUKES, 1973, p. 146. inclusiva como parecia. Acreditava-se que o indivíduo
possuía, na descrição de Stephen Lukes, “um conjunto
específico e fixo de características e tendências
psicológicas” e isso funcionava para excluir aqueles que
não se adequavam a esse modelo.8 No final do século
XVIII havia psicólogos, médicos e filósofos que defendiam
que as diferenças físicas de pele ou de órgãos corporais
qualificavam alguns indivíduos e outros não. O anatomista
Jacques-Louis Moreau ofereceu como seu o comentário
de Rousseau de que a localização dos órgãos genitais,
9
Yvonne KNIBIEHLER, p. 835. “para dentro” nas mulheres e “para fora” nos homens,
determinava o alcance de sua influência: “a influência
interna continuamente reposiciona as mulheres no seu sexo
[...] o macho é macho somente em certos momentos, mas

16 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

a fêmea é fêmea por toda a sua vida”.9 Os homens eram


indivíduos porque eram capazes de transcender o sexo;
as mulheres não poderiam deixar de ser mulheres e, assim,
nunca poderiam alcançar o status de indivíduo. Não tendo
semelhança com os homens, elas não poderiam ser
consideradas iguais a eles e assim não poderiam ser
cidadãs. É interessante notar aqui (e isso é importante para
o que eu irei discutir mais tarde) que nesses argumentos a
igualdade pertence a indivíduos e a exclusão a grupos;
era pelo fato de pertencer a uma categoria de pessoas
com características específicas que as mulheres não eram
10
Ver Elissa GELFAND, 1983. consideradas iguais aos homens. O criminologista italiano
Gelfand cita Cesare LOMBROSO Cesare Lombroso assim se referiu ao tema no final do século
e Guglielmo FERRERO, 1896. XIX: “Todas as mulheres caem na mesma categoria, ao
passo que cada homem é um indivíduo em si mesmo; a
fisionomia das primeiras se conforma a um padrão geral;
a dos últimos é ímpar para cada caso”.10
Os atributos especificados ou implícitos que formam
o modelo para a igualdade têm sofrido transformações nos
mais de 200 anos desde o anúncio de que “todos os
homens são criados iguais e imbuídos pelo criador com
certos direitos inalienáveis”. Há poucos lugares no mundo
agora que proibem a população de votar por motivos de
raça ou sexo, embora haja ainda importantes diferenças
no que concerne ao acesso à educação, ao trabalho ou
a outros recursos sociais. E essas diferenças são o objeto
de grandes debates políticos – debates amparados pela
promessa universal da igualdade, uma igualdade que não
conhece diferença, e por modelos historicamente
específicos que em diferentes períodos levam em conta
diferentes diferenças.
Colocando o problema de outra forma: a idéia de
que todos os indivíduos poderiam ser tratados igualmente
inspirou aqueles que se encontraram excluídos do acesso
a algo que eles e suas sociedades consideravam um direito
(educação, trabalho, salários de subsistência, propriedade,
cidadania) a reivindicarem a inclusão através de um
desafio aos modelos que garantiam a igualdade para uns
e a negavam para outros. Os trabalhadores social-
democratas que exigiam o voto universal masculino na
França em 1848 insistiam que “não é cidadão aquele que
disser para outro ‘você é mais soberano do que eu’”.
Contudo – e isso nos leva ao próximo conjunto de
paradoxos – era como trabalhadores e não como indivíduos
que esses homens exigiam reconhecimento de seus direitos
individuais.

***

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 17


JOAN SCOTT

As identidades de grupo são um aspecto inevitável


da vida social e da vida política, e as duas são
interconectadas porque as diferenças de grupo se tornam
visíveis, salientes e problemáticas em contextos políticos
específicos. É nesses momentos – quando exclusões são
legitimadas por diferenças de grupo, quando hierarquias
econômicas e sociais favorecem certos grupos em
detrimento de outros, quando um conjunto de
características biológicas ou religiosas ou étnicas ou
culturais é valorizado em relação a outros – que a tensão
entre indivíduos e grupos emerge. Indivíduos para os quais
as identidades de grupo eram simplesmente dimensões de
uma individualidade multifacetada descobrem-se
totalmente determinados por um único elemento: a
identidade religiosa, étnica, racial ou de gênero. O
processo político é descrito em um artigo sobre “Minorias”
na International Encyclopedia of the Social Sciences:
Grupos não são “naturalmente” ou “inevitavelmente”
diferenciados. As culturas devem defini-los como
diferenciados antes de que eles o sejam. Pessoas de
diferentes raças, nacionalidades, religiões ou línguas podem
viver entre si por gerações, amalgamando e assimilando
ou não, sem diferenciarem-se entre si. Como tudo que é
social, os grupos minoritários precisam ser socialmente
definidos como grupos minoritários, o que compreende um
conjunto de atitudes e comportamentos. (E não é
necessariamente uma questão de representação numérica
na população.) [...]
Uma minoria não precisa ser um grupo tradicional com uma
11
Arnold ROSE, 1972, p. 365-371. longa história de identificação. Ela pode surgir como
resultado de definições sociais que se transformam através
de um processo de diferenciação política ou econômica.
A variação lingüística ou religiosa pode ser considerada
sem importância durante milhares de anos, mas uma série
de eventos políticos pode afinar tanto as distinções
lingüísticas e religiosas que os seguidores de uma variação
sem poder [...] podem tornar-se uma minoria.11

(Eu acrescentaria que é devido a diferenciais de poder


entre homens e mulheres que as feministas têm-se referido
às mulheres como uma minoria, mesmo que elas perfaçam
mais da metade da população. Gostaria de acrescentar
também – e esse é um ponto-chave – que os eventos que
determinam que minorias são minorias o fazem através da
atribuição do status de minoria a algumas qualidades
inerentes ao grupo minoritário, como se essas qualidades
fossem a razão e também a racionalização de um
tratamento desigual. Por exemplo, a maternidade foi
freqüentemente oferecida como a explicação para a
exclusão das mulheres da política, a raça como a razão

18 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

da escravização e/ou sujeição dos negros, quando de fato


a relação de causalidade se dá ao inverso: processos de
diferenciação social produzem exclusões e escravizações
que são então justificadas em termos de biologia ou de
raça.)
O elevado senso de identificação que surge com a
redução de um indivíduo a uma categoria é, ao mesmo
tempo, devastador e embriagador. Como objeto de
discriminação, alguém é transformado em um estereótipo;
como membro de um movimento de luta, esse alguém
encontra apoio e solidariedade. Mesmo assim, a
recompensa de companheirismo tem seus limites. Muito
antes da noção do “politicamente correto” ter se tornado
disponível – no início do século XIX – os trabalhadores
franceses buscaram meios de escapar ao confinamento
da noção de identidade de classe, fosse ela oferecida
por seus superiores sociais ou por seus camaradas no
movimento trabalhista. Em resposta à caracterização pelos
empregadores e políticos dos trabalhadores como
perigosos e indisciplinados, imprevidentes e perdidos, os
líderes trabalhistas insistiam que os trabalhadores amavam
suas atividades e nelas encontravam a realização pessoal;
que queriam nada mais que o direito de trabalhar e de
receberem um salário que reconhecesse o valor social e
pessoal de seu trabalho. Se os trabalhadores endossavam
essa visão como uma questão de necessidade política,
entretanto – fazendo do direito de trabalhar o slogan
triunfante da Revolução de 1848 – eles nem sempre sentiam
que suas aspirações e o sentido de suas vidas estavam
bem expressos. O historiador Jacques Rancière
documentou as atividades de alguns homens
extraordinários que ganhavam salários, mas que não
amavam seu trabalho, que se definiam como
“trabalhadores” mesmo se irritando com os efeitos
reducionistas dessa categoria. Esses homens reuniam-se
após o trabalho em cafés ou sótãos para lerem romances
12
RANCIÈRE, 1989, p. 3. e escreverem poesia. Era o trabalho literário e não o
manual, que era o seu métier preferido – um métier que
não se encaixava facilmente na rubrica de “classe
trabalhadora.”
Você me pergunta como está a minha vida agora. É
exatamente a mesma de sempre. No momento eu olho
para mim mesmo e choro. Perdoe-me essa crise de vaidade
pueril. Parece que eu não encontrei minha vocação em
martelar ferro.12

Assim escreveu Jérôme-Pierre Gilland, que apesar de tudo


se identificou como um ferreiro quando assinou seu texto.
Dou esse exemplo não para amaldiçoar as

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 19


JOAN SCOTT

identidades coletivas, mas para sugerir que elas são formas


inescapáveis de organização social, que elas são
inevitavelmente politicizadas como um meio tanto de
discriminação como de protesto contra a discriminação, e
que elas são um meio através do qual e contra o qual as
identidades individuais são articuladas. Gilland, que se
tornou um dos primeiros representantes dos trabalhadores
na legislatura de 1848, leva tudo isso em conta ao continuar:
13
RANCIÈRE, 1989, p. 3-4. Parece que não encontrei minha vocação em martelar
ferro, embora não haja nada ignóbil nesse chamado. Longe
disso! Da bigorna sai a espada do guerreiro que defende
a liberdade dos povos e o arado que os alimenta. Grandes
artistas têm captado a ampla e máscula poesia de nossas
faces bronzeadas e de nossos membros robustos, muitas
vezes retratando-os com grande felicidade e energia: nosso
ilustre Charlet, acima de todos, quando coloca o avental
de couro ao lado do uniforme de granadeiro e nos diz: “o
povo é o exército”. Como podes perceber, eu sei apreciar
meu trabalho. [...]13

Mas para Gilland a identidade profissional foi uma forma


necessária e insuficiente de auto-identificação.
Outro exemplo da necessidade e da inadequação
14
Todas as referências sobre
das identificações com o grupo vem do feminismo, que
Pelletier podem ser encontradas levanta diferentes tipos de problemas mas, mesmo assim,
em SCOTT, 1996, p. 125-160. segue a mesma lógica. Quando perguntada, na virada
do século, sobre sua definição do que o feminismo deveria
conquistar, a psiquiatra francesa Madeleine Pelletier
respondeu que ele a auxiliaria a “não ser uma mulher do
modo que a sociedade espera”. E mesmo assim, é claro,
foi como mulher, e em nome do grupo – mulheres –, que
Madeleine Pelletier e outras feministas travaram suas
batalhas pela igualdade.14
E isso me leva ao meu paradoxo final: os termos do
protesto contra a discriminação tanto recusam quanto
aceitam as identidades de grupo sobre as quais a
discriminação está baseada. De outro modo, podemos
dizer que as demandas pela igualdade necessariamente
evocam e repudiam as diferenças que num primeiro
momento não permitiram a igualdade. Pelletier insistiu que
as mulheres, como os homens, poderiam ser indivíduos
desde que a lei as reconhecesse como tais. (“Dê à mulher,
mesmo a uma inferior, o direito de votar, e ela cessará de
pensar em si mesma exclusivamente como uma fêmea e
sentir-se-á como um indivíduo.”) Mas Pelletier mesmo assim
argumentava que, para que isso pudesse acontecer, as
mulheres como um grupo deveriam receber o direito de
votar. Seu feminismo, e o de suas precedentes e sucessoras,
ficou preso no problema da diferença sexual.
Quando a exclusão das mulheres da cidadania foi

20 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

legitimada pela referência às diferentes biologias das


mulheres e dos homens, a “diferença sexual” foi
estabelecida não somente como um fato natural, mas
também como uma base ontológica para diferenciação
política e social. No período das revoluções democráticas,
as mulheres foram consideradas como outsiders políticas,
devido à diferença sexual. O feminismo foi um protesto
contra a exclusão das mulheres da política; seu objetivo
foi o de eliminar a diferença sexual na política. Mas a sua
campanha foi voltada às mulheres. Pelo fato de agir em
favor das mulheres, o feminismo produziu a diferença sexual
que buscava eliminar – chamando a atenção exatamente
para a questão que pretendia eliminar. Ouçamos Olympe
de Gouges, valentemente equilibrando essas duas
posições. Ela designa-se a si mesma como um homem de
Estado, uma imitadora de Rousseau e melhor do que ele.
Ela aponta sua feminilidade: “Ó povo, cidadãos infelizes,
ouvi a voz de uma mulher justa e sensível”. Ela conclui o
preâmbulo de sua Declaração dos Direitos da Mulher e
da Cidadã com a surpreendente afirmação de que “o sexo
superior tanto em beleza como em coragem durante o
parto reconhece e declara, na presença e sob os auspícios
do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da
cidadã”. Um de seus panfletos foi intitulado O choro de um
homem sábio; por uma mulher. Ao se posicionar em defesa
de Louis XVI, quando esse estava sendo julgado, ela sugere
ao mesmo tempo que o sexo não deveria ser levado em
consideração (“deixem de lado meu sexo”) e que deveria
ser (“o heroísmo e a generosidade são também partilhados
pelas mulheres, e a Revolução oferece mais do que um
exemplo disso”.) Em um panfleto denunciando os crimes
de Robespierre ela assinou com o anagrama Polyme,
descrito como um “animal anfíbio”. “Eu sou um animal
singular; não sou nem homem, nem mulher. Tenho toda a
coragem de um e, às vezes, a fraqueza do outro.” Ela não
era nem um homem, nem uma mulher, mas era, ao mesmo
15
GREGORY, 1964. tempo, homem e mulher. “Sou uma mulher e tenho servido
meu país como um grande homem.” A questão era
argumentar que as mulheres estavam qualificadas para a
cidadania, que a diferença de seu sexo não fazia diferença.
Mas era precisamente como uma mulher – ou seja, como
alguém marcada por sua diferença sexual – que Gouges
tinha de argumentar.
Certamente podem-se ouvir nuances de ironia na
invocação de mulheridade de Gouges, da mesma forma
que no livro Nigger, de Dick Gregory,15 ou na apropriação
de epítetos como formas de tratamento por grupos
minoritários: negros, bruxas, prostitutas, queers. Mas isso
serve mais para ilustrar meu argumento do que para negá-

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JOAN SCOTT

lo – já que a ironia é um comentário sobre a futilidade de


se separar o positivo e o negativo, a afirmação e a
difamação. A ironia é um meio de lidar com o fato de que
o grupo ao qual se é relegado se torna, para fins de
diferenciação social e de contestação política, o grupo
de nossa identificação afirmativa.

***

Meu argumento tem sido o de que a tensão entre


identidade de grupo e identidade individual não pode ser
resolvida; ela é uma conseqüência das formas pelas quais
a diferença é utilizada para organizar a vida social. Segue-
se dessa observação que tentativas de fazer cumprir
políticas que escolhem uma ou outra posição – grupos ou
indivíduos – não são somente desaconselháveis, mas
impossíveis de implementar. Isso me leva aos debates atuais
sobre a ação afirmativa. Embora haja críticas a serem feitas
sobre a forma pela qual as ações afirmativas têm sido
implementadas em seus 30 anos de existência e questões
a serem levantadas sobre como categorias de identidades
foram determinadas – como qualquer política, a ação
afirmativa não é perfeita –, quero argumentar que suas
premissas levaram em consideração o problema que estou
analisando de uma forma que os críticos dessa política
não o fazem, uma vez que insistem que o mérito (um
conceito elusivo, na melhor das hipóteses) é a única forma
de incluir ou excluir indivíduos em empregos, escolas ou
na política. No restante dessa conferência, quero analisar
as presunções sobre as quais os defensores e os oponentes
da ação afirmativa têm construído seus argumentos.
Desde o seu começo no início da década de 1960
como uma ordem executiva proibindo a discriminação até
a sua articulação como “ação afirmativa” no início da
década de 1970, a ação afirmativa ofereceu não somente
um conjunto de mandados políticos, mas também uma
teoria sobre as relações entre indivíduos e grupos, direitos
políticos e responsabilidades sociais. Foi uma teoria
baseada na noção do liberalismo de que o indivíduo
(concebido como uma abstração singular e não
corporificada) era a categoria universal do ser humano. A
ação afirmativa se remetia ao fato de que as práticas sociais
tinham impedido algumas pessoas de serem incluídas nessa
categoria universal e buscava remover os obstáculos para
a realização de seus direitos individuais. Esses obstáculos
tomaram a forma de identidades de grupo, cujas
características – ao longo da história – foram definidas como
antitéticas à individualidade. O cerne da ação afirmativa
foi possibilitar que indivíduos fossem tratados como

22 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

indivíduos, e portanto como iguais. Mas para conseguir isso


eles precisariam ser tratados como membros de grupos.
Isso levantou a questão da relação entre pertença de grupo
e identidade pessoal, individual de formas profundamente
difíceis. Até que ponto a atribuição de uma identidade de
grupo a um indivíduo era o efeito de uma discriminação
que a força da lei poderia eliminar? Em que medida seriam
essas identidades propriedades essenciais dos indivíduos,
no íntimo de seu ser social, físico ou cultural? Poderia uma
política voltada a erradicar a discriminação deixar de
reificar a existência social de grupos, extirpando-lhes suas
determinações políticas historicamente contingentes? Uma
vez identificado como membro de um grupo específico,
poderia o indivíduo ser percebido fora dele? E a que custo?
Essas foram as questões abertas pela política de ação
afirmativa, questões que não puderam ser definitivamente
respondidas. E não podem ser resolvidas sequer pelo
desmantelamento da própria política. Somente através da
aceitação do fato de que a relação entre grupos e
indivíduos consiste em um processo constante de
negociação em contextos históricos que se transformam é
que podemos abordar essas questões.
A ação afirmativa foi já em sua articulação inicial
uma política paradoxal. Visando a acabar com a
discriminação, não apenas chamou a atenção para a
diferença, como também a abraçou. Visando a tornar a
identidade de grupo irrelevante no tratamento com os
indivíduos, ela reificou a identidade de grupo. Não havia
outra escolha. Os termos do contrato liberal referem-se a
indivíduos. A ficção do indivíduo abstrato, desencorporado
é uma grande virtude da teoria democrática liberal; foi
feita para garantir a igualdade completa perante a lei. Na
sociedade, entretanto, os indivíduos não são iguais; sua
desigualdade repousa em diferenças presumidas entre eles,
diferenças que não são singularmente individualizadas, mas
tomadas como sendo categóricas. A identidade de grupo
é o resultado dessas distinções categóricas atribuídas (de
raça, de gênero, de etnicidade, de religião, de
sexualidade... a lista varia de acordo com tempo e espaço
e proliferou na atmosfera política da década de 1990).
Atribuições a identidades de grupo tornaram difícil a alguns
indivíduos receber tratamento igual, mesmo perante a lei,
porque a sua presumida pertença a um grupo faz com
que não sejam percebidos como indivíduos. (Nesse sentido,
basta olharmos as discussões nesse país sobre o porquê
de as mulheres não poderem votar ou servir em júris e o
porquê de negros não poderem ser considerados cidadãos
ou servirem em unidades integradas das forças armadas).
O problema tem sido que “o indivíduo”, apesar de todas

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 23


JOAN SCOTT

as suas possibilidades de inclusão, tem sido concebido em


termos singulares e sido representado tipicamente como
homem branco. Para qualificar-se como indivíduo, uma
pessoa tem de demonstrar alguma semelhança com essa
figura singular. (A história dos direitos civis e dos direitos das
mulheres envolveu o argumento sobre o que essa
semelhança significaria.) A dificuldade aqui tem sido a de
que a abstração do conceito de indivíduo mascara a
particularidade da sua figuração. Somente aqueles que
não se assemelham ao indivíduo normativo têm sido
considerados diferentes. A dimensão relacional da
diferença – seu estabelecimento em contraste com a norma
– também tem sido mascarada. A diferença tem sido
representada como um traço fundamental ou natural de
um grupo enquanto a norma padronizada (o indivíduo
homem branco) não é considerada como possuidora de
traços coletivos.
A ação afirmativa tem como premissa o indivíduo
abstrato e a ficção de sua universalidade. Ela tentou
preencher a lacuna entre o legal e o social, os direitos dos
indivíduos e os limites postos sobre eles por causa de sua
suposta pertença a um grupo. Mas, para acabar com o
problema da exclusão, a inclusão teve de ser destinada
aos indivíduos como membros desses grupos – uma posição
complicada. A palavra “afirmativa” pretendia reconhecer
e corrigir o problema: para se reconhecer o indivíduo, deve-
se tomá-lo como membro de grupos; para reverter a
discriminação, deve-se praticá-la (mas com uma diferença
– uma finalidade positiva). Um diálogo que teve lugar em
um dos momentos fundantes da política federal de ação
afirmativa ilustra a tremenda dificuldade conceitual
envolvida nessa reversão de prática discriminatória. Em
1969 o secretário do Trabalho de Richard Nixon, George
Schultz, defendeu o Plano Filadélfia (o qual estabelecia
metas para contratar minorias na construção civil) em
resposta ao questionamento hostil do senador da Carolina
do Norte Sam Ervin:
Sen. Ervin: E sua ação afirmartiva não é [...] contratar
pessoas sem se preocupar com a raça, mas contratá-las
com base na raça.
Sec. Schultz: Não contratá-las com base na raça mas para
tomar ações afirmativas para fazer com que se fique exposto
16
John David SKRENTNY, 1996, p. a pessoas de outras raças, e propiciar a elas chances iguais
200. de emprego, e se você possui um sistema que não lhe
proporciona esse tipo de escolha, e é possível utilizar de
outros métodos de recrutamento na comunidade para lhe
oferecer mais variáveis, você deve tomar ações afirmativas
para isso, e como eu disse anteriormente, eu concordo com
você que isso significa que se está dando atenção à raça.

24 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

Sen. Ervin: Em outras palavras, um programa de ação


afirmativa dentro do Plano Filadélfia é que, para possibilitar
a contratação sem a atenção à raça, um contratante deve
levar em consideração questões da raça na contratação.16

Se o senador Ervin estava se opondo à substituição


de brancos por negros na construção civil, ele não
considerou a contratação exclusiva de brancos como
sendo uma “questão de raça”. E o secretário Schultz nunca
efetivamente afirmou que o governo federal estava
intervindo porque os empregadores (protegidos por
sindicatos da construção civil) usavam de longa data a
preferência racial por brancos. Contratar brancos não era
visto por esses homens como uma questão de raça, mas
contratar negros era; não contratar negros constituía
discriminação contra eles, mas não parecia ter nada a ver
com a contratação de brancos. Os brancos eram
contratados como indivíduos; somente os negros é que
eram tomados como membros de um grupo racial (e a
sua pertença, não suas habilidades e qualidades, os
desqualificava). A ação afirmativa entendia que negros
nunca poderiam ser contratados como indivíduos (porque
não eram brancos), então os defendia como grupo. Ainda
assim, o objetivo declarado era separar a identidade de
grupo da consideração da qualificação individual para o
trabalho. Para não tornar a raça o tema, entretanto, a raça
foi nomeada como o problema; para se ter certeza de
que a raça não era o tema, a composição racial da força
de trabalho (nesse caso) teria de ser monitorada. Como
resultado, na aplicação das políticas de ação afirmativa,
a raça permaneceu uma questão de “negritude” e não
de “branquitude” (da mesma forma como o gênero era
uma questão de mulheres e não de homens). Mas havia
ainda uma outra dimensão contraditória: embora os
defensores da ação afirmativa não atacassem diretamente
a associação de universalidade e individualidade ao
homem branco, suas políticas tinham o efeito de
particularizar a norma. O homem branco se tornou visível
como uma categoria estatística e um grupo social, e no
clima diferente dos anos 1990 começou a reivindicar que
ele também era vítima de discriminação!
Essa reivindicação somente poderia ser feita por
meio da desconsideração das relações de poder que a
ação afirmativa buscava modificar e é importante notar
que a ação afirmativa havia construído em seu bojo uma
análise de poder. Ela tratava o poder de discriminar como
uma questão estrutural; não como uma motivação
individual consciente, mas como um efeito inconsciente
dessas estruturas. Ela analisou o poder como resultado de
uma longa história de discriminação que produziu

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 25


JOAN SCOTT

instituições e atores que tomaram a desigualdade como


algo dado. A ação afirmativa usou a força do governo
federal para retificar desigualdades sociais e para garantir
o acesso de indivíduos (a empregos e à educação) que
previamente haviam sido rejeitados com base no gênero,
bem como na raça.
Enquanto buscava promover oportunidades para
indivíduos, a ação afirmativa também tinha como premissa
uma visão de justiça social. Essa visão preferia a inclusão à
discriminação, mesmo se isso significasse a perda de
privilégios tradicionais para alguns indivíduos. Ela endossou
a igualdade de oportunidades e algumas de suas
implicações niveladoras: comunidades mais homogêneas
e menos hierarquicamente organizadas em termos de
gênero e de raça. Não quero parecer ingenuamente
idealista e negar o oportunismo que pode estar envolvido
em alguns desses programas. O sociólogo John David
Skrenthy mostra de forma muito clara que Richard Nixon,
cinicamente, sancionou o Plano Filadélfia como um meio
de minar as constituintes do Partido Democrata, visando a
dividir trabalhadores negros e brancos e colocar grupos
de direitos civis contra o movimento organizado dos
trabalhadores, a raça contra a classe. Mas eu realmente
penso que, apesar desse tipo de calculismo (e estou certa
de que havia muito disso), noções de honestidade, justiça
e responsabilidade coletiva foram evocadas e
implementadas. Partindo dessa perspectiva, os aspectos
paradoxais da ação afirmativa poderiam ser tomados de
forma positiva como um esforço para equilibrar interesses
contrários: de direitos e de necessidades; de indivíduos,
grupos e do bem coletivo da nação.
Quase 30 anos depois, em outro clima político
(caracterizado pelo controle econômico e pelo crescimento
do individualismo), essa leitura positiva tem sido
17
New York Times, 19 de janeiro questionada, mas os paradoxos da ação afirmativa aqui
de 1996. expostos ainda estão em evidência. Quando os dirigentes
da Universidade da Califórnia aboliram a ação afirmativa
nas admissões e contratações em 1995, alegaram estar
agindo em nome da justiça. O governador Pete Wilson se
referiu à ação afirmativa como uma política vergonhosa:
“Preferências raciais”, disse ele, ignorando todas as
considerações sobre o poder e a história, “são por definição
discriminações raciais”.17 E a Corte de Apelação Federal
no caso Hopwood (que declarou inconstitucional a política
de admissão de ação afirmativa da Escola de Direito da
18
UNITED STATES, 1994. Universidade do Texas) usou uma linguagem semelhante.
Os juízes entenderam que não havia nenhum interesse de
Estado em garantir a diversidade étnica ou racial de um
corpo discente e que a raça era uma consideração trivial

26 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


O ENIGMA DA IGUALDADE

(“o uso da raça [...] para escolher estudantes simplesmente


garante um corpo discente de aparência diferente. Esse
critério não é mais racional em seus próprios termos do
que escolhas baseadas na estatura ou no tipo sangüíneo
dos candidatos”).18 Entenderam também que não havia
existido um caso óbvio de discriminação anterior
(equivalente, por exemplo, à prisão de japoneses durante
a Segunda Guerra Mundial) na Universidade do Texas que
justificasse a política; que direitos individuais estariam sendo
violados quando as minorias fossem tratadas “como um
grupo”; e que não havia diferença entre uma classificação
de raça “benigna” ou “hostil”. Mais reveladoramente, os
juízes rejeitaram o reconhecimento da Suprema Corte, no
caso Bakke, de 1978, de que para compensar os efeitos
da discriminação era necessário equilibrar opostos.
Embora o juiz Blackmun (em Bakke) reconhecesse a tensão
inerente ao uso de medidas com consciência de raça para
promover uma sociedade neutra com relação à raça,
mesmo assim ele aceitou essa condição como necessária.
Vários juízes que, diferentemente de Powel e Blackmun, ainda
estão no cargo já renunciaram à tolerância dessa tensão.

Além da surpreendente noção de que o Judiciário


tem o poder de renunciar à tolerância de uma tensão
estrutural, essa passagem é marcante por evidenciar o
abandono do projeto de neutralidade racial. A tensão
permanece aberta na discussão da Corte. E não pode ser
resolvida porque uma tensão entre consciência de raça e
neutralidade de raça (grupos e indivíduos) é parte integral
de qualquer solução. Pois a obtenção de equidade
(ignorando genuinamente a diferença de acordo com os
pilares do liberalismo) requer que se nomeiem os grupos
que têm sido excluídos (reconhecendo a diferença) e que
os tratem de forma diferenciada no futuro. Ao recusar-se a
tolerar a tensão, portanto, a Corte declarou sua falta de
interesse em uma solução e, por extensão, na crença da
existência de discriminação.
Outro aspecto do caso Hopwood merece ser
mencionado. Trata-se do fato de que Cheryl Hopwood, uma
mulher branca, usou o processo para reivindicar seus
direitos como indivíduo. Aqui estava um membro de outro
daqueles grupos cujos interesses haviam sido protegidos
pela ação afirmativa e que recusava a proteção dessa
política. O gênero, sugeria, era irrelevante; ela estava ali
não como mulher, mas como indivíduo. Cheryl Hopwood
foi tomada como representante de todos os indivíduos
prejudicados pela política de preferência pelo grupo,
demonstrando assim a amplitude (e neutralidade) da
categoria de “indivíduo” – mas também sua “branquitude”

Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005 27


JOAN SCOTT

(como a ausência não somente de uma cor, mas também


de um gênero).
Na universidade visualizada por Hopwood, só existem
indivíduos. A heterogeneidade da comunidade provém
inevitavelmente da especificidade de cada um de seus
membros. A opinião da Corte reconhece que escolhas entre
candidatos devem ser feitas e que é permissível algum tipo
de diversidade:
Uma universidade pode adequadamente favorecer um
candidato sobre outros devido a sua habilidade em tocar
violoncelo, jogar futebol, ou entender a teoria do caos. Um
processo de admissão também pode considerar o estado
de origem do candidato ou a sua relação com ex-alunos
da escola. Escolas de direito especialmente podem analisar
coisas como atividades extracurriculares incomuns na
graduação, as quais podem ser fatores atípicos que afetam
o histórico escolar dessa fase. As escolas podem até
considerar fatores como o fato de os pais dos alunos terem
curso superior ou o status econômico e social do
candidato.19
19
UNITED STATES, 1994. Essas são tidas como diferenças profundas porque são
individualizadas (e não imediatamente visíveis), em
contraste com as qualidades superficiais de raça que
“simplesmente determinariam um corpo discente de
aparência diferente.” A noção de que a experiência de
um tratamento diferenciado com base na raça pode afetar
o pensamento do indivíduo ou seu comportamento foi
rejeitada de forma explícita pela Corte nos seguintes termos:
Cientistas sociais podem debater sobre como o pensamento
e o comportamento das pessoas refletem sua formação,
mas a Constituição garante que o governo não pode alocar
benefícios ou responsabilidades entre indivíduos com base
na premissa de que a raça ou a etnicidade determina como
eles agem ou pensam.20
20
UNITED STATES, 1994.
Ao insistir na idéia de que a avaliação de indivíduos
não deve ser “influenciada pela cor”, a Corte permite que
a discriminação continue, uma vez que explicitamente
desconsidera a possibilidade de que a preferência racial
por brancos afete decisões de admissão. Na versão de
daltonismo racial da Corte, o branco é a ausência de cor
e um corpo discente que tenha uma aparência
homogênea não evidencia injustiça. Um cartoon de Mike
Peters no Dayton Daily News ilustra muito bem o caso. Em
um mar de faces brancas, um estudante comenta com
outro: “Puxa, isso funciona! Desde que acabamos com a
ação afirmativa aqui no campus, eu nunca mais percebi a
cor de ninguém”. A decisão de Hopwood (e leis como a
Proposição 209 na Califórnia) agora aprontam o palco para

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O ENIGMA DA IGUALDADE

protestos contra a admissão de qualquer estudante negro


por brancos que acreditam que os negros por definição
não têm “mérito” para entrar em universidades e cursos de
Direito. O aparecimento de estudantes que “parecem
diferentes” torna-se – perversamente – um sinal de
discriminação.

***

Se identidades de grupo são um fato da existência


social e se as possibilidades de identidades individuais
repousam sobre elas tanto em sentido positivo quanto
negativo, então não faz sentido tentar acabar com os
grupos ou propositadamente ignorar sua existência em
nome dos direitos dos indivíduos. Faz mais sentido perguntar
como os processos de diferenciação social operam e
desenvolver análises de igualdade e discriminação que
tratem as identidades não como entidades eternas, mas
como efeitos de processos políticos e sociais. Em quais
circunstâncias a diferença entre os sexos importa para o
tratamento das mulheres na política? Como é que a raça
veio a justificar o trabalho forçado? Em quais contextos a
etnicidade se torna uma forma primária de identidade?
Como leis e outras estruturas institucionais produziram ou
transformaram as fronteiras entre os grupos sociais? Quais
têm sido as formas coletivas e individuais de resistência a
identidades de grupo?
Essas questões presumem que a identidade é um
processo complexo e contingente suscetível a
transformações. Elas também subentendem que política é
a negociação de identidades e dos termos de diferença
entre elas. De fato, gostaria de argumentar – inconclusiva
e enigmaticamente, alguns podem pensar – que é
precisamente onde os problemas são mais intratáveis e
menos passíveis de resolução que a política mais importa.
A política tem sido descrita como a arte do possível; eu
preferiria chamá-la de negociação do impossível, a
tentativa de chegar a soluções que – em sociedades
democráticas – aproximam os princípios da justiça e da
Referências bibliográficas igualdade, mas que só pode sempre falhar, deixando assim
aberta a oportunidade de novas formulações, novos
CONDORCET, Marquis de. “On the arranjos sociais,
Admission novas negociações.
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[Recebido em junho de 2004 e


aceito para publicação em julho de 2004]

The Conundrum of Equality


Abstract
Abstract: Through this article, Scott sets up a discussion about the concepts of equality and
difference, gender, individual identity and group identity, emphasizing that this theme needs to
be historicized in contemporary society. This article draws attention to questions that envolve
affirmative action policies, gender and race differences in the labour world or minorities´ access
to universities. Scott argues that the equality question must be understood in terms of paradox.
Key words
words: equality/difference, gender, affirmative action, minorities, paradox.

Tradução de Jó Klanovicz e Susana Bornéo Funck

30 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005


RE-CRIANDO A (CATEGORIA) MULHER?
Adriana Piscitelli

Introdução
Instigante e desafiador, conceito de gênero vem disseminando-se rapidamente a partir da
década de 1980. Parte significativa da atração exercida por esse conceito reside no convite
que ele oferece para um novo olhar sobre a realidade, situando as distinções entre
características consideradas femininas e masculinas no cerne das hierarquias presentes no
social. Através da utilização desse conceito, algumas autoras, inclusive, consideraram
possível desestabilizar as tradições de pensamento.1 Para além de ter ou não respondido a
essa expectativa, o conceito de gênero tem se difundido notavelmente na teoria social --
suas marcas são evidentes na produção de reconhecidos autores tais como Anthony Giddens
ou Arjun Appadurai.
Entre as/os acadêmicos/as que dialogam com as discussões feministas, o conceito de gênero
foi abraçado com entusiasmo, uma vez que foi considerado um avanço significativo em
relação às possibilidades analíticas oferecidas pela categoria “mulher”. Essa categoria
passou a ser quase execrada por uma geração para a qual o binômio feminismo/”mulher”
parece ter se tornado símbolo de enfoques ultrapassados. Mas, no marco das discussões das
acadêmicas feministas percebe-se, nos últimos anos, uma nova ênfase na utilização da
categoria “mulher”. Evidente em alguns Encontros sobre gênero no Brasil, esse retorno é
discutido na produção internacional, inclusive naquela difundida nas principais publicações
feministas do País. Num número recente da Revista de Estudos Feministas, Linda
Nicholson alude abertamente à importância da utilização dessa categoria, confrontando-a
com idéias embutidas no conceito de gênero. Nos termos dessa autora, não se trata
exatamente de um “retorno”, uma vez que as novas formulações não estariam
contaminadas pelo “fundacionalismo biológico” -- termo que explico adiante -- que
perpassaria os usos anteriores da categoria mulher e do conceito de gênero2.
Neste texto, que tem um caráter puramente didático, faço alguns comentários sobre a re-
criação da categoria “mulher” nas discussões contemporâneas. Mas, considerando que esse
vaivém está perpassado por tensões que só podem ser compreendidas levando em conta a
íntima relação entre as discussões feministas e o desenvolvimento do conceito de gênero,
proponho, antes de nada, um breve percurso pelo pensamento feminista desenvolvido a
partir de finais da década de 1960, prestando atenção aos seus pressupostos e aos principais
conceitos por ele desenvolvidos. Em seguida, mostro como o conceito de gênero foi criado
no marco desses pressupostos. Realizo, depois, alguns comentários sobre os conteúdos que

1
SCOTT, Joan Wallach: Gender and the Politics of History, New York, Columbia University Press, 1988.
2
NICHOLSON, Linda: “Interpretando o gênero”. Revista de Estudos Feministas, vol. 8, n°2/2000, pp. 9-43.
esse conceito adquire nas teorias contemporâneas e as tensões que ele provoca em termos
da prática política feminista. Finalmente, considero a maneira como a categoria “mulher” é
re-introduzida no âmbito desse debate.

Por que mulher?


O conceito de gênero foi elaborado em um momento específico da história das teorias
sociais sobre a "diferença sexual". Mas, se essa elaboração seguiu caminhos existentes na
teoria social, operando, inclusive, com vários de seus pressupostos, é importante perceber
que o conceito de gênero, desenvolvido no seio do pensamento feminista, foi inovador em
diversos sentidos. Perceber o alcance dessa inovação exige prestar atenção às formulações
desse pensamento.
No século XIX, a idéia de "direitos iguais à cidadania", pressupondo igualdade entre os
sexos, impulsionou uma mobilização feminista importante, no Continente Europeu, na
América do Norte e em outros países. Entre as décadas de 1920 e 1930 as mulheres
conseguiram, em vários lugares, romper com algumas das expressões mais agudas de sua
desigualdade em termos formais ou legais, particularmente no que se refere ao direito ao
voto, à propriedade e ao acesso à educação. Essa história é bastante conhecida, mas o que
me interessa reter dela é que dentro desse movimento era formulada uma pergunta,
decorrente da idéia de "direitos iguais", que será central no pensamento feminista, após a
década de 1960. Se a subordinação da mulher não é justa, nem natural, como se chegou a
ela e como se mantém?
O pensamento feminista, como expressão de idéias que resultam da interação entre
desenvolvimentos teóricos e práticas do movimento feminista, está longe de constituir um
todo unificado. No entanto, apesar das importantes diferenças presentes nas diversas
vertentes desse pensamento, as abordagens desenvolvidas após finais da década de 1960
compartilham algumas idéias centrais. Em termos políticos, consideram que as mulheres
ocupam lugares sociais subordinados em relação aos mundos masculinos. A subordinação
feminina é pensada como algo que varia em função da época histórica e do lugar do mundo
que se estude. No entanto, ela é pensada como universal, na medida em que parece ocorrer
em todas partes e em todos os períodos históricos conhecidos.
As diversas correntes do pensamento feminista afirmam a existência da subordinação
feminina, mas questionam o suposto caráter natural dessa subordinação. Elas sustentam, ao
contrário, que essa subordinação é decorrente das maneiras como a mulher é construída
socialmente. Isto é fundamental, pois a idéia subjacente é a de que o que é construído pode
ser modificado. Portanto, alterando as maneiras como as mulheres são percebidas seria
possível mudar o espaço social por elas ocupado. Por esse motivo, o pensamento feminista
colocou reivindicações voltadas para a igualdade no exercício dos direitos, questionando,

2
ao mesmo tempo, as raízes culturais destas desigualdades. As feministas trabalharam em
várias frentes: criaram um sujeito político coletivo -- as mulheres -- e tentaram viabilizar
estratégias para acabar com a sua subordinação. Ao mesmo tempo procuraram ferramentas
teóricas para explicar as causas originais dessa subordinação.
É interessante prestar atenção às correntes do pensamento feminista que se desenvolveram
nos Estados Unidos e na Inglaterra, a partir de finais da década de 1960. Elas apresentam
diferenças na percepção das origens e causas da opressão e, também, nos mecanismos
considerados apropriados para livrar-se dela. Mas, mostram, também -- e sem pretender
homogeneizá-las – que compartilham vários pressupostos
Entre essas correntes, algumas vertentes do feminismo socialista têm uma postura
particularmente clara no que se refere às causas originais da opressão das mulheres.
Seguindo a argumentação de Engels no livro As origens da família, a propriedade privada
e o estado3), orientam-se pela idéia de que a divisão de trabalho baseada no sexo implicou
desigualdade ou opressão sexual apenas no momento em que surgiram as classes sociais
baseadas na propriedade privada. As formas da opressão sexual, tais como as formas de
parentesco e a família, teriam uma base material na estrutura de classes. A opressão das
mulheres, assim como a exploração de classe, poderiam ser superadas através da
instauração de uma forma de organização social mais desenvolvida, numa sociedade sem
classes, por exemplo, no socialismo. Para esse estilo de pensamento feminista, portanto, a
reprodução é opressiva na sociedade de classes. Quero dizer, o problema não é a
reprodução, mas o surgimento das classes sociais baseadas na propriedade privada.
Outras vertentes do feminismo socialista criticam estas premissas, mostrando que as
hierarquias de gênero persistiram nos países socialistas nos quais teve lugar a transformação
na organização social que supostamente libertaria as mulheres. Baseando-se nessas
experiências, essas correntes mostram que considerar o sexo como 'contradição secundária'
e 'a produção como força motriz principal da mudança social' não é suficiente para
promover as mudanças necessárias. As causas originais da opressão feminina são
colocadas, portanto, na associação capitalismo/patriarcado, considerando produção e
reprodução como igualmente determinantes.
O feminismo radical entende de maneira diferente as causas da opressão das mulheres.
Shulamith Firestone, uma das principais pensadoras desta corrente, afirma no livro A
dialética do sexo 4 que as origens da subordinação feminina estão visivelmente localizadas
no processo reprodutivo. Segundo essa autora, os papéis desempenhados por homens e
mulheres na reprodução da espécie são fatores fundamentais de onde derivam as
3
ENGELS, Friederich: The Origins of the family, private property and the state. International Publishers, Nova York,
1972 (1891)
4
FIRESTONE, Shulamith: A dialética do sexo. Labor, Rio de Janeiro, 1976.

3
características que tornam possível a dominação que os homens exercem sobre as mulheres.
As diferenças entre os papéis sociais e econômicos de homens e mulheres, o poder político
e a psicologia coletiva são resultado da maneira como se reproduzem os seres humanos. De
acordo com Firestone, o papel das mulheres no processo reprodutivo -- uma vez que são os
únicos seres humanos capazes de engravidar e amamentar e dado que os bebês humanos
têm um período extraordinariamente prolongado de dependência física -- as torna
prisioneiras da biologia, forçando-as a depender dos homens.
O feminismo radical considera que para liberar as mulheres é necessário derrotar o
patriarcado. Isso só seria possível se as mulheres adquirissem o controle sobre a
reprodução. Na verdade, para Firestone, a meta do movimento feminista deveria ser não
apenas a eliminação do privilegio do homem, mas a eliminação da própria distinção sexual.
E isto seria possível transformando o mecanismo da reprodução -- a reprodução da espécie
deveria ser substituída pela reprodução artificial. Dessa maneira, segundo a autora, as
diferenças genitais não teriam mais significado cultural.
Nessas explicações sobre as causas da opressão feminina, a reprodução adquire um lugar
importante: as funções reprodutivas femininas aparecem no cerne da produção da
desigualdade sexual. Chamo a atenção para esse ponto porque ele mostra que, nessas linhas
de pensamento, a “condição” compartilhada pelas mulheres -- e da qual se deriva a
identidade entre elas -- está ancorada na biologia e na opressão por parte de uma cultura
masculina. O corpo aparece, assim, como o centro de onde emana e para onde convergem
opressão sexual e desigualdade. Desenvolvendo a análise dessa condição, essas correntes
de pensamento trabalham recorrentemente com uma série de categorias e conceitos
fundamentais, particularmente, mulher, opressão e patriarcado. Esses aspectos, centrais no
pensamento feminista pós 1960, são importantes para compreender o contexto no qual se
desenvolve o conceito de gênero.

Identidade, opressão, patriarcado

A categoria "mulher" tem raízes na idéia do feminismo radical segundo a qual, para além de
questões de classe e raça, as mulheres são oprimidas pelo fato de serem mulheres -- pela sua
womanhood.5 Essa idéia foi útil, em termos políticos, para desenvolver o próprio conceito
de feminismo, diferenciando-o, no contexto específico das discussões que tinham lugar nos
Estados Unidos e na Inglaterra, do "pensamento de esquerda". O reconhecimento político
das mulheres como coletividade ancora-se na idéia de que o que une as mulheres ultrapassa
em muito as diferenças entre elas. Dessa maneira, a "identidade" entre as mulheres tornava-
se primária.
5
Estou seguindo aqui basicamente a GRANT, Judith: Fundamental Feminism. Contesting the Core Concepts of Feminist
Theory. Routledge, New York, 1993.

4
Mas, qual é a base para essa identidade entre mulheres? Nessa linha de pensamento, a
categoria "mulher" é pensada como incluindo traços biológicos e, também, aspectos
socialmente construídos. Em termos gerais, as feministas radicais sublinharam a conexão
entre mulheres através do tempo e das culturas, considerando que o corpo feminino era uma
pré-condição necessária para a permanência da opressão patriarcal.6 E, se a ênfase
concedida aos aspectos biológicos colocava o feminismo num terreno potencialmente
essencialista, o desenvolvimento do conceito de opressão incidiu num alargamento dos
significados do político.
Compreender esse alargamento exige levar em conta o contexto no qual se desenvolviam
essas discussões. Essas feministas contestavam concepções presentes no pensamento de
esquerda influenciado pelo marxismo, para as quais a política é um discurso racional que
define a exploração de acordo com critérios determinados objetivamente: a classe, por
exemplo, é uma condição de exploração e opressão objetiva. Considerou-se que esse tipo
de definição resultava pouco apropriada para o feminismo, na medida em que as mulheres
estão presentes em grupos que, nesses termos, poderiam ser definidos como “oprimidos” e
“opressores” -- seguindo esses critérios objetivos, mulheres tais como as brancas de classe
media não seriam consideradas "oprimidas". As feministas afirmaram que todas mulheres
sofriam opressão. Essa afirmação era justificada definindo de maneira diferente a opressão.
Segundo elas, antes que nada, era necessário prestar atenção às experiências femininas: a
opressão incluiria tudo o que as mulheres “experienciassem” como opressivo. Dessa
maneira, as feministas radicais afirmaram a validade das teorias subjetivas da opressão
contra as “objetivas”.
As questões que o movimento de liberação das mulheres definiam como políticas não
podiam, muitas vezes, ser enquadradas nas instituições tradicionalmente coercitivas tais
como o capitalismo ou o Estado. Isto é interessante porque, ao definir o político de tal
maneira que acomodasse as novas concepções de opressão, toda atividade que perpetuasse a
dominação masculina passou a ser considerada como política. Nesse sentido, a política
passava a envolver qualquer relação de poder, independentemente de estar ou não
relacionada com a esfera pública.
Considerando que as mulheres eram oprimidas enquanto mulheres e que suas experiências
eram prova de sua opressão, se chegou à conclusão de que a opressão feminina devia ser
mapeada no espaço em que as mulheres a viviam, isto é, nas suas vidas cotidianas. A
conhecida idéia "o pessoal é político" foi implementada para mapear um sistema de
dominação que operava no nível da relação mais íntima de cada homem com cada mulher.

6
Os conceitos fundamentais da teoria feminista deste período devem ser entendidos pensando que a visão hegemônica na
teoria feminista era a da perspectiva das mulheres brancas de classe média. A categoria "mulher" era implicitamente
associada a "mulher branca", o que será contestado seriamente mais tarde.

5
Esses relacionamentos eram considerados, sobretudo, políticos, na medida em que político
é essencialmente definido como poder.
Essa redefinição do político tem uma importância enorme. Em termos de prática política,
as feministas procuraram desvendar a multiplicidade de relações de poder presentes em
todos os aspectos da vida social e isto as levou a tentar agir nas mais diversas esferas. Em
termos teóricos, elas trabalharam com uma idéia global e unitária de poder, o patriarcado,
numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma
relação política. As instituições patriarcais seriam aquelas desenvolvidas no contexto da
dominação masculina. Como a dominação masculina estaria presente através do tempo e
das culturas, poucas instituições poderiam escapar ao patriarcado. Tomando como ponto de
partida a idéia de que os homens universalmente oprimem as mulheres, o pensamento
feminista procurou explicar a forma adquirida pelo patriarcado em casos específicos.
Essa perspectiva de análise dava como estabelecido que as mulheres compartilhavam uma
realidade diferente da dos homens. As feministas radicais argumentaram que a dominação
masculina excluíra as mulheres da história, da política, da teoria, e das explicações
prevalecentes da realidade. Esses argumentos tiveram conseqüências na produção
científica. As teóricas feministas passaram a revisar as produções disciplinares
perguntando-se como seriam diferentes se elas -- história, antropologia, ciência política, etc
-- tivessem considerado relevante considerar o 'ponto de vista feminino'. As formas
tradicionais de explicação das diversas disciplinas foram perscrutadas na procura de
conceitos apropriados para dar conta da opressão feminina e da realidade das mulheres.
Nesse caminho, os conceitos existentes foram confrontados e alguns adquiriram novos
conteúdos.
A efervescência acadêmica provocada pelos interesses feministas deu lugar à crescente
acumulação de um corpo de dados sobre "a situação da mulher". Assim, se constituíram e
consolidaram os estudos da mulher nas mais diversas disciplinas -- a antropologia da
mulher, a historia das mulheres. Esses estudos confrontaram aspectos dessas disciplinas.
Mas, a acumulação de informação sobre a diversidade de experiências femininas e a
sofisticação crescente das perspectivas acadêmicas orientadas pelo feminismo conduziram,
também, ao caminho oposto, isto é, à contestação de vários dos conceitos e categorias com
os quais o pensamento feminista estava operando. E um dos primeiros alvos desses
questionamentos foi a utilização do patriarcado como categoria de análise.
O conceito de patriarcado, útil do ponto de vista da mobilização política, colocou sérios
problemas no que se refere à apreensão da historicidade da condição feminina. O conceito
foi importante na medida em que distinguia forças específicas na manutenção do sexismo e
útil, em termos da tentativa feminista de mostrar que a subordinação feminina, longe de ser

6
inevitável, era a naturalização de um fenômeno contingente e histórico, era que se o
patriarcado teve um início poderia ter um fim. O pensamento feminista procurou no
patriarcado a idéia de uma origem, de um tempo anterior, quando teria começado a história
da opressão das mulheres -- a organização social contemporânea atualizaria a ordem
existente nas sociedades arcaicas, na qual a dominação era exercida por homens. O
problema é que a utilização desse termo fora do seu contexto obscurecia a compreensão das
relações sociais que organizam diversas formas de discriminação. .
O conceito de patriarcado foi estendendo-se no discurso político e na reflexão acadêmica,
sem que fossem trabalhados aspectos centrais de seus componentes, sua dinâmica e seu
desenvolvimento histórico. Com o decorrer do tempo, o patriarcado passou a ser um
conceito quase vazio de conteúdo, nomeando algo vago que se tornou sinônimo de
dominação masculina, um sistema opressivo tratado, às vezes, quase como uma essência.
Assim, o conceito colocou problemas delicados em termos metodológicos, ao referir-se a
um sistema político quase místico, invisível, trans-histórico e trans-cultural, cujo propósito
seria oprimir as mulheres. Embora esse conceito não tenha sido inteiramente abandonado,
hoje resulta fácil critica-lo, por sua generalidade – universalizando uma forma de
dominação masculina situada no tempo e no espaço –, por ser considerado um conceito
trans-histórico e trans-geográfico7 e, ainda, porque esse conceito é essencializante, na
medida em que ancora a análise da dominação na diferença física entre homens e mulheres,
considerada como aspecto universal e invariável.8 Mas, é importante compreender que o
patriarcado, assim como outras explicações da origem e as causas da subordinação
feminina, tinham o objetivo de demonstrar que a subordinação da mulher não é natural e
que, portanto, é possível combatê-la.
As hipóteses explicativas sobre as origens da opressão feminina foram sendo gradualmente
questionadas e abandonadas na busca de ferramentas conceituais mais apropriadas para
desnaturalizar essa opressão. Esse quadro de efervescência intelectual é o contexto no qual
se desenvolve o conceito de gênero.

Mulher "versus "gênero"?

Na atualidade é comum opor os "estudos sobre mulher" aos "estudos de gênero". Ao


mesmo tempo, ainda é freqüente a confusão entre "gênero" e "mulher". As duas situações
são compreensíveis quando se pensa na história do pensamento feminista. Quero dizer que
7
Ver: HEINEN, Jacqueline: “Patriarcat”, in HIRATA, Helena, LABORIE, Françoise, DE DOARÉ, Hèléne e SENOTIER,
Danièle (coord): Dictionnaire critique du féminisme, Presses Universitaires de France, Paris, 2000, p. 145. Para críticas a
esse conceito na produção brasileira ver: SAFFIOTI, Heleieth: “Rearticulando gênero e classe social” e SOUZA LOBO,
Elizabeth: “O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho”, in: COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI,
Cristina: Uma questão de gênero. Editora Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro, 1992, pp. 193, 194,
259, 260.
8
SCOTT, Joan: Gender and the politics of history. Columbia University Press, 1988, p. 34.

7
o conceito de gênero se desenvolveu no marco dos estudos sobre "mulher" e
compartilhando vários dos seus pressupostos. Mas, a formulação do conceito de gênero
procurava superar problemas relacionados à utilização de algumas das categorias centrais
nos estudos sobre mulheres.
Isto fica claro quando prestamos atenção à publicação do ensaio que marcou o pensamento
feminista ao introduzir o conceito de gênero no debate sobre as causas da opressão da
mulher. Embora o termo gênero já fosse utilizado, foi a partir da conceitualização de Gayle
Rubin que este começou a difundir-se com uma força inusitada até esse momento.9 O
ensaio O Tráfico das Mulheres: Notas sobre a Economia Política do Sexo 10, publicado em
1975, escrito quando sua autora era uma aluna de pós-graduação, se tornou uma referência
obrigatória na literatura feminista.
No marco do debate sobre a natureza, gênese e causas da opressão e subordinação social da
mulher, Rubin definiu o sistema sexo/gênero como o conjunto de arranjos através dos quais
uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nas
quais estas necessidades sociais transformadas são satisfeitas. Perguntando-se sobre as
relações sociais que convertem as fêmeas em mulheres -- “a passagem de fêmea, como se
fosse matéria prima, à mulher domesticada”, a autora elabora o conceito sistema de
sexo/gênero -- “um conjunto de arranjos através dos quais a matéria prima biológica do
sexo humano e da procriação é modelada pela intervenção social humana” --, localizando
essa passagem no trânsito entre natureza e cultura, especificamente, no espaço da
sexualidade e da procriação.
A discussão acerca de como operam esses "arranjos" foi desenvolvida através da leitura
crítica de diversos autores, particularmente Lévi-Strauss e Freud. Embora questionando
aspectos da obra desses autores, Rubin utiliza as ferramentas conceituais que eles oferecem.
Sua intenção é utilizá-las para desenvolver, de maneira mais apropriada, a definição do
sistema sexo/gênero. Assim, seria possível descrever a parte da vida social que seria o
locus da opressão da mulheres e das minorias sexuais.
Rubin pensa o intercâmbio de mulheres Levistraussiano -- um dos princípios fundamentais
do parentesco, na teoria desse autor -- como conceito que situa e “explica” a opressão das
mulheres dentro dos sistemas sociais. “Explica”, no sentido em que, para ela, o
“intercâmbio de mulheres” não seria uma definição de cultura, nem um sistema em si
mesmo, mas a percepção de certos aspectos das relações sociais de sexo e gênero cujo
resultado é a ausência de plenos direitos para as mulheres. Para Rubin, o “intercâmbio de
9
O termo gênero foi aplicado à diferença sexual pela primeira vez em linhas de pesquisa desenvolvidas por psicólogos
estadounidenses. O termo identidade de gênero foi introduzido pelo psicanalista Robert Stoller em 1963, no Congresso
Psicanalítico de Estocolmo Stoller formulava o conceito da seguinte maneira: o sexo estava relacionado com a biologia
(hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia) e o gênero com a cultura (psicologia, sociologia). O produto do trabalho
da cultura sobre a biologia era a pessoa "acabada" gendered, homem ou mulher. HARAWAY, Donna: "Gender for a
marxist dictionary", in: Symians Cyborgs and Women, 1991.
10
RUBIN, Gayle: "The traffic in Women: Notes on the "Political Economy of Sex" IN: REITER, Rayna: Toward an
Anthropology of Women. Monthly Review Press, New York, 1975.

8
mulheres” seria um “primeiro passo” para a construção de conceitos através dos quais
pensar a subordinação das mulheres, na medida em que mostraria essa subordinação como
produto das relações por meio das quais sexo e gênero são organizados e produzidos. Isto
leva a autora a pensar na necessidade de estudar cada sociedade para determinar os
mecanismos através dos quais as convenções da sexualidade se produzem e mantêm.
Na formulação de Rubin, no que se refere à diferença sexual, a cultura se sobrepõe à
natureza. Na perspectiva da autora, se a natureza fornece “dados”, esses dados mostrariam
que a “diferença” é, sobretudo, cultural. Isso é claramente expressado na seguinte
formulação:
Homens e mulheres são, é claro, diferentes. Mas nem tão diferentes como o dia e a
noite, a terra e o céu, yin e yang, vida e morte. De fato, desde o ponto de vista da
natureza, homens e mulheres estão mais próximos entre si do que com qualquer
outra coisa - por exemplo, montanhas, cangurus ou coqueiros. A idéia de que
homens e mulheres diferem mais entre si do que em relação a qualquer outra coisa
deve vir de algum outro lugar que não [seja] a natureza... longe de ser a expressão
de diferenças naturais, a identidade de gênero é a supressão de similaridades
naturais.11
Para Rubin, o parentesco criaria gênero. Seguindo, até certo ponto, os argumentos de Lévi-
Strauss12 no que se refere às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de
casamento, ela considera que o parentesco instaura a diferença, a oposição, exacerbando, no
plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco, formas
empíricas e observáveis de sistemas sexo/gênero, cujas formas específicas variariam através
das culturas e historicamente, envolveriam a criação social de dois gêneros dicotômicos, a
partir do sexo biológico, uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a
interdependência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexualidade,
prescrevendo ou reprimindo arranjos divergentes dos heterossexuais. Desta maneira
poderia se dizer que, para a autora, gênero é um imperativo da cultura, que opõe homens e
mulheres através do parentesco. Mas, se na formulação de Rubin, gênero é concebido
como um imperativo da cultura, que opõe homens e mulheres através de relações
instauradas pelo parentesco, ainda se ancora em bases naturais. 13
A leitura que Rubin faz dos autores com os quais trabalha não a afasta dos pressupostos
teórico-metodológicos desses autores. Ao contrário, para “desnaturalizar” a subordinação
das mulheres, ela propõe, explicitamente, “imitá-los”, “nos métodos, não nos resultados”.14
A autora pensa em termos de universais e opera com uma série de dualismos --
sexo/gênero, natureza/cultura --, que se tornarão alvo das críticas feministas posteriores.
Ao mesmo tempo, o ensaio de Rubin mostra deslocamentos no debate feminista da época.

11
RUBIN GAYLE, op. cit. o. 179. Tradução minha.
12
LÉVI-STRAUSS, Claude: A Família, origem e evolução. Editorial Villa Marta, Porto Alegre, 1980.
13
"... a sex/gender system is the set of arrangements by which a society transforms biological sexuality into products of
human activity, and in which these transformed sexual needs are satisfied". Rubin, op. cit., p. 159.
14
Ibid. . 169.

9
Dois desses deslocamentos são particularmente significativos. O primeiro deles está
relacionado com a proposta de pensar nas construções sociais da mulher em termos de
sistemas culturais.
Ao formular essa proposta, Rubin insere-se numa linha de autoras que procuram afastar-se
de recortes parciais tais como os desenvolvidos pelas feministas que se limitaram a analisar
a realidade das mulheres, sem recorrer à totalidade dos sistemas culturais para explicar
essas realidades. Na introdução à coletânea na qual Gayle Rubin publicou seu texto, Rayna
Reiter explicita essa abordagem da seguinte maneira:
Necessitamos novos estudos que focalizem mulheres... mas o resultado final desta
aproximação será uma nova orientação da antropologia para que ela estude a
humanidade. Focalizando primeiro as mulheres, devemos redefinir as questões
importantes, reexaminar todas as teorias prévias e ser críticas em nossa aceitação do
que constitui o material empírico. Armadas por esta consciência podemos proceder
a novas investigações de gênero, na nossa e em outras culturas.
Nessas palavras fica claro que esse foco nas mulheres é pensado como porta de entrada para
compreender como operam as categorias através das quais são conformados os sistemas
históricos de diferenciação sexual. Precisamente a ênfase na operação do sistema, a
insistência na relevância de compreender a “totalidade”, marcam a linha de pensamento no
marco do qual foi criado o conceito de gênero
O segundo deslocamento perceptível na elaboração do sistema sexo/gênero está associado à
exigência de compreender as realidades empíricas diversas, os contextos específicos nos
quais o sistema sexo/gênero operacionaliza relações de poder. Nesse sentido, o conceito de
gênero é oferecido, com uma justificativa interessante, como categoria de análise alternativa
ao patriarcado. Gayle Rubin afirma a importância de manter uma distinção entre a
capacidade e necessidade humanas de criar um mundo sexuado, por um lado e, por outro, as
formas empiricamente opressivas através dos quais os mundos sexuados foram
organizados. O Patriarcado subsumiria os dois significados num mesmo termo. Os
sistemas de parentesco, objeto do trabalho de Rubin, "constituiriam formas empiricamente
observáveis de sistemas de sexo e gênero". E o mais importante em termos da comparação
com a categoria patriarcado é que o sistema sexo/gênero seria um termo neutro, na medida
em que se referiria a esses mundos sexuados indicando que neles a opressão não é
inevitável. A opressão seria o produto de relações sociais específicas.
O trabalho de Gayle Rubin insere-se numa linha de questionamentos à idéia monolítica de
opressão feminina universal. As autoras que participaram da coletânea na qual ele foi
publicado, Toward an Anthropology of Women, assumem a pergunta feminista sobre as
causas de opressão. Mas, elas propõem uma análise crítica e mais complexa sobre a
operação do poder entre os sexos, afirmando a necessidade de precisar termos usuais nas
discussões feministas, tais como a noção de dominância masculina (dominance). Porque,
para elas, o que está em questão podem ser coisas de natureza tão diversa como uma estrita
divisão sexual do trabalho na qual as atividades masculinas são particularmente valorizadas

10
ou situações nas quais os homens controlam concretamente as mulheres. O que se objeta é
que idéias vagas e pouco precisas sobre o que seja dominância masculina não permitem
descobrir aspectos básicos sobre as relações entre os sexos. E algo ainda mais grave, essa
universalização da dominância masculina resulta pouco apropriada quando se trata dos
grupos "primitivos", com os quais a antropologia trabalhou tradicionalmente, pois não
haveria muitos indícios de que esses povos dicotomizem seu mundo em termos de
domínios de poder.
O que me interessa reter de tudo isto é que o conceito de gênero começou a ser
desenvolvido como uma alternativa ante o trabalho com o patriarcado. Ele foi produto,
porém, da mesma inquietação feminista em relação às causas da opressão da mulher. A
elaboração desse conceito está associada à percepção da necessidade de associar essa
preocupação política a uma melhor compreensão da maneira como o gênero opera em todas
as sociedades, o que exige pensar de maneira mais complexa o poder. Vemos, assim, que
as perspectivas feministas que iniciaram o trabalho com gênero mantêm um interesse
fundamental na situação da mulher, embora não limitem suas análises ao estudo das
mulheres.
Em termos da teoria social, é inegável que uma longa tradição de pensamento operou com a
idéia de diferença sexual como princípio classificatório universal15 e com a percepção do
caráter relativamente cultural dessa diferença -- e penso, concretamente nas abordagens que
trabalham com papéis sexuais16. E, se as primeiras elaborações do conceito de gênero
inserem-se nessa tradição, não deixam de distanciar-se dessas abordagens a partir da intensa
politização da diferença sexual.17

15
Ver DURKHEIM, Emile e MAUSS, Marcel: "De ciertas formas primitivas de clasificación. Contribución al estudio de
las representaciones colectivas". (1903) IN: MAUSS, Marcel: Institución y Culto. Representaciones colectivas y
diversidad de civilizaciones. Barral Editores, Barcelona, 1971 Nesse ensaio há vários dos elementos que serão relevantes
em diversas perspectivas teóricas que trataram da diferença sexual. Refiro-me às idéias da diferenciação sexual como
princípio de diferenciação universal; da sexualização dos mundos vividos como produto de classificações associadas às
classificações que os homens fazem de si próprios; à hierarquia ordenando essas classificações, a noção de relação entre
categorias de elementos classificados, e à idéia de valor aproximando ou separando as idéias. Essas idéias informam a
produção de autores e autoras que trabalharam, em diversas perspectivas teóricas, com a idéia de diferença sexual
16
A teoria dos papéis sociais preocupa-se com os fatores que influenciam o comportamento humano. Nessa perspectiva,
os indivíduos ocupam posições na sociedade, e o desempenho de seus papéis nessas posições é determinado por normas e
regras sociais, assim como pelo desempenho que outros fazem de seus papéis. À maneira do teatro, esta perspectiva
assume que o desempenho dos papéis resulta das prescrições sociais e do comportamento dos outros, e que as variações
individuais na atuação se expressam dentro do quadro criado por esses fatores. A idéia de posições ocupadas no
desempenho dos papéis faz referência a categorias de pessoas, categorias que são reconhecidas coletivamente. Um dos
atributos possíveis que pode operar como base para a definição dessas categorias é a idade, estabelecendo as posições a
partir das quais crianças e adultos agem no desempenho de seus papéis. Outro desses atributos pode ser o sexo. Neste
caso, homens e mulheres desempenham papéis culturalmente construídos em posições que derivam do seu sexo biológico:
os papéis sexuais. BIDDLE, Bruce e THOMAS, E: Role Theory: Concepts and Research. John Wiley and Sons. New
York, 1966.
17
Na perspectiva dos papéis, autores como Margareth Mead (ou, entre os sociólogos, Talcott Parsons) apontaram para o
caráter de construção cultural da diferença sexual, integrando, de maneiras diversas, a formação da personalidade com a
análise da divisão do trabalho concebida, sobretudo, em termos de papéis sexuais. O problema é que, em função das
perspectivas teóricas com as que trabalhavam, o campo das relações entre os sexos era estabelecido em torno das idéias de
costume e estabilidade social, minimizando a dimensão política das relações entre os sexos. Precisamente, esse é um dos

11
Reformulações do conceito de gênero

Em poucos anos a idéia de gênero, pensada sobre a base da diferenciação


com o sexo foi difundindo-se com uma rapidez extraordinária. Vou
oferecer, como exemplo, uma versão do conceito de gênero corrente no
final da década de 1970. Judith Shapiro, uma antropóloga americana
escreveu o seguinte:

[ Os termos] sexo e gênero são úteis para a análise uma vez que
contrastam um conjunto de fatos biológicos com um conjunto de fatos
culturais. Sendo escrupulosa em meu uso dos termos, utilizaria o
termo "sexo" apenas para falar da diferença biológica entre macho e
fêmea, e "gênero" quando me referisse às construções sociais,
culturais, psicológicas que se impõem sobre essas diferenças
biológicas. Gênero designa um conjunto de categorias às quais
outorgamos a mesma etiqueta porque elas têm alguma conexão com
diferenças sexuais. Estas categorias, no entanto, são convencionais
ou arbitrárias. Elas não são redutíveis e não derivam diretamente de,
fatos naturais, biológicos, e variam de uma linguagem a outra, de uma
cultura a outra, na maneira em que ordenam experiência e ação. 18

A distinção sexo/gênero, expressa nesta citação, remete a certos pressupostos que


constituem os nós do debate sobre o conceito de gênero na beirada dos anos 90. Ela já
implica uma postura crítica ao permitir explicar e retirar legitimidade à suposta
homologia entre diferenças biológicas e sociais.19 No entanto, o faz utilizando vários
elementos que são hoje seriamente atacados e, entre esses, particularmente, a distinção
dual entre natureza e cultura utilizada à maneira de explicação universal.
As posturas das autoras que discutem atualmente o conceito de gênero são extremamente
variadas. Elas oscilam entre realizar uma crítica a várias das idéias associadas à distinção
sexo/gênero, procurando saídas sem abandonar, porém, princípios associados à noção de
gênero, ou, ao contrário, procurar categorias alternativas uma vez que pensam o gênero
como par inseparável numa distinção binária. Este movimento de re-elaboração teórica que
questiona o conceito de gênero está, por sua vez, associado a uma re-elaboração, muitas
vezes conflitiva, dos pressupostos teóricos e políticos feministas.

aspectos mais criticados dessa abordagem. Robert Connel sintetiza essas criticas afirmando que não falamos em papéis
raciais ou de classe, porque o exercício do poder nessas áreas é mais obvio para os sociólogos. No entanto, quando se
trata de papéis sexuais, a dicotomia biológica parece ter convencido os teóricos de que não há relação de poder presente.
Os papéis masculinos e os femininos são tacitamente tratados como iguais, diferentes no conteúdo, mas complementares.
CONNELL, Robert: Gender and Power. Stanford University Press, California, 1987.
18
SHAPIRO, Judith: ( 1981) "Anthropology and the study of gender" IN: Soundings, an interdisciplinary
journal. 64, n. 4: 446-65.
19 Para algumas teóricas, a distinção sexo/gênero já colocava uma ruptura com o ideário modernista uma

vez que as diferenças de gênero emergiam dela com características altamente significativas: homens e
mulheres, distintos e divididos, já não podiam conformar, indiferenciadamente, a humanidade. Veja-se
DI STEFANO, Cristina: " Dilemas of Difference", 75-76 citado em Harding, 1992, p. 183.

12
A produção feminista recente que trata desta discussão é imensa e impossível de abarcar
neste texto. Minha intenção é, apenas, levantar algumas questões que me parecem
significativas, centrando-me nos escritos de algumas autoras contemporâneas que trabalham
no âmbito de horizontes disciplinares diversos. Ao mesmo tempo, enquanto teóricas
feministas, mantêm um diálogo intenso num campo interdisciplinar de conhecimento.
Donna Haraway, bióloga e historiadora da ciência, expressa uma posição particularmente
crítica em relação ao conceito de gênero, embora seja ambivalente no que se refere ao seu
uso. A autora inscreve-se na linha de pensadoras -- basicamente epistemólogas -- que
realizam uma crítica incisiva à construção do conhecimento "ocidental". Seus
questionamentos, centrados particularmente na noção de "objetividade", discutem os
pressupostos subjacentes à construção desse conhecimento. No quadro dessa discussão,
Haraway aponta um problema central que considera inerente aos conceitos de gênero: os
conceitos remeteriam, necessariamente, a uma distinção com o sexo na qual nem o sexo,
nem as raízes epistemológicas da lógica de análise implicada na distinção e em cada
membro deste par, seriam historicizados e relativizados.
Segundo a autora, na insistência no caráter de construção social do gênero, o sexo e a
natureza não foram historicizadas e, com isso, ficaram intactas idéias perigosas relacionadas
com identidades essenciais tais como "mulheres" ou "homens". Desta maneira, assumindo
a distinção sexo/gênero o poder de desconstruir como os corpos, sexualizados e
racializados, aparecem como objetos de conhecimento e espaços de intervenção na biologia
estaria perdido. Além disto, Haraway considera que a categoria de gênero obscurece ou
subordina todas as outras -- raça, classe, nacionalidade -- "outras", que emergem
nitidamente das 'políticas da diferença'. O problema reside no gênero como identidade
global (e central).
Para a autora, a categoria de gênero adquiriria poder explicativo e político se historicizasse
outras categorias -- sexo, carne/flesh, corpo, biologia, raça e natureza -- , de tal maneira que
a oposição binária e universalizante, elaborada em algum momento e lugar na teoria
feminista, explodisse em teorias da corporificação/embodiment, articuladas, diferenciadas,
localizadas e nas quais a natureza não fosse mais imaginada e atuada/ enacted como um
recurso/ressource para a cultura, ou como o sexo para o gênero.
É importante chamar a atenção para o fato de que essas críticas mostram deslocamentos nos
referenciais teóricos que as distanciam dos pressupostos presentes nas primeiras
formulações do conceito de gênero. Esses deslocamentos coincidem, também, com
intensas reivindicações relativas à diferença internas ao movimento, formuladas por
mulheres negras, do “Terceiro Mundo” e lésbicas. As autoras que se engajaram nas críticas
aos pressupostos presentes na distinção sexo/gênero, entre as que se contam teóricas que
elaboraram re-formulações do conceito de gênero, revelam a influência de referenciais

13
teóricos fortemente influenciados pelo podemos chamar de aproximações
desconstrutivistas.20
Algumas dessas autoras reconhecem sua dívida com o pós-estruturalismo, outras preferem
considerar-se alinhadas ao pensamento pós--moderno. Essas denominações, utilizadas nas
discussões feministas, muitas vezes, como se fossem intercambiáveis, apresentam uma série
de problemas21, mas, para além de confusões terminológicas, as autoras engajadas em
abordagens desconstrutivistas compartilham certos posicionamentos, particularmente, uma
série de questionamentos feitos aos modelos teóricos totalizantes: contestam a validade dos
modelos que buscam analisar e explicar as transformações históricas pressupondo, por
exemplo, a continuidade de certas estruturas e/ou instituições; questionam, também, as
abordagens que formulam uma compreensão da diferença tendo como referência um Outro
exógeno, externo, procedimento que mantém o princípio de uma unidade e coerência
cultural interna; trabalham com uma noção pulverizada de poder, com a idéia de dissolução
do sujeito universal autoconsciente22; valorizam a linguagem e o discurso como práticas
relacionais que produzem e constituem as instituições e os próprios homens enquanto
sujeitos históricos e culturais e compreendem, enfim, a produção de saber e significação
como ato de poder.
Esse estilo de pensamento é evidente em reformulações das conceitualizações de gênero
desenvolvidas no marco de diferentes abordagens disciplinares -- e a idéia de gênero como
categoria de análise que possibilite compreender a construção (inteiramente) social da
diferença sexual de Joan Scott é um exemplo.23 Parece-me importante deter-nos em
alguma dessas re-elaborações.
As formulações da filósofa Judith Butler, autora que vem ganhando popularidade entre
as/os jovens pesquisadores/as no Brasil, são interessantes na medida em que, mostrando
esses deslocamentos, permitem perceber a distância em relação às primeiras formulações do

20
Da maneira como é utilizado por Derrida, o termo desconstrução refere-se especificamente ao processo de desvendar as
metáforas de maneira que seja possível revelar sua verdadeira lógica, que costuma consistir em oposições binárias
simples. Embora não desenvolvendo “estritamente” a metodologia de Derrida, muitas das autoras envolvidas nos debates
contemporâneos de gênero consideram que trabalham numa abordagem “desconstrutivista” uma vez que olham
criticamente para os supostos sustentados pelas diversas disciplinas, examinando e “desmontando” seus modos de
discurso. Esta acepção de “desconstrução” é, entretanto, criticada por feministas que só admitem sua utilização em sentido
“estrito”. Para algumas dessas críticas, vide STRATHERN Marilyn: “Between a Melanesianist and a feminist”,
Reproducing the future, Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Routledge, New York, 1992,
pp. 69-71.
21
Há várias discussões sobre os problemas apresentados por esse tipo de denominações. Eleni Varikas explicita as
objeções a esses rótulos, muitas vezes utilizados como intercambiáveis, particularmente no debate feminista desenvolvido
nos Estados Unidos, assinalando que o que nessa discussão é conhecido, criticado e debatido como pós-estruturalismo
francês é o produto de uma apropriação seletiva e de uma re-elaboração, em certos círculos universitários americanos, do
pensamento de uma série de intelectuais franceses, ignorando tensões sérias entre as obras dos diversos pensadores que
dificilmente seriam assim agrupados na França e que provavelmente rejeitariam essa designação. Varikas também discute
as incongruências da utilização do termo (pós)modernismo, que, ao mesmo tempo que propõe a crítica de uma
temporalidade linear não consegue deixar de ter afinidades com essa mesma visão linear do tempo. VARIKAS, Eleni:
Féminisme, Modernité, Postmodernisme. Observátions pour un dialogue des deux côtés de l’océan, mimeo, 1993.
22
Seguindo a BESSA, Karla, Pós-modernismo. Mimeo, IFCH, 1995.
23
SCOTT, Joan, op. cit.

14
conceito de gênero, elaboradas tentando explicar a subordinação universal da mulher.
Butler discute a distinção sexo/gênero questionando suas raízes epistemológicas.
Desenvolvendo uma discussão crítica sobre os modos de operação das relações binárias –
gênero/sexo; homens/mulheres, sujeito/outro – a autora confronta as conceitualizações que
pensam as identidades como fixas. Esclareço que não pretendo discutir aqui os méritos (e
problemas) do trabalho dessa autora. Apenas introduzir algumas de suas idéias, de maneira
que possam operar como referência para compreender os deslocamentos teóricos aos que
me referi acima.
Para Butler, a distinção sexo/gênero assume pressupostos que devem ser discutidos.
A autora considera necessário refletir, de maneira crítica, sobre os meios através dos quais
sexo e gênero passaram a ser considerados como “dados”. Com esse objetivo, ela propõe
uma pesquisa genealógica que, ao mostrar como foi construída a dualidade sexual, como
diversos discursos científicos produziram essa dualidade discursivamente, desafie o caráter
imutável do sexo. Nesse procedimento, o sexo aparece como culturalmente construído.
Por esse motivo, Butler considera que o gênero não deveria ser pensado como simples
inscrição cultural de significado sobre um sexo que é considerado como “dado”. Gênero
deveria designar o aparelho de produção, o meio discursivo/cultural através do qual a
natureza sexuada, ou o sexo “natural” são produzidos e estabelecidos como pré-
discursivos24.
Segundo a autora, é necessário reformular "gênero", de maneira que possa conter as
relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo. Gênero seria a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos reiterados dentro de um marco
regulador altamente rígido, que se congela no tempo produzindo a aparência de
uma substância, de uma espécie de ser natural. Uma genealogia política bem
sucedida de ontologias de gênero desconstruiria a aparência substantiva do gênero
em seus atos constitutivos e localizaria e descreveria esses atos dentro dos marcos
compulsivos estabelecidos por forças diversas que "vigiam" a aparência social do
gênero.
E, seguindo um dos insights mais interessantes de Rubin, Butler afirma que a
produção disciplinar do gênero produz estabilizações falsas para os interesses da
construção heterossexual e a regulação da sexualidade dentro do domínio
reprodutivo. As descontinuidades de gênero que têm lugar nos múltiplos contextos
nos quais o gênero não deriva do sexo e o desejo e a sexualidade não seguem o
gênero, são ocultadas por construções de gênero sempre coerentes. Gênero seria a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos reiterados dentro de um marco
regulador altamente rígido, que se congela no tempo, produzindo a aparência de
uma substância, de uma espécie de ser natural. Atos e gestos produziriam o efeito
de una substância. Mas, esses atos e gestos seriam "performáticos", no sentido em
24
Butler, Judith: Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. Routledge, New York, 1990: 6-7.

15
que a essência ou identidade que supostamente expressam são construções
manufaturadas e sustentadas através de signos corporais e de outros meios. Na
perspectiva de Butler, gênero poderia ser considerado como um "ato" intencional e,
ao mesmo tempo, "performático", no sentido de construção dramática e contingente
de significado.25
A autora parte do reconhecimento de que gênero se intersecta com diversas
modalidades de identidades constituídas discursivamente -raciais, de classe, étnicas,
sexuais, etc.- motivo que torna impossível separar "gênero" das intersecções políticas
e culturais nas quais é produzido e sustentado. Afirma, também, que o gênero não
se constitui de modo coerente ou consistente em diversos contextos históricos. A
análise de Butler centra-se basicamente nesse último aspecto mostrando, de modo
brilhante, através de exemplos de diferentes momentos de "culturas ocidentais"
como as incoerências possibilitam perceber a fluidez do gênero.
As perspectivas de várias das autoras que participam nas discussões atuais sobre gênero,
entre as quais é possível inserir a produção de Butler, embora diferenciadas, coincidem na
radicalização dos esforços por eliminar qualquer naturalização na conceitualização da
diferença sexual, pensando gênero de maneira “não identitária”. Isto é, rejeitando os
pressupostos universalistas presentes na distinção sexo/gênero, convergem na tentativa de
analisar criticamente os procedimentos através dos quais gênero é concebido como fixando
identidades, e de formular conceitualizações que permitam descrever as múltiplas
configurações de poder existentes em contextos históricos e culturais específicos.26 Essas
abordagens contrapõem a idéia de fluidez à (relativa) fixidez do gênero ancorado em bases
biológicas presente nas primeiras formulações de gênero; a noção de múltiplas
configurações nas quais o poder opera de maneira “difusa” à idéia de
dominação/subordinação universal das mulheres; a intersecção entre múltiplas diferenças e
desigualdades ao privilégio da diferença sexual entendida como diferença entre homem e
mulher.
A difusão desses referenciais teóricos que convergem na tentativa de compreender a relação
entre sistemas de dominação e produção de diferenças contribuíram na abertura de linhas
pesquisa e reflexão sobre gênero não centradas nas mulheres. Refiro-me concretamente à
vasta produção dos estudos sobre masculinidade e, também, aos estudos queer (termo
freqüentemente traduzido no Brasil como estudos de gays e lésbicas) para os quais a obra
de Judith Butler é altamente inspiradora.27 No âmbito das discussões feministas, porém, as
25
Butler, op. cit,: 134-139.
26
Embora esta seja terminologia específica de Judith Butler , diversas autoras contemporâneas coincidem nos esforços
acima apontados. Vide, por exemplo, STRATHERN, Marilyn, 1988 The Gender of the Gift. University of California Press,
1988 ; Haraway, Donna, Simians, Cyborgs, and Women. The Reinvention of Nature. Routledge, New York, 1991.
27
Nesse sentido, é sugestivo perceber que em diversas livrarias estadounidenses os estudos de masculinidade ocupam as
prateleiras dos gender studies, enquanto estudos focalizando mulheres desenvolvidos, às vezes, no marco dos mesmos
referenciais que certos estudos de masculinidade, são colocados no espaço destinado aos women´s studies, que abriga
livros feministas.

16
formulações desconstrutivistas, têm provocado reações negativas. Essas reações, que
convergem em assinalar a incompatibilidade entre essas abordagens e a prática política
feminista – “gênero sem mulheres?” --, mostram questionamentos à “despolitização” da
pesquisa acadêmica e um acirramento nas tensões entre produção teórica e mobilização
política. É importante prestar atenção a esses argumentos pois eles possibilitam a
compreensão do contexto no qual algumas autoras propõem uma nova utilização da
categoria “mulher”.
“Desconstrutivismo” e feminismo

No marco de pensamento feminista, os questionamentos melhor fundamentados às


abordagens pós-modernas apontam para as incongruências presentes, no terreno filosófico,
entre essas abordagens e o projeto feminista, considerado, enquanto crítica e projeto de
sociedade, como inexoravelmente ancorado na tradição da “modernidade”. Varikas
sintetiza essas críticas mostrando que as noções e os pressupostos em torno dos quais se
desenvolveu o feminismo referem-se implícita ou explicitamente a uma filosofia “moderna”
da história, centrada na idéia de emancipação como resultado de uma marcha progressiva
do progresso ou da razão.
Nesse sentido, haveria uma incongruência entre os pressupostos nos quais se ancoram as
formulações contemporâneas de gênero e aqueles que orientam o feminismo. Vale lembrar
que esses últimos incluem a percepção da realidade como uma estrutura que a razão
aperfeiçoada tem condições de descobrir através da pesquisa científica; a noção de um
sujeito racional e unificado capaz de agir de maneira consciente e coerente para a sua
própria liberação; a conceitualização homogeneizante, até etnocêntrica, da categoria
mulheres, na qual há uma tendência a minimizar ou apagar a diversidade; a visão de uma
temporalidade linear e, finalmente, a pretensão a um ponto de vista crítico que englobe o
conjunto das relações sociais injustas.28
Esse tipo de critica, porém, não deixa de considerar a potencial riqueza que alguns aspectos
das perspectivas criticadas apresentam, permitindo interrogar pressupostos implícitos da
reflexão feminista, freqüentemente não problematizados e atacados no seio do próprio
movimento, tais como a impossibilidade de uma “universalidade” elaborada ou definida a
partir de um único ponto de vista. Nesse sentido, os escritos das “mulheres de cor” ou “do
Terceiro Mundo” têm recebido particular atenção29, considerando que eles podem

28
VARIKAS, op. cit., p. 2. Nesta linha de argumentação vide também SORJ, Bila: “O feminismo na encruzilhada da
modernidade e pós-modernidade” in: COSTA e BRUSCHINI: Uma questão de gênero. Fundação Carlos Chagas/Editora
Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992; TARDUCCI, Mónica: “Posmodernismo o posfeminismo? Una reflexión desde
la antropologia. In: TARDUCCI, Mónica: La producción oculta, III Congreso Argentino de Antropologia Social. Mesa
de Trabajo: Antropologia y Mujer. Buenos Aires, Editorial Contrapunto, 1990.
29
Vide VARIKAS, op. cit., HARAWAY, op. cit. e DE LAURETIS Theresa: “Eccentric subjects: feminist theory and
historical consciousness” Feminist Studies, 16, 1, 1990.

17
possibilitar a superação dos problemas epistemológicos que dominaram os pressupostos
teóricos feministas.30
Os questionamentos às perspectivas desconstrutivistas elaborados pelas feministas voltadas
para o ativismo mostram que, entre elas, essas perspectivas ocupam um lugar no mínimo
ambíguo, quando não abertamente negativo. Entre os argumentos com que essas
perspectivas são atacadas, afirma-se que sua radical procura de desessencialização
desestabiliza o “conceito/categoria” mulher(es), considerado como ponto de partida
necessário para a teoria e política feministas.31
Linda Alcoff explica com clareza o dilema que as perspectivas desconstrutivistas colocam
para o feminismo. A teoria feminista -- entendida como a reavaliação da teoria e a prática
social desde o ponto de vista das mulheres --, assim como a política feminista -- voltada
para a transformação da experiência vivida das mulheres na cultura contemporânea --,
perfeitamente coerentes com uma perspectiva que pensa na cultura como construída sobre a
base da supremacia masculina e o controle das mulheres (o patriarcado), têm suas raízes
num conceito --mulher-- que agora parece ser preciso desessencializar em todos os
aspectos. Mas a desconstrução -- que pode desconstruir ad infinitum --, ao não oferecer
alternativas “positivas”, dificultaria acionar um movimento. Além de dissolver o sujeito
político “mulheres”, as perspectivas desconstrutivistas também são acusadas de
restabelecerem distâncias entre a reflexão teórica e o movimento político.32
Entre os textos que tratam da relação contemporânea entre teoria e prática feminista, uma
discussão publicada na Revista Signs é particularmente significativa. Trata-se de um
debate, organizado por Heidi Hartmann em 1994, que explicita o desgosto com que muitas
feministas olham para essas abordagens.33 Todas as participantes nessa discussão estão

30
É interessante perceber que as “mulheres de cor” ou “do Terceiro Mundo” também formulam sérias críticas às
contradições colocadas pelas discussões pós-modernas. No entanto, essas críticas centram-se, sobretudo, no lugar que
essas discussões estão ocupando na economia política da construção e difusão do conhecimento. “Mulheres de cor” e/ou
“mulheres do Terceiro Mundo” afirmam que essas perspectivas, apesar de chamarem a atenção para as experiências das
“diferenças”, tendem a apropriar-se delas através de mecanismos, mais uma vez, excludentes. bell hooks, por exemplo,
questiona não tanto o “sentido” do pós-modernismo mas a linguagem cifrada em que ele se expressa: codificada em
termos dos interesses de uma audiência que alija as vozes das pessoas negras, deslocadas, marginalizadas. Intelectuais do
“Terceiro Mundo” assinalam que esses debates marginalizam, mais uma vez, o conhecimento das feministas “nativas”,
sufocando outro tipo de aproximação. hooks, bell: “Postmodern Blackness” Yearning, race, gender and cultural politics.
South End Press, 1990, pp. 24-26; OKEKE, Philomina: “Postmodern Feminism and the Political Economy of Cross-
Cultural Scholarship in Sub-Saharan Africa”. Conference Paper: Praxis Nexus: Feminist Methodology, Theory,
Community, janeiro 1996. University of Victoria, Victoria, B.C.
31
ALCOFF, Linda: “Cultural Feminism versus post-structuralism: the identity crisis in feminist theory”, Signs: Journal
of Women in Culture and Society, 1988, vol. 13, n. 3, pp.414-415.
32
Vide MIES, Maria: “Liberating Women, Liberating Knowledge: Reflections on Two Decades of Feminist Research
Action”. No especial de Atlantis. A women’s Studies Journal Revue d’études sur les femmes- Connecting Practices
Doing Theory, Volume 21.1, 1996, pp 10-25. Entretanto, é necessário sublinhar que alguns dos textos publicados neste
volume, centrados na prática com mulheres do “Terceiro Mundo” localizadas no “Primeiro”, por exemplo, migrantes no
Canadá, consideram as perspectivas “pós” fundamentais para desenvolver esse tipo de prática. Vide particularmente,
LEE, Jo-Anne: Power, praxis, positioning and subjectivities, pp.142-153.
33
HARTMANN, Heide, BRAVO, Ellen, BUCH, Charlotte, HARTSOCK, Nancy, SPALTER-ROTH, Roberta,
WILLIAMS, Linda e BLANCO, Maria: “Bringing Together Feminist Theory and Practice: a Collective Interview”.
Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1996, vol. 21, n. 4 pp.917-951.

18
vinculadas a diversas organizações destinadas a “promover” as mulheres nacional e
internacionalmente. Várias dessas feministas afirmam que, no passado, foram teóricas e
ativistas, mas, no presente, sentem-se apenas ativistas. Na atualidade, dizem, as
perspectivas teóricas lhes resultam “pouco úteis”, inacessíveis, esotéricas, de difícil
compreensão, excessivamente destacadas da prática e conduzindo a uma paralisia.34
No debate surge o consenso de que as perspectivas desconstrutivistas, que têm
monopolizado o discurso teórico feminista apagando as vozes de outras correntes,
sublinham exageradamente as diferenças, reagindo ainda aos primeiros momentos do
feminismo. As participantes na discussão teriam interesse numa teoria [feminista] que
informasse as práticas feministas, que fosse “útil”, colaborando para gerar e sustentar
movimentos de mulheres, desenvolvendo, por exemplo, perspectivas que oferecessem
meios para reconhecer essas diferenças e, ao mesmo tempo, formar uma nova base para a
solidariedade entre as mulheres.
A questão não seria procurar uma única visão ou voz, mas perguntar-se quais são os pontos
em comum entre as mulheres. Nesse sentido, o “feminismo global”, pensado como a
difusão do feminismo no mundo todo, constituiria um espaço privilegiado para desenvolver
tipos de teorias que essas feministas, orientadas para o ativismo, sentem que precisam. Isto
é, teorias “aproveitáveis”, a curto prazo, para traçar caminhos compatíveis com um projeto
feminista ao mesmo tempo universalista e capaz de reconhecer as diferenças. O interesse
em não apagar a diversidade de vozes leva a essas feministas -- que criticam as perspectivas
“pós” por sua exacerbada ênfase nas diferenças --, a reconhecer a “utilidade” de uma série
de trabalhos informados por essas perspectivas. E os trabalhos positivamente considerados
são reflexões centradas nas diferenças: a produção que discute a intersecção gênero/raça --
uma vez que, embora desenvolvendo argumentos teóricos, tende a responder perguntas
concretas -- e os trabalhos sobre multiculturalismo.35 Essas críticas reconhecem, também,
que essas perspectivas teóricas, quando operam com um foco internacional, enfatizam a
compreensão da diferença evitando a construção do outro como um “exótico”.
Essas discussões, portanto, não estão apenas marcadas por leituras negativas das
perspectivas desconstrutivistas. Nelas há, também, ambivalências em relação a essas
abordagens uma vez que elas possibilitam por em destaque as diferenças. Essas
ambivalências fazem sentido quando se pensa que, se o projeto feminista está ancorado na
tradição da “modernidade”, ele também está marcado por uma inerente tensão entre
universal e particular. As críticas às abordagens desconstrutivistas evidenciam, também,

34
Paralisadoras no sentido em que, na leitura que elas fazem dessas perspectivas, “nada pode ser nomeado, porque tudo se
desloca [shifts]” e “torna-se impossível dizer nós”, HARTMANN, Heide, BRAVO, Ellen, BUCH, Charlotte,
HARTSOCK, Nancy, SPALTER-ROTH, Roberta, WILLIAMS, Linda e BLANCO, Maria op. cit.
35
Esses últimos são avaliados positivamente com um argumento sugestivo: neste caso as teorias seriam “mais avançadas”
que a prática; elas outorgariam mais atenção ao assunto do que ele recebe no “mundo real”. A teoria, neste caso, seria
“boa”, pois criaria um conjunto de “valores úteis” que serviriam de parâmetro para as pessoas e porque teria tido, como
resultado, o aumento de atenção para essa questão.

19
confusões no que se refere ao significado de “fazer teoria”. Nesse marco de ambivalências
e confusões, algumas autoras “abandonam” gênero, propondo uma nova utilização da
categoria “mulher”. Vejamos quais são as particularidades dessa re-criação.

Gênero versus “mulher”?

A idéia de mulher agora proposta é apresentada como distante das elaborações do


feminismo radical da década de 1970, isto é, como longe de qualquer tipo de essencialismo.
Linda Nicholson marca as distâncias entre essa nova conceitualização e o “fundacionalismo
biológico” -- a idéia de diferença entre uma base biológica fixa e uma superestrutura
relativamente flexível, à maneira das primeiras formulações do conceito de gênero. A
autora chama a atenção para a importância de não confundir fundacionalismo biológico e
determinismo biológico. Esse último postula uma relação direta entre biologia, aspectos da
personalidade e comportamento, na qual a biologia determina personalidade e
comportamento. Segundo Nicholson, no fundacionalismo biológico os dados da biologia
coexistem com os aspectos da personalidade e o comportamento, mas as relações entre eles
são acidentais.36 Assim, a “identidade sexual” não é entendida em termos puramente
fisiológicos. Mas, para a autora, o fundacionalismo realiza um desafio incompleto ao
entendimento da identidade sexual postulado pelo determinismo biológico, pois manteve a
idéia de que há alguns dados fisiológicos que são usados de forma semelhante em todas as
culturas para distinguir mulheres de homens, e são responsáveis, pelo menos parcialmente,
por certos aspectos comuns nas normas de personalidade e comportamento.37
O fundacionalismo biológico é percebido como um verdadeiro obstáculo à compreensão de
diferenças entre mulheres e, também, de diferenças em relação a quem pode ser
considerado homem e mulher em contextos específicos. Nos termos de Nicholson, ao
enfatizar a “identidade sexual”, essa maneira de pensar na construção da diferença sexual
permite o reconhecimento de diferenças entre mulheres. Mas, o faz de maneira limitada e
problemática, conduzindo mais à coexistência entre diferenças do que a intersecção entre
gênero, raça, classe, etc.
Bem, e como é essa nova formulação de “mulher”? Nos termos de Nicholson, trata-se de
uma idéia de mulher que, atenta à historicidade, não tem um sentido definido. Isto é, seu
sentido não é encontrado através da elucidação de uma característica específica, mas através
da elaboração de uma complexa rede de características que não podem ser pressupostas,
mas descobertas. Algumas dessas características exerceriam um papel dominante dentro
dessa rede por longos períodos de tempo, em certos contextos -- o que não quer dizer que
possam ser universalizadas.38 Nessa proposta, não se trata de pensar em “mulheres como

36
NICHOLSON, Linda, op. cit., p. 13.
37
NICHOLSON, op. cit., p. 22.
38
NICHOLSON, op. cit., p. 37.

20
tais”, ou “mulheres nas sociedades patriarcais”, mas em “mulheres em contextos
específicos”.
Após acompanhar o percurso das conceitualizações de gênero, essa reformulação da
categoria “mulher” resulta intrigante. Afinal, não é, precisamente, o esforço realizado a
partir das elaborações e reformulações de gênero o que possibilita pensar seriamente como
a idéia de “mulher” é concebida em contextos específicos? Que sentido tem, então, re-criar
a categoria mulher? Trata-se de um retorno a um recorte parcial da realidade? Ou estamos
frente a uma nova formulação com maior alcance explicativo que as conceitualizações de
gênero? Qual seria esse alcance explicativo?
Parece-me que essas últimas pergunta não estão em questão. A discussão, aqui, não está
situada (exclusivamente) no plano do conhecimento. O sentido da re-criação da categoria
mulher é, sobretudo, político. Segundo Nicholson, a categoria mulher nos termos por ela
propostos ofereceria uma dupla vantagem. Possibilitaria o reconhecimento de diferenças
entre mulheres, mas, uma vez que também permite mapear semelhanças, não inviabilizaria
a prática política – que, de acordo com a autora, não exige um sentido definido para o termo
mulher. É claro que se trata de políticas de coalizão – de políticas compostas por listas de
reivindicações relativas às diferentes necessidades dos grupos que constituem,
temporariamente, a coalizão.
O conteúdo político dessa categoria é sublinhado de maneira mais explícita por Cláudia de
Lima Costa, uma das autoras que propõem sua utilização no contexto do Brasil. Costa
resgata abertamente as contribuições do pós-estruturalismo para a teoria feminista – e, de
maneira significativa, essas contribuições são assinaladas a partir dos ganhos trazidos pelo
conceito de gênero. Segundo a autora, trata-se da negação epistemológica de qualquer tipo
de essência à mulher. Trata-se, também, da possibilidade de teorizar com mais destreza as
complexas e fluidas relações e tecnologias de poder.39 Mas, paradoxalmente no que se
refere à construção de conhecimento, a insistência na re-criação da categoria mulher,
abandona a utilização do gênero. Destaco esse aspecto, porque, em termos políticos, a
proposição faz todo o sentido. Costa pede um retorno à noção de mulher, considerando-a,
explicitamente, como categoria política – em vez do conceito de gênero cujos usos
perversos o tem, às vezes, transformado em masculinidade.40 De fato, e isso é claramente
expressado nos escritos de Chantal Mouffe, a re-elaboração da categoria mulher é um
esforço de compatibilizar as críticas ao essencialismo em suas diversas formas --
humanismo, universalismo, racionalismo --, com a formulação de um projeto político
feminista, mostrando como essa compatibilização não é incongruente.41

39
COSTA, Claudia de Lima: “O tráfico do gênero”, in: Cadernos PAGU, 11, 1998, p. 134.
40
COSTA, op. cit., p. 138.
41
MOUFFE Chantal: "Feminism, Citizenship, and Radical Democratic Politics". In BUTLER, Judith e SCOTT, Joan ed:
Feminists Theorize the Political. Routledge, 1992, p.382. Agradeço a Claudia de Lima Costa ter chamado minha atenção
sobre esse texto.

21
Nos termos de Chantal Mouffe, tratar-se-ia de repensar, também, a política feminista. Esta
deveria ser vista não como uma forma diferenciada de política destinada a perseguir os
interesses das mulheres como mulheres, mas destinada a transformar os discursos, práticas
e relações sociais nas quais a categoria “mulher” é construída numa maneira que implica
subordinação. E, segundo a autora, isso significa que esses objetivos podem ser construídos
de maneiras diferentes, mediante muitos e diversos feminismos.42

Concluindo

Talvez um dos aspectos mais sugestivos do percurso realizado seja ter mostrado os
descompassos e tensões, entre ativismo e formulações teóricas. E faço essa separação
propositalmente porque creio que, sem negar o aspecto político de qualquer teorização, é
importante perceber que se trata de atividades diferenciadas. Refiro-me a descompassos
pensando que as “políticas de coalizão” já eram implementadas vinte anos atrás, quando a
teorização se centrava numa idéia essencialista e identitária de mulher e numa concepção
monolítica de opressão e não em referenciais pós-estruturalistas. Isto é algo óbvio para as
que participaram do movimento feminista e lembram o delicado trabalho realizado para
lidar com as diferenças no “cotidiano” do movimento e, ao mesmo tempo, a articulação
dessas diferenças em torno de objetivos. Terá sido, então, o ativismo mais “avançado” que
a teoria? Nesse sentido parece-me válida a observação de Marilyn Strathern quando afirma
que a política radical não deixa de apresentar aspectos conservadores, na medida em que é
obrigada a operacionalizar conceitos ou categorias já compreendidos.43
Outro dos aspectos iluminados pelo percurso realizado é o caráter da relação entre teoria
social e interesses feministas. Nessa imbricação, nessa mútua alimentação, foi
desenvolvido e reformulado o conceito de gênero. Além de ter oferecido ferramentas
substantivas para um dos objetivos centrais do pensamento feminista (desessencializar a
subordinação da mulher), esse desenvolvimento e reformulação tiveram efeitos
significativos na teoria social. Penso concretamente na reelaboração de questões centrais na
ciência política, na sociologia e na antropologia, tais como as relações entre público e
privado, produção/reprodução, o estatuto das teorias de parentesco e sobre o significado do
poder. Precisamente, no marco dessa imbricação entre interesses feministas e teoria social,
gênero, ao não encaixar-se plenamente em certos critérios de “utilidade” política parece ser
abandonado pelo pensamento feminista. Resta descobrir o futuro que ele terá na teoria
social.

Campinas, novembro de 2001

42
MOUFFE, op. cit., p. 382.
43
STRATHERN, The gender of the gift...

22
BIBLIOGRAFIA
ALCOFF, Linda:
“Cultural Feminism versus post-structuralism: the identity crisis in feminist theory”,
Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1988, vol. 13, n. 3, pp. .414-415.
BESSA, Karla,
Pós-modernismo.
Mimeo, IFCH, 1995.
BIDDLE, Bruce e THOMAS, E:
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