Cartilha - Introducao Genero PDF
Cartilha - Introducao Genero PDF
Cartilha - Introducao Genero PDF
1
Mirela Marin Morgante
No campo dos estudos feministas, o termo patriarcalismo foi comumente utilizado para
explicar a condição feminina na sociedade e as bases da dominação masculina. As
abordagens, contudo, se mostraram bastante heterogêneas e controversas, a ponto de algumas
intelectuais optarem por não fazerem uso do conceito. Diante deste quadro conflituoso e
carente de coerência teórica, este artigo pretende realizar um esclarecimento do conceito. Para
tanto, procurar-se-á demonstrar os argumentos daqueles que propugnam e dos que não
advogam pelo uso de patriarcado nas pesquisas feministas, evidenciando algumas das linhas
interpretativas do conceito.
Mary G. Castro e Lena Lavinas fazem parte do rol das intelectuais que refutam a necessidade
teórica do uso do termo patriarcado. Para as autoras, o conceito é usado nos textos e obras na
sua forma adjetiva – como família patriarcal ou ideologia proletária e patriarcal – em
detrimento da referência ao patriarcado na sua forma substantiva – como um sistema, uma
organização ou uma sociedade patriarcal. Segundo elas, a forma adjetiva como amiúde é
usado, remete ao conceito weberiano de patriarcalismo, ou seja, “trata-se de um tipo de
dominação em que o senhor é a lei e cujo domínio está referido ao espaço das comunidades
domésticas ou formas sociais mais simples, tendo sua legitimidade garantida pela tradição”
(CASTRO; LAVINAS, 1992: 237). O patriarcado em Weber se refere a um período anterior
ao advento do Estado, sendo, portanto, inadequado falar em patriarcalismo nas sociedades
capitalistas.
1
Mestranda do programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal
do Espírito Santo. Vitória, Brasil. Bolsista da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo).
2
Professora Associada do Programa de pós-graduação mestrado e doutorado em História Social das relações
Políticas da UFES. Vitória. Brasil.
Quando se considera o patriarcado sob o prisma weberiano, é patente a ineficácia do conceito
para problematizar as relações de gênero na sociedade contemporânea. Como aponta Heleieth
Saffioti, as feministas da segunda onda, radicais ou marxistas, ao denunciar a dominação
patriarcal, faziam-no negligenciando o termo conforme a definição de Weber (SAFFIOTI,
2011). Ou seja, pode-se falar em patriarcado sem remeter a Weber, em uma formulação mais
abrangente e mais adaptada à complexidade das relações e instituições na contemporaneidade.
Castro e Lavinas alegam ainda, que as feministas se utilizam do termo patriarcado de maneira
heterogênea e sem concordância conceitual, exceto no que tange à referência de patriarcado
enquanto o poder e a dominação dos homens sobre as mulheres. Elas acrescentam, “para
algumas, ele se dá ao nível da família, para outras, num plano mais geral, na relação com o
Estado” (CASTRO; LAVINAS, 1992: 237). E as autoras concluem: “[...] parece-nos correto
afirmar que ele perde seu estatuto de conceito para firmar-se como uma referência implícita e
sistemática da dominação sexual” (CASTRO; LAVINAS, 1992: 238).
Quanto aos níveis, apontados por Castro e Lavinas, nos quais os estudos feministas variam em
utilizar o termo patriarcado, é justamente pela possibilidade do conceito ser utilizado de
forma abrangente, abarcando todos os níveis da organização social, que patriarcado no seu
sentido substantivo é tão frutífero para analisar as diversas situações de dominação e
exploração das mulheres. O uso de patriarcado enquanto um sistema de dominação dos
homens sobre as mulheres permite visualizar que a dominação não está presente somente na
esfera familiar, tampouco apenas no âmbito trabalhista, ou na mídia ou na política. O
patriarcalismo compõe a dinâmica social como um todo, estando inclusive, inculcado no
inconsciente de homens e mulheres individualmente e no coletivo enquanto categorias sociais.
Mary Castro e Lena Lavinas criticam o uso do termo patriarcado conforme Weber, de
domínio de um patriarca sobre toda a comunidade doméstica ou econômica, em um sentido
adjetivo do conceito. Nesta perspectiva, realmente o termo é ineficaz para tratar das famílias
contemporâneas, muito diferentes das famílias consideradas por Weber, e ainda mais ineficaz
quando o patriarcado weberiano é utilizado para abordar os outros níveis do corpo social.
Além disso, as autoras apelam para a heterogeneidade no uso do conceito pelas feministas,
para justificar sua opção por não fazer referência a ele nos seus estudos de gênero. Mas a falta
de concordância conceitual não diminui a eficácia do uso de patriarcado para analisar as
questões referentes às mulheres, desde que o conceito seja bem precisado.
Elisabeth Souza Lobo, por sua vez, também prefere não utilizar o conceito patriarcalismo em
suas pesquisas. Discorrendo sobre algumas abordagens do trabalho feminino na Sociologia do
Trabalho e na História Social, ela esclarece que uma parcela da produção acadêmica brasileira
que abordou a divisão sexual do trabalho, relacionou esta questão com o patriarcado (LOBO,
1992). Nestas perspectivas, a ordem patriarcal seria uma estrutura determinante da divisão
sexual do trabalho, levando-se em conta as diferenças históricas dessa divisão. O
patriarcalismo estaria, assim, na base da divisão sexual do trabalho, dando início a ela, e
surge, por sua vez, dos fundamentos materiais da sociedade. “Ou, o que me parece seguir um
raciocínio semelhante: as relações sociais organizam as divisões da sociedade, e a divisão
sexual do trabalho é um locus fundamental das relações entre os sexos” (LOBO, 1992: 259).
A postura teórica do patriarcado como uma ideologia se insere do grupo dos estudos
feministas que utilizam o termo no sentido adjetivo – ideologia patriarcal. Para Christine
Delphy, a forma adjetiva do conceito de patriarcado é um uso clássico do termo, pode-se
dizer que é um uso pré-feminista de patriarcado, muito presente na literatura do século XIX,
que dava ao conceito “[...] connotations psychologisantes et biologisantes” (DELPHY, 1981:
62-63). 3 Para a autora, tanto Marx quanto Victor Hugo utilizavam o termo na forma adjetiva
e, por consequência, com um sentido positivo (DELPHY, 1981). Como ela aponta, “le
patriarcat est, dans cet usage, une espèce de noyau à la fois inexplicable et irréductible de la
«nature humaine»” (DELPHY, 1981: 63).4 Assim, no sentido adjetivo, o conceito adquire o
caráter de natureza humana e, enquanto tal, sua existência é inevitável e sem explicação
precisa. E Delphy acrescenta, “[...] il est vu comme une structure mentale a-historique,
produite non par une ou des sociétés concrètes, mais par la Société. En effet, il est presente
comme étant la base même de la constitution de toute société” (DELPHY, 1981: 63). 5 Isto é,
3
“[...] conotações psicologizantes e biologizantes”. Tradução nossa.
4
“O patriarcado é, nesse uso, uma espécie de núcleo tanto inexplicável quanto irredutível da natureza humana”.
Tradução nossa.
5
“Ele é visto como uma estrutura mental a-histórica, produzida não por uma ou mais sociedades concretas, mas
pela Sociedade. Com efeito, ele é apresentado como estando na base mesma da constituição de toda sociedade”.
Tradução nossa.
a referência clássica ao patriarcado, evidencia-o como uma estrutura mental natural de
constituição da sociedade como um todo.
Carole Pateman explica que essa concepção de patriarcado, segundo a qual ele é a gênese de
constituição de toda a vida social, um atributo universal da sociedade humana, é uma
concepção literal – de governo do pai, paterno – e genérica de patriarcado, estritamente
relacionada com o pressuposto de que as relações sociais patriarcais se referem à família
(PATEMAN, 1993). Como afirma a autora, para as interpretações literais do conceito de
patriarcado, “a gênese da família (patriarcal) é frequentemente entendida como sinônimo da
origem da vida social propriamente dita, e tanto a origem do patriarcado quanto a da
sociedade são tratadas como sendo o mesmo processo” (PATEMAN, 1993: 43).
Nesta perspectiva, como já explicitado por Delphy, o patriarcado assume um caráter natural e
positivo, na medida em que foi necessário – e natural – o seu advento para o paralelo
nascimento da sociedade civil organizada. Para Pateman, segundo as primeiras histórias, no
início da história da humanidade – em uma época primitiva – imperava o direito materno, a
prática livre de relações sexuais impedia a visualização da linhagem paterna e a descendência
era então reconhecida por meio das mães (PATEMAN, 1993). A gênese da civilização se deu
com a vitória do pai, com o surgimento da família patriarcal. Assim, “o patriarcado foi um
triunfo social e cultural. O reconhecimento da paternidade foi interpretado como um exercício
da razão, um avanço necessário que forneceu as bases para a emergência da civilização –
todas elas realizações dos homens” (PATEMAN, 1993: 50). Daí o caráter positivo que o
patriarcado adquire quando é interpretado de forma literal, genérica e adjetivada.
O patriarcalismo para Weber é um tipo ideal, ou seja, é um conceito que pode ser utilizado
para fazer alusão a qualquer organização social historicamente definida que tenha no patriarca
a autoridade central do grupo doméstico. Conforme Machado, “a autoridade familiar e
doméstica é que funda o patriarcado e implica uma determinada divisão sexual que Weber
denominava ‘normal’ [...]” (MACHADO, 2000: 3). Como um tipo ideal, o patriarcado
weberiano tem um sentido a-histórico, haja vista sua possibilidade de ser usado em diversos
momentos históricos para fazer referência à dominação exercida por um patriarca em uma
comunidade familiar ou econômica (MACHADO, 2000: 3).
Nesta perspectiva, Lia Zanotta Machado salienta que na sociedade contemporânea os direitos
paternais e sexuais não são naturalizados e legitimados da mesma maneira como o caso
típico-ideal weberiano, o que torna muito pouco adequado referir-se ao conceito de
patriarcado nas sociedades de princípios do século XXI. Para a autora, as relações sociais
contemporâneas são muito mais complexas e dinâmicas do que as comunidades familiais
weberianas, daí ser impróprio aplicar um conceito historicamente datado – que remete a uma
forma de organização social mais simples – às relações de gênero da contemporaneidade.
Como aponta Heleieth Saffioti, “[...] é grande o peso da esfera doméstica no conceito típico-
ideal. Rigorosamente, também a dimensão econômica tem a marca familiar, pois o poder
patriarcal se organiza na economia de oikos” (SAFFIOTI, 1992: 194). Segundo Saffitoi, o
patriarcado enquanto um tipo-ideal weberiano não pode ser utilizado para fazer um exame
totalizante das relações de gênero contemporâneas.
Lia Zanotta Machado apresenta, todavia, uma alternativa promissora quando se pretende fazer
referência ao termo patriarcado na sociedade moderna atual: falar em um patriarcado
contemporâneo, o que possibilita situar historicamente patriarcado, considerando as
complexas transformações nas relações de gênero da sociedade moderna. Apesar de Machado
não advogar por seu uso, ela admite que o conceito seja utilizado em outros estudos
feministas desde que seja referido desta maneira – patriarcado contemporâneo – e muito bem
definido conceitualmente.
Carole Pateman, por seu turno, ao invés de fazer referência ao termo patriarcado
contemporâneo, se utiliza do conceito patriarcado moderno contrapondo-o ao argumento
patriarcal tradicional e à premissa patriarcal clássica. Para a autora, a história do contrato
social colocou em silencio profundo o contrato sexual, na medida em que “o contrato original
é um pacto sexual-social, mas a história do contrato sexual tem sido sufocada” (PATEMAN,
1993: 15). Pateman explica que o patriarcado moderno surgiu com o advento da sociedade
civil contratual, ou seja, com o estabelecimento do contrato original. A autora evidencia como
os teóricos do contrato social negligenciaram o contrato sexual e implementaram o
patriarcado moderno.
Por enquanto, contudo, importa salientar que “[...] não há nenhum bom motivo para se
abandonar os termos patriarcado, patriarcal e patriarcalismo. Grande parte da confusão surge
porque ‘patriarcado’ ainda está por ser desvencilhado das interpretações patriarcais de seu
significado” (PATEMAN, 1993: 39). Isto é, continua sendo muito frutífero analisar as
relações de gênero da sociedade contemporânea com a base conceitual de patriarcado,
particularmente referindo-se ao patriarcado moderno. Deve-se, contudo, realizar um
distanciamento das definições patriarcais de patriarcado, como a que interpreta o conceito
“[...] no seu sentido literal de governo do pai ou de direito paterno” (PATEMAN, 1993: 43).
Assim como é imperativo o afastamento em relação ao uso de patriarcado na sua forma
adjetiva e como tipo-ideal weberiano. Como destaca Pateman: “é urgente que se faça uma
história feminista do conceito de patriarcado. Abandonar o conceito significaria a perda de
uma história política que ainda está para ser mapeada” (PATEMAN, 1993: 40).
Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
CASTRO, Mary G.; LAVINAS, Lena. Do feminino ao gênero: a construção de um objeto. In:
COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de
Janeiro: Rosa dos tempos, 1992.
LOBO, Elisabeth Souza. O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho. In: COSTA,
Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa
dos tempos, 1992.
______. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2011.
GÊNERO, PODER E
Os problemas ligados a questões de poder têm sido um dos principais entraves aos
projetos de desenvolvimento. Mas ao contrário do que os apressados possam imaginar,
estes problemas não se referem exclusivamente a hierarquia funcional ou as esferas de
decisão. Eles fazem parte do cotidiano do trabalho, nas relações entre os técnicos, entre
técnicos e a comunidade, dentro da própria comunidade. Apesar de se manifestarem mais
explicitamente na aplicabilidade das ações específicas do enfoque de gênero, eles estão
presentes em todos os componentes desses projetos.
Nesse sentido, neste texto, nos propomos a discutir as questões básicas do poder, da
relação entre gênero e poder e do empoderamento das mulheres e seus reflexos nos
projetos de desenvolvimento.
O poder
1
Texto elaborado por Ana Alice Costa, Doutora em Sociologia Política pela Universidad Nacional Autonoma
de México, Professora Adjunta IV do Departamento de Ciência Política da UFBa. e do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da UFBA, e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher – NEIM/UFBA. Coordenadora Executiva da REDOR.
2
Kirkwood, Julieta. Ser política en Chile: las feministas y los partidos políticos. Santiago: Flacso. Março,
1986.
“... o poder não é, o poder se exerce. E se exerce em atos, em
linguagem. Não é uma essência. Ninguém pode tomar o poder e guardá-lo em
uma caixa forte. Conservar o poder não é mantê-lo escondido, nem preserva-lo
de elementos estranhos, é exercê-lo continuamente, é transforma-lo em atos
repetidos ou simultâneos de fazer, e de fazer com que outros façam ou
pensem. Tomar-se o poder é tomar-se a idéia e o ato”.
Seguindo esta mesma linha, Marcela Lagarde3 vai mais adiante ao definir o poder
como :
Como podemos ver, estes conceitos de poder vão além do poder político, do poder
formal presente no âmbito do Estado, do poder resultante das hierarquias funcionais. Na
verdade, o poder opera em todos os níveis da sociedade, desde as relações interpessoais até
o nível estatal. As instituições e estruturas do Estado são elementos dentro de certas esferas
de poder, cujas concepções se fundem na complexa rede de relações de força. Nesse
sentido, o poder pode ser visto como um aspecto inerente a todas as relações econômicas,
sociais e pessoais. Pode-se afirmar que o poder está presente do leito conjugal de um casal
a sala presidencial do Palácio do Planalto. Estas relações de poder que operam em distintos
níveis estão em constante conflito de interesses.
As relações de poder se mantém porque os vários atores – tanto os dominadores
como os dominados – “aceitam” as versões da realidade social que negam a existência de
desigualdades, que afirmam ser estas desigualdades resultantes de desgraça pessoal ou da
injustiça social4. Esta aceitação é construída através dos mecanismos de socialização, da
força da ideologia, das crenças religiosas, etc.., conforme vimos no 1º capítulo.
Gênero e poder
3
Lagarde, Marcela. Cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas. México:
UNAM, 1993. P.154
4
Kabeer, Naila. Empoderamiento desde abajo: Qué podemos aprender de las organizaciones de Base?. In.
Leon, Magdalena (org) Poder y empoderamiento de las mujeres. Bogotá: MT Editores, 1997
5
Costa, Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/Ufba e Assembléia
Legislativa da Bahia. 1998 (Coleção Bahianas, vol.2)
Quando falamos relações de Gênero, estamos falando de poder. Na
medida em que as relações existentes entre masculino e feminino são
relações desiguais, assimétricas, mantém a mulher subjugada ao homem e
ao domínio patriarcal.
• O acesso restrito das mulheres aos recursos econômicos e sociais e ao poder político,
cujo resultado é uma distribuição muito desigual dos recursos entre os sexos;
Esses projetos, por não fazerem uma distinção entre “condição” e “posição” das
mulheres7, não conseguiram trazer mudanças significativas na vida da população feminina.
Na verdade, muitos deles conseguiram ampliar a renda familiar, garantir o acesso das
mulheres à saúde, a educação etc., mas não proporcionaram mudanças significativas na
posição das mulheres. Estas continuaram subjugadas, excluídas de qualquer esfera de
decisão e autonomia8.
Condição é o estado material no qual se encontram as mulheres: sua
pobreza, salário baixo, desnutrição, falta de acesso a saúde pública e a
tecnologia moderna, educação e capacitação, sua excessiva carga de
trabalho, etc.
6
“No particular, o movimento feminista tem procurado demonstrar que a mudança nas leis por si só não é
suficiente para promover uma mudança nos comportamentos, nas mentalidades e na estrutura social. É que
mesmo com a conquista do sufrágio, as mulheres permaneceram subjugadas à estrutura patriarcal da
sociedade
A conquista da igualdade jurídica, que por várias décadas foi meta do movimento feminista, não tem
conseguido incorporar as mulheres nesse modelo de cidadania dominante. Cada vez mais avança a
consciência da necessidade do estabelecimento de políticas públicas que possam estimular e mesmo garantir
uma maior integração feminina, à estrutura de poder, ao mundo da política formal.” Costa. Ana Alice. Em
busca de uma cidadania plena. In. Álvares, Ma. Luzia e Santos, Ma. Eunice. Olhares & diversidade: os
estudos sobre gênero no Norte e Nordeste. Belém: GEPEM/REDOR. 1999.
7
Os conceitos de condição e posição femininas na ótica desenvolvimentista foram desenvolvidos por Yong,
Kate. El potencial transformador en las necesidades práticas: empoderamiento colectivo y el proceso de
planificación. In. Leon, Magdalena. Op.cit.
8
Não podemos esquecer que a incorporação massiva das mulheres no mercado de trabalho, em especial na
industria, apesar de garantir um incremento na renda familiar e retirar a mulher do isolamento doméstico, não
proporcionou uma autonomia do sujeito feminino ou qualquer divisão sexual do trabalho. Acarretou, isso sim,
numa sobrecarga de trabalho (a segunda jornada), num aumento de responsabilidades, no abandono dos
filhos, uma maior vulnerabilidade ao assedio e a violência sexual.
Posição é o status econômico, social e político das mulheres
comparado com o dos homens, isto é, a forma como as mulheres tem acesso
aos recursos e ao poder comparado aos homens.
Outro tipo comum de prática entre os planejadores e executores que têm mantido as
mulheres afastadas dos benefícios desse tipo de projeto, é a concepção de que as
necessidades das mulheres são idênticas às dos homens ou a de agrupações mais amplas
como trabalhadores rurais, liderança local, etc, Geralmente, as mulheres são vistas e
tratadas apenas como provedoras do bem-estar da família ou como meio de bem-estar de
outros, como mães e esposas, nunca como sujeitos autônomos com demandas próprias.
Como consequência estes projetos resultaram ser ineficazes e até mesmo contra-
producentes, na medida em que planejadores e executores não haviam entendido as
desigualdades de gênero e portanto implementavam ações que só aumentavam a carga de
trabalho das mulheres sem o correspondente em termos de benefícios, aumentando assim a
brecha de gênero, isto é, o fosso existente entre os direitos do homem e os direitos da
mulher.
9
Aqui, podemos citar o exemplo da repercussão da oficina sobre conquistas femininas realizada pela equipe
do NEIM junto ao Grupo de Interesse Feminino de Lagoa Seca (UAP Jânio Quadros) em que foi tratada a
questão da violência doméstica. Aí pode-se identificar entre alguns maridos o medo de ver seu domínio
abalado, mas em especial, a falta de compreensão por parte da equipe técnica sobre o significado do enfoque
de gênero em um projeto de desenvolvimento e sua consequênte preocupação em manter intacta estas
estruturas de dominação, mesmo que tal prática, a exemplo da violência, venha de contra a própria legislação
brasileira.
A partir dos anos 80, as feministas começaram a questionar as estratégias de
desenvolvimento e as intervenções destes projetos que não atacavam os fatores estruturais
que perpetuam a opressão e exploração das mulheres, em especial das mulheres pobres.
Nesse contexto é que o movimento de mulheres passa a utilizar o conceito de
empoderamento.
Empoderamento
O termo começou a ser usado pelo movimento de mulheres ainda nos anos setenta.
Para as feministas o empoderamento compreende a alteração radical dos processos e
estruturas que reduzem a posição de subordinada das mulheres como gênero. As mulheres
tornam-se empoderadas através da tomada de decisões coletivas e de mudanças individuais.
10
Stromquist, Nelly. La busqueda del empoderamiento: en qué puede contribuir el campo de la educación. In.
Leon, Magdalena. Op. cit. p.105.
Bem-estar:
Acesso aos recursos
Maior Maior
Conscientização
igualdade empoderamentoo
Participação
Controle
Segundo ainda esta autora, uma perfeita definição de empoderamento, deve incluir
os componentes cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos:
11
León, Magdalena. El empoderamiento en la teoria y práctica del feminismo. In. León, Magdalena. Op. cit.
p.21
© 2011 by autores.
Todos os direitos autorais deste material são de propriedade dos Autores. Qualquer parte desta
publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Organizadores
Ana Alice Alcantara Costa
Alexnaldo Teixeira Rodrigues
Iole Macedo Vanin
Revisão
Vanda Bastos
Capa
Gabriel Cayres
Ensino e Gênero: Perspectivas Transversais / Ana Alice Alcantara Costa, Alexnaldo Teixeira
Iole Macedo Vanin , organização. - Salvador : UFBA - NEIM, 2011.
247 p.
ISBN: 978-85-60667-90-1
CDD - 371.207
RELAÇÕES DE GÊNERO
1
Cecilia M. B. Sardenberg
Márcia S. Macedo2
Ao iniciar uma reflexão sobre gênero, o primeiro desafio que se apresenta é o de reconhecer
que ser homem ou ser mulher não é simplesmente um feito natural, biológico e isso porque há vários
fatores de ordem econômica, social, política, étnica e cultural que contribuem, de forma diversa, para a
maneira como pensamos, como nos comportamos e atuamos enquanto homens ou mulheres, mas nem
sempre nós os levamos em consideração quando procuramos compreender as diferenças entre homens e
mulheres. De um modo geral, é comum que se dê importância apenas aos aspectos biológicos, tomando
como “naturais” diferenças que são construídas socialmente a partir de outros elementos.
No caso das mulheres, no particular, tende-se a pensá-las, sobretudo, como “fêmeas da
espécie”, definindo-se o seu mundo a partir da constituição biológica que lhes permite gestar, dar à luz e
amamentar os filhos. Aloca-se, assim, às mulheres a responsabilidade do cuidado e educação das crianças,
como extensão da sua condição biológica. Ademais, conforme observa Ivania Ayales:
[...] essa maternidade biológica foi acompanhada de uma maternidade social, que se
estendeu a atividades como lavar a roupa, cozinhar, varrer, costurar e toda uma série de
trabalhos quase inumeráveis, que comprometem grande parte do tempo das mulheres.
(AYALES, 1993, p. 13).
Mais importante, porém, é o fato de que, pensadas como biológicas e, portanto, como
“naturais”, as diferenças entre os sexos têm servido de pretexto para se edificar e legitimar relações
desiguais entre homens e mulheres, historicamente caracterizadas por uma situação de subordinação das
mulheres.
Por certo, isso não acontece só na nossa sociedade. Muito ao contrário, quando se compara
as noções sobre homens e mulheres em uma perspectiva transcultural, observa-se que a tendência a tomar
as diferenças estéticas entre os sexos e suas diferentes funções na reprodução da espécie como base para a
diferenciação social de papéis se manifesta como fenômeno de âmbito universal. Invariavelmente, em
todas as sociedades sobre as quais se tem notícia, “masculino” e “feminino” figuram como categorias e/ou
domínios opostos, a partir dos quais se organiza e legitima uma divisão social/sexual do trabalho.
1
Doutora em Antropologia pela Universidade de Boston. Diretora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher (NEIM) e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2
Mestra e Doutora em Ciências Sociais pela UFBA. Pesquisadora Associada do NEIM/UFBA. Professora do Curso de
Serviço Social da Universidade Católica do Salvador (UCSal).
33
Entretanto, como lembra Saffiotti (1994a, p. 271), “todas as atividades humanas são
mediadas pela cultura”, assim, em que pese tal constante, verifica-se que as elaborações culturais em torno
dessas categorias e domínios e a forma pela qual são apropriadas na prática social, divergem
consideravelmente, muitas vezes, de forma radical. Não raro, aliás, atividades, comportamentos ou traços
que, em uma determinada sociedade ou época, são considerados “naturalmente” masculinos, podem ser,
justamente, aqueles que, em outras, se configura como de domínio feminino por excelência. Isso nos leva
a concluir, portanto, e com bastante segurança, que as identidades sexuais não são inerentes à biologia dos
sexos e sim construções sociais, histórica e culturalmente específicas, logo, passíveis de transformação.
Sem dúvida, a identificação desse fenômeno da cultura não se descortina como algo
inteiramente novo para áreas do conhecimento como a Antropologia. Margaret Mead (1988), em sua
conhecida e pioneira obra, Sexo e temperamento, publicada pela primeira vez na década de 1930, trouxe à
tona a falácia do determinismo biológico em que se apoiam as noções do senso comum sobre homens e
mulheres3. Ao ressaltar o papel determinante dos processos de socialização e internalização da cultura na
formação do indivíduo, vai mostrar como cada sociedade molda meninos e meninas de forma que eles(as)
adquiram os traços de personalidade (“temperamento”) e comportamentos culturalmente definidos em
suas sociedades, assumindo, portanto, papéis e tarefas previamente alocados na divisão sexual do
trabalho.
3
Essa obra é o resultado de dois anos de trabalho de campo, na Nova Guiné, onde Mead estudou três povos vizinhos –
Tchambuli, Arapesh e Mundugumor – e, através de um trabalho comparativo, mostrou a importância da cultura no
processo de modelagem dos indivíduos, padronizando tipos de comportamento/temperamento variáveis entre essas
sociedades. O mais interessante é que ela mostra, ainda na primeira metade do século XX, que o que consideramos em
nossa sociedade como “naturalmente” feminino ou masculino, difere nas sociedades estudadas, rompendo com
qualquer determinação de ordem sexual, portanto, biológica.
34
Todavia, até décadas mais recentes, o fenômeno da construção social das identidades e
papéis sexuais (ver quadros conceituais) identificado por Mead (1988) foi pouco problematizado ou
merecedor de maiores elaborações teóricas. Isso significou que, na prática, apesar da sua ênfase na
relevância do estudo da cultura, o discurso antropológico também não escapou de reproduzir uma visão
naturalizante da divisão sexual do trabalho e dos papéis sexuais, do feminino em particular, não
rompendo, assim, de todo, com as noções do “senso comum” sobre masculino e feminino. Felizmente,
essa trilha aberta pela antropologia de Mead será retomada e ratificada pela filósofa Simone de Beauvoir
(1980), ao afirmar, em O segundo sexo, categoricamente, que “não se nasce, torna-se mulher”4. Com essa
afirmação, Beauvoir lança as bases para a posterior formulação de uma postura que vai defender a
construção social das relações entre (e intra) sexos, isto é, das relações de gênero, mostrando, assim, que
elas vão muito além da regulação da relação homem-mulher, também entre as mulheres e entre os
homens.
IDENTIDADE
Esse conceito é uma construção que diz respeito à forma como apreendemos e
interpretamos a realidade e, ao mesmo tempo, compreendemos a nossa posição no
mundo. Nesse processo, é fundamental a percepção de um sentido de ‘nós’ (igualdade)
e de ‘outro’ (alteridade).
PAPEL SEXUAL
Este é um conceito que é geralmente utilizado para referir comportamentos e atitudes
de uma pessoa, de acordo com o seu sexo. Portanto, expressa a obediência a normas,
expectativas e deveres socialmente estabelecidos, a depender do pertencimento do
indivíduo a um determinado sexo. A crítica feminista a esse tipo de visão é que ela está
assentada em uma perspectiva androcêntrica que naturaliza a divisão sexual do
trabalho e as relações hierárquicas que vêm determinando a subordinação da mulher.
Mas, disse bem Bachelard quando afirmou: “o objeto de uma ciência não é dado de
imediato e não pré-existe ao processo de sua construção” (apud LECOURT, 1975, p. 7). E, de fato, ainda
que o fenômeno da construção social das identidades sexuais tivesse sido identificado, a sua delimitação
enquanto objeto de estudo e, em especial, o aprofundamento das reflexões teóricas de como se processa e
se manifesta esse fenômeno não se dariam senão algumas décadas mais tarde. Somente a partir do final
4
É inegável a dívida do feminismo com Beauvoir, diante da tarefa de construção do campo de estudos sobre a mulher e
as relações de gênero. O segundo sexo, publicado na França em 1949, depois traduzido para mais de trinta idiomas, é
uma das mais importantes obras já produzidas sobre a chamada “questão da mulher”. Escrito por uma filósofa
existencialista, critica as abordagens do determinismo biológico, do materialismo histórico e da psicanálise, por serem
reducionistas da complexa teia que envolve o processo de construção social, portanto, historicamente determinado, de
um sujeito “feminino” e subordinado – ao qual é negado o direito de construir seus próprios projetos (transcendência) –,
a que chamará de “o outro”, isto é, “o segundo sexo” e que lhe inspira a dar título a essa obra magistral.
35
dos anos 60 e, mais precisamente, no bojo da retomada do projeto feminista, autoras inglesas e
americanas, para melhor identificar e analisar esse fenômeno e, ao mesmo tempo, enfatizar o caráter
social das relações entre os sexos, passaram a empregar o termo “gênero”, em oposição a “sexo”, tal como
se expressa na definição de Ann Oakley:
SEXO
Sexo é um termo que se refere às diferenças entre machos e fêmeas: as diferenças
visíveis da genitália e as respectivas funções procriativas. Gênero, porém, é uma
questão de cultura: diz respeito à classificação social em masculino e feminino.
(OAKLEY, 1972, p. 86).
GÊNERO x SEXO
Gênero não é sinônimo de sexo, pois, quando falamos em sexo, estamos nos referindo
aos aspectos físicos/fisiológicos que distinguem os machos das fêmeas da espécie
humana. Por outro lado, quando nos referimos a gênero, estamos refletindo acerca de
processos de construção cultural de relações que não decorrem de características
sexuais diferenciadas entre homens e mulheres, mas de processos construtores dessas
diferenças, produzindo, nesse movimento, desigualdades e hierarquias.
Note-se que o termo gênero foi tomado emprestado da Linguística, mais precisamente da
Gramática, que o aplica às desinências diferenciadas existentes em determinados idiomas para designar
não apenas o que se refere a indivíduos de sexos diferentes, mas, também, a classes de termos, palavras ou
“coisas” sexuadas5. Na Gramática, por definição, gênero se refere à “propriedade que têm certas classes
de palavras de se flexionarem (por via de regra), para indicar o sexo (ou, de modo geral, ausência de
sexo)” (FERREIRA, 1975).
No português, por exemplo, os substantivos são geralmente “sexualizados”, sendo ou do
gênero masculino ou do feminino, não existindo o neutro. Já no inglês, os substantivos comuns são
sempre neutros, a não ser em casos específicos, ou seja, quando se referem a animais e, portanto, a seres
que são, de fato, sexualizados. O que importa observar é que, tanto no português como no inglês ou em
qualquer outro idioma, a designação do gênero das palavras é algo essencialmente arbitrário. Trata-se de
uma convenção social que se fundamenta na tradição linguística, logo, histórica-cultural de uma
determinada comunidade idiomática.
Diferenciando “sexo” de “gênero”, as pensadoras feministas pretendem, portanto, ressaltar o
caráter arbitrário de “masculino” e “feminino”, razão pela qual “gênero” tem sido objeto de contínuas
5
A desinência é o elemento da língua portuguesa que permite a diferenciação, no caso dos nomes, além de gênero,
também de número e, no caso dos verbos, além de número, também de pessoa, tempo e modo.
36
teorizações, tornando-se, dessa maneira, conceito-chave do campo de estudos sobre as relações entre
homens e mulheres e a condição feminina.
Originalmente, embora constatando que as “[...] noções culturais sobre as mulheres
frequentemente gravitam em torno de características biológicas [...]” (ROSALDO, 1974, p. 31), tais como
a menstruação, gravidez e parto, as discussões enfatizaram a diversidade cultural, definindo sexo e gênero
como fenômenos essencialmente distintos. De um lado, teríamos “sexo”, um fenômeno natural resultante
da evolução da espécie, que se manifesta, de uma forma ou de outra, entre todos os organismos do planeta
que se propagam através da reprodução sexuada e, de outro lado, o fenômeno cultural do gênero,
manifestado nas diferentes maneiras que as sociedades humanas têm elaborado em torno dessas diferenças
e delas têm se apropriado, historicamente, distinguindo, definindo e delimitando o masculino e o
feminino.
Embora hoje se reconheça que tal conceituação já é efetivamente uma construção de
gênero6, as definições de sexo e gênero, nos termos originais, têm permitido que entendamos não apenas
“masculino” e “feminino”, mas, também, “homem” e “mulher” como categorias socialmente construídas,
possibilitando o rompimento com o essencialismo implícito na questão das origens da subordinação da
mulher, questão motivadora das investigações e elaborações que fundamentaram a própria construção do
conceito de gênero. (SARDENBERG, 1994, p. 3-4).
Ao mesmo tempo, a insistência nessa distinção se tornou fundamental como contra-
argumento ao determinismo biológico, vez que possibilitou a desnaturalização tanto das identidades
sexuais como da divisão sexual do trabalho e das assimetrias/hierarquias sociais com base no sexo,
demonstrando a sua historicidade e, assim, a possibilidade da sua transformação e transcendência. Essa
perspectiva tem emprestado ao construto gênero, para além dos avanços teórico-metodológicos, uma
conotação prático-política fundamental: a de se prestar como instrumento científico de legitimação das
lutas feministas, tanto na sociedade como um todo quanto no campo mais restrito da produção de
conhecimentos sobre essa realidade. (SCOTT, 1988).
Observe-se, porém, que o conceito de gênero não substitui a categoria social “mulher”,
tampouco torna irrelevantes pesquisas e reflexões sobre “mulheres” enquanto um grupo social
discriminado. Muito ao contrário, permite que se pense essa categoria como uma construção social
historicamente específica e em como tal construção legitima a situação “real” de discriminação,
exploração e subordinação das mulheres. Ao mesmo tempo, a categoria social/relacional “gênero” não
nega a diversidade da condição social e da experiência femininas, em sociedades distintas no tempo e
espaço, e, ressalte-se, inclusive, no seu interior. Como categoria analítica, gênero possibilita pensar em
6
Ver, por exemplo: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
37
como os recortes de classe, raça/etnia e idade/geração permeiam as vivências de “gênero”, de sorte a
construírem experiências femininas e masculinas bastante distintas. (SARDENBERG, 1992).
Nessa perspectiva, portanto, é possível pensar as relações entre os sexos (entre mulheres e
homens, bem como entre mulheres e entre homens), ou seja, as relações de gênero, também como
relações sociais e, assim, como relações determinadas não “naturalmente” pela biologia dos sexos, mas
sim por forças sociais, econômicas, políticas, culturais e ideológicas historicamente específicas, o que
implica dizer que a forma que as relações de gênero
[...] tomam em uma dada situação histórica é específica àquela situação e tem que ser
construída indutivamente; ela não pode ser assumida em termos de outras relações
sociais, tampouco da forma em que manifestam em outras sociedades. (PEARSON;
WHITEHEAD; YOUNG, 1981, p. X).
Isso ocorre porque as relações de gênero, em última instância, são relações de poder e, como
tal, não são fixas e sim, fluidas e mutáveis. Elas podem variar de sociedade para sociedade, no tempo e no
espaço, ou mesmo em uma dada sociedade, a depender dos espaços em que homens e mulheres
interagem. (SARDENBERG, 1992). Destarte, as mulheres não são necessariamente desprovidas de poder
em relação aos homens, porém, nem sempre, esse “poder feminino” é legitimado.
Com efeito, historicamente, o “feminino” tem sido construído como subordinado ao
“masculino”, sendo que, no Brasil, como, de resto, na América Latina (ou mesmo em nível mundial),
dominam as relações de gênero patriarcais. Na verdade, na maioria das sociedades contemporâneas, tanto
no nível simbólico quanto no da prática social, o “masculino” se sobrepõe hierarquicamente ao feminino
resultando em uma situação “real” de prestígio, privilégios e poder maior para os homens. Um exemplo
evidente dessa assimetria está expresso na violência doméstica que, no Brasil, tem um vetor recorrente:
ela se manifesta na violência masculina sobre a mulher e é um claro traço constitutivo da organização
social de gênero no país. (SAFFIOTI, 1994b).
Daí porque é extremamente relevante e estratégico reconhecer a necessidade da construção e
implementação de projetos e programas de ação que, partindo de uma perspectiva de gênero, logo, do
reconhecimento da especificidade da condição feminina, se voltem para a promoção social e econômica
da mulher, na busca da equidade – o que, nesse caso, pode ser considerado como uma “discriminação
positiva” já que, ao tratar de forma “desigual” os diferentes, cria condições para a superação progressiva
das assimetrias.
Diante do exposto acima, importa ressaltar que o construto gênero diz respeito a um
princípio universal, organizador tanto do mundo exterior (o “social”, econômico, político) quanto interior,
ou seja, que diz respeito à construção das subjetividades e das identidades. De fato, gênero organiza e
legitima não apenas a divisão sexual do trabalho e a construção de papéis sociais correspondentes, como,
também, a divisão sexual de direitos e responsabilidades, o acesso e controle sexualmente diferenciado a
oportunidades de trabalho, bem como a instrumentos e meios de produção, recursos e fontes de renda e
38
crédito, capital, conhecimento, educação, instâncias decisórias etc. Mais especificamente, por força das
ideologias de gênero e da consequente divisão sexual do trabalho, homens e mulheres se engajam em
diferentes tipos de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais, tendo “fontes diferentes de renda e
diferentes formas de acesso e controle dos recursos (materiais: terra, capital, ferramentas, tempo; e não-
materiais: poder, conhecimento, educação)”7.
A categoria gênero vista como um dos principais elementos articuladores das relações
sociais vai possibilitar a compreensão acerca de como os sujeitos sociais estão sendo constituídos
cotidianamente por um conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos
normativos, institucionalidades e subjetividades sexuadas (SCOTT, 1988) que atribuem a homens e
mulheres um lugar diferenciado no mundo, sendo essa diferença atravessada por relações de poder que
conferem ao homem, historicamente, uma posição dominante.
Logicamente, discutir relações de gênero requer cuidado, para que não se caia na armadilha
das fórmulas simplificadoras que convertem o “masculino” e o “feminino” em campos estanques e
homogêneos, como se homens e mulheres não apresentassem convergências nas suas experiências e
representações ou como se entre homens e homens e mulheres e mulheres não existissem também
divergências (SORJ, 1993), afinal não podemos esquecer das chamadas identidades sobrenomeadas
(“mulher negra”, “mulher trabalhadora rural” etc.). Assim, refletir sobre relações de gênero implica
realizar uma releitura de todo o nosso entorno, o que significa, por exemplo, repensar a cultura e a
linguagem, os meios de comunicação social, as instituições, como a família, o sistema educacional ou
mesmo a religião, e os processos políticos, como os movimentos sociais ou os partidos.
A adoção de um recorte transversal em torno das relações de gênero funciona como uma
lente que possibilita a visibilização de uma série de aspectos que a sociedade vem naturalizando e que
vem assegurando a perpetuação de relações assimétricas entre homens e mulheres. A partir dos “filtros de
gênero”, torna-se perceptível que as mulheres não dispõem das mesmas condições que os homens para
enfrentar os problemas da vida cotidiana, especialmente aquelas pertencentes ao contingente das classes
trabalhadoras e isso porque, conforme apontado anteriormente, ainda há uma grande concentração de
poder e de recursos produtivos nas mãos dos homens (meios de produção, como terra e capital, por
exemplo), bem como, também, em termos do acesso diferenciado que esses têm ao conhecimento
(domínio da tecnologia).
7
Elza Suely Anderson em Tecnologia, Conceitos e Definições, panfleto distribuído durante o Seminário “Gênero e
Energia Renovável”, IDER/WINROCK, Praia da Caponga, CE, 27-30 de maio de 1997.
39
Nesse sentido, partimos do referencial básico de que, por conta dessas assimetrias, mulheres
e homens vivem e pensam o mundo a partir de diferentes “lugares”, tendo, dessa forma, necessidades
diferenciadas. O desafio, portanto, é a busca da compreensão dos vários espaços e relações em que o
gênero se constrói como o contexto educacional, o mercado de trabalho, a família, as instituições, as
políticas públicas, os meios de comunicação etc., que influenciam diretamente a construção das
subjetividades de mulheres e homens.
Portanto, quando falamos de “enfoque de gênero”, nos referimos ao fato (e às suas
consequências) de que o masculino e o feminino e, assim, o que é “ser homem” ou “ser mulher” se
constrói socialmente através de valores e símbolos que são por nós assimilados e interiorizados desde a
mais tenra infância, em um dado contexto histórico, social e cultural. Vários estudos têm demonstrado
que, na sociedade brasileira, como na América Latina, de um modo geral, masculino e feminino são, de
fato, construídos simbolicamente como polos opostos, mas não necessariamente simétricos. Conforme
observa Ayales:
Mulheres Homens
Delicadas Bruscos/Rudes
Frágeis Fortes
Dependentes Independentes
Submissas/Sem Iniciativa Tomam iniciativas e decisões
Passivas-receptivas Dominantes
Incapazes Inteligentes
Fiéis Infiéis
Temperamentais Equilibrados
Obedientes Autoritários
Necessitadas de Proteção Provedores/protetores
Conformistas Visionários
Idealizados como diferentes, homens e mulheres são modelados para ser, de fato, diferentes
e isso ocorre desde a escolha do nome e do enxoval para os bebês – azul para os meninos, rosa para as
meninas –, reforçando nas crianças os comportamentos, atitudes e modos de ser e entender o mundo que
mais se identificam com o que é culturalmente tido como mais apropriado ao seu sexo. Assim, espera-se
40
que as meninas sejam dóceis, vaidosas, que estejam sempre “limpinhas e bem vestidinhas”, que não sejam
violentas, não façam uso de palavras de baixo calão, enquanto o comportamento inverso é o esperado dos
meninos.
Vale observar que as brincadeiras infantis ou mesmo os brinquedos oferecidos às crianças
trazem imbricados as ideologias de gênero e os papéis sexuais atribuídos a homens e mulheres. Meninas
brincam de “casinha” com bonecas, panelinhas, fogõezinhos e outras miniaturas de objetos utilizados nas
“tarefas domésticas”, sendo assim modeladas e treinadas para a maternagem e para assumirem, na vida
adulta, o papel de boas mães e donas-de-casa. Pouco se lhes oferece em termos de brincadeiras ou
brinquedos que incentivem o desenvolvimento das capacidades intelectuais, físicas e de liderança, ou que
as prepare para uma vida profissional. São treinadas, desde cedo, para a “domesticidade” ou, então, para
ocupações majoritária e tradicionalmente tidas como “femininas” professoras primárias, enfermeiras,
secretárias, assistentes sociais. Para os meninos, em contrapartida, tudo é feito e proporcionado para que
se desenvolvam, física e intelectualmente, se tornem homens fortes, tenham uma profissão e capacidade
de liderança e assumam posições no mundo da produção e no espaço público.
A educação formal nas escolas contribui para essa diferenciação sexual de papéis, a começar
pelo fato de que a esmagadora maioria dos professores primários é constituída por mulheres, chamadas
familiarmente de “tias”, o que reflete ser essa ocupação, feminina, uma extensão das atividades
domésticas. Ademais, os livros didáticos reforçam os estereótipos e as próprias professoras punem muito
mais as meninas que não se comportam, dando maior latitude de expressão para os meninos.
Também a mídia, particularmente a televisiva, através de comerciais e novelas, ou mesmo a
indústria cultural como um todo, contribui para a disseminação e o reforço dos estereótipos de gênero, ao
tempo em que também reflete o que ocorre na realidade observada. Sem dúvida, pode-se pensar em uma
centena de provérbios, mitos, lendas, “piadinhas”, contos infantis, poesias e inúmeras canções que
41
constroem e, simultaneamente, refletem as ideologias de gênero, criando um mundo sexualmente
dividido.
É claro que tudo isso é interiorizado por meninos e meninas, contribuindo para que quando
cheguem à idade adulta, homens e mulheres se vejam como essencialmente diferentes, pensem e se
comportem, de fato, de forma diferente, o que reforça as noções de que as diferenças observadas são
“naturais” aos sexos. Além disso, uma vez socializados(as), modelados(as) e treinados(as) para
desempenharem tarefas diferentes e assumirem papéis diferenciados no trabalho, na família e na
sociedade como um todo, não é de surpreender que isto, de fato, ocorra. De outra feita, como explicar por
que os técnicos agrícolas e engenheiros sejam geralmente homens e as professoras e assistentes sociais,
mulheres?
Sem dúvida, nesse processo de diferenciação social entre os sexos, o modelo dominante de
família tem um papel preponderante. De fato, a moral familiar burguesa tem sustentado os princípios
básicos do modelo de família patriarcal, propondo que ao homem/marido/pai caiba o papel de chefe da
família e do grupo doméstico destinando-lhe a responsabilidade de provedor. A mulher/esposa/mãe e
os(as) filhos(as) comporiam a parte dependente, compartilhando os frutos do trabalho do “chefe”, a
“cabeça do casal”. Nessa qualidade, cabe ao homem deter a autoridade sobre o grupo: esposas e filhos são
subordinados à vontade do pai-marido e as filhas mulheres à de seus irmãos. (SARDENBERG, 1997).
Esse modelo ou ideal de família tem sido interiorizado, de tal forma, nas sociedades
ocidentais que a família assim constituída tende a ser vista como algo “natural”. Segundo nos aponta
Eunice Durham, isso se dá, sobretudo, “pelo fato de se tratar de uma instituição que diz respeito,
privilegiadamente, à regulamentação social de atividades de base nitidamente biológica: o sexo e a
reprodução”. Mas esse processo de naturalização da família se estende, também, à organização
doméstico-familiar, sobretudo à divisão sexual do trabalho e aos diferentes papéis que cabem ao homem e
42
à mulher na família. Em suas palavras: “A relação dessa divisão sexual do trabalho com o papel da mulher
no processo reprodutivo permite que se vejam todos os papéis femininos como derivados de funções
biológicas” (1983, p. 15).
Não resta dúvida de que, nas últimas décadas, esse modelo ou ideal de família vem sendo
bastante contestado, inclusive porque as mulheres têm saído da sua domesticidade, tornando-se presentes
no mundo da produção. A bem da verdade, as mulheres brasileiras vêm conquistando novos espaços de
atuação, avançando, também, na luta pelo direito à cidadania plena. No entanto, ainda são muito poucas as
mulheres que atuam nesses “novos” espaços e que desfrutam das conquistas obtidas ou mesmo que delas
têm conhecimento. Quando atentamos para as condições de vida e de trabalho da maioria da população e,
em particular, das mulheres das camadas mais pobres, constatamos que – longe daquela sociedade mais
justa, mais igualitária que preconiza a Nova Constituição Federal (CF/88) – as desigualdades sociais e,
dentre elas, as desigualdades de gênero, não só se mantém ainda bem vivas em nosso meio, como
permanecem profundamente arraigadas na estrutura socioeconômica hierarquizante, concentradora de
renda e de poder vigente no país8.
Basta observar, por exemplo, que, apesar das mulheres representarem hoje cerca de 45% da
população economicamente ativa (PEA) do país, o que corresponde a um índice bastante significativo em
relação aos países mais desenvolvidos e a um acréscimo surpreendente da participação da mulher no
mercado de trabalho em relação a décadas anteriores, 70% da força de trabalho feminina ainda se
concentra, paradoxalmente, como no passado, e de forma marcante,
Além disso, mesmo que as mulheres estejam cada vez mais qualificadas, em decorrência da
ampliação do processo de educação formal entre amplos grupos populacionais, ainda ganham menos que
os homens.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2007), 60% das mulheres
ocupadas no país, hoje, possuem, pelo menos, o ensino médio e, no entanto, ganham apenas 71,3% do
rendimento auferido pelos homens e, mais, paradoxalmente, à medida que essa escolarização avança para
o curso de nível superior, a diferença salarial em relação aos homens se torna ainda maior, fazendo com
que percebam apenas 60% dos rendimentos masculinos, ainda que ambos trabalhem sobre as mesmas
condições. Associado a esse fator, as mulheres terminam, também, por ser maioria entre aqueles que não
possuem carteira assinada e não contribuem para a previdência social, sem mencionar o fato de que o
trabalho feminino tende a ser sempre subestimado, ou mesmo “mascarado”, a começar pelo trabalho da
8
Ver, a esse respeito, SARDENBERG, Cecilia. Análise Crítica da Metodologia de Grupos Solidários: relatório de
consultoria elaborado para o UNICEF/CNDM. Salvador, 1989. mimeo.
43
dona de casa (que inclui uma diversidade de tarefas), que só é considerado “trabalho” se remunerado
(quando feito pela empregada doméstica) e, ainda assim, pouco valorizado, só sendo apreciado mesmo,
justamente quando não é feito.
Estudos de famílias de trabalhadores têm revelado uma importante faceta do trabalho
feminino: sua invisibilidade, principalmente, quando realizado em casa e no mercado informal. Vale
ressaltar que a renda assim auferida é de grande importância para a economia doméstica, tornando-se
efetivamente fundamental, à medida que o processo de pauperização das classes trabalhadoras brasileiras
se acentua. Esse processo tem obrigado muitas famílias a se valerem de estratégias diversas para garantir
sua subsistência e reprodução, sendo a incorporação do trabalho feminino na esfera produtiva, uma das
estratégias principais. E, no caso das famílias chefiadas por mulheres – que chegam a representar mais de
um quarto do total das unidades domésticas em muitas cidades do Nordeste – verifica-se a incorporação
do trabalho infantil na produção, uma vez que todos os membros do grupo doméstico são geralmente
obrigados a contribuir para a renda familiar, o que não impede que essas famílias se mantenham, na sua
maioria, entre as mais carentes, muitas sobrevivendo em situação de miséria.
Mas, apesar da sua comprovada importância para a sobrevivência da família, principalmente
em momentos de crise, a inserção da mulher no mercado de trabalho desencadeia outra crise no âmbito
familiar, pois entra em choque com as atribuições “femininas” definidas por uma desigual divisão sexual
do trabalho. Assim, representa, quase sempre, um acúmulo ou sobrecarga para a mulher, pois se sobrepõe
às tarefas domésticas, dando lugar ao fenômeno da “dupla-jornada” de trabalho, pois, embora as mulheres
atualmente participem em grande escala no mercado de trabalho, os padrões tradicionais da divisão sexual
do trabalho no âmbito doméstico-familiar têm se mantido. No que tange ao campesinato brasileiro, os
padrões tradicionais da divisão do poder decisório ainda permanecem concentrando no homem a
autoridade legitimada, o que não implica em dizer que as mulheres não usufruam de autonomia,
exercendo também poder na esfera doméstica e na família, um poder, porém, nem sempre reconhecido.
Outro aspecto bastante ilustrativo dessas desigualdades se refere à persistência da violência
de gênero, mais precisamente da violência contra a mulher, que ainda é uma das formas de violência mais
aceitas como “normais” e de maior presença no cotidiano de nossa sociedade.
No Brasil, calculava-se, ainda no início da década de 90, que a cada quatro minutos era
registrada na polícia uma queixa de agressão física contra uma mulher. Estudiosos do tema, como Saffioti
(1994b), comentam que esse número é alarmante, mas ainda não espelha a realidade, já que muitas
44
mulheres vítimas de violência não prestam queixa na polícia por várias razões medo, dependência
financeira ou emocional, existência de filhos pequenos, vergonha, esperança de que o marido mude de
atitude etc. – o que leva à conclusão de que o número de mulheres agredidas é bem maior do que o
apresentado. Outro dado é que muitas das que chegam a registrar queixa, pelos motivos apontados e até
sob a ameaça do marido, voltam à delegacia de polícia para retirá-la.
É muito importante a busca de informações que ajudem a desfazer alguns mitos ligados a
essa problemática. O primeiro deles é a ideia de que a violência doméstica é um fenômeno ligado à
pobreza; na verdade, ela ocorre em todas as classes sociais, mas, entre as classes médias e alta, muitas
vezes, ela não chega a público por razões como o medo de um escândalo que venha a “manchar o nome
da família”, buscando-se alternativas como terapeutas, advogados, entre outros profissionais. Outro
equívoco é a associação direta da violência com a crise econômica, o desemprego e o alcoolismo, fatores
que podem ser o estopim de uma briga, pelo fato de aumentarem o estresse e diminuírem o autocontrole,
mas não podem ser considerados como causas da violência.
Mas, um aspecto que dá o que pensar é o fato de que muitos homens que agridem suas
esposas são descritos por essas mulheres como “pessoa amigável”, “homem trabalhador”, “bom pai” etc.,
apesar de cometerem esse tipo de violência, o que nos leva a perguntar: Por que um homem considerado
bom pai, trabalhador e pessoa amigável é o mesmo que espanca e, até mesmo, mata a sua esposa? O que
faz um homem – aparentemente incapaz de cometer violências – ferir, mutilar e até tirar a vida de sua
companheira, muitas vezes por um motivo fútil como a queima da comida ou um atraso de dez minutos na
volta do supermercado?
Temos que buscar compreender esse fenômeno no campo das discussões das relações de
gênero, tentando articulá-las às reflexões realizadas até aqui. A violência contra as mulheres está
diretamente relacionada às desigualdades existentes entre homens e mulheres e às ideologias de gênero
expressas nos pensamentos e nas práticas machistas, na educação diferenciada, na construção de uma
noção assimétrica em relação ao valor e aos direitos de homens e mulheres, na noção equivocada da
mulher enquanto objeto ou propriedade de seu parceiro. Quanto a esse último ponto, as estatísticas
apontam que 70% dos homicídios de mulheres no Brasil são cometidos por ex-maridos e ex-namorados,
na maioria das vezes, por não aceitarem o desejo das mulheres de ruptura do relacionamento amoroso
(SAFFIOTI, 1994b).
Logicamente, precisamos entender toda essa discussão de forma bastante ampla para não se
criar uma noção equivocada dos homens como apenas “agressores” e as mulheres como “pobres vítimas”.
A violência de gênero é uma realidade bastante complexa e envolve uma série de questões que têm suas
raízes na sociedade, na omissão do Estado, sem falar em aspectos ligados às relações interpessoais e
trocas afetivas entre os seres humanos. Dessa forma, por ocorrer, principalmente, na vida privada
(particularmente, na família), a violência de gênero esteve, por muito tempo, encoberta por uma certa
45
invisibilidade social. A sociedade, o Estado e seus representantes tardaram em intervir nesse tipo de
violência e até hoje ainda resistem.
Mesmo na atualidade, mantém-se com bastante força o famoso ditado “em briga de marido e
mulher ninguém mete a colher”, o que remete à permanência de uma ideia de privacidade que deve ser
respeitada e preservada em qualquer circunstância. Essa noção precisa ser superada e a própria
Constituição Brasileira é bastante clara a esse respeito quando, no capítulo VII (artigo 226, parágrafo 8º)
referente à família, diz que a violência no interior da família deve ser coibida e que é obrigação do Estado
a sua proteção.
A sociedade como um todo e, em especial, as instâncias mais diretamente envolvidas na
prevenção e punição da violência precisam lançar um novo olhar para essa forma particular de violação
dos direitos humanos. Os caminhos para a desnaturalização da violência contra a mulher passam pela
retirada dessa problemática da privacidade do lar e pela criação de espaços e formas de enfrentamento que
vão desde a prontidão da ação policial de socorro à vítima de violência e o aprisionamento do agressor, ao
atendimento digno à mulher que se dirige à Delegacia Especial para registrar uma queixa, passando,
ainda, por maior eficiência da Justiça na punição dos agressores até a criação de espaços de apoio para as
mulheres agredidas e sob ameaça de morte.
Para concluir, importa ressaltar que trabalhar com um enfoque de gênero implica em
reconhecer, desvendar e levar em consideração esses fatos, procurando desenvolver estratégias que
contribuam para o desmonte dessas relações desiguais entre os seres humanos. No particular, é preciso ter
claro que os condicionamentos e desigualdades de gênero resultam em condições de vida e trabalho
bastante distintas para homens e mulheres, que se estabelecem e se cristalizam a partir das assimetrias que
colocam as mulheres em uma posição social subordinada. Daí porque, homens e mulheres, mesmo
situados em condições semelhantes de pobreza ou como membros de um mesmo grupo doméstico-
familiar, vivenciam essa situação de maneira distinta, tendo, portanto, diferentes necessidades de gênero
que devem, logicamente, ser atendidas de forma diferenciada, através de políticas de construção da
equidade.
Torna-se, assim, fundamental conceber estratégias de gênero distintas para atender a essas
necessidades, pois, ao acreditar na equidade de gênero e envidar esforços para a transformação dessas
relações se constrói uma das mais importantes vias para a reafirmação de valores e princípios como a
dignidade humana, a justiça, a igualdade com respeito à diferença, a solidariedade, a parceria/cooperação
e a participação efetiva.
Logicamente, “nem tudo é uma questão de gênero”, mas, por outro lado, todas as mudanças
nas relações sociais estão, de alguma forma, ligadas a essa dimensão, fazendo com que gênero não seja a
mais importante, mas seja uma instância imprescindível para a construção da utopia da sociedade mais
justa com a qual sonhamos e que acreditamos colocar em movimento com a nossa prática cotidiana.
46
Referências
AYALES, Ivannia. Genero en desarrollo: de la vivencia a la reflexión. In: AYALES, Ivannia et al.
Genero, comunicacion y desarrollo sostenible: aportes conceptuales y metodológicos. Coronado, Costa
Rica: IICCA; ASDI, 1996.
AYALES, Ivannia. Genero en desarrollo: de la vivencia a la reflexión. In: ______. Género, comunicación
y desarrollo sostenible, aportes conceptuales y metodológicos. IICA. Specialized Service: Training,
Education and Communication. Communication, Gender and Sustainable Development Project
IICA/ASDI, San José,
Costa Rica. 1996.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 5. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BRUSCHINI, Cristina. Mulher e trabalho. São Paulo: Nobel; Conselho Estadual da Condição Feminina,
1985.
LECOURT, D. Marxism and epistemology: Bachelard, Canguilhem and Foucault, trans. by B. Brewster.
London: New Left Books, 1975.
MACEDO, Márcia S. Relações de gênero no contexto urbano: um olhar sobre as mulheres. In: SOS
CORPO GÊNERO E CIDADANIA. Perspectivas de Gênero: debates e questões para as ONGs. Recife:
GT Gênero - Plataforma de Contrapartes Novib/SOS CORPO, 2002.
OAKLEY, Ann. Sex, gender and society. New York: Harper, 1972.
PEARSON, Ruth; WHITEHEAD, Ann; YOUNG, Kate. Introduction: the continuing subordination of
women in the development process. In: YOUNG, Kate et al. Of marriage and the market: women’s
subordination internationally and its lessons. London: Routledge, 1981.
ROSALDO, Michelle. Women, culture and society: a theoretical overview. In: ROSALDO, M.;
LAMPHERE, L. Women, culture and society. Stanford: Stanford University Press, 1974.
47
SAFFIOTI, Heleieth B. Posfácio: conceituando gênero. In: SAFFIOTI, H.; MUNHOZ-VARGAS, M.
(Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: UNICEF, 1994a. p. 271-
283.
SAFFIOTI, Heleieth B. Violência de gênero no Brasil contemporâneo. In: SAFFIOTI, H.; MUNHOZ-
VARGAS, M. (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: UNICEF,
1994b. p. 151-185.
SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar. De sangrias, tabus e poderes: a menstruação numa perspectiva
sócio-antropológica. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 314-344, 1994.
SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar. E a família, como vai? reflexões sobre mudanças nos padrões de
família e no papel da mulher. Bahia: Análise & Dados, Salvador, SEI/SEPLANTEC, v. 7, n. 2, p. 5-15,
set. 1997.
SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1988.
SORJ, Bila. Relações de gênero e teoria social. In: XVII REUNIÃO DA ANPOCS. Anais... Caxambu,
MG, 1993, (Mimeografado).
48
A
GENERO:
20(2):71-99
jul./dez. 1995
ANALISE HISTORICA*
Joan Scott
"Gênero (gender), s., apenas um termo gramatical. Seu uso para falar de
pessoas ou criaturas do gênero masculino ou feminino, com o significado de
sexo masculino ou feminino, constitui uma brincadeira (permissível ou não,
dependendo do contexto) ou um equívoco " (Fowler, Dictionnary of Modem
English Usage, Oxford 1940).
72
Além disso, o que é talvez mais importante, "gênero" era um tenno proposto
por aquelas que sustentavam que a pesquisa sobre as mulheres transfonnaria
fundamentalmente os paradigmas disciplinares. As pesquisadoras feministas assi
nalaram desde o início que o estudo das mulheres não acrescentaria somente
novos temas, mas que iria igualmente impor um reexame crítico das premissas
e dos critérios do trabalho científico existente. "Nós estamos aprendendo", es
creviam três historiadoras feministas "que inscrever as mulheres na história im
plica necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais
daquilo que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal
e subj etiva quanto as atividades públicas e políticas. Não é demais dizer que
ainda que as tentativas iniciais tenham sido hesistantes, uma tal metodologia
implica não somente uma nova história de mulheres mas também uma nova
história".5 A maneira pela qual esta nova história iria, por sua vez, incluir a
experiência das mulheres e dela dar conta dependia da medida na qual o gênero
podia ser desenvolvido como uma categoria de análise. Aqui as analogias com
a classe e com a raça eram explícitas; de fato as pesquisadoras feministas que
tinham uma visão política mais global, invocavam regularmente as três categorias
como cruciais para a escrita de uma nova história.6 O interesse pelas categorias
de classe, de raça e de gênero assinalava, em primeiro lugar, o envolvimento doi
a pesquisador/a com uma história que incluía as narrativas dos/as oprimidos/as
e uma análise do sentido e da natureza de sua opressão e, em segundo lugar,
uma compreensão de que as desigualdades de poder estão organizadas ao longo
de, no mínimo, três eixos.
A litania "classe, raça e gênero" sugere uma paridade entre os três tennos
mas, na verdade, eles não têm um estatuto eqüivalente. Enquanto a categoria
"classe" tem seu fundamento na elaborada teoria de Marx (e seus desenvolvi
mentos ulteriores) sobre a detenninação econômica e a mudança histórica, "raça"
e "gênero" não carregam associações semelhantes. É verdade que não existe
nenhuma unanimidade entre aqueles/as que utilizam o conceito de classe. Alguns/
mas pesquisadores/as se servem de noções weberianas, outros utilizam a classe
como um dispositivo heurístico temporário. Entretanto, quando invocamos a
classe, trabalhamos com ou contra uma série de definições que, no caso do
marxismo, implicam uma idéia de causalidade econômica e uma visão do cami
nho ao longo do qual a história avançou dialeticamente. Não existe nenhuma
clareza ou coerência desse tipo para a categoria de raça ou para a de gênero. No
caso do gênero, seu uso implicou uma ampla gama tanto de posições teóricas
quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos.
Os/as historiadores/as feministas que, como a maioria dos/as historiadores/
as são treinados/as para estarem mais à vontade com a descrição do que com a
teoria, têm, entretanto, procurado, cada vez mais, encontrar fonnulações teóricas
utilizáveis. Eles/elas têm feito isto ao menos por duas razões. Em primeiro lugar,
porque a proliferação de estudos de caso, na história das mulheres, parece exigir
73
uma perspectiva sintética que possa explicar as continuidades e descontinuidades
e dar conta das persistentes desigualdades, assim como de experiências sociais
radicalmente diferentes. Em segundo lugar, porque a discrepância entre a alta
qualidade dos trabalhos recentes de história das mulheres e seu status marginal
em relação ao conjunto da disciplina (que pode ser avaliado pelos manuais,
programas universitários e monografias) mostram os limites de abordagens
descritivas que não questionam os conceitos disciplinares dominantes ou, ao
menos, que não problematizam esses conceitos de modo a abalar seu poder e,
talvez, a transformá-los. Para os/as historiadores/as das mulheres, não tem sido
suficiente provar que as mulheres tiveram uma história, ou que as mulheres
participaram das principais revoltaS políticas da civilização ocidental. A reação
da maioria dos/as historiadores/as não feministas foi o reconhecimento da história
das mulheres e, em seguida, seu confinamento ou relegação a um domínio sepa
rado ("as mulheres tiveram uma história separada da dos homens, em conse
qüência deixemos as feministas fazer a história das mulheres que não nos diz
respeito"; ou "a história das mulheres diz respeito ao sexo e à família e deve ser
feita separadamente da história política e econômica"). No que se refere à par
ticipação das mulheres na história, a reação foi, na melhor das hipóteses, um
interesse mínimo ("minha compreensão da Revolução Francesa não muda por
saber que as mulheres dela participaram"). O desafio colocado por essas reações
é, em última análise, um desafio teórico. Isso exige uma análise não apenas da
relação entre a experiência masculina e a experiência feminina no passado, mas
também da conexão entre a história passada e a prática histórica presentes. Como
o gênero funciona nas relações sociais humanas? Como o gênero dá sentido à
organização e à percepção do conhecimento histórico? As respostas a essas
questões dependem de uma discussão do gênero como categoria analítica.
74
ou atribuir uma causalidade. O segundo uso é de ordem causal e teoriza sobre a
natureza dos fenômenos e das realidades, buscando compreender como e porque
eles tomam as formas que têm.
Na sua utilização recente mais simples, "gênero" é sinônimo de "mulheres".
Os livros e artigos de todos os tipos que tinham como tema a história das mulheres
substituíram, nos últimos anos, nos seus títulos o termo "mulheres" por "gênero".
Em alguns casos, mesmo que essa utilização se refira vagamente a certos
conceitos analíticos, ela visa, de fato, obter o reconhecimento político deste
campo de pesquisas. Nessas circunstâncias, o uso do termo "gênero" visa sugerir
a erudição e a seriedade de um trabalho , pois "genêro" tem uma conotação
mais objetiva e neutra do que "mulheres". "Gênero" parece se ajustar à termi
nologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da política (su
postamente ruidosa) do feminismo. Nessa utilização, o termo "gênero" não
implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o
poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível). Enquanto o
termo "história das mulheres" proclama sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos
válidos, o termo "gênero" inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim,
não constituir uma forte ameaça. Esse uso do termo "gênero" constitui um dos
aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade acadêmica
para os estudos feministas, nos anos 80.
Mas esse é apenas um aspecto. O termo "gênero", além de um substituto
para o termo mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer informação
sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um
implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das
mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse
mundo masculino. Esse uso rejeita a validade interpretativa da idéia de esferas
separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o
mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a
ver com o outro sexo. Além disso, o termo "gênero" também é utilizado para
designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente
explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum,
para divessas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres
têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força muscular
superior. Em vez disso, o termo "gênero" torna-se uma forma de indicar
"construções culturais" - a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às
origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mu
lheres. "Gênero" é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre
um corpo sexuado.7 Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade,
"gênero" tornou-se uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de
distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens.
75
Ainda que os/as pesquisadores/as reconheçam a conexão entre sexo e aquilo
que os/as sociólogos/as da família chamaram de "papéis sexuais", esses/as
pesquisadores/as não postulam um vínculo simples ou direto entre os dois. O
uso de "gênero" enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo,
mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a
sexualidade.
Esses usos descritivos do termo "gênero" foram empregados pelos/as his
toriadores/as, na maioria dos casos, para delimitar um novo terreno. À medida
que os/as historiadores/as sociais se voltavam para novos objetos de estudo, o
gênero tornava relevante temas tais como mulheres, crianças, famílias e
ideologias de gênero. Em outras palavras, esse uso de "gênero" refere-se apenas
àquelas áreas, tanto estruturais quanto ideológicas, que envolvem as relações
entre os sexos. Uma vez que, aparentemente, a guerra, a diplomacia e a alta
política não têm a ver explicitamente com essas relações, o gênero parece não
se aplicar a estes objetos, continuando, assim, a ser irrelevante para o pensamento
dos/as historiadores/as preocupados/as com questões de política e poder. Isto
tem como efeito a adesão a uma certa visão funcionalista, fundamentada, em
última análise, na biologia e na perpetuação da idéia de esferas separadas na
escrita da história (sexualidade ou política, família ou nação, mulheres ou ho
mens). Ainda que, nessa utilização, o termo "gênero" sublinhe o fato de que as
relações entre os sexos são sociais, ele nada diz sobre as razões pelas quais
essas relações são construídas como são, não diz como elas funcionam ou como
elas mudam. No seu uso descritivo, o tenno "gênero" é, então, um conceito
associado ao estudo de coisas relativas às mulheres. "Gênero" é um novo tema,
um novo domínio da pesquisa histórica, mas não tem poder analítico suficiente
para questionar (e mudar) os paradigmas históricos existentes.
Alguns/mas historiadores/as estavam, certamente, conscientes deste pro
blema; daí os esforços para empregar teorias que pudessem explicar o conceito
de gênero e dar conta da mudança histórica. De fato, o desafio consistia em
reconciliar a teoria, que estava concebida em termos universais e gerais, com a
história, que estava comprometida com o estudo da especificidade contextual e
da mudança fundamental. O resultado foi muito eclético: empréstimos parciais
que enfraquecem o poder analítico de uma teoria particular ou, pior, que empre
gam seus preceitos sem ter consciência de suas implicações; ou tentativas para
dar conta da mudança que, por terem como inspiração teorias universais, apenas
ilustram temas invariantes; ou, ainda, estudos extremamente imaginativos, nos
quais a teoria está, entretanto, tão escondida que esses estudos não podem servir
de modelos para outras pesquisas. Uma vez que, com freqüência, não se têm
explicitado todas as implicações das teorias nas quais as/as historiadores/as
têm-se inspirado, vale a pena dedicar-lhes aqui um pouco de tempo. Somente
através deste exercício, pode-se avaliar a utilidade dessas teorias e, talvez,
começar a formular uma abordagem teórica mais potente.
76
Os/as historiadores/as feministas têm empregado uma variedade de abor
dagens na análise do gênero, mas essas podem ser resumidas a três posições
teóricas.R A primeira, uma tentativa inteiramente feminista, empenha-se em
explicar as origens do patriarcado. A segunda se situa no interior de uma tradição
marxista e busca um compromisso com as críticas feministas. A terceira, funda
mentalmente dividida entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo
americanas de relação do objeto (object-relation theories), se inspira nessas
diferentes escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da
identidade de gênero do sujeito.
As teóricas do patriarcado têm dirigido sua atenção à subordinação das
mulheres e encontrado a explicação dessa subordinação na "necessidade" mas
culina de dominar as mulheres. Na engenhosa adaptação que Mary O'Brien fez
de Hegel, ela definiu a dominação masculina como o efeito do desejo dos homens
de transcender sua alienação dos meios de reprodução da espécie. O princípio
da continuidade geracional restaura a primazia da paternidade e obscurece o
trabalho real e a realidade social do esforço das mulheres no ato de dar à luz. A
fonte da libertação das mulheres reside numa "compreensão adequada do pro
cesso de reprodução", numa avaliação das contradições entre a natureza do
trabalho reprodutivo das mulheres e a mistificação ideológica (masculina) desteY
Para Sulamith Firestone, a reprodução também era uma "amarga armadilha"
para as mulheres. No entanto, na sua análise mais materialista, a libertação viria
das transformações na tecnologia da reprodução que poderiam, num futuro não
demasiadamente longínquo, eliminar a necessidade dos corpos femininos como
agentes da reprodução da espécie. 10
Se a reprodução era a chave do patriarcado para algumas, para outras a
resposta se encontrava na própria sexualidade. As fortes formulações de Cathe
rine MacKinnon são-lhe não apenas caracteristicamente próprias, mas também
representativas de uma certa abordagem: "A sexualidade está para o feminismo
assim como o trabalho está para o marxismo: é aquilo que mais nos pertence e
o que todavia nos é mais subtraído". "A objetificação sexual é o processo primário
de sujeição das mulheres. Ela liga o ato com a palavra, a construção com a
expressão, a percepção com a efetivação, o mito com a realidade. O homem
fode a mulher; sujeito verbo objeto".ll Continuando sua analogia com Marx,
MacKinnon propõe como método de análise feminista não o materialismo
dialético mas os grupos de consciência. Ao expressar a experiência partilhada
de objetificação, sustentava ela, as mulheres são levadas a compreender sua
identidade comum e são conduzidas à ação política. Na análise de MacKinnon,
ainda que as relações sexuais sej am definidas como sociais, não há nada -
salvo a desigualdade inerente à relação em si mesma - que possa explicar
porque o sistema de poder funciona assim. A fonte das relações desiguais entre
os sexos está, no fim das contas, nas relações desiguais entre os sexos. Apesar
de afirmar que a desigualdade, tendo suas origens na sexualidade, está corpori-
77
fiC;aPíI em.,"todqum s�stem.a. de relações sociais:', ela nãoexplica,çomo este
siste1,llq t\lnciona. 2� '. "
.
'
. i '
Farnília, l� é aí, que rep()usam, .em última instância, asanálisys da economista. '
Heidi fIartm<,lnl). Hartmal1n enfatiza a necessid\lde de considerar o patriFlIcad0 e
oc�pital;sm,ocomo�ois sistemas separados,m.<,lSi em,interação. Mas. à m�dida.
ew qUe çlá <lr.�enyolve:�ua argumentaç�o! a. caysalicl(,lde econôll1ica t'Qrna-se
pri.or�tá�ia.eQpatrü).(cado está sempre ,se desenvolvendo t} mudando em fU)1ç�q,
das relaçpes d�produção.15 ,'. . . " .. ,
•..'
.
'
.
' . . . ' .. . .
...
. Os prime�rosçlebates entre . as/osfeministas marxist(isgir a mm em torno,dos
meSmOs problemas: a rejeição do essencialisl,llo daquelas/es.que sust.entayam
que "as exigências da. reprodução biológica" determinam a divisão sexualdo
traqalho sob o capitalismo; a futi lidade de se inserir "modos de reprodução" nas
78"
" \
discussões sobre os modos de produção (a reprodução permanece uma categoria
de oposição e não tem um status equivalente ao do modo de produção); o reco
nhecimento de que os sistemas econômicos não determinam de maneira direta
as relações de gênero e que, de fato, a subordinação das mulheres é anterior ao
capitalismo e continua sob o socialismo; a busca, apesar de tudo, de uma expli
cação materialista que exclua as diferenças físicas naturais.16 Uma tentativa
importante de sair deste círculo de problemas veio de Joan Kelly, em seu ensaio
"The Doubled Vision ofFeminist Theory", onde ela sustentava que os sistemas
econômicos e os sistemas de gênero interagiam para produzir as experiências
sociais e históricas; que nenhum dos dois era causal, mas que os dois "operam
simultaneamente para reproduzir as estruturas sócio-econômicas e as estruturas
de dominação masculina de uma ordem social particular". A idéia de Kelly de
que os sistemas de gênero teriam uma existência independente constituiu uma
abertura conceitual decisiva, mas sua determinação em permanecer dentro de
um quadro marxista levou-a a enfatizar o papel causal dos fatores econômicos
até mesmo na determinação do sistema de gênero: "a relação entre os sexos
opera de acordo com (e através das ) estruturas sócio-econômicas e também de
acordo com as estruturas de sexo-gênero"P Kelly introduziu a idéia de uma
"realidade social sexualmente baseada" mas ela tendia a enfatizar o caráter so
cial mais do que sexual desta realidade e, freqüentemente, o "social", em sua
utilização, era concebido em termos de relações econômicas de produção.
A análise da sexualidade que foi mais longe, entre as feministas marxistas
americanas, encontra-se em Powers of Desire, um volume de ensaios publicado
em 1983.18 Influenciadas pela crescente atenção dada à sexualidade entre ativistas
políticos/as e pesquisadores/as, pela insistência do filósofo francês MichelFou
cault de que a sexualidade é produzida em contextos históricos, pela convicção
de que a "revolução sexual" contempcrânea exigia uma análise séria, as autoras
centraram suas interrogações na "política sexual". Assim fazendo, elas colocaram
a questão da causalidade e propuseram uma série de soluções; de fato, o mais
instigante neste volume é a falta de unanimidade analítica, seu sentido de tensão
analítica. Se as autoras individuais tendiam a sublinhar a causalidade dos
contextos sociais (que, com freqüência, quer dizer "econômicos"), elas, não
obstante, incluíam sugestões sobre a importância de se estudar a "estruturação
psíquica da identidade de gênero". Embora se afirme algumas vezes que a "ide
ologia de gênero" "reflete" as estruturas econômicas e sociais, há também um
reconhecimento crucial da necessidade de compreender "o vínculo" complexo
"entre a sociedade e uma estrutura psíquica persistente" .19 De um lado, as orga
nizadoras desta coletânea endossam o argumento de Jessica Benjamim de que a
política deve conceder atenção "aos componentes eróticos e fantasmáticos da
vida humana", mas, por outro lado, nenhum outro ensaio, salvo este de Benjamim,
aborda completa ou seriamente as questões teóricas que ela levanta.2o Há, em
vez disso, um pressuposto tácito que percorre o volume, segundo o qual o marxis-
79
mo pode ser ampliado para incluir discussões sobre ideologia, cultura e psicolo
gia, e que esta ampliação será efetuada através do mesmo tipo de exame concreto
dos dados efetuados na maioria dos artigos. A vantagem de uma tal abordagem
é que ela evita divergências agudas de posição; sua desvantagem é que ela deixa
intacta uma teoria já plenamente articulada, que remete as relações entre os
sexos às relações de produção.
Uma comparação entre as tentativas exploratórias e relativamente amplas
das/os feministas marxistas americanas/os e as de suas/seus homólogas/os
inglesas/es, mais estreitamente ligadas/os à política de uma tradição marxista
forte e viável, revela que as/os inglesas/es tiveram maior dificuldade em contestar
os fatores limitantes das explicações estritamente deterministas. Essa dificuldade
pode ser vista de maneira mais espetacular nos debates recentes, surgidos na
New Lefi Review, entre Michele Barret e seus/suas críticos/as, os/as quais a
acusavam de abandonar uma análise materialista da divisão sexual do trabalho
sob o capitalismo.21 Ela pode ser vista também no fato de que os/as pesquisadores/
as que tinham inicialmente empreendido uma tentativa feminista de reconciliação
entre a psicanálise e o marxismo, e que tinham insistido na possibilidade de
uma certa fusão entre os dois, escolheram hoje uma ou outra dessas posições
teóricas.22 A dificuldade tanto para as/os feministas inglesas/es quanto para as/
os americanas/os que trabalham dentro do quadro do marxismo é evidente nos
trabalhos que mencionei aqui. O problema que elas/eles enfrentam é o inverso
daquele colocado pela teoria do patriarcado, pois, no interior do marxismo, o
conceito de gênero foi, por muito tempo, tratado como um sub-produto de
estruturas econômicas cambiantes; o gênero não tinha aí um status analítico
independente e próprio.
Um exame da teoria psicanalítica exige uma distinção entre escolas, já que
se teve a tendência de classificar as diferentes abordagens segundo as origens
nacionais de seus fundadores ou da maioria daqueles/as que as aplicam. Há a
Escola Anglo-americana, que trabalha nos termos das teorias de relação de objeto
(object-relation theories). Nos Estados Unidos, Nancy Chodorow é o nome
mais prontamente associado com esta abordagem. Além disso, o trabalho de
Carol Gilligan teve um impacto muito vasto sobre a produção científica
americana,incluindo a história. O trabalho de Gilligan se inspira no de Chodorow,
embora ela esteja menos preocupada com a construção do sujeito do que com o
desenvolvimento moral e o comportamento. Em contraste com a escola anglo
americana, a escola francesa está baseada em leituras estruturalistas e pós
estruturalistas deFreud no contexto das teorias da linguagem (para as feministas
a figura central é Jacques Lacan).
Ambas as escolas estão preocupadas com os processos pelos quais a
identidade do sujeito é criada, ambas se centram nas primeiras etapas do
desenvolvimento da criança a fim de encontrar pistas sobre a formação da
identidade de gênero. As teóricas das relações de objeto enfatizam a influência
80
da experiência concreta (a criança vê, ouve, tem relações com aqueles que se
ocupam dela, em particular, obviamente, com seus pais), enquanto os/as pós
estruturalistas enfatizam o papel central da linguagem na comunicação, na
interpretação e na representação do gênero. (Para os/as pós-estruturalistas, "lin
guagem" não designa palavras, mas sistemas de significação - ordens simbólicas
- que precedem o domínio real da fala, da leitura e da escrita). Uma outra
diferença entre essas duas escolas de pensamento refere-se ao inconsciente, que
para Chodorow é, em última instância, suscetível de compreensão consciente,
enquanto que, para Lacan, não o é. Para os/as lacanianos/as, o inconsciente é
um fator decisivo na construção do sujeito; ademais, é o lugar da divisão sexual
e, por esta razão, um lugar de instabilidade constante para o sujeito "generificado"
(gendered).
Nos últimos anos, as/os historiadoras/es feministas foram atraídas/os por
essas teorias, seja porque elas servem para endossar dados específicos com base
em observações gerais, seja porque elas parecem oferecer uma formulação teórica
importante no que concerne ao gênero. Cada vez mais, os/as historiadores/as
que trabalham com o conceito de "cultura feminina" citam os trabalhos de
Chodorow e Gilligan tanto como prova quanto como explicação de suas
interpretações; aquelas/es que têm problemas com a teoria feminista se voltam
para Lacan. Ao final das contas, nenhuma destas teorias me parece inteiramente
utilizável pelos/as historiadores/as; um olhar mais atento sobre cada uma pode
ajudar a explicar por quê.
Minha reserva para com a teoria de relações de objeto concentra-se em seu
literalismo, no fato de basear a produção de identidade de gênero e a gênese da
transformação em estruturas de interação relativamente pequenas Tanto a divisão
de trabalho na família quanto a atribuição real de tarefas a cada um dos pais
desempenham um papel crucial na teoria de Chodorow. O resultado dos sistemas
ocidentais dominantes é uma divisão clara entre masculino e feminino: "O sentido
feminino do eu é fundamentalmente ligado ao mundo, o sentido masculino do
eu é fundamentalmente separado"Y Segundo Chodorow, se os pais (homens)
estivessem mais envolvidos no cuidado com os/as filhos/as e mais presentes nas
situações domésticas, as conseqüências do drama edipiano seriam provavelmente
diferen tes. 24
Esta interpretação limita o conceito de gênero à esfera da família e à expe
riência doméstica e, para o historiador, ela não deixa meios para ligar esse con
ceito (nem o indivíduo) a outros sistemas sociais, econômicos, políticos ou de
poder. Sem dúvida está implícito que os arranjos sociais que exigem que os pais
trabalhem e as mães executem a maioria das tarefas de criação das crianças
estruturam a organização da família. Mas não estão claras a origem nem as
razões pelas quais eles estão articulados em termos de uma divisão sexual do
trabalho. Tampouco se discute a questão da desigualdade, por oposição à da
assimetria. Como podemos explicar, no interior desta teoria, a persistente asso-
81
ciação entre masculinidade e poder, o fato de que se valoriza mais a virilidade
do que a feminilidade? Como podemos explicar a forma pela qual as crianças
parecem aprender essas associações e avaliações mesmo quando elas vivem
fora de lares nucleares, ou no interior de lares onde o marido e a mulher dividem
as tarefas familiares? Penso que não podemos fazer isso sem conceder uma
certa atenção aos sistemas de significado, quer dizer, aos modos pelos quais as
sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular as regras de
relações sociais ou para construir o significado da experiência. Sem significado,
não há experiência; sem processo de significação, não há significado.
A linguagem é o centro da teoria lacaniana; é a chave de acesso da criança
à ordem simbólica. Através da linguagem é construída a identidade generificada
(gendered). Segundo Lacan, o falo é o significante central da diferença sexual.
Mas o significado do falo deve ser lido de maneira metafórica. O drama edipiano,
para a criança, coloca em ação os termos da interação cultural, já que a ameaça
de castração representa o poder, as regras da lei (do Pai). A relação da criança
com a lei depende da diferença sexual, de sua identificação imaginativa (ou
fantasmática) com a masculinidade ou a feminilidade. Em outras palavras, a
imposição de regras de interação social é inerente e especificamente generificada,
pois a relação feminina com o falo é forçosamente diferente da relação masculina.
Mas a identificação de gênero, mesmo que pareça sempre coerente e fixa, é, de
fato, extremamente instável. Como sistemas de significado, as identidades
subjetivas são processos de diferenciação e de distinção, que exigem a supressão
de ambigüidades e de elementos de oposição, a fim de assegurar (criar a ilusão
de) uma coerência e (de) uma compreensão comum. A idéia de masculinidade
repousa na repressão necessária de aspectos femininos - do potencial do sujeito
para a bissexualidade - e introduz o conflito na oposição entre o masculino e o
feminino. Os desejos reprimidos estão presentes no inconsciente e constituem
uma ameaça permanente para a estabilidade da identificação de gênero, negando
sua unidade, subvertendo sua necessidade de segurança. Além disso, as idéias
conscientes sobre o masculino ou o feminino não são fixas, uma vez que elas
variam de acordo com as utilizações contextuais. Sempre existe um conflito,
pois, entre a necessidade que tem o sujeito de uma aparência de totalidade e a
imprecisão da terminologia, seu significado relativo, sua dependência da re
pressão.25 Este tipo de interpretação torna problemáticas as categorias de
"homem" e "mulher", ao sugerir que o masculino e o feminino não são caracte
rísticas inerentes, mas constructos subjetivos (ou ficcionais). Essa interpretação
implica também que o sujeito se acha em um processo constante de construção
e oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente,
ao destacar a linguagem como um objeto apropriado de análise. Enquanto tal eu
a considero instrutiva.
Entretanto, sinto-me incomodada pela fixação exclusiva em questões
relativas ao sujeito individual e pela tendência a reificar, como a dimensão cen-
82
traI do gênero, o antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres.
Além do mais, mesmo que a maneira pela qual "o sujeito" é construído permaneça
aberta, a teoria tende a universalisar as categorias e as relações entre masculino
e feminino. A conseqüência para os/as historiadores/as é uma leitura redutiva
dos dados do passado. Mesmo que essa teoria tome em consideração as relações
sociais, ao ligar a castração à proibição e à lei, ela não permite introduzir uma
noção de especificidade e de variabilidade histórica. O falo é o único significante,
o processo de construção do sujeito generificado é, em última instância, previsível
já que é sempre o mesmo. Se, como sugere a teórica do cinema Teresa de Lauretis,
temos necessidade de pensar a construção da subjetividade dentro dos contextos
sociais e históricos, não há nenhum meio de precisar estes contextos nos termos
que propõe Lacan. De fato, mesmo na tentativa de Lauretis, a realidade social
(quer dizer, as relações "materiais, econômicas e interpessoais que são, de fato,
sociais e, numa perspectiva mais ampla, históricas") parece se situar fora do
sujeito.26 O que está faltando é uma forma de conceber a "realidade social" em
termos de gênero.
O problema do antagonismo sexual nessa teoria tem dois aspectos. Em
primeiro lugar, ele projeta um certo caráter intemporal, mesmo quando está
bem historicizado, como no caso de Sally Alexander. Sua leitura de Lacan a
conduziu à conclusão de que "o antagonismo entre os sexos é um aspecto inevi
tável da aquisição da identidade sexual...Se o antagonismo está sempre latente,
é possível que a história não possa oferecer nenhuma solução final, mas apenas
a remoldagem e reorganização permanente da simbolização da diferença e da
divisão sexual do trabalho"Y É talvez meu incorrigível utopianismo que faz
com que eu duvide dessa formulação, ou então o fato de que eu não soube ainda
me desfazer da episteme do que Foucault chamava de Idade Clássica. Seja o
que for, a forrn:ulação de Alexander contribui para fixar a oposição binária entre
masculino-feminino como a única relação possível e como um aspecto perma
nente da condição humana. Ela perpetua, mais do que põe em questão, aquilo
que Denise Riley designa como o "terrível ar de constância da polaridade sexual".
Ela escreve: "o caráter historicamente construído da oposição (entre masculino
e feminino) produz como um de seus efeitos precisamente este ar de uma oposição
invariante e monótona entre homens/mulheres".28
É precisamente esta oposição, em todo o seu tédio e monotonia, que (para
voltar ao lado anglo-saxão) é posta em evidência no trabalho de Carol Gilligan.
Gilligan explica as trajetórias divergentes de desenvolvimento moral seguidas
por meninos e meninas, em termos de diferenças de "experiência" (de realidade
vivida). Não é surpreendente que os/as historiadores/as das mulheres tenham
recuperado suas idéias e as tenham utilizado para explicar as "vozes diferentes"
que os trabalhos desses/as historiadores/as lhes haviam possibilitado ouvir. Os
problemas com esses empréstimos são múltiplos e eles estão logicamente
conectados.2Y O primeiro problema é um deslizamento que freqüentemente ocorre
83
na atribuição da causalidade: a argumentação começa por uma afirmação do
tipo "a experiência das mulheres leva-as a fazer escolhas morais que dependem
de contextos e de relações" para se transformar em "as mulheres pensam e
escolhem este caminho porque elas são mulheres". Está implícita nessa linha de
raciocínio uma idéia a-histórica, senão essencialista, de mulher. Gilligan e outros!
as extrapolaram sua descrição, baseada numa pequena amostra de alunas
americanas do fim do século XX, a todas as mulheres. Essa extrapolação é
evidente, principalmente, mas não exclusivamente, nas discussões de alguns!
mas historiadores/as da "cultura feminina" que reúnem dados desde as santas
da Idade Média às militantes sindicalistas modernas e os reduzem para provar a
hipótese de Gilligan sobre a suposta preferência feminina universal por
estabelecer e cultivar relações pessoais.30 Esse uso das idéias de Gilligan se
coloca em oposição flagrante com as concepções mais complexas e historicizadas
da "cultura feminina" que podem ser encontradas no simpósio de Feminist Studies
de 1980.31 De fato, uma comparação desta série de artigos com as teorias de
Gilligan revela a que ponto sua noção é a-histórica, definindo a categoria homem!
mulher como uma oposição binária universal que se auto-reproduz - fixada
sempre da mesma maneira. Ao insistir sempre nas diferenças fixadas (no caso
de Gilligan, ao simplificar os dados através da utilização das mais heterogêneas
informações sobre o sexo e o raciocínio moral, para sublinhar a diferença sexual),
as/os feministas reforçam o tipo de pensamento que desejam combater. Ainda
que insistam na reavaliação da categoria do "feminino" (Gilligan sugere que as
escolhas morais das mulheres poderiam ser mais humanas do que as dos homens),
elas não examinam a oposição binária em si.
Temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da oposição
binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da
diferença sexual. Devemos nos tornar mais auto-conscientes da distinção entre
nosso vocabulário analítico e o material que queremos analisar. Devemos
encontrar formas (mesmo que imperfeitas) de submeter sem cessar nossas cate
gorias à crítica e nossas análises à auto-crítica. Se utilizamos a definição de
desconstrução de Jacques Derrida, essa crítica significa analisar , levando em
conta o contexto, a forma pela qual opera qualquer oposição binária, revertendo
e deslocando sua construção hierárquica, em vez de aceitá-la como real ou auto
evidente ou como fazendo parte da natureza das coisas.32 É evidente que, num
certo sentido, as/os feministas vêm fazendo isso por muitos anos. A história do
pensamento feminista é uma história da recusa da construção hierárquica da
relação entre masculino e feminino, em seus contextos específicos, e uma tentativa
para reverter ou deslocar suas operações. Os/as historiadores/as feministas estão
agora bem posicionados/as para teorizar suas práticas e para desenvolver o gênero
como uma categoria analítica.
84
11
85
complexos. Mas são os processos que devemos ter sempre em mente. Devemos
nos perguntar mais seguidamente como as coisas se passaram para descobrir
por que elas se passaram; segundo a formulação de MichelIe Rosaldo, devemos
buscar não uma causalidade geral e universal, mas uma explicação baseada no
significado:"Vejo agora que o lugar da mulher na vida social humana não é, de
qualquer forma direta, um produto das coisas que ela faz, mas do significado
que suas atividades adquirem através da interação social concreta". 34 Para buscar
o significado, precisamos lidar com o sujeito individual, bem como com a
organização social, e articular a natureza de suas interrelações, pois ambos são
cruciais para compreender como funciona o gênero, como ocorre a mudança.
Finalmente, é preciso substituir a noção de que o poder social é unificado,
coerente e centralizado por algo como o conceito de poder de MichelFoucault,
entendido como constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente
constituídas em "campos de força" sociais.35 No interior desses processos e
estruturas, há espaço para um conceito de agência humana, concebida como a
tentativa (pelo menos parcialmente racional) para construir uma identidade, uma
vida, um conjunto de relações, uma sociedade estabelecida dentro de certos
limites e dotada de uma linguagem - uma linguagem conceitual que estabeleça
fronteiras e contenha, ao mesmo tempo, a possibilidade da negação, da resistên
cia, da reinterpretação e permita o jogo da invenção metafórica e da imaginação.
Minha definição de gênero tem duas partes e diversas subconjuntos, que
estão interrelacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo
da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero
é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações
de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre
a mudanças nas representações do poder, mas a mudança não é unidirecional.
Como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas,o gênero implica quatro elementos interrelacionados: em primeiro
lugar, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações sim
bólicas (e com freqüência contraditórias) - Eva e Maria como símbolos da
mulher, por exemplo, na tradição cristã ocidental - mas também mitos de luz e
escuridão, purificação e poluição, inocência e corrupção. Para os/as historiadores/
as, a questão importante é: que representações simbólicas são invocadas, como,
e em quais contextos? Em segundo lugar, conceitos normativos que expressam
interpretações dos significados dos símbolos, que tentam limitar e conter suas
possibilidades metafóricas. Esses conceitos estão expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica
de uma oposição binária fixa, que afirma de maneira categórica e inequívoca o
significado do homem e da mulher, do masculino e do feminino. De fato, essas
afirmações normativas dependem da rejeição ou da repressão de possibilidades
alternativas e, algumas vezes, elas são abertamente contestadas ("quando e em
86
quais circunstâncias" é a questão que deveria preocupar os/as historiadores/as).
A posição que emerge como posição dominante é, contudo, declarada a única
possível. A história posterior é escrita como se essas posições normativas fossem
o produto do consenso social e não do conflito. Um exemplo desse tipo de
história é dado por aqueles que tratam a ideologia vitoriana da dpmesticidade
como se ela tivesse sido criada em bloco, e tivesse sido contestada apenas depois
disso, invés de ser o objeto constante de grandes diferenças de opinião. Um
outro exemplo vem dos grupos religiosos fundamentalistas atuais, que querem
ligar necessariamente suas práticas à restauração do papel "tradicional" das
mulheres, supostamente mais autêntico, embora, na realidade, haja poucos
antecedentes históricos que testemunhem a existência inconteste de um tal papel.
O desafio da nova pesquisa histórica consiste em fazer explodir essa noção
de fixidez, em descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva à aparência
de uma permanência intemporal na representação binária do gênero. Esse tipo
de análise deve incluir uma concepção de política bem como uma referência às
instituições e à organização social - este é o terceiro aspecto das relações de
gênero.
Certos/as pesquisadores/as, principalmente os/as antropólogos/as, têm
restringido o uso do gênero ao sistema de parentesco (centrandq�.se no lar:ê .��
família como a base da organização social). Temos necessidade de uma .visão
mais ampla que inclua não somente o parentesco mas também (especialmente
para as complexas sociedades modernas) o mercado de trabalho ( um mercado
de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção de
gênero), a educação ( as instituições de educação somente masculinas, não mistas,
ou de co-educação fazem parte do mesmo processo), o sistema político (o sufrágio
universal masculino faz parte do processo de construção do gênero). Não tem
muito sentido reconduzir à força estas instituições à sua utilidade funcional para
o sistema de parentesco, ou sustentar que as relações contemporâneas entre os
homens e as mulheres são artefatos de sistemas anteriores de parentesco baseados
na troca de mulheres.36 O gênero é construído através do parentesco, mas não
exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização
política, que, pelo menos em nossa sociedade, operam atualmente de maneira
amplamente independente do parentesco.
O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva. Concordo com a idéia
da antropóloga Gayle Rubin de que a psicanálise fornece uma teoria importante
sobre a reprodução do gênero, uma descrição da "transformação da sexualidade
biológica dos indivíduos enquanto passam por um processo de enculturação".37
Mas a pretensão universal da psicanálise constitui, para mim, um problema.
Embora a teoria lacaniana possa ser útil para a reflexão sobre a construção da
identidade generificada, os/as historiadores/as precisam trabalhar de uma forma
mais histórica. Se a identidade de gênero está baseada única e universalmente
no medo da castração, nega-se a relevância da investigação histórica. Além
87
disso os homens e as mulheres reais não cumprem sempre, nem cumprem
literalmente, os termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias
analíticas. Os/as historiadores/as precisam, em vez disso, examinar as formas
pelas quais as identidades generificadas são substantivamente construídas e
relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e
representações sociais historicamente específicas. Não é de se estranhar que as
melhores tentativas neste domínio tenham sido, até o presente, as biografias: a
interpretação de Lou Andreas-Salomé por Biddy Martin, o retrato de Catharine
Beecher por Kathryn Sklar, a vida de Jessie Daniel Ames por Jacqueline Hall e
a reflexão de Mary Hill sobre Charlotte Perkins Gilman.38 Mas os tratamentos
coletivos são igualmente possíveis, como o mostram Mrinalini Sinha e Lou
Ratté, em seus respectivos estudos, sobre a construção de uma identidade de
gênero entre os administradores coloniais britânicos na Índia, e para os hindus
educados na cultura britânica que se tornaram dirigentes nacionalistas anti
imperialistas.39
A primeira parte da minha definição de gênero, então, é composta desses
quatro elementos e nenhum dentre eles pode operar sem os outros. No entanto
eles não operam simultaneamente, como se um fosse um simples reflexo do
outro. De fato, é uma questão para a pesquisa histórica saber quais são as relações
entre esses quatro aspectos. O esboço que eu propus do processo de construção
das relações de gênero poderia ser utilizado para examinar a classe, a raça, a
etnicidade ou qualquer processo social. Meu propósito foi clarificar e especificar
como se deve pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais,
porque essa reflexão nem sempre tem sido feita de maneira sistemática e precisa.
A teorização do gênero, entretanto, é desenvolvida em minha segunda proposição:
o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Seria
melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do
qual, o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas ele parece ter
sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder
no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Como tal, esta parte da
definição poderia aparentemente pertencer à seção normativa de meu argumento,
mas isso não ocorre, pois os conceitos de poder, embora se baseiem no gênero,
nem sempre se referem literalmente ao gênero em si mesmo. O sociólogo francês
Pierre Bourdieu tem escrito sobre como a "di-visão do mundo", baseada em
referências às "diferenças biológicas, e, notadamente, àquelas que se referem à
divisão do trabalho de procriação e de reprodução", operam como "a mais
fundada das ilusões coletivas". Estabelecidos como um conjunto objetivo de
referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
concreta e simbólica de toda a vida social. 40 Na medida em que essas referências
estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos
recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e
na construção do próprio poder. O antropólogo francês Maurice Godelier assim
o formulou: "( . . .) não é a sexualidade que assombra a sociedade, mas antes a
sociedade que assombra a sexualidade do corpo. As diferenças entre os corpos,
relacionadas ao sexo, são constantemente solicitadas a testemunhar as relações
sociais e as realidades que não têm nada a ver com a sexualidade. Não somente
testemunhar, mas testemunhar para, ou seja, legitimar".41
A função de legitimação do gênero age de várias maneiras. Bourdieu, por
exemplo, mostrou como, em certas culturas, a exploração agrícola era organizada
segundo conceitos de tempo e de estação que se baseavam em definições
específicas da oposição entre masculino e feminino. Gayatri Spivak fez uma
análise perspicaz dos usos do gênero e do colonialismo em certos textos de
escritoras britânicas e americanas.42 Natalie Davis mostrou como os conceitos
de masculino e feminino estavam relacionados à aceitação e ao questionamento
das regras da ordem social no primeiro período da França moderna.43 A
historiadora Caroline Bynum deu nova luz à espiritualidade medieval pela
importância atribuída às relações entre os conceitos do masculino e do feminino
e o comportamento religioso. Seu trabalho nos permite melhor compreender as
formas pelas quais esses conceitos orientaram a política das instituições
monásticas e as crenças individuais.44 Os/as historiadores/as da arte abriram um
novo território ao extrair implicações sociais das representações literais dos
homens e das mulheres.45 Essas interpretações estão baseadas na idéia de que as
linguagens conceituais empregam a diferenciação para estabelecer o significado
e que a diferença sexual é uma forma primária de dar significado à diferenciação.46
O gênero, então, fornece um meio de decodificar o significado e de compreender
as complexas conexões entre várias formas de interação humana. Quando os/as
historiadores/as buscam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero
legitima e constrói as relações sociais, eles/elas começam a compreender a
natureza recíproca do gênero e da sociedade e as formas particulares e
contextualmente específicas pelas quais a política constrói o gênero e o gênero
constrói a política.
A política é apenas uma das áreas na qual o gênero pode ser utilizado para
análise histórica. Escolhi os exemplos seguintes, ligados à política e ao poder,
no sentido mais tradicional, quer dizer, naquilo que enfatizam o governo e o
Estado-nação, por duas razões. Em primeiro lugar, porque se trata de um território
praticamente inexplorado, já que o gênero tem sido percebido como uma cate
goria antitética às tarefas sérias da verdadeira política. Em segundo lugar, porque
a história política - ainda o modo dominante de pesquisa histórica - tem sido
o bastião de resistência à inclusão de materiais ou questões sobre as mulheres e
o gênero.
O gênero tem sido utilizado literal ou analogicamente na teoria política
para justificar ou criticar reinado de monarcas e para expressar as relações entre
governantes e governados. Obviamente era de se esperar que os debates dos
contemporâneos sobre os reinados de Elizabeth I da Inglaterra e de Catarina de
89
Medici na França tivessem tratado da questão da capacidade das mulheres para
a direção política; mas em um período onde parentesco e realeza estavam intrin
secamente ligados, as discussões sobre os reis homens também estavam
preocupadas com a masculinidade e a feminilidade.47 As analogias com a relação
marital dão uma estrutura para os argumentos de Jean B odin, Robert Filmer e
John Locke. O ataque de Edmund Burke contra a Revolução Francesa se desen
volve ao redor de um contraste entre as harpias feias e assassinas dos sans
culottes (as megeras do inferno, sob a forma desnaturada da mais vil das mulhe
res) e a doce feminilidade de Maria Antonieta, que escapa à multidão "para
procurar refúgio aos pés de um rei e de um marido" e cuja beleza tinhajá inspirado
o orgulho nacional. (É em referência ao papel apropriado ao feminino dentro da
ordem política que Burke escreveu: "para que possamos amar nossa pátria, nossa
pátria deve ser amável").48 Mas a analogia não concerne sempre ao casamento
nem mesmo à heterossexualidade. Na teoria política da Idade Média islâmica,
os símbolos do poder político fizeram mais freqüentemente alusão às relações
sexuais entre um homem e um rapaz, sugerindo não somente a existência aceitável
de formas de sexualidade comparáveis às que descreve Foucault em seu último
livro a respeito da Grécia clássica, mas também a irrelevância das mulheres
para qualquer noção de política e de vida pública.49
Para que este último comentário não seja interpretado como uma afirmação
de que a teoria política reflete simplesmente a organização social, parece im
portante observar que as mudanças nas relações de gênero podem se produzir a
partir de considerações sobre as necessidades de Estado. Um exemplo surpre
endente é fornecido pela argumentação de Louis de B onald, em 1816, sobre as
razões pelas quais a legislação da Revolução francesa sobre o divórcio tinha
que ser rejeitada:
"Do mesmo modo que a democracia política permite ao povo, parte fraca da
sociedade política, se voltar contra o poder estabelecido, também o divórcio,
verdadeira democracia doméstica, permite à esposa, parte fraca, rebelar-se
contra a autoridade marital... A fim de manter o Estado fora das mãos do
povo, é necessário manter afamíliafora das mãos das esposas e dos filhos. "50
B onald começa com uma analogia para estabelecer, em seguida, uma cor
respondência direta entre o divórcio e a democracia. Retomando argumentos
bem mais antigos, à propósito da boa ordem familiar como fundamento da boa
ordem de Estado, a legislação que implementou esta visão redefiniu os limites
da relação marital. Da mesma maneira, em nossa época, as ideologias políticas
conservadoras desejariam fazer passar toda uma série de leis sobre a organização
e o comportamento da família, que mudariam as práticas atuais. A conexão
entre os regimes autoritários e o controle das mulheres tem sido observada, mas
não tem sido estudada a fundo. No momento crítico para a hegemonia jacobina,
durante a Revolução francesa, no momento em que Stalin se apoderou do controle
90
da autoridade, na implementação da política nazista na Alemanha ou no triunfo
do Ayatolá Komehini no Irã, em todas essas circunstâncias, os governantes
emergentes legitimaram a dominação, a força, a autoridade central e o poder
dominante como masculinos (os inimigos, os forasteiros, os subversivos e a
fraqueza como femininos) e literalmente traduziram esse código em leis que
puseram as mulheres no seu lugar (interditando-lhes a participação na vida
política, declarando o aborto ilegal, impedindo o trabalho assalariado das mães,
impondo códigos de trajar para as mulheres).51 Essas ações e o momentode sua
ocorrência fazem pouco sentido em si mesmas; na maior parte dos casos, o
Estado não tinha nada de imediato ou de material a ganhar com o controle das
mulheres. Essas ações não fazem sentido a menos que sejam integradas numa
análise da construção e consolidação do poder. Uma afirmação de controle ou
de força corporificou-se numa política sobre as mulheres. Nesses exemplos, a
diferença sexual foi concebida em termos da dominação e do controle das
mulheres. Esses exemplos podem nos dar alguma idéia sobre os tipos de relações
de poder que se constroem na história moderna, mas esse tipo particular de
relação não constitui um tema político universal. Por exemplo, sob diferentes
aspectos, os regimes democráticos do século XX também têm construído suas
ideologias políticas a partir de conceitos generificados, traduzindo-os em políticas
concretas: o estado de bem-estar, por exemplo, demonstrou seu paternalismo
protetor através de leis dirigidas às mulheres e crianças.52 Historicamente, alguns
movimentos socialistas ou anarquistas recusaram inteiramente as metáforas de
dominação, apresentando de maneira imaginativa suas críticas de regimes ou de
organizações sociais particulares, em termos de transformações de identidades
de gênero. Os socialistas utópicos na França e na Inglaterra, nos anos 1830 e
1840, conceberam seus sonhos de um futuro harmonioso em termos das naturezas
complementares dos indivíduos, ilustradas pela união do homem e da mulher, o
"indivíduo social" .53 Os anarquistas europeus eram conhecidos por sua recusa
das convenções do casamento burguês mas também por suas visões de um mundo
no qual a diferença sexual não implicava hierarquia.
Trata-se de exemplos de conexões explícitas entre gênero e poder, mas eles
não são mais que uma parte da minha definição de gênero como uma forma
primária de dar significado às relações de poder. Com freqüência, a atenção
dada ao gênero não é explícita, mas constitui, não obstante, uma parte crucial da
organização da igualdade e da desigualdade. As estruturas hierárquicas dependem
de compreensões generalizadas das assim chamadas relações naturais entre
homem e mulher. No século XIX, o conceito de classe dependia do gênero para
sua articulação. Quando, por exemplo, na França, os reformadores burgueses
descreviam os trabalhadores em termos codi ficados como femininos
(subordinados, fracos, sexualmente explorados, como as prostitutas), os líderes
trabalhadores e socialistas respondiam insistindo na posição masculina da classe
trabalhadora (produtores, fortes, protetores de suas mulheres e crianças). Os
91
tennos desse discurso não se referiam explicitamente ao gênero, mas eram
reforçados por referências a ele. A "codificação" generificada de certos tennos
estabelecia e "naturalizava" seus significados. Nesse processo, definições nor
mativas de gênero, historicamente específicas (e tomadas como dadas) eram
reproduzidas e incorporadas na cultura da classe trabalhadora francesa. 54
O tema da guerra, da diplomacia e da alta política surge com freqüência
quando os/as historiadores/as da história política tradicional põem em questão a
utilidade do gênero para seu trabalho. Mas, também aqui, devemos olhar para
além dos atores e do valor literal de suas palavras. As relações de poder entre
nações e a posição dos sujeitos coloniais têm sido compreendidas (e então
legitimadas) em termos das relações entre homem e mulher. A legitimação da
guerra - sacrificar vidas de jovens para proteger o Estado - tomou fonnas
diversificadas, desde o apelo explícito à virilidade (a necessidade de defender
mulheres e crianças que de outro modo seriam vulneráveis), até à crença no
dever que teriam os filhos de servir a seus dirigentes ou ao rei (seu pai), e ainda
as associações entre a masculinidade e o poderio naciona1.55 A alta política é,
ela própria, um conceito generificado, pois estabelece sua importância crucial e
seu poder público, suas razões de ser e a realidade de existência de sua autoridade
superior, precisamente às custas da exclusão das mulheres do seu funcionamento.
O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem
sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao signifi
cado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece. Para proteger o
poder político, a referência deve parecer certa e fixa, fora de toda construção
humana, parte da ordem natural ou divina. Desta maneira, a oposição binária e
o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio significado
de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema
inteiro.
Se as significações de gênero e de poder se constroem reciprocamente, como
as coisas mudam? De um ponto de vista geral, a resposta é que a mudança pode
ser iniciada em muitos lugares. As revoltas políticas de massa que lançam velhas
ordens no caos e fazem surgir novas podem revisar os termos (e por isso a
organização) do gênero na sua busca de novas fonnas de legitimação. Mas elas
podem não o fazer; noções antigas de gênero têm também servido para validar
novos regimes. 56 Crises demográficas, causadas pela fome, pestes ou guerras,
podem ter colocado em questão visões nonnativas de casamento heterossexual
(como foi o caso em certos meios e certos países no correr dos anos 1 920); mas
elas igualmente provocaram políticas pró-natalistas que insistiam na importância
exclusiva d as funções maternais e reprodutoras das mulheres. 57 Padrões
cambiantes de emprego podem levar a novas estratégias matrimoniais e a dife
rentes possibilidades de construção de subjetividades, mas eles também podem
ser vividos como novas arenas de atividade para filhas e esposas obedientes.58
A emergência de novos tipos de símbolos culturais pode tornar possível a re-
92
interpretação ou, mesmo, a reescrita da narrativa edipiana, mas ela pode também
servir para reatualizar esse terrível drama em termos ainda mais eloqüentes.
São os processos políticos que vão determinar qual resultado prevalecerá -
político no sentido de que atores diferentes e significados diferentes lutam entre
si para assegurar o controle. A natureza desse processo, dos atores e de suas
ações, só pode ser determinada de forma específica, no contexto do tempo e do
espaço. Nós só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos
que "homem" e "mulher" são, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordan
tes. Vazias, porque não têm nenhum significado último, transcendente. Trans
bordantes, porque mesmo quanto parecem estar fixadas, ainda contêm dentro
delás definições alternativas, negadas ou suprimidas.
Num certo sentido, a história política tem sido jogada no terreno do gênero.
Trata-se de um terreno que parece fixo, mas cujo significado é contestado e está
em fluxo. Se tratamos a oposição entre homem e mulher como problemática e
não como conhecida, como algo que é contextualmente definido, repetidamente
construído, então devemos constantemente perguntar não apenas o que está em
j ogo em proclamações ou debates que invocam o gênero para explicar ou
justificar suas posições, mas também como compreensões implícitas de gênero
estão sendo invocadas ou reinscritas. Qual é a relação entre as leis sobre as
mulheres e o poder de Estado? Por que (e desde quando) as mulheres são invi
síveis como sujeitos históricos, ainda que saibamos que elas participaram de
grandes e pequenos eventos da história humana? O gênero legitimou a emergência
de carreiras profissionais?59 Para citar o título de um artigo recente da feminista
francesa Luce Irigaray, o suj eito da ciência é sexuado?60 Qual é a relação entre
a política estatal e a descoberta do crime de homosexualidade?61 Como as insti
tuições sociais incorporaram o gênero nos seus pressupostos e nas suas organi
zações? Houve, em algum momento, conceitos de gênero verdadeiramente i
gualitários sobre os quais fossem projetados ou mesmo fundados sistemas
políticos?
A exploração dessas questões fará emergir uma história que oferecerá no
vas perspectivas sobre velhas questões (como, por exemplo, é imposto o poder
político, qual é o impacto da guerra sobre a sociedade), redefinirá velhas questões
em novos termos (introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a
sexualidade no estudo da economia e da guerra), tornará as mulheres visíveis
como participantes ativas e criará uma distância analítica entre a linguagem
aparentemente fixa do passado e nossa própria terminologia. Além disso, esta
nova história abrirá possibilidades para a reflexão sobre atuais estratégias
políticas feministas e o futuro (utópico), pois ela sugere que o gênero deve ser
redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e
social que inclua não somente o sexo, mas também a classe e a raça.
93
Notas
3. Raymond Williams, Keywords (Nova York: Oxford University Press, 1 983), p.285.
4. Natalie Zemon Davis, "Women's History in Transition: The European Case", Femi
nist Studies ( 1 975-76) 3 : 90.
5 . Ann D. Gordon, Mari Jo Buhle e Nancy Shrom Dye, "The problem of Women 's
History", in Berenice Carrol , ed., Liberating Women s History (Urbana: University of
Illinois Press), p. 89.
6. O melhor e mais sutil exemplo é o de Joan Kelly, "The Doubled Vision of Feminist
Theory", em seu Women, History and TheOly (Chicago: University of Chicago Press,
1 984), pp.5 1 -64, especialmente p.6 1 .
7 . Para um argumento contra o uso de "gênero" para enfatizar o aspecto social da diferença
sexual, veja Moira Gates, "A Critique of the SexJGender Distinction", in J. Allen e P.
Patton,eds., Beyond Marxism? (Leichardt, N.S.W.: Intervention Publications, 1 985)
pp. 1 43 -60. Concordo com seu argumento de que a distinção sexo/gênero atribui uma
determinação autônoma ou transparente ao corpo, ignorando o fato de que aqui l o que
sabemos sobre o corpo constitui conhecimento culturalmente produzido.
8.Para uma diferente caracteri zação da análise feminista, veja Linda J. Nicholson, Gen
der and history: The limits of Social Theory in the Age of the Family (Nova York:
Co1umbia University Press, 1 986).
9. Mary O'Brien, The Politics of Reproduction (Londres: Routledge and Kegan Paul,
1 9 8 1 ), pp.8. 1 5 , 46.
1 0. Shul amith Firestone, The Dialectic of Sex ( Nova York: Bantam Books, 1 970). A
frase "amarga amardilha" é de O'Brien, Politics of Reproduction, p. 8 .
1 3 . Para uma interessante discussão dos pontos fortes e dos limites do termo "patriarca
do",veja o debate entre as historiadoras Sheila Rowbotham, Sally A1exander e Barbara
Taylor in Raphael Samuel, ed., People s History and Socialist Theory (Londres:
Rout1edge and Keagan Paul, 1 9 8 1 ), pp. 363-73.
14. Friedrich Engels, The Origins ofthe Family, Private Property, and the State ( 1 884;
reimp., Nova York: International Publishers, 1 972).
1 5. Heidi Hartmann, "Capitalism, Patriarchy and 10b Segregation by Sex", Sings ( 1 976)
I : 1 68. "The Unhappy Marriage of marxismo and Feminism: Towards a more Pro
gressive Union", Capital and Class ( 1 979) 8 : 1 -3 3 ; "The Family as the Locus of
Gender, Class, and Political Struggle: The Example of Housework", Sings ( 1 98 1 )
6 : 3 66-94.
94
Paul, 1978); Rosalind Coward, Patriarchal Precedents (Londres: Routledge and
Kegan Paul, 1983); Hilda Scott, Does Socialism Liberate Women? Experiencesfrom
Eastern Europe (Boston: Beacon Press , 1974); Jane Humphries, "Working Class
Family, Women ' s Liberation and Class Struggle: The Case of Nineteenth-Century
British History," Review of Radical Political Economics ( 1977) 9 : 25-4 1 ; Jane
Humphries , "Class Struggle and the Persistence of the Working Class Family", Cam
bridge Journal of Economics ( 1971) 1 :24 1-58; e vej a o debate sobre o trabalho de
Humphries em Rewiew of Radical Political Economics ( 1980) 12:76-94.
20. "Introduction ", Powers of Desire, p. 12; e Jessica Benjamin, "Master and Slave: The
Fantasy of Erotic Domination", Powers of Desire, p. 297.
21. Johanna Brenner e Maria Ramas, "Rethinking Women 's Oppression", New Left Re
view ( 1984) 144:33-7 1; Michele Barrett, "Rethinking Women's Oppression: A Re
ply to Brenner and Ramas", New left Review ( 1984) 146: 123-28; Angela Weir e
Elizabeth Wilson, 'lhe British Women 's Movement", New Left Review ( 1984)
148:74- 103 ; Michele B arrett, "A Reponse to Weir and Wilson", New Left Review
( 1985) 150: 143-47; Jane Lewis, "The Debateon Sex and Class", New Left Review
( 1985) 149: 108-20. See also Hugh Armstrong e Pat Armstrong, "Beyond Sexless
Class and Classless Sex: Towards Feminist Marxism", Studies in Political Economy
( 1983) 10:7-44; Hugh Armstrong e Pat Armstrong, "Comments: More on Marxist
Feminism", Studies in Political Economy ( 1984) 1 5 : 179-84; e Jane Jenson, "Gender
and Reproduction: Or, Babies and the State" , trabalho inédito, junho 1985, pp. I -7.
22. Para formulações teóricas iniciais, veja Papers on Patriarchy: Conference, London
76 (Londres: sem editora, 1976). Sou grata a Jane Caplan por me contar sobre a
experiência dessa publicação e por sua disposição a me emprestar seu exemplar e
por partilhar suas idéias sobre isso comigo. Para a posição psicanalítica, veja Sally
Alexander, "Women, Class and Sexual Difference", History Workshop ( 1984) 17: 125-
35. Em seminários na Universidade de Princeton, no começo de 1986, Juliet Mitchell
pareceu retornar a uma ênfase na prioridade das análises materialistas do gênero.
Para uma tentativa de ir além do impasse teórico do feminismo marxista, veja Cow
ard, Patriarchal Precedents. Veja também o brilhante esforço americano nessa direção
feito pela antropóloga Gayle Rubin, "The Traffic in Women: Notes on the Political
Economy of Sex", in Rayna R. Reiter, ed., Towards an Anthropology of Women
(Nova York: Monthly Review Press, 1975), pp. 167-68.
23. Nancy Chodorow, The Reproduction ofMothering: Psychoanalysis and the Sociology
of Gender (Berkeley : University 01' California Press, 1978), p. 169.
24. "Minha descrição sugere que essas questões relacionados ao gênero podem ser
influenciadas durante o período do complexo de Édipo, mas elas não são seu único
foco ou efeito. A negociação dessas questões ocorre no contexto de processos mais
amplos de relação com o objeto e com o ego. Esses processos mais amplos têm igual
influência sobre a formação da estrutura psíquica e sobre a vida psíquica e os modos
relacionais de homens e mulheres. Eles explicam os diferentes modos de identificação
95
e orientação em relação aos objetos heterossexuais, para as questões edipianas mais
assimétricas que a psicanálise descreve. Esses efeitos tal como os efeitos edipianos
mais tradicionais, surgem da organização assimétrica da maternidade/paternidade,
com o papel da mãe como a figura primária e o distanciamento tipicamente maior do
pai e seu investimento na socialização, especialmente nas áreas que dizem respeito à
tipificação de gênero". Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering, p. 1 66.
Denise Riley, War in the Nursery (Londres: Virago, 1984). É importante observar
que existem diferenças de interpretação e de abordagem entre Chodorow e os/as
téoricos/as britânicos/as da relação do objeto que seguem o trabalho de D. W. Winicott
e de Melanie Klein. A abordagem de Chodorow pode ser caracterizada, de uma
forma mais apropriada, como uma teoria mais sociológica ou sociologizada, mas é a
lente dominante através da qual a teoria da relação do objeto tem sido vista pelas
feministas americanas. Sobre a história da teoria britância da relação do objeto na
formulação de políticas sociais, veja Denise Riley, War in the Nursery (Londres:
Vi rago, 1984).
25. Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, eds., Jacques Lacan and the Ecole Freudienne
(Nova York: Norton, 1983); Alexander, "Women, Class and Sexual Difference".
26. Teresa de Laurentis, Alice Doesn 't: Feminism, Semiotics, Cinema (Bloomington:
Indiana University Press, 1984), p. 159.
27. Alexander, "Women, Class and Sexual Difference", p. 135
28. E.M. Denise Riley, "Summary of Preamble to Interwar Feminist History Work",
trabalho inédito, apresentado no Pembroke Center Seminar, maio 1985, p. l l . O
argumento é mais plenamente desenvolvido no brilhante livro de Riley, "Am I That
Name?: Feminism and the Category of "Women " in History (Londres: Macmillan,
1988).
29. Carol Gilligan, In a Different Voice: Psychological Theory and Women's Develop
ment (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982).
30. Críticas úteis do livro de Gilligan podem ser encontradas em: J.Auerbach et aI.,
"Commentary on Gilligan's In a different Voice", Feminist Studiews ( 1985) 1 1 : 149-
62, e "Women and Morality", um número especial de Social Research ( 1983) 50.
Meus comentários sobre a tendência dos/as historiadores/as a citarem Gilligan devem
se à minha leitura de manuscritos inéditos e de propostas de pesquisa. Por isso, não
me parece justo citá-los aqui. Venho registrando essas referências há mais de cinco
anos, e elas são muitas e continuam crescendo.
3 1. Feminist Studies ( 1980) 6:26-64.
32. Para um discussão sucinta e acessível de Derrida, vej a Jonathan Culler, On
Deconstruction: Theory and Criticism after structuralism (Ithaca, N.Y. : Cornell
University Press, 1982),especialmente pp. 156-79. Veja também Jacques Derrida,
Of Grammatology, traduzido por Gayatri Chakravotry Spivak (Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1974); Jacques Derrida, Spurs ( Chicago; University of
Chicago Press, 1979); e a transcrição do Seminário do Pembroke, 1983 in Subjectsl
objects (outono 1984).
33. Cliffórd Geertz, "Blurred Gemes", American Scholar ( 1980) 49: 165-79.
34. Michelle Zimbalist Rosaldo, "The Uses and Abuses of Anthropology: Reflections
on Feminism and Cross-Cultural Understanding", Signs( l 980) 5:400.
96
3 5 . Michel Foucault, The History ofSexuality, vol . l , /ntroduction (Nova York: Vintage,
1 9 80); Michel Foucault, Power/Knowledge:Selected /nterviews and Other Writtings,
1972-1977 (Nova York: Pantheon, 1980).
36. Para esse argumento, veja Rubin, "The Traffic in Women", P. 199.
37. /bid., p. 189.
38. B iddy Martin, "Feminism, Criticism and Foucault", New German Critique ( 1 982)
27:3-30; Kathryn Kish Sklar, Catharine Beecher: A Study in American Domesticity
(New Haven : Yale University Press, 1 973); Mary A. Hill, Charlotte Perkins
Gilman: The Making of a Radical Feminist, /860-1896 (Philadelphia: Temple Uni
versity Press, 1 980); Jacqueline Dowd Hall, Revo/t Against Chivalry: Jesse Daniel
Ames and the Women 's Campaign Against Lynching (Nova York: Columbia Uni ver
sity Press, 1974.).
39. Lou Ratté, "Gender Ambivalence in the Indian Nationalist Movement", trabalho
inédito, Pembroke Center Seminar, primavera 1983 ; e Mrinalina Sinha, "Manli
ness: A Victorian Ideal and the British Imperial Elite in India", trabalho inédito,
Department of History, State University of Nova York, S�ony Brook, 1984, e Sinha,
"The Age of Consent Act: The Ideal of Masculinity and Colonial Ideology in Late
1 9th Century Bengal", Proceedings, Eight Intemational Symposium on Asian stud
ies, !986, pp. 1 l 99 - 1 2 14.
40. Pierre Bourdieu, Le Sens Pratique (Paris: Les Editions de Minuit, 1980), pp.246-47,
333-46 1 , especialmente p. 336.
4 1 . Maurice Godelier, "The Origins of Male Domination", New Left Review ( 1 98 1 )
1 27 : 1 7.
42. Gayatri Chakravorty Spivack, "Three Women's Texts and a Critique of Imperial
ism", Criticai /nquiry ( 1 985) 1 2:243-46. Veja também Kate Millett, Sexual Politics
(Nova York: Avon, 1969). Um exame de como as referências femininas são tratadas
em textos importantes da filosofia ocidental pode ser encontrado em Luce Irigaray.
Speculum ofthe Other Woman, traduzido por Gillian C. Gill (Ithaca, N.Y. : Comell
University Press, 1985).
43. Natalie Zemon Davis, "Women on Top", em seu Society and Culture in Early Mo
dem France (Stanford: Stanford University Press, 1975), pp. 1 24-5 1 .
44. Caroline Walker B ynum, Jesus as Mother: Studies in the Spirituality ofthe High Middle
Ages (Berkeley: University of Califomia Press, 1982); Caroline Walker Bynum. "Fast,
Feast, and Flesh: The Religious Significance of Food to Medieval Women" Represen
tations ( 1 985) l I : 1 -25; Caroline Walker Bynum, "Introduction", Religion and Gen
der: Essays on theComplexity of SYlllbols (Boston: Beacon Press, 1987).
45. Veja, por exemplo, T. J. Clark, The Painting of Modem Life (Nova York: Knopf,
1985).
46. A diferença entre as/as teóricos/as estruturalistas e os/as pós-estruturalistas, em relação
a essa questão, está no grau de abertura ou fechamento das categorias de diferença.
Na medida em que os/as pós-estruturalistas não fixam um significado universal para
as categorias ou para a relação entre elas, sua abordagem parece levar com mais
facilidade ao tipo de análise histórica que estou defendendo.
47. Rachei Weil, "The Crown Has Fallen to the Distaff:gender and Politics in the Age 01'
Catherine de Medici", Criticai Mall'ix ,(Priceton Working Papers in Women's Stud-
97
ies) ( 1985), 1 . Veja também Louis Montrose, "Shaping Fantasies: Figurations of
Gender and Power in Elizabethan Culture", Represetations ( 1993) I :6 1-94; e Lynn
Hunt, "Hercules and the Radical Image in the French Revolution", Representations
( 1983) 1 :95- 1 17.
48. Edmund 8urke, Reflections on the French revolution ( 1 892; reimp., Nova York,
1909), pp. 208-9, 2 14. Veja Jean 80din, Six Books of the Commonwealth ( 1606;
reprint ed., Nova York: 8arnes and Noble, 1967); Robert Filmer, Patriarchia and
Other Political Works (Oxford: 8 . 8lackwell, 1949); e John Locke, Two Treatises of
Government ( 1690; reimp., Cambridge University Press, 1970). Veja também Eliza
beth Fox-Genovese, "Property and Patriarchy in Classical 80urgeois Polítical Theory,
Radical History Review( 1 977) 4:36-59; e Mary Lyndon Shanley, "Marriage Con
tract and Social Contract in Seventeenth Century English Political Thought", West
em Political Quaterly ( 1979) 3:79-9 1.
49. Sou grata a 8ernard Lewis pela referência ao Islã. Michel Foucault, Histoire de la
Sexualité, Vol. 2, L 'usage des Plaisirs (Paris: Gallimard, 1984). Sobre as mulheres
na Atenas clássica, veja Marilyn Arthur, "'Liberated Woman' : The Classical Era,"
in Renate 8ridenthal e Claudia Koonz, eds., Becoming Visible: Women in European
Histol)' (80ston: Houghton Miffin, 1977), pp.75-78.
50. Citado em Roderick Phillips, "Women and Family 8reakdown in Eighteenth Cen
tury France: Rouen 1780- 1 800", Social History ( 1976) 2:2 17.
5 1 . Sobre a Revolução Francesa, veja Dar1ene Gay Levy, Harriet Applewhite, e Mary
Durham Johnson, eds. , Women in Revolutionary, 1 789-1 795 (rbana: University of
Illinois Press, 1979), pp.209-20; sobre a legislação soviética, veja os documentos
em Rudolph Schlesinger, Changing A ltitudes in Soviet Russia: Documents and Read
ing, Vol . l , The Family in the USSR (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1949), pp.
62-7 1 , 25 1-54; sobre a política nazista, veja Tim Mason, "Women in Nazi Germany,
History Workshop ( 1976) I :74 - 1 1 3 , e Tim Mason, "Women in Germany, 1925-40:
Family, Welfare and Work", History Workshop ( 1976) 2:5-32.
52. Elizabeth Wilson, Women and the Welfare State (Londres: Tavistock, 1977); Jane
Jenson, "Gender and Reproduction"; Jane Lewis, The Po/itics ofMotherhood: Child
and Maternal Welfare in England, 1900-1939 (Londres: Croom Helm, 1980); Mary
Lynn McDougall, "Protecting Infants: The French Campaign for Maternity Leaves,
1 890s- 19 13", French Historical Studies ( 19 1 3) 13 :79-105.
53. Sobre os utópicos ingleses, veja 8arbara Taylor, Eve and New Jerusalem(Nova York:
Pantheon, 1983).
54. Louis Devance, "Femme, famille, travail et Morale sexuelle dans I' idéologie de
1848", in Mythes et représentations de lafemme au X1Xe sii!cle (Paris: Champion,
1977); Jacques Ranciere e Pierre Vauday, "En allant à I' éxpo: L' ouvrier, sa femme et
1es machines", Les Révoltes Logiques ( 1975) 1 : 5-22.
55. Gayatri Chakravorty Spivak, "Draupadi' by Mahasveta Devi", Critical 1nquiry ( 1981)
8:38 1-40 1 ; Homi 8habha, "Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial
Discourse", outubro ( 1984) 28: 125-33; Karin Hausen, "The German Nation's Obliga
tions to the Widowsof World War I", in Margaret R. Higonnet et aI., Behind the
Lines: Gender and two World Wars (New Haven: Yale University Press, 1987), pp.
126-40. Ken Inglis, "The Representation of Gender on Australian War Memoriais",
Daedalus ( 1987) 116:35-59.
98
56. Sobre a Revolução Francesa, veja Levy et aI., Women in Revolutionary Paris. Sobrea
Revolução Americana, veja Mary Beth Norton,Liberty 's Daughters: The Revolu
tionary Experience 01American Women (Boston: Little, Brown, 1980); Linda Kerber,
Women 01 the Republic (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1980);
Joan Hoff-Wilson, "The Illusion of Change: Women and the American Revolution",
in Alfred Young, ed., The American Revolution: Explorations in the History 01Ameri
can Radicalism (Dekalb: Northem Illinois University Press, 1976), pp. 383-446.
Sobre a Terceira República Francesa, veja Steven Hause, Women s Suffrage and
Social Politics in the French Third Republic (Princeton: Princeton University Press,
1 9 84). Um tratamento extremamente interessante de um caso recente pode ser
encontrado em Maxine Molyneux, "Mobilization Without Emancipation? Women's
Interests, the State and Revolution in Nicaragua", Feminist Studies ( 1985) 11:227-
54.
57. Sobre a questão do pró-natalismo, veja Riley, War in the nursery, e Jenson, "Gender
and Reproduction". Sobre os anos 20, veja os ensaios contidos em Stratégies des
Femmes (Paris: Editions Tierce, 1984).
58. Para interpretações variadas do impacto do novo trabalho sobre as mulheres, veja
Louise A. Tilly e Joan W. Scott, Women, Work and Family (Nova York: Holt, Rinehart
and Winston, 1 978: Methuen, 1987); Thomas Dublin, Women at Work: The Trans
lormation 01 Work and Community in Lawell, Massachusetts, 1826-1860 (Nova
York: Columbia University Press, 1979); e Edward Shorter, The Making olthe Modem
Family (Nova York: Basic Book, 1975).
59. Veja, por exemplo, Margaret Rossiter, Women Scientists in America: Struggles and
Strategies to 1914 (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1 982).
60. Luce lrigary, "Is the Subject of Science Sexed?" Cultural Critique ( 1985) 1 :73-88.
6 1 . Louis Crompton, Byron and Greek Lave: Homophobia in Nineteenth-Century En
gland (Berkeley: University of Califomia Press, 1985). Essa questão é tratada em
Jeffrey Weeks, Sex, Politics and Society: The Regulation 01 Sexuality Since 1800
(Londres: Leyman, 198 1 ).
Publicação em inglês:
SCOTT, Joan. Gender on the Politics 01History. New York: Columbia University Press,
1988 (p.28-50).
Publicação em francês:
Les Cahiers du Grif. n.37/38. Paris: Editions Tierce, 1988
99
MULHERES EM MOVIMENTO
Mulheres em movimento
SUELI CARNEIRO
O
MOVIMENTO
e referência fundamental em certos temas do interesse das mulheres no
plano internacional. É também um dos movimentos com melhor perfor-
mance dentre os movimentos sociais do país. Fato que ilustra a potência deste
movimento foram os encaminhamentos da Constituição de 1988, que contem-
plou cerca de 80% das suas propostas, o que mudou radicalmente o status jurídi-
co das mulheres no Brasil. A Constituição de 1988, entre outros feitos, destituiu
o pátrio poder.
Esse movimento destaca-se, ainda, pelas decisivas contribuições no proces-
so de democratização do Estado produzindo, inclusive, inovações importantes
no campo das políticas públicas. Destaca-se, nesse cenário, a criação dos Conse-
lhos da Condição Feminina – órgãos voltados para o desenho de políticas públi-
cas de promoção da igualdade de gênero e combate à discriminação contra as
mulheres. A luta contra a violência doméstica e sexual estabeleceu uma mudança
de paradigma em relação às questões de público e privado. A violência doméstica
tida como algo da dimensão do privado alcança a esfera pública e torna-se objeto
de políticas específicas. Esse deslocamento faz com que a administração pública
introduza novos organismos, como: as Delegacias Especializadas no Atendimen-
to à Mulher (Deams), os abrigos institucionais para a proteção de mulheres em
situação de violência; e outras necessidades para a efetivação de políticas públicas
voltadas para as mulheres, a exemplo do treinamento de profissionais da segu-
rança pública no que diz respeito às situações de violência contra a mulher, entre
outras iniciativas. De acordo com Suárez e Bandeira:
Apesar de suas imperfeições, as Deams são instituições governamentais re-
sultantes da constituição de um espaço público, onde se articulou o discurso
relativo aos direitos das mulheres de receberem um tratamento eqüitativo
quando se encontram em situações de violências denunciadas. Diferente-
mente das outras delegacias, as Deams, evitam empregar métodos de con-
dutas violentas, promovendo a negociação das partes em conflito. A grande
particularidade dessas instituições policiais é admitirem a mediação como
um recurso eficaz e legítimo. Nesse sentido, não é demais lembrar que a
prática da mediação é crescentemente considerada um recurso valioso na
administração dos conflitos interpessoais, na medida em que diminui o risco
de os conflitos administrados terem desdobramentos violentos1 .
No campo da sexualidade, “a luta das mulheres para terem autonomia so-
bre os seus próprios corpos, pelo exercício prazeroso da sexualidade, para pode-
rem decidir sobre quando ter ou não filhos, resultou na conquista de novos
direitos para toda a humanidade: os direitos sexuais e reprodutivos”2 .
A desigualdade sofrida pelas mulheres em relação ao acesso ao poder foi
enfrentada por diversas campanhas das quais resultaram a aprovação de projeto
de lei, de iniciativa da então deputada Marta Suplicy, de reserva de 20% das le-
gendas dos partidos para as candidatas mulheres.
Embora as desigualdades salariais significativas entre homens e mulheres
que ocupam as mesmas funções permaneçam, é inegável que a crítica feminista
sobre as desigualdades no mercado de trabalho teve papel importante na intensa
diversificação, em termos ocupacionais, experimentada pelas mulheres nas últi-
mas três décadas. Um dos orgulhos do movimento feminista brasileiro é o fato
de, desde o seu início, estar identificado com as lutas populares e com as lutas
pela democratização do país.
São memoráveis, para as feministas, o protagonismo que tiveram nas lutas
pela anistia, por creche (uma necessidade precípua das mulheres de classes popula-
res), na luta pela descriminalização do aborto que penaliza, inegavelmente, as mulhe-
res de baixa renda, que o fazem em condições de precariedade e determinam em
grande parte os índices de mortalidade materna existentes no país; entre outras ações.
Porém, em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da
sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro
da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A conseqüência disso foi a
incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo
feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e
os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além
do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.
As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade
brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o
sexismo, vêm exigindo a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminis-
mo. E o elemento determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente mo-
vimento de mulheres negras sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil.
Enegrecendo o feminismo
Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar
a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro.
Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clás-
sica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática po-
lítica para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em socieda-
des multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma
agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e
intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge
da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por
fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil.
Meios de comunicação
Os meios de comunicação vêm se constituindo em um espaço de interfe-
rência e agendamento de políticas do movimento de mulheres negras, pois a
naturalização do racismo e do sexismo na mídia reproduz e cristaliza, sistematica-
mente, estereótipos e estigmas que prejudicam, em larga escala, a afirmação de
identidade racial e o valor social desse grupo. Segundo Antonia Quintão
a exclusão simbólica, a não-representação ou distorções da imagem da mu-
lher negra nos meios de comunicação são formas de violência tão dolorosas,
cruéis e prejudiciais que poderiam ser tratadas no âmbito dos direitos hu-
manos14 .
Se partimos do entendimento de que os meios de comunicação não apenas
repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas tam-
bém se instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem no inte-
rior da sua lógica de produção os sistemas de representação, levamos em conta
que eles ocupam posição central na cristalização de imagens e sentidos sobre a
mulher negra. Muito tem se falado a respeito das implicações dessas imagens e
dos mecanismos capazes de promover deslocamentos para a afirmação positiva
desse segmento.
A presença minoritária de mulheres negras nas mídias, bem como a fixação
dessa presença em categorias específicas (a mulata, a empregada doméstica) foi
um dos assuntos mais explorados nesse aspecto.
A despeito de algumas mudanças, pois presenciamos gradativamente a pre-
sença de mulheres negras em espaços outros que não somente os de subserviên-
cia, consideramos que mudanças radicais ainda precisam ser efetivadas (temos,
atualmente, uma apresentadora negra no Fantástico, exibido pela Rede Globo,
as novelas passam a contar com personagens que ocupam posições de certo pres-
tígio e destaque). De acordo com os produtores dos meios, essa mudança refle-
te, igualmente, mudanças radicais na situação da mulher negra brasileira, que
não mais estão ocupando apenas posições subalternas.
Embora proceda sob certos aspectos, consideramos que essa afirmativa
possui uma conotação capciosa e perversa, que encobre as manobras de padrão já
estabelecidas pela mídia e que são encobertas por uma possível correlação com a
realidade. Esperamos que a mulher negra seja representada levando-se em conta
o espectro de funções e as habilidades que ela pode exercer, mesmo em condi-
ções econômicas adversas.
Nesse sentido, segundo Nilza Iraci15 , são ainda grandes os desafios na área
dos meios de comunicação e da imagem em prol da construção de um novo
imaginário da mulher negra nesse espaço, e, por extensão, nas instâncias de deci-
são política e na sociedade. Existe uma consciência crescente entre as mulheres
negras de que os processos relacionados à globalização e à nova ordem mundial
requerem novas formas de ação e, nesse sentido, tratar a comunicação como um
• reconhecer o direito das mulheres de ter ou não ter filhos com acesso de
qualidade à concepção e/ou contracepção;
• reconhecer o direito de livre exercício sexual de travestis e transgêneros;
• reconhecer a discriminalização do aborto como um direito de cidadania e
uma questão de saúde pública e reconhecer que cada pessoa tem direito as
diversas modalidades de família e apoiar as iniciativas de parceria civil registrada
[...] 16 .
Diz a feminista e cientista política norte-americana Nancy Fraser que a um
conceito amplo de gênero que incorpore a diversidade de femininos e feminis-
mos historicamente construídos, deve corresponder “um conceito de justiça tão
abrangente quanto, e que seja capaz de englobar igualmente a distribuição e o
reconhecimento”17 .
Nessa direção, como já apontamos no artigo citado anteriormente, a Plata-
forma Política Feminista que resulta da Conferência Nacional das Mulheres Bra-
sileiras representa o coroamento de quase duas décadas de luta pelo reconheci-
mento e incorporação do racismo, da discriminação racial e das desigualdades de
gênero e raça que eles geram. Tal concepção constitui-se em um dos eixos estru-
turais da luta das mulheres brasileiras. A Plataforma, ao incorporar esse princípio,
sela um pacto de solidariedade e co-responsabilidade entre mulheres negras e
brancas na luta pela superação das desigualdades de gênero e entre as mulheres
no Brasil. Redefine os termos de uma verdadeira justiça social no Brasil. Como
afirma Guacira César de Oliveira da AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras e
uma das integrantes da Comissão Organizadoras da Conferência:
reafirmamos que os movimentos de mulheres e feministas querem radicalizar
a democracia, deixando claro que ela não existirá enquanto não houver igual-
dade; que não haverá igualdade sem distribuição das riquezas; e não há dis-
tribuição sem o reconhecimento das desigualdades entre os homens e mu-
lheres, entre brancos e negros, entre urbanos e rurais, que hoje estruturam a
pobreza. Não almejam a mera inversão dos papéis, mas um novo marco civi-
lizatório18 .
Diz-nos Fraser ainda: “[...] situo lutas de gênero como uma das facetas de
um projeto político mais amplo que busque uma justiça democrática institucio-
nalizante, cruzando os múltiplos eixos da diferenciação social”19.
Nessa perspectiva, a Plataforma Política Feminista oferece à sociedade a
contribuição para uma sociedade democrática e socialmente justa. Sinaliza, clara-
mente, para a urgência de instituição de um novo marco civilizatório no qual são
colocados em questão a necessidade de avançar a democracia política:
A democracia política representativa – que tem no voto seu instrumento
básico de funcionamento – vigora no Brasil como se fosse a única prática le-
gítima de exercício de poder, apesar da forte crise de legitimidade de suas
instituições. [...] A democracia representativa ainda está impregnada dos perfis
Notas
1 Mireya Suárez e Lourdes Bandeira, 2002, p. 299.
2 Plataforma Política Feminista, parágrafo 8 – Aprovada na Conferência Nacional de
Mulheres Brasileiras em 6-7 de junho de 2002. Distribuição CFEMEA – Centro
Feminista de Estudos e Assessoria. Brasília, 2002.
3 Apud Luiza Bairros, 2000, p. 56.
4 Lélia Gonzalez citada por Luiza Bairros, 2000,p. 57.
5 Carlos Hasenbalg e Nelson Silva Valle, p. 37.
6 Márcia Lima, 1995, p. 28.
7 Sueli Carneiro, 2002b, p.5.
8 Beatriz Nascimento, 1990, p. 3.
9 Regina Nogueira, 2000, p. 201.
10 Fátima Oliveira, 1998, p. 43.
11 Idem, p. 133.
12 Idem, p. 132.
13 Idem, p. 130.
14 Antonia Aparecida Quintão, 1999.
15 Em Nós mulheres negras – Diagnóstico e propostas da Articulação de ONGs de
Mulheres Negras rumo à III Conferência Mundial contra o Racismo, 2001, pp. 22-
23.
16 Sueli Carneiro, 2002e, p.5
17 Nancy Fraser, 2002, p. 63.
18 Esses comentários foram, originalmente, publicados no jornal na Coluna Opinião do
Jornal Correio Braziliense de 14/6/2002.
19 Nancy Fraser, 2002, p.63
20 Plataforma Política Feminista aprovada na Conferência Nacional de Mulheres Brasi-
leiras (CNMB) em 6 e 7 de junho de 2002. Parágrafos 12 e 13.
Referências bibliográficas
BAIRROS, Luiza. “Lembrando Lelia Gonzalez”. Em WERNECK, Jurema; MENDON-
ÇA, Maisa e WHITE, Evelyn C.O livro da saúde das mulheres negras – nossos passos vêm
de longe. Rio de Janeiro, Criola/Pallas, 2000.
CARNEIRO. Sueli e SANTOS, Tereza. Mulher negra. São Paulo, Conselho Estadual da
Condição Feminina/Nobel, 1985.
__________. “A batalha de Durban”. Revista Estudos Feministas. CFH/CCE/UFSC,
vol. 10, nº 1, 2002a.
__________. “A mulher negra na década – a busca da autonomia. Apresentação”. Ca-
dernos Geledés nº 5, São Paulo, outono 1995.
__________. “Matriarcado da miséria”. Jornal Correio Braziliense, Coluna Opinião, 15/
9/2000, p. 5.
__________. “Nós?”. Jornal Correio Braziliense, Coluna Opinião, 22/2/2002b, p. 5.
__________. “Mulheres negras: lembrando nossas pioneiras”. Jornal Correio Braziliense,
Coluna Opinião, 8/3/2002c, p. 5.
__________. “Bené”. Jornal Correio Braziliense, Coluna Opinião, 19/4/2002d, p. 5.
__________. “Mulheres”, Jornal Correio Braziliense, Coluna Opinião, 14/6/2002e, p. 5.
FRASER, Nancy. Políticas feministas na era do conhecimento: uma abordagem
bidimensional da justiça de gênero. BRUSCHINI, Cristina e UNBEHAUM, Cristina
(orgs.). São Paulo, Fundação Carlos Chagas/Editora 34, 2002.
HASENBALG, Carlos e VALLE, Nelson Silva. Industrialização, emprego e estratificação
social no Brasil, p. 37.
LIMA, Márcia. “Trajetória educacional e realização sócio-econômica das mulheres ne-
gras brasileiras”. Revista Estudos Feministas. IFCS/UFRJ, vol. 3, n. 2, 1995.
NASCIMENTO, Beatriz. “A mulher negra e o amor”. Jornal Maioria Falante, fev.-mar.
1990, p. 3.
NOGUEIRA, Regina. “Mulher negra e obesidade”. Em WERNECK, Jurema; MEN-
DONÇA, Maisa e WHITE, Evelyn C. (org.). O livro da saúde das mulheres negras –
nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro, Pallas/Criola, 2000.
OLIVEIRA, Fátima. Oficinas mulher negra e saúde. Belo Horizonte, Mazza Edições,
1998.
__________. “Atenção adequada à saúde e ética na Ciência: ferramentas de combate ao
racismo”. Revista Perspectivas em Saúde Reprodutiva. São Paulo, Fundação MacArthur,
maio 2001, n. 4, ano 4.
PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA, parágrafo 8, aprovada na Conferência Nacio-
nal de Mulheres Brasileiras. Brasília, 6-7 jun. 2002.
RESUMO – ESSE artigo busca demarcar a trajetória de luta das mulheres negras brasileiras
no interior do movimento feminista nacional. Trata-se de colocar em questão a perspec-
tiva feminista clássica fundada numa concepção universalista de mulher, que tem o seu
paradigma na mulher branca ocidental, o que obscurece a percepção das múltiplas con-
tradições intragênero e entre gêneros que a racialidade aporta. Dessas contradições, im-
põem-se para as mulheres negras a sua afirmação como um novo sujeito político, porta-
dor de uma nova agenda, esta resultante de uma identidade específica na qual se articu-
lam as variáveis de gênero, raça e classe, colocando novos e mais complexos desafios para
realização da eqüidade de gênero e raça em nossa sociedade.
ABSTRACT – THIS ESSAY seeks to define the course of Brazilian black women’s struggle
within the national feminist movement. It questions the classic feminist perspective foun-
ded on a supposedly universal notion of woman that takes Western white women as its
paradigm, obscuring the perception of the multiple intra- and inter-gender contradic-
tions brought about by racial issues. Given these contradictions, black women are called
upon to establish themselves as a new political entity, bearing a new agenda that derives
from a specific identity wherein the variables of gender, race and class interact, posing
new and more complex challenges to our society effort’s in attaining equitableness of
gender and race.
Resumo
*
Este texto é parte do capítulo 2 da minha tese de doutorado – Não tá morto
quem peleia: a pedagogia inesperada nos grupos de idosos. Tese de Doutorado,
Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1999. Uma versão modificada, mais
circunscrita à dimensão de gênero – La Dimension du Genre dans l’analyse du
vieillissement: le cas du Brésil – foi publicada em Cahiers du Genre, nº 24, Paris,
1999. Recebido para publicação em setembro de 1999.
**
Universidade Federal da Bahia, Salvador.
Abstract
192
Alda Britto da Motta
Categorias de análise
1
HIRATA, Helena e KERKOAT, Danièle. La classe ouvrière a deux sexes. Politis,
Paris, jul./août/sept., 1993.
193
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
2
BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos coletivos de bairro
em Salvador. Encontro Anual da ANPOCS, 15, Caxambu-MG, outubro de 1991
– GT-Relações Sociais de Gênero.
3
LARANJEIRA, Sônia M. G. Faz sentido falar em classes sociais? Natureza, história
e cultura, Porto Alegre, Sociedade Brasileira de Sociologia, Editora da UFRS,
1993, p.89.
4
Cf: SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. New York, Columbia
University Press, 1988; SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos.
São Paulo, Brasiliense, 1991 –Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia a dia das
representações; KERGOAT, Danièle. Em defesa de uma sociologia das relações
sociais. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et alii. O sexo do trabalho. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1986; COMBES, Danièle e HAICAULT, Monique. Produção e
194
Alda Britto da Motta
A classe é uma relação e não uma coisa (...) Ela não existe
para ter um interesse ou uma consciência ideal...
É um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma
estrutura, (...) mas como algo que ocorre efetivamente e
cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações
humanas.
A classe acontece quando alguns homens, como resultado
de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem
e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra
outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se
opõem) aos seus.6
195
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
7
BOURDIEU, Pierre. What makes a social class? On the theoretical and practical
existence of groups. Berkeley Journal of Sociology, nº 22, Berkeley, 1987; O
poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989.
8
LARANJEIRA, Sônia M. G. Faz sentido falar em classes sociais? Op.cit.
9
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária na Inglaterra. Op.cit.; A miséria
da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1991.
10
SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. Op.cit.
11
Também participaram desse debate, entre outras, SAFFIOTI, Heleieth B.
Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, Albertina e BRUSHINNI, Cristina.
(orgs.) Uma questão de gênero. São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos
Chagas, 1992, pp.183-215; CASTRO, Mary Garcia. Alquimias de categorias
sociais... Op.cit; BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos
coletivos... Op.cit.
196
Alda Britto da Motta
12
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Op.cit., p.15.
13
SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. Op.cit.
197
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
14
CASTRO, Mary Garcia. Alquimias de categorias sociais... Op.cit., p.61.
15
BRITO DA MOTTA, Alda. Emprego Doméstico: revendo o novo. Caderno CRH,
nº 16, Salvador, jan./jun. 1992, pp.31-49.
16
ID. Relações de gênero em movimentos coletivos... Op.cit., p.7.
17
RUBIN, Gayle. The traffic in women : notes on the “political economy” of sex.
In: RAITER, Rayna. (ed.) Toward an anthropology of women. New York, Monthly
Review Press, 1975.
198
Alda Britto da Motta
18
FRANCHETTO, Bruna; CAVALCANTI, Laura V. C. e HEILBORN, Maria Luiza.
Apresentação e Antropologia e Feminismo. Perspectivas Antropológicas da
Mulher, nº 1, Rio de Janeiro, 1981.
19
BRITO DA MOTTA, Alda. Emprego Doméstico: revendo o novo. Op.cit.
20
SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. Op.cit.
199
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
21
FRANCHETTO, B., CAVALCANTI, L. V. C. e HEILBORN, M. L. Apresentação e
Antropologia e Feminismo. Op.cit, p.7.
22
HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo Gênero?: a antropologia da mulher no Brasil.
In: COSTA, Albertina e BRUSHINNI, Cristina. (orgs.) Uma questão de gênero.
Op.cit., pp.103-104.
23
HERITIER, Françoise. Symbolique de l’inceste et de sa prohibition. In: ISARD, M.
e SMITH, P. (eds.) La fonction symbolique. Paris, Gallimard, 1979, pp.209-243.
Citado por HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo Gênero?... Op.cit., pp.93-128.
200
Alda Britto da Motta
24
LAVINAS, Lena. Identidade de Gênero: um conceito da prática. Op.cit., p.6.
25
BRITO DA MOTTA, Alda. Relações de gênero em movimentos coletivos... Op. cit.,
p.7.
201
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
26
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. In: LINS DE BARROS, Myriam
Moraes. (org.) Velhice ou terceira idade? (Estudos antropológicos sobre
identidade, memória e política). Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998;
e DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, vol. 2, nº 3, 1994.
27
ID. Chegando pra idade. Op. Cit.
28
Mead, Margaret. Culture and Commitment: a study of the generation gap. New
York, The American Museum of Natural History Press/Doubleday & COmpany
Inc., 1970, p.56.
202
Alda Britto da Motta
29
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
30
ID., IB., pp.130-132.
203
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
31
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983 –
A Juventude é apenas uma palavra.
32
ID., IB., p.118.
204
Alda Britto da Motta
33
ZÁRRAGA MORENO, José Luis de. Generaciones y grupos de edad.
Consideraciones teóricas. Congresso Español de Sociología, 4., Madrid, sept.
1992, pp.1-2.
34
Cf. ORTEGA & GASSET, José. El tema de nuestro tiempo. Revista de Occidente,
Madrid, 1929; MARÍAS, Julian. El método histórico de las generaciones. Revista
de Occidente, Madrid, 1949.
35
MANNHEIM, Karl. Essays on the Sociology of Knowledge. London, Routledge &
Kegan Paul, 1952 – The problem of generations.
205
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
36
ZÁRRAGA MORENO, José Luis de. Generaciones y grupos de edad. Op.cit., p.28.
37
MANNHEIM, Karl. Essays on the Sociology of Knowledge. Op.cit.
206
Alda Britto da Motta
38
DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Op.cit.
39
ID., IB., p.22.
207
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
LASLETT, Peter. The Emergence of the Third Age. Ageing and Society,
40
208
Alda Britto da Motta
43
DEBERT, Guita Grin. Gênero e Envelhecimento. Op. cit.
209
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
44
SOUZA, Nadiesel, PONTES, Paula e ROCHA, Sérgio. As representações do
envelhecimento. Trabalho final de graduação em Ciências Sociais - Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994.
210
Alda Britto da Motta
45
ID., IB., p.38.
46
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. Op. cit.
47
FERREIRA, Adilton Roque e RODRIGUES JUNIOR, Valdomiro B. Idosos: esse novo
velho objeto (um estudo do preconceito contra a terceira idade). Trabalho final
de Graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
211
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
212
Alda Britto da Motta
49
ID., IB., p.13.
50
DEBERT, Guita Grin. Envelhecimento e representação da velhice. Ciência Hoje,
Rio de Janeiro, vol. 8, julho de 1988.
51
SOUZA, Nadiesel, PONTES, Paula e ROCHA, Sérgio. As representações do
envelhecimento. Op.cit., p.36.
213
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
214
Alda Britto da Motta
215
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
52
LENOIR, Remi. L’invention du troisième age (constitution du champ des agents
de gestion de la vieillesse). Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris,
mar./avr. 1979, pp.26-27; ARIÈS, Philipe. Une Histoire de la vieillesse?
Communications, Paris/Seuil, nº 37, 1983.
53
Cf. SEADE. O Idoso na Grande São Paulo. São Paulo, 1990.
216
Alda Britto da Motta
54
HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. El movimiento de los jubilados y
pensionistas. Congresso Español de Sociología, 4, Madrid, setembro de 1992.
55
SIMÕES, Júlio de Assis. A maior categoria do País (Notas sobre o aposentado
como ator político). Encontro Anual da ANPOCS, 27, Caxambu-MG, 1994.
OLIVEIRA, Gilson Costa. Entrevista. Caderno do CEAS, nº 139, Salvador,
56
maio/junho de 1992.
217
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
57
BRITO DA MOTTA, Alda. Chegando pra idade. Op. cit.
58
Ver PEREIRA, Idma Alves, FRANCO, Nanci H. R., SOUZA, Railda A. de e MOREIRA,
Rita de Cássia C. Idosos em Movimento (a conquista de um direito). Trabalho
final de graduação em Ciências Sociais - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1992.
59
ID., IB., p.55
218
Alda Britto da Motta
219
Gênero e classe social na análise do envelhecimento
60
GUERREIRO, Patrícia. A universidade para a terceira idade da PUC de
Campinas e a experiência de envelhecimento. Trabalho final de Graduação,
Universidade Estadual de Campinas, outubro de 1994; BRITTO DA MOTTA, Alda.
Gênero, envelhecimento e universidade para a terceira idade. In: ÁLVARES, Maria
Luzia Miranda e SANTOS, Eunice Ferreira. (orgs.) Desafios de Identidade: espaço-
tempo de mulher. Belém, CEJUP, 1997; PEIXOTO, Clarice. De volta às aulas ou
como ser estudante aos 60 anos. In: VERAS, Renato. Terceira Idade. Desafios
para o terceiro milênio. Rio de Janeiro, Relume Dumará/UnATI, 1997.
61
PEREIRA, Idma Alves; FRANCO, Nanci H. R.; SOUZA, Railda A. de e MOREIRA,
Rita de Cássia C. Idosos em Movimento (a conquista de um direito). Op.cit.
220
Alda Britto da Motta
221
Ar tigos
Artigos
Joan W. Scott
Princeton University
O enigma da igualdade1
Resumo
esumo: Scott estabelece, através deste artigo, uma discussão sobre os conceitos de igualdade
e diferença, do gênero, das identidades individuais e de grupo, enfatizando a necessidade de
historicidade do tema dentro da sociedade contemporânea. O artigo trata também de questões
que envolvem as políticas de ação afirmativa, diferenças de gênero e raça no mundo do trabalho
ou acesso de minorias a universidades. Scott argumenta que a questão da igualdade precisa
ser entendida em termos de paradoxo.
Palavras-chave
alavras-chave: igualdade/diferença, gênero, ação afirmativa, minorias, paradoxo.
***
***
***
***
LEVY, Darlene Gay; APPLEWHITE, Harriet Branson; JOHNSON, Mary Durham. Women in
Revolutionary Paris, 1789-95. Urbana: University of Illinois Press, 1979.
LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. La Femme criminelle et la prostituée. Trad. Louise
Meille. Paris: n.p., 1896.
LUKES, Stephen. Individualism. New York: Harper and Row, 1973.
MINOW, Martha. Not Only for Myself: Identity, Politics, and the Law. New York: The New
Press, 1997.
PALMER, R. R. “Equality.” WIENER, Philip P. (ed.). Dictionary of the History of Ideas. New York:
Scribner, 1973-74.
PELLETIER, Madeleine. La Femme en lutte pour ses droits. Paris: n.p., 1908.
RANCIÈRE, Jacques. The Nights of Labor: The Workers´ Dream in Nineteenth-Century France.
Trad. John Drury. Philadelphia: Temple University Press, 1989.
ROSE, Arnold M. “Minorities”. SILLS, David L. (ed.).International Encyclopedia of the Social
Sciences. New York: Macmillan Company, 1972. v. 10. p. 365-371.
SCOTT, Joan W. Only Paradoxes to Offer: French Feminists and the Rights of Man. Cambridge,
MA: Harvard University Press, 1996. [Versão em português: SCOTT, Joan W. A cidadã
paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Trad. Élvio A. Funck.
Florianópolis: Editora Mulheres, 2002.]
SKRENTNY, John David. The Ironies of Affirmative Action. Chcago: The University of Chicago
Press, 1996.
UNITED STATES. Court of Appeals. Fifth Circuit. Cheryl J. Hopwood v. State of Texas. 11 May
1994.
Introdução
Instigante e desafiador, conceito de gênero vem disseminando-se rapidamente a partir da
década de 1980. Parte significativa da atração exercida por esse conceito reside no convite
que ele oferece para um novo olhar sobre a realidade, situando as distinções entre
características consideradas femininas e masculinas no cerne das hierarquias presentes no
social. Através da utilização desse conceito, algumas autoras, inclusive, consideraram
possível desestabilizar as tradições de pensamento.1 Para além de ter ou não respondido a
essa expectativa, o conceito de gênero tem se difundido notavelmente na teoria social --
suas marcas são evidentes na produção de reconhecidos autores tais como Anthony Giddens
ou Arjun Appadurai.
Entre as/os acadêmicos/as que dialogam com as discussões feministas, o conceito de gênero
foi abraçado com entusiasmo, uma vez que foi considerado um avanço significativo em
relação às possibilidades analíticas oferecidas pela categoria “mulher”. Essa categoria
passou a ser quase execrada por uma geração para a qual o binômio feminismo/”mulher”
parece ter se tornado símbolo de enfoques ultrapassados. Mas, no marco das discussões das
acadêmicas feministas percebe-se, nos últimos anos, uma nova ênfase na utilização da
categoria “mulher”. Evidente em alguns Encontros sobre gênero no Brasil, esse retorno é
discutido na produção internacional, inclusive naquela difundida nas principais publicações
feministas do País. Num número recente da Revista de Estudos Feministas, Linda
Nicholson alude abertamente à importância da utilização dessa categoria, confrontando-a
com idéias embutidas no conceito de gênero. Nos termos dessa autora, não se trata
exatamente de um “retorno”, uma vez que as novas formulações não estariam
contaminadas pelo “fundacionalismo biológico” -- termo que explico adiante -- que
perpassaria os usos anteriores da categoria mulher e do conceito de gênero2.
Neste texto, que tem um caráter puramente didático, faço alguns comentários sobre a re-
criação da categoria “mulher” nas discussões contemporâneas. Mas, considerando que esse
vaivém está perpassado por tensões que só podem ser compreendidas levando em conta a
íntima relação entre as discussões feministas e o desenvolvimento do conceito de gênero,
proponho, antes de nada, um breve percurso pelo pensamento feminista desenvolvido a
partir de finais da década de 1960, prestando atenção aos seus pressupostos e aos principais
conceitos por ele desenvolvidos. Em seguida, mostro como o conceito de gênero foi criado
no marco desses pressupostos. Realizo, depois, alguns comentários sobre os conteúdos que
1
SCOTT, Joan Wallach: Gender and the Politics of History, New York, Columbia University Press, 1988.
2
NICHOLSON, Linda: “Interpretando o gênero”. Revista de Estudos Feministas, vol. 8, n°2/2000, pp. 9-43.
esse conceito adquire nas teorias contemporâneas e as tensões que ele provoca em termos
da prática política feminista. Finalmente, considero a maneira como a categoria “mulher” é
re-introduzida no âmbito desse debate.
2
ao mesmo tempo, as raízes culturais destas desigualdades. As feministas trabalharam em
várias frentes: criaram um sujeito político coletivo -- as mulheres -- e tentaram viabilizar
estratégias para acabar com a sua subordinação. Ao mesmo tempo procuraram ferramentas
teóricas para explicar as causas originais dessa subordinação.
É interessante prestar atenção às correntes do pensamento feminista que se desenvolveram
nos Estados Unidos e na Inglaterra, a partir de finais da década de 1960. Elas apresentam
diferenças na percepção das origens e causas da opressão e, também, nos mecanismos
considerados apropriados para livrar-se dela. Mas, mostram, também -- e sem pretender
homogeneizá-las – que compartilham vários pressupostos
Entre essas correntes, algumas vertentes do feminismo socialista têm uma postura
particularmente clara no que se refere às causas originais da opressão das mulheres.
Seguindo a argumentação de Engels no livro As origens da família, a propriedade privada
e o estado3), orientam-se pela idéia de que a divisão de trabalho baseada no sexo implicou
desigualdade ou opressão sexual apenas no momento em que surgiram as classes sociais
baseadas na propriedade privada. As formas da opressão sexual, tais como as formas de
parentesco e a família, teriam uma base material na estrutura de classes. A opressão das
mulheres, assim como a exploração de classe, poderiam ser superadas através da
instauração de uma forma de organização social mais desenvolvida, numa sociedade sem
classes, por exemplo, no socialismo. Para esse estilo de pensamento feminista, portanto, a
reprodução é opressiva na sociedade de classes. Quero dizer, o problema não é a
reprodução, mas o surgimento das classes sociais baseadas na propriedade privada.
Outras vertentes do feminismo socialista criticam estas premissas, mostrando que as
hierarquias de gênero persistiram nos países socialistas nos quais teve lugar a transformação
na organização social que supostamente libertaria as mulheres. Baseando-se nessas
experiências, essas correntes mostram que considerar o sexo como 'contradição secundária'
e 'a produção como força motriz principal da mudança social' não é suficiente para
promover as mudanças necessárias. As causas originais da opressão feminina são
colocadas, portanto, na associação capitalismo/patriarcado, considerando produção e
reprodução como igualmente determinantes.
O feminismo radical entende de maneira diferente as causas da opressão das mulheres.
Shulamith Firestone, uma das principais pensadoras desta corrente, afirma no livro A
dialética do sexo 4 que as origens da subordinação feminina estão visivelmente localizadas
no processo reprodutivo. Segundo essa autora, os papéis desempenhados por homens e
mulheres na reprodução da espécie são fatores fundamentais de onde derivam as
3
ENGELS, Friederich: The Origins of the family, private property and the state. International Publishers, Nova York,
1972 (1891)
4
FIRESTONE, Shulamith: A dialética do sexo. Labor, Rio de Janeiro, 1976.
3
características que tornam possível a dominação que os homens exercem sobre as mulheres.
As diferenças entre os papéis sociais e econômicos de homens e mulheres, o poder político
e a psicologia coletiva são resultado da maneira como se reproduzem os seres humanos. De
acordo com Firestone, o papel das mulheres no processo reprodutivo -- uma vez que são os
únicos seres humanos capazes de engravidar e amamentar e dado que os bebês humanos
têm um período extraordinariamente prolongado de dependência física -- as torna
prisioneiras da biologia, forçando-as a depender dos homens.
O feminismo radical considera que para liberar as mulheres é necessário derrotar o
patriarcado. Isso só seria possível se as mulheres adquirissem o controle sobre a
reprodução. Na verdade, para Firestone, a meta do movimento feminista deveria ser não
apenas a eliminação do privilegio do homem, mas a eliminação da própria distinção sexual.
E isto seria possível transformando o mecanismo da reprodução -- a reprodução da espécie
deveria ser substituída pela reprodução artificial. Dessa maneira, segundo a autora, as
diferenças genitais não teriam mais significado cultural.
Nessas explicações sobre as causas da opressão feminina, a reprodução adquire um lugar
importante: as funções reprodutivas femininas aparecem no cerne da produção da
desigualdade sexual. Chamo a atenção para esse ponto porque ele mostra que, nessas linhas
de pensamento, a “condição” compartilhada pelas mulheres -- e da qual se deriva a
identidade entre elas -- está ancorada na biologia e na opressão por parte de uma cultura
masculina. O corpo aparece, assim, como o centro de onde emana e para onde convergem
opressão sexual e desigualdade. Desenvolvendo a análise dessa condição, essas correntes
de pensamento trabalham recorrentemente com uma série de categorias e conceitos
fundamentais, particularmente, mulher, opressão e patriarcado. Esses aspectos, centrais no
pensamento feminista pós 1960, são importantes para compreender o contexto no qual se
desenvolve o conceito de gênero.
A categoria "mulher" tem raízes na idéia do feminismo radical segundo a qual, para além de
questões de classe e raça, as mulheres são oprimidas pelo fato de serem mulheres -- pela sua
womanhood.5 Essa idéia foi útil, em termos políticos, para desenvolver o próprio conceito
de feminismo, diferenciando-o, no contexto específico das discussões que tinham lugar nos
Estados Unidos e na Inglaterra, do "pensamento de esquerda". O reconhecimento político
das mulheres como coletividade ancora-se na idéia de que o que une as mulheres ultrapassa
em muito as diferenças entre elas. Dessa maneira, a "identidade" entre as mulheres tornava-
se primária.
5
Estou seguindo aqui basicamente a GRANT, Judith: Fundamental Feminism. Contesting the Core Concepts of Feminist
Theory. Routledge, New York, 1993.
4
Mas, qual é a base para essa identidade entre mulheres? Nessa linha de pensamento, a
categoria "mulher" é pensada como incluindo traços biológicos e, também, aspectos
socialmente construídos. Em termos gerais, as feministas radicais sublinharam a conexão
entre mulheres através do tempo e das culturas, considerando que o corpo feminino era uma
pré-condição necessária para a permanência da opressão patriarcal.6 E, se a ênfase
concedida aos aspectos biológicos colocava o feminismo num terreno potencialmente
essencialista, o desenvolvimento do conceito de opressão incidiu num alargamento dos
significados do político.
Compreender esse alargamento exige levar em conta o contexto no qual se desenvolviam
essas discussões. Essas feministas contestavam concepções presentes no pensamento de
esquerda influenciado pelo marxismo, para as quais a política é um discurso racional que
define a exploração de acordo com critérios determinados objetivamente: a classe, por
exemplo, é uma condição de exploração e opressão objetiva. Considerou-se que esse tipo
de definição resultava pouco apropriada para o feminismo, na medida em que as mulheres
estão presentes em grupos que, nesses termos, poderiam ser definidos como “oprimidos” e
“opressores” -- seguindo esses critérios objetivos, mulheres tais como as brancas de classe
media não seriam consideradas "oprimidas". As feministas afirmaram que todas mulheres
sofriam opressão. Essa afirmação era justificada definindo de maneira diferente a opressão.
Segundo elas, antes que nada, era necessário prestar atenção às experiências femininas: a
opressão incluiria tudo o que as mulheres “experienciassem” como opressivo. Dessa
maneira, as feministas radicais afirmaram a validade das teorias subjetivas da opressão
contra as “objetivas”.
As questões que o movimento de liberação das mulheres definiam como políticas não
podiam, muitas vezes, ser enquadradas nas instituições tradicionalmente coercitivas tais
como o capitalismo ou o Estado. Isto é interessante porque, ao definir o político de tal
maneira que acomodasse as novas concepções de opressão, toda atividade que perpetuasse a
dominação masculina passou a ser considerada como política. Nesse sentido, a política
passava a envolver qualquer relação de poder, independentemente de estar ou não
relacionada com a esfera pública.
Considerando que as mulheres eram oprimidas enquanto mulheres e que suas experiências
eram prova de sua opressão, se chegou à conclusão de que a opressão feminina devia ser
mapeada no espaço em que as mulheres a viviam, isto é, nas suas vidas cotidianas. A
conhecida idéia "o pessoal é político" foi implementada para mapear um sistema de
dominação que operava no nível da relação mais íntima de cada homem com cada mulher.
6
Os conceitos fundamentais da teoria feminista deste período devem ser entendidos pensando que a visão hegemônica na
teoria feminista era a da perspectiva das mulheres brancas de classe média. A categoria "mulher" era implicitamente
associada a "mulher branca", o que será contestado seriamente mais tarde.
5
Esses relacionamentos eram considerados, sobretudo, políticos, na medida em que político
é essencialmente definido como poder.
Essa redefinição do político tem uma importância enorme. Em termos de prática política,
as feministas procuraram desvendar a multiplicidade de relações de poder presentes em
todos os aspectos da vida social e isto as levou a tentar agir nas mais diversas esferas. Em
termos teóricos, elas trabalharam com uma idéia global e unitária de poder, o patriarcado,
numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma
relação política. As instituições patriarcais seriam aquelas desenvolvidas no contexto da
dominação masculina. Como a dominação masculina estaria presente através do tempo e
das culturas, poucas instituições poderiam escapar ao patriarcado. Tomando como ponto de
partida a idéia de que os homens universalmente oprimem as mulheres, o pensamento
feminista procurou explicar a forma adquirida pelo patriarcado em casos específicos.
Essa perspectiva de análise dava como estabelecido que as mulheres compartilhavam uma
realidade diferente da dos homens. As feministas radicais argumentaram que a dominação
masculina excluíra as mulheres da história, da política, da teoria, e das explicações
prevalecentes da realidade. Esses argumentos tiveram conseqüências na produção
científica. As teóricas feministas passaram a revisar as produções disciplinares
perguntando-se como seriam diferentes se elas -- história, antropologia, ciência política, etc
-- tivessem considerado relevante considerar o 'ponto de vista feminino'. As formas
tradicionais de explicação das diversas disciplinas foram perscrutadas na procura de
conceitos apropriados para dar conta da opressão feminina e da realidade das mulheres.
Nesse caminho, os conceitos existentes foram confrontados e alguns adquiriram novos
conteúdos.
A efervescência acadêmica provocada pelos interesses feministas deu lugar à crescente
acumulação de um corpo de dados sobre "a situação da mulher". Assim, se constituíram e
consolidaram os estudos da mulher nas mais diversas disciplinas -- a antropologia da
mulher, a historia das mulheres. Esses estudos confrontaram aspectos dessas disciplinas.
Mas, a acumulação de informação sobre a diversidade de experiências femininas e a
sofisticação crescente das perspectivas acadêmicas orientadas pelo feminismo conduziram,
também, ao caminho oposto, isto é, à contestação de vários dos conceitos e categorias com
os quais o pensamento feminista estava operando. E um dos primeiros alvos desses
questionamentos foi a utilização do patriarcado como categoria de análise.
O conceito de patriarcado, útil do ponto de vista da mobilização política, colocou sérios
problemas no que se refere à apreensão da historicidade da condição feminina. O conceito
foi importante na medida em que distinguia forças específicas na manutenção do sexismo e
útil, em termos da tentativa feminista de mostrar que a subordinação feminina, longe de ser
6
inevitável, era a naturalização de um fenômeno contingente e histórico, era que se o
patriarcado teve um início poderia ter um fim. O pensamento feminista procurou no
patriarcado a idéia de uma origem, de um tempo anterior, quando teria começado a história
da opressão das mulheres -- a organização social contemporânea atualizaria a ordem
existente nas sociedades arcaicas, na qual a dominação era exercida por homens. O
problema é que a utilização desse termo fora do seu contexto obscurecia a compreensão das
relações sociais que organizam diversas formas de discriminação. .
O conceito de patriarcado foi estendendo-se no discurso político e na reflexão acadêmica,
sem que fossem trabalhados aspectos centrais de seus componentes, sua dinâmica e seu
desenvolvimento histórico. Com o decorrer do tempo, o patriarcado passou a ser um
conceito quase vazio de conteúdo, nomeando algo vago que se tornou sinônimo de
dominação masculina, um sistema opressivo tratado, às vezes, quase como uma essência.
Assim, o conceito colocou problemas delicados em termos metodológicos, ao referir-se a
um sistema político quase místico, invisível, trans-histórico e trans-cultural, cujo propósito
seria oprimir as mulheres. Embora esse conceito não tenha sido inteiramente abandonado,
hoje resulta fácil critica-lo, por sua generalidade – universalizando uma forma de
dominação masculina situada no tempo e no espaço –, por ser considerado um conceito
trans-histórico e trans-geográfico7 e, ainda, porque esse conceito é essencializante, na
medida em que ancora a análise da dominação na diferença física entre homens e mulheres,
considerada como aspecto universal e invariável.8 Mas, é importante compreender que o
patriarcado, assim como outras explicações da origem e as causas da subordinação
feminina, tinham o objetivo de demonstrar que a subordinação da mulher não é natural e
que, portanto, é possível combatê-la.
As hipóteses explicativas sobre as origens da opressão feminina foram sendo gradualmente
questionadas e abandonadas na busca de ferramentas conceituais mais apropriadas para
desnaturalizar essa opressão. Esse quadro de efervescência intelectual é o contexto no qual
se desenvolve o conceito de gênero.
7
o conceito de gênero se desenvolveu no marco dos estudos sobre "mulher" e
compartilhando vários dos seus pressupostos. Mas, a formulação do conceito de gênero
procurava superar problemas relacionados à utilização de algumas das categorias centrais
nos estudos sobre mulheres.
Isto fica claro quando prestamos atenção à publicação do ensaio que marcou o pensamento
feminista ao introduzir o conceito de gênero no debate sobre as causas da opressão da
mulher. Embora o termo gênero já fosse utilizado, foi a partir da conceitualização de Gayle
Rubin que este começou a difundir-se com uma força inusitada até esse momento.9 O
ensaio O Tráfico das Mulheres: Notas sobre a Economia Política do Sexo 10, publicado em
1975, escrito quando sua autora era uma aluna de pós-graduação, se tornou uma referência
obrigatória na literatura feminista.
No marco do debate sobre a natureza, gênese e causas da opressão e subordinação social da
mulher, Rubin definiu o sistema sexo/gênero como o conjunto de arranjos através dos quais
uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nas
quais estas necessidades sociais transformadas são satisfeitas. Perguntando-se sobre as
relações sociais que convertem as fêmeas em mulheres -- “a passagem de fêmea, como se
fosse matéria prima, à mulher domesticada”, a autora elabora o conceito sistema de
sexo/gênero -- “um conjunto de arranjos através dos quais a matéria prima biológica do
sexo humano e da procriação é modelada pela intervenção social humana” --, localizando
essa passagem no trânsito entre natureza e cultura, especificamente, no espaço da
sexualidade e da procriação.
A discussão acerca de como operam esses "arranjos" foi desenvolvida através da leitura
crítica de diversos autores, particularmente Lévi-Strauss e Freud. Embora questionando
aspectos da obra desses autores, Rubin utiliza as ferramentas conceituais que eles oferecem.
Sua intenção é utilizá-las para desenvolver, de maneira mais apropriada, a definição do
sistema sexo/gênero. Assim, seria possível descrever a parte da vida social que seria o
locus da opressão da mulheres e das minorias sexuais.
Rubin pensa o intercâmbio de mulheres Levistraussiano -- um dos princípios fundamentais
do parentesco, na teoria desse autor -- como conceito que situa e “explica” a opressão das
mulheres dentro dos sistemas sociais. “Explica”, no sentido em que, para ela, o
“intercâmbio de mulheres” não seria uma definição de cultura, nem um sistema em si
mesmo, mas a percepção de certos aspectos das relações sociais de sexo e gênero cujo
resultado é a ausência de plenos direitos para as mulheres. Para Rubin, o “intercâmbio de
9
O termo gênero foi aplicado à diferença sexual pela primeira vez em linhas de pesquisa desenvolvidas por psicólogos
estadounidenses. O termo identidade de gênero foi introduzido pelo psicanalista Robert Stoller em 1963, no Congresso
Psicanalítico de Estocolmo Stoller formulava o conceito da seguinte maneira: o sexo estava relacionado com a biologia
(hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia) e o gênero com a cultura (psicologia, sociologia). O produto do trabalho
da cultura sobre a biologia era a pessoa "acabada" gendered, homem ou mulher. HARAWAY, Donna: "Gender for a
marxist dictionary", in: Symians Cyborgs and Women, 1991.
10
RUBIN, Gayle: "The traffic in Women: Notes on the "Political Economy of Sex" IN: REITER, Rayna: Toward an
Anthropology of Women. Monthly Review Press, New York, 1975.
8
mulheres” seria um “primeiro passo” para a construção de conceitos através dos quais
pensar a subordinação das mulheres, na medida em que mostraria essa subordinação como
produto das relações por meio das quais sexo e gênero são organizados e produzidos. Isto
leva a autora a pensar na necessidade de estudar cada sociedade para determinar os
mecanismos através dos quais as convenções da sexualidade se produzem e mantêm.
Na formulação de Rubin, no que se refere à diferença sexual, a cultura se sobrepõe à
natureza. Na perspectiva da autora, se a natureza fornece “dados”, esses dados mostrariam
que a “diferença” é, sobretudo, cultural. Isso é claramente expressado na seguinte
formulação:
Homens e mulheres são, é claro, diferentes. Mas nem tão diferentes como o dia e a
noite, a terra e o céu, yin e yang, vida e morte. De fato, desde o ponto de vista da
natureza, homens e mulheres estão mais próximos entre si do que com qualquer
outra coisa - por exemplo, montanhas, cangurus ou coqueiros. A idéia de que
homens e mulheres diferem mais entre si do que em relação a qualquer outra coisa
deve vir de algum outro lugar que não [seja] a natureza... longe de ser a expressão
de diferenças naturais, a identidade de gênero é a supressão de similaridades
naturais.11
Para Rubin, o parentesco criaria gênero. Seguindo, até certo ponto, os argumentos de Lévi-
Strauss12 no que se refere às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de
casamento, ela considera que o parentesco instaura a diferença, a oposição, exacerbando, no
plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco, formas
empíricas e observáveis de sistemas sexo/gênero, cujas formas específicas variariam através
das culturas e historicamente, envolveriam a criação social de dois gêneros dicotômicos, a
partir do sexo biológico, uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a
interdependência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexualidade,
prescrevendo ou reprimindo arranjos divergentes dos heterossexuais. Desta maneira
poderia se dizer que, para a autora, gênero é um imperativo da cultura, que opõe homens e
mulheres através do parentesco. Mas, se na formulação de Rubin, gênero é concebido
como um imperativo da cultura, que opõe homens e mulheres através de relações
instauradas pelo parentesco, ainda se ancora em bases naturais. 13
A leitura que Rubin faz dos autores com os quais trabalha não a afasta dos pressupostos
teórico-metodológicos desses autores. Ao contrário, para “desnaturalizar” a subordinação
das mulheres, ela propõe, explicitamente, “imitá-los”, “nos métodos, não nos resultados”.14
A autora pensa em termos de universais e opera com uma série de dualismos --
sexo/gênero, natureza/cultura --, que se tornarão alvo das críticas feministas posteriores.
Ao mesmo tempo, o ensaio de Rubin mostra deslocamentos no debate feminista da época.
11
RUBIN GAYLE, op. cit. o. 179. Tradução minha.
12
LÉVI-STRAUSS, Claude: A Família, origem e evolução. Editorial Villa Marta, Porto Alegre, 1980.
13
"... a sex/gender system is the set of arrangements by which a society transforms biological sexuality into products of
human activity, and in which these transformed sexual needs are satisfied". Rubin, op. cit., p. 159.
14
Ibid. . 169.
9
Dois desses deslocamentos são particularmente significativos. O primeiro deles está
relacionado com a proposta de pensar nas construções sociais da mulher em termos de
sistemas culturais.
Ao formular essa proposta, Rubin insere-se numa linha de autoras que procuram afastar-se
de recortes parciais tais como os desenvolvidos pelas feministas que se limitaram a analisar
a realidade das mulheres, sem recorrer à totalidade dos sistemas culturais para explicar
essas realidades. Na introdução à coletânea na qual Gayle Rubin publicou seu texto, Rayna
Reiter explicita essa abordagem da seguinte maneira:
Necessitamos novos estudos que focalizem mulheres... mas o resultado final desta
aproximação será uma nova orientação da antropologia para que ela estude a
humanidade. Focalizando primeiro as mulheres, devemos redefinir as questões
importantes, reexaminar todas as teorias prévias e ser críticas em nossa aceitação do
que constitui o material empírico. Armadas por esta consciência podemos proceder
a novas investigações de gênero, na nossa e em outras culturas.
Nessas palavras fica claro que esse foco nas mulheres é pensado como porta de entrada para
compreender como operam as categorias através das quais são conformados os sistemas
históricos de diferenciação sexual. Precisamente a ênfase na operação do sistema, a
insistência na relevância de compreender a “totalidade”, marcam a linha de pensamento no
marco do qual foi criado o conceito de gênero
O segundo deslocamento perceptível na elaboração do sistema sexo/gênero está associado à
exigência de compreender as realidades empíricas diversas, os contextos específicos nos
quais o sistema sexo/gênero operacionaliza relações de poder. Nesse sentido, o conceito de
gênero é oferecido, com uma justificativa interessante, como categoria de análise alternativa
ao patriarcado. Gayle Rubin afirma a importância de manter uma distinção entre a
capacidade e necessidade humanas de criar um mundo sexuado, por um lado e, por outro, as
formas empiricamente opressivas através dos quais os mundos sexuados foram
organizados. O Patriarcado subsumiria os dois significados num mesmo termo. Os
sistemas de parentesco, objeto do trabalho de Rubin, "constituiriam formas empiricamente
observáveis de sistemas de sexo e gênero". E o mais importante em termos da comparação
com a categoria patriarcado é que o sistema sexo/gênero seria um termo neutro, na medida
em que se referiria a esses mundos sexuados indicando que neles a opressão não é
inevitável. A opressão seria o produto de relações sociais específicas.
O trabalho de Gayle Rubin insere-se numa linha de questionamentos à idéia monolítica de
opressão feminina universal. As autoras que participaram da coletânea na qual ele foi
publicado, Toward an Anthropology of Women, assumem a pergunta feminista sobre as
causas de opressão. Mas, elas propõem uma análise crítica e mais complexa sobre a
operação do poder entre os sexos, afirmando a necessidade de precisar termos usuais nas
discussões feministas, tais como a noção de dominância masculina (dominance). Porque,
para elas, o que está em questão podem ser coisas de natureza tão diversa como uma estrita
divisão sexual do trabalho na qual as atividades masculinas são particularmente valorizadas
10
ou situações nas quais os homens controlam concretamente as mulheres. O que se objeta é
que idéias vagas e pouco precisas sobre o que seja dominância masculina não permitem
descobrir aspectos básicos sobre as relações entre os sexos. E algo ainda mais grave, essa
universalização da dominância masculina resulta pouco apropriada quando se trata dos
grupos "primitivos", com os quais a antropologia trabalhou tradicionalmente, pois não
haveria muitos indícios de que esses povos dicotomizem seu mundo em termos de
domínios de poder.
O que me interessa reter de tudo isto é que o conceito de gênero começou a ser
desenvolvido como uma alternativa ante o trabalho com o patriarcado. Ele foi produto,
porém, da mesma inquietação feminista em relação às causas da opressão da mulher. A
elaboração desse conceito está associada à percepção da necessidade de associar essa
preocupação política a uma melhor compreensão da maneira como o gênero opera em todas
as sociedades, o que exige pensar de maneira mais complexa o poder. Vemos, assim, que
as perspectivas feministas que iniciaram o trabalho com gênero mantêm um interesse
fundamental na situação da mulher, embora não limitem suas análises ao estudo das
mulheres.
Em termos da teoria social, é inegável que uma longa tradição de pensamento operou com a
idéia de diferença sexual como princípio classificatório universal15 e com a percepção do
caráter relativamente cultural dessa diferença -- e penso, concretamente nas abordagens que
trabalham com papéis sexuais16. E, se as primeiras elaborações do conceito de gênero
inserem-se nessa tradição, não deixam de distanciar-se dessas abordagens a partir da intensa
politização da diferença sexual.17
15
Ver DURKHEIM, Emile e MAUSS, Marcel: "De ciertas formas primitivas de clasificación. Contribución al estudio de
las representaciones colectivas". (1903) IN: MAUSS, Marcel: Institución y Culto. Representaciones colectivas y
diversidad de civilizaciones. Barral Editores, Barcelona, 1971 Nesse ensaio há vários dos elementos que serão relevantes
em diversas perspectivas teóricas que trataram da diferença sexual. Refiro-me às idéias da diferenciação sexual como
princípio de diferenciação universal; da sexualização dos mundos vividos como produto de classificações associadas às
classificações que os homens fazem de si próprios; à hierarquia ordenando essas classificações, a noção de relação entre
categorias de elementos classificados, e à idéia de valor aproximando ou separando as idéias. Essas idéias informam a
produção de autores e autoras que trabalharam, em diversas perspectivas teóricas, com a idéia de diferença sexual
16
A teoria dos papéis sociais preocupa-se com os fatores que influenciam o comportamento humano. Nessa perspectiva,
os indivíduos ocupam posições na sociedade, e o desempenho de seus papéis nessas posições é determinado por normas e
regras sociais, assim como pelo desempenho que outros fazem de seus papéis. À maneira do teatro, esta perspectiva
assume que o desempenho dos papéis resulta das prescrições sociais e do comportamento dos outros, e que as variações
individuais na atuação se expressam dentro do quadro criado por esses fatores. A idéia de posições ocupadas no
desempenho dos papéis faz referência a categorias de pessoas, categorias que são reconhecidas coletivamente. Um dos
atributos possíveis que pode operar como base para a definição dessas categorias é a idade, estabelecendo as posições a
partir das quais crianças e adultos agem no desempenho de seus papéis. Outro desses atributos pode ser o sexo. Neste
caso, homens e mulheres desempenham papéis culturalmente construídos em posições que derivam do seu sexo biológico:
os papéis sexuais. BIDDLE, Bruce e THOMAS, E: Role Theory: Concepts and Research. John Wiley and Sons. New
York, 1966.
17
Na perspectiva dos papéis, autores como Margareth Mead (ou, entre os sociólogos, Talcott Parsons) apontaram para o
caráter de construção cultural da diferença sexual, integrando, de maneiras diversas, a formação da personalidade com a
análise da divisão do trabalho concebida, sobretudo, em termos de papéis sexuais. O problema é que, em função das
perspectivas teóricas com as que trabalhavam, o campo das relações entre os sexos era estabelecido em torno das idéias de
costume e estabilidade social, minimizando a dimensão política das relações entre os sexos. Precisamente, esse é um dos
11
Reformulações do conceito de gênero
[ Os termos] sexo e gênero são úteis para a análise uma vez que
contrastam um conjunto de fatos biológicos com um conjunto de fatos
culturais. Sendo escrupulosa em meu uso dos termos, utilizaria o
termo "sexo" apenas para falar da diferença biológica entre macho e
fêmea, e "gênero" quando me referisse às construções sociais,
culturais, psicológicas que se impõem sobre essas diferenças
biológicas. Gênero designa um conjunto de categorias às quais
outorgamos a mesma etiqueta porque elas têm alguma conexão com
diferenças sexuais. Estas categorias, no entanto, são convencionais
ou arbitrárias. Elas não são redutíveis e não derivam diretamente de,
fatos naturais, biológicos, e variam de uma linguagem a outra, de uma
cultura a outra, na maneira em que ordenam experiência e ação. 18
aspectos mais criticados dessa abordagem. Robert Connel sintetiza essas criticas afirmando que não falamos em papéis
raciais ou de classe, porque o exercício do poder nessas áreas é mais obvio para os sociólogos. No entanto, quando se
trata de papéis sexuais, a dicotomia biológica parece ter convencido os teóricos de que não há relação de poder presente.
Os papéis masculinos e os femininos são tacitamente tratados como iguais, diferentes no conteúdo, mas complementares.
CONNELL, Robert: Gender and Power. Stanford University Press, California, 1987.
18
SHAPIRO, Judith: ( 1981) "Anthropology and the study of gender" IN: Soundings, an interdisciplinary
journal. 64, n. 4: 446-65.
19 Para algumas teóricas, a distinção sexo/gênero já colocava uma ruptura com o ideário modernista uma
vez que as diferenças de gênero emergiam dela com características altamente significativas: homens e
mulheres, distintos e divididos, já não podiam conformar, indiferenciadamente, a humanidade. Veja-se
DI STEFANO, Cristina: " Dilemas of Difference", 75-76 citado em Harding, 1992, p. 183.
12
A produção feminista recente que trata desta discussão é imensa e impossível de abarcar
neste texto. Minha intenção é, apenas, levantar algumas questões que me parecem
significativas, centrando-me nos escritos de algumas autoras contemporâneas que trabalham
no âmbito de horizontes disciplinares diversos. Ao mesmo tempo, enquanto teóricas
feministas, mantêm um diálogo intenso num campo interdisciplinar de conhecimento.
Donna Haraway, bióloga e historiadora da ciência, expressa uma posição particularmente
crítica em relação ao conceito de gênero, embora seja ambivalente no que se refere ao seu
uso. A autora inscreve-se na linha de pensadoras -- basicamente epistemólogas -- que
realizam uma crítica incisiva à construção do conhecimento "ocidental". Seus
questionamentos, centrados particularmente na noção de "objetividade", discutem os
pressupostos subjacentes à construção desse conhecimento. No quadro dessa discussão,
Haraway aponta um problema central que considera inerente aos conceitos de gênero: os
conceitos remeteriam, necessariamente, a uma distinção com o sexo na qual nem o sexo,
nem as raízes epistemológicas da lógica de análise implicada na distinção e em cada
membro deste par, seriam historicizados e relativizados.
Segundo a autora, na insistência no caráter de construção social do gênero, o sexo e a
natureza não foram historicizadas e, com isso, ficaram intactas idéias perigosas relacionadas
com identidades essenciais tais como "mulheres" ou "homens". Desta maneira, assumindo
a distinção sexo/gênero o poder de desconstruir como os corpos, sexualizados e
racializados, aparecem como objetos de conhecimento e espaços de intervenção na biologia
estaria perdido. Além disto, Haraway considera que a categoria de gênero obscurece ou
subordina todas as outras -- raça, classe, nacionalidade -- "outras", que emergem
nitidamente das 'políticas da diferença'. O problema reside no gênero como identidade
global (e central).
Para a autora, a categoria de gênero adquiriria poder explicativo e político se historicizasse
outras categorias -- sexo, carne/flesh, corpo, biologia, raça e natureza -- , de tal maneira que
a oposição binária e universalizante, elaborada em algum momento e lugar na teoria
feminista, explodisse em teorias da corporificação/embodiment, articuladas, diferenciadas,
localizadas e nas quais a natureza não fosse mais imaginada e atuada/ enacted como um
recurso/ressource para a cultura, ou como o sexo para o gênero.
É importante chamar a atenção para o fato de que essas críticas mostram deslocamentos nos
referenciais teóricos que as distanciam dos pressupostos presentes nas primeiras
formulações do conceito de gênero. Esses deslocamentos coincidem, também, com
intensas reivindicações relativas à diferença internas ao movimento, formuladas por
mulheres negras, do “Terceiro Mundo” e lésbicas. As autoras que se engajaram nas críticas
aos pressupostos presentes na distinção sexo/gênero, entre as que se contam teóricas que
elaboraram re-formulações do conceito de gênero, revelam a influência de referenciais
13
teóricos fortemente influenciados pelo podemos chamar de aproximações
desconstrutivistas.20
Algumas dessas autoras reconhecem sua dívida com o pós-estruturalismo, outras preferem
considerar-se alinhadas ao pensamento pós--moderno. Essas denominações, utilizadas nas
discussões feministas, muitas vezes, como se fossem intercambiáveis, apresentam uma série
de problemas21, mas, para além de confusões terminológicas, as autoras engajadas em
abordagens desconstrutivistas compartilham certos posicionamentos, particularmente, uma
série de questionamentos feitos aos modelos teóricos totalizantes: contestam a validade dos
modelos que buscam analisar e explicar as transformações históricas pressupondo, por
exemplo, a continuidade de certas estruturas e/ou instituições; questionam, também, as
abordagens que formulam uma compreensão da diferença tendo como referência um Outro
exógeno, externo, procedimento que mantém o princípio de uma unidade e coerência
cultural interna; trabalham com uma noção pulverizada de poder, com a idéia de dissolução
do sujeito universal autoconsciente22; valorizam a linguagem e o discurso como práticas
relacionais que produzem e constituem as instituições e os próprios homens enquanto
sujeitos históricos e culturais e compreendem, enfim, a produção de saber e significação
como ato de poder.
Esse estilo de pensamento é evidente em reformulações das conceitualizações de gênero
desenvolvidas no marco de diferentes abordagens disciplinares -- e a idéia de gênero como
categoria de análise que possibilite compreender a construção (inteiramente) social da
diferença sexual de Joan Scott é um exemplo.23 Parece-me importante deter-nos em
alguma dessas re-elaborações.
As formulações da filósofa Judith Butler, autora que vem ganhando popularidade entre
as/os jovens pesquisadores/as no Brasil, são interessantes na medida em que, mostrando
esses deslocamentos, permitem perceber a distância em relação às primeiras formulações do
20
Da maneira como é utilizado por Derrida, o termo desconstrução refere-se especificamente ao processo de desvendar as
metáforas de maneira que seja possível revelar sua verdadeira lógica, que costuma consistir em oposições binárias
simples. Embora não desenvolvendo “estritamente” a metodologia de Derrida, muitas das autoras envolvidas nos debates
contemporâneos de gênero consideram que trabalham numa abordagem “desconstrutivista” uma vez que olham
criticamente para os supostos sustentados pelas diversas disciplinas, examinando e “desmontando” seus modos de
discurso. Esta acepção de “desconstrução” é, entretanto, criticada por feministas que só admitem sua utilização em sentido
“estrito”. Para algumas dessas críticas, vide STRATHERN Marilyn: “Between a Melanesianist and a feminist”,
Reproducing the future, Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Routledge, New York, 1992,
pp. 69-71.
21
Há várias discussões sobre os problemas apresentados por esse tipo de denominações. Eleni Varikas explicita as
objeções a esses rótulos, muitas vezes utilizados como intercambiáveis, particularmente no debate feminista desenvolvido
nos Estados Unidos, assinalando que o que nessa discussão é conhecido, criticado e debatido como pós-estruturalismo
francês é o produto de uma apropriação seletiva e de uma re-elaboração, em certos círculos universitários americanos, do
pensamento de uma série de intelectuais franceses, ignorando tensões sérias entre as obras dos diversos pensadores que
dificilmente seriam assim agrupados na França e que provavelmente rejeitariam essa designação. Varikas também discute
as incongruências da utilização do termo (pós)modernismo, que, ao mesmo tempo que propõe a crítica de uma
temporalidade linear não consegue deixar de ter afinidades com essa mesma visão linear do tempo. VARIKAS, Eleni:
Féminisme, Modernité, Postmodernisme. Observátions pour un dialogue des deux côtés de l’océan, mimeo, 1993.
22
Seguindo a BESSA, Karla, Pós-modernismo. Mimeo, IFCH, 1995.
23
SCOTT, Joan, op. cit.
14
conceito de gênero, elaboradas tentando explicar a subordinação universal da mulher.
Butler discute a distinção sexo/gênero questionando suas raízes epistemológicas.
Desenvolvendo uma discussão crítica sobre os modos de operação das relações binárias –
gênero/sexo; homens/mulheres, sujeito/outro – a autora confronta as conceitualizações que
pensam as identidades como fixas. Esclareço que não pretendo discutir aqui os méritos (e
problemas) do trabalho dessa autora. Apenas introduzir algumas de suas idéias, de maneira
que possam operar como referência para compreender os deslocamentos teóricos aos que
me referi acima.
Para Butler, a distinção sexo/gênero assume pressupostos que devem ser discutidos.
A autora considera necessário refletir, de maneira crítica, sobre os meios através dos quais
sexo e gênero passaram a ser considerados como “dados”. Com esse objetivo, ela propõe
uma pesquisa genealógica que, ao mostrar como foi construída a dualidade sexual, como
diversos discursos científicos produziram essa dualidade discursivamente, desafie o caráter
imutável do sexo. Nesse procedimento, o sexo aparece como culturalmente construído.
Por esse motivo, Butler considera que o gênero não deveria ser pensado como simples
inscrição cultural de significado sobre um sexo que é considerado como “dado”. Gênero
deveria designar o aparelho de produção, o meio discursivo/cultural através do qual a
natureza sexuada, ou o sexo “natural” são produzidos e estabelecidos como pré-
discursivos24.
Segundo a autora, é necessário reformular "gênero", de maneira que possa conter as
relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo. Gênero seria a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos reiterados dentro de um marco
regulador altamente rígido, que se congela no tempo produzindo a aparência de
uma substância, de uma espécie de ser natural. Uma genealogia política bem
sucedida de ontologias de gênero desconstruiria a aparência substantiva do gênero
em seus atos constitutivos e localizaria e descreveria esses atos dentro dos marcos
compulsivos estabelecidos por forças diversas que "vigiam" a aparência social do
gênero.
E, seguindo um dos insights mais interessantes de Rubin, Butler afirma que a
produção disciplinar do gênero produz estabilizações falsas para os interesses da
construção heterossexual e a regulação da sexualidade dentro do domínio
reprodutivo. As descontinuidades de gênero que têm lugar nos múltiplos contextos
nos quais o gênero não deriva do sexo e o desejo e a sexualidade não seguem o
gênero, são ocultadas por construções de gênero sempre coerentes. Gênero seria a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos reiterados dentro de um marco
regulador altamente rígido, que se congela no tempo, produzindo a aparência de
uma substância, de uma espécie de ser natural. Atos e gestos produziriam o efeito
de una substância. Mas, esses atos e gestos seriam "performáticos", no sentido em
24
Butler, Judith: Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. Routledge, New York, 1990: 6-7.
15
que a essência ou identidade que supostamente expressam são construções
manufaturadas e sustentadas através de signos corporais e de outros meios. Na
perspectiva de Butler, gênero poderia ser considerado como um "ato" intencional e,
ao mesmo tempo, "performático", no sentido de construção dramática e contingente
de significado.25
A autora parte do reconhecimento de que gênero se intersecta com diversas
modalidades de identidades constituídas discursivamente -raciais, de classe, étnicas,
sexuais, etc.- motivo que torna impossível separar "gênero" das intersecções políticas
e culturais nas quais é produzido e sustentado. Afirma, também, que o gênero não
se constitui de modo coerente ou consistente em diversos contextos históricos. A
análise de Butler centra-se basicamente nesse último aspecto mostrando, de modo
brilhante, através de exemplos de diferentes momentos de "culturas ocidentais"
como as incoerências possibilitam perceber a fluidez do gênero.
As perspectivas de várias das autoras que participam nas discussões atuais sobre gênero,
entre as quais é possível inserir a produção de Butler, embora diferenciadas, coincidem na
radicalização dos esforços por eliminar qualquer naturalização na conceitualização da
diferença sexual, pensando gênero de maneira “não identitária”. Isto é, rejeitando os
pressupostos universalistas presentes na distinção sexo/gênero, convergem na tentativa de
analisar criticamente os procedimentos através dos quais gênero é concebido como fixando
identidades, e de formular conceitualizações que permitam descrever as múltiplas
configurações de poder existentes em contextos históricos e culturais específicos.26 Essas
abordagens contrapõem a idéia de fluidez à (relativa) fixidez do gênero ancorado em bases
biológicas presente nas primeiras formulações de gênero; a noção de múltiplas
configurações nas quais o poder opera de maneira “difusa” à idéia de
dominação/subordinação universal das mulheres; a intersecção entre múltiplas diferenças e
desigualdades ao privilégio da diferença sexual entendida como diferença entre homem e
mulher.
A difusão desses referenciais teóricos que convergem na tentativa de compreender a relação
entre sistemas de dominação e produção de diferenças contribuíram na abertura de linhas
pesquisa e reflexão sobre gênero não centradas nas mulheres. Refiro-me concretamente à
vasta produção dos estudos sobre masculinidade e, também, aos estudos queer (termo
freqüentemente traduzido no Brasil como estudos de gays e lésbicas) para os quais a obra
de Judith Butler é altamente inspiradora.27 No âmbito das discussões feministas, porém, as
25
Butler, op. cit,: 134-139.
26
Embora esta seja terminologia específica de Judith Butler , diversas autoras contemporâneas coincidem nos esforços
acima apontados. Vide, por exemplo, STRATHERN, Marilyn, 1988 The Gender of the Gift. University of California Press,
1988 ; Haraway, Donna, Simians, Cyborgs, and Women. The Reinvention of Nature. Routledge, New York, 1991.
27
Nesse sentido, é sugestivo perceber que em diversas livrarias estadounidenses os estudos de masculinidade ocupam as
prateleiras dos gender studies, enquanto estudos focalizando mulheres desenvolvidos, às vezes, no marco dos mesmos
referenciais que certos estudos de masculinidade, são colocados no espaço destinado aos women´s studies, que abriga
livros feministas.
16
formulações desconstrutivistas, têm provocado reações negativas. Essas reações, que
convergem em assinalar a incompatibilidade entre essas abordagens e a prática política
feminista – “gênero sem mulheres?” --, mostram questionamentos à “despolitização” da
pesquisa acadêmica e um acirramento nas tensões entre produção teórica e mobilização
política. É importante prestar atenção a esses argumentos pois eles possibilitam a
compreensão do contexto no qual algumas autoras propõem uma nova utilização da
categoria “mulher”.
“Desconstrutivismo” e feminismo
28
VARIKAS, op. cit., p. 2. Nesta linha de argumentação vide também SORJ, Bila: “O feminismo na encruzilhada da
modernidade e pós-modernidade” in: COSTA e BRUSCHINI: Uma questão de gênero. Fundação Carlos Chagas/Editora
Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992; TARDUCCI, Mónica: “Posmodernismo o posfeminismo? Una reflexión desde
la antropologia. In: TARDUCCI, Mónica: La producción oculta, III Congreso Argentino de Antropologia Social. Mesa
de Trabajo: Antropologia y Mujer. Buenos Aires, Editorial Contrapunto, 1990.
29
Vide VARIKAS, op. cit., HARAWAY, op. cit. e DE LAURETIS Theresa: “Eccentric subjects: feminist theory and
historical consciousness” Feminist Studies, 16, 1, 1990.
17
possibilitar a superação dos problemas epistemológicos que dominaram os pressupostos
teóricos feministas.30
Os questionamentos às perspectivas desconstrutivistas elaborados pelas feministas voltadas
para o ativismo mostram que, entre elas, essas perspectivas ocupam um lugar no mínimo
ambíguo, quando não abertamente negativo. Entre os argumentos com que essas
perspectivas são atacadas, afirma-se que sua radical procura de desessencialização
desestabiliza o “conceito/categoria” mulher(es), considerado como ponto de partida
necessário para a teoria e política feministas.31
Linda Alcoff explica com clareza o dilema que as perspectivas desconstrutivistas colocam
para o feminismo. A teoria feminista -- entendida como a reavaliação da teoria e a prática
social desde o ponto de vista das mulheres --, assim como a política feminista -- voltada
para a transformação da experiência vivida das mulheres na cultura contemporânea --,
perfeitamente coerentes com uma perspectiva que pensa na cultura como construída sobre a
base da supremacia masculina e o controle das mulheres (o patriarcado), têm suas raízes
num conceito --mulher-- que agora parece ser preciso desessencializar em todos os
aspectos. Mas a desconstrução -- que pode desconstruir ad infinitum --, ao não oferecer
alternativas “positivas”, dificultaria acionar um movimento. Além de dissolver o sujeito
político “mulheres”, as perspectivas desconstrutivistas também são acusadas de
restabelecerem distâncias entre a reflexão teórica e o movimento político.32
Entre os textos que tratam da relação contemporânea entre teoria e prática feminista, uma
discussão publicada na Revista Signs é particularmente significativa. Trata-se de um
debate, organizado por Heidi Hartmann em 1994, que explicita o desgosto com que muitas
feministas olham para essas abordagens.33 Todas as participantes nessa discussão estão
30
É interessante perceber que as “mulheres de cor” ou “do Terceiro Mundo” também formulam sérias críticas às
contradições colocadas pelas discussões pós-modernas. No entanto, essas críticas centram-se, sobretudo, no lugar que
essas discussões estão ocupando na economia política da construção e difusão do conhecimento. “Mulheres de cor” e/ou
“mulheres do Terceiro Mundo” afirmam que essas perspectivas, apesar de chamarem a atenção para as experiências das
“diferenças”, tendem a apropriar-se delas através de mecanismos, mais uma vez, excludentes. bell hooks, por exemplo,
questiona não tanto o “sentido” do pós-modernismo mas a linguagem cifrada em que ele se expressa: codificada em
termos dos interesses de uma audiência que alija as vozes das pessoas negras, deslocadas, marginalizadas. Intelectuais do
“Terceiro Mundo” assinalam que esses debates marginalizam, mais uma vez, o conhecimento das feministas “nativas”,
sufocando outro tipo de aproximação. hooks, bell: “Postmodern Blackness” Yearning, race, gender and cultural politics.
South End Press, 1990, pp. 24-26; OKEKE, Philomina: “Postmodern Feminism and the Political Economy of Cross-
Cultural Scholarship in Sub-Saharan Africa”. Conference Paper: Praxis Nexus: Feminist Methodology, Theory,
Community, janeiro 1996. University of Victoria, Victoria, B.C.
31
ALCOFF, Linda: “Cultural Feminism versus post-structuralism: the identity crisis in feminist theory”, Signs: Journal
of Women in Culture and Society, 1988, vol. 13, n. 3, pp.414-415.
32
Vide MIES, Maria: “Liberating Women, Liberating Knowledge: Reflections on Two Decades of Feminist Research
Action”. No especial de Atlantis. A women’s Studies Journal Revue d’études sur les femmes- Connecting Practices
Doing Theory, Volume 21.1, 1996, pp 10-25. Entretanto, é necessário sublinhar que alguns dos textos publicados neste
volume, centrados na prática com mulheres do “Terceiro Mundo” localizadas no “Primeiro”, por exemplo, migrantes no
Canadá, consideram as perspectivas “pós” fundamentais para desenvolver esse tipo de prática. Vide particularmente,
LEE, Jo-Anne: Power, praxis, positioning and subjectivities, pp.142-153.
33
HARTMANN, Heide, BRAVO, Ellen, BUCH, Charlotte, HARTSOCK, Nancy, SPALTER-ROTH, Roberta,
WILLIAMS, Linda e BLANCO, Maria: “Bringing Together Feminist Theory and Practice: a Collective Interview”.
Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1996, vol. 21, n. 4 pp.917-951.
18
vinculadas a diversas organizações destinadas a “promover” as mulheres nacional e
internacionalmente. Várias dessas feministas afirmam que, no passado, foram teóricas e
ativistas, mas, no presente, sentem-se apenas ativistas. Na atualidade, dizem, as
perspectivas teóricas lhes resultam “pouco úteis”, inacessíveis, esotéricas, de difícil
compreensão, excessivamente destacadas da prática e conduzindo a uma paralisia.34
No debate surge o consenso de que as perspectivas desconstrutivistas, que têm
monopolizado o discurso teórico feminista apagando as vozes de outras correntes,
sublinham exageradamente as diferenças, reagindo ainda aos primeiros momentos do
feminismo. As participantes na discussão teriam interesse numa teoria [feminista] que
informasse as práticas feministas, que fosse “útil”, colaborando para gerar e sustentar
movimentos de mulheres, desenvolvendo, por exemplo, perspectivas que oferecessem
meios para reconhecer essas diferenças e, ao mesmo tempo, formar uma nova base para a
solidariedade entre as mulheres.
A questão não seria procurar uma única visão ou voz, mas perguntar-se quais são os pontos
em comum entre as mulheres. Nesse sentido, o “feminismo global”, pensado como a
difusão do feminismo no mundo todo, constituiria um espaço privilegiado para desenvolver
tipos de teorias que essas feministas, orientadas para o ativismo, sentem que precisam. Isto
é, teorias “aproveitáveis”, a curto prazo, para traçar caminhos compatíveis com um projeto
feminista ao mesmo tempo universalista e capaz de reconhecer as diferenças. O interesse
em não apagar a diversidade de vozes leva a essas feministas -- que criticam as perspectivas
“pós” por sua exacerbada ênfase nas diferenças --, a reconhecer a “utilidade” de uma série
de trabalhos informados por essas perspectivas. E os trabalhos positivamente considerados
são reflexões centradas nas diferenças: a produção que discute a intersecção gênero/raça --
uma vez que, embora desenvolvendo argumentos teóricos, tende a responder perguntas
concretas -- e os trabalhos sobre multiculturalismo.35 Essas críticas reconhecem, também,
que essas perspectivas teóricas, quando operam com um foco internacional, enfatizam a
compreensão da diferença evitando a construção do outro como um “exótico”.
Essas discussões, portanto, não estão apenas marcadas por leituras negativas das
perspectivas desconstrutivistas. Nelas há, também, ambivalências em relação a essas
abordagens uma vez que elas possibilitam por em destaque as diferenças. Essas
ambivalências fazem sentido quando se pensa que, se o projeto feminista está ancorado na
tradição da “modernidade”, ele também está marcado por uma inerente tensão entre
universal e particular. As críticas às abordagens desconstrutivistas evidenciam, também,
34
Paralisadoras no sentido em que, na leitura que elas fazem dessas perspectivas, “nada pode ser nomeado, porque tudo se
desloca [shifts]” e “torna-se impossível dizer nós”, HARTMANN, Heide, BRAVO, Ellen, BUCH, Charlotte,
HARTSOCK, Nancy, SPALTER-ROTH, Roberta, WILLIAMS, Linda e BLANCO, Maria op. cit.
35
Esses últimos são avaliados positivamente com um argumento sugestivo: neste caso as teorias seriam “mais avançadas”
que a prática; elas outorgariam mais atenção ao assunto do que ele recebe no “mundo real”. A teoria, neste caso, seria
“boa”, pois criaria um conjunto de “valores úteis” que serviriam de parâmetro para as pessoas e porque teria tido, como
resultado, o aumento de atenção para essa questão.
19
confusões no que se refere ao significado de “fazer teoria”. Nesse marco de ambivalências
e confusões, algumas autoras “abandonam” gênero, propondo uma nova utilização da
categoria “mulher”. Vejamos quais são as particularidades dessa re-criação.
36
NICHOLSON, Linda, op. cit., p. 13.
37
NICHOLSON, op. cit., p. 22.
38
NICHOLSON, op. cit., p. 37.
20
tais”, ou “mulheres nas sociedades patriarcais”, mas em “mulheres em contextos
específicos”.
Após acompanhar o percurso das conceitualizações de gênero, essa reformulação da
categoria “mulher” resulta intrigante. Afinal, não é, precisamente, o esforço realizado a
partir das elaborações e reformulações de gênero o que possibilita pensar seriamente como
a idéia de “mulher” é concebida em contextos específicos? Que sentido tem, então, re-criar
a categoria mulher? Trata-se de um retorno a um recorte parcial da realidade? Ou estamos
frente a uma nova formulação com maior alcance explicativo que as conceitualizações de
gênero? Qual seria esse alcance explicativo?
Parece-me que essas últimas pergunta não estão em questão. A discussão, aqui, não está
situada (exclusivamente) no plano do conhecimento. O sentido da re-criação da categoria
mulher é, sobretudo, político. Segundo Nicholson, a categoria mulher nos termos por ela
propostos ofereceria uma dupla vantagem. Possibilitaria o reconhecimento de diferenças
entre mulheres, mas, uma vez que também permite mapear semelhanças, não inviabilizaria
a prática política – que, de acordo com a autora, não exige um sentido definido para o termo
mulher. É claro que se trata de políticas de coalizão – de políticas compostas por listas de
reivindicações relativas às diferentes necessidades dos grupos que constituem,
temporariamente, a coalizão.
O conteúdo político dessa categoria é sublinhado de maneira mais explícita por Cláudia de
Lima Costa, uma das autoras que propõem sua utilização no contexto do Brasil. Costa
resgata abertamente as contribuições do pós-estruturalismo para a teoria feminista – e, de
maneira significativa, essas contribuições são assinaladas a partir dos ganhos trazidos pelo
conceito de gênero. Segundo a autora, trata-se da negação epistemológica de qualquer tipo
de essência à mulher. Trata-se, também, da possibilidade de teorizar com mais destreza as
complexas e fluidas relações e tecnologias de poder.39 Mas, paradoxalmente no que se
refere à construção de conhecimento, a insistência na re-criação da categoria mulher,
abandona a utilização do gênero. Destaco esse aspecto, porque, em termos políticos, a
proposição faz todo o sentido. Costa pede um retorno à noção de mulher, considerando-a,
explicitamente, como categoria política – em vez do conceito de gênero cujos usos
perversos o tem, às vezes, transformado em masculinidade.40 De fato, e isso é claramente
expressado nos escritos de Chantal Mouffe, a re-elaboração da categoria mulher é um
esforço de compatibilizar as críticas ao essencialismo em suas diversas formas --
humanismo, universalismo, racionalismo --, com a formulação de um projeto político
feminista, mostrando como essa compatibilização não é incongruente.41
39
COSTA, Claudia de Lima: “O tráfico do gênero”, in: Cadernos PAGU, 11, 1998, p. 134.
40
COSTA, op. cit., p. 138.
41
MOUFFE Chantal: "Feminism, Citizenship, and Radical Democratic Politics". In BUTLER, Judith e SCOTT, Joan ed:
Feminists Theorize the Political. Routledge, 1992, p.382. Agradeço a Claudia de Lima Costa ter chamado minha atenção
sobre esse texto.
21
Nos termos de Chantal Mouffe, tratar-se-ia de repensar, também, a política feminista. Esta
deveria ser vista não como uma forma diferenciada de política destinada a perseguir os
interesses das mulheres como mulheres, mas destinada a transformar os discursos, práticas
e relações sociais nas quais a categoria “mulher” é construída numa maneira que implica
subordinação. E, segundo a autora, isso significa que esses objetivos podem ser construídos
de maneiras diferentes, mediante muitos e diversos feminismos.42
Concluindo
Talvez um dos aspectos mais sugestivos do percurso realizado seja ter mostrado os
descompassos e tensões, entre ativismo e formulações teóricas. E faço essa separação
propositalmente porque creio que, sem negar o aspecto político de qualquer teorização, é
importante perceber que se trata de atividades diferenciadas. Refiro-me a descompassos
pensando que as “políticas de coalizão” já eram implementadas vinte anos atrás, quando a
teorização se centrava numa idéia essencialista e identitária de mulher e numa concepção
monolítica de opressão e não em referenciais pós-estruturalistas. Isto é algo óbvio para as
que participaram do movimento feminista e lembram o delicado trabalho realizado para
lidar com as diferenças no “cotidiano” do movimento e, ao mesmo tempo, a articulação
dessas diferenças em torno de objetivos. Terá sido, então, o ativismo mais “avançado” que
a teoria? Nesse sentido parece-me válida a observação de Marilyn Strathern quando afirma
que a política radical não deixa de apresentar aspectos conservadores, na medida em que é
obrigada a operacionalizar conceitos ou categorias já compreendidos.43
Outro dos aspectos iluminados pelo percurso realizado é o caráter da relação entre teoria
social e interesses feministas. Nessa imbricação, nessa mútua alimentação, foi
desenvolvido e reformulado o conceito de gênero. Além de ter oferecido ferramentas
substantivas para um dos objetivos centrais do pensamento feminista (desessencializar a
subordinação da mulher), esse desenvolvimento e reformulação tiveram efeitos
significativos na teoria social. Penso concretamente na reelaboração de questões centrais na
ciência política, na sociologia e na antropologia, tais como as relações entre público e
privado, produção/reprodução, o estatuto das teorias de parentesco e sobre o significado do
poder. Precisamente, no marco dessa imbricação entre interesses feministas e teoria social,
gênero, ao não encaixar-se plenamente em certos critérios de “utilidade” política parece ser
abandonado pelo pensamento feminista. Resta descobrir o futuro que ele terá na teoria
social.
42
MOUFFE, op. cit., p. 382.
43
STRATHERN, The gender of the gift...
22
BIBLIOGRAFIA
ALCOFF, Linda:
“Cultural Feminism versus post-structuralism: the identity crisis in feminist theory”,
Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1988, vol. 13, n. 3, pp. .414-415.
BESSA, Karla,
Pós-modernismo.
Mimeo, IFCH, 1995.
BIDDLE, Bruce e THOMAS, E:
Role Theory: Concepts and Research.
John Wiley and Sons. New York, 1966
CONNELL, Robert:
Gender and Power.
Stanford University Press, California, 1987.
COSTA, Claudia de Lima:
“O tráfico do gênero”, in:
Cadernos PAGU, 11, 1998,
DE LAURETIS Theresa:
“Eccentric subjects: feminist theory and historical consciousness”
Feminist Studies, 16, 1, 1990.
DI STEFANO, Cristina:
"Dilemmas of Difference", 75-76, in Harding, Sandra: Whose Science? Whose knowledge? Thinking
from women's lives. New York, Cornell University Press, 1992
DURKHEIM, Emile e MAUSS, Marcel:
"De ciertas formas primitivas de clasificación. Contribución al estudio de las
representaciones colectivas" (1903) IN: MAUSS, Marcel: Institución y Culto.
Representaciones colectivas y diversidad de civilizaciones. Barral Editores,
Barcelona, 1971
ENGELS, Friederich:
The Origins of the family, private property and the state.
International Publishers, Nova York, 1972 (1891).
FIRESTONE, Shulamith:
A dialética do sexo.
Labor, Rio de Janeiro, 1976
GRANT, Judith:
Fundamental Feminism. Contesting the Core Concepts of Feminist Theory.
Routledge, New York, 1993.
HARAWAY, Donna:
Simians, cyborgs, and women. The reinvention of nature.
Routledge, New York, 1991.
HARTMANN, Heide; BRAVO, Ellen, BUCH, Charlotte, HARTSOCK, Nancy, SPALTER-ROTH, Roberta,
WILLIAMS, Linda e BLANCO, Maria:
“Bringing Together Feminist Theory and Practice: a Collective Interview”.
Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1996, vol. 21, n. 4
HEINEN, Jacqueline:
“Patriarcat”, in HIRATA, Helena, LABORIE, Françoise, DE DOARÉ,Hèléne e SENOTIER, Danièle
(coord): Dictionnaire critique du féminisme, Presses Universitaires de France, Paris, 2000.
23
hooks, bell:
“Postmodern Blackness”
Yearning, race, gender and cultural politics.
South End Press, 1990, pp. 24-26.
LEE, Jo-Anne:
Power, praxis, positioning and subjectivities, Atlantis. A women’s Studies Journal Revue d’études sur les
femmes- Connecting Practices Doing Theory,
Volume 21.1 , 1996, pp. 142-153.
LÉVI-STRAUSS, Claude:
A Família, origem e evolução.
Editorial Villa Marta, Porto Alegre, 1980
MIES, Maria:
“Liberating Women, Liberating Knowledge: Reflections on Two Decades of Feminist Research Action”.
Atlantis. A women’s Studies Journal Revue d’études sur les femmes- Connecting Practices Doing Theory,
Volume 21.1 , 1996, pp 10-25.
MOUFFE, Chantal:
"Feminism, Citizenship, and Radical Democratic Politics".
In BUTLER, Judith e SCOTT, Joan ed: Feminists Theorize the Political. Routledge, 1992
NICHOLSON, Linda:
“Interpretando o gênero”.
Revista de Estudos Feministas, vol. 8, n°2/2000, pp. 9-43.
OKEKE, Philomina:
“Postmodern Feminism and the Political Economy of Cross-Cultural Scholarship in Sub-Saharan Africa”.
Conference Paper: Praxis Nexus: Feminist Methodology, Theory, Community, janeiro 1996.
University of Victoria, Victoria, B.C.
RUBIN, Gayle:
"The traffic in Women: Notes on the "Political Economy of Sex"
in: REITER, Rayna: Toward an Anthropology of Women. Monthly Review Press, New York,
1975.
SAFFIOTI, Heleieth:
“Rearticulando gênero e classe social” in: COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI, Cristina: Uma
questão de gênero. Editora Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro, 1992.
SCOTT, Joan:
Gender and the politics of history.
Columbia University Press, 1988.
SHAPIRO, Judith:
"Anthropology and the study of gender" in:
Soundings, an interdisciplinary journal. 64, n. 4: 446-65, 1981.
SORJ, Bila:
“O feminismo na encruzilhada da modernidade e pós-modernidade”
in: COSTA e BRUSCHINI: Uma questão de gênero.
Fundação Carlos Chagas/Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992;
SOUZA LOBO, Elizabeth:
“O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho”, in: COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI,
Cristina: Uma questão de gênero. Editora Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, Rio de Janeiro, 1992.
STRATHERN Marilyn:
The Gender of the Gift.
24
University of California Press, 1988
____________________
“Between a Melanesianist and a feminist”, Reproducing the future, Anthropology, Kinship and the New
Reproductive Technologies.
Routledge, New York, 1992.
TARDUCCI, Mónica:
“Posmodernismo o posfeminismo? Una reflexión desde la antropologia.
In: TARDUCCI, Mónica: La producción oculta, III Congreso Argentino de Antropologia Social. Mesa de
Trabajo: Antropologia y Mujer.
Buenos Aires, Editorial Contrapunto, 1990.
VARIKAS, Eleni:
Féminisme, Modernité, Postmodernisme. Observátions pour un dialogue des deux côtés de l’océan.
mimeo, 1993
25