História Da Teologia e Do Cristianismo

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA E DO

CRISTIANISMO
Para compreender a vida e organização das comunidades cristãs hoje, é iluminador
conhecer o desenvolvimento histórico que resultou no panorama atual.
Esta enciclopédia, embora de origem católica, apresenta a história do cristianismo
segundo as grandes épocas da história mundial, para não relevar apenas os acentos da Igreja
católica, mas situar toda a evolução das comunidades cristãs no panorama da história
universal.
Abordamos, assim, o Cristianismo antigo, com a primeira comunidade cristã no seio do
judaísmo e a expansão a partir de Paulo Apóstolo; o cristianismo no mundo romano e as
perseguições na Antiguidade. Depois, o Cristianismo medieval, com a evangelização dos
germânicos e dos eslavos; Carlos Magno e o Império Franco; os estados pontifícios; o cisma
oriental; as catedrais; as universidades; as cruzadas; a inquisição. O Cristianismo moderno
considera os descobrimentos e a expansão da cristandade; a evangelização e culturas
indígenas; a reforma protestante; as igrejas cristãs; a religiosidade popular. O Cristianismo
contemporâneo focaliza o confronto do Iluminismo e do Cristianismo; a questão social e as
Igrejas cristãs; a Igreja Católica após o Concílio Vaticano II. A história da Igreja na América
Latina, desde o descobrimento até a data presente, é objeto de um verbete especial.
É apresentada também uma visão geral da Patrística, o tempo dos primeiros pensadores
cristãos no contexto de suas igrejas, época fundamental para as diversas Igrejas cristãs e seu
relacionamento ecumênico. São tratados, ainda, os Concílios Ecumênicos. Uma linha do
tempo da história do Cristianismo vem completar as informações aqui disponíveis.
Futuramente este eixo será enriquecido com assuntos relacionados, inclusive considerando
outras igrejas que não a católica.

TEOLOGIA BÍBLICA
O que comumente chamamos de Bíblia é a coleção, a biblioteca, por assim dizer, dos
escritos considerados sagrados pelo judaísmo e, de forma ampliada, pelo cristianismo. Por
um lado pode-se dizer que a Bíblia é “o livro da vida” das comunidades judaicas e cristãs, em
diversos sentidos. Ela reflete a vida destas comunidades e das pessoas a elas ligadas. Mas
exprime e alimenta também o sentido último de sua vida.
Tratamos, portanto, da Bíblia em sua relação com a comunidade na qual surgiu, a 
tradição religiosa judaica e cristã. O horizonte desta abordagem é, portanto, teológico, o que
se exprime pelo modo de chamar a Bíblia de “palavra de Deus”. Mas essa palavra de Deus se
encarna em linguagem humana, solidária com as circunstâncias históricas e condicionada
pelas características linguísticas e culturais do ambiente em que surgiu. O horizonte
teológico, por chamar à nossa presença as últimas referências do ser humano, obriga a
dedicar uma atenção honesta, séria e científica aos aspectos históricos, literários, sociais e
culturais que dão corpo ao “fenômeno Bíblia”.
Em primeira linha são abordados, nesta enciclopédia, os assuntos referentes à Bíblia do
judaísmo, chamada na tradição cristã de Antigo Testamento, e os referentes à parte de origem
cristã, o Novo Testamento. Estes artigos iluminam, sobretudo, os aspectos históricos,
culturais e literários.  Nesse contexto é tratada também a recepção judaica e cristã da Bíblia.
O modo de ler e interpretar a Bíblia é tratado no verbete Leitura e hermenêutica
bíblicas. No sentido da leitura contextual da Bíblia, atenção especial é dada à Bíblia na
América Latina. Também são tratados alguns assuntos emergentes, como a Bíblia na
perspectiva da mulher e a Bíblia e as culturas. Outras perspectivas atuais da leitura bíblica
serão integradas progressivamente a esta enciclopédia.
A Bíblia representa também uma tradição de orientação prática da vida para pessoas e
comunidades. Esse aspecto é abordado no artigo sobre teologia e ética na Bíblia.
Artigos específicos são dedicados aos temas relacionados com a fé, como sejam os
conceitos em torno da veracidade da Bíblia: revelação, inspiração e inerrância bíblicas, Bíblia
e Ciências e Bíblia e Magistério; e, por outro lado, aos aspectos históricos e culturais, como
sejam a formação e extensão do “cânon bíblico”, as línguas bíblicas, as versões bíblicas
antigas e modernas.
Johan Konings, SJ, FAJE, Brasil.

TEOLOGIA FUNDAMENTAL
“Estai sempre prontos a responder, embora com doçura e respeito, a todo aquele que
vos peça a razão da vossa esperança.” (1Pd 3,15)
A Teologia Fundamental é, no conjunto da teologia, o âmbito mais mobilizador de
questionamentos sobre sua identidade, seu objeto, seu método. Ela deita suas raízes nos
tempos do Novo Testamento. Não é sem razão que 1Pd 3,15 é considerado sua Carta Magna.
O anúncio da fé cristã nasce juntamente com a necessidade e o desafio de defendê-la e
justificá-la perante aqueles que dela pedem conta. Já no cristianismo nascente esse desafio
apresentou-se em duas faces: por um lado, no debate religioso com os judeus em torno da
interpretação do papel e identidade de Jesus e, por outro lado, na controvérsia de natureza
religiosa e política com os helênicos, uma vez que os cristãos eram acusados de “inimigos do
gênero humano”, ateus e ímpios porque não aderiam à religião da polis.
Ao longo da história do cristianismo, encontramos ecos disto que hoje chamamos
Teologia Fundamental nas tentativas empreendidas na defesa racional da fé em diversos
contextos. Da Antiguidade e da Patrística destacam-se vários nomes na defesa da fé face às
ameaças do paganismo e das tendências heréticas: Carta a Diogneto, Atenágoras, Orígenes,
Santo Irineu, Justino, Tertuliano, Eusébio de Cesareia e outros. Santo Agostinho, por
exemplo, fez a defesa da fé cristã no contexto em que os pagãos prediziam a ruína do Império
Romano devido ao abandono dos deuses em decorrência da conversão de Constantino ao
cristianismo. Os pagãos sentiam-se legitimados na sua acusação quando a queda do Império
se consumou. Com sua obra De civitate Dei, Santo Agostinho desconstrói o argumento dos
pagãos, falando da cidade da qual Deus é o fundador e rei, da cidade que vive como peregrina
neste mundo a partir da fé. Essa cidade confunde-se provisoriamente com a cidade terrena,
mas os cristãos, que participam das duas cidades, atuam na cidade terrena por devoção a
Deus.
Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino, com sua obra Summa contra gentiles, elabora
uma defesa da fé que se encontrava confrontada então com o judaísmo, com a invasão moura
e, especialmente, com a interpretação panteísta de Aristóteles. Não obstante o empenho de
Santo Tomás, o clima religioso medieval configurava um ambiente cultural de segurança e
tranquilidade para os cristãos, o que, por sua vez, dispensava o exercício da tarefa de uma
teologia fundamental propriamente dita. Seria impensável não crer… o imaginário religioso
preenchia todos os âmbitos da vida.
O esforço por elaborar a razoabilidade da fé nos diferentes contextos como uma
constante da Teologia Fundamental, mesmo antes de receber tal nomenclatura, desaconselha
uma conceituação unívoca. Ela evoca muitas conotações: apologética, ciência fundamental da
fé, prolegômenos à dogmática, teologia filosófica, filosofia da religião, fundamentos da
teologia e outros. Tal situação faz da Teologia Fundamental objeto de intenso debate entre
teólogos sobre sua epistemologia. Apesar do movimento dinâmico que a caracteriza, tanto em
termos terminológicos como no tocante à sua tarefa, é consenso afirmar que ela, ao longo do
tempo, assumiu a tarefa simultânea da justificação racional da fé cristã e da elucidação dos
fundamentos e do método da teologia enquanto ciência. Além da função de justificação, a
Teologia Fundamental inclui o estudo da Palavra de Deus e seu acolhimento pelo ser
humano. Ela valoriza de modo significativo o protagonismo do interrogante da fé, de modo
que o cânone de seus temas e, até mesmo, seu método evoluem em função do regime
histórico do espírito humano. Por isso, mais que em outras disciplinas, é da natureza da
Teologia Fundamental, enquanto área de fronteira, caminhar com as janelas abertas às
ciências elaboradas e renovadas pelas exigências do espírito humano.
Embora sua tarefa remonte à apologia do cristianismo antigo e à Apologética, sua
designação como Teologia Fundamental somente se impõe no século XIX. Aliás, ela herdou
da Apologética medieval seus três tratados clássicos:

 demonstratio religiosa, ou tratado da religião, no qual se analisava a


compatibilidade entre religião e razão e as questões levantadas pelo ateísmo à
fé;
 demonstratio christiana, ou tratado da revelação, onde se fundamentava
racionalmente a religião cristã como religião revelada, distinguindo-a de
outras religiões;
 demonstratio catholica, ou tratado da Igreja, onde se analisava a própria
Confissão como a religião adequada e como religião eclesialmente
institucionalizada, estabelecendo fronteiras com as outras confissões cristãs.

A ciência apologética se constitui no século XVII, no contexto das controvérsias


confessionais, como busca metódica de justificação da fé cristã. Ela marcou a teologia
católica nos tempos modernos, em função da Reforma, do racionalismo com o Iluminismo e
do ateísmo, sobretudo nas culturas nórdicas do planeta. Os diversos projetos de apologética
científica guardam em comum a vontade de se situarem no interior da fé e, ao mesmo tempo,
de quererem construir uma demonstração da fé como ciência objetiva com o máximo de
evidência.  A Apologética se configurou como a ciência da credibilidade racional da
revelação divina. Mas, seus limites como ciência objetiva foram se evidenciando já antes do
Concílio Vaticano II devido, em parte, à renovação dos estudos bíblicos que favoreceram
uma concepção de revelação menos extrinsecista e apriorística. A despedida do extrinsecismo
e do apriorismo na concepção de revelação inicia-se com a “apologética imanente“ de
Maurice Blondel. Aos poucos vai se desenvolvendo um embasamento antropológico da
Teologia Fundamental. Este processo de guinada antropocêntrica é consagrado pelo Vaticano
II, especialmente na Constituição Dei Verbum que, dispondo de um método histórico e
teológico, parte do acontecimento concreto da revelação consumado em Jesus Cristo.
A Apologética acumulou uma carga bastante negativa por parecer fixada na pura defesa
do status quo e, assim, transparecer mais um “salvar a verdade a todo custo” do que o amor à
verdade. No coração da crise da apologética e da busca de uma nova forma, vai se delineando
o estatuto epistemológico da reflexão dos fundamentos da fé. A Teologia Fundamental surge,
assim, desta crítica à apologética tradicional, assumindo, portanto, a vocação de “dar razões
de nossa esperança”, a quem nos questione ou diante de quem nos interpele. Ela propõe-se
reinterpretar esta tarefa e reinventar o método, guardando a tensão que lhe é intrínseca: por
um lado, é uma reflexão  teológica, isto é, a partir de Deus e de sua  revelação em Jesus
Cristo e, por outro lado, elabora seu discurso partindo das questões humanas fundamentais,
assumindo as formas de linguagem e os instrumentos de análises de compreensão do real.
Nesse sentido, ela atribui novo significado à tarefa apologética através do contínuo exercício
de uma autocrítica de sua função, método e linguagem. A nova configuração da Teologia
Fundamental ampliou seu elenco temático, processando um verdadeiro deslocamento ou
ampliação dos horizontes e fronteiras, o que a transformou, por assim dizer, no abrigo de
todos os temas de atualidade ou a disciplina que tratará de todos os fundamentos da teologia e
do cristianismo na interface com todas as dimensões ou aspectos da existência humana. Na
América Latina, a Teologia Fundamental assumiu o desafio da modernidade  num esforço
significativo de tratar todos os temas clássicos da teologia a partir da “opção pelos pobres”
como chave hermenêutica da autêntica recepção da mensagem cristã.
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Igreja e sociedade
Sumário
1 Relação Igreja-sociedade na história
2 Diferentes imagens explicativas da relação
3 Passagens importantes da Escritura
4 As aproximações das  diferentes denominações cristãs
5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação
Igreja-Estado
6 O desafio da secularização e a privatização da religião
7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais
7.1 O modelo da lei natural
7.2 Propostas de teologia pública
7.3  Propostas da teologia da libertação
7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa
8 Referências bibliográficas
1 Relação Igreja-sociedade na história     
A relação entre a Igreja e a sociedade mudou muito ao longo da história do cristianismo
e de acordo com as diferentes denominações cristãs. Desta forma, podemos ver momentos de
profunda oposição entre a Igreja e a sociedade, como durante as perseguições do Império
Romano, durante a Revolução Francesa ou os regimes liberais; e  tempos de conluio claro,
como durante o final do Império Romano, depois do Edito de Tessalônica do ano 380, ou
durante a Idade Média na Europa.
Como veremos, este problema pode ser apresentado de duas maneiras: de modo mais
reduzido, como relação entre Igreja e Estado – entendida como parte da sociedade – ou, de
modo mais amplo, enquanto relação geral da Igreja com a sociedade como um todo. Se o
principal problema foi a primeira forma de relação durante grande parte da história do
cristianismo, hoje é a segunda que está em evidência com o debate sobre a privatização das
religiões.
2 Diferentes imagens explicativas da relação
A grande imagem explicativa da relação Igreja-sociedade tem sido, historicamente, a
ideia das duas cidades presentes na história, a cidade de Deus e a cidade terrena, que propõe
Agostinho em A cidade de Deus. A imagem das cidades é uma teologia da história que foca
no amor que move aos homens, seja o amor-próprio, no caso da cidade terrena, ou o amor de
Deus, no caso da cidade celestial (Livro XIV, 28). Ambas sociedades humanas coincidem na
história e ambas se distribuem para os seres humanos existentes (Livro XV, 1). A origem e a
finalidade da cidade celestial é Deus. Além disso, parte da cidade terrena, a Igreja, simboliza
na história a Cidade de Deus (Livro XV, 2) Apesar do extenso tratamento desta imagem por
parte de  Santo Agostinho, é difícil saber com precisão a relação concreta que ele propõe para
ambas as cidades e ainda mais difícil saber a  relação da Igreja com elas. Esta dificuldade em
interpretar fielmente o pensamento de Santo Agostinho implica que essa mesma imagem
possa ser  entendida tanto como uma relação de colaboração entre a Igreja e a cidade terrena
quanto uma relação de antagonismo.
Outro paradigma explicativo importante é proposto pelo teólogo alemão Ernst
Throeltsch (1865-1923). Ele estudou as diferentes denominações cristãs em relação à sua
visão da sociedade, e isso lhe permitiu propor uma distinção básica entre elas. Assim,
Troeltsch diferencia, em sua obra Os ensinamentos sociais das igrejas cristãs, publicado em
alemão em 1912, a categoria “seita” ou comunidade eclesial, que se limita apenas a dar um
testemunho pelo seu modo de vida, e a categoria “igreja”, que considera que a comunidade
cristã tem responsabilidades na configuração do conjunto da sociedade (TROELTSCH,
2009).
Talvez a tipologia explicativa mais abrangente a este respeito seja oferecida pelo
teólogo americano H. Richard Niebuhr (1894-1962) em seu livro Cristo e a cultura
(NIEBUHR, 1951). Neste trabalho, o autor identifica cinco diferentes pontos de vista da
relação entre Igreja e sociedade: Cristo contra a cultura, o Cristo da cultura, Cristo na cultura,
Cristo e a cultura como paradoxo, e Cristo transformador da cultura. Niebuhr  associa, de
modo geral, cada categoria a uma confissão cristã. O autor favorece claramente a última
categoria, Cristo transformador da cultura, que ele identifica com sua própria confissão
calvinista.
3 Passagens importantes da Escritura
É possível ver uma base comum para a percepção do relacionamento das denominações
cristãs com a sociedade inspirada, principalmente, em Mt 22,15-21 e em seu chamado para
dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Esta base implicaria uma distinção
entre Igreja e sociedade,  em contraste, por exemplo, com a visão da tradição muçulmana que
tende a ver a religião e a sociedade como um todo inseparável.
Em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, Ulrich Luz considera, no entanto,
que não é possível desenvolver toda uma teoria do Estado a partir desta passagem, pois essa
não era a intenção do evangelista (LUZ, 2003, p.332-343). O autor do Evangelho de Mateus
visa, unicamente, mostrar a malícia dos fariseus ante Jesus, ao tentar apanhá-lo numa
armadilha, e como Jesus se saiu bem. Contudo, é certo que a história da interpretação da
passagem a identificou como chave para entender a relação Igreja-sociedade.
Especificamente, a tradição tem enfatizado o versículo 21, se perguntando se a obrigação de
obediência a Deus e a obrigação fiscal de pagar o tributo a César são do mesmo nível.
Para Luz, uma interpretação rigorosa da passagem deve reconhecer que a mensagem
principal é que a obediência a Deus está acima de qualquer outra, embora isso não signifique
necessariamente negar essas outras obediências. Assim, reconhece-se que a obediência ao
Estado é necessária, mas afirma que nunca pode ser superior à obediência a Deus. Deus é o
Senhor acima de toda autoridade. Luz adverte, porém, que um perigo a evitar na interpretação
dessa passagem é identificar a obediência a Deus com a obediência à Igreja.
Outra passagem importante que marcou a história das relações entre a Igreja e a
sociedade é Rm 13,1-7. Neste trecho da Carta aos Romanos, Paulo chama a submeter-se à
autoridade civil, porque “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1) Esta
afirmação tem sido historicamente usada para exigir da comunidade cristã a obediência ao
Estado e ao poder político. Foi, assim, uma passagem clássica para legitimar formas
absolutistas de governo.
Simon Légasse reconhece, estudando essa passagem, que Paulo faz uma chamada à
submissão ante as autoridades civis e que existe uma visão implícita subjacente sobre a
relação entre a Igreja e sociedade (LEGASSE, 2002, p.807-834). No entanto, Legasse afirma
que esta posição de Paulo responde a uma situação histórica particular: os primeiros
momentos da comunidade cristã, quando ainda não há perseguição por parte do Estado
romano e é possível encontrar cristãos e homens prudentes (como Sêneca) no governo do
Império. O ensinamento de Paulo é uma verdadeira teologia do poder civil, porque evidencia
que a autoridade política é necessária para a vida em sociedade e que é querida por Deus
como servidora de seus planos. A comunidade cristã, para viver comprometida com a sua
sociedade, deve reconhecer isto e respeitar a sua autoridade. No entanto, esta mesma teologia
legitimaria a desobediência ou a crítica ao poder se não cumprir o seu papel como um servo
do plano de Deus e da sociedade.
4 As aproximações das diferentes denominações cristãs
Além desta base bíblica comum, podemos identificar diferentes posições segundo a
interpretação dessas passagens em função da história e circunstâncias de cada confissão
cristã. Estas posições diferentes nos oferecem alternativas de interpretação das fontes cristãs
que nos permitem continuar a aprofundá-las.
Por um lado, a posição católica – do Papa Gelásio I, em 496, e seu argumento do Duo
sunt contra o imperador bizantino – tem defendido a existência de dois poderes
independentes, Igreja e Estado, um espiritual e outro temporal, com ordens jurídicas
diferentes: civil e eclesiástico. Ambas as ordens têm, no entanto, um quadro moral  comum
de fundo, que é normalmente expresso pela lei natural. Igreja e Estado são, portanto,
consideradas duas “sociedades perfeitas”, ou seja, elas têm em si mesmas todos os recursos
para atingir seu fim e não precisam da intervenção da outra. Elas se diferenciam pelo fim de
cada uma: o bem comum terrestre da sociedade e o bem comum espiritual da Igreja.
Considera-se que o fim da Igreja é superior ao do Estado e que o engloba.
Por outro lado, a ortodoxia diferencia Igreja e sociedade-Estado, mas fala de uma
relação “sinfônica” entre as duas, ou seja, há o reconhecimento mútuo e respeito sem a
pretensão de estar uma acima da outra. Esta visão é o desenvolvimento da experiência do
intervencionismo dos imperadores bizantinos na vida da Igreja Ortodoxa.
Lutero, reagindo à confusão entre o poder político e religioso da Renascença,
desenvolveu sua teoria dos dois reinos. Esta teoria, difícil de precisar em suas concreções,
assume que as esferas da Igreja e da autoridade política (o magistrado) são completamente
diferentes, sendo a da Igreja puramente espiritual, e sendo a ação temporal do Estado
necessária para conter o mal dos homens. Portanto, a Igreja não pode intervir na vida
temporal e a lógica do Estado não pode ser contrastada pela Igreja. Ao mesmo tempo, o
Estado tem a responsabilidade de lidar com a dimensão temporal da vida da Igreja.
Calvino tem uma visão mais positiva do Estado que Lutero e acredita que o Estado pode
contribuir para o bem-estar do homem, e não só para conter o pecado. Calvino propõe ainda
um sistema de equilíbrio de poderes dentro do governo. Nisso há forte influência da
concepção que propõe as profissões civis como vocações cristãs. Estado e Igreja devem
cooperar para o bem da sociedade, mas se o governante se levanta contra Deus, perde a sua
autoridade e deve ser deposto.
É particularmente interesse a compreensão da relação entre Igreja e sociedade que tem o
movimento menonita. Entende que há uma oposição necessária entre sociedade e Igreja, e
que esta última há de tornar-se uma sociedade alternativa que ofereça uma proposta de vida
contrária à da sociedade. A Igreja deve viver segundo o Evangelho, enquanto a sociedade
vive em oposição a ele.
5 Relação Igreja-sociedade na atualidade: o paradigma democrático de separação
Igreja-Estado
A interpretação tendenciosa medieval de A cidade de Deus, de Santo Agostinho, levou
ao paradigma clássico medieval de relação Igreja-Estado que Henri-Xavier Arquillière, em
1934, denominou “agostinismo político” (ARQUILLIERE, 2005). Para o autor, esta
interpretação da obra de Santo Agostinho identificava a cidade de Deus  com a Igreja e a
cidade terrena com o Estado e a sociedade. Cada um tinha um âmbito de atuação, mas o fim
da Igreja era superior, o que significava a subordinação do Estado.
Esta interpretação da relação Igreja-Estado, na prática, conduzia a uma situação oposta,
porque, sob o pretexto de servir à Igreja, os governantes frequentemente intervinham e
condicionavam sua vida interior. Um bom exemplo disso é o regalismo dos reis dos estados
nacionais dos séculos XVI e XVII, como no caso dos reis católicos da Espanha. Este
regalismo acentuou-se no século XVIII, com medidas como a necessidade de aprovação
prévia dos reis para publicar documentos papais em um país.
A Revolução Francesa, e o liberalismo extremo das revoluções do século XIX,
envolviam, em grande parte, uma reação de rejeição desta estreita relação entre Igreja e
Estado. De modo particular, a Igreja Católica experimentou essa posição de liberalismo
político como uma agressão e defendeu-se ao longo do século XIX e grande parte do século
XX. Mas, aos poucos, foi-se estabelecendo um diálogo entre os dois lados que acabou
permitindo à Igreja receber os valores da posição liberal.
Atualmente, existe um consenso prático – com algumas nuances – nas várias
denominações cristãs sobre o modelo político da democracia pluralista ocidental, o que
significa a separação Igreja-Estado. No caso católico, chegar a este consenso tomou tempo e
várias discussões ao longo dos séculos XIX e XX, pois as primeiras propostas democráticas
da Revolução Francesa foram apresentadas como explicitamente anticatólicas.
Historicamente, podem ser encontradas raízes deste modelo democrático no
pensamento católico clássico. Francisco Suarez, em De Legibus (Livro 1), fala sobre a origem
do poder do príncipe como vindo de Deus, mas tendo como origem a própria sociedade
humana.
Um primeiro passo de aceitação deste modelo foi feito por Leão XIII, com sua teoria da
tese-hipótese. Este ponto de vista é abordado de forma privilegiada na encíclica Libertas
Praestantissimum, de 1888. De acordo com este ponto de vista, a religião católica ainda é a
verdadeira fé, portanto, é responsabilidade do Estado proteger a verdadeira fé como parte do
bem comum (tese). Defende-se, assim, a existência de Estados confessionalmente católicos e
restrições ao culto público de outras religiões, mas não a prática privada. No entanto, se
aceita a tolerância com o culto público de outras confissões cristãs, se as circunstâncias
práticas o exigirem, em prol da paz social (hipótese). Um exemplo clássico desta situação
seria um país predominantemente protestante, onde seria impensável tentar impor um Estado
católico.
O grande avanço na Igreja Católica ocorre com o Vaticano II, em que o direito à
liberdade religiosa e à participação política, dois pilares da democracia moderna, são
afirmados explicitamente. No entanto, estes princípios não são novos na doutrina social da
Igreja, pois haviam sido já anunciados pelas rádio-mensagens de Natal de Pio XII durante a
Segunda Guerra Mundial (1942 e 1944).
Do ponto de vista da imagem de duas cidades de A Cidade de Deus, o Concílio, na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, explicitamente fala de uma “interpenetração”
(compenetratio) entre a cidade terrena e a cidade de Deus, o que implica uma relação entre
elas. Observando a complexidade desta inter-relação, a Constituição fala que tem um certo
grau de mistério (Gaudium et Spes n.40). O Concílio reconhece, assim, a ajuda mútua que se
prestam Igreja e mundo e como precisam um do outro (GS n.41-44).
Na declaração Dignitatis Humanae, o Concílio afirma que, como resultado da dignidade
humana, os seres humanos não devem ser coagidos na sua consciência e devem gozar de
liberdade religiosa. O Concílio não cai no relativismo ao declarar isso, pois afirma-se que há
uma obrigação moral de buscar a verdade. A chave é que esta verdade deve ser encontrada
livremente (DH n.2)
Na Constituição Gaudium et Spes, o Concílio, recolhendo ensinamentos anteriores,
reafirma o direito de participar da vida política como expressão da dignidade humana (GS
n.73) A garantia desta participação é o respeito, pelo Estado, dos direitos humanos dos
cidadãos.
O reconhecimento da autonomia e do valor da vida sócio-política, a afirmação explícita
do direito à liberdade religiosa e à participação política, como consequência da dignidade
humana, bem como a exigência de respeito, por parte do Estado, dos direitos humanos
implica a plena aceitação do paradigma da democracia pluralista moderna pela Igreja
Católica. Depois deste posicionamento, a doutrina social da Igreja segue reafirmando esta
posição a cada novo documento social. Ultimamente, há, no entanto, um novo matiz mais
crítico no tratamento do modelo das democracias ocidentais, que é acusado, especialmente,
de ter renunciado a uma moral mais profunda do que a mera ordem legal como base para a
organização social. Assim afirmava, por exemplo, João Paulo II, em 1991, na Centesimus
Annus parágrafo 47.
6 O desafio da secularização e a privatização da religião
O consenso sobre o paradigma da democracia pluralista moderna permitiu superar, em
certa medida, a controvérsia sobre a relação Igreja-Estado. No entanto, as mudanças sociais,
em particular o processo de secularização, trouxeram à tona uma controvérsia levemente
diferente, a da relação Igreja-sociedade ligeiramente diferente em geral. A partir de algumas
posições – como as de John Rawls (1995) e Marcel Gauchet (2005) – afirma-se que a
democracia real requer a redução das crenças para a esfera privada e qualquer presença
pública da Igreja é rejeitada porque ela supõe a imposição de crenças concretas ao conjunto
da sociedade. Se a justa separação de Igreja e estado é chamada laicidade, a rejeição da
presença pública de religiões pode ser chamada laicismo, a laicidade negativa ou excludente
(CONSELHO EDITORIAL, 2009).
O modelo para esta posição está representado pela proposta de Rousseau em O contrato
social para desenvolver uma religião civil que substitui, no espaço público, as religiões
particulares. A tradição republicana francesa inspira-se diretamente nestas posições, cuja
melhor expressão é a lei francesa de separação entre Igreja e Estado de 1905. Esta visão foi
apoiada pelas teorias de secularização de autores como Thomas Luckmann, que afirmavam
que o declínio da religião até o seu desaparecimento era um processo histórico necessário
(LUCKMANN, 1973).
Diante desta visão privatizadora da religião, o desafio para o pensamento teológico é
mostrar a necessidade e bondade de uma presença pública das religiões, como resultado da
necessária dimensão social da fé. Um fato contribuiu para este esforço em nosso atual mundo
globalizado: a crescente presença, nas sociedades ocidentais, de comunidades provenientes de
outras regiões do mundo, com diferentes religiões. Assim, as democracias ocidentais são
forçadas, hoje, a gerenciar a presença de novas religiões, particularmente a presença do
islamismo, que são regidas por diferentes parâmetros e que exigem uma presença pública
essencial para sua própria existência. Esta nova realidade obriga a repensar essas posições
mais privatizantes do aspecto religioso.
De fato, no pensamento filosófico e político atual, há uma clara recuperação do valor do
religioso e da sua contribuição para a vida pública. Jürgen Habermas fala mesmo de uma
época pós-secular em que é necessário reconhecer a contribuição das religiões para a vida
social (HABERMAS, 2006, p.122-155). Enquanto isso, José Casanova rejeita as teorias de
secularização e afirma que o declínio das religiões no Ocidente não é um processo necessário,
mas conjuntural e que hoje vivemos um processo de desprivatização da religião
(CASANOVA, 1994). Diante dessa crescente presença pública das religiões, Casanova
oferece um modelo de presença positivo que ele chama de “religião pública”. Religião
pública é aquela capaz de contribuir para a vida pública com as fontes de sua tradição, mas a
partir da aceitação plena das liberdades políticas e da separação religião-Estado. Os exemplos
de Espanha, Polônia, Brasil ou Estados Unidos mostram que uma presença pública positiva
das religiões é perfeitamente possível.
O desafio é, portanto, mostrar como as religiões – integrando plenamente a separação
religião-Estado – podem fazer uma contribuição para o bem comum da sociedade através da
sua presença pública. Tal posição é chamada laicidade positiva ou inclusiva. Esta é a posição
que a doutrina social da Igreja Católica tem defendido recentemente (cf. Caritas in Veritate
n.55-56).
7 Propostas de presença pública da Igreja nas sociedades plurais
Do ponto de vista teológico, atualmente uma questio disputata, no campo da relação
Igreja-sociedade, é como articular o discurso da Igreja em democracias pluralistas. Esta
questão é muito importante, porque a forma como o discurso é elaborado condiciona o tipo de
presença pública da Igreja na sociedade. Hoje encontramos diferentes modelos de articulação
do discurso religioso. Cada modelo envolve uma visão da Igreja e da sociedade diferente, e
poderia remeter, mesmo, às diferentes posições das denominações cristãs.
7.1 O modelo da lei natural
Na tradição da Igreja Católica é extremamente importante o paradigma ético da lei
natural, que sempre esteve presente no magistério católico, embora de modo mais discreto no
Concílio Vaticano II. Este paradigma implica a existência de uma ordem moral, que todo ser
humano pode reconhecer pela razão, que deve orientar a organização social e as leis e que a
comunidade cristã pode ajudar a descobrir, iluminando-a a partir do evangelho. O jesuíta
norte-americano John Courtney Murray propunha adotar o paradigma da lei natural para fazer
uma filosofia pública que estabelecesse as bases morais e políticas da sociedade pluralista
estadunidense dos anos 1950 e 1960 (MURRAY, 2005).
  Articular a presença pública da Igreja a partir do paradigma da lei natural implica a
suposição que existe um espaço para o diálogo sobre os princípios éticos nas sociedades
modernas. Esse diálogo seria totalmente racional e comum a todas as tradições religiosas. A
Igreja poderia ajudar nesse diálogo, sob a forma de um discurso racional semelhante ao de
outros atores. Um problema com este ponto de vista da sociedade é que, em ambientes não-
crentes e secularistas, esse modelo da lei natural é rejeitado, por ser considerado um
subterfúgio da Igreja para impor sua própria moral.
A própria visão da lei natural mudou e irá variar ainda mais no futuro. Se, no passado,
foi entendida de maneira muito rígida e excessivamente detalhada, hoje apresenta-se mais na
forma de consenso acerca de alguns princípios éticos entre as diferentes tradições culturais e
religiosas. São especialmente importantes, neste contexto, as contribuições de Jean Porter
(PORTER, 1999) e Lisa Cahill (CAHILL, 2013).
7.2 Propostas de teologia pública
Desde o início do século XX, tem havido um crescente interesse em mostrar as
consequências sociais da fé cristã em diferentes denominações. Um bom exemplo desta
preocupação foi a conferência do movimento ecumênico realizado em Oxford, em 1937, sob
o título “Igreja, comunidade e Estado”.
No ambiente católico, essa preocupação com as consequências sociais da fé vem do
século XIX e foi formulada de forma privilegiada no Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes,
n.30). A partir de então, foram desenvolvidas várias propostas de compreensão da teologia do
ponto de vista social. Entre essas propostas podemos mencionar a teologia da libertação, a
teologia política e a teologia pública. Em todas elas pode ser percebida a influência do
esquema teológico de Karl Rahner (MARTINEZ, 2002, p.216-251).
Dentre essas correntes, a teologia pública foi a que mais diretamente refletiu o discurso
público da Igreja nas sociedades pluralistas. A teologia pública implica um desenvolvimento
da ideia de John Courtney Murray de uma filosofia pública, mas que procura desenvolver um
discurso explicitamente teológico que seja ao mesmo tempo significativo e relevante para a
sociedade plural. Assim, esta forma de argumentação quer afirmar os dois polos: o respeito
pelo pluralismo moral e religioso da sociedade democrática e a integridade do discurso
teológico e das fontes cristãs. Isto supõe que se acredita que a Igreja e a fé cristã podem
contribuir para o bem comum da sociedade plural a partir de sua própria identidade e
respeitando a pluralidade de pontos de vista. No ambiente católico, é David Tracy que tem
uma metodologia concreta mais sólida para esta tarefa, o paradigma da correlação crítica
(TRACY, 1981). Por sua vez, o moralista David Hollenbach aplicou esta metodologia a
vários problemas sociais (HOLLENBACH, 2002).
7.3 Propostas da teologia da libertação
Embora o problema que a teologia da libertação enfrenta não seja diretamente o da
relação entre sociedade e Igreja, ser um modelo de mediação entre a revelação e a vida social,
inevitavelmente, envolve uma certa visão dessa relação. Sua origem puramente latino-
americana, mas, acima de tudo, sua enorme popularidade e influência, tornam sua abordagem
muito importante. A teologia da libertação tem origem nas posições do Vaticano II, que já
vimos, e que foram recebidas na América Latina através da Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano de Medellín em 1968. Nas conclusões dessa Conferência, se afirmava que,
ao se observar o homem latino-americano, se percebia em primeiro lugar a situação de
injustiça em que se encontra, e se descrevia a  ação salvífica de Deus na história, ante essa
situação, como um processo de libertação (Cf. EPISCOPADO LATINOAMERICANO,
Conferencias Generales, 1993, n.109-111).
Gustavo Gutiérrez desenvolveu essas intuições em sua obra programática Teologia da
Libertação – Perspectivas, de 1971. Gutierrez vê a salvação que Deus nos traz como um
processo de libertação com três fases, que se condicionam entre elas:  libertação política,
libertação do homem e libertação do pecado. Isto significa que a salvação de Deus deve ter
efeitos e supor mudanças na dimensão sócio-histórica. Esta salvação, o Reino de Deus, é um
dom de Deus, mas o homem contribui para ela através de sua luta histórica pela libertação,
luta impulsionada pela a ação de Deus nele (Cf. GUTIERREZ, 1972, p.236-241). Seguindo a
inspiração eclesiológica do Vaticano II, o papel da Igreja na sociedade seria, então, um
sacramento, mas o sacramento da libertação que Deus traz. Isto significa estar presente e
apoiar os seus membros comprometidos com essa luta sócio-histórica pela libertação (Cf.
GUTIERREZ, 1972, p.325-336).
Também Ignacio Ellacuría contribuiu para a fundamentação da tradição da teologia da
libertação, especialmente filosoficamente. Sua abordagem leva a uma perspectiva sobre a
relação Igreja-sociedade muito concreta. Para Ellacuría, a Igreja deve ser uma Igreja
institucionalizada por ser um sinal de salvação que é histórica. No entanto, esta
institucionalização tem sempre o perigo de cair em mundanização, colocando-a no centro da
sua própria atividade. Para evitar esse desvio, a Igreja há de ser consciente que seu centro está
fora de si mesma, o seu centro é o Reino de Deus. Isso permite que a Igreja abandone a
mundanização e avance para o Reino, que tem como protagonistas e vencedores os pobres e
os oprimidos (cf. ELLACURÍA, 2000). Ellacuría compreende a Igreja na sociedade como
uma Igreja que há de ter os pobres como principal sujeito e fundamento da sua própria
estrutura, e falará, assim, da verdadeira Igreja dos pobres (cf. ELLACURÍA, 1990, p.147).
Como podemos ver, a tradição da teologia da libertação, olhando para a relação entre
Igreja e sociedade e propondo um papel para a Igreja na sociedade, é muito exigente com a
integridade entre a vida da Igreja e a mensagem que ela apresenta. Esta integridade implica
colocar no centro os pobres e sua libertação, bem como concretizar sua mensagem em
práticas sócio-históricas em favor deles. O lugar da Igreja na sociedade é determinado,
portanto, pelo princípio da opção preferencial pelos pobres, que já se estabelecera em
Medellín e que se consagrou na Conferência de Puebla em 1979 (Cf. EPISCOPADO
LATINOAMERICANO, Conferencias Generales 1993, n.436).
7.4 Propostas de Igreja como comunidade alternativa
A partir da tradição anabatista, atualizada por John Howard Yoder (YODER, 1972), e
reforçada pela renovação da ética aristotélica de Alisdair McIntyre (MACINTYRE, 1987),
aparece, a partir dos anos 1980, uma nova posição na controvérsia entre Igreja e sociedade.
Podemos chamar esta posição de Igreja como comunidade alternativa. Esta posição,
defendida por autores como John Milbank (MILBANK, 1990) – fundador do movimento
Radical Orthodoxy, Stanley Hauerwas (HAUERWAS, 1981) e Michael Baxter (BAXTER,
1996), envolve uma visão relativamente negativa da sociedade. Estes autores consideram que
qualquer esforço para elaborar um discurso da Igreja em termos significativos e próximos aos
da sociedade envolve, necessariamente, concessões na integridade da identidade cristã da
comunidade. Por isso, eles consideram que o objetivo deve ser, sim, cuidar da vida interna da
comunidade cristã, se esforçando para ser fiel ao modelo do Evangelho. Esta centralidade da
vida e da identidade da comunidade é entendida a partir da ética das virtudes, pois visa
fortalecer o caráter da comunidade.
A comunidade cristã torna-se, assim, uma comunidade de contraste, que confronta os
valores e as práticas da sociedade. Este tipo de articulação do discurso cristão envolve uma
visão da relação Igreja-sociedade que coloca no centro a oposição entre elas. A Igreja
participa da missão salvífica de Cristo compartilhando o sofrimento e a rejeição que ele viveu
em sua própria sociedade. A Igreja pode fornecer e iluminar a vida social, mas o fará
enfatizando o contraste, confrontando a sociedade em seus valores e a partir do testemunho
de uma vida alternativa.
Não devemos ver estas três posições como mutuamente excludentes, mas sim como
complementares ou como diferentes formas de estar presente na sociedade, segundo as
circunstâncias que se apresentam. O paradigma da lei natural permite chegar a consensos
morais de grande força normativa e autoridade, que podem ser muito importantes para graves
problemas morais. O paradigma da Igreja como uma comunidade alternativa é uma
perspectiva interessante para pensar a presença da comunidade cristã em ambientes
secularizados que podem corroer a sua identidade. O paradigma da teologia pública é uma
proposta moderada e construtiva, especialmente válida para situações de grande pluralismo
religioso e moral.
O desafio, hoje, para as denominações cristãs está em sua capacidade de serem religiões
públicas, segundo os termos de José Casanova. É necessário partir de um reconhecimento
teórico e prático completo dos valores da democracia pluralista moderna, mas manter uma
voz própria, inspirada pelas fontes cristãs, e capaz de fornecer uma visão crítica da sociedade
– especialmente em defesa dos mais pobres – quando se fizer necessário. Junto a isso, o
crescente pluralismo religioso da sociedade moderna está começando a exigir que a presença
e a voz pública da Igreja na sociedade sejam capazes de entrar em diálogo e promover ações
com outras religiões presentes na sociedade, como pode ser com o islamismo. Uma palavra
comum dita pelas religiões na sociedade em favor da justiça tem uma força sem paralelo, que
deve ser explorada.
Gonzalo Villagrán Medina, SJ.  Faculdade de Teologia de Granada, Espanha.
Textoriginal em

TEOLOGIA PRÁTICA E PASTORAL


A teologia prática e pastoral ocupa-se com a reflexão teológica e análise sobre a ação da
Igreja, compreendendo a prática das comunidades eclesiais e das pessoas que professam a fé
cristã, na perspectiva maior do povo de Deus e da vocação batismal comum a todos os seus
membros, a serviço da missão evangelizadora da Igreja. Contempla tanto as práticas que
afetam a vida interna da Igreja quanto a presença da Igreja no mundo. A dupla denominação
prática e pastoral adotada nesta seção da enciclopédia tem presente o esforço das últimas
décadas, tanto no mundo protestante quanto no mundo católico (nesse último especialmente a
partir do Concílio Vaticano II), em esclarecer o estatuto epistemológico e o objeto desta área
de conhecimento e estudo teológico, bem como em definir a melhor nomenclatura a ser
adotada.
Envolvendo-se com temas, situações, demandas e desafios atuais que requerem uma
tomada de posição por parte da teologia e da Igreja, é uma área de produção de saber
teológico que promove a interação entre diferentes disciplinas teológicas e a práxis da fé
cristã, numa mútua fecundação. Pode ser considerada também uma teoria da ação e para a
ação da Igreja nos mais diversos contextos de sua presença, à luz da revelação e do
magistério da Igreja, em diálogo com outras áreas de conhecimento. Ao mesmo tempo em
que promove uma reflexão crítica que objetiva iluminar a ação da Igreja, busca também
aprofundar e explicitar a relevância da teologia e da ação eclesial no mundo de hoje.
Nessa perspectiva, esta seção apresenta um conjunto de verbetes de caráter introdutório
e sintético sobre temas fundamentais de teologia prática e pastoral: evangelização,
pastoral/pastoreio, catequese (iniciação cristã), fé e justiça, prática ecumênica, teologia
pública, comunidades eclesiais de base e opção pelos pobres.
Pensados no contexto da América Latina, à luz da evangélica opção pelos pobres e com
abertura ecumênica, cada verbete apresenta aspectos fundamentais ao estado atual da
reflexão, articulando elementos de reflexão bíblica, aspectos históricos e iluminação teológica
em atenção aos atuais desafios socioculturais.
Os textos configuram-se como subsídios preciosos para a introdução ao estudo de
teologia prática e pastoral, tanto para estudantes de teologia quanto para pessoas engajadas
diretamente no pastoreio e na pastoral, sem qualquer pretensão de uma apresentação
exaustiva dos temas abordados. Permanece a demanda de aprofundamento com estudos
complementares.
Concebidos a modo de verbetes matriciais, tem-se como perspectiva a ampliação das
possibilidades de estudo, diálogo e debate em torno destes temas com a inclusão de verbetes
suplementares.
Cleusa Andreatta. IHU, Unisinos. Brasil

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