Ontologia Na Modernidade

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FILOSOFIA DA

RELIGIÃO

Danilo Vitor Pena


Deus e religião
nos sistemas
de pensamento
modernos
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Reconhecer os impactos do antropocentrismo renascentista nas concepções


religiosas do Ocidente.
>> Identificar os argumentos lógicos estabelecidos por Descartes e Leibniz para
a constituição de uma teologia racional e suprarreligiosa.
>> Descrever a retomada da teologia natural estoica no argumento Deus sive
Natura da filosofia espinoziana.

Introdução
As revoluções promovidas pelo advento do Renascimento e da filosofia ocidental
moderna abalaram as questões filosóficas sobre Deus, ao suscitarem novas
abordagens e critérios investigativos. No mundo pós-renascentista, novos para-
digmas alheios a supostas autoridades institucionais, incluindo as eclesiásticas,
passaram a suspeitar da subjetividade humana e a promover abordagens cada
vez mais racionalistas.
Na modernidade, os fundamentos da cristandade passaram então a ser con-
frontados pelo racionalismo, em sua metodologia cartesiana. A defesa da razão
à luz da virada antropológica do humanismo favorece, assim, uma atitude crítica
em relação à religião, desvinculada de tradições institucionais.
2 Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos

Neste capítulo, você estudará questões referentes à investigação filosófica


sobre a religião a partir de movimentos que marcaram o período moderno e
algumas de suas consequências: o Renascimento cultural, as reformas religiosas
e as filosofias surgidas diante desse cenário a partir da filosofia cartesiana.

O Renascimento e a Reforma
A Europa dos séculos XV e XVI passou por um intenso movimento de revisão e
renovação dos seus marcos epistemológicos. Foram significativas mudanças
que atingiram profundamente seu processo histórico, todas as dimensões
daquela sociedade e, por consequência, grande parte do mundo que estava
ligado à hegemonia europeia no Ocidente. Isso desencadeou uma generalizada
inquietação intelectual e questionamentos aos padrões da cultura medieval
definidos pela Igreja Católica.
Chamado de Renascimento dada a redescoberta e revalorização das
referências culturais da Antiguidade Clássica, esse movimento, além de
influenciar o mundo artístico, cultural e científico, mexeu no cenário ge-
opolítico e repropôs a compreensão religiosa, até então monopolizada
pela cristandade. O antropocentrismo entrou em rota de colisão com o
teocentrismo, à medida que a Igreja Católica ia perdendo também seu
alcance filosófico, diante das novas propostas reflexivas.
Adotando novos caminhos para a construção de uma ciência com base
na experimentação e observação da natureza, os pensadores e escritores
do Renascimento desenvolveram uma mentalidade criticamente propositiva
diante da passividade do medievalismo. Entre as características que devem
ser ressaltadas, destaca-se a questão da filosofia racionalista, “Descartes
pretende estabelecer um método universal, inspirado no rigor da matemática e
no encadeamento racional. Para ele o método é sempre matemático [...] conhe-
cimento completo e inteiramente dominado pela razão” (JAPIASSU, 2012, p. 105).
O racionalismo defende e propõe a explicação lógica das coisas e dos fenô-
menos a partir de postulados e axiomas para operar sobre eles dedutivamente,
dinamizando notavelmente a ciência. Com o advento da Idade Moderna, esse
modelo de Descartes (cartesiano) servirá às filosofias desenvolvidas como
instrumento de quantificação do mundo, mediação e fundamentação da certeza
de um método dedutivo, distinguindo-se do sistema transcendente de Platão
— em que conhecimento é uma reminiscência da contemplação de ideias — e
também da postura teológica de Santo Agostinho — iluminação divina.
Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos 3

Com uma nova e otimista atitude diante da realidade, os renascentistas


acreditavam no progresso e na capacidade das pessoas e nos valores huma-
nistas e universais. Com base nesses estudos, transitando por diversas áreas
do saber, fundamentou-se a valorização do espírito humano, das capacidades,
das potencialidades e das diversidades pessoais, sobressaindo o homem como
ser racional, centro de todas as coisas. Esse antropocentrismo alterou não
somente as relações filosóficas, mas também importantes referenciais de fé.
Incide em tal cenário filosófico as questões religiosas da época. Marcada
por conflitos que se arrastavam desde os tempos antigos (como o combate
a heresias e os cismas de 1054 e 1378 que dividiram a unidade católica em
Oriental e Ocidental), a Igreja estava naquele momento preocupada com o
enfraquecimento da sua autoridade no plano político e religioso, afinal o
teocentrismo perdera espaço para o antropocentrismo. O poder político da
Igreja de Roma baseava-se precisamente na preponderância religiosa de um
segmento diferenciado do resto da sociedade, que exercia sua função de
intermediário entre a divindade e o povo. Contra essa preponderância, mas
sem negar a totalidade dos fundamentos dogmáticos, reformadores promove-
ram uma nunca vista instabilidade aos pilares herdados do mundo medieval.
Somava-se a esse enquadramento a excessiva centralização na organização
política e administrativa da Igreja Católica e o alvorecer das consciências, sob
o sinal das ideias modernas, que criticavam esse centralismo político-religioso.
Outro elemento importante foi a criação dos chamados estados-nação.
Essas instituições materializavam uma soberania real de uma forma muito
mais firme do que ocorrera com a monarquia durante a Idade Média. Também
importante nesse processo foi o controle dos benefícios eclesiásticos. As
reformas vieram para fornecer aos monarcas argumentos políticos, jurídicos,
administrativos e teológicos necessários para aumentar o poder dos reis às
custas da Igreja e da nobreza.

A fé protestante, a partir do século XVII, firmemente ancorada nas Escrituras e


em seus símbolos, confissões e catecismos de onde extraíra seu corpus doutri-
nal, percebeu cedo a necessidade de articular esse entendimento confessional e
espiritual com sua vida no mundo, com sua presença na sociedade humana. Não
pretendia repetir o ethos católico medieval (CAVALCANTE, 2017, p. 454).

O nome de Martinho Lutero está naturalmente associado ao conceito da


Reforma Protestante. Foi a partir dele que as revoluções religiosas na Europa
moderna se iniciaram de forma institucionalizada, dando origem à divisão
da cristandade ocidental em duas realidades político-religiosas: de um lado
a Europa que se manteve fiel à Igreja de Roma e de outro os territórios e
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comunidades protestantes que apoiaram esse itinerário luterano. Outros


reformistas que deixaram de obedecer ao pontificado para organizar sua
vida religiosa em torno de realidades alternativas à Igreja Católica formaram
as chamadas Igrejas Protestantes.
Para Lutero, o homem está direta e individualmente relacionado com
Deus. A fé não está vinculada à aceitação passiva de um dogma proclamado,
questionando duramente a hierarquia da Igreja. Assim, tratou de separar a
realidade corpórea da Igreja da sua relação com o mistério. Sua oposição não
supunha inicialmente um rompimento com a tradição, mas apenas mudar a
Igreja naquilo que julgava necessário: a salvação pela fé, a crítica à venda
de indulgências e a leitura e interpretação da Bíblia em língua própria de
cada nação, já que antes da reforma a Bíblia era conhecida apenas em latim.
Declaração central da reforma luterana, a Confissão de Augsburgo, em
1530, foi a primeira formulação da fé protestante, em que se destacava (CON-
FISSÃO..., 2013, documento on-line):

„„ a supremacia da palavra de Deus sobre a organização hierárquica da Igreja;


„„ o princípio da fé como caminho único para a redenção gratuita do
homem por meio de Jesus Cristo, sem atribuir aos méritos humanos a
libertação do pecado (Figura 1).

Figura 1. Gravura do século XVII retratando a Confissão de Augsburgo apresentada


ao então Imperador do Sacro Império Romano Carlos V, em 1530.
Fonte: Confissão... (2013).
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Numa segunda fase da Reforma, o luteranismo absorveu a compreensão


de igreja reformada. Em Zurique, o sacerdote de formação humanista Ulrico
Zuínglio iniciou o movimento reformista na Suíça, independentemente de
Martinho Lutero. Assim, declarou a autoridade única da Bíblia e organizou
a Igreja sem o papel do mediador entre homem e Deus, descrevendo uma
teologia moral e sexual rígida. Nesse sentido, influenciou quem de fato liderou
essa fase do protestantismo: João Calvino.
A influência de Calvino na liderança da Reforma cristã em Genebra o coloca
ao lado dos princípios protestantes, mas rompendo com o luteranismo. Sua Igreja
afirmava estar mais ligada à escritura, e que o sacrifício de Cristo é um evento
histórico único e irrepetível. Nesse sentido, promovia teologicamente uma predes-
tinação absoluta, em que Deus já havia escolhido as pessoas que seriam salvas.
A Igreja reformada tornou-se uma adaptável ao modo de vida surgido
com o capitalismo, já que a riqueza era vista como fruto do trabalho. Sendo
o trabalho decorrente do talento dado por Deus, a riqueza provava a bênção
divina. O calvinismo, por exemplo, reinterpretava o mundo terreno e espiritual
de acordo com a lógica do capitalismo nascente.
Em termos gerais, esse movimento remeteu o humano para dentro dos pró-
prios referenciais. No plano epistemológico, o sobrenatural tornou-se tanto
quanto materializável com opções distantes da metafísica religiosa. Nesse con-
texto, a compreensão de Deus e a vivência religiosa na modernidade não empurra
o divino para dentro da dimensão espiritual da vida, mas exige que a religião
aceite, na plataforma cognitiva, seu lugar em uma sociedade que vai se tornando
culturalmente múltipla e religiosamente ligada a princípios antropológicos.

Antes da separação com a Igreja Católica, Lutero foi monge agosti-


niano. As obras de Santo Agostinho exerceram influência em várias
questões filosóficas e teológicas ao longo do movimento protestante. Algumas
de suas teses chegam a ser citadas na Confissão de Augsburgo, realçando
afinidades doutrinárias, sobretudo naquilo que diz respeito à doutrina da graça
e da justificação pela fé.
Característicos da teologia de Lutero são os denominados quatro pilares: solus
Christus, sola scriptura, sola gratia e sola fides, respectivamente somente Cristo,
somente a escritura, somente a graça e somente a fé. Unificando essas questões
em uma visão eclesial está a centralidade da revelação de Deus em Cristo, em que
se percebe especial relação com Agostinho, para quem a encarnação de Jesus Cristo
é logos, o verbo do Pai (na teologia trinitária), a Palavra de Deus, que é caminho
de graça e comunicação salvadora. Também na doutrina da Predestinação há essa
interação, já que tal conceito em Lutero aparece como uma decorrência lógica da
própria noção de que apenas Deus é causa soteriológica (ou seja, que diz respeito
à salvação) do homem, o que encontra paralelo em Agostinho (PRADEAU, 2012).
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O racionalismo de Descartes e Leibniz


e a dimensão religiosa
A escolástica foi a corrente filosófica que marcou toda a Idade Média, sob a
influência tomista e a herança agostiniana. No século XIV, essa filosofia cristã
entrou em declínio, abrindo espaço para uma nova epistemologia, de bases
racionais desvinculadas com um compromisso institucional com a cristandade,
mas também interessada, de alguma forma, em levar a questão da fé para
os critérios da modernidade.
Com o humanismo e o Renascimento, o método de investigação assumiu-se
científico pela investigação experimental. Nesse momento, as autoridades
impostas somente pela tradição viram ruir seus fundamentos. A Igreja, nesse
cenário, testemunhou sucessivas divisões e perda de influência. “Para a
Igreja Católica houve três grandes catástrofes no campo da fé: o cisma entre
Oriente–Ocidente (1054), a Reforma (século XVI) e a condenação de Galileu.
Desde então aprofundou-se o abismo entre a Igreja e a cultura moderna”
(ZILLES, 1991, p. 23).
As pautas filosóficas promoveram uma guinada que tirou o protagonismo
de Deus, central para os medievos, colocando o homem como tema prioritário.
Logo, tendo diante de si um mundo regido não mais pela interação com o
sagrado, mas pela luz natural da razão, a filosofia moderna tem um desafio
inédito na abordagem religiosa.
A colaboração do filósofo e matemático francês René Descartes (1596 –1650)
a essa discussão foi de vanguarda, já que é considerado o pai do racionalismo
e criador do método cartesiano, que consiste basicamente no ceticismo meto-
dológico, que duvida de tudo que pode ser duvidado, ressaltando a dimensão
intelectiva do homem enquanto um ser racional por natureza, com a capacidade
de alcançar o conhecimento. Mais do que isso, sua própria existência é definida
pelo ato de pensar.

Não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado,
desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e
máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de
aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais
alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida
lhe permitam atingir (DESCARTES, 1973 p. 42).

As ideias de Descartes exerceram, em muitos aspectos, a maior influência


individual para o avanço da ciência no século XVII. Suas investigações revolu-
cionaram descrições matemáticas e também os estudos das causas físicas e
Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos 7

natureza das coisas, construindo um sistema por meio de longas cadeias de


deduções, entre a última realidade ontológica e os muitos casos concretos
de experiência (SILVA, 1996).
Munido de seu método, ele acreditava que a matéria não possuía qualida-
des inerentes, sendo apenas o material bruto que ocupava o espaço, dividindo
a realidade em res cogitans (consciência, mente) e res extensa (matéria). Para
Descartes, Deus criou o universo como um perfeito mecanismo de moção
vertical, que funcionava de forma determinista e sem a intervenção divina
(DESCARTES, 1973).
René Descartes tinha o objetivo de oferecer um caráter epistemológico
à questão teológica. Assim, constatou a existência de ideias inatas que não
podem ser originadas de outras ideias, e assim indefinidamente, sob o risco
de cair em uma espiral interminável. Inferiu que a ideia de Deus, “[...] na
medida em que a infinitude é o predicado de todos os predicados de Deus”
(SILVA, 1996, p. 66), é a causa das ideias inatas, que, tendo sua origem em
Deus, sempre são claras e distintas na forma como se impõem à realidade.
Desse modo, na filosofia de Descartes Deus é a fonte dos pensamentos e tudo
o que dele provém é verdadeiro. Tudo aquilo que portar clareza e distinção
tem sua evidência garantida por Deus, “[...] verdade suprema e razão de ser
de todas as demais” (SILVA, 1996, p. 68).
Para argumentar sobre a prova da existência do ser perfeito, Descartes
elaborou uma metodologia que parte da presença da ideia de Perfeito no
homem que não pode ser causada em si mesmo. Também ofereceu um ar-
gumento que prescindia da existência do Perfeito da sua própria essência.
Essa metafísica da subjetividade parte da intelecção do sujeito, afinal o que
ele faz, como pensa e os desdobramentos disso exigem um eu pensante. De
fato, não é possível afirmar cartesianamente “Deus é” sem antes afirmar
cogito, ergo sum — penso, logo existo.

A ideia de Deus é inata no homem. Depois, de maneira ontológica, vai da ideia à


existência. Para determinar a existência de Deus é preciso saber antes o que é
Deus, a essência divina. Conhecemos de maneira clara e distinta que Deus é o ser
mais perfeito e que de sua perfeição também faz parte sua existência (ZILLES,
1991, p. 26–27).

Assim, para demonstrar a existência de Deus, o ponto de partida seria o


conhecimento da essência divina. Entretanto, para conhecer o que Deus é, não
seria preciso um discurso racional, pois dele já teríamos ideia clara e distinta.
Com elaborações que também seguiram o racionalismo e a lógica, o mate-
mático e filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716) foi figura central
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da filosofia moderna e da matemática. Assim como Descartes, ocupou-se da


busca da verdade pela metodologia racional, mas com distinções críticas nas
questões sobre Deus. Para ele, o critério cartesiano não oferecia uma teoria
lógica e objetiva da verdade.
Para Leibniz, clareza e distinção são avaliações subjetivas de uma ideia, e
não critérios que estejam presentes nela. Assim, a relação ordem/desordem
é em Leibniz dinâmica e importante, pois “[...] Deus é tanto o criador da har-
monia preestabelecida do universo como o grande matemático ordenador da
combinação de mônadas do universo” (ESTRADA, 2004, p. 199). A ordem do todo
justifica a desordem das partes: essa é a defesa da causa de Deus para Leibniz.
Na filosofia de Leibniz, Deus não pode mudar sua natureza, nem agir fora
da ordem. Com isso, a pergunta que naturalmente surge é: como Deus pode
ser dotado de uma vontade soberanamente boa e criar um mundo tão cheio de
imperfeições? Entre os argumentos que apresenta na obra Ensaios de teodiceia,
Leibniz (2013), infere que Deus não age sem razão guiada pelo princípio do
melhor, nem sempre designado pela nossa experiência tão limitada no espaço
e no tempo. Dessa forma, Leibniz “[...] sustenta que não há incoerência lógica
entre a existência de Deus e a do mal (ESTRADA, 2004, p. 208). Assim, reivindica
legitimidade para o pleno uso da liberdade humana, sendo essa a origem de
muitos males humanos, combinados com forças alheias. Criados livremente
por Deus e inseridos harmonicamente na dinâmica da criação, há aqueles que
agirão mal e outros que sofrerão por essas escolhas. Sendo assim, o filósofo
indica que o caminho é assumir a condição humana com suas alegrias e dores.
É importante ressaltar a similaridade entre Descartes e Leibniz no que diz
respeito à substância divina: “Deus é o maior, ou — como diz Descartes — o
mais perfeito dos seres, ou então um ser de uma grandeza e de uma perfeição
suprema, que envolve todos os graus. Esta é a noção de Deus” (LEIBNIZ, 1988,
p. 153). Para ambos os filósofos, tudo que há encontra sua razão ulterior
direcionada para uma razão suficiente, em si mesma independente de outra
anterior, sendo ela imutável e perfeita.

No livro Descartes e a morte de Deus, Joceval Bittencourt (2015) siste-


matiza os limites da metafísica de René Descartes em um itinerário
que reflete sobre o fenômeno da “morte de Deus” na filosofia ocidental e sua
relação com o pensamento cartesiano. O resultado da afirmação do homem
como centro em torno do qual gira toda a forma legítima de conhecimento da
verdade e possibilidade de razão é criticamente apresentado, revisitando os
fundamentos metodológicos do filósofo francês.
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O conceito de Deus em Spinoza: substância


universal
O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632–1677) foi norteado pelo racionalismo
de Descartes, sem, contudo, aceitar seu entendimento acerca das substâncias
regentes do mundo.

O que o atraía era a concepção de Descartes de uma substância homogênea subli-


nhando todas as formas de matéria, e outra substância homogênea sublinhando
todas as formas da mente; essa separação da realidade em duas substâncias
finais era um desafio à paixão unificadora de Spinoza e atuou como um esperma
fertilizante sobre as acumulações de seu pensamento (DURANT, 1996, p. 157).

Decidido a superar a compreensão cartesiana sobre o ser perfeito, Spi-


noza (2009) (Figura 2) voltou sua atenção não somente à metafísica da
questão religiosa sobre a natureza divina. Na obra Ética, publicada origi-
nalmente em 1667, o filósofo interpela as doutrinas religiosas tradicionais
com a ideia primordial de Deus, não enquanto uma pessoa, um ente ou fora
da natureza, e sim como causa racional, sendo, portanto, nessa condição,
responsável pela produção de todas as coisas.

Figura 2. Escultura de Spinoza em Amsterdã, sua cidade natal. O filósofo racionalista


atribuiu a Deus o conceito de substância única, afirmando não haver nenhuma
outra realidade possível que esteja fora dele.
Fonte: Wikimedia Commons (2010).
10 Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos

Nesse sentido, Deus é causa imanente da realidade e, por isso, as criaturas


detêm certas propriedades da divindade, além de dividirem com ela algo de
sua essência. Para construir sua tese sobre a imanência, o ponto de partida
do filósofo é a questão da substância.

Para a possibilidade de relacionar a essência divina à existência, Spinoza delimita


uma identidade entre a existência e a potência constituinte da essência de Deus,
definindo Deus como substância existente em si e por si, ou seja, substância
incriada, infinita e eterna (SILVA, 2009, p. 51).

Spinoza aborda a eternidade e infinitude expondo a eternidade da subs-


tância divina. Sendo Deus eterno, não se pode pensá-lo presente no tempo,
ou na totalidade do tempo, pois começo e fim não são atributos possíveis
ao eterno e infinito. Assim, Deus é substância, ou seja, o que existe por si e
em si é concebido (SILVA, 2009).
Com o conceito de substância, Spinoza quer alertar para o modo como o
conhecimento da realidade é possível. Ele entende que só há conhecimento
verdadeiro quando há aproximação das leis pelas quais a natureza é regida,
que são determinantes da própria natureza.
Partindo desse pressuposto de Deus-natureza, o alcance do conheci-
mento verdadeiro é dado por essa dimensão divina, cujo restante é apenas
expressão. Assim, Spinoza coloca o pensamento e seu potencial intelectivo
como atributos infinitos de Deus, defendendo que o ser perfeito não é puro
espírito, como defendido pela tradição teológica, mas também matéria.

Para Spinoza, a existência de toda e qualquer coisa só é possível se admitirmos a


existência da natureza divina, isto é, a Natureza Naturante, de onde todas as coisas
provêm, e a qual não carece de nada para existir, pois existe em si e é concebida por
si, sendo assim definida por Deus, substância eterna e infinita (SILVA, 2009, p. 53).

Para Spinoza, a res extensa e a res cogitans são atributos da substância,


enquanto para Descartes esses dois elementos também são substâncias,
daí a clássica diferença entre os dois filósofos. Spinoza atribui ainda a Deus
o poder de agir segundo a sua natureza, e como causa livre disso resultam
todas as outras coisas.
O filósofo não usa o termo natureza com uma única interpretação. Na
verdade, pode abarcar como possibilidades válidas tanto a essência quanto a
totalidade do real. Quanto à expressão Deus sive Natura (“Deus ou natureza”),
ele não pretende referir-se ao mundo visível, e sim à causa primeira, imanente
a tudo quanto existe, imposta pelas leis da natureza. Não há desvios na
Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos 11

ordem natural, e, portanto, a possibilidade do sobrenatural, que justificaria


os milagres, por exemplo, não é aceita na teoria da substância universal.
Nessa visão, a substância (Deus) é causa imanente das coisas e manifesta-
ção da potência divina. O homem está inserido na natureza e sua realização
passa pela progressiva consciência da sua inter-relação e dependência dos
outros seres. Esse é uma visão que diverge de Descartes, que previa o acesso
ao conhecimento do ser perfeito por si mesmo, no protagonismo racional
do sujeito.
Em Spinoza (SILVA, 2009), o eu é solidário, em sinergia com a realidade ao
seu redor. Como parte da natureza, o homem não pode fugir do mundo, sendo
sua pretensão integrar-se nele. Por meio do corpo, dos modos de pensamento
ou da mente, o humano toma consciência da totalidade da qual faz parte e
com que deve viver em harmonia.

Referências
CAVALCANTE, R. Reforma Protestante, 500 anos: ensaio de crítica histórica. Rev. Pistis
Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 9, n. 2, p. 441-463, 2017. Disponível em: https://periodicos.
pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/view/14447. Acesso em: 30 set. 2020.
CONFISSÃO de fé apresentada ao Invictíssimo Imperador Carlos V, César Augusto, na
Dieta de Augsburgo, no ano de 1530. Teologia Luterana, 25 out. 2013. Disponível em:
http://teologiaeliturgialuterana.blogspot.com/2013/06/. Acesso em: 30 set. 2020.
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ESTRADA, J. A. A impossível teodiceia — a crise da fé em Deus e o problema do mal. São
Paulo: Paulinas, 2004.
JAPIASSU, H. A crise das ciências humanas. São Paulo: Cortez, 2012.
LEIBNIZ, G. W. Ensaios de Teodiceia — sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem
e a origem do mal. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
LEIBNIZ, G. W. Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural,
1988.
PRADEAU. J-F. História da Filosofia. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2012.
SILVA, F. L. E. Descartes: a metafísica da modernidade. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
SILVA, Í. F. Sobre a prova da existência de Deus em Benedictus Spinoza. Revista CO-
NATUS — Filosofia de Spinoza, v. 3, n. 5, p. 51–54, 2009. Disponível em: file:///C:/Users/
windows/Downloads/Dialnet-SobreAProvaDaExistenciaDeDeusEmBenedictusSpinoza-
3713119pdf. Acesso em: 30 set. 2020.
SPINOZA, B. Ética. 2 ed. São Paulo: Autêntica, 2009.
ZILLES, U. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 1991.
12 Deus e religião nos sistemas de pensamento modernos

Leituras recomendadas
BITTENCOURT, J. A. Descartes e a morte de Deus. São Paulo: Paulus, 2015.
COTRIM, G. Fundamentos da filosofia: história e grandes temas. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006.

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