Beccari - Quem Tem Medo Da Arte Contemporânea

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Quem tem medo da arte contemporânea?

Marcos Namba Beccari1

Introdução

As artes visuais fornecem-nos infindáveis possibilidades estéticas de interpretar o


mundo e de dialogar com os mais diversos olhares. Especialmente em nossa época, ainda
marcada por neos e pós “em aberto”, é crescente o acesso a obras antigas e atuais, que se
estendem à expressão diversificada dos modos de ser: da tatuagem às intervenções urbanas,
além, é claro, dos leilões com alta circulação de capital. Como constata Celso Favaretto
(2011, p. 108), “[...] o alargamento da experiência artística, interessada na transformação
dos processos de arte em sensações e vida, permite que se pense na possibilidade de se
fundar uma estética generalizada que dê conta das maneiras de viver, da arte de viver”.
Estamos no terreno da vida como obra de arte, expressão comum tanto a Nietzsche (2001,
§ 299) quanto a Foucault (2006, p. 288-293).
Mas se perguntarmos como e onde se situam as artes visuais no mundo contemporâneo,
a maioria das respostas imediatas, apesar da multiplicidade das posições e dos contextos,
tende a bifurcar-se entre duas formas de valorização: a das inovações e rupturas (das
convenções normativas e/ou das instituições) e a de uma conciliação perdida entre arte
e vida cotidiana (denunciando o hermetismo especializado da arte contemporânea). “Tal
divisão conceitual induz à noção errônea de que uma corrente chamada realista dominou

1. Professor do Depto. de Design e do Programa de Pós-Graduação em Design da UFPR. Doutor em Educação


pela USP. E-mail: [email protected].

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as práticas de representação populares, enquanto experimentações e inovações ocorriam


em uma arena distinta (ainda que permeável) da criação artística modernista” (Crary, 2012,
p. 14).
Neste ensaio, pretendo discorrer sobre como, na realidade, os valores que orbitam
a arte contemporânea são mais complexos, e até mais voláteis, do que sugere o esquema
ruptura-conciliação. De um lado, o imperativo de um “retorno à vida”, largamente
difundido desde meados do século XIX, busca justamente romper com aquilo que se
considera falso e degenerado. De outro, a própria premissa de uma consciência crítica
das convenções artísticas e das condições históricas tem se tornado demasiado geral e ao
mesmo tempo demasiado específica: como distinguir hoje, afinal, as rupturas contra a
instituição da arte e a institucionalização das rupturas?
A desconfiança para com a noção de ruptura é pressuposto em comum, por exemplo,
entre Jonathan Crary e Hall Foster, dois críticos influentes que diferem em abordagem e
foco de estudo. Para Crary (ibidem), “[...] o mito da ruptura modernista [no fim do século
XIX] depende fundamentalmente do modelo binário realismo versus experimentação”. E
para Foster (2014, p. 191-192), referindo-se às neovanguardas do século XX, “[...] cada teoria
fala das mudanças em seu presente, mas só indiretamente, reconstruindo os momentos
passados tidos como o começo dessas mudanças, e antecipando os momentos futuros em
que se projeta a conclusão dessas mudanças: daí o efeito à posteriori, o duplo movimento
[...]”.
Ambos põem em relevo uma mesma chave discursiva: a de um olhar em retrospecto
a partir do qual a noção de ruptura possa fazer sentido contra o pano de fundo de uma
tradição normativa. Mas explicitar tal estratégia serve menos para deslegitimar sua
eficácia narrativa (que permanece operante) do que para nos fazer questionar o quão coeso
e imediato acreditamos que o contemporâneo seja.
Nesse ínterim, a abrangente articulação filosófica dos valores que orbitam o
discurso em questão parece-me mais diligente que uma análise historiográfica delimitada.
De modo enviesado e seguindo em sobrevoo, conduzo meu argumento com definições
ampliadas e atenho-me às artes visuais, furtando-me da escultura, das instalações etc.

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Após problematizar o constructo da vanguarda histórica, examino os enunciados que me


parecem mais notórios na arte contemporânea e encerro com a questão da relação entre
arte e vida, contrastando a noção de fim da arte com a de vida como obra de arte. Mais do
que defender um ponto, enfim, meu intuito é desembaraçar alguns dos nós que perfazem
a arte contemporânea.

O realismo canônico das vanguardas

Do francês avant-garde, o termo vanguarda designa o aspecto “à frente de seu tempo”


dos movimentos artísticos das duas primeiras décadas do século XX, como o dadaísmo e o
construtivismo russo. De acordo com o crítico alemão Peter Bürger (2008), em sua Teoria
da vanguarda, o objetivo dos vanguardistas era aniquilar a instituição da arte burguesa para
reconectar arte e vida. Mas se o termo vida indica alguma coisa que tenha sido perdida, é
para servir como fim teleológico, de modo que as categorias artísticas possam ser descritas
em termos de evolução. Com efeito, o autor propõe uma teoria na qual a vanguarda
assume um papel central para a compreensão da própria história da arte, considerando
esta insuficiente para explicar aquela.
Tomando ao pé da letra a retórica romântica das vanguardas, Bürger entende que a
verdadeira revolução artística só poderia acontecer uma vez e de uma vez por todas, sendo
qualquer retomada uma repetição inócua que converte a transgressão em norma. Daí que
o autor identifica, com o teor melancólico da Escola de Frankfurt (da qual ele deriva), a
confirmação do fracasso da vanguarda pelas neovanguardas dos anos 1950-60, concluindo
que “[...] nenhum movimento artístico pode, hoje [1976], de modo legítimo, alimentar mais
a pretensão de, como arte, achar-se historicamente mais avançado que outros movimentos”
(ibidem, p. 118).
Essa narrativa de um antes e um depois da revolução, de uma origem gloriosa e
uma repetição farsesca, é o que fundamenta o historicismo persistente que julga a arte
contemporânea fútil, redundante e degenerada – seja em relação à vanguarda histórica,

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seja em relação ao realismo clássico.2 Não obstante, boa parte dos críticos do modernismo
e/ou do pós-modernismo cultiva um ideal perdido, muitas vezes não declarado, a partir do
qual o presente possa ser condenado.

Esse tropo de tragédia seguida por farsa é sedutor [...], mas não basta
como modelo teórico, quanto menos como análise histórica. No entanto,
impregna as atitudes em relação à arte e à cultura contemporâneas, em
que primeiro constrói o contemporâneo como pós-histórico, um mundo
de simulacros feito de repetições malogradas e pastiches patéticos, e
então o condena como tal a partir de um ponto mítico de escape crítico
para além de tudo isso. No final das contas, este ponto é pós-histórico,
e sua perspectiva é mais mítica onde pretende ser mais crítica. (Foster,
2014, p. 32-33).

Examinando com maior acuidade, o impacto cultural e social das vanguardas foi
consideravelmente mais limitado do que dá a entender o historicismo que o sustenta. Em
primeiro lugar, porque o esteticismo da “arte pela arte”,3 principal alvo dos artistas de
vanguarda, nunca foi hegemônico na arte oitocentista, tampouco expressava qualquer
tradição vagamente definida como clássica, acadêmica ou realista (Cf. Cassagne, 1997). O
culto esteticista da arte como esfera superior à vida, afinal, parece indicar uma conduta
mais idealista do que realista.
Em segundo lugar, ainda no século XIX artistas como Gustave Courbet na pintura
e Gustave Flaubert na literatura defendiam o realismo em oposição, respectivamente, ao

2. Mesmo Bürger procurava solucionar um debate entre a arte realista defendida por Lukács e a vanguarda
histórica defendida por Adorno. Sua saída foi considerá-las como partes dialéticas que lhe permitiam
“[...] inferir o sentido do todo” (ibidem, p. 162). A isso é interessante acrescentar que, de acordo com Eva
Cockroft (2000), a difusão global do expressionismo abstrato nos anos 1950-60 fez parte de uma estratégia
política de propaganda norte-americana que incluía, entre outras coisas, o combate ao avanço do realismo
socialista no ocidente.
3. Vertente oitocentista que reivindicava autonomia total da arte em relação à moral, à política, à ciência
e às convenções em geral. Equivalente ao “Movimento Estético” britânico (Aestheticism), representado
principalmente por Oscar Wilde, a escola da “arte pela arte” (L’art pour l’art) designa parte da produção
literária francesa entre, aproximadamente, as décadas de 1850 e 1870, incluindo autores como Charles
Baudelaire, Théophile Gautier, Edmond e Jules de Goncourt, Leconte de Lisle e Ernest Renan.

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neoclassicismo e ao romantismo (Cf. Finocchio, 2004). Embora a genealogia do realismo


nas artes seja deveras insidiosa, basta-nos saber que o realismo francês coexistia com o
impressionismo da Belle Epoque, o simbolismo de Gauguin, o orientalismo de Gerôme
etc. Todos esses movimentos eram, cada qual a sua maneira, “realistas”, isto é, não
apenas pleiteavam uma representação mais fidedigna de suas realidades, como também,
principalmente, buscavam reconciliar arte e vida.
Mesmo a posterior abstração de grande parte da arte e da literatura modernas, por sua
vez, também pode ser entendida como uma resposta realista a uma narrativa desgastada
sobre a realidade social. A novidade da arte moderna, portanto, não residia na denúncia
ao realismo como modelo pictórico em declínio, nem tanto no combate a um esteticismo
supostamente em vigor, e sim na prerrogativa de que o domínio convencional e normativo
prescreve o lugar da prática artística. Com isso, o exercício artístico configurou-se como
luta por legitimidade, só que não mais em adequação aos modos de legitimação, e sim na
revelação de seus limites.
De acordo com André Bazin (2016), tal enunciado já era conhecido entre os artistas
da esquerda: inicia-se com Jacques-Louis David na Revolução Francesa, passa por Courbet
na Comuna de Paris e revigora com Tátlin e Brecht na Revolução Russa. O caso mais
emblemático, contudo, parece ser o Salon des Refusés (Salão dos Recusados), que em 1863
expunha as obras dos artistas recusados no salão oficial de Paris, dentre os quais Manet e
Cézanne. Conta-se que o público dos recusados, embora motivado a ridicularizar as obras
ali expostas, ultrapassou a visitação do salão oficial (Boime, 1969). Mas se o interesse pela
pintura em geral era cada vez mais limitado a círculos restritos, sobretudo em comparação
com o teatro e os musicais – e na virada para o século XX o cinema entra em jogo –, a ideia de
obra-prima já podia contar, ainda que de modo não intencional, com certa incompreensão
do público.
O projeto da vanguarda, por conseguinte, já soava “histórico” muito antes de ser
classificado como tal, posto que a condição necessária para que sua narrativa faça sentido
é a dimensão normativa que sempre permeou a arte enquanto instituição. Colocar a
vanguarda nesses termos não significa descartá-la historicamente como “pura retórica”,

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como decretou Jürgen Habermas (1992), pois ela foi de fato eficaz em revelar, num tempo
e lugar específicos, tanto os limites convencionais da arte quanto os do próprio enunciado
vanguardista. Por isso não havia ingenuidade alguma por parte de Duchamp quando, em
1917, ele assinou com um pseudônimo um urinol virado de cabeça para baixo: o ready-
made funcionou tanto para desmistificar a arte quanto para remistificá-la. Se já não era
novidade o fato de que a regra do jogo é arbitrária, alguém só precisava admitir e expor tal
arbitrariedade como obra.

Vicissitudes da arte contemporânea

O que se costuma denominar, não sem dissenso, arte contemporânea são os


movimentos que surgem após a Segunda Guerra Mundial. De acordo com Leo Steinberg
(2008, p. 107), em Outros critérios, tornava-se cada vez mais capciosa a presunção historicista
de um avanço progressivo da arte, sendo necessário, em vez disso, “[...] redefinir a área de
sua competência testando seus limites”. Isso implicou, como resume Foster (2014, p. 42-43),
decompor os procedimentos da vanguarda

[...] em uma proposição que explora a dimensão enunciativa da obra


de arte (como na arte conceitual), em um procedimento que lida com
o serialismo de objetos e imagens no capitalismo avançado (como no
minimalismo e na arte pop), em um distintivo da presença física (como
na arte site-specific dos anos 1970), em uma forma mimética crítica de
diversos discursos (como na arte alegórica dos anos 1980, envolvida
com as imagens míticas da grande arte e dos meios de comunicação de
massa), e, por fim, numa investigação das diferenças sexuais, étnicas e
sociais de hoje [...].

Foster consegue, como poucos, depurar com profundidade o conjunto abrangente


desses movimentos, mas ainda o descreve como ramificação do projeto vanguardista.
Penso que, embora não se possa negar tal influência, a arte contemporânea é mais
dispersa em suas estratégias e modos de operar. Nesse sentido, os “outros critérios” de

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Steinberg (2008) parecem-me mais acurados: uma vez que os parâmetros discursivos se
sobrepuseram às obras per se, as rupturas grandiloquentes cederam espaço a deslocamentos
sutis e contextuais. Foster mostra-se consciente disso, mas sua inclinação lacaniana o leva
a considerar, num historicismo refinado, as neovanguardas como retornos traumáticos da
vanguarda que, por sua vez, nunca teria sido assimilada na “ordem do simbólico” (Foster,
2014, p. 46).
Se isso faz algum sentido, a meu ver é o de que permaneceu intacto o selo hermético
que a vanguarda procurou romper. A prova imediata se deu em 1961, quando Piero
Manzoni preencheu, enumerou e assinou noventa latas contendo suas próprias fezes,
batizando o conjunto de Merda de artista. Mas o exemplo mais elucidativo talvez seja a peça
Art and Culture de John Latham, artista conceitual do grupo Fluxus. Em 1966, Latham
retira da biblioteca da escola onde lecionava uma cópia do livro Arte e Cultura, de Clement
Greenberg, e convida alunos e colegas para sessões de degustação: cada um deveria arrancar
uma página do livro, mastigá-la e cuspir o resultado em alguns recipientes. Na sequência,
com o auxílio de uma série de produtos químicos, o artista esperou vários meses para
a decomposição das páginas. Após várias advertências da biblioteca, que lhe cobrava a
devolução do livro, Latham entregou essa mistura em seu lugar, sendo então demitido da
instituição. A maleta de Latham, contendo tudo o que sobrou daquele ato, tornou-se parte
do acervo permanente do MoMA.4
Pois bem, a contemplação disso (hesito em escrever “obra”) solicita não apenas
conhecer tal episódio, mas também os paradigmas greenberguianos ali questionados. Tais
paradigmas remontam o modelo formalista do alto modernismo, isto é, a ideia de que
o valor de uma obra reside em seus elementos formais (linhas, cores etc.) e não em seu
conteúdo ou em qualquer elemento extrínseco. Mas ao passo que Greenberg (2013) se valia
desse modelo para, por exemplo, incluir o expressionismo abstrato de Jackson Pollock
como parte do legado vanguardista, a crítica contra ele por parte da arte conceitual recaiu

4. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/81529>. Acesso em 26 jul. 2017.

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novamente na concepção de uma arte evolutiva e linear – historicismo que sustenta tanto
a narrativa vanguardista quanto a de Greenberg.
É o que fica evidente em A arte depois da filosofia, onde Joseph Kosuth (2006, p. 217),
em 1969, opunha-se abertamente a Greenberg e sentenciou que “toda arte é conceitual”,
uma vez inaugurado por Duchamp o momento em que a arte seria capaz de questionar sua
própria natureza. Mas não para por aí. Partindo de um entendimento um tanto peculiar
de Wittgenstein, Kosuth acreditava que a filosofia, incapaz de dizer o indizível, havia
chegado ao fim e se deixado substituir pela arte conceitual, esta sim capaz de “mostrar
o indizível”. E para concluir de maneira magistral, Kosuth (ibidem, p. 225-226) ainda
conseguiu recuperar, embora com outro léxico e por outros caminhos, o antigo culto
esteticista: “Na verdade, a arte existe apenas para seu próprio bem. [...] A única exigência
da arte é com a arte. A arte é a definição da arte”.
Desnecessário pontuar que a arte conceitual não se resume ao manifesto de Kosuth,
bem como a arte contemporânea não se limita à arte conceitual. Mas os casos mencionados
servem para ilustrar como parte da arte contemporânea tornou senão mais estáveis as
categorias tradicionais, mais hermético o discurso artístico. Não surpreende, com efeito,
que um historiador como Ernst Gombrich (2007, p. 304-329) tenha praticamente ignorado,
em seu esquema evolutivo da representação visual, a arte abstrata e tudo que a sucede.
Pautado na matriz moderna da história da arte (de Wölfflin a Panofsky), Gombrich limita-
se a identificar no período pós-guerra uma tendência iconoclasta mediante o avanço das
mídias de massa (demonizadas por Guy Debord e exaltadas por McLuhan), situando
assim uma guinada abstrata da arte contra o fotorrealismo popular. Eis nada menos que,
novamente, historicismo: algo como pensar que a fotografia simplesmente veio a substituir
a arte realista.
Quanto a isso vale assinalar que, por um lado, o discurso abstracionista não se
reduz, como se costuma pensar, a uma oposição direta ao realismo pictórico. Artistas
como Malevitch ou Yves Klein colocavam-se no limiar de qualquer sintaxe, mas sem
abdicar de certa literalidade (seja das sensações ou dos conceitos) ao investigarem, em
suas obras, a imagem de uma realidade última. Por outro lado, o realismo pictórico não

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apenas “sobreviveu” às vanguardas, como também foi amplamente desenvolvido na


arte contemporânea: inicialmente com a arte pop, passando pela arte abjeta, pela arte
de apropriação e, claro, pelo hiper-realismo. Enquanto a crítica antirrealista continuava
presa ao paradigma clássico da busca da representação ideal, a ordem do dia consistia em
problematizar a própria noção de representação.
No caso da arte pop, os objetos de consumo (dos enlatados às Marilyns) eram não
apenas representados, mas reproduzidos com a ambição de que sejam exatamente iguais
aos que consumimos. Essa literalidade tornava ambíguo não o objeto representado, mas
o modo como se lhe representa: Andy Warhol era complacente, crítico ou indiferente
ao espetáculo do consumo? Ele mesmo responde: “[...] basta olhar para a superfície de
minhas pinturas, filmes e de mim mesmo, e lá estou eu. Não há nada por trás” (Warhol in
Goldsmith, 2004, p. 87-88, tradução minha).
O enfoque da arte abjeta, por sua vez, retorna ao objeto representado, que nesse
caso é escatológico: corpos violados, vômito, sangue, fezes etc. Em comparação com as
ambiguidades da arte pop, a ideia de flagrar e expor a abjeção, de modo a trazer um trauma
à superfície, parece responder a certa desilusão. É como se a década de 1980, depreciada
pelo diagnóstico pós-moderno, tivesse sido exorcizada da fantasia de um bem-estar social
regado a consumismo. Desfeita a ilusão, o corpo disforme ou mutilado – como exalta com
frequência a arte de performance5 – torna-se, pela graça da unção intelectual (o discurso
feito sobre ele), o indício mais puro do real.
Não por acaso ganham força, ainda nos anos 1980, a arte de apropriação e o hiper-
realismo. A primeira deve ser lida ao pé da letra: imagens impressas eram fotografadas e
expostas em galerias e museus. Desse modo, Sherrie Levine reproduzia mestres modernistas
para questionar a unicidade pictórica de suas obras; Richard Prince se apropriava de
imagens publicitárias e da moda para esvaziá-las de sentido; Barbara Kruger compunha
fototextos para problematizar o valor referencial da representação. Por sua vez, o hiper-

5. Ursula Uchoa (2014) identificou os dez recursos historicamente mais utilizados na arte de performance:
a nudez, a indumentária vermelha, a carne crua, o sangue, a “pintura vaginal”, alimentos ou líquidos,
mordaças ou amarras, o gelo e a action painting (pintura com o corpo).

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realismo é também auto descritivo: parte-se do anteparo fotográfico para produzir na tela
de pintura uma aparência “mais real” do que o real.
Tomados em conjunto, tanto a arte de apropriação quanto o hiper-realismo propõem
duplicar perfeitamente a realidade, seja pelas minúcias pictóricas que excedem o olhar
humano, seja pela reprodução mecânica que pretende tornar o olhar mais acurado
criticamente. Mas o que a pintura hiper-realista consegue duplicar não é outra coisa além
de uma codificação fotográfica, acreditando que esse código seja natural e transparente.
E lá onde a arte de apropriação busca desnaturalizar o real, tentando explicitar as ilusões
que o constituem, restam indistintos os signos que estão por toda parte e ao mesmo tempo
em lugar nenhum. Em suma, o enunciado “isto não é uma pintura, embora se pareça com
uma” podia ser facilmente confundido, ou mesmo substituído, por “apesar de não parecer,
isto é sim uma pintura”.
Nesse ponto somos levados a questionar como a retórica artística foi motivada a
tornar-se cada vez mais enigmática. Posto que a vanguarda histórica foi capaz de, como
vimos, institucionalizar as críticas de seus predecessores modernistas, não é trivial o fato
de que os primeiros programas norte-americanos e europeus de mestrado/doutorado em
belas-artes tenham sido implementados no final dos anos 1950 e começo dos 1960 (Foster,
2014, p. 25): a partir de então, muitos dos artistas que obtiveram algum prestígio atuavam
como críticos e professores. Em paralelo, com o avanço midiático a atenção transferia-se
dos ateliês para as grandes exposições, leilões e produções excêntricas (cujo expoente maior
talvez seja Jeff Koons e sua grife de arte multimilionária). O mercado artístico passou
então a ser tratado não apenas em termos de signo de prestígio, mas também de carteiras
de investimento, estabelecendo um vínculo direto entre a crítica e a gestão profissional
de arte (ibidem, p. 120). Daí que o interesse do grande público despontou paradoxalmente
na mesma medida que sua incompreensão, uma vez que os próprios artistas passaram a
reivindicar um acesso ao mercado de arte como a um salão nobre de status, predileção e
influência.
É nesse sentido que Lorenzo Mammi (2012, p. 14) sentenciou que a arte contemporânea
“Regride à função pré-renascentista de carregar questões, sem ser, ela mesma, uma questão”.

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Isso vale, a meu ver, inclusive para as reações contrárias a esse paradigma circunscrito ao
mercado de arte. No Brasil da década de 1970, por exemplo, tivemos a contra-arte ou arte
de guerrilha, associada a artistas como Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles.
De acordo com Artur Freitas (2007, p. 331), uma das repercussões desse movimento no
imaginário artístico brasileiro consistiu no mito “[...] de que qualquer coisa pode ser arte,
uma vez que o fenômeno artístico passa a ser visto como algo indiscernível das banalidades
da vida”. Dessa maneira, a contestação do juízo estético, do mito do gênio, das legitimações
do mercado ou da crítica etc. parece aludir a algo similar ao papel que a religião cristã
desempenhava ainda no alto-renascimento, isto é, como um pretexto onipresente e
inescapável.
No entanto, a arte contemporânea, como tal, obviamente não se reduz aos discursos
que procuram descrevê-la. E o que me parece mais interessante nesse sentido são artistas
isolados que, aparentemente menos ambiciosos, se destacam pela dispersão peculiar de suas
trajetórias. São incontáveis os nomes que poderiam ser aqui elencados, de Jenny Saville
a Marlene Dumas, mas o caso mais emblemático parece ser o pintor alemão Gerhard
Richter. Assumindo uma distância cética em relação ao legado ideológico vanguardista
que o precede,6 Richter tem percorrido, desde os anos 1960, a obsessão pessoal de explorar
os limites de suas capacidades pictóricas. O resultado é uma extensa obra que intercala
hiper-realismo e abstracionismo, focada justamente na passagem de um para o outro –
uma de suas estratégias é trabalhar a partir de seus próprios quadros, justapondo-os à
distância ou ampliando um minúsculo detalhe.
Claro que Richter nunca esteve alheio ao espólio das convenções artísticas, tampouco
ao circuito mercadológico – chegando a bater o recorde de valor de venda para um artista
vivo7 –, mas sua obra nos leva a refletir, ainda que indiretamente, sobre a perda de unidade

6. “By nature I am a skeptic. I don’t dare to think my paintings are great. I can’t understand the arrogance of
someone saying, ‘I have created a big, important work.’ I want to reject this pathetic behavior, this notion of
the heroic artist” (Richter apud Kimmelman, 2002, s. p.).
7. Sua pintura Abstraktes Bild (1994) foi leiloada, em outubro de 2012, por 26,4 milhões de euros. Notícia
disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/2012/oct/13/gerhard-richter-painting-
record-price>. Acesso em 26 jul. 2017.

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do mundo da arte e sua disseminação num campo cultural mais vasto e indeterminado.
Ao trabalhar com registros e memórias pessoais, Richter não parece com isso buscar
a reconstituição de uma história, mas apenas indicar que sua própria história, quando
transformada em arte, se torna estranha e fragmentada. Penso que a arte contemporânea
talvez nos pareça difícil e obscura por ocasião de um excesso de proximidade, de repetições
e rupturas. Talvez algumas coisas possam se tornar mais claras a uma distância não tanto
histórica, mas, como a de Richter, cética em relação à própria arte. “Para acreditar, é preciso
ter perdido Deus. Para pintar, é preciso ter perdido a arte” (Richter in Storr, 2002, p. 86,
tradução minha).

Considerações finais

As artes visuais podem ser compreendidas como formas de olhar que nos conectam
ao mundo, aproximando-nos de certas questões ao mesmo tempo em que nos distanciam
de outras. O caráter vago e genérico dessa definição parece ser condizente não apenas com
a dispersão artística que marca a nossa época, mas antes com a premissa contemporânea de
que “[...] não há continuidades ou descontinuidades na história, mas somente nas explicações
históricas” (Crary, 2012, p. 16). Descrever o que é arte contemporânea, com efeito, só faz
sentido em prol de alguma coesão discursiva. É no âmbito dessa coesão que, de modo
sumário e seletivo, procurei traçar um amplo panorama acerca de algumas contradições
que balizaram a arte contemporânea. Nesse sentido, conforme sintetiza Artur Freitas
(2007, p. 21), “[...] ela foi a panaceia da própria ideia de autonomia – uma espécie de apelo
genérico, utópico e contraditório à capacidade de intervenção da arte sobre o real”.
Se iniciei este ensaio aludindo à noção nietzscheana de vida como obra de arte,
problematizando em seguida a dicotomia entre ruptura e conciliação, cabe-me retomar
a questão da relação entre arte e vida. Para tanto, o enunciado do fim da arte pode servir
como anteparo a ser falseado, conduzindo-nos ao mote da vida como obra de arte.
De início, se o pretexto das rupturas vanguardistas era o da conciliação entre arte

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e vida, o que entrou em cena na segunda metade do século XX, de acordo com Giulio
Carlo Argan (1995), foi a intrincada relação entre arte e crítica: de um lado, uma crítica
que orientava diretamente a produção artística e, de outro, uma arte que absorvia em si
a função da crítica, dispensando-a. Com base nesse esquema, Argan lançou a hipótese de
que arte e crítica se tornariam uma coisa só, posto que as questões da arte, segundo ele,
estavam migrando ao registro da pura reflexão teórica.
De maneira similar, alguns críticos e filósofos contemporâneos insistem em noticiar
que a arte morreu, conforme Hegel já sentenciara em meados do século XIX. Para o
filósofo Arthur Danto (2006), a tese hegeliana de que a arte perderia importância em
favor da filosofia se confirma na arte contemporânea, que teria deixado de se preocupar
em representar o mundo para tratar de representar a própria arte, isto é, os sentidos e
limites do fazer artístico. E a partir da arte pop, segundo o autor, a arte deixa de se impor
limites, uma vez que qualquer objeto pode vir a ser obra de arte. Isso implica, para Danto,
o fim da arte enquanto narrativa histórica (como acúmulo progressivo de seus meios), mas
também o estabelecimento de uma arte pós-histórica amparada numa liberdade artística
sem precedentes.
Ora, mesmo desconsiderando o historicismo e o essencialismo em que Danto
declaradamente se ampara, sua noção de fim de arte depende da aceitação pacífica e
unânime de que qualquer objeto pode vir a ser obra de arte. Só que quando as pessoas vão
aos museus, por mais que já estejam predispostas a aceitar como arte aquilo que lá estiver
exposto, nada garante a complacência: uma obra poderá passar despercebida, ou mesmo
ser reduzida, por leigos ou especialistas, a um embuste sem nenhum valor. Do mesmo
modo, se um original de Da Vinci for vendido numa banca de jornal, arrisca não obter
credibilidade alguma. Logo, o imperativo de que “tudo é possível” é ao mesmo tempo mais
restrito e mais abrangente do que presumia Danto: tudo pode ser arte na mesma medida
em que nada pode ser arte.
O que está em jogo no fim da arte é, no fundo, a persistência de um velho impulso
esteticista: se Kosuth reivindicou a supremacia da arte conceitual sobre a filosofia, Danto
reivindicou a supremacia da filosofia sobre a arte. Mas se nem mesmo a crítica de arte,

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a despeito do que desejava Argan, tornou-se autônoma – o hermetismo nunca eximiu a


massa de emitir juízos –, como fica a história da arte? Alguém se encarregou de salvá-la:
em O fim da história da arte, Hans Belting (2006) propôs que a história da arte renuncie ao
status de campo autônomo para que possa se inserir numa história mais geral das imagens
(portanto, mais digna de autonomia). Troca-se o nome e mantém-se a mesma disputa pela
verdade artística (ou das imagens).
O que pouco se costuma valorizar, quando não sumariamente se ignora, é o simples
fato de que as artes visuais se alastraram no plano mundano, não no sentido ingênuo de
que tudo tornou-se potencialmente arte, mas no sentido tácito da ampliação do acesso, da
produção e da partilha artístico-visual. A recusa em admitir esse cenário tende a reservar
algum juízo prévio sobre ele – o de que, por exemplo, cada vez mais não é de arte que se
trata, e sim de entorpecimento da boa e velha indústria cultural confinada ao lucro. Sem
entrar no mérito da questão, o que me parece estar em jogo na dimensão cotidiana não é
a arte enquanto categoria qualquer, mas a fruição estético-visual8 atrelada ou não às obras
de arte.
Do grafite aos gifs animados, mas também do Louvre ao Instagram, propagam-
se obras e experiências sem o menor compromisso com os rigores da arte ou com a
consciência de sua história. Não se trata de vanguardas, não se trata de naïfs, é antes um
processo heterogêneo e desordenado que revigora as sensações afetivas que estabelecemos
com o mundo. Como assinalou Celso Favaretto (2011, p. 105), “É no deslocamento assim
produzido que se localiza [...] o nexo entre arte e vida”, não mais em termos conciliação, e
sim de “[...] vida como arte; a constituição de modos de existência, de estilos de vida”.
Vida como obra de arte significa, no léxico nietzscheano, tornar-se artista de sua
própria existência, é a arte de criar a si mesmo como obra de arte. Esse conceito, ao contrário
do que apressadamente se poderia supor, não corresponde a nenhum tipo de esteticismo:
não se trata de contemplar a existência tal como se contempla uma obra de arte (algo como

8. Cf. a esse respeito o artigo O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo (Beccari; Almeida,
2016), que problematiza o diagnóstico de uma “estetização do mundo” (Gilles Lipovetsky, Jean Serroy,
Byung-Chul Han) e descreve uma abertura horizontal a um cotidiano estético.

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“a vida imita a arte”), e sim de afirmar a vida fazendo dela uma obra de arte.
Pensada desse modo, a arte não é um fim em si; a bem dizer, nada é “em si”, pois nada
está fora da vida. E o que é a vida? Tudo o que temos. Com esse pressuposto, não obstante,
Rodrigo Rabelo (2013, p. 152) assevera que “[...] a finalidade da arte [para Nietzsche] é
retornar para a vida que a engendrou, tonificando-a”. Essa capacidade estimulante indica,
portanto, que o centro de gravidade da arte não reside na arte, mas na vida.
Não faria sentido, nesse viés, querer distinguir o que é e o que deixa de ser arte, ou
onde ela começa e quando ela termina. Pois refletir sobre a arte na chave da intensificação
da vida implica considerar a relação que alguém, em particular, estabelece com uma obra e
como isso afeta a sua lida existencial com vida. Colocada assim de maneira simples e direta,
a questão não apresenta novidade alguma. Mas essa é a questão: não há novidade. Porque
a arte nunca esteve apartada da vida, mesmo quando se lhe coloca como algo excepcional,
sublime e sem respaldo no plano ordinário. O que pode haver de novo hoje, como creio,
é a facilidade com que acessamos, produzimos e partilhamos arte, que assim se alastra no
cotidiano.
Desse modo, certa confusão de fronteiras quanto aos lugares enunciativos tem se
tornado condição intrínseca da arte, cuja dispersão se furta às explicações históricas,
filosóficas e mesmo artísticas. Isso não invalida, evidentemente, a reflexão sobre a arte,
posto que o exercício coletivo da interpretação humana – bem como um de seus substratos,
a expressão artística – subsiste criativa e inexoravelmente em aberto.
Se for verdade que, por um lado, o discurso contemporâneo sobre a arte ainda se
direciona predominantemente à abstração teórico-conceitual, também é factível que, por
outro, parte da produção artística se encaminhe na direção de um, digamos assim, realismo
nietzscheano. Em vez de literalidade visual, trata-se de um olhar transitório sem pontos de
partida ou de chegada, mas apenas de desvio e hibridização, adepto que é da multiplicidade
dos modos de existir. Mais do que nunca, enfim, a arte expressa o modo como as pessoas
narram o mundo e a si mesmas, dotando a vida de sentido e a intensificando.

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