Artigo - CAINELLI. Grounded Theory

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Educação Unisinos

24 (2020)
ISSN 2177-6210
Unisinos - doi: 10.4013/edu.2020.241.04

Grounded Theory: conceito, desafios e os usos na Educação Histórica

Grounded Theory: concept, challenges and uses in History Education

Ana Beatriz Accorsi Thomson1


Universidade Estadual de Londrina (UEL)
[email protected]

Marlene Cainelli2
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
[email protected]

Resumo: Esse artigo tem como objetivo apresentar um histórico sobre a


Grounded Theory (GT), estabelecendo algumas reflexões epistemológicas
envolvendo essa metodologia, dentro do campo de pesquisa qualitativa.
Primeiramente será abordado o contexto de surgimento da GT, nos Estados
Unidos, na década de 1960, em estudos no âmbito das Ciências Sociais
(GLASER e STRAUSS, 1967). Em seguida, serão apresentadas algumas
transformações pelas quais essa metodologia passou ao longo dos anos. Por
fim, também procurou-se evidenciar como a Educação Histórica se apropriou
da Grounded Theory para suas pesquisas, analisando os aspectos dessa
metodologia que podem favorecer o processo de pesquisa neste campo de
investigação.

Palavras-chave: Grounded Theory; pesquisa qualitativa; Educação Histórica

1
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e
professora de História da Educação Básica do estado do Paraná.
2
Doutora em História Social pela Universidade Estadual do Paraná (UFPR). Professora e pesquisadora nos
programas de mestrado e de doutorado em Educação e do mestrado em História Social da Universidade Estadual
de Londrina (UEL). Investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar – Cultura, Espaço e Memória (CITCEM)
– Universidade do Porto, Portugal.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo
permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Thomson e Cainelli - Grounded Theory

Abstract: This article has as its theme the presentation of a historical report
about the Grounded Theory (GT), establishing some epistemological reflections
about this methodology, within the field of qualitative research. Initiative was
addressed in the context of the emergence of the GT, in the United States in the
1960s, in studies in the Social Sciences (GLASER and STRAUSS, 1967).
Together, there are a number of transformations through which this analysis has
extended over the years. Finally, it was also tried to evidence how History
Education appropriated the Grounded Theory for its research, analyzing the
aspects of this methodology that can favor the research process in this field of
investigation.

Key words: Grounded Theory; qualitative research; History Education

Esse artigo pretende discutir as relações entre os princípios teórico-metodológicos do


campo da Educação Histórica e as bases metodológicas da Grounded Theory. Uma das
características mais marcantes da Educação Histórica é priorizar análises baseadas no cotidiano
escolar, mais especificamente no dia a dia das aulas de história e no desenvolvimento do
pensamento histórico dos sujeitos que se encontram no “chão da escola”. A prática investigativa
se desenvolve de modo a conectar frequentemente prática e teoria, dentro do contexto real e
concreto de aprendizagem histórica. Ciência da história e práticas de ensino encontram na
Educação Histórica um campo de diálogo e de trocas constantes.

A abordagem da investigação em Educação histórica nasceu da preocupação


em contribuir para aquilo que, talvez, falte ainda no panorama global dos
trabalhos em Ensino da História (e de alguns outros saberes): ligar a teoria à
prática, isto é, não apresentar apenas propostas prescritivas não testadas em
estudos empíricos, mas sim criar, implementar e analisar situações de
aprendizagem reais, em contextos concretos, e disseminar resultados que
possam ser ajustados a outros ambientes educativos (BARCA, 2012, p. 38).

Assim, nossas perguntas e inquietações partem da escola, vão em direção à escola e


buscam descortinar aspectos referentes às complexas realidades desse ambiente específico. Nessa
perspectiva, busca-se analisar os modos como o pensamento histórico se desenvolve e como ele
se fundamenta nas práticas cotidianas dos jovens. Desse modo, na Educação Histórica:

[...] a escola passa a ser considerada o lugar de onde partem as perguntas


iniciais das atividades e investigações, como: o que acontece em aulas de
História? Como ocorrem as mudanças? Como se processa ali o ensino? Que
tipos de relações os sujeitos estabelecem com o conhecimento histórico? Quais
são ou como professores e alunos elaboram a sua compreensão sobre as ideias
históricas? Que significados o conhecimento histórico tem para os sujeitos
envolvidos no processo ensino/aprendizagem? Como jovens e crianças reagem
aos processos de produção do conhecimento histórico? Qual o resultado do
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Thomson e Cainelli - Grounded Theory

conhecimento histórico na formação da consciência histórica de jovens e


crianças? (CAINELLI e SCHMIDT, 2012, p. 512).

As pesquisas em Educação Histórica almejam uma maior compreensão acerca do


pensamento histórico de professores e alunos, dentro de uma metodologia de análise que leve em
conta a estrutura da própria ciência histórica e de sua teoria. Tradicionalmente, as investigações
nesse campo de estudo apresentam como base a própria epistemologia da História e sua
constituição como Ciência. Busca-se levantar reflexões para se “[...] conhecer o significado
prático do pensamento histórico para a constituição da identidade humana” (SCHIMIDT e
BARCA, 2014, p. 22).
Os estudos relacionados a esse campo tiveram sua origem nos anos de 1960 e 1970, com
um grupo de pesquisadores ingleses: Alaric Dickinson, Peter Lee, Peter Rogers e Denis Shemilt
(BARCA, 2011). Suas investigações partiram de um contexto de crise no ensino de História e de
uma situação de descrédito em relação a essa disciplina na Inglaterra. Buscando compreender
melhor o modelo de progressão do pensamento histórico dos alunos, evitando uma categorização
em estágios de pensamentos por idade, essas pesquisas propuseram análises baseadas em níveis
de elaboração das ideias históricas. Isso permitiu, segundo Barca (2011), uma melhor
“monitorização do processo de ensino e aprendizagem” (BARCA, 2011, p. 25).

O estudo de Dickinson e Lee realizado em 1978 com alunos de 12 a 18 anos,


considerado um marco das pesquisas em Cognição Histórica, imprimiu um
novo olhar sobre a questão da aprendizagem histórica. Este estudo questionou
as pesquisas anteriores sobre essa aprendizagem baseadas em lógicas não
históricas, como a noção piagetiana de invariância dos estágios de
desenvolvimento humano (GERMINARI, 2011, p. 57).

Assim, para Barca (2011), a partir dessa escola inglesa foi fundado um novo campo de
estudos dentro do âmbito do ensino de história, que passou a empreender análises de “[...] ideias
que os sujeitos manifestam em e acerca da História” (BARCA, 2011, p. 13). Com isso, passou-se
a investigar por meio de estudos concretos como funciona a base do raciocínio histórico de
estudantes e professores.
Como se fundamenta a partir dos constructos da própria ciência histórica, as pesquisas em
Educação Histórica concedem grande importância aos estudos sobre conceitos de segunda ordem.
Há uma constante preocupação em verificar a questão da aprendizagem histórica para além dos
conteúdos substantivos, compreendendo também como se articulam as noções ligadas à natureza
da ciência histórica, como: explicação intencional, narrativa, argumentação, compreensão
empática e evidência histórica, por exemplo. Os conceitos de segunda ordem se diferenciam dos
conceitos substantivos, que são aqueles ligados aos conteúdos históricos, como monarquia,
feudalismo e democracia, por exemplo. Como afirma Bodo Von Borries (2018, p. 110), “história

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são dois mundos, um de conteúdos, temas e tópicos; o outro de ferramentas, habilidades, métodos
e teorias”.
Assim, a Educação Histórica volta seu olhar para o desenvolvimento da estrutura
constitutiva do pensamento histórico. Nas palavras de Lee (2006, p. 146), uma das preocupações
fundamentais dos pesquisadores deve ser, por exemplo: “como poderemos ensinar uma estrutura
histórica utilizável (UHF) que vai além dos fragmentos ‘eventificados’ ou características
nacionais [...]?” Nessa indagação, Lee (2006) defende a ideia de que os alunos devem ser
capazes de articular o conhecimento histórico de forma satisfatória para sua orientação temporal,
e não apenas como um bloco de conhecimentos e informações desconexas à realidade. Segundo
ele,

Há mais na história do que somente acúmulo de informações sobre o passado.


O conhecimento escolar do passado e atividades estimulantes em sala de aula
são inúteis se estiverem voltadas somente à execução de ideias de nível muito
elementar, como que tipo de conhecimento é a história, e estão simplesmente
condenadas a falhar se não tomarem como referência os pré-conceitos que os
alunos trazem para suas aulas de história (LEE, 2006, p. 136)

Após expandir-se no contexto educacional e acadêmico inglês, a Educação Histórica


passou a integrar um grupo cada vez maior de pesquisadores em diferentes países. No Brasil e em
Portugal se estruturou um grupo integrado, que vem desenvolvendo pesquisas desde 2003,
quando ocorreu um dos marcos iniciais das pesquisas: o seminário “Investigar em Ensino de
História”. Realizado pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFPR, o evento foi
coordenado pela professora Maria Auxiliadora Schmidt e teve a presença da pesquisadora
portuguesa Isabel Barca. Inicia-se nesse momento a construção do Laboratório de Pesquisa em
Educação Histórica da Universidade Federal do Paraná (LAPEDUH) que, em 2018, completou
15 anos.
É preciso destacar também que no Brasil foi fundamental para a Educação Histórica a
influência dos estudos alemães, principalmente aqueles ligados ao campo da Didática da História.
De acordo com Schmidt e Urban (2018, p. 11), “no Brasil, a tradição das pesquisas em Educação
Histórica tem se construído a partir das influências das matrizes anglo-saxônica e alemã”.
Pesquisadores alemães como Jörn Rüsen e Bodo Von Borries, por exemplo, investigaram nos
anos 1990 questões relativas à formação da consciência histórica dos estudantes, no contexto do
fim da Guerra Fria. Essas pesquisas deram fundamentação teórica ao campo da Educação
Histórica, que passou a atentar-se às formas de se pensar historicamente. Com a influência da
Didática da História alemã, passou-se a compreender como a História é parte constitutiva dos
sujeitos, afinal todos nos orientamos no tempo de alguma maneira. Todos usamos nosso passado
como modo de fundamentar nossas ações ou como forma de compreendê-las e interpretá-las.
Essa consciência histórica passa então a ser objeto de análise dentro das pesquisas em Educação
Histórica.
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As investigações em Educação Histórica buscam, então, realizar análises complexas, de


ideias históricas de alunos e de professores em contextos escolares vivos e dinâmicos. Para essas
pesquisas, principalmente a partir das duas últimas décadas, tornou-se bastante frequente o
emprego de um tipo de metodologia de investigação denominado Grounded Theory3 ou Teoria
Fundamentada. Atualmente, esse aporte metodológico está inserido dentro da gama de pesquisas
de tipo qualitativo e permite aos pesquisadores desenvolverem estratégias de investigação que
partam dos dados para alcançar uma fase de efetiva produção teórica do conhecimento. Nesse
artigo, buscamos analisar como tem sido a apropriação desse aporte metodológico pelos
pesquisadores da Educação Histórica.
No campo epistemológico das Ciências Sociais, ao longo do século XX, os métodos
estritamente positivistas, experimentais e quantitativos de pesquisa4 passaram a ser questionados
e criticados. Nesse contexto, a construção de conhecimento via análises qualitativas ganhou
espaço e passou a ser utilizada por parte dos pesquisadores das Ciências Humanas. Consideramos
essa valorização das pesquisas de âmbito qualitativo como parte de um processo de transição
paradigmática, em que procedimentos investigativos constituídos a partir de uma lógica
experimental e estritamente quantitativa não davam conta mais das análises sociais e de suas
respectivas complexidades.
Sob a perspectiva qualitativa de análise, a ciência não é tida como um repositório de dados
acumulados linear e empiricamente. Isso ocorre porque os objetos estudados não se configuram
mais como noções a serem quantificadas. Busca-se “o sentido das relações a serem interpretadas”
(GAGO, 2007, p. 165). Seguindo essa proposta, a complexidade do mundo atual exige um novo
olhar, novas formas de abordagem nas pesquisas, que se inserem então nessa transição
paradigmática citada.

A mudança social acelerada e a consequente diversificação de esferas de vida


fazem com que os pesquisadores sociais defrontem-se, cada vez mais, com
novos contextos e perspectivas sociais; situações tão novas para eles que suas
metodologias dedutivas tradicionais – questões e hipóteses de pesquisa
derivadas de modelos teóricos e testadas sobre a evidência empírica –
fracassam na diferenciação de objetos. Consequentemente, a pesquisa é, cada
vez mais, obrigada a utilizar estratégias indutivas: em vez de partir de teorias
para testá-las, são necessários “conceitos sensibilizantes” para a abordagem de
contextos sociais a serem estudados (FLICK, 2004, p. 18).

Embora tenham surgido como alternativa aos moldes de pesquisa quantitativos e


empiristas, as pesquisas qualitativas tiveram muita resistência em serem aceitas como

3
O termo Grounded Theory será tratado nesse texto prioritariamente como GT.
4
Como métodos experimentais compreendemos aquelas investigações que “a ciência explica apenas a face
observável da realidade, ou a superfície dos fenômenos” (MARTINS e THEÓPHILO, 2016, p. 37). Tais ideias integram
o contexto de emergência do que convenciona-se como época Moderna (séculos XVI, XVII, XVIII).
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legitimamente “científicas”. Por muitos anos as investigações qualitativas foram interpretadas


como anedóticas, não sistemáticas e tendenciosas (CHARMAZ, 2009). A Grounded Theory
surge como tentativa de superar tais perspectivas limitadoras e de se estabelecer como um aporte
sistemático e bem fundamentado epistemologicamente.

A principal razão do ostracismo a respeito das abordagens qualitativas era


ligada especialmente ao fato de que estas não eram capazes de produzir análises
de dados sobre a base de procedimentos analíticos que fossem confiáveis e
válidos ao menos quanto o eram as sofisticadas elaborações matemáticas sobre
as variáveis que a pesquisa quantitativa oferecia. Nesse contexto a GT, como
texto de metodologia qualitativa de pesquisa, desafiando abertamente muitos
dos assuntos do paradigma positivista, legitimava métodos alternativos de
pesquisa social e de análise qualitativa sistemática (TAROZZI, 2011, p. 43, 44).

Porém, no que se refere às abordagens quantitativas e qualitativas, sabe-se também dos


problemas em se assumir cegamente apenas um dos “lados” ou de até supervalorizar um pelo
outro. Para Demo (2005), é ilusória a colocação da dicotomia qualitativo versus quantitativo de
modo excludente. Para esse autor, a saída seria a compreensão de que há análises com caráter
mais marcadamente qualitativo e outras com o caráter quantitativo com mais destaque. Em
muitos casos, há inclusive a combinação dos métodos em procedimentos que visam apenas ao
enriquecimento dos dados e da pesquisa.
Além disso, deve-se se considerar o campo teórico específico do pesquisador, que
também implica determinadas considerações sobre os modos de investigação e até sobre os
modos de se perceber a realidade vivida. Para Demo (2005), na verdade, um dos critérios mais
relevantes e que moldará a vertente epistemológica da investigação é justamente o campo teórico
adotado pelo pesquisador. Segundo o autor “A pesquisa qualitativa quer fazer jus à complexidade
da realidade, curvando-se diante dela, não o contrário, como ocorre com a ditadura do método ou
a demissão teórica que imagina dados evidentes” (DEMO, 2005, p. 114).
Assim, evidencia-se uma das características da análise qualitativa de fenômenos sociais: a
consideração prévia do pesquisador de que o ser/objeto analisado é complexo e não-linear.
Analisar qualitativamente é andar na “incompletude ostensiva”, assumindo uma noção de
conhecimento “visivelmente limitado” (DEMO, 2005, p. 109). Essas perspectivas decorrem da
desconstrução dos parâmetros metódicos e empiristas, entretanto as condições de conhecimento
de caráter científico são mantidas: “precisa ser lógico, sistemático, coerente, sobretudo bem
argumentado” (DEMO, 2005, p. 30).
A pesquisa de cunho qualitativo se desenvolveu a princípio no âmbito da Antropologia,
principalmente como forma de análise de tipos culturais. Nessa fase, eram comuns as análises
etnográficas, que tinham como objetivo verificar “o outro”, “o desconhecido” e “o exótico”. Flick
(2004) aponta que esse primeiro momento da pesquisa qualitativa é denominado fase tradicional,
colocando como base temporal os anos entre 1900 e 1945. Em seguida, as pesquisas qualitativas
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passam a abarcar outras áreas do conhecimento, adentrando nos campos da Psicologia, das
Ciências Sociais e da Educação. Essa segunda fase, que se desenvolve até 1970, é denominada
Modernista e as pesquisas qualitativas começam a se estruturar a partir de tentativas
formalização. Flick (2004) coloca os fundadores da Grounded Theory (Glaser e Strauss) nessa
fase. A partir da década de 1970 desenvolvem-se diversas tipologias de pesquisa qualitativa e se
ampliam as possibilidades de abordagens.

A Grounded Theory

Os pressupostos basilares da Grounded Theory (GT) foram desenvolvidos nos Estados


Unidos, na década de 1960. O estudo considerado como inaugurador dessa metodologia foi
publicado em 1967, pelos pesquisadores ligados ao campo das Ciências Sociais Barney Glaser e
Anselm Strauss: “The Discovery of Grounded Theory”. Esses pesquisadores investigavam
fenômenos sociais relacionados aos processos de mortes que ocorriam em hospitais da Califórnia
(STRAUSS e CORBIN, 2008). Seu objetivo era analisar como os processos de mortes eram
compreendidos nos hospitais e que efeitos causavam naquele ambiente social.

Extraíram uma teoria original que dava conta de explicar sistematicamente a


organização social e a estruturação temporal desencadeadas pelos processos do
morrer e das trocas comunicativas e omissões sobre este tema que aconteciam
entre médicos, enfermeiros e pacientes.
O método era novo. Havia sido criado no campo para responder às específicas
exigências de uma necessidade de pesquisa ampla (que não podia ser reduzida),
difícil (que não dava para simplificar) e incômoda (mas digna de ser
explorada): o que acontece nos contextos hospitalares quando um paciente está
para morrer? (TAROZZI, 2011, p. 40).

Ao longo da investigação, foram desenvolvidos procedimentos novos, que se


desencadearam a partir das necessidades da própria pesquisa. Dois anos depois da publicação do
estudo sobre as mortes, Glaser e Strauss sistematizaram o conjunto de práticas e diretrizes de
pesquisa ligado ao âmbito das análises qualitativas, ainda um tanto às margens entre os
pesquisadores mais reconhecidos (TAROZZI, 2011), que ficou conhecido como Grounded
Theory.

Glaser e Strauss aperfeiçoaram os procedimentos analíticos e as estratégias de


pesquisa implícitos de pesquisadores qualitativos anteriores a eles, tornando-os
explícitos. [...] As diretrizes escritas por Glaser e Strauss sobre a condução da
pesquisa qualitativa modificaram a tradição oral e tornaram acessíveis as
diretrizes analíticas (CHARMAZ, 2009, p. 20).

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Embora a GT surgisse naquele momento como um tipo específico de análise qualitativa,


ela apresentava algumas características peculiares, que lhe concediam certas especificidades que
as diferenciavam das outras metodologias qualitativas. Em uma pesquisa que utiliza a GT, a
investigação tem por objetivo gerar constructos teóricos, a partir da procedimentos de análise dos
dados coletados. A intenção é extrapolar os níveis meramente descritivos da realidade
pesquisada. Exige-se do pesquisador a elaboração de um conjunto teórico, formulado a partir dos
dados analisados. Assim, busca-se extrair aspectos significativos e fundantes das experiências
vivenciadas pelos sujeitos, possibilitando correlacionar constructos teóricos. Mas, afinal, no que
consiste tal teorização que será derivada da análise dos dados? De acordo com Strauss e Corbin
(2008), elaborar uma teoria é estruturar: “um conjunto de conceitos bem desenvolvidos
relacionados por meio de declarações de relações que, juntas, constituem uma estrutura integrada
que pode ser usada para explicar ou prever fenômenos” (p. 29).
Assim, na GT, teorias e hipóteses não são testadas ou verificadas, elas surgem a partir da
pesquisa, em meio ao processo de investigação e de análise dos dados. Considerado um
procedimento extremamente complexo, o processo de teorização é longo, pois requer a ordenação
de um conjunto de ideias em um “esquema lógico, sistemático e explanatório” (STRAUSS e
CORBIN, 2008, p. 34). Conceber uma teoria exige também que essa seja analisada sob diferentes
perspectivas e olhares e que suas implicações sejam levadas em consideração

O pesquisador deve começar a pesquisa com um modelo parcial de conceitos –


prospectos iniciais -, ou seja, conceitos que indicam aspectos principais da
estrutura e processos da situação que será avaliada – teoria preliminar.
Contrariamente ao que acontece quando são utilizadas estratégias
convencionais de pesquisa, neste caso, o pesquisador não deve ir a campo com
um modelo teórico acabado (MARTINS e THEÓPHILO, 2016, p. 74).

Desse modo, percebe-se a extrema importância do procedimento de coleta de dados


dentro do campo da GT. É a partir desses dados que o pesquisador irá desenvolver os próximos
passos de seu trabalho. De acordo com Martins e Theóphilo (2016), a GT deve ser desenvolvida
ao longo de algumas etapas principais: coleta seletiva de dados, categorização dos dados e
saturação teórica. Ou seja, após a análise dos dados coletados, o pesquisador decide os próximos
passos da pesquisa, que podem levá-lo a novas coletas de dados, a novas comparações ou ao
processo de construção e elaboração da teoria. Seguindo procedimentos não necessariamente
lineares, o pesquisador pode retornar aos dados a qualquer momento de sua pesquisa, buscando
novos insights e realizando procedimentos comparativos que permitam aprimorar seu constructo
teórico.
Após o desenvolvimento inicial da GT no final da década de 1960, essa metodologia foi
apropriada por muitos grupos de pesquisadores pelo mundo, de áreas de estudo bastante
diversificadas. A grande difusão da GT fez com que ela fosse interpretada pelos mais variados

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grupos teóricos, o que gerou um processo de diferenciação de seus usos, principalmente em


relação aos procedimentos iniciais desenvolvidos por Glaser e Strauss em 1967. De acordo com
Tarozzi (2011), os próprios criadores da GT, a partir da década de 1990, passaram a adotar
posicionamentos divergentes em relação a determinados aspectos da metodologia, principalmente
por causa das tradições teóricas às quais eles eram adeptos.

A teoria fundamentada alia duas tradições opostas, e concorrentes, da


sociologia, conforme representado por cada um de seus criadores: de um lado, o
positivismo da Universidade de Columbia, e, de outro, o pragmatismo e a
pesquisa de campo da escola de Chicago (CHARMAZ, 2009, p. 20).

Atualmente, de acordo com Tarozzi (2011), podemos diferenciar a GT em três grandes


tradições ou escolas teóricas. A primeira escola teórica, também conhecida como “clássica” tem
origem com um dos pioneiros da GT: Barney Glaser. Ligado às tradições empiristas da
Universidade de Columbia, onde teve sua formação, Glaser desenvolve em suas pesquisas traços
considerados mais positivistas. Para esse pesquisador e para a corrente “clássica” da GT, os
dados é que devem fornecer todos os aspectos a serem considerados na pesquisa. As categorias
determinadas pela definição dos padrões de ideias emergem diretamente dos dados da pesquisa.
O investigador assume um papel considerado neutro na análise e na interpretação e não interfere
diretamente nos resultados a serem alcançados, visto que as conclusões da pesquisa refletem de
forma prioritariamente objetiva a realidade observada. Nessa corrente, a pesquisa deve partir de
um questionamento extremamente aberto e geral. Ou seja, “na visão de Glaser, deve-se abordar a
área de investigação como uma pergunta de pesquisa muito aberta (what’s going on here – “o que
está acontecendo aqui’)” (TAROZZI, 2011, p. 47).
A segunda escola teórica também se originou de um dos pioneiros da GT: Anselm
Strauss. Ligado às tradições mais interacionistas da Universidade de Chicago, onde obteve sua
formação, Strauss assume a maior autonomia do pesquisador no processo de análise dos dados,
dando menos peso ao caráter objetivista das análises (como proposto por Glaser). Essa escola
teórica se consolida com mais força a partir da década de 1990, com a publicação de Strauss com
Juliet Corbin: “Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento da
pesquisa fundamentada”. Essa vertente pode ser compreendida como uma espécie de meio termo
entre a primeira e a terceira escola.
A terceira escola teórica é centrada nas propostas desenvolvidas por Kathy Charmaz e
intitulada GT Construtivista. Nessa vertente, a GT assume que o conhecimento se constrói por
meio de uma integração recíproca entre investigador e sujeito participante da pesquisa
(TAROZZI, 2011). Ou, seja,

uma GT construtivista parte do pressuposto que o(a) pesquisador(a) não é capaz


de “descobrir” uma teoria que se encontra escondida em uma realidade
entendida objetivamente, nem que tal teoria representa uma verdade com o V
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maiúsculo e, desse modo, seja generalizável e seus procedimentos replicáveis


incondicionalmente. Ao contrário, o conhecimento é fruto de uma coconstrução
entre pesquisador(a) e sujeitos [...] (TAROZZI, 2011, p. 52).
Essa tendência é bastante recente e busca dialogar com perspectivas epistemológicas mais
atuais, que contestam a existência de uma objetividade científica e valorizam as múltiplas
interpretações (TAROZZI, 2011). Essa nova geração de pesquisadores busca compreender a GT
de modo inovador, porém sem deixar-se cair em relativismos e extremismos. De acordo com
Tarozzi (2011), podemos afirmar, portanto, que a GT construtivista valoriza uma espécie de
“realismo não objetivista”.
Charmaz (2009) desde o início de sua formação teve contato direto com ambos os
fundadores da GT. Como estudante de doutorado em Sociologia na Universidade da Califórnia,
ela teve aulas e seminários com Glaser e foi orientanda de Strauss. Ela reconhece diversas
concepções desses pesquisadores em sua vertente metodológica e afirma que Strauss e Glaser
“compartilharam o compromisso de fazerem surgir novas gerações de estudantes que se
tornassem pesquisadores produtivos adeptos da Teoria Fundamentada” (CHARMAZ, 2009, p.
11).
Embora existam tais diferenciações entre os procedimentos e as formas de se construir um
estudo em GT, algo é semelhante entre tais escolas teóricas: todas preveem a elaboração final de
um constructo teórico a partir da análise de dados que extrapole o âmbito da análise descritiva.

Os usos da GT nas pesquisas em Educação Histórica

Nos últimos anos, investigações de cunho qualitativo seguindo os princípios da GT têm


sido frequentes em muitos trabalhos da Educação Histórica (GAGO, 2007). Procura-se nessas
pesquisas descobrir o que está além do fenômeno, analisando seus meandros de modo profundo e
“vislumbrando seus detalhes”. Segundo Gago (2007, p. 166) “o investigador interpreta o
fenômeno a partir dos significados que as pessoas concebem”. Ainda de acordo com Gago (2007,
p. 166), os dados “constroem uma figura complexa e holística com descrições detalhadas das
perspectivas das pessoas”.
Investigações envolvendo tais temáticas, dentro do campo da cognição histórica,
requerem uma tipologia metodológica que se sustente de acordo com critérios científicos ao
mesmo tempo que consiga abarcar o nível de complexidade exigido pela realidade pesquisada.
Ou seja, investigar sobre os usos do saber histórico pelos alunos requer uma metodologia
maleável, adaptável às condições de se trabalhar, por exemplo, com narrativas de alunos ou de
professores. O estabelecimento de um passo a passo metodológico engessado (“ditadura do
método”) pode prejudicar a coleta de dados, limitando ou cerceando a expressividade dos sujeitos
participantes da investigação. Tal expressividade se mostra essencial ao pesquisador, que poderá

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se sensibilizar (GAGO, 2007) a partir das respostas, impulsionando assim novos passos na
constituição da pesquisa, que vai se refazendo ao longo de todo o processo de investigação. Para
Gago, “o entrevistador deve exibir uma postura curiosa e sensível tanto ao que é dito como ao
que é omitido, estando sempre alerta e criticando as suas próprias pré-suposições e hipóteses”
(2007, p. 175).
Desse modo, as bases da GT favorecem as pesquisas em Educação Histórica, já que essas
são constituídas a partir dos sujeitos realmente atuantes na educação. Os sujeitos e os contextos
sociais pesquisados pela Educação Histórica representam realidades vivas, dinâmicas, maleáveis
e, muitas vezes, até mesmo contraditórias. Como pesquisar uma escola e seu cotidiano, buscando
justamente descortinar aquela “caixa preta” a partir de métodos enrijecidos que limitem o
potencial criativo e sensibilizador do pesquisador?

Essa sensibilidade tende a aumentar com a experiência do pesquisador. Ela


envolve a sua capacidade, o seu temperamento, as suas habilidades de
pesquisador, de reconhecer insights teóricos em sua área de pesquisa,
combinada com sua habilidade de elaborar teoricamente esses insights. O
desenvolvimento dessas aptidões aguça a sensibilidade do pesquisador e
possibilita que ele construa um “arsenal” de categorias e conjecturas
(MARTINS e THEÓPHILO, 2016, p. 75).

Outro pressuposto importante da GT para o campo da Educação Histórica é a


flexibilização quanto aos instrumentos de investigação. De acordo com Barca (2007), por
exemplo, no processo de identificação de mensagens nucleares nas narrativas de alunos
portugueses, a simplicidade do instrumento de coleta favorecia a investigação, visto que um dos
propósitos da pesquisadora era analisar o aspecto da criatividade dos alunos. Nas palavras da
própria pesquisadora, os instrumentos e procedimentos terão: “formato muito simples, de
resposta aberta, apelando propositadamente a uma situação que estimulasse o imaginário dos
adolescentes [...] de forma a obter a adesão à produção das suas ‘narrativas’” (BARCA, 2007, p.
119).
Como as pesquisas que envolvem a GT apresentam suas próprias particularidades, que
dependem dos dados, dos sujeitos investigados, dos contextos, não se estabelecem regras
dogmáticas de coleta de dados ou de análises. Na GT, o pesquisador se abre àquilo que seus
dados lhe proporcionam, àquilo que seus dados lhe dão a perceber. Desse modo, as pesquisas que
seguem as bases da GT não apresentam um passo a passo estritamente marcado e previamente
delimitado. As pesquisas vão sendo delineadas conforme os dados são coletados, analisados e
comparados.

Para a GT, nenhuma técnica para a coleta de dados é necessariamente a mais


apropriada. Tipos diferentes de coleta de dados dão ao analista diferentes
visões, a partir das quais ele vai construir, ou resgatar de outros estudos,
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categorias e desenvolver suas propriedades (MARTINS e THEÓPHILO, 2016,


p. 75, 76).

Segundo Neff (1998), a GT exige do pesquisador uma postura de questionamento e nem


sempre pode assumir verdades “fechadas” que permitam uma sensação de conclusão (“closure”).
Neff (1998) destaca também sobre a questão da proposta dialógica que caracteriza a GT, ou seja,
o investigador deve sempre estar aberto a intercâmbios, à reciprocidade, à negociação e,
inclusive, à transformação constante. Na Educação Histórica, tais características também são
importantes ao pesquisador já que “a consciência histórica é culturalmente variável. Em outras
palavras, mudando o contexto cultural mudam as relações entre as interpretações do passado,
percepções do presente e expectativas do futuro” (GERMINARI, 2011, p. 64). Assim, pode-se
afirmar que:

os resultados de uma investigação orientada pela GT devem ser entendidos


como provisórios, passíveis de modificações à medida que novas variações
forem incorporadas à teoria (substantiva) anteriormente construída (MARTINS
e THEÓPHILO, 2016, p. 76).

Nesse sentido, para Charmaz (2009), na GT os dados não são concebidos apenas como
números, informações e repositórios escritos. Os dados, na verdade, representam opiniões,
posicionamentos, intenções, sentimentos e, também, toda uma estrutura de vida daqueles sujeitos
pesquisados. Assim como concebe-se as propostas de pesquisas da Educação Histórica, quando
analisamos os dados devemos encará-los em sua especificidade e também em sua totalidade,
buscando perceber os sujeitos em meio à sua realidade, com suas percepções críticas e
sensibilizadoras; assim como também aspectos da particularidade, do desenvolvimento da
consciência histórica e da narrativa, por exemplo. A GT assume, portanto, o papel de formular
uma teoria representativa da realidade, dos sujeitos e dos fatos (MARTINS e THEÓPHILO,
2016), indo para além de um método apenas descritivo.

Esta metodologia aponta a necessidade clara de construção de teoria e não de


pura descrição como acontece noutras abordagens e/ou metodologias (os
estudos etnográficos e/ou fenomenológicos). [...] Interpreta-se os dados e os
significados são relacionados visando-se a criação de um modelo conceptual
dos significados e das relações entre esses mesmos significados (GAGO, 2007,
p. 170).

Em uma primeira análise dos dados sobre o uso da GT pelos pesquisadores da Educação
Histórica percebemos que, de forma geral, diferentes autores foram usados como fundamentação.
Os autores mais citados e que concedem um aprofundamento metodológico às pesquisas são
Kathy Charmaz (2009) e Juliet Corbin/Anselm Strauss (2008). Em alguns casos notamos também

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a referência a autores comentadores (secundários), que não necessariamente representam


vertentes da GT mas que estabelecem uma revisão bibliográfica sobre seus pressupostos, como
Tarozzi (2011) e Flick (2004). Não encontramos casos de investigações em que houve uma clara
diferenciação entre as vertentes da GT ou qualquer aprofundamento sobre o histórico da
metodologia e seus fundadores, por exemplo. Assim, a seguir, iremos analisar algumas
investigações realizadas em diferentes programas de pós-graduação em educação e história.
A pesquisadora Isabel Barca, referência fundamental no campo da Educação Histórica,
utiliza aspectos da GT em suas investigações. Em seu texto intitulado “Marcos de consciência
histórica de jovens portugueses” (2007) ela afirma que seu estudo foi realizado “seguindo o
método indutivo da Grounded Theory, uma das abordagens metodológicas frequentemente
utilizadas na pesquisa em Educação Histórica” (p. 118). Os alunos participantes da investigação
foram apresentados a uma tarefa, em que tinham que produzir duas narrativas: uma sobre a
história nacional portuguesa e uma sobre a história mundial. Na parte inicial da análise de dados
Barca (2007) identificou alguns constructos que “emergiram” das produções narrativas. Assim, a
análise das ideias dos alunos foi feita por meio de subtemáticas, delimitadas pela autora ao
analisar as respostas.
No final de seu texto, Barca (2007) aponta então algumas “tendências” encontradas nas
produções dos jovens portugueses. A partir disso, ela elabora alguns tópicos que chama de
“hipóteses de problematização”. Segue um exemplo a seguir.

Apesar de os programas da disciplina de História nos últimos anos de


escolaridade básica (7º, 8º e 9º anos) se reportarem ao Mundo contemporâneo,
parece que no final deste ciclo de ensino é a História do país que permanece
mais nítida no pensamento juvenil. A identidade nacional surge delineada numa
narrativa com contornos estruturados, enquanto que a História do mundo
aparece mais fragmentada, comprometendo uma perspectiva de
desenvolvimento da identidade 'planetária', que será desejável também
promover (BARCA, 2007, p. 124).

Podemos compreender esses tópicos finais como o processo de teorização proposto pela
GT. As pesquisas que seguem tal delimitação metodológica desenvolvem, portanto, elaborações
teóricas sobre o tema, afirmações com base nos dados.
Outra pesquisadora que fez uso da GT em sua pesquisa foi Marília Gago. Em sua tese de
doutorado desenvolvida na Universidade do Minho em Portugal, sob orientação da professora
Isabel Barca, intitulada “Consciência histórica e narrativa na aula de História: concepções de
professores” (2007), ela dialogou com as perspectivas da Educação Histórica e utilizou elementos
da GT. Seu objetivo foi “[...] compreender as concepções de professores de História acerca da
narrativa enquanto uma das faces da consciência histórica” (GAGO, 2007, p. 182). Nesse sentido,
ela empreendeu uma investigação para verificar quais as ideias dos professores sobre consciência
histórica e sobre a questão das narrativas. Ao longo da pesquisa, ela realizou dois estudos

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preliminares e um estudo final, produzidos com base em questionários respondidos pelos


professores e em um método qualitativo de análise. Citando como base os preceitos da GT,
fundamentados principalmente em Juliet Corbin e Anselm Strauss (2008), ela descreveu o passo
a passo utilizado na pesquisa.
Primeiramente, ela afirma ser necessária a delimitação do problema de investigação.
Depois, deve-se verificar os sujeitos participantes do estudo, ou seja, um pequeno grupo que
constituirá a amostra da população investigada. Essa seleção pode ser feita de forma aleatória ou
com intenções propositais que se relacionem, por exemplo, a localidades, a tipos de casos, a
exaustão de dados, a variação máxima, etc. (GAGO, 2007). Depois, ainda de acordo com a
autora, deve ser feito o trabalho de recolhimento dos dados por meio de observações de campo
e/ou entrevistas e/ou produção de documentos e artefatos (GAGO, 2007). O próximo passo na
investigação é a verificação dos questionários e identificação de “padrões de ideias” para que seja
possível a elaboração de “perfis conceituais”, também chamados categorias. Assim, com base na
perspectiva teórica que está sendo investigada e na relevância conceitual dos constructos
pesquisados, estabelece-se a categorização do fenômeno pelo minucioso exame dos dados. Nessa
fase da pesquisa, é fundamental a realização de comparações e confrontações entre os conceitos e
respostas dos sujeitos, para que seja possível agrupar e criar “etiquetas” de forma crescente em
relação à complexidade das ideias.
Na sua investigação de mestrado, realizada no programa de pós-graduação em História
Social na Universidade Estadual de Londrina e orientada pela prof. Dra. Márcia Elisa Teté,
intitulada “’Porque o fascismo é como o nazismo na Itália e o Mussolini é um Hitler italiano’:
análise das ideias históricas de alunos do ensino médio da cidade de Guarapuava – PR”, a
pesquisadora Ana Paula Carvalho usa a GT para “investigar as ideias históricas dos alunos sobre
o conceito de empatia histórica, seu posicionamento diante dos meios de comunicação e suas
ideias acerca da escrita da história” (CARVALHO, 2017, p. 115). Ela propôs questionários a 82
alunos do Ensino Médio de Colégios Estaduais. A autora afirma ter processado os dados da
pesquisa de forma qualitativa, “inspirando-se no modelo da GT” e utilizando como
fundamentação Kathy Charmaz (2009). Assim, ela procedeu realizando primeiramente uma etapa
de codificação aberta dos dados e afirma que o processo foi favorecido pelo procedimento
adotado, visto que “a flexibilidade estaria comprometida caso os dados já tivessem sido inseridos
em categorias a priori” (CARVALHO, 2017, p. 117). Em seguida, ela realizou a etapa mais
complexa de classificação por níveis de progressão das ideias dos alunos verificando os
chamados padrões de resposta.
Carvalho (2017) também deixa claro em sua dissertação a preocupação de que a GT
proporciona caminhos para a análise de dados sem representar o universo global de determinado
fenômeno social. “Tratou-se de uma pesquisa qualitativa e, portanto, sem pretensões de fornecer
um modelo que equivalha a uma representação universal da realidade escolar brasileira”
(CARVALHO, 2017, p. 149).

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Na Universidade de São Paulo (USP), orientado pela Prof. Dr. Katia Maria Abud no
programa de Doutorado em Educação, o pesquisador Aaron Sena Cerqueira Reis também utilizou
a metodologia da GT para desenvolver sua investigação intitulada “Brasil em tempos de crise:
um estudo sobre a consciência histórica de jovens estudantes” (2019). O objetivo de Reis era
entender a construção da consciência histórica de jovens estudantes a partir de reflexões sobre
acontecimentos contemporâneos. Assim, ele buscou compreender se acontecimentos recentes na
história política e social brasileira apresentam alguma influência na construção da consciência
histórica dos jovens. Sua pesquisa foi realizada em São Paulo, tendo como instrumentos
questionários escritos e online e também entrevistas.
Reis (2019) utilizou os pressupostos da GT em sua pesquisa na etapa de análise dos
dados, apoiado principalmente na fundamentação de Juliet Corbin e Anselm Strauss (2008).
Inicialmente, notamos uma preocupação do autor em situar sua metodologia dentro dos
parâmetros da pesquisa qualitativa.

No Brasil, a introdução dos métodos qualitativos ocorreu na década de 1970


sob “influência dos estudos desenvolvidos na área de avaliação de programas e
currículos, assim como das novas perspectivas para a investigação da escola e
da sala de aula” [...]. A partir de então, questionou-se a predominância do
“paradigma positivista” que, na busca pela objetividade científica, percebia o
fenômeno educacional como um elemento isolado, passível de análises
quantitativas (REIS, 2019, p. 54)

Desse modo, em sua tese, ele propõe alguns parágrafos de contextualização histórica
sobre esse tipo de abordagem, demonstrando uma preocupação em situar-se em relação à
metodologia qualitativa e introduzir o leitor a uma reflexão sobre o surgimento desse tipo de
análise. Os pressupostos da GT são explicitados no subtópico “Análise dos dados” e
fundamentados em Tarozzi (2011) e Juliet Corbin e Anselm Strauss (2008).
Esse pesquisador cita algumas características da GT que fundamentaram seu trabalho e
que favoreceram seu caminho de investigação. Ele destaca a GT como um “método inovador” ao
viabilizar a construção de categorias teóricas a partir da pesquisa empírica. Também cita o fato de
a GT assumir um caráter flexível, sem uma linearidade unívoca e aberta aos imprevistos. Assim,
Reis (2019) ressalta a importância da sensibilidade e criatividade do pesquisador que faz uso da
GT. Nas palavras do autor:

Uma pesquisa baseada na GT não ocorre, simplesmente, pelo domínio


mecânico de suas técnicas e procedimentos, mas, sobretudo, pela predisposição
do pesquisador ou pesquisadora, cuja virtude lhe confere uma “sensibilidade
teorética”. Esta sensibilidade auxilia na construção de memorandos, narrações e
diagramas, elementos que revelam escolhas metodológicas, observações de
campo, percepção de assuntos, construção de categorias, comparações, além do
surgimento de insights, um conjunto de percepções ou intuições que conduzem
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o investigador ou investigadora à explorarem sua criatividade (REIS, 2019, p.


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Nesse caso específico, vemos a metodologia da GT aliada a um instrumento eletrônico de


análise de dados, o software computacional IRAMUTEQ5. Reis (2019) utilizou-se desse
mecanismo como forma de sistematizar os dados obtidos e ressaltou que ele se constitui como
uma “ferramenta auxiliar” que executa uma sistematização sobre o material lexical da pesquisa e
não assume papel em identificar sentidos e significados dos questionários. Ele utilizou o software
para realizar uma primeira análise das ideias dos alunos, como forma de agrupar os dados obtidos
para depois seguir para sua análise propriamente dita.
Outro pesquisador que se apropriou dos pressupostos da GT foi João Luis da Silva
Bertolini em sua pesquisa de doutorado no programa de pós-graduação em Educação na
Universidade Federal de Curitiba (UFPR), orientado pela prof. Dra. Maria Auxiliadora Schmidt.
Sua tese, intitulada “Manuais didáticos e as mediações entre cultura histórica e cultura escolar: o
caso da narrativa sobre o Islã em manuais didáticos brasileiros e portugueses” (2018), analisou as
narrativas de livros didáticos sobre o Islã e buscou relacionar tais narrativas com o contexto
educacional dos dois países. A investigação é descrita como sendo de natureza qualitativa e de
cunho documental. A análise partiu de um questionamento inicial do pesquisador: “Qual
narrativa sobre Islã está presente nos manuais escolares selecionados?” (p. 205).
Bertolini (2018) afirma ter usado “algumas premissas” da Grounded Theory para
categorizar os resultados de sua análise. Como fundamentação para sua metodologia, o
pesquisador cita as definições de Flick (2004).

Do ponto de vista metodológico, minha proposta é fazer um estudo de um caso


nos manuais brasileiros e portugueses. Trabalharei com a triangulação
metodológica de estratégias, utilizando as seguintes possibilidades. Análise de
fontes, propostas curriculares e manuais didáticos utilizando as categorizações
da Grounded Theory [...]. (BERTOLINI, 2018, p. 29).

Nessa investigação nota-se pouco espaço destinado à descrição das características da GT,
que só é citada cinco vezes na tese (duas no resumo, uma na introdução e duas no corpo da tese).
O autor utiliza a proposta metodológica para encontrar as categorias de análise das narrativas
didáticas, utilizando-a para encontrar os “elementos comuns” das narrativas (BERTOLINI, 2018,
p. 19).

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Software desenvolvido na França por Pierre Ratinaud em 2009 para realizar análises de dados textuais.
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Conclusão

Citamos nesse artigo cinco casos de utilização da GT em pesquisas relacionadas ao campo


da Educação Histórica. Nossa preocupação foi mostrar que essa abordagem metodológica tem
sido usada de maneiras diversas, dependendo dos objetos de estudo, dos instrumentos utilizados,
do público a ser investigado, etc. Grande parte das investigações faz referência ao caráter aberto e
flexível da GT, principalmente por conta das características dos objetos de estudo. Entretanto,
sabe-se hoje que embora muitos pesquisadores afirmem em seus textos que seguem os
pressupostos da GT, nem sempre tais preceitos são explicitados ou apresentados de forma
aprofundada. De acordo com Tarozzi (2011), é comum que estudos apresentem uma vaga
referência à metodologia, afirmando apenas terem sido realizados com base em coleta de dados.
Porém, Tarozzi (2011) faz um apontamento crítico em relação a tais pesquisas.

Muitas vezes a referência à GT é vaga e até mesmo incorreta. Muitas, de mais


pesquisas, reduzem a própria referência à GT a uma genérica referência a uma
teoria enraizada nos dados. Esta é uma declaração que, por si mesma, seria uma
banalidade: qual pesquisa empírica não se fundamenta nos dados? (TAROZZI,
2011, p. 14)

Desse modo, acreditamos que é essencial conhecermos melhor nosso campo


metodológico e esse caminho se apresenta como uma lacuna para muitas investigações na
atualidade. Defendemos que utilizar uma metodologia e fundamentar-se nela requer uma real
reflexão e aprofundado estudo epistemológico acerca de seus postulados basilares. Como
“avançar” cientificamente sem ter claros nossos preceitos sobre como se dá a construção do
conhecimento e sobre as nossas limitações metodológicas? Para um pesquisador da educação, tais
questões aparentemente simples são aquelas que darão a estrutura científica fundamental da
pesquisa. Logo, concordamos com Santos (2008, p. 15), que “[...] tal como noutros períodos de
transição, difíceis de entender e de percorrer, é necessário voltar às coisas simples, à capacidade
de formular perguntas simples”, como: estamos nos utilizando corretamente a metodologia que
propomos? A conhecemos o suficiente para estruturar corretamente nossas análises? Concluímos
esse artigo, então, apresentando alguns questionamentos e trazendo reflexões sobre a importância
de ampararmos nossas metodologias em reflexões aprofundadas, que tragam à tona discussões
epistemológicas e que nos deem o embasamento adequado em nossas investigações sobre o
contexto escolar.

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Submetido: 25/07/2019
Aceito: 03/02/2020

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