Aula Otília Arantes - o Envelhecimento Do Novo
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Desde o início deste percurso de dupla face, uma tal conversão vem alimentando as
promessas da dialética. Hegel foi o primeiro a isolar o fenômeno quando percebeu que
a arte enquanto valor de culto chegara ao fim no momento mesmo em que a recém-
conquistada autonomia anunciava sua dissolução já em curso. É que a lógica iluminista
da autonomia “exteriorizara integralmente os conteúdos nas formas artísticas”,
consagrando em consequência o primado da instancia técnica, ela mesma expressão da
preponderância do novo sujeito estético. Este o caminho que na arte romântica mais
avançada estava convertendo os meios de representação em tema objetivo da obra de
arte. Constatada a reviravolta, Hegel acreditava que a arte passaria a girar em falso.
Hegel não viu que essa subjetivação que rebaixava os conteúdos estava, ao mesmo
tempo, liberando as forças produtivas da arte. Mas é verdade que, ingressando no
domínio da racionalidade moderna, a arte autonôma pagará tributo ao mundo diante
do qual se afirmara tomando distância máxima, à medida em que cumpre essa lei formal
vai incorporando modelos extra-artísticos de racionalização. O NOVO NA ARTE CEDE
LUGAR ÀS INOVAÇÕES DA PRODUÇÃO MATERIAL, DA QUAL DEVERIA SER O OUTRO.
...Nesse meio tempo, a autonomia que derivara o seu impulso próprio do culto profano
do belo regredira até o fetichismo da forma. ...Arte autônoma é arte separada,
enrijecida na positividade (como diria o jovem Hegel). Dai o programa de superação da
arte, forçando a abertura do domínio estético represado pela compartimentação
moderna. Reatando a comunicação com o mundo empobrecido pela racionalização
instrumental
De fato, não poderiam ser mais ambivalentes as relações da arte autonomia com a
modernidade que ao mesmo tempo a promovia e inviabiliza, tornando proibitiva sua
sobrevida mais exigente. Adorno, que sustentava que o cumprimento mais estrito da lei
tecnológica interna na obra de arte era garantia do seu distanciamento crítico, tinha
plena consciência do preço que esta pagava. Costumava citar como contraexemplo
dessa tendência favorável de modernidade hermética e formalista (quer dizer,
inacessível ás massas distraídas pela arte tecnológica) e que ao mesmo tempo não
poderia ser mais materialista: o programa poético de Mallarmé ao lidar apenas com
palavras, rebaixando a poesia inspirada, Ao mesmo tempo reconhecia a precariedade
de uma lírica que desde Baudelaire se manteve em equilíbrio instável na ponta do
paradoxo segundo o qual, pelo esforço extremo em construir uma maquinaria poética
que a preservasse do mundo desencantado, teria acabado por perder o contato com a
língua viva, onde reside a objetividade do espirito com a qual aspira coincidir
A arquitetura Moderna é um caso exemplar. Senão vejamos: desde o início ela foi
pensada como a principal aliada na solução dos grandes antagonismos da sociedade
capitalista, a que seria capaz de reorganizar através de uma reordenação do espaço – o
que, segundo Le Corbusier, haveria de prevenir contra a revolução. Mas a racionalização
de um tal espaço (abstrato) estava diretamente vinculada à racionalização capitalista da
produção, à serialização, à moradia mínima, ao zoneamento urbano etc. Como se pode
ver, a aposta no poder emancipatório da modernização capitalista, quer dizer, no
caráter liberador inerente à evolução das forças produtivas, é marca congênita da
cultura modernista e seus desdobramentos iluministas e utópicos que, na busca do
sempre novo, fazia tábula rasa do passado. E TODAVIA, DEU NO QUE DEU. Levando ao
limite a consagração do novo, uma tal arquitetura acabava por dissolver as
ambiguidades que preservavam, apesar de tudo, a força antagônica da arte moderna.
Não cabe, por tanto, a alegação de desvio. Categorial ou não. De fato, o que ocorreu
com essa florescência avançada foi ter estado sempre centrada nos conteúdos utópicos
de uma sociedade do trabalho, cujo ponto de referência na realidade se perdeu, como
advertem os teóricos do novo paradigma antiprodutivista. Habermas à frente . Torna-
se portanto altamente problemática sua tentativa de salvar da débâcle o Movimento
Moderno (concebido apenas no espirito construtivo das vanguardas), onde justamente
os compromissos mais diretos com o padrão produtivista, com a utopia do trabalho,
com a ideologia do plano, fazem com que o momento de inflexão seja mais visível: isto
é, a passagem para esta outra fase da cultura do capital, a que se costuma chamar de
pós-moderna~.
O capitalismo mundial mudou muito nas últimas duas décadas. É natural que a sua
lógica cultural também. Foi-se então o tempo em que, sobre um presente técnico ainda
indeterminado, pairavam as nuvens carregadas da revolução social, fazendo como que
insurreição estética e tomada do poder parecessem ter encontro marcado na crise da
sociedade burguesa que se aproximava: esse o programa de vanguarda do alto
modernismo segundo Perry Anderson. Hoje o horizonte histórico se encolheu, as
energias utópicas parecem esgotadas.... Deu-se então a conexão inesperada: a
desestetização da arte projetada pelas vanguardas, na esteira da qual dar-se-ia a
reapropriação da existência alienada, culminou numa estetização da vida. Que, para
David Harvey, derivaria do novo padrão flexível de acumulação. A estética relativamente
estável do modernismo fordista teria cedido a vez à instabilidade e qualidades fugidias
de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a
moda etc.
Considere-se uma das marcas mais salientes da nova era estetizante, a FRIVOLIDADE –
bem como o hedonismo do individuo narcisista que a acompanha. Frivolidade será dita
em várias acepções, por exemplo: apagamento do sentido, eliminação da
profundidade num mundo de imagens chapadas, consagração da superfície da
aparência estética. A respeito dessa constelação marcada pela mobilidade, duas
atitudes: uma neoconservadora, outra cinicamente apologética. A estética frívola do
hedonismo (que é a da sensibilidade pós-moderna, flexível...) não discrepa de modo
algum do atual padrão de acumulação capitalista, como acabamos de ver. Não é o que
pensa o conservadorismo de um Daniel Bell. ...embora extenuado o vanguardismo
acabou contaminando os valores cotidianos das sociedades capitalistas. Uma sociedade
entregue socialmente às inovações acabou institucionalizando as vanguardas e assim as
sobrecarregando. ...Seria preciso então relembrar que a reconciliação entre a arte
dessublimada e vida material imaginada pelas vanguardas visava uma transofmração
radical da segunda e jamais sua estetização, e no entanto, foi o que ocorreu, conforme
se encarregou de mostrar justamente o ethos pós-modernista. ..É o que se depreende
do discurso apologético de um Lipovetsky: não só é uma extravagancia subversiva o
hedonismo criticado por Daniel Bell, é mesmo uma exigência do merrcado pós-
industrial,. Assim, o consumo hedonista da parte de um individuo descentrado em
relação aos antigos valores configura “a realização definitiva da visada secular das
sociedades modernas, a saber, o controle total da sociedade, de um lado, e de outro, a
libertação cada vez maior da esfera privada entregue agora ao self-service generalizado,
à velocidade da moda, à flutuação dos princípios, paéos e status”.
Resta ainda assinalar uma outra manifestação, desta vez institucional, desse
esteticismo pós-moderno: a administração da cultura, agora assumidamente soft,
acompanhada no plano do comentário ideológico pelo elogio do efêmero, do
esteticamente frívolo. Dessa constelação faz parte a atual contaminação do raciocínio
político pelo juízo estético de gosto na falta de critérios normativos fortes.
O mesmo pode ser dito das motivações éticas na explicação das condutas privadas e
coletivas: um novo angelismo num momento em que a formalização extrema da
racionalidade capitalista tornou ainda mais improvável a determinação de fins( que não
sejam simples meios), a começar pelos fins últimos da prática política ...O novo
individualismo flexível também não deixa de mobilizar os valores tradicionais (o frívolo
é eclético) da cultura e da arte, uma verdadeira lógica securitária dissimulada.
...Substituindo-se à política, o estético vai reduzindo os conflitos à dimensão da
aparência.
O.Arantes
Voltando ao Hegel e ao tema da morte da arte: acho que só aluno de primeiro ano tem
dúvidas a respeito e pode imaginar que Hegel tivesse decretado o
desaparecimento da arte, embora, segundo o filósofo, ela tenha deixado de ocupar a
centralidade que teve nahistória da consciência e que, portanto, não coubesse
mais falar em “belo ideal”. Mas já estamos hoje numa outra etapa desse mesmo
processo diagnosticado por Hegel, em que isto mesmo que então surgia como arte
autônoma (uma invenção da sociedade burguesa)também se esgotou.
Retomo aqui, de forma um pouco livre, outros textos meus, cujo ponto de partida
é a constatação corrente de que a principal característica da arte na idade moderna
é sua autonomia, entendendo por isso –com os clássicos da teoria crítica –, que a ordem
burguesa não só liberou a arte de suas tutelas tradicionais (da Igreja à Corte),
como a instalou num mundo à parte, muito além do domínio material da
reprodução da vida. Graças a esta transcendência da dimensão estética, teria
passado para o primeiro plano o livre desenvolvimento da obra segundo sua
legalidade interna: ciência, moral e arte, cada uma dotada de uma lógica específica de
validação, constituiriam os momentos independentes em que se decompôs a razão
objetiva da sociedade pré-capitalista. Um tal desmembramento era garantia de
progresso e penhor da modernidade em marcha. Portanto, a emancipação da arte
autônoma se deveria à sua emancipação e à racionalização capitalista da dimensão
cultural. No entanto, este mesmo processo se encarregará de neutralizar a autonomia
que gerou à medida em que for consolidando a arte como uma instituição positiva.
Cumprindo seu destino moderno, a arte verá sua autonomia converter-se em princípio
de dissolução.
Nesse meio tempo a autonomia que derivara o seu impulso próprio do culto
profano do belo regredira até o fetichismo da forma. Acresce que onde há
diferenciação também há reificação, e consequente aspiração à fluidificação das
barreiras que comprimem o mundo da vida. Arte autônoma é arte separada,
enrijecida na positividade (como diria o jovem Hegel). Daí o programa
vanguardistade superação da arte, forçando a abertura do domínio estético represado
pela compartimentação moderna, reatando a comunicação com o mundo empobrecido
pela racionalização instrumental. E tudo o que daí se segue[...] Deu-se então a conexão
inesperada: a desestetizaçãoda arte, projetada pelas vanguardas, na esteira da qual
dar-se-ia a reapropriação da existência alienada, culminou numa estetização da vida.
Mas aí já estou avançando o sinal.