Caderno - 04 Danto Rizzia

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O PROBLEMA DA ESTÉTICA EM ARTHUR DANTO E A QUESTÃO

DA CRÍTICA EM WALTER BENJAMIN


Rizzia S. Rocha

RESUMO

Diante das mudanças ocorridas na arte das últimas décadas, os critérios estéticos
tradicionais perdem sua eficácia para pensar a produção artística contemporânea.
Consequentemente, recepção da obra de arte, assentada na tradição, torna-se
inócua. Neste artigo apresento a necessidade de uma reconfiguração da recepção
do objeto artístico a partir da crítica não normativa da obra de arte, cunhada por
Walter Benjamin, em associação às reflexões sobre estética e filosofia da arte
desenvolvidas por Arthur Danto. A aproximação entre esses dois autores, embora
mantenha uma dimensão controversa, propõe rearticular aspectos do pensamento
benjaminiano sobre a arte, corroborando sua crítica em relação ao ideal forjado pela
razão iluminista. Assim, o presente artigo expõe o problema da estética e da história
partindo do olhar que o contemporâneo lança ao passado, o qual ressignifica
importantes modificações que o século XVIII introduziu no conceito de arte.

Palavras-chave: Estética. Filosofia da Arte. Arte. Recepção. Crítica.

THE AESTHETICS PROBLEM IN ARTHUR DANTO AND THE CRITIC ISSUE IN


WALTER BENJAMIN

ABSTRACT

In the face of the changes in art along the recent decades, the traditional aesthetic
criteria lose their effectiveness to think the contemporary artistic production.
Consequently, the art reception, based upon tradition, becomes innocuous. In this
article I present the need for reconfiguration of the art reception from the non-
normative critical work of Walter Benjamin, in association with reflections on
aesthetics and philosophy of art developed by Arthur Danto. The approach of these
two authors, while maintaining a controversial dimension, propose to reorganize
aspects of Benjamin's thinking about art, supporting its criticism of the ideal forged by
Enlightenment reason. Thus, this article presents the problem of aesthetics and
history starting from the look that contemporanity launches to the past, which
reframes the major changes that the eighteenth century introduced in the concept of
art.

Keywords: Aesthetics. Philosophy of Art. Art. Reception. Criticism.

Rizzia S. Rocha é doutoranda no Programa de Pós - Graduação em Filosofia da UFMG. Brasileira, residente em
Belo Horizonte - MG, E-mail: [email protected]
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No Iluminismo uma ideia de arte foi formada a partir de uma validade
atemporal e universal cuja sustentação é carente de uma estrutura histórica superior
ao tempo individual das obras. Surge, portanto, um conceito de arte que se pretende
universal, o qual é urdido por uma história da arte cujo pretenso universalismo se
constitui à custa de muitas omissões e exclusões. Essa época coincide com a
criação dos museus, espaços responsáveis por encerrar as produções artísticas,
retirando-as da vida cotidiana. Essa abstração iniciada no século XVIII, evento
simultâneo a criação da estética como disciplina, dá a arte um conteúdo intelectual
próprio e, ironicamente, quase autônomo, pois esse conteúdo é, em muitos casos,
independente das obras. Nesse cenário repercute o que escreve Friedrich Schlegel
em 1797: “naquilo que chamamos de filosofia da arte, habitualmente falta uma ou
outra: ou a filosofia, ou então a arte”1. Passados dois séculos em que a história da
arte se constituiu como história estético-normativa de pretensões universais, Marcel
Duchamp dá início a um processo de desmaterialização do objeto artístico como
objeto estético. A restrição da arte à beleza, escreve Danto em O
descredenciamento filosófico da arte, fez da obra objeto estético subtraído da vida
efetiva e isolado por uma aura cerimonial devotada a contemplação e fruição. Esse
liame estético entre arte e beleza, escreve o filósofo estadunidense, foi uma
estratégia filosófica com importantes implicações políticas, pois transformar a arte
em um mero objeto estético debilita sua força de ação no mundo. Atitude
semelhante acontece ao qualificar a mulher de belo sexo, pois isso retira sua
capacidade de atuar na vida prática como indivíduo cujas soluções e decisões
interferem objetivamente no mundo. Em salas confortáveis, as mulheres praticavam
ações sem finalidade prática, as quais se assemelhavam ao trabalho – tais como
bordar, pintar aquarelas, ler – para servir ao deleite do opressor2. Assim, escreve
Danto, as belas artes, separadas das artes práticas, são “uma espécie de lugar
ontológico vago de nossas preocupações definitórias como seres humanos e com

1
SCHELGEL, F. apud MARC, Jimenez. O que é estética? Rio Grande do Sul: Editora Unisinos,
1999. p. 17.
2
A literatura do século XVIII está repleta de exemplos, mas Dostoiévski faz uma interessante
reflexão sobre o assunto por meio da personagem Nastácia Filippovna em O idiota. A personagem,
que perde a família na infância e é criada por um rico fazendeiro, é mantida numa casa isolada
numa pequena vila e lá serve ao prazer de seu tutor. Ao se tornar adulta, Nastácia segue para
Moscou, torna pública as ações de seu tutor e leiloa a si mesma em casamento.

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respeito às quais, consequentemente, „nada faz acontecer”3. Por isso a afirmação de
Duchamp: “o perigo a ser evitado é o deleite”4.
A tradição estética se revela como um modo de impor limites que debilitam a
arte. Esse descredenciamento é preparado pela filosofia desde Platão que, tendo
consciência dos poderes da poesia, exclui os poetas do Estado. Declara Benjamin
em sua conferência O autor como produtor pronunciada em 1934

Desde então, a questão do direito à existência do poeta raramente tem sido


colocada com essa ênfase; mas ela se coloca hoje. [... Essa questão é]
familiar sob a forma do problema da autonomia do autor: sua liberdade de
5
escrever o que quiser .

A autonomia restrita reverbera no lamento de Auden: “a história política do


mundo seria a mesma se nenhum poema tivesse sido escrito, nenhum quadro
pintado, nenhum compasso composto”6. Impotentes diante da efetividade do mundo,
os artistas se tornam seres aureolados que se alimentam de quintessências e vivem
o dom de produzir coisas belas. Essa é a imagem do artista satirizada por Charles
Baudelaire em seu poema em prosa Perda da Auréola. Nele, um poeta, ao
atravessar a rua, é surpreendido por uma carruagem e, correndo para não ser
atropelado pelos cavalos, perde sua auréola que cai na lama. Sem o acessório
estético que lhe dava a aparente dignidade de poeta, ele pode passear incógnito,
praticar ações baixas, entregar-se à devassidão como um simples mortal7. A
imagem baudelairiana desse artista de aspecto comum é também a imagem da obra
de arte que os meios técnicos de reprodução tornam ordinária. A repetição
cotidianiza as obras dispersando sua aura cerimonial ao oferecê-las aos olhos do
observador nos lugares mais corriqueiros da cidade.
Nessa atmosfera, A fonte de Duchamp surge com intuito de desagregar a
objetificação estética da arte. É importante notar que a presença do feio na arte,
como bem coloca Danto, não nos retira do campo estético, pois tratando de feiura ou
beleza a objetificação é preservada. Assim, existem dois momentos distintos nesse

3
DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 43.
4
DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 46.
5
BENJAMIN. O autor como produtor. In: ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. Obras escolhidas. vol 1. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 120.
6
DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 36.
7
BAUDELAIRE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Imago,
1995. p. 137.

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processo: a desvinculação da estética do conceito de beleza e a desvinculação entre
arte e experiência estética8. Os readymades são esses objetos inestéticos que
lançam a produção artística em um espaço discursivo no qual se torna prática
comum, e muitas vezes imprescindível, a apresentação, junto à obra, de textos de
conteúdo descritivo, político, crítico, a fim de contextualizar um objeto cuja oferta de
estímulos ao aparelho sensorial do observador é, muitas vezes, pequena ou mesmo
nula. O discurso institucionalizado enfraquece diante das muitas práticas artísticas
que buscam uma reintegração à vida cotidiana e ganham cada vez mais visibilidade
em espaços alternativos. Embora a arte se presentifique como processo imerso em
um contexto sócio-histórico-cultural, e em certa medida seja definida por ele, o
discurso artístico ainda é dominado por conceitos absolutos que envolvem a arte
numa aura metafísica descredenciando-a do mundo efetivo.
A distinção entre uma ideia de arte que se constitui como matéria para uma
história normativa da arte9 e a produção artística como parte das manifestações
culturais e, portanto, tão plural como são as várias culturas, modifica o modo de
apreensão da obra de arte singular habituado ao conceito de arte como objeto
estético segregado da vida. Essas mudanças criaram uma extrema instabilidade dos
padrões perceptivos, tornaram o julgamento precaríssimo e tiraram da noção de
obra de arte sua unicidade específica10, escreve de maneira perspicaz o crítico
Mario Pedrosa em um texto de 1959. Essa instabilidade abre caminho para uma
reflexão autocrítica da produção, recepção e lugar social da arte exigindo uma nova
configuração das relações de conhecimento. A postura passiva sustentada pelo
espectador em estado de contemplação ou fruição pouco ou nada favorece a
apreensão de obras esteticamente banais. Esse observador passivo deve dar lugar
ao observador ativo que tem diante de si não um objeto à espera de um juízo, mas
uma obra incompleta que se perfaz no trabalho da recepção. A obra de arte exibe de
maneira patente seu caráter de inacabamento convidando a leituras que a
intensifique, desdobre, atualize.

8
RAMME. Noeli. A teoria institucional e a definição de arte. Revista Poiésis, n. 17, p. 91-103, jul. de
2011. p. 93.
9
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify,
2012. p. 327.
10
PEDROSA, Mario. Considerações inatuais. In: ___. Homem, mundo, arte em crise. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 24.

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A crítica, ação que se configura menos como o julgamento da obra que como
método de seu acabamento11,

inclui o conhecimento de seu objeto. Daí por que a exposição do conceito


primeiro romântico de crítica de arte exige uma caracterização da teoria do
12
conhecimento do objeto que está em sua base .

Assim, apresentando em linhas gerais a teoria benjaminiana do


conhecimento, o filósofo empreende uma reabilitação do conceito de experiência,
causa primordial de sua crítica à epistemologia kantiana13, procurando dissolver a
dicotomia sujeito-objeto responsável pelo empobrecimento do conceito de
experiência. Ao procurar neutralizar essa polarização, Benjamin se afasta da ideia
de um objeto passivo à ação perceptiva de um sujeito e, desse modo, é possível
associar a essa noção uma crítica ao pensamento positivista e sua pressuposição
comum de que o objeto não interfere nas relações de conhecimento. Portanto,
quando surge a denominação objeto de arte neste artigo, ele deve ser compreendido
como descreve Jorge Coli em seu livro, O corpo da liberdade, a saber, como
“materialização de um pensamento no mundo que não encontra equivalente nas
formulações abstratas”14. No trabalho de ressignificação, o conceito de experiência é
caracterizado na linguagem. Na arquitetônica do pensamento benjaminiano,
experiência é linguagem e a reflexão o lugar do conhecimento.
Em sua dissertação sobre os românticos, Benjamin descreve a crítica como
processo gnosiológico cuja base está na reflexão. A reflexão encerra todo o
conhecimento em geral. Nela o pensamento se volta sobre si mesmo tomando sua
forma como seu conteúdo, o pensar como forma do pensar. Nesse processo, a
essência pensante, segundo Novalis, envolta em sua “si-mesmidade é o fundamento
de todo o conhecimento”15. Assim, escreve Benjamin sobre os românticos, não é
possível conhecimento para além do autoconhecimento, ou dito de outra maneira,
11
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
75.
12
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
59.
13
Cf. COLI, Anna Luiza A. O projeto da crítica do conhecimento na obra de juventude de Walter
Benjamin. 2013. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
14
COLI, Jorge. O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac
Naify, 2010. p. 13.
15
NOVALIS apud BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo:
Iluminuras, 2002. p. 60.

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não há conhecimento fora do sujeito, todo conhecimento é um nexo imanente no
sujeito sendo cada coisa uma essência pensante ou núcleo de reflexão. Essa ideia
dissolve a polarização entre sujeito-objeto ao mesmo tempo em que traz o problema
de encerrar o sujeito no isolamento de uma singularidade extrema. A resposta a
essa questão está no medium de reflexão, nele “a coisa e a essência cognoscente
se interpenetram”16. O medium pode ser compreendido como o lugar onde jazem,
sem qualquer ordem relacional, os núcleos de reflexão, ou seja, podemos tomar por
medium o mundo onde tudo o que é efetivo repousa17. Nele, as conexões são
livremente urdidas engendrando conhecimento do mundo no autoconhecimento e
autoconhecimento no conhecimento do mundo. “Não há, de fato, conhecimento de
um objeto através de um sujeito. Todo conhecimento é um nexo imanente [...] no
sujeito”18. E são infinitas as possibilidade de conexão promanadas no processo
reflexivo em que as coisas se agrupam e reagrupam formando novos arranjos. Se os
românticos centralizam o processo de reflexão no objeto, “tudo o que está no
absoluto, toda a efetividade pensa”19, e Fichte o centraliza no eu-absoluto, Benjamin
opta por conservar uma tensão ao invés de resolver o problema do conhecimento
atribuindo maior responsabilidade do processo a um único polo. Benjamin localiza a
ação do conhecimento no âmbito intersubjetivo sustentado por uma tensão entre os
elementos, o que não pressupõe um processo cognitivo aleatório e meramente
subjetivo.
O objeto de arte, nesse contexto, traz inscrito o seu germe crítico, no qual
está a potência de associações, de leituras capazes de intensificar, desdobrar,
atualizar a obra integrando sua singularidade ao todo da arte. Em sua tese,
Benjamin cita o famoso fragmento de F. Schlegel, “apenas o incompleto pode ser
compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser apenas
desfrutado”20. A concepção de uma obra incompleta, que tem no processo crítico de

16
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
62.
17
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
59.
18
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
63.
19
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
60.
20
BENJAMIN. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.
77.

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recepção o seu acabamento, compreende a produção artística como projeto. Nesse
sentido, a crítica é a consumação das obras, pois ela destrói a aparência de
completude do objeto artístico, exibindo o seu caráter fragmentário.
A crítica produtiva, necessária à mudança do modo de apreensão da obra na
arte contemporânea, questiona o estatuto da arte em meio à experimentação,
liberdade e democratização. No entanto, nesse contexto livre dos limites tradicionais,
é comum encontrarmos um público perdido e uma crítica detida em compor e/ou
exaltar a figura do artista, mas que pouco ou nada diz a respeito das obras de arte.
A compreensão da arte como um processo que se perfaz na recepção crítica faz da
reflexão fulcro do qual a obra tem seu desdobramento produtivo. Cabe ressaltar, se
ainda não está claro, que a crítica benjaminiana não é normativa, prescindindo,
portanto, de critérios estéticos a priori para a avaliação das obras. Segundo
Benjamin, é no germe crítico, inerente à obra de arte, que consiste a potência de seu
desdobramento interpretativo. A obra de arte não se restringe a um objeto estético
que deva ser avaliada por critérios perceptuais. A contemporaneidade evidencia a
estética como elemento de segunda ordem na apreensão do objeto artístico e Arthur
Danto explicita essa mudança em A transfiguração do lugar-comum. Nesse trabalho
o valor da percepção estética é amplamente discutido ao tratar o problema das
obras de artes indiscerníveis de meros objetos, como o caso da Brillo Box, o
exemplo recorrente do autor. Ao tratar a questão, Danto indaga as bases ontológicas
da arte procurando pensá-las além da conformação estética. Ele argumenta que
“existem duas ordens de reações estéticas, dependendo de o objeto ser uma obra
de arte ou uma simples coisa real idêntica”.21 Portanto, existem qualidades estéticas
e qualidades artísticas, as quais, segundo Danto, não são equivalentes.
Pensemos, então, no exemplo trazido pelo próprio Danto em seu livro O
abuso da beleza, Untitled (Perfect Lovers) (FIGURA 1) obra do artista cubano Félix
Gonzalez-Torres, e nas reações perceptivas que a visão dos relógios nos provoca,
pois a obra consiste em dois relógios de parede comuns. Esses relógios,
perfeitamente iguais, são alimentados com o mesmo tipo de bateria e sincronizados.
Por razões indeterminadas um dos relógios irá interromper seu funcionamento antes
do outro. O artista expõe essa obra logo após a morte de seu namorado e podemos

21
DANTO. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify. 2005. p. 151.

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afirmar que as reações suscitadas por ela diferem daquelas incitadas por relógios de
parede quaisquer, embora as características sensoriais desses artefatos sejam as
mesmas.

FIGURA 1 – Untitled (Perfect Lovers), 1991, Felix Gonzalez-Torrez.


Fonte: http://ljmstudio.blogspot.com.br/2013/08/perfect-lovers.html Acesso em 16 out. 2014.

Os relógios de Gonzalez-Torres evocam, segundo a segundo, a ameaça de


um presente que pode estancar no tempo se fazendo memória de uma ausência,
pois um dos relógios, quando parar, marca uma permanência ao lado daquele que
ainda continua o seu ritmo. A angústia sobre qual dos relógios estacará primeiro e
qual deles seguirá sua marcha rotineira ao lado do que se tornará o registro de um
passado é uma vivência diária a espera do encontro marcado com a catástrofe.
Perfect Lovers conta a expectativa latente da falta inevitável que, quando se fizer,
questiona a indiferença do tempo cronológico que manterá o seu ritmo no
funcionamento solitário da outra peça. A obra figura a rememoração cíclica do
passado, que não pode ser esquecido, o qual virá à tona a cada vez que o relógio
completar o seu ciclo e passar pela hora exata em que o outro teve seu
funcionamento interrompido. Então, nesse curto momento em que os dois relógios
novamente se encontram no tempo, reavivando, num átimo, o antigo
companheirismo sincrônico, é lançada a possibilidade de uma ressignificação do
presente e passado. O fluxo cronológico é atravessado e interrompido pela
rememoração e isso acontece, para usar uma referência cara a Benjamin, como um

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lampejo22. Esse segundo denso, momento permanente da morte do amante, quando
acontece, modifica de maneira irreparável a passagem do tempo.
Ao não intitular a obra e expor seu tema entre parênteses - Untitled (Perfect
Lovers) -, o artista exibe a estrutura da experiência do tempo ultrapassando os
limites do acontecimento particular. A contínua circunferência descrita pelo relógio
contém em si o ciclo de vida e morte, amor e perda, que partilhamos. Ela oferece
uma organização descontínua do tempo como base da narrativa e configura uma
estrutura temporal que renuncia ao elemento épico. O ponteiro imóvel do relógio
parado arranca, por uma explosão (sprengt ab) aquele momento da “continuidade
histórica” reificada. Ele faz explodir (sprengt auf) a homogeneidade do momento,
impregnando-o com o presente23. A cada vez que o momento passado, denso de
significado, fulgurar reconhecido no presente, há um choque entre os dois relógios
no qual o tempo cronológico contínuo é ressignificado. Assim, o acontecimento não
é inserido num tempo aditivo que “mobiliza a massa dos fatos para preencher um
tempo homogêneo e vazio”24.
Os relógios que compõem parte da obra de Gonzalez-Torres não oferecem
estímulos sensoriais distintos daqueles que os relógios de parede ordinários são
capazes de oferecer. Ambos são materialmente indistinguíveis. Somos levados a
reagir de maneira diferente diante da obra por qualidades artísticas e não qualidades
estéticas, embora as últimas sejam, evidentemente, parte importante na composição
de sentido do objeto artístico.
Para Benjamin, que mantém toda a sua filosofia apoiada na linguagem,
perceber é um ato de leitura; a ação perceptiva apreende, no conceito, a verdade
dos fenômenos (percepção na língua alemã é Wahrnehmung e o verbo perceber é
wahrnehmen, ou seja, tomar como verdade). “Os fenômenos subordinam-se aos
conceitos. E são estes que dissolvem as coisas nos seus elementos constitutivos” 25.
Assim, por intermédio do conceito, os fenômenos compõem uma configuração de
sentido a partir dos fragmentos de verdade que a leitura perceptiva apreende. A

22
“É somente como imagem que lampeja justamente no instante de sua recognoscibilidade, para
nunca mais ser vista, que o passado tem de ser capturado”. BENJAMIN. Tese V. In: LÖWY,
Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses. São Paulo: Boitempo, 2005. p.
62.
23
BENJAMIN. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 516 frag. N 9a, 6.
24
BENJAMIN. Teses XVII. In. LÖWY, 2005, p. 130.
25
BENJAMIN. Origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. p. 20.

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base dessa organização teórica da percepção é a adesão de Benjamin ao
pensamento romântico de que o mundo deve ser lido. Mas essa leitura não acontece
de maneira extensiva, como alguém que percorre as palavras de um texto
agregando significados. Ler, no sentido benjaminiano, é construir a partir do dado e
o sujeito é o móbil que constrói relações de significado no mundo.
A perda do valor da forma como meio de legitimação da obra de arte
desencadeia uma crise no discurso estético tradicional. Livre da objetificação
estética, a obra de arte radicaliza a concepção de percepção como leitura na qual a
coisa, bem como o contexto no qual ela surge, devem ser interpretados e, com isso,
o observador que contempla passivo perde lugar para convocar o observador ativo
que compreende a obra a partir de uma estrutura constelar de sentido. A crítica
benjaminiana ainda tem muito a dizer sobre esse ajuizamento produtivo da obra de
arte. E se Benjamin proclama em Rua de mão única o fim da crítica, é só para fazê-
la ressurgir sob outra perspectiva.

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