Miolo MV7 - Fev 1
Miolo MV7 - Fev 1
Miolo MV7 - Fev 1
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Editor geral
Martín Hernández
Conselho editorial
Alicia Sagra (Argentina - [email protected])
Felipe Alegría (Espanha - [email protected])
Florence Oppen (Estados Unidos - [email protected])
Francesco Ricci (Itália - [email protected])
Henrique Canary (Brasil - [email protected])
João Pascoal (Portugal - [email protected])
José Welmowicki (Brasil - [email protected])
Martín Hernández (Brasil - [email protected])
Nazareno Godeiro (Brasil - [email protected])
Paulo Aguena (Brasil - [email protected])
Ricardo Ayala (Espanha - [email protected])
Ronald León Núñez (Paraguai - [email protected])
Projeto gráfico
Ana Clara Ferrari
Diagramação e capa
Martha Piloto
Traduções
Paula Maffei
Jéssica Augusti
Revisão técnica
Luciana Candido
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31 Crítica ao texto “Sobre o caráter do programa”
Paulo Aguena
6
companheiras, foi apresentada, de forma oficial, uma das obras de
teatro que Cecília escreveu: Luta mulher poética.
A obra foi apresentada por um grupo de atrizes que Cecília for-
mou e dirigiu naquele país. O teatro estava cheio, e o público aplau-
diu de pé. Assim, renderam uma última homenagem a esta artista e
lutadora incansável.
Na homenagem realizada no teatro Ruth Escobar, em São Paulo,
as centenas de pessoas presentes levantaram seu punho e gritaram:
Cilinha presente! Até o socialismo sempre! Nada mais justo.
7
P
CARÁTER DO PROGRAMA
O próximo congresso mundial da LIT, que acontecerá em 2016,
iniciará a discussão sobre o programa da Internacional.
No pré-congresso e no congresso, serão discutidos três temas:
caráter do programa, conclusões sobre o leste europeu; a
relação dos revolucionários frente à democracia burguesa, às
eleições e ao parlamento.
Neste dossiê, apresentamos os dois textos sobre o caráter do
programa que foram discutidos na última reunião do Comitê
Executivo Internacional (CEI) da LIT-QI.
Sobre o caráter do programa
Martín Hernández
1. O imperialismo:
100 anos de desenvolvimento as forças destrutivas
1.1. O capitalismo desempenhou um papel revolucionário na his-
tória da humanidade ao ter criado “as forças produtivas mais abun-
dantes e mais grandiosas que todas as gerações passadas juntas”3.
Mas o modo de produção capitalista, no qual a produção é social (fei-
ta por todos os homens) e a apropriação individual (feita pelo capi-
talista), por sua própria natureza, não podia desenvolver, de forma
ininterrupta, a sociedade.
1.2. Em função dessa contradição, o capitalismo, desde seu nas-
cimento, apesar de desenvolver as forças produtivas, sempre foi um
obstáculo, ainda que relativo, a esse desenvolvimento. Porém chegou
um momento em que houve nele uma profunda transformação. Foi
quando o capitalismo, em sua fase imperialista, entrou em decadên-
cia a tal ponto que as grandes potências, para sobreviver, se viram
obrigadas a promover uma guerra mundial entre elas, a Primeira
Guerra Mundial, pela disputa dos mercados e das colônias.
2 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto Comunista.
3 Ibid.
10
1.3. A Primeira Guerra Mundial significou uma destruição em
massa de forças produtivas que o próprio capitalismo havia desen-
volvido nas décadas anteriores. Desta forma, essa guerra abriu uma
nova época na humanidade. Uma época em que o desenvolvimento
das forças produtivas deu lugar ao desenvolvimento das forças des-
trutivas.
1.4. Em função desses fatores, o marxismo previu que, a partir da
Primeira Guerra Mundial, se generalizariam e se aprofundariam os
conflitos sociais. Nascia, assim, uma nova época de “guerras e revo-
luções” (Lenin).
1.5. Para o Manifesto Comunista, só havia uma forma para que
as forças produtivas se desenvolvessem de forma ininterrupta: que
houvesse uma revolução no modo de produção. Que a produção fos-
se social e que, diferentemente do que ocorre no capitalismo, a apro-
priação também o fosse. Essa tarefa só poderia ser cumprida pelo
proletariado, porque esta era a única classe social que não tinha nada
a perder com o fim do capitalismo.
1.6. Confirmando a caracterização de Marx, Engels e Lenin, a par-
tir da guerra de 1914, o que ocorreu foi um processo ininterrupto
de guerras (entre elas a Segunda Guerra Mundial) e de revoluções,
várias vitoriosas (como a Revolução Russa, a chinesa e a cubana) e
outras derrotadas, desviadas ou congeladas (como a alemã, a mexi-
cana, a francesa, a espanhola, a argelina, a boliviana, a nicaraguense
e a salvadorenha).
1.7. O triunfo da Revolução Russa confirmou, de forma inequívo-
ca, o prognóstico do Manifesto Comunista. A mudança no modo de
produção, a partir da expropriação do capitalismo, provocou um de-
senvolvimento das forças produtivas sem precedentes na história da
humanidade, num país atrasado.
1.8. Porém, ao não se estender a revolução aos países mais avan-
çados e, a partir daí, para o resto do planeta, quem continuou do-
minando a economia mundial foi o imperialismo e, desta maneira,
apesar da profunda luta de classes que se deu nos últimos 100 anos
e, apesar inclusive dos triunfos revolucionários, as forças produtivas,
de conjunto, continuaram estancadas e o que seguiu se desenvolven-
do foram as forças destrutivas.
1.9. Nossos mestres, que colocaram todos seus esforços e espe-
ranças para que o proletariado libertasse o conjunto da humanidade
alertaram que, se isso não se desse, a sociedade sofreria um profun-
do retrocesso a tal ponto que, em reiteradas oportunidades, levan-
tou-se a disjuntiva: socialismo ou barbárie.
11
1.10. Hoje, há 100 anos do início da Primeira Guerra Mundial e
do desenvolvimento sem precedentes das forças destrutivas, somos
testemunhas do que nossos mestres previram: o planeta está em
profunda decadência econômica, cultural, moral e, mais ainda, sua
existência, a médio prazo, está ameaçada.
1.11. Atualmente, os refugiados pelas guerras chegam a quase
60 milhões de pessoas. Os desempregados deixaram de ser uma
minoria da população que o capitalismo usava como “exército in-
dustrial de reserva” e passaram a ser o drama de populações intei-
ras que, por esse motivo, se decompõem socialmente. Os pobres
e miseráveis4, em nível mundial, constituem, aproximadamente, a
metade dos habitantes do planeta. Atualmente, apesar de a escra-
vidão ser ilegal, existem mais escravos que no século 19, quando
ela era legal.5 Só nos últimos quarenta anos, reduziu-se em 52%
o total de animais vertebrados no mundo. Anualmente, 35% das
mulheres (1.225 milhões) sofrem algum tipo de violência física e/
ou sexual, ao passo que, ao longo da vida, 70% sofrem esse tipo
de agressão. O atual arsenal atômico, segundo os especialistas, po-
deria destruir o mundo em cinco minutos. Por fim, a parte mais
dramática da situação atual: 800 mil pessoas se suicidam todos os
anos, e esse número vem aumentando de forma assustadora em
nível mundial.6
1.12. Os revolucionários, ao elaborar o programa, devem fazê-lo
a partir desta realidade e não a partir dos aeroportos ou shoppings.
Não a partir da posição dos “privilegiados”, que comem todos os dias
ou que têm uma casa confortável. Porque essa não é a realidade da
população mundial. Essa é a realidade de só uma parte e não a da que
mais cresce.
1.13. Na Rússia, pouco tempo antes da Revolução de Outubro,
Lenin escreveu um programa que intitulou: “A catástrofe que nos
ameaça e como combatê-la”. Em seu interior, perguntava aos re-
formistas: “É possível avançar temendo marchar ruma ao socialis-
mo?”. Nosso programa teria de formular uma pergunta similar aos
“novos” reformistas: é possível salvar o planeta sem expropriar o
4 Consideram-se pobres as pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia, e
miseráveis as que o fazem com menos de 1,25.
5 Calcula-se que, em meados do século 19, havia 27 milhões de escravos. Na atu-
alidade, a OIT fala de 21 milhões, apesar de várias ONGs que cuidam deste tema
falarem na existência de 30 a 36 milhões de escravos.
6 Segundo a OMS, a cada 40 segundos, uma pessoa se suicida. Entre os homens jo-
vens (15 a 29 anos), o suicídio é a segunda causa de mortalidade, e entre as mulheres
da mesma idade, a primeira; 75% dos suicídios ocorrem em países pobres.
12
capitalismo? É possível avançar temendo marchar rumo ao socia-
lismo?
13
2.6. O marxismo conseguiu dar resposta ao tema da passagem da
sociedade de classes ao comunismo como nenhuma outra corrente
ou personalidade o tinha conseguido. Foi uma resposta científica e,
por isso, embora ela ainda não tenha podido ser verificada até o fim
(não se chegou ao socialismo e muito menos ao comunismo), passou,
de forma bem sucedida, nas primeiras provas do laboratório da his-
tória.
14
a) que a burguesia, que no passado tinha cumprido um papel pro-
gressivo, não continuaria cumprindo mais;
b) que isso era porque o sistema capitalista havia nascido com
uma contradição fundamental: a produção social e a apropriação in-
dividual;
c) que a contradição anterior gerava uma nova contradição entre
a organização da produção no interior da indústria e a desorganiza-
ção (anarquia da produção) na sociedade;
d) que essa anarquia da produção se via incentivada por outra lei
do capitalismo, “a queda tendencial da taxa média de lucro”, o que ge-
rava uma luta cada vez mais violenta entre os diferentes capitalistas;
e) que a anarquia capitalista gerava as crises, que eram a amostra,
numa escala reduzida de tempo, da falência do sistema capitalista já
que nelas “a sociedade se encontra subitamente reconduzida a um
estado de súbita barbárie [...] por quê? Porque a sociedade possui
muita civilização, muitos meios de vida, muita indústria, muito co-
mércio. As forças produtivas de que dispõe já não favorecem o re-
gime burguês da propriedade; pelo contrário, elas já são poderosas
demais para estas relações [...]”9;
f) que a burguesia não tinha mais condições de ser a classe domi-
nante “[...] a burguesia não é capaz de dominar porque não é capaz de
assegurar a seu escravo (aos operários) a existência sequer no marco
da escravidão [...]”;
g) que “de todas as classes que hoje enfrentam a burguesia, só
o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária [...]. Os
proletários não têm nada que salvaguardar; têm de destruir tudo o
que até agora veio garantindo e assegurando a propriedade privada
existente [...]”;
h) que o proletariado só podia superar a principal contradição
da sociedade tomando o poder e expropriando a burguesia, “[...] o
primeiro passo da revolução operária é a elevação do proletariado
à classe dominante [...]. O proletariado se valerá de sua dominação
política para ir arrancando gradualmente da burguesia todo o capi-
tal, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do
Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante,
e para aumentar com a maior rapidez possível a soma das forças pro-
dutivas”.10
3.4. Marx e Engels, alguns anos depois de escreverem o Manifes-
to Comunista, fizeram uma correção importante: “A Comuna de Paris
9 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto Comunista.
10 Ibid.
15
demonstrou que a classe operária não pode se limitar simplesmente
a tomar posse da máquina estatal, como está, e servir-se dela para
seus próprios fins”.11 Ou seja, não se tratava de tomar o controle polí-
tico do Estado, mas de destruí-lo para, a partir daí, construir um novo
Estado, a ditadura do proletariado.
3.5. No entanto, as conclusões fundamentais do marxismo foram
duramente questionadas nas últimas décadas do século 19, quando
o capitalismo da livre concorrência foi sendo superado pelo capitalis-
mo monopolista, o que provocou, num primeiro momento, um novo
desenvolvimento das forças produtivas.
3.6. A concentração de capitais em poucas mãos (particularmen-
te do capital financeiro) e os acordos entre os capitalistas por meio
dos trustes e sindicatos patronais levou os ideólogos da burguesia
a preverem que a anarquia capitalista (e com ela suas crises) teria
chegado ao fim.
3.7. Lenin chegou a uma conclusão oposta: “A supressão da cri-
se pelos cartéis é uma fábula dos economistas burgueses, os quais
põem todo seu empenho em embelezar o capitalismo. Pelo contrário,
o monopólio que é criado em vários ramos da indústria aumenta e
intensifica o caos próprio de toda a produção capitalista em seu con-
junto [...].12
3.8. Os fatos confirmaram as opiniões de Lenin. Longe de o impe-
rialismo ter garantido o desenvolvimento harmônico da sociedade,
o que se deu, a partir de seu desenvolvimento foram duas guerras
mundiais, interimperialistas (a primeira com 10 milhões de mortos,
e a segunda com 60 milhões), enquanto as crises, ao invés de desa-
parecerem, se desenvolveram como nunca, alcançando seus picos
máximos nos anos de 1929 e 2008. Assim, o programa marxista, ex-
presso no Manifesto Comunista, passou na primeira prova dos fatos.
3.9. A segunda prova e, em grande medida a definitiva, foi a Revo-
lução Russa, porque, nela, os operários destruíram o Estado capita-
lista e construíram um Estado de um novo tipo. Uma ditadura do pro-
letariado que derrotou a burguesia no terreno militar, a expropriou
e, a partir daí, deu-se um desenvolvimento das forças produtivas tão
grande que fez Trotski dizer:
Os imensos resultados obtidos pela indústria, o início promissor de um
florescimento da agricultura, o crescimento extraordinário das velhas
cidades industriais, a criação de outras novas, o rápido aumento do número
de operários, a elevação do nível cultural e das necessidades, são os resultados
16
indiscutíveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do velho mundo
acreditaram ver a cova da civilização. Já não há necessidade de discutir com
os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou seu direito à
vitória não nas páginas de O Capital, mas numa arena econômica que constitui
a sexta parte da superfície do globo; não na linguagem da dialética, mas na
do ferro, do cimento e da eletricidade. Mesmo no caso de a URSS, por culpa
de seus dirigentes, sucumbir aos golpes do exterior – coisa que sinceramente
esperamos não ver – continuaria como garantia o fato indestrutível de que
a revolução proletária foi a única que permitiu a um país atrasado obter, em
menos de vinte anos, resultados sem precedentes na história.13
17
nal, o socialismo (ou a primeira fase do comunismo) só poderá ser
alcançado em nível internacional.
4.2. Esta ideia aparece já nos primeiros trabalhos de nossos mes-
tres. Por exemplo, em Princípios do Comunismo, elaborado por Engels
em 1847, no qual o autor, respondendo à pergunta “é possível esta
revolução num só país?”, afirma: “Não. A grande indústria, ao criar o
mercado mundial, uniu já tão estreitamente todos os povos do globo
terrestre, principalmente os povos civilizados, que cada um depende
do que ocorre na terra do outro”.14
4.3. No entanto, o grande debate que ocorreu poucos anos depois
da tomada do poder, entre Trotski e Stalin, se deu partir do “aporte
teórico” de Stalin sobre o “socialismo num só país”.
4.4. A restauração do capitalismo nos ex-estados operários foi a
mais cruel demonstração prática do caráter utópico e reacionário da
teoria/programa do “socialismo num só país”.
4.5. Ao a revolução não avançar para os países centrais, funda-
mentalmente pelos acordos do stalinismo com o imperialismo, não
somente as forças produtivas não se desenvolveram como também,
onde estavam se desenvolvendo (nos ex-Estados operários), come-
çaram a retroceder a tal ponto que a burocracia, diante do caos eco-
nômico de seus estados, viu-se obrigada a restaurar o capitalismo.
4.6. Não foi fácil para o stalinismo convencer o partido bolchevi-
que e a III Internacional, fundada no ano de 1919, sobre a teoria do
socialismo num só país, que significava a “coexistência pacífica com
o imperialismo”, pois, apesar do cansaço das massas, entre os bolche-
viques havia reservas revolucionárias. Mas Stalin, à frente do aparato
do partido, conseguiu vencer esta resistência com o que ele haveria
de impor como método permanente do stalinismo: a perseguição
aos dissidentes, as campanhas de calúnias, as fraudes, as torturas e
os assassinatos, a ponto de transformar a ditadura do proletariado
no oposto do que foi nos primeiros sete anos. Naquela época, era a
maior democracia que se tinha alcançado em qualquer tipo de Es-
tado, pois era a ditadura da ampla maioria (a classe operária e os
setores populares) contra a ínfima minoria (os nobres, a burguesia e
os setores mais privilegiados da pequena burguesia). Stalin transfor-
mou, por meio da violência do Estado, essa ditadura contra os nobres
e a burguesia numa ditadura de uma nova minoria, contra os revolu-
cionários e a classe operária.
4.7. Atualmente, a maioria da esquerda se diz contrária ao stali-
nismo, mas a denúncia que faz do mesmo não vai além do que fez Ni-
14 ENGELS, Friedrich, Princípios do Comunismo.
18
kita Krushev, no XX Congresso do PCUS15. Denunciam seus métodos,
mas não explicam o porquê de tanta violência e repressão.
4.8. Não dizem que a violência foi centralmente contra os revolu-
cionários que não estavam de acordo com pactuar com o imperialis-
mo, com apoiar o pacto entre Hitler e Stalin ou com as frentes popu-
lares com as burguesias nacionais.
4.9. Os novos críticos do stalinismo (que, em grande medida, são
os stalinistas do passado) não o julgam por sua estratégia, mas pelos
métodos que utilizou a serviço dessas estratégias. Por isso, não o res-
ponsabilizam pela barbárie atual a que a classe operária e os povos
estão sendo submetidos.
4.10. É verdade que foi o imperialismo que nos levou à situação
atual, mas, como afirmava Moreno, não podemos acusar nossos ini-
migos por nossas derrotas. O imperialismo está provocando uma ca-
tástrofe. Mas por que o imperialismo, depois do triunfo da Revolução
Russa e das outras revoluções, depois da construção da III Interna-
cional, depois da derrota do nazismo, continua sendo dono do mun-
do? Houve um aparato internacional que impediu o triunfo da revo-
lução mundial e, para isso, realizou um verdadeiro genocídio dos que
queriam fazê-la. Este aparato tem um nome: stalinismo. Eles foram,
durante mais de 60 anos, os agentes do imperialismo no interior dos
estados operários e das massas do mundo.
4.11. O trotskismo foi a única corrente internacional que enfren-
tou até o fim a teoria/programa stalinista do “socialismo num só
país” e, justamente por isso, foi a única corrente que formulou a única
alternativa para evitar a restauração do capitalismo: a revolução po-
lítica, a qual, mantendo as conquistas da revolução, deveria expulsar
a burocracia do poder e recolocar (colocar) a classe operária à frente
dos estados operários degenerados ou burocratizados.
4.12. Esta política, a partir da década de 1950, se tornou realidade
quando a classe operária e as massas foram às ruas (na Alemanha
Oriental, na Hungria, na Polônia e na Checoslováquia) para derrubar
a burocracia.
4.13. A falta de uma direção revolucionária (pois a classe operária
destes países não tinha se recuperado do genocídio stalinista) pos-
sibilitou que os tanques de Moscou derrotassem estas revoluções.
Porém, à luz dos processos do leste, elas nos deixaram uma lição.
Sem a revolução política triunfante, seria impossível que estes esta-
dos abandonassem sua política de colaboração com o imperialismo
15 XX Congresso do PCUS, realizado em fevereiro de 1956, no qual Krushev denun-
ciou os crimes de Stalin.
19
(justificada com a teoria do “socialismo num só país”) e, por isso, a
restauração capitalista, conduzida pela burocracia, acabou sendo im-
posta.
4.14. O socialismo será internacional ou não será. Essa é a prin-
cipal conclusão que é necessário tirar dos processos do leste euro-
peu. Se a vanguarda operária e revolucionária não tira essa conclu-
são, pouco terá servido para o futuro da humanidade uma de suas
maiores conquistas: a derrota do aparato stalinista, os coveiros da
revolução.
20
condição para a ação centralizada e a condição para que seja a base
desse partido quem o controle. Para acabar com a burguesia em nível
nacional, precisa-se de partidos nacionais, e para triunfar, esses par-
tidos precisam de uma direção revolucionária. Essa direção só pode
ser construída no marco de uma internacional que não pode ser ou-
tra senão a que a IV Internacional pos em seu programa, que precisa
ser atualizado, estão resumidas as experiências e lições do marxis-
mo, desde o Manifesto Comunista até o Programa de Transição, que
não foi mais do que uma atualização, frente à URSS burocratizada,
das lições dos quatro primeiros congressos da III Internacional.
5.8. Por outro lado, a Internacional é a única garantia de que é pos-
sível construir direções nacionais verdadeiramente revolucionárias,
pois uma direção nacional, por mais forte que seja, sempre será mais
débil que uma direção internacional por mais débil que esta seja.
Essa é a principal lição que a luta de mais de 100 anos para construir
a Internacional nos deixou.
5.9. É óbvio que não existe nenhuma organização perfeita, nem
em nível nacional, nem em nível internacional.
O partido, sem dúvidas, também pode se equivocar. Com o esforço comum,
corrigiremos os erros. Podem se infiltrar em suas fileiras elementos pouco
valiosos. Com esforço comum, os eliminaremos. As milhares de pessoas
que entrem amanhã em suas fileiras possivelmente careçam da educação
necessária. Com o esforço comum, elevaremos seu nível revolucionário. Mas
nunca esqueceremos que nosso partido é agora a maior alavanca da história.
Afastados desta alavanca, cada um de nós não é nada. Com esta alavanca nas
mãos, somos tudo.16
21
frentamentos ou inclusive naqueles casos em que se põem à frente
dos mesmos, como aconteceu em quase todas as revoluções do pós-
guerra.
6.3. A importância de analisar a existência e o comportamento
deste setor é dupla. Por um lado, porque é um fator muito importante
da realidade mundial e, por outro, porque o Manifesto Comunista fez
uma previsão equivocada sobre o futuro deste setor.
6.4. O Manifesto tem uma atualidade que impressiona. Mas, como
não poderia deixar de ser, tem algumas insuficiências e debilidades
que foram sendo corrigidas por seus próprios autores e por seus
principais seguidores.
6.5. Uma dessas debilidades é que tem um prognóstico equivoca-
do sobre o futuro das classes médias, já que afirma que
Toda a sociedade vai se dividindo, cada vez mais, em dois grandes campos
inimigos, em duas grandes classes, que se enfrentam diretamente: a
burguesia e o proletariado. [...] Pequenos industriais, pequenos comerciantes
e rentistas, artesãos e camponeses, toda a escala inferior das classes médias
de outros tempos, caem nas fileiras do proletariado. [...]17
22
e Engels (como herança das formações pré-capitalistas) e também a
nova classe média, que Trotski agregava a sua análise.
6.8. Mas o Manifesto Comunista, apesar de ter se equivocado no
prognóstico, acertou no fundamental: a caracterização social e polí-
tica destes setores:
Os estamentos médios – o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o
artesão, o camponês – todos eles lutam contra a burguesia para salvar da
ruína sua existência enquanto tais estamentos médios. Não são, portanto,
revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reacionários, já
que pretendem voltar a roda da história para trás. São revolucionários
unicamente enquanto tenham diante de si a perspectiva da passagem
iminente ao proletariado.19
23
6.11. Na Revolução Russa, Lenin teve que enfrentar a pequena
burguesia e suas expressões políticas, fundamentalmente os SR (o
partido da pequena burguesia rural) e os mencheviques (o refor-
mismo operário com grande peso da intelectualidade pequeno bur-
guesa) e, como produto deste enfrentamento, chegou a duas gran-
des conclusões. Primeiro, que era impossível tomar o poder sem
derrotar as correntes reformistas e oportunistas. Segundo, que era
impossível, por seu caráter reacionário, ganhar o conjunto das ca-
madas intermediárias antes da tomada do poder e, portanto, trata-
va-se de dividi-la. De ganhar um setor e paralisar o resto para tomar
o poder e, a partir do poder, com medidas concretas, mostrar a estes
setores que seu lugar deveria ser junto ao proletariado.
6.12. Atualmente os movimentos da pequena burguesia, dada a
crise da direção revolucionária, exercem uma pressão brutal para
desviar as massas do caminho da revolução, para bloquear o levante
do movimento operário e para obrigar (por hora com bastante êxito)
os pequenos grupos revolucionários ou centristas, a capitular a seus
interesses mesquinhos. Assim vemos como, a maioria destes grupos,
seguem as diferentes modas da pequena burguesia. Em seu momen-
to (década de 70) foram guerrilheiristas; depois, na década de 90,
Zapatistas; nos anos 2000 eram os socialistas do século 21 de Chávez
e atualmente são os eleitores do Syriza na Grécia ou do Podemos na
Espanha.
6.13. Nas revoluções lutamos pela unidade da classe operária e
pela divisão da pequena burguesia, sem a qual o triunfo da revolução
é impossível, mas, só poderemos conseguir essas duas tarefas derro-
tando as correntes reformistas.
6.14. A ideia oportunista, de hoje andarmos juntos ao reformismo,
para melhor dialogar com as massas, é a melhor forma de preparar
as derrotas de amanhã. A fórmula bolchevique, para os reformistas,
que estavam dispostos a encarar alguma luta (“golpear juntos, mar-
char separados”) é a única que abre possibilidades de vitória.
24
7.3. Estes argumentos não têm a menor consistência. O proleta-
riado é o produto mais genuíno do capitalismo. Sem proletariado não
há capitalismo. Em certos momentos e países, o número de proletá-
rios pode ser maior ou menor, mas não é isso o que determina seu
papel na revolução. Na Revolução Russa o proletariado industrial era
somente 2% da população e na revolução boliviana era menor ainda.
Se em ambos os casos o proletariado pode atuar como caudilho dos
outros setores explorados não foi por seu número, mas pelo lugar
que ocupa na produção e por sua concentração.
7.4. Por outro lado, atualmente, na maioria dos países do mundo,
a porcentagem de proletariado é muito maior do que foi na Revolu-
ção Russa.
7.5. No entanto, é verdade que nas revoluções do pós-guerra e
também nas da atualidade o proletariado atuou, mas não ocupou
o lugar central que a história tinha reservado a ele. Isto, em vários
casos, se deveu a causas objetivas como foram, por exemplo, as im-
portantes derrotas que havia sofrido no período anterior (China, por
exemplo) mas, em linhas gerais, a falta de protagonismo do proleta-
riado deveu-se a questões subjetivas, à crise da direção revolucioná-
ria ou mais precisamente à ação dos aparatos contrarrevolucioná-
rios, à socialdemocracia, ao stalinismo, às igrejas que permanente-
mente tentaram fazer com que o proletariado se misturasse e aliasse
à burguesia.
7.6. Nesse sentido, a possibilidade de que o proletariado seja o
caudilho das próximas revoluções está vinculada, em grande medida,
ainda que não somente a isso, ao processo de superação da crise de
direção revolucionária.
7.7. A história demonstrou que direções pequeno burguesas ou
burocráticas, em situações excepcionais, podem, apoiando-se na pe-
quena burguesia, expropriar a burguesia e construir Estados operá-
rios. No entanto, a história também demonstrou, tragicamente, que
é impossível que dessas revoluções surjam regimes de democracia
operária e, por isso, estes Estados que, do ponto de vista econômico
eram de transição ao socialismo, se transformaram em Estados de
transição à restauração do capitalismo.
7.8. O ocorrido com a restauração mostra isso. Na URSS, para que
se chegasse à restauração, foi necessária uma contrarrevolução san-
grenta. Ao contrário, nos outros Estados, à medida em que a classe
operária não estava no poder, pode-se passar, sem uma contrarre-
volução sangrenta, de Estados operários burocratizados a Estados
capitalistas.
25
7.9. Pouco tempo antes de morrer Moreno fez uma reflexão muito
profunda que tem a ver diretamente com esta questão e que nos deve
servir de guia para a ação:
Nós tratamos de dirigir o proletariado, jamais nos afastamos dele. Isto não
é uma declamação, é uma política internacional de classe que se desprende
de uma análise teórica profunda...Se a classe operária não nos segue,
não chegaremos a nenhuma parte. Nos burocratizamos. Capitulamos ao
campesinato. É inconcebível fazer a revolução proletária sem proletariado.
Ao longo de minha vida política, depois, por exemplo, de olhar com simpatia
o regime que surgiu da Revolução Cubana, cheguei à conclusão de que é
necessário continuar com a política revolucionária de classe, ainda que nos
atrase a chegada ao poder em vinte, trinta anos, ou o que seja. Nós desejamos
que seja a classe operária a que verdadeiramente chegue ao poder, por isso
queremos dirigi-la20.
26
rios tentem superar essa contradição adaptando, de uma forma ou
de outra, o programa à essa consciência ou diretamente ocultando
o programa.
8.3. Esse último foi o caminho adotado pela socialdemocracia
clássica quando, ao final do século 19 e em função de sua adaptação à
democracia burguesa, dividiu o programa em dois. O mínimo, que le-
vava às massas e o máximo, que só usavam para “os dias de festas”23.
8.4. Na atualidade, essa pressão para abandonar o programa, nor-
malmente se expressa de três maneiras distintas: Em primeiro lugar,
na resistência a difundir o programa, amplamente, entre as massas,
tal como recomendavam Marx e Engels no Manifesto comunista. Em
segundo lugar, na elaboração das consignas para a ação tomando
como referência, em primeiro lugar, a consciência imediata das mas-
sas e não sua necessidade imediata o que nos leva, com bastante fre-
quência, a ficar presos a ações reacionárias e aos aparatos contrarre-
volucionários que as dirigem24.
Em terceiro lugar, se expressa na negativa em agitar, entre as mas-
sas, as consignas que não estejam de acordo com seu nível de cons-
ciência. Este é o erro mais frequente e, com certeza, o mais grave.
Porque as consignas de transição, que são a essência do programa,
normalmente não estão ao nível da consciência das massas e, por
isso, dificilmente elas poderão provocar ações como estas, mas é fun-
damental agitar estas consignas porque elas preparam as ações do
futuro e por isso, no presente, nos permitem agrupar, em torno a elas,
os melhores elementos das mobilizações por questões mínimas.
8.5. Este tipo de comportamento, de sempre buscar adaptar o pro-
grama à consciência das massas, seja da forma como for, indica uma
falta de compreensão sobre o verdadeiro objetivo do programa, que
não é ir ao encontro da consciência das massas, mas, pelo contrário,
desatar um combate contra ela, contra o burguês que todo operário
tem em sua cabeça.
23 Ibid.
24 Na Argentina, em 1973, uma boa parte da esquerda, incluindo o Partido Operário
(PO), acompanhando a consciência imediata das massas, foi receber o General Peron
quando este voltava ao país para tentar controlar o movimento operário; em 1982
estes setores fizeram o mesmo diante da visita do Papa, quando este foi à Argenti-
na em apoio aos ingleses durante a Guerra das Malvinas e algo similar ocorreu em
Portugal quando, em 1999, as tropas das Nações Unidas, que incluía a polícia portu-
guesa, invadiu o Timor Leste, que lutava por sua independência da Indonésia, com
o pretexto de “ajudar” a sua luta. Nenhuma organização de esquerda exigiu, naquele
momento, a retirada das tropas imperialistas das Nações Unidas. Umas porque es-
tavam a favor da invasão (SU) e outras porque consideravam que esta consigna não
estava no nível de consciência das massas portuguesas.
27
Os reformistas têm bom olfato para o que o público deseja; e, como Norman
Thomas25, dão-lhe. Mas essa não é uma atitude revolucionária séria. Devemos
ter coragem para sermos impopulares, para dizer “vocês são idiotas, “são
tolos”, “os traem”, e algumas vezes, com escândalo, levar adiante nossas
ideias apaixonadamente. É necessário sacudir o operário de vez em quando,
explicar, e depois voltar a sacudi-lo26.
28
dem uma ruptura com alguns dos pilares básicos do marxismo. Por-
que é verdade que a restauração do capitalismo, nos ex-Estados ope-
rários, significou uma derrota para a classe operária à nível mundial,
mas não é verdade que a destruição dos partidos comunistas teve
o mesmo significado. Foi totalmente ao contrário. Justamente pelo
caráter contraditório dos processos do leste, o efeito que teve sobre
a consciência também o foi. Mas ainda no caso em que houvesse tido
somente um efeito negativo, seria completamente falso e profunda-
mente antimarxista, afirmar que por isso as revoluções socialistas e
o próprio socialismo são impossíveis.
Não é o nível de consciência das massas que determina a possi-
bilidade de vitória ou derrota da revolução socialista. A consciência
da ampla maioria das massas, sob o capitalismo, antes da revolu-
ção, durante a revolução e inclusive tempos depois de seu triunfo, é
sempre burguesa. “As ideias dominantes em qualquer época nunca
foram mais que as ideias da classe dominante”28.
Quem faz as revoluções são as massas com sua mobilização, mas
não as fazem com um plano previamente elaborado. Não fazem a
revolução, porque, previamente, se convenceram da necessidade
do socialismo. A fazem porque se mobilizam contra as condições
de vida que o capitalismo lhes impõe. Se não fosse assim, nenhuma
revolução socialista teria triunfado em toda a história.
Por outro lado, afirmar que não podem existir mais revoluções
socialistas equivale a dizer que o capitalismo poderá satisfazer as
necessidades das massas. Significa não entender que as forças pro-
dutivas estão estancadas há mais de 100 anos e isto não mudou com
a restauração do capitalismo. Pelo contrário. É justamente esta reali-
dade que dá bases objetivas para as revoluções socialistas que, para
que sejam triunfantes, precisam de uma direção operária e revolu-
cionária que as conduza até o final.
A direção revolucionária ainda não existe e, em muitos aspectos,
os processos do leste trouxeram dificuldades de um tipo diferente
para construí-la, por exemplo, o questionamento sobre construir
partidos revolucionários. Mas esta não é uma dificuldade nova. Esta
dificuldade já existia, e de forma muito mais desenvolvida, quando
a maioria da vanguarda operária e popular, pelo peso do stalinismo,
construía partidos, que acreditavam que eram revolucionários, mas
que na realidade eram para colaborar com a burguesia e o imperia-
lismo. Em outras palavras, atualmente, como produto dos processos
28 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista.
29
do leste, para os trotskistas é difícil construir um partido, entre ou-
tras coisas, porque há um questionamento aos partidos, mas é muito
mais difícil construir um partido stalinista, e essa é a grande dife-
rença com a situação anterior quando milhões de pessoas entravam
nestes partidos. Construir a direção revolucionária, à nível nacional e
mundial é uma tarefa muito difícil (sempre foi), mas deve-se encarar
a tarefa, que sem dúvida seria muito mais fácil se os milhares de di-
rigentes e ativistas que hoje dizem que o socialismo é impossível se
somassem à ela.
As massas vêm fazendo sua parte, agora é necessário que os mar-
xistas revolucionários, junto com a vanguarda operária e popular, fa-
çam a sua. Não há nenhuma lei que diga que não o possamos fazer. Só
há uma condição: que saibamos aprender com as lições do passado,
sem o qual a construção da direção revolucionária é impossível.
30
Crítica ao texto
“Sobre o caráter do programa”
Paulo Aguena
Apresentação
Começo por esclarecer que em geral tenho acordo com o grosso
das definições programáticas presentes no texto “Sobre o caráter do
programa”, principalmente as que se desdobram da época29 históri-
ca aberta a partir da decadência das forças produtivas consequência
da fase imperialista do capitalismo. É o caso da definição do caráter
científico do socialismo e do comunismo, da necessidade da ditadura
do proletariado, do caráter revolucionário (bolchevique) do partido,
do papel do stalinismo e o significado do processo de burocratização
e degeneração dos ex-Estados operários, do caráter Internacional da
revolução, a necessidade da reconstrução da IV Internacional, da im-
portância das lutas contra a opressão das mulheres, dos negros, dos
homossexuais e das nacionalidades, entre outros.
Minhas críticas mais bem se referem aos processos e fenômenos
relativos à atual etapa da luta de classes mundial. Neste texto trata-
rei dos seguintes temas: 1) as conclusões sobre os acontecimentos do
leste, relação de forças e consciência; 2) a pequena burguesia e a nova
classe média; 3) o fenômeno do (neo)reformismo e como combatê-lo.
Por razões de espaço deixo de lado outra discussão igualmente
importante também presente no texto sobre a aplicação do método
do Programa de transição, mais precisamente, a relação entre o pro-
grama e as palavras de ordem (ver ponto 8). Penso que é necessário
reformulá-lo.
De toda forma os temas que ora apresento são importantes não
só porque incidem sobre uma determinada visão de mundo, mas
também sobre o desafio de construir os partidos revolucionários na
atualidade.
29 Sobre as definições de épocas, etapas e situações ver Nahuel Moreno As revolu-
ções do século 20.
1. Sobre os acontecimentos do leste, relação de forças e consciência
O texto “Sobre o caráter do programa” aprovado por maioria no
CEI, a meu ver, está cruzado por uma série de conclusões equivoca-
das sobre os acontecimentos do leste, a começar pela relação de for-
ças considerada sob a ótica da etapa. Isso nos leva a ter uma visão
distorcida do momento histórico que estamos vivendo.
Hoje, passados 25 anos desde que estes acontecimentos ocorre-
ram, estamos perante o desafio de explicar porque o ascenso que tem
percorrido o mundo no último período, a exemplo da Europa e no
Norte da África, até agora não levou a novas revoluções que expro-
priassem a burguesia.
A explicação para todo esse processo pode ser simples: isso se
deve à continuidade da crise de direção revolucionária. Mas essa res-
posta, longe de resolver o problema, o torna ainda intrigante: passa-
do tanto tempo esta crise de direção ainda parece estar longe de ser
resolvida. Apesar da queda do aparato stalinista, tal qual no período
entre guerras, os partidos revolucionários seguem sendo organiza-
ções relativamente marginais, inclusive nos principais centros da luta
de classes.
Penso que o texto desenvolve um raciocínio teórico que tenta de-
monstrar o contrário, ou seja, passa uma visão de que após os acon-
tecimentos do leste estaríamos vivendo uma etapa – ainda que não
utilize esta terminologia – mais favorável30, não só em termos da eta-
pa da luta de classes, ou seja, da relação de forças, mas também em
relação às possibilidades da construção do partido revolucionário. O
texto inclusive retrocede em relação a elaborações anteriores vota-
das em nossos últimos congressos. Estas pelo menos reconheciam os
efeitos negativos que os acontecimentos do leste haviam provocado
na consciência das massas31.
30 Em documentos aprovados em congressos mundiais anteriores chegamos a defi-
nir a atual etapa, conhecida como “quarta etapa”, como “revolucionária” e, posterior-
mente, como “progressiva”.
31 Ainda no último Congresso Mundial (2013) dizíamos: “La conciencia siempre va
por detrás de acciones. Estas van contra los gobiernos y regimenes, contra el impe-
rialismo, pero la conciencia sigue presa de la democracia burguesa, del pacifismo, de
la idea de que el “socialismo fracasó”, del sindicalismo y el economicismo, de formas
anarquistas u “horizontalistas”, de la religión, de mil y unas ilusiones. Incluso a veces
gira a la derecha, como la confianza al ejército en el Egipto, o a Capriles en Venezuela.
Sin criterio de independencia e clase ni de la necesidad e un partido revolucionario (en
el sentido de la revolución socialista) es una ruptura que busca salidas centristas, de
“profundización de la democracia” o de “socialismo del siglo 21”, o de “hacer la revolu-
ción sin tomar el poder”. Resurgen sectores anarquistas, ultraesquerdistas en el método
pero reformistas en el programa y la estrategia. La perspectiva del socialismo no está
32
Creio que para avançarmos nesse debate, a esta altura, essa dis-
cussão já não pode se desenvolver somente no terreno da teoria e
dos prognósticos. Passado todo esse tempo desde os acontecimen-
tos do leste, ela deve se desenvolver já no terreno do balanço. Nes-
te sentido, por exemplo, já não há como refutar o fato de que na
própria LIT-QI, enquanto corrente revolucionária, apesar de ter se
reconstruído deixando para trás seus piores momentos, ainda não
conseguimos dar um salto qualitativo construindo sólidos partidos
de vanguarda.
A meu ver o texto apresentado comete o erro de, por um lado,
subestimar o significado da derrota da revolução política preco-
nizado pelo programa da IV Internacional e a consequente res-
tauração capitalista dos ex-Estados operários; e, por outro lado,
de superestimar o processo que levou ao fim do aparato stalinista
mundial, a partir de uma interpretação equivocada sobre como
isso ocorreu.
O texto reconhece que a restauração capitalista e o desapareci-
mento dos Estados operários significaram uma derrota, mas atri-
bui ao fim do aparato stalinista uma vitória tal que teria compen-
sado essa derrota (ver ponto 9.7 do texto). Não por acaso logo na
introdução o documento afirma, por exemplo, que a destruição do
aparato stalinista, em boa medida, “limpou” o caminho para cons-
trução da direção revolucionária, quando isso não é verdade. O fato
é que novas direções reformistas vem ocupando o lugar dos velhos
aparatos e se transformam em novos obstáculos. Logo mais à frente
o próprio texto reconhece isso, mas o faz para dizer que essas “no-
vas direções” traidoras ou reformistas têm uma capacidade “muito
menor” que o stalinismo para “desviar e derrotar” os processos re-
volucionários.
Pode ser que isso venha a ser verdade, mas até o momento essa
caracterização em torno à qual há muito tempo estamos trabalhando
não se confirmou pela realidade. A verdade é que existência dessas
“novas direções” já se transformou num fator que dificulta a constru-
ção do partido revolucionário e faz com que a crise de direção revo-
lucionária se prolongue.
A meu ver essas e outras conclusões equivocadas sobre os acon-
tecimentos do leste, tanto em termos de relação de forças quanto
33
da construção do partido revolucionário, decorrem basicamente de
dois erros sobre a visão do processo. Em primeiro lugar, o não enqua-
dramento do fim da burocracia stalinista nos marcos da restauração,
mais precisamente do fim dos ex-Estados operários. Isso termina
levando a uma compreensão incorreta sobre fim da burocracia en-
quanto casta dirigente.
Em segundo, a própria subestimação do significado da desapari-
ção dos ex-Estados operários para as massas de todo o mundo. Infe-
lizmente, para elas este fato não significou o fracasso do stalinismo,
mas o “fracasso do socialismo”.
Trotski havia prognosticado nos anos 30 que a ex-URSS estava
ante a disjuntiva “revolução política” ou “restauração capitalista”. Os
fatos demonstraram que o que prevaleceu não foi a primeira alterna-
tiva, ou seja, uma revolução política com a consequente liquidação da
burocracia e a retomada do poder pela classe operária em base aos
soviets democráticos, mantendo, ao mesmo tempo, a propriedade
coletiva dos meios de produção. O que prevaleceu foi a segunda al-
ternativa, ou seja, a restauração do capitalismo e o desaparecimento
dos ex-Estados operários que se transformaram em novos Estados
burgueses.
Para ser mais exato, em termos de processo, o que se passou foi o
que Trotski denominou em A revolução traída de “terceira variante”:
a própria burocracia terminou levando a cabo a restauração capita-
lista se transformando ela mesma numa “nova classe possuidora” 32.
Já não havia mais como tirar privilégios de um Estado completamen-
te em crise e que só produzia escassez.
Pode-se argumentar que temos que levar em consideração que
foram as massas mobilizadas que, “ao fim e ao cabo”, terminaram por
derrubar o aparato stalinista. Embora isso seja verdade, temos que,
ao mesmo tempo, também considerar que a destruição desse apa-
rato burocrático já se deu nos marcos de uma mudança do caráter
social do Estado e do processo de restauração econômica em curso.
Assim, o fim do regime stalinista mais bem significou uma revolução
de caráter democrático burguês, o que é algo completamente diferen-
te da revolução política preconizada pela IV Internacional. Esta sig-
nificava derrubar a burocracia, mas manter as bases econômicas do
Estado operário.
Por outro lado, é preciso levar em consideração que as próprias
mobilizações foram dirigidas por direções opositoras tão ou mais
32 Trotski, Leon, A revolução traída, Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann,
São Paulo, 2005.
34
restauracionistas que os governos que estavam à frente do regime.
No caso da ex-URSS essas mobilizações foram encabeçadas por
Boris Ieltsin que, pela via eleitoral, transformou-se no sucessor de
Gorbachev. Eleito presidente, tratou de implementar um plano res-
tauracionista ainda mais liberal, como foi o caso do chamado plano
“Gaidar”33.
Enfim, a própria burocracia opositora em aburguesamento tratou
de se apoiar nas mobilizações que destruíam o antigo aparelho buro-
crático, já dividido e em crise, para construir um novo aparato estatal
mais adequado ao desenvolvimento capitalista: um novo Estado, um
novo regime, um novo governo, novos partidos etc.
Por outro lado, não é secundário levar em consideração como as
massas entenderam tudo isso. Como dizia Moreno, para os pequenos
grupos revolucionários a consciência é algo objetivo. Neste sentido, é
necessário considerar que o desenlace dos acontecimentos do leste
não levou a que as massas desfizessem a enorme confusão provoca-
da pela ação contrarrevolucionária do stalinismo. Para elas, os ex-Es-
tados operários burocráticos era sinônimo de socialismo, da mesma
forma que os partidos comunistas stalinizados eram o mesmo que
partidos leninistas (bolcheviques). Assim, os trabalhadores não só
da URSS, mas de todo o mundo, despojados de uma direção revolu-
cionária, concluíram que o fim dos Estados operários burocráticos
significaram o “fracasso do socialismo” não só em termos de expe-
riência histórica, mas também em termos de modelo de sociedade
e de doutrina. Isso, sem dúvida, resultou num enorme retrocesso na
consciência.
Assim, já sob a ótica do balanço, passados 25 anos, não há como
deixar de concluir que os acontecimentos do leste que culminaram
na restauração capitalista e no desaparecimento dos ex-Estados ope-
rários significaram uma derrota histórica. Toda uma etapa de expro-
priações aberta com a Revolução de Outubro e que se estendeu a 1/3
do planeta, se perdeu. Não se trata de um acontecimento qualquer.
Basta considerar que a revolução russa de 1917, ao lado da revolução
francesa de 1789, é considerada por muitos como a maior revolução
da história.
Reconhecer o fracasso e a derrota dessas experiências não signi-
fica concluir que o socialismo tornou-se “impossível” ou que a época
33 Gaidar, Yegor Timurovich, economista da Academia de Ciências, foi primeiro-mi-
nistro do então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, entre de 15 de junho e 14 de
dezembro de 1992. Sob a assessoria de Jeffrey Sachs, diretor do Earth Institute da
Universidade de Columbia (EUA), foi responsável por um plano de reformas neoli-
berais na Federação Russa.
35
da revolução socialista tenha se perdido, como de fato erroneamen-
te chegaram a concluir outras correntes. Desde certo ponto de vista,
chegar a essa conclusão, seria o mesmo que – guardando as devidas
diferenças – a restauração da monarquia dos Bourbons34 na França
de 1814 tivesse significado a volta definitiva ao feudalismo e o fim
da época burguesa. Sabemos que não foi assim. A ela se seguiu a re-
volução de Julho de 1830 e as jornadas revolucionárias de 1848 que
consolidou o domínio definitivo da burguesia.
A restauração capitalista mais bem representa um intervalo
histórico na longa marcha pelo socialismo. Do ponto de vista da
classe operária esse fato deve ser encarado como uma importante
experiência histórica – ainda que dolorosa – que faz parte de sua
aprendizagem enquanto classe dirigente de uma nova sociedade,
tal como se passou um dia com a própria burguesia. Sob este as-
pecto, podemos parafrasear Rakovski, que em meio à brutal con-
trarrevolução stalinismo, soube afirmar com sabedoria, paciência
e otimismo que, afinal, “nenhuma classe veio ao mundo com o dom
de governar”35.
Por fim, reconhecer a derrota que significaram os acontecimen-
tos do leste, tampouco se trata, pelo menos de minha parte, “chorar
a morte do stalinismo”. Trata-se apenas de compreender de forma
coerente uma série de novos processos e fenômenos que vieram a
ocorrer ao longo dos anos 90: a brutal intensificação da ofensiva
econômica, política, militar e ideológica do imperialismo; o atraso
na consciência e no nível de organização das massas, em particu-
lar da classe operária; ao invés de desprendimentos à esquerda
dos antigos partidos stalinistas e social-democratas, crise e giro à
direita da maioria da esquerda mundial; e, por fim, compreender
a própria crise do trotskismo e, dentro dele, o quase desapareci-
34 A “Restauração Francesa” ou a “Restauração Bourbons” tem início com a derro-
ta de Napoleão Bonaparte, em 6 de abril de 1814, por uma coligação de potências
europeias. Ela põe fim ao seu império e restaura a monarquia aos herdeiros de Luis
XVI, da Dinastia dos Bourbons, decapitado durante a Revolução. Ela durou até a Re-
volução de julho 1830, salvo um pequeno intervalo conhecido como o “Governo de
cem dias”, quando então Napoleão volta de seu exílio e depõe Luís XVIII com a ajuda
do exército e apoiado na insatisfação popular. Logo em seguida, no entanto, termi-
na sendo definitivamente derrotado na “Batalha de Waterloo” e Luís XVIII volta ao
trono em 1815.
35 Rakovski, Christian, O perigos profissionais do Poder, Astrakán, 06 de agosto de
1928. Rakovski foi presidente do soviet da Ucrânia em 1918. Em 1923 foi nomeado
embaixador da URSS em Londres e, em 1925, em Paris. Foi um dos primeiros diri-
gentes da Oposição de Esquerda junto com Trotski contra Stalin, Zinoviev e Kama-
nev, a denominada “Troika”.
36
mento da corrente ortodoxa, o “morenismo”, mais precisamente da
LIT-QI.36 Tudo isso não tem nada de “antimarxista”. É justamente
essa compreensão coerente, que começa por saber distinguir uma
derrota de uma vitória, é que pode nos ajudar a preparar o futuro
com confiança e firmeza.
Assim, como não poderia deixar de ser, passados 10 anos da res-
tauração, as crises econômicas capitalistas voltaram à cena e a re-
sistência das massas foi se tornando cada vez maior. A derrota dos
EUA na guerra do Iraque e Afeganistão; a crise econômica mundial
de 2007-2008; as poderosas mobilizações de massas que cruzaram
o Velho Continente e o despertar de uma nova “Primavera dos Povos”
no Norte da África; tudo isso, sem dúvida, abriu uma nova situação
mundial. Podemos dizer que as novas gerações começaram a colocar
novamente as coisas no seu devido lugar.
No entanto, essa nova realidade ainda encontra uma série de li-
mitações impostas pela própria etapa aberta a partir da derrota do
leste. Estes novos acontecimentos ainda não foram suficientes para
revertê-la completamente. Embora chegassem a derrubar governos
e até mesmo regimes ditatoriais, o ascenso não avançou em direção
a novas revoluções que expropriassem a burguesia e colocasse nova-
mente a classe operária no poder. Em que pese os avanços na consci-
ência, como o caso do questionamento ao capitalismo, aos políticos
e algumas instituições do regime (parlamentos), ainda predomina
entre as massas, inclusive na maioria da vanguarda, a descrença
no socialismo como alternativa. Isso faz com que as ideias e saídas
reformistas ainda sejam vistas como mais viáveis. A primeira vista
isso pode parecer um contrassenso, mas não nos esqueçamos nem
por um minuto que a crise de direção revolucionária ainda persiste.
Assim, podemos dizer que a atual realidade mundial está marcada
por uma contradição entre o avanço da situação e a etapa retrocesso
aberta a partir do leste.
Desde o ponto de vista da construção do partido revolucionário
ocorre algo semelhante. Como não poderia deixar de ser, a etapa do
pós leste inaugurou um longo processo de recomposição e reaprendi-
zagem das massas e sua vanguarda, principalmente, da classe operária.
Depois de um primeiro período em que predominou o retrocesso, na
medida em que foi se modificando a situação e as massas se colocando
em movimento, esse processo também entrou num novo momento.
37
No espectro à esquerda, ressurgiu com certo peso movimentos
e organizações já há muito superados pela história. O repúdio ao
modelo stalinista de partido e as traições da socialdemocracia, num
primeiro momento, trouxe à tona o repúdio à forma partido e deu
origem ao ressurgimento das correntes filo-anarquistas com certa
influência, principalmente na juventude.
Por outro lado, na esteira do desgaste da social-democracia e suas
variantes, foram ganhando cada vez mais peso organizações refor-
mistas recicladas ou novas organizações reformistas, as quais deno-
minamos neorreformismo. É o caso, por exemplo, do PSOL no Brasil,
dos chamados partidos anticapitalistas, como o NPA, na França, o
Bloco de Esquerda, em Portugal; ou ainda, o Syriza na Grécia, o Pode-
mos na Espanha. Essas organizações terminaram ocupando o espa-
ço à esquerda e ganhando terreno apoiando-se nos próprios limites
da situação. Elas empalmam com a consciência de amplas camadas
das massas que sem vislumbrar o socialismo uma alternativa, per-
manece com seus horizontes limitados às reformas do capitalismo e
da democracia burguesa. É sobre a base destas limitações que estes
partidos conseguem se construir reforçando ainda mais a situação
com ideologias reformistas e utópicas de todo tipo, tais como a cons-
trução do capitalismo com “rosto humano”, do “socialismo do século
21”, da “democracia real” etc etc.
Dessa forma, como dissemos anteriormente, o fim do aparato sta-
linista ao invés de “limpar” o caminho para construção do partido re-
volucionário – a partir de uma realidade mundial marcada pela con-
tradição entre etapa e situação, tal como apontamos anteriormente
– deu lugar a novos obstáculos. Trata-se de um erro colocar um sinal
de igual entre o fim do aparato stalinista e a construção do partido
revolucionário.
Assim, aproveitar a novas oportunidades que nos abre a partir
do ascenso e da nova situação mundial, nos exige, em primeiro lu-
gar, compreender essa realidade. E, em segundo, ter uma política
que corresponda a ela, ou seja, uma política que, apoiando-se no
programa e todo o arsenal tático que o marxismo nos legou, ajude
as massas e a nova vanguarda a avançarem sua experiência com o
regime democrático burguês, com o capitalismo, com as novas di-
reções neorreformistas para, dessa forma, fazer com que elas reto-
mem sua confiança no socialismo e engrossem as fileiras do partido
revolucionário.
Somente dessa maneira, com paciência e sem ultimatismos, po-
demos ir conquistando espaço e acumulando forças até que a rea-
38
lidade mude globalmente e então possamos, finalmente, dar saltos
na construção de partidos revolucionários. Não somente enquanto
sólidos partidos de vanguarda, mas enquanto partidos com influên-
cia de massas.
2. A “existência” e o “comportamento”
da pequena burguesia e da nova “classe média”
O texto retoma toda uma discussão sobre o papel da pequena bur-
guesia nos processos revolucionários. Ele dá destaque ao tema por-
que entende que esse setor joga um papel muito importante na atual
realidade mundial. Daí a necessidade de estudar tanto a “existência”
quanto o “comportamento” desse setor social nos processos da luta
de classes.
No entanto, penso que ao tomar como ponto de partida para esse
estudo as posições de Trotski e não às Marx sobre a dinâmica da pe-
quena burguesia no curso do desenvolvimento capitalista, de alguma
forma, isso terminou contribuindo para gerar confusões e até mesmo
equívocos.
O debate em torno a essa questão não é novo em nossa cor-
rente. Ele terminou envolvendo discussões sobre as distintas de-
finições de classe operária presentes nas elaborações de Marx e
em Trotski. Como sabemos, a posição de Moreno37 foi dar razão ao
primeiro.
Esta discussão teórica, a princípio, parece não ter grandes conse-
quências. Mas isso não é assim. Na verdade ela termina afetando a
discussão sobre a dinâmica e o peso da pequena burguesia, da classe
média e da classe operária ao longo do capitalismo. Penso que por
terminar cruzando com outros debates, afeta até mesmo a discussão
sobre o comportamento político da pequena burguesia nos proces-
sos atuais da luta de classes.
De todo modo não cabe aqui fazer uma digressão sobre a defini-
ção de classe operária em Marx ou em Trotski. Esclareço, no entanto,
que em relação a esse tema compartilho do ponto de vista do More-
no, o que de certa forma termina incidindo sobre a discussão.
37 Na verdade era a posição do Secretariado Internacional e foi defendida por Mo-
reno no CEI de abril de 1986: “Marx y Trotski han dado definiciones aparentemente
distintas de clase obrera y pequeña burguesía. Trotski hablaba de una moderna pe-
queño burguesía, que eran empleados de cuello blanco, como se dice en sociología
yanqui. Y para Marx todo lo que recibía un salario era miembro de la clase obrera.
Nosotros nos inclinamos por la definición de Marx.” Logo em seguida, este tema foi
abordado sob a forma de polêmica por dois artigos na revista Correio Internacional
sob o título “La definición marxista de classe obrera”.
39
Assim, por exemplo, entendo que os “técnicos, empregados do co-
mércio, administradores etc” citados por Trotski como a “nova classe
média” no “A 90 anos do Manifesto comunista”, não são, para Marx,
parte da pequena burguesia. Interpreto que para ele na verdade
fazem parte dos trabalhadores assalariados, tais como seriam hoje
os comerciários, bancários, professores etc. Quando Marx no Mani-
festo comunista se refere as “classes medias” cita explicitamente os
“pequenos industriais, os pequenos comerciantes, os que vivem de
renda, artesãos e camponeses”, o que é uma coisa muito diferente.
Trata-se de pequenos “empreendedores”, que trabalham por “conta
própria”, camadas inferiores das classes médias do passado.
Desta forma, se partirmos das definições de Marx, vamos concluir
que os setores apontados por Trotski como a “nova classe média” es-
tariam na verdade engrossando as fileiras da classe trabalhadora e
não da pequena burguesia.
A partir daí poderíamos dar a discussão como encerrada. No en-
tanto, penso que esse argumento não a esgota. Se a continuamos sob
o ponto de vista da definição que Marx atribui as “classes médias” no
Manifesto comunista, penso que a ideia de que a dinâmica da peque-
na burguesia tende a diminuir até desaparecer, enquanto o proleta-
riado, ao contrário, tende a crescer, me parece correta. Ainda que a
pequena burguesia siga existindo e, inclusive, tenha peso em deter-
minados países como afirma o documento, essa dinâmica histórica
foi confirmada.
Voltemos nossos olhos um pouco para a dinâmica da classe tra-
balhadora em nível mundial. Observemos, por exemplo, a gigantes-
ca transformação que o capital está operando no campo. Cada vez
mais ele está dando lugar não só a um novo proletariado agrícola,
mas também a semiproletários, ou mesmo a lúmpens-proletários,
que passam a viver nas “favelas” das grandes cidades. Aliás, essas
grandes concentrações urbanas, representam hoje, nada mais nada
menos que 1/6 da população mundial. É na esteira de processos
como esses que pela primeira vez na história a população urbana
ultrapassou a rural. Não é por menos. Só na China, em pouco mais
de duas décadas, emergiram do campo entre 100 e 200 milhões de
novos trabalhadores urbanos.
Esse processo expressa e ao mesmo tempo é parte de outro pro-
cesso histórico mais global que os geógrafos há muito vem denomi-
nando de “urbanização do mundo”. Alguns opinam que estamos as-
sistindo ao desaparecimento da oposição existente desde os inícios
da civilização entre o campo e a cidade.
40
Outro exemplo mais conhecido de transformação social agora en-
volvendo novos setores pequeno-burgueses é o que ocorre com os
chamados “profissionais liberais”, tais como os médicos, advogados,
jornalistas etc. É facilmente constatável para qualquer pessoa o mas-
sivo processo de assalariamento destes setores.
Esses processos de transformação de setores pequeno-burgueses
em assalariados, por sua vez, nada mais são do que um reflexo de que
as relações de exploração capitalista tem se estendido como nunca
antes na história. O capital está submetendo as mais variadas ativida-
des humanas aos seus interesses. Basta observar que a população as-
salariada atualmente já gira em torno de 3 bilhões de pessoas, sendo
que pela primeira vez os assalariados junto com os semiproletários
constitui a maioria da população mundial.
A própria restauração capitalista na China, Rússia e nos países do
leste, junto com a Índia, aportaram durante os anos 90, nada mais
nada menos que 1,47 bilhão de novos operários ao mercado mun-
dial. Dessa forma, a força de trabalho colocada a disposição do capi-
tal, antes contada em torno de 1,46 bilhão, foi praticamente duplica-
da neste período38.
Assim, mesmo considerando que o capitalismo tenha criado
meios artificiais para a manutenção da existência social da pequena
burguesia, não me parece razoável crer que isso tenha conseguido
reverter à tendência de aumento do peso social do trabalho assala-
riado na sociedade. Neste sentido, me parece um tanto quanto des-
proporcional falar de “pressão brutal” da pequena burguesia para
desviar as massas do caminho da revolução (ponto 6.16). O fator que
está incidindo para que as massas se desviem da revolução não são é
esse. Como disse, para mim se trata antes de tudo dos limites impos-
tos pela relação de forças, produto derrota do leste.
Se pensarmos em termos de peso social, pelo contrário, penso
que devemos ser otimistas. Aliás, é este fato econômico e social que
se torna uma das bases – não a única – do otimismo de que a classe
operária ainda possa ser considerada o principal motor da revolu-
ção socialista mundial. Por acaso podemos imaginar o que passará
na luta de classes mundial quando o gigantesco proletariado chinês
– que já começa a dar seus primeiros passos! – se colocar em movi-
mento com toda carga?
Outra discussão que o texto suscita é sobre o “comportamento”
da pequena burguesia. Sem dúvida este é outro tema de suma im-
38 Freemann, Richard, “China, India and the doubling of the labor force: Who pays
the price of globalization?”, The Globalist, 03/06/2005.
41
portância já que o papel da pequena burguesia pode fazer com que
a balança da revolução penda para um lado ou para outro. Daí a im-
portância dos revolucionários terem uma política correta para esse
setor social.
Ainda que essa versão final do texto tenha melhorado e, ademais,
corretamente, reafirme a necessidade dos revolucionários terem
uma política para dividir a pequena burguesia, a meu ver, ele segue
cometendo o erro de apresentar esse setor social como uma classe
homogênea e com uma “tendência à conciliação”, ao “reformismo”
etc. (ponto 6.13).
Por outro lado, também utiliza um argumento equivocado, o
seu “caráter reacionário”, como o fator que impede de ganhar “o
conjunto” dessa “camada intermediária” para a tomada do po-
der (ponto 6.15). Essa explicação encerra uma contradição em si
mesma. Se fosse esse o motivo não haveria como ganhar sequer
uma parte dela. Reação e revolução são processos com signos
opostos.
Penso que essas afirmações unilaterais e pouco precisas que apa-
recem no texto são frutos de um raciocínio errôneo que confunde a
tendência histórica desse setor social caracterizado por Marx como
“conservador” e “reacionário” – o que lhe quita a possibilidade de ser
uma classe consequentemente revolucionária, tal como afirma o pró-
prio documento -, com seu comportamento concreto nos processos
revolucionários.
Trotski, em seu texto “É verdade que a pequena burguesia
teme a revolução?”39, passa uma visão diferente que nos permi-
te desfazer qualquer confusão. Ele esclarece: “Os especialistas do
Parlamento, que acreditam conhecer o povo, gostam de repetir:
‘Não se deve assustar as classes médias com a revolução; elas não
gostam de extremos. Generalizada desta forma, a afirmação é ab-
solutamente falsa”.
E explica: “Naturalmente, o pequeno proprietário tende à ordem,
enquanto seus negócios marcham bem e enquanto tem a esperança
de que marchem ainda melhor. Porém, quando perde essa esperança,
é facilmente atacado pela raiva e se dispõe a abandonar-se às medi-
das mais extremas. (...)”.
E, por fim, conclui: “... é falso, triplamente falso, afirmar que atual-
mente a pequena burguesia não se volta para os partidos operários
porque teme ‘medidas extremas’”.
39 Leon Trotski, “Aonde vai a França?” (fins de outubro de 1934), pág. 27, Editora
Desafio, São Paulo, 1994.
42
Como vemos isso é diferente de dizer de tendência da pequena
burguesia à “conciliação” ou ao “reformismo”. Mais bem Trotski fala
de tendências a “medidas extremas”.
Outra coisa é que a pequena burguesia é incapaz de dar uma sa-
ída política independente das duas classes fundamentais, ou seja,
do proletariado e da burguesia. Isso porque, como diz o Manifesto,
a defesa de seus interesses só podem ser atendidos desde o ponto
de vista do passado já que essas “classes médias” são reminiscên-
cias sociais do período histórico anterior. É desde esse ponto de vista
que devemos interpretar as palavras de Marx ao se referir a ela como
“conservadora” ou “reacionária” ou querer fazer “girar a roda da his-
tória para trás”.
Coisa diferente é seu comportamento quando sua existência se
vê concretamente ameaçada pelo capital. Neste momento, como diz
Trotski, ela tende a “medidas extremas”. É então quando se abre a
possibilidade, como diz Marx no Manifesto, de que ela deixe de de-
fender seus “interesses atuais pelos futuros”, passando a “adotar o
ponto de vista do proletariado”.
Vejamos o que diz Trotski sobre o tema:
A pequena burguesia é economicamente dependente e está politicamente
atomizada. Por isso não pode ter uma política própria. Necessita de
um “chefe” que lhe inspire confiança. Este chefe individual ou coletivo,
indivíduo ou partido, pode ser fornecido por uma ou outra das duas classes
fundamentais, seja pela grande burguesia, seja pelo proletariado.
43
a garantia de que o governo soviético encabeçado pelo proletariado
distribuiria as terras aos camponeses pobres. A manobra surtiu efei-
to. Os SR´s se dividiram e a maioria de seus delegados se aliou aos
bolcheviques no Congresso dos Soviets que se decidiu pela tomada
do poder, vindo a compor o governo junto com os bolcheviques até
julho de 1918.
Por isso, em consonância com Lenin, Trotski, no texto acima refe-
rido, define da seguinte maneira a política que o proletariado deveria
ter em direção à pequena burguesia:
(...) a pequena burguesia pode também encontrar seu chefe no proletariado.
(...) Para atrair a pequena burguesia, o proletariado deve conquistar sua
confiança. E, para isso, deve começar por ter confiança em suas próprias
forças. Precisa ter um programa de ação claro e estar determinado a
lutar pelo poder por todos os meios possíveis. Unido por seu partido
revolucionário para uma luta decisiva e implacável, o proletariado diz aos
camponeses e aos pequenos burgueses da cidade: “Luto pelo poder. Eis aqui
meu programa: estou pronto a me entender com vocês para modificar esse
ou aquele ponto. Não usarei a força a não ser contra o grande capital e seus
lacaios; com vocês, trabalhadores, quero fazer uma aliança baseada num
determinado programa”.
44
Sem dúvida, em meio à crise capitalista que atravessa a Europa,
existe uma parte dela que toma a “medida extrema” de girar à ul-
tra-direita, engrossando as fileiras de organizações como a “Aurora
Dourada”. Mas existe outro que vem girando à esquerda que são par-
te, quando não protagonizam, as massivas mobilizações, marchas,
enfrentamentos de rua, ocupações de praças etc e etc. Como dizia
Trotski, o proletariado deve ver neles seus aliados potenciais e não
seus inimigos. Não precisamos nos deter aqui explicando o significa-
do nefasto de uma compreensão em contrário.
No entanto, infelizmente, boa parte desse setor, vem sendo capita-
lizado por novas direções reformistas. Isso exige dos revolucionários
ter uma política para retirá-los de sua influência atraindo-a para o
campo do proletariado e da revolução socialista. Sobre este tema va-
mos tratar a seguir.
45
o reformismo: esvaziar a base social que dá sustentação ao seu
projeto político.
Caso não façamos essa diferenciação podemos dar uma orien-
tação política sectária que termine impedindo de nos aproximar e
convencer ao menos uma parte de sua base sobre a justeza da nossa
política e do programa do proletariado.
Em segundo lugar, penso que o texto cai num reducionismo em
relação à orientação política que visam “derrotar” o reformismo. O
texto resume a política de como enfrentá-la no ponto 6.18. que diz:
“A ideia oportunista de hoje andar junto ao reformismo para me-
lhor dialogar com as massas é a melhor forma de preparar a derro-
tas de amanhã. A formula bolchevique para os reformistas que es-
tavam dispostos a encarar alguma luta (“golpear juntos e marchar
separados”) é a única que abre possibilidade de vitória.”
Assim, não está claro, por exemplo, se essa orientação inclui a uti-
lização da tática da frente única, acordos ou frentes eleitorais com o
reformismo. Como sabemos, elas foram utilizadas em vários momen-
tos pelos revolucionários e fazem parte da tradição da nossa corren-
te. Não por acaso, Lenin no Esquerdismo explica a importância de
estabelecer acordos com os reformistas, incluindo os acordos eleito-
rais, particularmente quando eles levam vantagem sobre os revolu-
cionários, sem que com isso deixe de combatê-los nem por instante.
Nossa corrente, sob a direção de Moreno a defendeu e a aplicou inú-
meras vezes.
Tampouco fica claro no texto, se no terreno da construção, se-
gue válida a tática que conhecida como “entrismo”, aplicada pela
primeira vez por Trotski na França, quando então a seção da IV
Internacional, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), entrou no
partido socialista (SFIO). Seguindo essa tradição, nossa corrente
a utilizou em vários momentos como foi o caso do PT brasileiro
ou da Espanha, em 1977, para ficar somente em alguns exemplos.
Digo isso, porque estas táticas que em todos os casos visam “der-
rotar” o reformismo, vão mais além da simples unidade de ação, e,
neste sentido, de alguma maneira implica em “marchar juntos” com
os reformistas, ainda que circunstancialmente.
Isso que temos feito ao longo de nossa história evidentemente
não tem nada a ver com a “ideia oportunista” de ficar “colados aos
reformistas”. Trata-se simplesmente de utilizar todo o arsenal tá-
tico desenvolvido pelo marxismo revolucionário para justamente
“derrotar” o reformismo. Assim, longe de preparar derrotas, ao
contrário, essas táticas também nos “abre possibilidades de vitó-
46
ria”. Neste sentido, termino insistindo sobre a importância de que
se esclareça se a formulação “golpear juntos e marchar separa-
dos” as inclui. Se não, penso que é necessário reformulá-la.
47
T
TEXTOS DE TROTSKI SOBRE O PROGRAMA
50
uma seção nacional do Comintern e não um programa de um partido
comunista internacional)”. (Pravda, 15.01.1928)
Temos insistido nessas considerações desde 1923-1924 quando
a questão dos Estados Unidos da América surgiu plenamente como
um problema do mundo e, num sentido ainda mais direto, da política
europeia
Ao recomendar o novo projeto o Pravda escreveu que um progra-
ma comunista “difere radicalmente de um programa da Internacio-
nal social democrata não apenas pelo conteúdo de seus postulados
centrais, mas também na característica internacionalista de sua es-
trutura.” (Pravda, 29.05.1928).
Nesta formulação um tanto nebulosa está obviamente expressa a
ideia que colocamos acima e que foi formalmente rejeitada. Só pode-
mos festejar a ruptura com o primeiro projeto de programa formula-
do por Bukharin, que sequer provocou uma séria troca de opiniões;
nem sequer, ofereceu espaço para isto. Enquanto o primeiro proje-
to forneceu uma descrição esquemática do desenvolvimento de um
país abstrato para o socialismo, o novo projeto, tenta (infelizmente,
e como veremos, sem consistência ou sucesso), analisar a economia
mundial como um todo como a base para determinar os fatos de cada
parte.
Vinculando países e continentes em diferentes níveis de desen-
volvimento em um sistema de mutua dependência e antagonismo,
nivelando vários estágios de seus desenvolvimentos e ao mesmo
tempo imediatamente misturando as diferenças entre eles, e rustica-
mente contrapondo um país a outro, a economia mundial virou uma
realidade abstrata pairando acima da vida econômica individual de
países e continentes. Este fato simples sozinho da um caráter profun-
damente realista à ideia de um partido comunista mundial. Trazendo
a economia mundial como um todo ao mais alto grau de desenvol-
vimento geralmente suportado na base da propriedade privada, o
imperialismo, como o projeto coloca bastante corretamente em sua
introdução: “agrava ao extremo a tensão da contradição entre cresci-
mento das forças produtivas da economia mundial e as barreiras das
fronteiras nacionais”.
Sem entrar no mérito desta proposição, que foi revelada para a
humanidade pela primeira vez durante a última guerra imperialista,
não podemos dar um simples passo para a solução dos maiores pro-
blemas políticos mundiais e da luta revolucionaria.
Poderíamos saudar esse axioma radical do programa neste novo
projeto, não fosse o fato de que faz esforços para conciliar isto, a úni-
51
ca posição correta, com tendências de características diretamente
contrarias, o que resultou em um projeto cheio de contradições cru-
éis, o que anula totalmente o significado da nova maneira de abordar
a questão nos seus aspectos fundamentais.
52
Mais uma vez, não deixaram claro que a futura pressão inexorável
dos Estados Unidos vai reduzir a Europa capitalista a porções cada
vez menores da economia mundial, e isto, é claro, não implica uma
mitigação, mas o contrario, uma monstruosa disputa nas relações
entre os Estados europeus, acompanhado de furioso conflito militar,
pois Estados, assim como as classes, lutarão com mais força por uma
porção maior de uma ração que diminui, lutando cada um para au-
mentar seu peso.
O projeto não explica que o caos interno, devido aos antagonis-
mos entre os Estados na Europa, tira desta a esperança de uma re-
sistência séria e bem sucedida à cada vez mais centralizada republi-
ca norte americana; e que a resolução do caos europeu através dos
Estados Unidos Soviéticos da Europa é uma das primeiras tarefas da
revolução proletária. Esta (precisamente por causa da existência das
fronteiras) está muito mais próxima na Europa do que na América e
terá, portanto, que se defender da burguesia norte americana.
Por outro lado, não menciona nada do fato (e isto não é um aspecto
menos importante do mesmo problema mundial) que é precisamen-
te a força internacional dos Estados Unidos e sua irresistível expan-
são que lhes obriga introduzir nos sótãos do seu edifício armazéns
de pólvora do universo inteiro,... todos os antagonismos entre leste
e oeste, a luta de classes na velha Europa, os levantes das massas co-
loniais e todas as guerras e revoluções. Por um lado isto transforma
o capitalismo norte americano na principal força contrarrevolucio-
nária da época moderna, constantemente mais interessado na ma-
nutenção da “ordem” em cada esquina do globo terrestre; por outro
lado prepara o terreno para uma gigantesca explosão revolucionaria
neste já dominante e ainda em expansão mundo do poder imperialis-
ta. A lógica das relações mundiais indica que o tempo desta explosão
não será muito atrasada em relação à revolução proletária europeia
Nosso entendimento da dialética da inter-relação entre Améri-
ca e Europa provocou sobre nós nos últimos anos as mais diversas
difamações, colocando-nos junto com o ideal pacifista da existência
das contradições europeias, com a aceitação da teoria de Kautsky
do ultra-imperialismo, e muitas outras sinas. Não há necessidade de
responder a estas “acusações” que são mais uma demonstração da
completa ignorância do processo real e de nossa atitude perante ele.
Não podemos, porém, deixar de observar que perderam mais tempo
e esforço em confundir e bagunçar sobre este problema mundial vi-
tal que foi gasto (incidentalmente, pelos autores do projeto do pro-
grama) em sua argumentação contra nossa formulação do problema.
53
Nossa formulação tem, no entanto, sido totalmente confirmada pelo
curso dos acontecimentos.
Mais recentemente, esforços foram feitos pelos principais órgãos
dirigentes comunistas para minimizar – no papel – o significado da
hegemonia americana pela alusão da crise comercial e industrial nos
Estados Unidos. Não podemos examinar a fundo este problema es-
pecial da duração e possível profundidade da crise americana. Esta é
uma questão conjuntural e não de programa. Mas devemos dizer que
não temos duvida da inevitabilidade da crise; nem que, considerando
o presente estado do capitalismo americano achamos que a próxima
crise será extremamente profunda e aguda. Mas isto não justifica de
jeito nenhum a tentativa de concluir disto que a hegemonia america-
na decrescerá ou será enfraquecida. Tal conclusão pode levar apenas
a um grande erro na estratégia.
O caso é o contrario. No período da crise da hegemonia dos Es-
tados Unidos atuará mais completamente, mais abertamente e mais
sem dó que no período do boom. Os Estados Unidos tentarão superar
e derrotar a crise com suas dificuldades e problemas principalmente
às custas da Europa, mesmo que isto ocorra através da Ásia, Canadá,
América do Sul, Austrália ou da própria Europa, seja pacificamente
ou através da guerra.
Devemos entender que se o primeiro período da intervenção
Americana teve o efeito de estabilização e pacificação na Europa, que
de certa maneira ainda é forte hoje, e ainda pode se recuperar par-
cialmente e tornar-se mais forte (particularmente no caso de novas
derrotas do proletariado), a linha geral da política americana, parti-
cularmente neste momento de dificuldades econômicas e crises, tra-
rá fortes convulsões na Europa e no conjunto do mundo.
Deste panorama uma conclusão não menos importante é de que
não haverá falta de situações revolucionarias na próxima década, as-
sim como não houve na anterior. É por isso que é muito importante
entender corretamente os ritmos do desenvolvimento para não ser-
mos pegos de calças curtas com as ações deles. Se na década passada
a maior fonte de situações revolucionarias eram as consequências
diretas da guerra imperialista, na segunda década do pós-guerra a
fonte mais importante de levantes revolucionários será a relação da
Europa e América. Uma crise maior nos Estados Unidos soará o sino
para novas guerras e revoluções. Repetimos: não haverá falta de si-
tuações revolucionarias. A questão depende do partido internacional
do proletariado, a maturidade e habilidade na luta do Comintern e
sua posição estratégica e métodos táticos corretos.
54
No projeto do programa do Comintern não achamos absoluta-
mente nenhuma expressão deste tipo de pensamento. Um fato de
grande importância como “o deslocamento do centro da economia
mundial para os Estados Unidos” é apenas marcação jornalística. É
claro, completamente impossível justificar isso no terreno da falta de
espaço, pois para o que servem os espaços num programa senão para
as questões fundamentais? Além disso, devemos acrescentar que
muito espaço no programa é dedicado as questões de importância
secundaria e terciária, para não falar nada de generalidades literárias
e inúmeras repetições cuja eliminação poderia reduzir o programa
em pelo menos um terço.
55
E mais a frente agregava: “Os Estados Unidos da Europa repre-
senta antes de mais nada uma forma – a única forma possível – da
ditadura do proletariado na Europa.” (Idem, pág. 92).
Mas mesmo nesta formulação da questão Lenin viu naquele mo-
mento um certo perigo. Na ausência de qualquer experiência de di-
tadura do proletariado em um só país e de clareza teórica sobre esta
questão mesmo na ala esquerda da social democracia daquele perío-
do, a consigna de Estados Unidos da Europa poderia ser interpretada
como a ideia de que a revolução proletária deveria começar simulta-
neamente, pelo menos em todo o continente europeu. Foi contra este
perigo que Lenin levantou a advertência, mas neste ponto não havia
a menor diferença entre Lenin e eu. Eu escrevi então: “Nenhum país
deve ‘esperar’ pelos outros países em sua luta. Seria útil e necessá-
rio repetir esta ideia elementar de que a ação internacional paralela
não pode ser substituída por inação temporária internacional. Sem
esperar os outros, nós devemos começar e continuar a luta no plano
nacional com a plena convicção de que nossa iniciativa impulsionará
a luta nos outros países.” (idem, págs.89-90).
Segue então estas minhas palavras, que Stalin apresentou na sé-
tima plenária da CEIC como a mais violenta expressão de “trotskis-
mo”... como “falta de crença” nas forças interiores da revolução e da
esperança da ajuda de fora. “E se isto [o desenvolvimento da revolu-
ção em outros países – LT] não ocorrer, não há nenhuma esperança
(isso vem tanto da experiência histórica como de considerações te-
óricas) de que a Rússia revolucionaria, por exemplo, possa resistir
frente à Europa conservadora ou que uma Alemanha socialista po-
deria permanecer isolada num mundo capitalista” (Idem, pág. 90).
Isto e mais duas ou três citações similares são a base da conde-
nação pronunciada contra o “trotskismo” pela sétima plenária como
tendo supostamente se agarrado a esta “questão fundamental”, uma
atitude “que não tem nada em comum com o leninismo”. Vamos, por-
tanto, fazer uma pausa e ouvir o próprio Lenin.
Em 7 de março de 1918 ele disse a propósito da paz de Brest-Lito-
vski: “Isto é uma lição para nós porque a verdade absoluta é que sem
a revolução na Alemanha nós pereceremos”. (Lenin, Escritos, Vol. VX,
pág. 132, edição [antiga] russa)
Uma semana depois ele disse: “O imperialismo mundial não pode
viver lado a lado com uma revolução social vitoriosa avançando”.
(Idem, pág. 175)
Algumas semanas mais tarde, em 23 de abril, Lenin disse: “Nosso
atraso nos empurrou para frente e nós pereceremos se não conse-
56
guirmos resistir até encontrar o suporte dos trabalhadores insurre-
tos de outros países.” (idem, pág. 187. grifos nossos)
Mas talvez tudo isto tenha sido dito sob influencia especial da cri-
se de Brest-Litovski? Não! Em março de 1919 Lenin repetiu nova-
mente: “Nós não vivemos apenas num país, senão num sistema de
países e a existência da republica soviética lado a lado com os países
imperialistas por um longo tempo é inconcebível. No final um ou ou-
tro deve triunfar.” (Escritos, vol. XVI, pág. 102)
Um ano depois, em 7 de abril de 1920, Lenin reitera: “O capitalis-
mo, numa escala mundial, é ainda agora, não apenas no sentido mi-
litar mas também econômico, mais forte que o poder soviético. Nós
devemos partir desta consideração fundamental e nunca esquecê-la”.
(Escritos, vol. VXII, pág. 102)
Em 27 de Novembro de 1920, Lenin, ao discutir a questão das
concessões, disse:
Nós agora passamos da arena da guerra para a arena da paz e não esquecemos
que a guerra virá de novo. Enquanto capitalismo e socialismo permanecerem
lado a lado não podemos viver pacificamente – um ou outro vai ser vitorioso
no final. Um obituário será cantando sobre a morte do capitalismo mundial
ou a morte da republica soviética. No momento temos apenas uma trégua na
guerra. (idem, pág. 398)
57
Como estão longe essas palavras, tão simples e permeadas do es-
pírito do internacionalismo, das atuais fabricações dos epígonos!
De qualquer jeito, temos o direito de perguntar: onde todos es-
tes pronunciamentos de Lenin são diferentes da minha convicção no
ano de 1915 de que a revolução russa ou a revolução socialista alemã
que estavam por acontecer não poderiam ficar sozinhas se “isoladas
num mundo capitalista”? O tempo provou ser diferente da perspecti-
va positiva não só minha mas também de Lenin; mas a ideia central
mantém sua força até hoje – atualmente talvez ainda mais que antes.
Em vez de condenar esta ideia, como a sétima plenária da CEIC fez
em base a um discurso incompetente e inescrupuloso, ela deveria ser
incluída no programa da Internacional Comunista.
Ao defender a consigna de Estados Unidos Soviéticos da Europa,
nós apontamos em 1915, que a lei do desenvolvimento desigual não
é em si argumento contra esta consigna, porque a desigualdade do
desenvolvimento histórico dos diferentes países e continentes é por
si só desigual. Os países europeus têm desenvolvimento desigual,
uns em relação aos outros. Contudo podemos ter absoluta certeza
histórica de que nenhum destes países está destinado, pelo menos
na época histórica em estudo, a avançar muito a frente em relação
a outros países como a América passou a frente da Europa. Para a
América há uma escala de desigualdade, para a Europa há outra. As
condições geográficas e históricas predeterminaram tal laço entre os
países da Europa que não há como romper isso. Os governos burgue-
ses modernos da Europa são como assassinos presos a uma única
corda. A revolução na Europa, como já dissemos, será na analise final
de importância decisiva para a América também. Mas diretamente,
no curso imediato da historia, uma revolução na Alemanha terá mui-
to mais significado para a França do que para os Estados Unidos da
América. É precisamente deste desenvolvimento histórico que sai a
vitalidade política da consigna de Federação Soviética Europeia Nós
falamos de vitalidade relativa porque a razão diz que esta federação
deve se estender através da ponte da União Soviética para a Ásia e
efetivará então a união das Republicas Socialistas mundial. Mas isso
será num segundo momento ou subsequentemente ao grande capí-
tulo da época imperialista e quando chegarmos mais perto achare-
mos as formulas correspondente para isso.
Pode ser provado sem nenhuma dificuldade por outras citações
que nossa diferença com Lenin em 1915 sobre a questão dos Estados
Unidos da Europa era restrita, tática e por sua essência, temporária;
mas é melhor provado pelos acontecimentos subsequentes. Em 1923
58
a Internacional Comunista adotou a consigna controversa. Se fosse
verdade que a consigna de Estados Unidos da Europa era inaceitá-
vel em 1915 no terreno do principio, como os autores do projeto de
programa tentam agora provar, então a Internacional Comunista não
poderia ter adotado ela oito anos depois. A lei do desenvolvimento
desigual, alguém pode achar, não perdeu sua efetividade durante es-
ses anos.
A formulação inteira das questões acima vem da dinâmica do pro-
cesso revolucionário considerado como um todo. A revolução inter-
nacional é olhada como um processo interconectado que não pode
ser previsto em todos os detalhes, e, por assim dizer, a ordem dos
acontecimentos, mas que está claramente delineado no horizonte
histórico. Se isto não é entendido uma orientação política correta
está totalmente fora de questão.
No entanto, a questão aparece bem diferente se partimos da ideia
de um desenvolvimento socialista que está ocorrendo e está até sen-
do completado em um país. Nós temos hoje uma “teoria” que ensina
que é possível construir completamente o socialismo em um país e
que as relações daquele país com o mundo capitalista pode ser es-
tabelecida na base de “neutralizar” a burguesia mundial (Stalin). A
necessidade da consigna de Estados Unidos da Europa passa longe,
ou no mínimo é diminuída, se este ponto de vista essencialmente
nacional-reformista e não internacionalista e revolucionário é ado-
tado. Mas essa consigna é, no nosso ponto de vista, importante e vi-
talmente necessária porque é baseada na condenação da ideia de um
desenvolvimento socialista isolado. Para o proletariado de todos os
países Europeus, em grande medida mais do que para a URSS – a
diferença, no entanto, é apenas de grau – será necessário espalhar a
revolução para os países vizinhos e apoiar insurreições lá com armas
nas mãos, não por qualquer consideração abstrata de solidariedade
internacional, o que por si só não põe a classe em movimento, mas
por considerações vitais que Lenin formulou centenas de vezes – a
saber, de que sem a oportuna ajuda da revolução internacional, não
conseguiremos nos segurar. A consigna de Estados Unidos Soviéticos
corresponde à dinâmica da revolução proletária, a qual não acontece
simultaneamente em todos os países, mas passa de país a país e re-
quer grandes laços entre elas, especialmente na Europa, tanto para
a defesa contra os fortes inimigos externos como para a construção
econômica.
Pode-se argumentar, com certeza, com uma objeção, afirmando
que depois do período da crise do Ruhr, que deu o último impulso
59
para a adoção daquela consigna, ela não teve grandes papeis na agita-
ção dos partidos comunistas da Europa e, por assim dizer, não fincou
raiz. Mas isso é igualmente verdade em relação a consigna de Estado
operário, soviets e outras, todas consignas período pré-revolucioná-
rio imediato. A explicação para isso está no fato de que desde o final
de 1923, não obstante as apreciações políticas errôneas do quinto
congresso, o movimento revolucionário europeu entrou em declínio.
Mas é justamente por isso que é fatal basear um programa, em todo
ou em parte, sobre impressões recebidas somente durante aquele
período. Não foi mero acidente que, apesar de todas as impressões, a
consigna de Estados Unidos Soviéticos da Europa foi adotado preci-
samente em 1923, quando era esperada a explosão revolucionaria na
Alemanha e quando a questão das relações interestatais na Europa
assumiram um caráter extremamente candente. A cada novo agrava-
mento da crise na Europa e principalmente mundial é suficientemen-
te aguda para trazer a tona os principais problemas políticos e para
tornar a consigna de Estados Unidos da Europa fortemente atrativa.
É acima de tudo fundamentalmente errado passar por cima dessa
consigna, sem rejeitar ela, isto é, mantê-la na reserva, para uso em
“caso de emergência”. Quando questões de principio estão envolvi-
das, a política de reservas é fútil.
4. O critério do internacionalismo
O projeto, como já sabemos, procura proceder em sua construção
do ponto de partida da economia mundial e suas tendências – uma
tentativa que merece reconhecimento. O Pravda está absolutamente
correto em dizer que aqui está a diferença básica de princípios en-
tre nós e a social democracia nacional e patriótica. Um programa de
um partido internacional do proletariado só pode ser construído se
a economia mundial, que domina as partes, é usada como ponto de
partida. Mas precisamente ao analisar as principais tendências de
desenvolvimento mundial, o projeto não só revela-se inadequado
que deprecia seu valor, como já apontado acima, mas é também ex-
tremamente parcial o que o leva a cometer um grave equivoco.
O projeto refere-se muitas vezes e nem sempre no momento
apropriado à lei do desenvolvimento desigual do capitalismo como
a principal e quase decisiva lei desse desenvolvimento. Um nume-
ro de erros no projeto, incluindo o erro fundamental, são baseados
teoricamente numa interpretação parcial e falsa não marxista e não
leninista da lei do desenvolvimento desigual.
60
Em seu primeiro capitulo o projeto atesta que “a lei do desen-
volvimento desigual da economia e política é uma lei incondicional
do capitalismo”. Esta desigualdade torna-se ainda mais acentuada e
agravada na época do imperialismo.
É justo. Esta formulação condena em parte a formulação recen-
te da questão feita por Stalin, segundo o qual ambos, Marx e Engels
ignoravam a lei do desenvolvimento desigual que supostamente foi
descoberta por Lenin. Em 15 de setembro de 1925 Stalin escreveu
que Trotski estava mal inspirado ao basear-se em Engels, que escre-
via em uma época “quando não se podia sequer colocar a questão da
lei do desenvolvimento desigual dos países capitalistas.” Ainda que
estas palavras pareçam incríveis, Stalin, um dos autores do projeto,
as repetiu, no entanto, mais de uma vez. O texto do projeto, como vi-
mos, deu um passo a frente a esse respeito. No entanto, se deixamos
de lado a correção deste erro elementar, o que o projeto fala sobre
a lei do desenvolvimento desigual permanece em essência parcial e
incompleto.
Em primeiro lugar seria mais correto dizer que toda a historia da
humanidade é regida pela lei do desenvolvimento desigual. O capita-
lismo encontra várias partes da humanidade em diferentes estágios
de desenvolvimento, cada qual com suas profundas contradições in-
ternas. A extrema diversidade de níveis atingidos, e a extraordinária
desigualdade no ritmo de desenvolvimento das diferentes partes da
humanidade durante várias épocas são o ponto de partida do capita-
lismo ganha o controle apenas gradualmente sobre a desigualdade
herdada, quebrando e alterando ela, empregando seus próprios fins
e métodos. Em contraste com os sistemas que o antecederam, o ca-
pitalismo busca inerente e constantemente a expansão econômica, a
penetração em novos territórios, a superação das diferenças econô-
micas, a conversão de economias nacionais e regionais encerradas
em si mesmas, em um sistema de vasos comunicantes, aproxima-os
de si, igualando o nível econômico e cultural dos países mais avan-
çados e mais atrasados. Sem esse processo principal, seria impossí-
vel conceber o relativo nivelamento primeiro da Europa com a Grã
Bretanha e depois da América com a Europa; a industrialização das
colônias, a diminuição da diferença entre Índia e Grã Bretanha e to-
das as consequências deste processo sobre o qual é baseado não só
o programa da Internacional Comunista como também o motivo de
sua existência.
A aproximar economicamente os países um a outro e nivelar seus
estágios de desenvolvimento, o capitalismo, no entanto, usa seus
61
próprios métodos, quer dizer, métodos anarquistas que constante-
mente minam seu próprio trabalho, joga um país contra outro e um
ramo da indústria contra outro, desenvolvendo algumas partes da
economia mundial enquanto dificulta e atrasa o desenvolvimento de
outras. Apenas a correlação destas duas tendências fundamentais –
ambas advindas da natureza do capitalismo – nos explicam a textura
viva do processo histórico.
O imperialismo, graças à universalidade, penetração, mobilida-
de e a enorme velocidade na formação do capital financeiro como
a força motora do imperialismo, empresta vigor a ambas as tendên-
cias. O imperialismo vincula incomparavelmente mais rápido e mais
profundamente as unidades individuais nacionais e continentais em
entidades únicas, colocando-as em mutua dependência vital e tor-
nando seus métodos econômicos, formas sociais e níveis de desen-
volvimento mais idênticos. Ao mesmo tempo, ele atinge esse “gol”
por tal método antagônico, tal pulo do gato e assaltos sobre países
e áreas atrasados que a unificação e nivelação da economia mundial
que ele afetou, está descontrolado de forma mais violenta e convulsi-
va que em outras épocas. Somente um entendimento dialético e não
puramente mecânico da lei do desenvolvimento desigual pode tor-
nar possível evitar o erro fundamental que o projeto de programa
apresentado ao sexto congresso falhou em evitar.
Imediatamente depois desta caracterização parcial da lei do de-
senvolvimento desigual apontado por nós, o projeto de programa diz:
“Daí se deduz que a revolução proletária internacional não pode
ser vista como um ato único, simultâneo e universal. Por isso segue
que a vitória do socialismo é possível primeiro em alguns ou até em
um único país capitalista.”
Que a revolução internacional do proletariado não pode ser um
ato simultâneo, é claro, não pode haver discussão, principalmente
depois da experiência da Revolução de Outubro, conseguida pelo
proletariado de um país atrasado sob a pressão de uma necessidade
histórica, sem esperar nem ao menos pelo proletariado dos países
avançados “para igualar na frente”. Nesses limites a referencia à lei
do desenvolvimento desigual está absolutamente correta e no lugar
certo. Mas é totalmente contraria à segunda metade da conclusão
– especialmente, a afirmação vazia de que a vitória do socialismo é
possível “em um só país”. Para provar seu ponto o projeto do pro-
grama diz: “por isso segue...” Fica-se com a impressão de que esta
conclusão vem da lei do desenvolvimento desigual. Mas esta não é a
conclusão de jeito nenhum. “Por isso segue” algo bem ao contrario.
62
Se o processo histórico fosse de que alguns países se desenvolvessem
não só desigualmente, mas também independentemente de todos os
outros, isolado dos outros, então da lei do desenvolvimento desigual
indubitavelmente seguiria a possibilidade da construção do socialis-
mo em um só país capitalista – primeiro no país mais avançado e
depois, quando estiverem maduros, nos mais atrasados. Esta era a
ideia comum e, assim por dizer, geral da transição ao socialismo no
conjunto da social democracia antes da guerra. Isto é justamente a
ideia que deu as bases teóricas do social-patriotismo. Claro, o projeto
não chegou a isso, mas se encaminha para isso.
O erro teórico do projeto está no fato de que tenta deduzir da lei
do desenvolvimento desigual alguma cosia que a lei não implica e
nem pode. Desenvolvimento desigual ou esporádico de vários paí-
ses atua constantemente para bagunçar mas em nenhum caso para
eliminar os laços e interdependências econômicas entre estes países
que logo no dia seguinte, depois de quatro anos de matança infernal
foram obrigados a trocar carvão, pão, óleo, energia e suspensórios
entre eles. Neste ponto, o projeto coloca a questão como se o desen-
volvimento histórico ocorre apenas na base de saltos esporádicos,
enquanto que a base econômica que dá impulso a esses saltos e sobre
o qual eles ocorrem, é deixado totalmente fora da vista pelos autores
do projeto ou forçosamente eliminado por eles. Isto eles fazem com
o único objetivo de defender a indefensável teoria do socialismo em
um só país.
Depois do que foi dito não é difícil entender que a única formu-
lação correta da questão é a seguinte: que Marx e Engels, mesmo
antes da época imperialista, chegaram à conclusão de que por um
lado a irregularidade, quer dizer as sacudidas do desenvolvimento
histórico, estenderão a revolução proletária por uma época inteira
durante a qual nações entrarão em ondas revolucionarias uma após
outra, enquanto, por outro lado, a dependência orgânica de diversos
países, que se desenvolveu ao ponto de uma divisão internacional do
trabalho, exclui a possibilidade de construir o socialismo em um só
país. Isto quer dizer que a doutrina marxista, que postula que a re-
volução socialista só pode começar em uma base nacional, enquanto
a construção do socialismo em um só país é impossível, revelou-se
duplamente ou triplamente verdadeira, ainda mais agora, na época
moderna quando o imperialismo se desenvolveu, aprofundou e agu-
çou ambos essas tendências antagônicas. Neste ponto, Lenin apenas
desenvolveu e concretizou a formulação do próprio Marx e a respos-
ta para esta questão do próprio Marx.
63
O programa de nosso partido adota inteiramente como ponto de
partida a ideia de que a revolução de outubro e a construção do so-
cialismo estão condicionadas pela situação internacional. Para pro-
var isso é só necessário transcrever inteiramente a parte teórica de
nosso programa. Vamos nos deter meramente em dizer que durante
o oitavo congresso de nosso partido, o falecido Podbelski insinuou
que algumas formulações do programa tivessem referencia só à revo-
lução na Rússia. Lenin respondeu como segue em seu discurso de en-
cerramento sobre a questão do programa do partido (19/03/1919):
“Podbelski levantou objeções a um parágrafo que fala da revolu-
ção social pendente... O argumento dele é obviamente infundado por-
que nosso programa trabalha com a revolução em escala mundial”.
(Escritos, Vol. XVI, pág.131)
Não será supérfluo apontar aqui que mais ou menos na mesma
época Lenin sugeriu que nosso partido deveria mudar seu nome de
Partido Comunista da Rússia para Partido Comunista, para enfati-
zar ainda mais que é um partido da revolução internacional. Eu fui
o único que votou na moção de Lenin no Comitê Central. No entanto
ele não levou a proposta ao Congresso tendo em vista a fundação da
Terceira Internacional. Sendo esta a posição do partido, não podia
surgir a ideia de socialismo em um só país. Só por isso o programa do
partido não condena esta “teoria”, apenas a ignora.
Mas no programa da Liga Comunista da Juventude, adotado dois
anos depois, já foi necessário, para educar os jovens no espírito do in-
ternacionalismo colocá-los diretamente em guarda contra a ilusões
e o espírito nacionais estreitos na questão da revolução proletária.
Teremos mais a dizer sobre este ponto depois.
O novo projeto de programa do Comintern coloca a questão de
forma diferente. Em harmonia com a evolução revisionista dos seus
autores desde 1924, o projeto, como vimos, escolhe exatamente o ca-
minho oposto. Mas a maneira que a questão do socialismo em um
país é resolvida determina a natureza do projeto inteiro como um
documento revisionista ou marxista.
É claro, o projeto de programa cuidadosamente, persistentemen-
te e muitas vezes apresenta, enfatiza e explica a diferença entre a for-
mulação comunista e revisionista da questão. Mas estas afirmações
não resolvem o problema. Temos uma situação similar a estar a bor-
do de um navio que é equipado, até sobrecarregado com inúmeros
mecanismos e aplicações marxistas, enquanto que a vela principal é
levantada de forma proposital a usar todos os ventos reformistas e
revisionistas.
64
Quem aprendeu das experiência das ultimas três décadas e parti-
cularmente da extraordinária experiência Chinesa em anos recentes,
entende a forte interdependência dialética entre a luta de classes e os
documentos programáticos do partido e entenderá nossa analise de
que a nova onda revisionista pode anular as aplicações do Marxismo
e Leninismo. É por isso que somos obrigados a debater até o menor
detalhe esta questão central, que por um longo tempo determinará o
desenvolvimento e o destino da Internacional Comunista.
65
Na sétimo pleno do CEIC, Stalin declarou (não pela primeira vez):
“A questão da construção de uma economia socialista em um país foi
primeiro antecipado no partido por Lenin lá atrás em 1915”. (Minu-
tas, Sétimo pleno do CEIC, pág. 14)
Assim admite aqui que antes de 1915 nunca foi mencionado a
questão do socialismo em um só país. Ufa, Stalin e Bukharin não se
aventuram a jogar sobre toda a tradição do marxismo e do partido
a questão do caráter da revolução proletária. Guardemos isso em
mente.
No entanto, vamos ver o que Lenin diz “pela primeira vez” em
1915 em contradição ao que Marx, Engels e o próprio Lenin disse-
ram previamente.
Em 1915 Lenin disse:
desenvolvimento econômico e político desigual é uma lei incondicional
do capitalismo. Disso segue que o triunfo do socialismo é, para começar,
possível em alguns, ou mesmo em um só país capitalista. O proletariado
vitorioso daquele país, tendo expropriado os capitalistas e tendo organi-
zado a produção socialista em casa, estaria em armas contra o resto do
mundo capitalista, atraindo as classes oprimidas de outros países para
seu lado, causando insurreições naqueles países contra os capitalistas,
e agindo, em caso de necessidade, até mesmo com força militar contra
as classes exploradoras e seus governos. (Escritos, Vol. XIII, pág. 133,
23/08/1915)
66
Em suas teses sobre guerra e paz (7/01/1918) Lenin falou da “ne-
cessidade de um certo período de tempo, pelo menos alguns meses,
para a vitória do socialismo na Rússia...” (Escritos, Vol. XV, pág. 64)
No começo do mesmo ano, 1918, Lenin, em seu artigo intitula-
do “O esquerdismo infantil e a pequena burguesia”, dirigido contra
Bukharin escreveu o seguinte: “Se, digamos, um capitalismo de Esta-
do puder se estabelecer em nosso país em seis meses, isto será uma
grande conquista e a melhor garantia de que em um ano o socialismo
estará definitivamente estabelecido e se tornará invencível.” (Escri-
tos, Vol. XV, parte 2, pág.263)
Como pode Lenin estabelecer um período tão curto para o “esta-
belecimento definitivo do socialismo”? Que sentido material, social e
relativo à produção ele colocou nestas palavras?
Esta questão aparecerá com uma luz diferente se lembrarmos que
em 29 de abril de 1918, Lenin disse em seu informe ao Comitê Execu-
tivo Central do governo soviético de toda a Rússia: “É difícil esperar
que a próxima geração, que estará muito mais desenvolvida, efetive a
completa transição ao socialismo” (Idem, pág. 280)
Em 3 de dezembro de 1919, no Congresso das Comunas e arte-
sãos, Lenin falou ainda mais duro, dizendo: “Não podemos estabe-
lecer a ordem socialista no momento atual. Serão nossas crianças e
talvez nossos netos que estabelecerão isso”. (Escritos, Vol. XVI, pág.
398)
Em qual desses casos Lenin estava certo? Foi quando falou do “es-
tabelecimento definitivo do socialismo em doze meses, ou quando
deixou não para nossos filhos mas nossos netos “estabelecer a ordem
socialista”?
Lenin estava certo em ambos os casos, pois ele tinha em mente
dois estágios completamente diferentes e imensuráveis da constru-
ção socialista.
Com o “estabelecimento definitivo do socialismo” no primeiro
caso Lenin não quis dizer a construção de uma sociedade socialista
em um ano ou mesmo “alguns meses”, isto é, ele não quis dizer que
as classes teriam desaparecido, que as contradições entre a cidade e
o campo estariam eliminadas; ele quis dizer a retomada da produção
nos moinhos e fabricas nas mãos do Estado operário, e assim asse-
gurar a possibilidade da troca de produtos entre a cidade e o campo.
O próprio prazo curto é por si só a chave para entender toda a pers-
pectiva.
É claro, mesmo para esta tarefa elementar, um período muito cur-
to, foi estabelecido no começo de 1918. Foi este “erro de calculo” pu-
67
ramente pratico que Lenin zombou no Quarto Congresso do Comin-
tern quando ele disse “nós éramos mais bobos então do que somos
agora”. Mas “tínhamos uma visão geral correta das perspectivas e em
nenhum momento acreditei que é possível estabelecer uma comple-
ta ‘ordem socialista’ em doze meses e num país atrasado como este”
Atingir este gol principal e final – a construção de uma sociedade so-
cialista – foi deixado por Lenin a três gerações inteiras – nós, nossos
filhos e nossos netos.
Não ficou claro que naquele artigo de 1915, que o que Lenin quis
dizer com a organização da “produção socialista” não era a criação
da sociedade socialista, mas uma tarefa muito mais elementar que
já foi realizada por nós na URSS? Do contrario, poder-se-ia chegar à
absurda conclusão de que, de acordo com Lenin, o partido do prole-
tariado, tendo chegado ao poder, “adia” a guerra revolucionaria até a
terceira geração.
Esta é a triste posição da principal citação de 1915 no que diz res-
peito à nova teoria. No entanto, o que é mais triste ainda é o fato de
que Lenin escreveu esta frase não aplicando à Rússia. Ele falava da
Europa em contraposição à Rússia. Isto vem de que não só o conte-
údo do artigo citado era dedicado à questão dos Estados Unidos da
Europa, mas também de toda a posição de Lenin naquele momento.
Alguns meses depois, em 20 de novembro de 1915, Lenin escreveu
especialmente sobre Rússia, e disse:
A tarefa do proletariado vem obviamente deste atual estagio dos
acontecimentos. A tarefa é dura, heroica, a luta revolucionaria contra
a monarquia (a consigna da conferencia de janeiro de 1912 – os ‘três
pilares’), uma luta que atrairá todas as massas democráticas, quer dizer,
principalmente os camponeses.
Ao mesmo tempo, uma luta implacável tem que ser travada contra o
chauvinismo, uma luta pela revolução socialista na Europa em aliança
com seu proletariado. A crise da guerra acirrou os fatores econômicos e
políticos impelindo a pequena burguesia, assim como os camponeses, para
a esquerda. Esta é a base objetiva que abre a possibilidade da vitória da
revolução democrática na Rússia. As condições objetivas para a revolução
socialista estão maduras na Europa ocidental, foi reconhecido antes da
guerra por todos os socialistas dos países avançados. (Escritos, vol. XIII,
pág. 212)
68
maduras”. Mas os autores da nova teoria, os autores do projeto de
programa, simplesmente ignoram esta citação – uma de muitas – a
qual se refere exatamente e diretamente à Rússia, assim como igno-
ram centenas de outras passagens, como ignoram todos os escritos
de Lenin. Em vez de notar isso, eles se agarram, como vimos, a outra
passagem que se refere a Europa Ocidental, dão a ela um significado
que não pode e não tem, juntam este significado que deram à Rús-
sia, um país com a qual a passagem não tem referencia, e sobre esta
“base” erguem sua nova teoria.
Qual era a posição de Lenin sobre esta questão no período imedia-
tamente anterior a outubro? Ao deixar a Suíça depois da Revolução
de Fevereiro de 1917, Lenin escreveu uma carta aos trabalhadores
suíços em que declarava:
A Rússia é um país pobre, um dos mais atrasados da Europa. O socialismo
não pode triunfar imediatamente lá mas a característica da pobreza do
país, com grandes parcelas de terras nas mãos da aristocracia feudal
e latifundiários, pode, em base à experiência de 1905, dar um enorme
impulso para a revolução democrática burguesa na Rússia e fazer de nossa
revolução um prelúdio da revolução socialista mundial, um degrau para
isso... O proletariado russo não pode com suas próprias forças completar
vitoriosamente a revolução socialista. Mas pode dar à revolução Russa
dimensões tais que criará condições muito mais favoráveis a isto, como de
certa forma estará começando isso. Pode facilitar as coisas para a entrada
na batalha decisiva da parte de seu principal e melhor aliado, o proletariado
Europeu e americano (Escritos, Vol. XI, parte 2, pág. 407)
69
servindo-se de uma expressão isolada deste artigo póstumo a utili-
za com um propósito totalmente alheio ao artigo. Temos em mente
o quinto capitulo do projeto de programa que afirma que os traba-
lhadores da Republica Soviética “tem todo material e pré-requisitos
necessários e suficiente no país para a completa construção do so-
cialismo”.
Se o artigo ditado por Lenin durante sua convalescença e publi-
cado depois de sua morte realmente dissesse que o Estado soviético
possui todo o material necessário, isto é, pré-requisitos produtivos
para uma construção independente e completa do socialismo, seria
correto supor que Lenin escorregou em seu ditado ou que a secre-
taria cometeu um erro ao transcrever suas notas. Ambas as conjec-
turas são mais prováveis do que a de que Lenin teria abandonado o
Marxismo e todos os seus ensinamentos de sua vida em dois rápidos
derrames. Felizmente, no entanto, não há a menor necessidade desta
explicação. O artigo “Sobre cooperação”, notável, ainda que inacaba-
do, tem grande unidade com outro artigo não menos inesquecível de
seu último período, constituindo, como este, um capitulo de um livro
não terminado sobre o lugar ocupado pela revolução de Outubro na
corrente das revoluções no leste e oeste – este artigo “Sobre Coope-
ração” não fala jamais das coisas que os revisionistas tão levianos do
leninismo atribuem a ele.
Neste artigo Lenin explica que as cooperativas “comerciais”
podem e devem mudar seu papel social no Estado operário e que
com uma política correta elas podem dirigir a fusão dos interesses
privados dos camponeses com o interesse geral do Estado atra-
vés dos canais socialistas. Lenin fundamenta sua ideia irrefutável
como segue:
De fato, o poder de Estado sobre os meios de produção em larga escala, o
poder do Estado nas mãos do proletariado, a aliança desse proletariado
com os muito milhões de camponeses pobres, a garantia da liderança do
proletariado em relação aos camponeses – isto não é tudo o que é necessário
para as cooperativas, as cooperativas sozinhas, antes eram tratadas como
meros comerciantes, e de um certo ponto de vista, nós ainda temos o direito
a tratá-la assim mesmo agora sob a N.E.P., não é isto tudo o que é necessário
para a construção de uma sociedade socialista completa? Não é ainda a
construção da sociedade socialista mas é tudo necessário e suficiente para
sua construção (Escritos, Vol. XVIII, parte 2, pág. 140)
70
Alem de ser inadmissível pegar umas palavras isoladas do texto em
vez de tentar entender a ideia geral do artigo. Felizmente, no entanto,
mesmo a carta da passagem citada e não apenas o espírito não da
o direito a ninguém de fazer mau uso como foi feito pelos autores
do projeto do programa. Falando dos pré-requisitos “necessários e
suficientes”, Lenin limita estritamente o assunto em seu artigo. Nele
discute apenas a questão de formas e meios pelos quais atingiremos
o socialismo através dos pequenos negócios difusos e atomizados
sem novas convulsões de classe, tendo os pré-requisitos do regime
soviético como nossa base. Lenin fundamenta sua ideia irrefutável
como segue: Estivesse o proletariado europeu vitorioso hoje e vin-
do em nossa assistência com sua tecnologia, a questão do coopera-
tivismo levantada por Lenin como o método sócio-organizacional
de coordenar os interesses privados e sociais, ainda assim teria seu
significado. Cooperação aponta o caminho através do qual a tecnolo-
gia avançada, incluindo energia, pode reorganizar e unir os milhões
de pequenos negócios, uma vez que exista um regime soviético. Mas
cooperação não pode ser substituída por tecnologia e não cria esta
tecnologia. Lenin não só fala dos pré-requisitos necessário e suficien-
te em geral, mas como vimos, ele enumera eles. Eles são: 1) “Poder
do Estado sobre todos os meios de produção em larga escala” (frase
não corrigida); 2) “Poder do Estado nas mãos do proletariado”; 3)
“Uma aliança deste proletariado com os milhões de camponeses”; 4)
“garantia da liderança do proletariado em relação aos camponeses.”
Somente depois de enumerar estas condições puramente políticas –
nada é dito aqui a respeito de condições materiais – que Lenin chega
a sua conclusão, a saber, que “isto” (tudo o que virá) “é tudo que é ne-
cessário e suficiente” para construir uma sociedade socialista. “Tudo
que é necessário e suficiente” no plano político, mas não mais. Mas,
acrescenta aqui e ali, “ainda não é a construção de uma sociedade so-
cialista”. Por que não? Porque as condições políticas sozinha, mesmo
sendo suficiente, não resolvem o problema. A questão cultural ainda
permanece. “Apenas” isto, diz Lenin, enfatizando a palavra “apenas”
de forma a demonstrar a tremenda importância dos pré-requisitos
que não temos. Lenin sabia tão bem quanto nós que a cultura anda
de braços dados com a tecnologia. “Para ser cultural” – ele joga os
revisionistas de volta na lama – “uma certa base material é necessá-
ria” (Idem, pág. 185). Basta mencionar o problema da eletrificação
que Lenin, incidentalmente, propositadamente vincula com a ques-
tão da revolução socialista internacional. A batalha pela cultura, dada
os pré-requisitos políticos “necessários e suficiente” (mas não mate-
71
rial), absorveria todos os nossos esforços, não fosse pela questão da
luta econômica, política, militar e cultural ininterrupta e inconciliável
do país engajado na construção de uma sociedade socialista em um
país atrasado contra um mundo capitalista que está em declínio mais
é tecnicamente muito poderoso. “Estou pronto para afirmar [Lenin
salienta com ênfase particular rumo ao final de seu artigo] que o
centro de gravidade para nós deveria ser transferido para o traba-
lho cultural se não fosse nosso dever de lutar por nossa posição em
escala internacional” (Idem,pág. 144)
Tal é a ideia real se analisamos o artigo sobre cooperação, mesmo
separado de todos seus outros escritos. Como então qualificar senão
como uma falsificação o método dos autores do projeto de programa
que deliberadamente usam as palavras de Lenin sobre possuirmos
os pré-requisitos “necessários e suficiente” e acrescentam a ele os
pré-requisitos materiais básicos, apesar de Lenin definitivamente fa-
lar de pré-requisitos materiais entre parênteses, dizendo que é justa-
mente o que não temos e que ainda precisamos conquistar em nossa
luta por “nossa posição em escala internacional”, isto é, em conexão
com a revolução proletária internacional? É assim que as coisas fi-
cam com o segundo e último pilar da teoria.
Nós, propositalmente, não tratamos aqui de inúmeros artigos e
discursos de 1905 a 1923 nos quais Lenin assegura e repete categori-
camente que sem uma revolução mundial vitoriosa estamos fadados
ao fracasso, que é impossível derrotar a burguesia economicamente
em um país, particularmente um país atrasado, que a tarefa de cons-
truir uma sociedade socialista é uma tarefa em sua essência interna-
cional – da qual Lenin tirou a conclusão que pode parecer “pessimis-
ta” para a nova utopia nacional reacionária mas bastante otimista do
ponto de vista do internacionalismo revolucionário. Concentramos
nosso argumentos aqui apenas nas passagens escolhidas pelos auto-
res do projeto com o intuito de criar os pré-requisitos “necessários e
suficiente” para sua utopia. E vimos que toda a estrutura deles rui no
momento em que é tocada.
No entanto, consideramos necessário apresentar pelo menos um
dos testemunhos diretos de Lenin na questão da controvérsia que
não precisa nenhum comentário e não permite nenhuma falsa inter-
pretação.
Enfatizamos em muitos de nossos escritos, em todos nossos discursos, e
em toda nossa imprensa que a situação na Rússia não é a mesma dos países
capitalistas avançados, que temos na Rússia uma minoria de trabalhadores
industriais e uma grande maioria de pequenos camponeses. A revolução
72
social em tal país pode ser finalmente um sucesso apenas em duas condições:
primeiro, na condição de que receba o suporte da revolução social em um
ou mais países avançados...segundo, que tem que haver acordo entre o
proletariado que estabelece a ditadura ou controla o poder de Estado em
suas mãos e a maioria da população camponesa...
73
avançados? Não, isto é impossível. Para derrubar a burguesia os esforços de
um país são suficiente – a historia de nosso país mostra isto. Para a vitória
final do socialismo, a organização da produção socialista, os esforços de um
país, principalmente um país camponês como a Rússia são insuficientes. Para
isto os esforços do proletariado de vários países avançados é necessário...
Tal, na integra, são os traços característicos da teoria da revolução proletária
de Lenin”. (Stalin, Lenin e o leninismo, pág. 40, Ed. Russa, 1924)
74
Neste momento era até “evidente por si só”. Ele segue:
Na literatura marxista e semi-marxista do pré-guerra, a questão foi levantada
muitas vezes sobre se era possível a vitória do socialismo em um só país.
A maioria dos escritores respondeu a esta questão negativamente [e Lenin
em 1915? – LT], do que não podemos deduzir que é impossível ou proibido
iniciar a revolução e tomar o poder em um país.
75
fosse “sempre” assim, então porque Bukharin escreveu tal parágrafo
no programa da Liga da Juventude Comunista? Onde estava Stalin en-
tão? Como pode Lenin e o Comitê Central inteiro aprovar tal heresia?
Como foi que ninguém no partido notou esse “deslize” ou levantou a
voz contra isso? Isto não parece um jogo sinistro que está se tornan-
do uma zombaria completa do partido, sua historia e do Comintern?
Não está na hora de parar com isto? Não está na hora de dizer aos
revisionistas: nem tentem se esconder atrás de Lenin e a tradição te-
órica do partido?
No sétimo pleno do CEIC, para providenciar bases para a reso-
lução condenando o “trotskismo”, Bukharin, que sobrevive graças
à sua memória curta, fez a seguinte afirmação: “Na teoria da revo-
lução permanente do camarada Trotski – e o camarada Trotski de-
fende essa teoria ainda hoje – achamos também uma afirmação de
que por causa de nosso atraso econômico vamos inevitavelmente
perecer sem a revolução mundial” (minutas, pág. 115)
No sétimo pleno eu falei sobre lacunas na teoria da revolução
permanente como eu a tinha formulado em 1905-1906. Mas natural-
mente nunca passou pela minha cabeça renunciar aos fundamentos
desta teoria, o que me aproximava e me aproximou de Lenin, e que
não me permite admitir essa revisão do leninismo realizada atual-
mente.
Havia duas teses fundamentais na teoria da revolução perma-
nente. Primeiro, que apesar do atraso histórico da Rússia, a revo-
lução pode colocar o poder nas mãos do proletariado russo antes
do proletariado de países avançados conseguirem isso. Segundo, a
saída para essas contradições que vão acontecer com a ditadura do
proletariado em um país atrasado, circundado de um mundo de ini-
migos capitalistas, será encontrada na arena da revolução mundial.
A primeira proposição é baseada num correto entendimento da lei
do desenvolvimento desigual. A segunda depende de um correto
entendimento da indissolubilidade dos laços econômicos e políti-
cos entre os países capitalistas. Bukharin está correto quando diz
que até hoje ainda defendo essas duas premissas da teoria da revo-
lução permanente. Hoje, mais que nunca. Pois, em minha opinião,
elas foram completamente verificadas e provadas: na teoria, pelos
trabalhos de Marx e Lenin; na pratica, pela experiência da revolu-
ção de outubro.
76
6. Onde está o “desvio social democrata?
As citações colocadas são mais do que suficiente para caracterizar
as posições teóricas de Stalin e Bukharin ontem e hoje. Mas para de-
terminar o caráter de seus métodos políticos devemos lembrar que,
tendo selecionado nos documentos escritos pela Oposição aquelas
colocações que são absolutamente análogas às que eles mesmos fize-
ram até 1925 (neste momento em total acordo com Lenin), Stalin e
Bukharin, baseando-se nelas, colocaram de pé a teoria de nosso “des-
vio social democrata”. Pareceria que na questão central das relações
entre a Revolução de Outubro e a revolução internacional, a oposição
tem o mesmo ponto de vista de Otto Bauer, que não admite a possibi-
lidade da construção socialista na Rússia. Pode-se realmente pensar
que a imprensa escrita foi inventada apenas em 1924 e que tudo que
ocorreu antes desta data está fadado ao esquecimento. Contam de
antemão com a memória curta das pessoas!
No entanto, na questão da natureza da Revolução de Outubro, o
Comintern acertou suas contas com Otto Bauer e outros filisteus da
Segunda Internacional no Quarto Congresso. O informe que o comitê
central me encarregou de apresentar e que expressava seus pontos
de vista sobre a nova política econômica e as perspectivas da revolu-
ção mundial, cotinha um julgamento sobre a atitude de Otto Bauer
foi apreciada de uma maneira que expressava as posições de nosso
então Comitê Central; não encontrou qualquer objeção no congresso
e eu acho que até hoje está boa. No que concerne Bukharin, ele decli-
nou de esclarecer o lado político do problema já que “muitos camara-
das, incluindo Lenin e Trotski, já falaram sobre o assunto”; em outras
palavras, Bukharin naquele momento concordava com meu discurso.
Veja o que eu disse no Quarto Congresso sobre Otto Bauer:
Os teóricos da social democracia, que, de um lado reconhecem em seus
artigos para dia de festa que o capitalismo, particularmente na Europa, já
cumpriu seu papel e se tornou um freio para o desenvolvimento histórico, e
de outro lado expressam a convicção de que a evolução da Rússia soviética
inevitavelmente leva ao triunfo da democracia burguesa, caem na mais
estúpida e banal contradição na qual esses estúpidos e conceituados
confusionistas são totalmente escolados. A nova política econômica foi
calculada para uma certa e definida condição de tempo e espaço. É uma
manobra do Estado dos trabalhadores que está cercado de capitalistas e
definitivamente conta com o desenvolvimento revolucionário da Europa...
Tempo é um fator que não pode ser desconsiderado em cálculos políticos.
Se deixarmos que o capitalismo consiga continuar existindo na Europa por
outro século ou meio século e que a Rússia soviética tenha que se adaptar a
isso em sua política econômica, então a questão se resolve automaticamente
77
porque, deixando isto acontecer, nós pressupomos o colapso da revolução
proletária na Europa e o surgimento de uma nova época da ressurgimento
capitalista. Em que terreno isso é permitido? Se Otto Bauer descobriu que
atualmente na Áustria qualquer sinal milagroso de ressurreição capitalista,
então podemos dizer que o destino da Rússia está pré-determinado. Mas até
agora não vimos qualquer milagre, nem acreditamos neles. Do nosso ponto
de vista, se a burguesia europeia consegue se manter no poder durante
varias décadas, isso significará, na presente condição mundial, nenhum novo
nascimento capitalista, mas estagnação econômica e o declínio cultural da
Europa. Falando no geral não pode ser descartado que este processo jogue
a Rússia soviética no abismo. Se vai passar por um estagio de ‘democracia’
ou decadência em outras formas, é uma questão secundaria. Mas não
vemos nenhum motivo para adotar a filosofia de Spengler. Definitivamente
apostamos no desenvolvimento revolucionário na Europa. A Nova Política
Econômica é apenas uma adaptação ao ritmo daquele desenvolvimento (L.
Trotski, “Sobre as criticas da social-democracia”, Cinco anos do Comintern,
pág. 491)
78
7. A dependência da URSS da economia mundial
O precursor dos atuais profetas da sociedade nacional socialista
não foi outro que o sr. Vollmar. Descreveu em seu artigo intitulado
“O Estado socialista isolado” a perspectiva da construção socialista
independente na Alemanha, país com um proletariado muito mais
desenvolvido que a avançada Grã Bretanha. Vollmar, em 1878, se re-
fere diversas vezes de forma clara e definitiva à lei do desenvolvi-
mento desigual, com a qual, segundo Stalin, Marx e Engels não esta-
vam familiarizados. Em base àquela lei Vollmar chegou à conclusão
irrefutável que: “Se prevalecem as atuais condições, que irá manter
sua força também no futuro, podemos prever que a vitória simultâ-
nea do socialismo em todos os países civilizados está absolutamente
fora de questão”.
Desenvolvendo ainda mais esta ideia, Vollmar diz: “Assim chega-
mos ao Estado socialista isolado que eu espero ter provado é o mais
provável, ainda que não a única possibilidade”
Até aqui pelo termo “Estado isolado” podemos entender um Esta-
do com ditadura do proletariado. Vollmar expressou uma ideia indis-
cutível e bem conhecida de Marx e Engels, e a qual Lenin expressou
no artigo de 1915 citado acima.
Mas então segue algo que é puramente ideia de Vollmar, a qual,
alias, é uma longa formulação errada e parcial como a formulação
de nossos patrocinadores da teoria do socialismo em um só país. Em
sua construção, Vollmar teve como ponto de partida a proposição de
que a Alemanha socialista terá grandes relações econômicas com a
economia capitalista mundial, tendo ao mesmo tempo a vantagem
de possuir uma tecnologia muito mais desenvolvida e um custo de
produção muito menor. Esta construção é baseada na perspectiva de
uma coexistência pacifica dos sistemas socialista e capitalista. Mas na
medida em que o socialismo deve, com seu progresso, revelar cons-
tantemente sua colossal superioridade produtiva, a necessidade da
revolução mundial desaparecerá sozinha: o socialismo triunfará so-
bre o capitalismo por vender bens mais baratos no mercado.
Bukharin, o autor do primeiro projeto de programa e um dos au-
tores do segundo projeto, parte em sua construção do socialismo em
um só país totalmente da ideia de uma economia isolada autossufi-
ciente. No artigo de Bukharin intitulado “Sobre a natureza de nossa
revolução e a possibilidade de uma construção socialista bem sucedi-
da na URSS” (Bolchevique, nº19-20, 1926), no qual a última palavra
é escolástica multiplicada pela sofismo, todo o raciocínio é desenvol-
79
vido dentro dos limites de uma economia isolada. O principal e único
argumento é o seguinte:
Desde que temos ‘tudo o que é necessário e suficiente’ para construir o
socialismo, portanto, não haverá nenhum momento a partir do qual esta
organização seja impossível. Se temos em nosso país uma combinação de
forças que, em relação a cada ano passado, estamos avançando com uma
grande preponderância do setor socialista de nossa economia e os setores
socializados de nossa economia crescem mais rápido do que os setores
capitalistas privados, então estamos entrando a cada novo ano subsequente
com forças aumentadas.
80
O proletariado da Rússia czarista não poderia ter tomado o po-
der em outubro se a Rússia não tivesse um vinculo, por mais fraco,
mas um vinculo, enfim – na cadeia da economia mundial. A chegada
ao poder pelo proletariado não excluiu de jeito nenhum a Republica
Soviética do sistema de divisão internacional do trabalho criada pelo
capitalismo.
Assim como a esperta coruja vem voando apenas no crepúsculo,
a teoria do socialismo em um só país aparece no momento quando
nossa indústria, que exauriu ainda maiores porções do velho capi-
tal, em dois terços da qual está cristalizada a dependência de nossa
indústria da indústria mundial, deu mostras da sua necessidade ur-
gente de renovar e estender seus laços com o mercado mundial e no
momento em que os problemas do comercio exterior apareceram de
forma completa perante nossos dirigentes econômicos.
No décimo primeiro congresso, isto é, o último congresso em que
Lenin teve a oportunidade de falar ao partido, ele fez um alerta de
que o partido em breve teria que passar por outro teste: “...um teste
no qual seremos colocados pelo mercado russo e internacional ao
qual estamos subordinados, com o qual estamos conectados e do
qual não podemos escapar”.
Nada mais explosivo para a teoria de um “socialismo completo”
isolado do que o simples fato de que nossas figuras do comercio
exterior estão nos anos mais recentes no centro dos planos eco-
nômicos. O “nó” de nossa economia, incluindo nossa indústria, são
nossas importações que dependem inteiramente de nossas expor-
tações. E na medida em que a força de resistência de uma cadeia
é sempre medida por seu elo mais fraco, as dimensões de nossos
planos econômicos tem que estar conforme as dimensões de nos-
sas importações.
No jornal Economia planejada (o órgão teórico da Comissão Es-
tatal de planejamento) nós lemos um artigo dedicado ao sistema
de planejamento, que
...na visão de nossas mais importantes figuras de controle para o ano
corrente tivemos que trabalhar metodologicamente nossos planos
de exportação e importação como ponto de partida para todo o plano.
Tivemos que nos orientar nisso em nossos planos para os diversos
ramos da indústria e consequentemente para a indústria em geral
e particularmente para a construção de novos empreendimentos
industriais, etc etc. (jan.1927, pág. 27)
81
figuras de controle determinam a direção e o ritmos de nosso de-
senvolvimento econômico, mas que estas figuras de controle já estão
determinadas pela economia mundial; não é porque nos tornamos
mais fortes que rompemos o circulo vicioso do isolamento.
O mundo capitalista nos mostra que por suas importações e ex-
portações tem outros instrumentos de persuasão além daqueles da
intervenção militar. Na medida em que a produtividade do trabalho
e a produtividade de um sistema social como um todo são media-
das no mercado pela correlação de preços, não é muito a intervenção
militar mas a intervenção de mercadorias capitalistas mais baratas
que constituem, talvez, a maior ameaça imediata para a economia
soviética. Isto por si só mostra que não é de modo algum uma ques-
tão de vitória econômica isolada sobre “a sua própria” burguesia: “A
revolução socialista que é imperativa para todo o mundo não consis-
te apenas na vitória do proletariado de cada país sobre sua própria
burguesia” (Lenin, Escritos, vol. XVI, pág.388, 1919). Aqui está envol-
vida a rivalidade e uma luta de morte entre dois sistemas sociais, um
dos quais apenas começou a ser construído sobre forças produtivas
atrasadas, enquanto o outro ainda hoje funciona com forças produti-
vas imensuravelmente maiores.
Qualquer um que veja “pessimismo” em admitir nossa dependên-
cia do mercado mundial (Lenin falou diretamente de nossa subordi-
nação ao mercado mundial) revela seu próprio espírito provinciano
pequeno burguês em relação à economia mundial e o caráter lasti-
mável de seu otimismo local que espera se esconder da economia
mundial atrás de um arbusto e manejar de alguma maneira com seus
próprios recursos.
A nova teoria fez de seu ponto de honra a ideia esquisita de que
a URSS pode perecer de uma intervenção militar mas nunca de seu
próprio atraso econômico. Mas visto que em uma sociedade socia-
lista a prontidão das massas em defender seu país deve ser mui-
to maior que a prontidão dos escravos do capitalismo em atacar
aquele país, vem um questão: porque deve uma intervenção mili-
tar levar-nos ao desastre? Porque o inimigo é infinitamente mais
forte em sua tecnologia. Bukharin enxerga a predomínio das for-
ças produtivas apenas no seu aspecto técnico militar. Ele não quer
entender que um trator da Ford é tão perigoso quanto uma arma
Creusot, com a única diferença de que enquanto a arma funciona
apenas de quando em quando, o trator nos faz pressão constante.
Alem disso o trator sabe que a arma está por trás dele, como últi-
mo recurso.
82
Somos o primeiro Estado operário, uma parte do proletaria-
do mundial e junto com eles nós dependemos do capital mundial.
A palavra achada de forma neutra, indiferente e burocraticamente,
“conexões”, foi posta em circulação com o único objetivo de diminuir
a natureza extremamente onerosa e perigosa de tais “conexões” Se
estivéssemos produzindo com os preços do mercado mundial, nossa
dependência nele, sem deixar de ser dependência, teria um caráter
muito menos severo que tem agora. Mas infelizmente este não é o
caso. Nosso monopólio do comercio exterior é por si só a evidencia
da severidade e do perigoso caráter de nossa dependência; A impor-
tância decisiva do monopólio em nossa construção socialista é resul-
tado precisamente da correlação de forças existentes que é desfavo-
rável a nós. E não devemos esquecer, nem por um momento, que o
monopólio do comercio exterior apenas regula nossa dependência
no mercado mundial, mas não elimina isso. “Enquanto nossa republi-
ca soviética [diz Lenin] permanecer isolada em uma fronteira circun-
dada pelo mundo inteiro capitalista, será absolutamente uma utopia
ridícula e fantasiosa pensar em nossa completa independência eco-
nômica e no desaparecimento de certos perigos.” (Escritos, Vol. XVII,
pág. 409)
O principal perigo decorre, consequentemente, da posição obje-
tiva da URSS como uma “fronteira isolada” em uma economia capi-
talista que é hostil a nós. Esse perigo pode, no entanto, diminuir ou
aumentar. Depende da ação de dois fatores: nossa construção por um
lado e do outro o desenvolvimento da economia capitalista.
Em última analise, o segundo fator, isto é, o destino da economia
mundial como um todo, é, claramente, decisivo.
Pode ocorrer – e em que caso em particular – que a produtividade
de nosso sistema socialista fique atrás constantemente daquela do
sistema capitalista? Pois isto inevitavelmente levará no final ao desa-
parecimento da republica socialista. Se nós organizarmos nossa eco-
nomia nessa nova fase, quando estaremos obrigados a criar a base
da indústria, o que exige qualidades muito maiores da direção, então
nossa produtividade no trabalho irá crescer. É, no entanto, inconce-
bível que a produtividade do trabalho nos países capitalistas, ou me-
lhor, nos principais países capitalistas, crescerá mais rápido que em
nosso país? Sem uma resposta clara a esta questão, não há qualquer
base para as afirmações levianas de que nosso ritmo “é por si só” su-
ficiente (nem vamos mencionar a filosofia absurda da “velocidade de
tartaruga”). Mas qualquer tentativa de dar uma resposta à questão
da rivalidade entre os dois sistemas nos leva ao terreno da economia
83
mundial e política mundial, isto é, ao terreno da ação e decisão da
Internacional revolucionaria que inclui a republica soviética, mas de
forma alguma à autossuficiente republica soviética que de tempos
em tempos recorre à ajuda da Internacional.
Falando da economia estatal da URSS o projeto de programa diz
que está “desenvolvendo indústria em larga escala em um ritmo su-
perior ao ritmo do desenvolvimento dos países capitalistas”. Esta
tentativa de justapor dois ritmos representa, devemos admitir, a
principio um passo a frente em comparação com o período quando
os autores do programa categoricamente rejeitavam a questão de
comparar o coeficiente entre nosso desenvolvimento e o do mundo.
Não há necessidade de “introduzir o fator internacional”, disse Sta-
lin. Vamos construir o socialismo “mesmo que a passo de tartaru-
ga”, disse Bukharin. Foi precisamente nessa linha que as principais
controvérsias ocorreram durante vários anos. Formalmente – nós
ganhamos nessa linha. Mas se não inserimos meramente no texto
a comparação entre os ritmos de desenvolvimento econômico, mas
vamos à raiz da questão, se tornará aparente que não é possível
falar em outro capitulo do projeto sobre “um mínimo de indústria
suficiente”, sem nenhuma relação com o mundo capitalista, tendo
como ponto de partida apenas as relações internas; e que é igual-
mente impossível saber de antemão, mas mesmo colocar a questão
de se é “possível ou impossível” a qualquer país construir o socia-
lismo independentemente. A questão é decidida pela dinâmica da
luta entre os dois sistemas, entre as duas classes mundiais, e nesta
luta, independentemente dos altos índices de crescimento de nosso
período de restauração, segue sendo um fato essencial e indiscutí-
vel que: “O capitalismo, olhando em escala internacional, é ainda,
não apenas no sentido militar mas também econômico, muito mais
forte que o poder soviético. Nós devemos partir desta consideração
fundamental e nunca esquecer isto” (Lenin, Escritos, vol. XVIII, pág.
102)
A questão da inter-relação entre os diferentes ritmos de desen-
volvimento permanece uma questão aberta para o futuro. Depende
não apenas de nossa capacidade de realmente atingir o “smichka”,
garantir a produção dos grãos e incrementar nossas exportações e
importações, em outras palavras, não apenas de nosso sucesso in-
terno o qual, é claro, é um fator extremamente importante nessa luta
mas também do destino do mundo capitalista, com sua estagnação,
reação ou colapso, que dizer, sobre o curso da economia e revolução
mundiais. Consequentemente a questão não é decidida dentro das
84
fronteiras nacionais e sim no terreno da luta política e econômica
mundial.
Assim, pois, vemos quase em cada ponto do projeto de progra-
ma uma concessão direta ou dissimulada à critica da oposição. Essa
“concessão” se manifesta por uma aproximação a Marx e a Lenin no
domínio teórico, porém as conclusões revisionistas ficam completa-
mente independentes das teses revolucionarias.
85
muito tempo romperam as fronteiras nacionais. A sociedade socia-
lista, no entanto, pode ser construída apenas sobre as mais avan-
çadas forças produtivas, na aplicação da eletricidade e da química
aos processos de produção incluindo a agricultura; ou combinando,
generalizando e trazendo ao desenvolvimento máximo os mais al-
tos elementos da tecnologia moderna. De Marx em diante, temos
repetido constantemente que o capitalismo não pode suportar o
espírito da nova tecnologia que ele mesmo criou e que dilacera não
só o argumento dos direitos da propriedade privada da burgue-
sia mas, como a guerra de 1914 mostrou, também as esperanças
nacionais do Estado burguês. O socialismo, no entanto, não deve
apenas partir das mais desenvolvidas forças produtivas mas deve
imediatamente levá-las adiante, elevá-las ao nível máximo e dar a
eles um Estado de desenvolvimento como nunca visto no sistema
capitalista. A pergunta que surge: como então pode o socialismo
levar de volta as forças produtivas para dentro das fronteiras de um
Estado nacional que elas lutaram violentamente para quebrar sob
o capitalismo? Ou talvez, nós devemos abandonar a ideia de forças
produtivas “desenfreadas” para as quais as fronteiras nacionais, e
consequentemente também as fronteiras da teoria do socialismo
em um só país, são muito estreitas e nos limita, digamos, as forças
produtivas controladas e domesticadas, isto é, para a tecnologia do
atraso econômico? Se for este o caso, então em muitos ramos da in-
dústria devemos parar de fazer progressos já agora e nos contentar
com um nível ainda menor que nosso nível técnico lastimável que
conseguiu ligar a Rússia burguesa com a economia mundial em um
laço indissolúvel e a levou a participar na guerra imperialista para
estender seu território ante as forças produtivas que extrapolaram
as fronteiras do Estado nacional.
Tendo herdado e restaurado estas forças produtivas o Estado ope-
rário é obrigado a importar e exportar.
O problema é que o projeto de programa injeta mecanicamente
no texto a tese da incompatibilidade da tecnologia capitalista moder-
na com as fronteiras nacionais e depois o argumento procede como
se não houve nenhum questionamento desta incompatibilidade. Es-
sencialmente o projeto todo é uma combinação de uma tese revo-
lucionaria já pronta de Marx e Lenin e de conclusões oportunistas
ou centristas que são absolutamente incompatíveis com essas teses
revolucionarias. É por isso que é necessário sem ficar fascinado com
as formulas revolucionarias isoladas contidas no projeto, olhar cui-
dadosamente para onde conduzem suas tendências centrais.
86
Nós já citamos aquela parte do primeiro capitulo que fala da pos-
sibilidade de vitória do socialismo “em um país isolado”. Esta ideia é
formulada ainda mais cruamente e agudamente no quarto capitulo,
que diz que: “A ditadura [?] do proletariado mundial...pode ser reali-
zada apenas como resultado da vitória do socialismo [?] em países
individuais quando as novas republicas proletárias formadas irão es-
tabelecer a federação com aqueles que já existem”
Se fossemos interpretar as palavras “vitória do socialismo” ape-
nas como outra expressão de ditadura do proletariado, então chega-
mos à um lugar comum inquestionável e que deveria ser melhor for-
mulado para evitar o duplo sentido. Mas isto não é o que os autores
do projeto tem em mente. Por vitória do socialismo, ele não querem
dizer simplesmente a tomada do poder e a nacionalização dos meios
de produção mas a construção de uma sociedade socialista em um
país. Se fossemos aceitar esta interpretação então não chegaremos
a uma economia mundial socialista baseada na divisão internacional
do trabalho mas a uma federação de comunidades socialistas autos-
suficientes no espírito da santa ignorância do anarquismo, a única di-
ferença sendo que estas comunidades seriam estendidas ao tamanho
dos atuais Estados nacionais.
Em sua urgência de encobrir ecleticamente a nova formulação
por meio das velhas e costumeiras formulas o projeto de programa
recorre à seguinte tese: “Apenas depois da completa vitória mun-
dial do proletariado e da consolidação de seu poder mundial haverá
uma prolongada época de intensa construção da economia socialista
mundial”. (cap. 4)
Usado como um escudo teórico, este postulado na realidade ser-
ve apenas para expor a contradição básica. Se fossemos interpretar
que esta tese quer dizer que a época da genuína construção socialista
só pode começar depois da vitória do proletariado, pelo menos em
vários países avançados, então é simplesmente a rejeição da teoria
da construção do socialismo em um só país e um retorno à posição
de Marx e Lenin. Mas se temos como ponto de partida a nova teoria
de Stalin e Bukharin que está disposta em varias partes do projeto
de programa, então temos a seguinte perspectiva: até a total vitória
mundial do proletariado uma quantidade de países sozinhos cons-
trói o socialismo completo em seus respectivos países e subsequen-
temente destes países socialistas será construída uma economia
socialista mundial, da mesma maneira que uma criança constrói es-
trutura com blocos. Na realidade a economia socialista mundial não
será a soma total de economias socialistas nacionais. Pode tomar
87
forma em seus aspectos fundamentais apenas no terreno da divisão
internacional do trabalho que foi criada por todo o desenvolvimento
do capitalismo precedente. Em sua essência, não será constituído e
construído depois da construção do “socialismo completo” em um
numero de países individualmente, mas nos trovões e tempestades
da revolução proletária mundial o que requer algumas décadas. O
sucesso econômico dos primeiros países sob ditadura do proletaria-
do será medido não pelo degrau de sua aproximação ao “socialismo
completo” autossuficiente mas pela estabilidade política da ditadura
em si e pelo sucesso alcançado na preparação dos elementos da futu-
ra economia socialista mundial.
A ideia revisionista é ainda mais definitiva e portanto ainda
mais grosseiramente expressa, se isso é possível, no quinto capi-
tulo onde, escondendo atrás de uma linha e meia do artigo pós-
tumo de Lenin que eles distorceram, os autores do projeto decla-
ram que a URSS: “...possui os pré-requisitos materiais necessários
e suficientes dentro do país não só para derrubar os latifundiários
feudais e a burguesia mas também para a completa construção do
socialismo”
Graças a quais circunstancias conseguimos tão extraordinárias
vantagens históricas? Neste ponto achamos a resposta no segundo
capitulo do projeto: “O fronte imperialista foi quebrado em seu elo
mais fraco, a Rússia czarista”.
Esta é a formula esplendida de Lenin. Seu significado é que a Rús-
sia era o mais fraco e atrasado economicamente de todos os Estados
imperialistas. E isto é exatamente porque suas classes dominantes
foram a primeira a cair já que tinham sobrecarregado exagerada-
mente sobre forças produtivas insuficientes do país. Desigual, de-
senvolvimento esporádico assim empurraram o proletariado do país
mais atrasado a ser o primeiro a tomar o poder. Formalmente apren-
demos que esta é precisamente a razão pela qual a classe trabalha-
dora do “elo mais frágil” encontrará as maiores dificuldade em seu
progresso rumo ao socialismo quando comparado com o proletaria-
do dos países avançados, que terá mais dificuldade para tomar o po-
der, mas que tendo tomado o poder, muito antes de nós superarmos
nosso atraso, não só nos ultrapassará como nos carregará até o ponto
da real construção socialista em base da melhor tecnologia mundial
e da divisão internacional do trabalho. Esta era nossa ideia quando
aventuramos a Revolução de Outubro. O partido formulou esta ideia
dez, não, centenas e milhares de vezes nos jornais e encontros, mas
desde 1925 tentativas foram feitas para colocar justamente a ideia
88
oposta. Agora descobrimos que o fato de que a Rússia Czarista fosse
o elo mais frágil coloca nas mãos do proletariado da URSS uma ines-
timável vantagem: que possui seus pré-requisitos necessários para a
“completa construção do socialismo”.
Coitada da Grã-Bretanha que não possui esta vantagem por causa
do excessivo desenvolvimento de suas forças produtivas que requer
que quase todo o mundo forneça as matérias primas e que utilize
seus produtos. Fossem as forças produtivas da Grã-Bretanha mais
“moderada” e eles teriam mantido um relativo equilíbrio entre a in-
dústria e a agricultura, então o proletariado britânico seria aparente-
mente capaz de construir o socialismo completo em sua própria ilha
“isolada”, protegido da intervenção externa por sua marinha.
O projeto de programa, em seu quarto capitulo, divide os países
capitalistas em três grupos: 1) “países com alto grau de desenvolvi-
mento capitalista (Estados Unidos, Alemanha, Grã-Bretanha etc.)”,
2) “países com desenvolvimento capitalista médio (Rússia antes de
1917, Polônia etc.)”, 3) “Países coloniais e semicoloniais (China, ín-
dia etc.)”.
Apesar do fato de que a “Rússia antes de 1917” estava muito mais
perto da China de hoje em dia do que dos Estados Unidos atual, pode-
ríamos nos abster de qualquer objeção seria a esta divisão esquemá-
tica não fosse pelo fato de que, em relação a outras partes do projeto,
ela serve como fonte de falsas conclusões. Na medida em que os paí-
ses de “nível médio” serem declarados no projeto como possuidores
de “indústrias mínimas suficiente” para a construção socialista inde-
pendente, isto é ainda mais verdade para os países de alto grau de
desenvolvimento. São apenas os países coloniais e semicoloniais que
precisam de ajuda externa; este é precisamente o traço distintivo do
projeto de programa.
Se, no entanto, identificamos os problemas da construção socia-
lista apenas com esse critério, abstraindo de outras condições, tais
como os recursos naturais do país, a correlação entre a indústria e
a agricultura nele, seu lugar no sistema econômico mundial, então
cairemos de novo em erros não menos grosseiros. Falamos acima
sobre a Grã-Bretanha. Sendo, sem duvidas, um país capitalista alta-
mente desenvolvido, ela tem precisamente por isso nenhuma chance
de sucesso na construção socialista nos limites de sua própria ilha.
A Grã-Bretanha, se bloqueada, seria simplesmente estrangulada em
alguns poucos meses.
Na verdade, todas as outras condições sendo iguais, as forças pro-
dutivas mais desenvolvidas são uma enorme vantagem para o pro-
89
pósito de construção do socialismo. Eles dotaram a vida econômi-
ca com uma flexibilidade excepcional mesmo quando é bloqueada,
como ficou evidente com a Alemanha burguesa durante a guerra.
Mas a construção do socialismo em bases nacionais implicaria para
esses países avançados um declínio generalizado, uma destruição em
massa das forças produtivas, ou seja, algo totalmente oposto às tare-
fas do socialismo.
O projeto de programa esquece a tese fundamental da incompa-
tibilidade entre as atuais forças produtivas e as fronteiras nacionais,
do que deriva que forças produtivas mais desenvolvidas não são de
maneira alguma um obstáculo menor para a construção do socialis-
mo em um país que poucas forças produtivas, ainda que pelo motivo
inverso, a saber, enquanto nas ultimas são insuficientes para servir
como a base, são as bases que provarão ser inadequadas para os pri-
meiros. A lei do desenvolvimento desigual é esquecida exatamente
no ponto em que é mais necessária e mais importante.
O problema de construir o socialismo não está somente na “ma-
turidade” ou “imaturidade” industrial de um país. Esta imaturidade
por si só é desigual. Na URSS alguns ramos da indústria são extrema-
mente inadequados para satisfazer as mais elementares necessida-
des domesticas (particularmente a fabricação de maquinas), outros
ramos ao contrario não podem se desenvolver sob as condições atu-
ais sem um aumento e extensão das exportações. Entre os últimos
ramos estão ramos da maior importância como madeira, petróleo e
manganês, sem contar a agricultura. Por outro lado mesmo os ramos
“insuficientes” não podem se desenvolver seriamente se os “supera-
bundantes” (relativamente) são incapazes de exportar. A impossi-
bilidade de construir uma sociedade socialista isolada, não em uma
Utopia ou uma Atlântida mas nas condições geográficas e históricas
concretas de nossa economia terrestre, é determinada para vários
países em diferentes formas – pela insuficiência do desenvolvimen-
to de alguns ramos como também pelo “excessivo” desenvolvimento
de outros. No todo isto significa que as forças produtivas modernas
são incompatíveis com as fronteiras nacionais.
O que foi a guerra imperialista? Foi a revolta das forças produtivas não
apenas contra as formas de propriedade da burguesia, mas também contra
as fronteiras dos Estados capitalistas. A guerra imperialista expressou o
fato de que as forças produtivas estão insuportavelmente constrangidas
com o confinamento dos Estados nacionais. Nós sempre dissemos que o
capitalismo é incapaz de controlar as forças produtivas e que somente o
socialismo é capaz de incorporar as forças produtivas que superaram as
90
fronteiras dos Estados capitalistas com um entidade econômica superior.
Todos os caminhos que levam de volta ao Estado isolado foram bloqueados...
(Minutas, Sétimo pleno do CEIC, discurso de Trotski, pág. 100).
91
proletariado e a burguesia. A URSS não está cercada de um mundo de
proletários e camponeses e sim de um mundo capitalista. Se a bur-
guesia fosse derrubada no mundo inteiro, então este fato, por si só,
não iria ainda mudar a correlação entre o proletariado e os campo-
neses, nem o nível médio da tecnologia dentro da URSS e do mundo
inteiro. Mas, ainda assim, a construção socialista na URSS iria ime-
diatamente ganhar possibilidades totalmente diferente e diferentes
proporções, que seriam completamente incomparáveis com as pos-
sibilidades e proporções atuais.
Em terceiro lugar, se as forças produtivas de todos os países avan-
çados extrapolaram em algum grau as fronteiras nacionais, então de
acordo com Bukharin, concluímos que as forças produtivas de todos
os países olhadas de conjunto extrapolariam os limites de nosso pla-
neta e que, consequentemente o socialismo não poderia ser constru-
ído senão a nível de sistema solar.
Nós repetimos que o argumento de Bukharin de que a proporção
media entre trabalhadores e camponeses deve ser incluída em todos
os manuais políticos, naturalmente não como foi incluído agora para
defender a teoria do socialismo em um só país, mas como a prova da
total incompatibilidade entre o casuísmo formal e a dialética mar-
xista.
92
Sim, esta é exatamente a diferença. Ninguém poderia expressar
melhor e mais corretamente a diferença entre nacional reformismo
e internacionalismo revolucionário. Se nossas diferenças, obstácu-
los e contradições internas, que são fundamentalmente um reflexo
das contradições mundiais, pode ser resolvida apenas pelas “forças
internas de nossa revolução” sem entrar “no terreno da revolução
proletária no mundo todo” então a Internacional é parcialmente uma
subsidiaria e parcialmente uma instituição decorativa, o congresso
que pode ser convocado a cada quatro anos, a cada dez anos, ou tal-
vez nunca mais. Mesmo se devemos acrescentar que o proletariado
dos outros países devem proteger nossa construção de intervenções
militares, a Internacional de acordo com este esquema deve ter um
papel de instrumento pacifista. Seu papel principal, o papel de um
instrumento da revolução internacional, estará então inevitavelmen-
te relegado a um segundo plano. E isto, nós repetimos, não decorre
das intenções deliberadas de alguém (ao contrario, vários pontos
do programa testemunham as melhores intenções de seus autores),
mas decorre da lógica interna da nova posição teórica que é milhares
de vezes mais perigosa que as piores intenções subjetivas.
De fato, mesmo no sétimo pleno do CEIC, Stalin tornou-se tão au-
dacioso a ponto de desenvolver e defender a seguinte ideia:
Nosso partido não tem o direito de enganar [!] a classe trabalhadora; ele
deve declarar abertamente que a falta de segurança [!] na possibilidade
da construção do socialismo em nosso país conduz a abdicar do poder e a
passagem de nosso partido de sua posição de partido governante à posição
de um partido de oposição (Minutas, vol. II, pág. 10)
Isto quer dizer que nós temos apenas o direito de dar segurança
nos recursos insuficientes da economia nacional, mas que não de-
vemos ousar ter qualquer segurança nos recursos inesgotáveis do
proletariado internacional. Se não podemos seguir sem uma revolu-
ção internacional, então entregamos o poder, desistimos do poder de
outubro que foi conquistado no interesse da revolução internacional.
Eis o tipo de fracasso ideológico a que chegamos se partimos de uma
formulação que é falsa em seu âmago.
O projeto de programa expressa uma ideia incontestável quando
diz que o sucesso econômico da URSS constitui uma parte insepará-
vel da revolução proletária mundial. Mas o perigo político da nova
teoria está numa falsa avaliação comparativa das duas alavancas do
socialismo mundial – a alavanca de nossas aquisições econômicas e
a alavanca da revolução proletária mundial. Sem uma revolução pro-
93
letária vitoriosa, não conseguiremos construir o socialismo. Os tra-
balhadores europeus e do mundo devem entender isto claramente.
A alavanca da construção econômica é tremendamente significativa.
Sem uma liderança correta, a ditadura do proletariado iria se enfra-
quecer; e esta queda significaria um golpe tal à revolução mundial
que esta necessitaria uma longa serie de anos para recompor-se.
Mas a solução do processo fundamental da historia, suspenso entre
o mundo do socialismo e do capitalismo, depende da segunda ala-
vanca, quer dizer, da revolução proletária internacional. A enorme
importância da União Soviética consiste em que constitui a base na
qual se apoia a revolução mundial e não em que, independentemente
desta, será capaz de construir o socialismo.
Adotando um tom de superioridade que nada justifica, Bukharin
nos pergunta repetidas vezes: “Se já existem as premissas, pontos
de partida, uma base suficiente e inclusive certos êxitos na obra de
construção do socialismo, onde está, então, o limite, a aresta a partir
da qual ‘tudo caminha no sentido inverso’? Não há tal limite” (Atas
taquigráficas da sétima reunião plenária do Comitê executivo da in-
ternacional comunista, pág. 116)
Isto é má geometria e não dialética histórica. Pode haver esta
“aresta”. Podem existir varias no domínio interior, internacional, po-
lítico econômico e militar. A “aresta” mais importante, a mais amea-
çadora seria uma consolidação séria e duradoura, novo progresso do
capitalismo mundial. Consequentemente, do ponto de vista político e
econômico, a questão nos leva, pois, à cena mundial. Será que a bur-
guesia pode assegurar uma nova época de crescimento capitalista?
Negar essa eventualidade, contando com a situação “sem saída” do
capitalismo, seria simplesmente verborreia revolucionaria. “Não há
situação que não tenha saída em absoluto” (Lenin). O estado atual
de equilíbrio instável das classes, existente nos países europeus, não
pode durar indefinidamente, precisamente porque é instável.
Quando Stalin-Bukharin demonstram que a URSS pode prescin-
dir, como Estado (quer dizer, em suas relações com a burguesia mun-
dial), da ajuda do proletariado estrangeiro, de sua vitória contra a
burguesia, pois a simpatia ativa atual das massas operarias nos pre-
serva da intervenção armada, demonstra a mesma cegueira que em
todas as consequências de seu erro fundamental.
É absolutamente inegável que, depois da sabotagem social de-
mocrata da insurreição do proletariado europeu contra a burguesia,
depois da guerra, a simpatia ativa das massas operarias salvou a re-
publica soviética.
94
Durante estes últimos anos a burguesia europeia não encontrou
forças suficientes para sustentar uma grande guerra contra o Estado
operário. Mas acreditar que essa correlação de forças pode se man-
ter durante muitos anos, por exemplo, até que tenhamos construído
o socialismo na URSS, é dar prova de uma grande cegueira, é julgar
a curva por um de seus segmentos. Essa situação instável, na qual o
proletariado não pode tomar o poder nem a burguesia se sente fir-
memente dona da situação, deve, mais cedo ou mais tarde, um ano
antes ou um anos depois, ser decidida brutalmente em um ou outro
sentido, no da ditadura do proletariado ou no da consolidação seria e
duradoura da burguesia, que se instalará sobre as costas das massas
populares, sobre os ossos dos povos coloniais e... quem sabe?, sobre
os nossos. “Não há situações absolutamente sem saída” A burguesia
pode escapar de uma maneira duradoura de suas contradições mais
penosas unicamente seguindo a rota aberta pelas derrotas do prole-
tariado e os erros da direção revolucionaria. Mas o contrario também
pode acontecer. Não haverá novos progressos do capitalismo (é claro,
se levarmos em conta a perspectiva de uma nova época de grandes
comoções) se o proletariado consegue encontrar a forma de sair pelo
caminho revolucionário do presente equilíbrio instável.
É preciso que os partidos revolucionários demonstrem agora, no trabalho
pratico – dizia Lenin, em 19 de julho de 1920, no segundo congresso – que
tem consciência suficiente, espírito de organização, contato com as massas
exploradas, resolução, habilidade para utilizar essa crise em beneficio de
uma revolução que nos dê o triunfo. (Lenin, Obras Completas, vol. XVII,
pág.264)
95
antissocialista e antirrevolucionária que a declaração de Stalin de
que noventa por cento do socialismo já foram realizados em nosso
país. Isto é produto da imaginação de um burocrata vaidoso. Desta
maneira pode se comprometer irremediavelmente a ideia da so-
ciedade socialista ante as massas trabalhadoras. Os êxitos obtidos
pelo proletariado soviético são grandiosos se levarmos em conta
as condições em que foram alcançados e o baixo nível cultural her-
dado do passado. Mas estas realizações são muito pequenas se as
colocarmos na balança do ideal socialista. Para não desanimar o
operário, o boia-fria, o camponês pobre, que no 11o ano da revolu-
ção vem ao seu redor a miséria, a pobreza, a paralisia, as filas nas
padarias, o analfabetismo, os meninos vagabundos, a embriagues,
a prostituição, é preciso dizer rigorosamente a verdade e não men-
tir elegantemente. Em vez de mentir de que noventa por cento do
socialismo já estão realizados, é preciso dizer que atualmente, se-
gundo nosso nível econômico e nossas condições de vida cotidiana
e cultural, estamos muito mais próximos do capitalismo, e mais
ainda do capitalismo atrasado e inculto, que da sociedade socialis-
ta. É preciso dizer que só começaremos a verdadeira organização
socialista depois que o proletariado dos países mais avançados te-
nham conquistado o poder, que é preciso trabalhar sem descanso
para instaurar o socialismo, usando as duas alavancas: uma curta,
a dos nossos esforços interiores, a outra longa, a da luta interna-
cional do proletariado.
Em uma palavra; em vez das frases de Stalin sobre os noven-
ta por cento do socialismo já realizadas é preciso citar estas pala-
vras de Lenin: “A Rússia indigente só conhecerá a abundância se
rechaçar todo desalento e toda fraseologia, se, apertando os dentes,
concentra todas suas forças e tensiona seus nervos e músculos, se
compreende que só é possível o êxito pela revolução socialista in-
ternacional, em cuja época entramos”. (Lenin, Obras Completas, vol.
XX, pág. 165)
Fomos obrigados a ouvir militantes da Internacional Comunistas
usarem o seguinte argumento: evidentemente a teoria do socialismo
em um só país não tem consistência, mas oferece, em condições difí-
ceis, uma perspectiva aos operários russos e por isso mesmo lhes dá
valor. É difícil medir a profundidade da queda, do ponto de vista te-
órico dos que não procuram em um programa um meio de orientar-
se, uma saída de classe, com uma base cientifica, senão um consolo
moral. As teorias consoladoras, que contradizem os fatos, são parte
da religião e não da ciência, e a religião é o ópio do povo.
96
Nosso partido atravessou seu período heroico com um programa
totalmente orientado pela revolução internacional e não no socialis-
mo em um só país. A juventude comunista, que carrega um estandar-
te onde está escrito que a Rússia atrasada não construirá o socialis-
mo com suas próprias forças, passou os anos mais duros da guerra
civil, com a fome, o frio, os penosos sábados e domingos comunistas,
as epidemias, os estudos com o estomago vazio e com vitimas inume-
ráveis que jorravam a cada passo percorrido. Os membros do partido
e das juventudes comunistas combateram em todas as frentes ou le-
vantaram vigas nas estações, não porque esperavam com estas cons-
truir o edifício do socialismo nacional mas porque serviam à revolu-
ção internacional, que exige que a fortaleza soviética resista, e para
a fortaleza soviética cada nova viga tem sua importância. Eis como
abordamos a questão. Os prazos mudaram, se prolongaram (desde
já, nem tanto); mas a maneira de colocar o problema, do ponto de
vista dos princípios conserva todo seu vigor ainda hoje. O proletário,
o camponês pobre insurreto, o jovem comunista, demonstraram de
antemão, por sua conduta anterior a 1925, época na qual se pregou
o novo evangelho pela primeira vez, que não o necessitavam. Mas era
necessário para o funcionário que olha a massa de cima para bai-
xo, para o administrador que luta por migalhas e que não quer ser
incomodado, o homem da burocracia que trata de mandar escon-
dendo-se atrás da formula saudável e consoladora. São eles os que
acreditam que o povo obscuro necessita de uma “boa nova”, que não
pode ser dominado sem doutrinas consoladoras. São justamente eles
que se aproveitam das palavras falsas sobre os “noventa por cento de
socialismo” pois esta formula consagra sua posição privilegiada, seu
direito à ordem, ao comando, sua aspiração de libertar-se da critica
dos “homens de pouca fé” e dos “céticos”.
As queixas e acusações segundo as quais a negação da possibili-
dade de construir o socialismo em um só país extingue o espírito e
mata a energia se parecem muito, apesar de que as condições sejam
completamente diferentes, às reprovações formuladas pelos refor-
mistas sempre contra os revolucionários. “Diga aos operários que
não podem obter uma melhora decisiva de sua situação nos limites
da sociedade capitalista – argumentavam os reformistas – e assim
matará neles a energia para a luta”. Na realidade só sob a direção dos
revolucionários os operários lutaram de uma maneira eficaz pelas
conquistas econômicas e as reformas parlamentares.
O operário compreende que não se pode construir o paraíso so-
cialista como um oásis no inferno do capitalismo mundial, que o
97
destino da republica soviética e consequentemente o seu dependem
totalmente da revolução internacional, cumprirá seu dever para com
a URSS com muito mais energia do que o operário ao qual foi dito
que o que já existe é noventa por cento de socialismo. Vale a pena en-
tão chegar ao socialismo?”O modo reformista de abordar a questão
neste ponto, como em todos os demais, prejudica não só a revolução,
senão também a reforma.
No artigo de 1915 já citado, dedicado à formula dos Estados Uni-
dos da Europa, escrevíamos:
Examinar as perspectivas da revolução social nos limites de uma nação
não seria ser vitima do mesmo espírito nacional limitado que constitui
o fundo do social patriotismo. Até o fim de seus dias Vaillant achava
que a França era a terra prometida da revolução social; precisamente
por isso queria defendê-la até o fim. Leusch e discípulos (um hipócritas,
outros sinceramente) estimavam que a derrota da Alemanha equivaleria,
em primeiro lutar, à destruição da base da revolução social... Em geral
não podemos esquecer que, ao lado do reformismo mais vulgar, existe
ainda nos social patriotas um messianismo revolucionário que canta as
proezas de seu Estado nacional porque considera que por sua situação
industrial, sua forma “democrática” ou suas conquistas revolucionarias,
está precisamente chamado a levar a humanidade ao socialismo ou à
“democracia”. Se pudesse conceber realmente a revolução triunfante
nos limites de uma nação melhor preparada, o programa de defesa
nacional ligado a esse messianismo teria uma justificativa histórica
relativa. Mas na realidade não há nenhuma. Lutar para conservar a
base nacional da revolução mediante métodos que minam as relações
internacionais do proletariado, é solapar a revolução.; esta só pode
começar no terreno nacional mas não pode acabar nesse plano, levando
em conta a interdependência econômica, política e militar dos Estados
europeus, que nunca se manifestou com tanta força como no curso da
guerra atual. Justamente esta interdependência, que condicionará direta e
imediatamente a coordenação dos atos do proletariado europeu no curso
da revolução se expressa na formula dos Estados Unidos da Europa (Leon
Trotski, Obras Completas, vol. III, págs. 90-91)
98
O problema fundamental contido na citação que acabamos de re-
produzir está indubitavelmente apresentado de maneira justa: pre-
parar-se para construir o socialismo em um só país é um procedi-
mento social patriota.
O patriotismo dos social democratas alemães começou por ser o
patriotismo muito legitimo que sentiam por seu partido, o mais po-
deroso da segunda Internacional. A social democracia alemã tinha a
intenção de construir “sua” sociedade socialista baseando-se na alta
técnica alemã e nas qualidades superiores da organização do povo
alemão. Se deixarmos de lado os burocratas empedernidos, os arri-
vistas, os negociantes parlamentares e os fraudadores políticos em
geral, o social patriotismo do social democrata de carteirinha deriva-
va precisamente da esperança de construir o socialismo alemão. Não
podemos pensar que as centenas de milhares de militantes que eram
os quadros social democratas (sem falar dos milhões de operários de
suas fileiras) tratassem de defender os Hohenzollern ou à burguesia.
Não, queriam proteger a indústria alemã, os caminhões e ferrovias
alemãs, a técnica e a cultura alemã como premissas “necessárias e
suficientes” do socialismo.
Na França também acontecia um processo do mesmo tipo. Gues-
de, Valliant e com eles milhares dos melhores militantes do partido,
centenas de milhares de simples operários, achavam que era justa-
mente a França, com suas tradições insurrecionais, seu proletariado
heroico, sua população flexível, altamente culta, a terra prometida do
socialismo. O velho Guesde, Valliant, o comunalista, e com eles mi-
lhares e centenas de milhares de honrados operários não defendiam
nem os banqueiros nem os especuladores. Achavam sinceramente
defender a base e a força criadora da sociedade socialista futura.
Adotavam integralmente a teoria do socialismo em um só país; sa-
crificavam “provisoriamente” –assim pensavam em beneficio desta
ideia – a solidariedade internacional.
Esta comparação com os social patriotas deverá responder, cer-
tamente, que com relação ao Estado dos soviets, o patriotismo é um
dever revolucionário, enquanto que em relação ao Estado burguês é
uma traição. Isto é verdade. Há algum revolucionário maior de idade
que pode discutir semelhante questão? Mas quanto mais se avança
mais serve uma tese indiscutível para disfarçar por meios escolásti-
cos um ponto de vista falso, e que, ademais se sabe que é.
O patriotismo revolucionário não pode ter mais que um caráter
de classe. Começa por ser o patriotismo do partido e do sindicato e
se eleva até converter-se no patriotismo do Estado, quando o prole-
99
tariado se apodera do poder. Aí onde o poder está nas mãos do pro-
letariado, o patriotismo é um dever revolucionário. Mas este patrio-
tismo deve ser parte integrante do internacionalismo revolucionário,
da Internacional Revolucionaria. O marxismo sempre ensinou aos
operários que inclusive a luta pelos salários e a limitação da jornada
de trabalho não pode ter êxito se não é uma luta internacional. E eis
que atualmente, de repente, encontramos que o ideal da sociedade
socialista pode se realizar com as forças de uma nação só. É um golpe
mortal dado na Internacional. A convicção inquebrantável de que o
objetivo fundamental da classe não pode ser alcançado, menos ainda
que os objetivos parciais, por meios nacionais ou no marco de uma
nação, constitui a medula do internacionalismo revolucionário. Se é
possível chegar ao objetivo final no interior das fronteiras nacionais,
pelo esforço do proletariado de uma nação, então se rompe a espinha
dorsal do internacionalismo. A teoria da possibilidade de realizar o
socialismo em um só país rompe a relação interior que existe entre o
patriotismo do proletariado vencedor e o derrotismo do proletaria-
do dos países burgueses. Até agora o proletariado dos países capi-
talistas avançados não faz outra coisa que caminhar rumo ao poder.
Como caminhará ele, que caminhos seguirá em sua marcha? Tudo
isto depende por completo, inteiramente, de como considere a cons-
trução da sociedade socialista, quer dizer, de que a considere como
um problema nacional ou internacional.
Em geral, se é possível realizar o socialismo em um só país esta
teoria pode ser admitida não só depois da conquista do poder, se-
não que também antes. Se o socialismo é realizável no marco na-
cional da URSS atrasada, será mais ainda na Alemanha avançada.
Amanhã os responsáveis do partido comunista alemão desenvol-
verão essa teoria. O projeto de programa lhes dá este direito. De-
pois de amanhã será a vez do partido francês. Isso será o começo
da decomposição da Internacional comunista, que seguirá a linha
do social patriotismo. O partido comunista de qualquer país capi-
talista, depois de ter se impregnado da ideia de que há no interior
de seus Estado todas as premissas “necessárias e suficientes” para
construir com suas próprias forças a “sociedade socialista inte-
gral” não se distinguirá, no fundo, em nada da social democracia
revolucionaria, que tampouco tinha começado com Noske, mas
que fracassou definitivamente ao tropeçar com esta questão em 4
de agosto de 1914.
Quando dizem que o simples fato da existência da URSS é uma ga-
rantia contra o social patriotismo, pois o patriotismo com a republica
100
operaria é um dever revolucionário, se expressa justamente o espíri-
to nacional limitado por esta utilização unilateral de uma ideia justa:
olham só a URSS e fecham os olhos ante o proletariado mundial. Não
podemos orientar este para o derrotismo do Estado burguês senão
abordando no programa o problema essencial do ponto de vista in-
ternacional, rechaçando sem piedade o contrabando social patriota
que ainda se esconde, tratando de fazer seu ninho no domínio teórico
do programa da Internacional Leninista.
Ainda não é tarde para voltarmos sobre nossos passos, para re-
tornar ao caminho de Marx e Lenin. Este retorno abrirá o único cami-
nho que se pode conceber para ir adiante. Para facilitar esta mudança
saudável apresentamos ao sexto congresso esta critica ao projeto de
programa.
101
Preparar o programa
para a Conferência de Fundação 41
20 de março de 1938
104
ráter de classe da União Soviética, a Guerra sino-japonesa, a questão
da Espanha, já foram discutidas por todas as seções. Estamos prepa-
rados para a conferência.
Eu prepararei, então: 1) reivindicações transitórias; 2) a questão
da democracia; 3) a guerra; 4) manifesto sobre a situação mundial,
bem separado, bem em forma de um panfleto fundamental...
105
Como lutar por um
partido operário nos Estados Unidos
CANNON: A pauta de hoje é o partido operário sob três aspectos:
1. Nossa posição geral de princípio.
2. O desenvolvimento da Labor’s Non Partisan League (LNPL –
Liga Operária Não-Partidária), ou seja, o movimento político do CIO
nos sindicatos que demonstra certa inclinação pela ação política in-
dependente, pela formação de um partido; em outras regiões, como
em Nova Iorque, essas tendências são menos observadas: candida-
tos operários em escala local, um apoio à Republican-Fusion (Fusão
Republicana) e um apoio a Roosevelt em escala nacional; em outros
lugares eles endossam todas as candidaturas capitalistas, principal-
mente mediante o Partido Democrata.
3. A questão é saber se nossos camaradas nos sindicatos que
controlamos deveriam unir-se à LNPL; que deveríamos fazer nos
sindicatos. onde contamos com uma pequena minoria; deveríamos
tornar-nos os paladinos da LNPL ou deveríamos permanecer de fora
numa atitude crítica? Não temos uma política definida. Em Nova Je-
rsey, por exemplo, fizemos uma tentativa – os sindicatos uniram-se
à LNPL e ali apoiaram uma moção pela formação de um partido. Em
outras regiões do País deveríamos agir dentro do partido operário
mais ou menos desenvolvido como em Mineápolis?
A princípio, parece que nós deveríamos condenar todo o movi-
mento e permanecer à margem, porém não seria uma política muito
frutífera. Em Mineápolis, existe uma organização independente com-
pletamente constituída, o Farmer Labor Party (FLP – Partido Operá-
rio Camponês). Ele apresenta seus próprios candidatos ao Estado e,
em escala nacional, apoia Roosevelt.
Os stalinistas que foram impelidos a deixar os sindicatos infil-
tram-se profundamente na Farmer Labor Association – o que cons-
titui uma arma contra nós nos sindicatos. Nossa política atual é fazer
um bloco dos sindicatos trotskistas com aquilo que denominamos
os “verdadeiros militantes do FLP”, ou seja, os reformistas que acre-
ditam no FLP e não querem que os stalinistas o controlem. Até que
ponto podemos conduzir tal bloco, até que ponto podemos lutar so-
mente pelo controle organizacional? Mas se permanecermos fora, os
stalinistas assumirão o controle. Por outro lado, se lutarmos energi-
camente, como fazemos nos sindicatos, tornar-nos-emos os paladi-
nos do FLP. Não é uma questão simples: é fácil as pessoas perderem-
se numa política reformista.
DUNNE: Primeiramente, diria que os stalinistas, controlando o
aparelho do FLP, controlam mais que o aparelho: eles tornam difícil
nossa tarefa dentro dos sindicatos. O fato de não participarmos desse
partido mediante nossas relações sindicais permite que os stalinistas
e os elementos mais reacionários do FLP utilizem uma arma contra
nós no movimento operário. Temos urna política definida no que
concerne a nosso trabalho nos sindicatos. Nossos camaradas, falan-
do em favor do FLP, fizeram isto de forma muito crítica, advertindo
os sindicatos de que eles só podem utilizá-lo até certo ponto. Conse-
guimos manter uma política clara diante dos reformistas, mas, como
o camarada Cannon disse, é difícil dizer até que ponto podemos ca-
minhar nessa direção; não podemos assumir a responsabilidade pelo
partido operário, mas os trabalhadores que acreditam que podemos
lutar aí por seus membros, tão eficazmente quanto o fazemos no sin-
dicato, nos imporiam tal responsabilidade. Até agora, nem mesmo as
campanhas dos stalinistas foram capazes de abalá-los. Os stalinistas,
com uma extensa seção de progressistas e intelectuais, estão trans-
formando cada vez mais o partido operário num bloco com candida-
tos democratas e liberais. No interior do FLP, os stalinistas tentam
manter o controle, estabelecendo uma disciplina formal, principal-
mente contra nós. Combatemos tudo isso, reivindicando a demo-
cracia dentro do partido, e nós conseguimos. Mas não conseguimos
impedir uma aliança estreita com o Partido Democrata. Ainda não
podemos pedir aos sindicatos que apoiem o SWP (Socialist Workers
Party) contra o FLP.
CANNON: Em St. Paul onde o FLP apoiou um candidato capitalista
para a prefeitura, apresentamos nosso próprio candidato.
TROTSKI: Vocês poderiam explicar-me como foi possível, com os
stalinistas controlando uma importante seção desse partido, aprovar
uma resolução contra os fascistas e comunistas?
DUNNE: Isso aconteceu numa região. Em certas seções temos
militantes do FLP que trabalham conosco: eles controlavam esse
distrito contra os stalinistas; temos ali alguns camaradas: tentamos
apresentar essa resolução de forma diferente, mas não estávamos no
108
comitê que elaborava as resoluções; tarde da noite conseguimos que
a resolução fosse adotada.
TROTSKI: A resolução pode também ser utilizada contra nós.
Como o partido é construído? Ele baseia-se não só nos sindicatos,
mas também em outras organizações, pelo fato de elas serem pro-
gressistas, intelectuais etc. Admitem qualquer indivíduo ou só cole-
tivamente?
DUNNE: O FLP baseia-se nas organizações econômicas dos traba-
lhadores: os sindicatos, as organizações cooperativas dos agriculto-
res etc.; baseia-se também nas unidades territoriais, nas associações
regionais etc. E permitida também a filiação de organizações cultu-
rais, organizações beneficentes e ainda associações de bairro. Os sta-
linistas e os intelectuais aderiram mediante essas associações; eles
têm mais controle que a organização dos transportadores de cami-
nhões que conta com 4 000 membros. Lutamos contra isso; reivindi-
camos que se dê aos sindicatos sua representação real; temos o apoio
dos sindicatos nesta questão.
TROTSKI: Vocês poderiam dizer-me, mais ou menos, quais são as di-
ferenças de opinião entre nossos camaradas dirigentes nessa questão?
CANNON: Existem diferenças de opinião não só na direção, mas
também na base. Os problemas apareceram principalmente nos sin-
dicatos. Foi proposta, nos sindicatos, uma adesão à LNPL. O senti-
mento, particularmente nos sindicatos do CIO, sobre esta questão é
esmagador. Creio que nossa política em Nova Jersey, que consiste em
dizer que, ao menos nestes sindicatos, não deveríamos opor-nos à
adesão à LNPL, deverá ser adotada. Existe também uma tendência
dentro do partido, segundo a qual deveríamos fazer pressão, dentro
da LNPL, pela formação de um partido operário. Arrisco-me a dizer
que os camaradas nos sindicatos estariam mais satisfeitos se tal de-
cisão fosse tomada. Mas eles ainda não encararam as dificuldades. O
dilema é que nos tornamos paladinos do FLP, implementando uma
política agressiva. Contamos até com um camarada no Comitê Exe-
cutivo de Estado do FLP em Nova Jersey. Os burocratas transferem a
data de formação do FLP. A política de Lewis e Hillman é a de deixar
isso de lado até 1940. Se nosso camarada levasse uma luta enérgi-
ca, se ele pudesse ser sincero, colocando-se à frente do FLP, poderia
organizar toda uma oposição aos burocratas. Mas a seguir o dilema
é que nos tornaríamos os propagandistas da criação do FLP, ao qual
nos opomos.
Em nosso plenum, haverá divergência de opinião; haverá uma
tendência a militar energicamente pela constituição de um partido
109
operário. Minha opinião é de que este é o sentimento predominante
no partido; unirem-se à LNPL e tornarem-se partidários agressivos
da construção de um partido operário contra a política de apoio aos
candidatos capitalistas; se pudéssemos realizá-lo sem comprome-
ter nossa posição de princípio, seria melhor no sentido de ganhar
influência. Não dizemos nada de prático aos trabalhadores que estão
prontos a dar um passo adiante. O PC não avança o partido operá-
rio; ele é um partido de Roosevelt. Os burocratas em seus sindicatos
bloqueiam também o movimento vigoroso por um partido operário
entre os trabalhadores.
SHACHTMAN: Não diria que o sentimento a favor de um partido
operário é hoje tão forte entre os trabalhadores. Uma boa parte do
sentimento em favor de um partido operário que poderia ter surgido
foi canalizada para Roosevelt. Tivemos uma crise formidável e, até o
momento o único resultado é uma forma híbrida de um partido ope-
rário em Nova Iorque. Em todo caso, se compararmos 1930 a 1924,
pode-se dizer que dificilmente existe um movimento a favor do par-
tido operário hoje; naquela data, existia mais sentimento real no in-
terior dos sindicatos. Creio que, se não tivermos uma ideia clara das
perspectivas para um partido operário, cometeremos grandes erros
políticos. Penso que houve uma grande mudança; uma debandada
dos velhos partidos. O maior partido político, o Partido Democrata,
que conta com o apoio de 90% dos trabalhadores e agricultores, so-
fre um processo de cisão quase diante de nossos olhos. No Congres-
so, a luta não se situa entre os Republicanos e os Democratas, mas
entre uma sessão dos Democratas e outra. Existe uma boa razão para
acreditar que, nas eleições de 1940, teremos um novo arranjo políti-
co com os republicanos da velha linha, unidos com os democratas do
Sul; e os outros, os democratas “New Deal”, partidários de Roosevelt
mais o CIO (Lewis); isso será suficientemente poderoso para arrastar
a massa da AFL. E precisamente essa perspectiva que impede Lewis
e Hillman de se tornarem os campeões do partido operário; eles es-
peram uma cisão do Partido Democrata no interior da qual serão
capazes de ter um papel importante. E por isso que não penso que
haverá um progresso real, sério, substancial no movimento da LNPL
em direção a um partido operário independente.
É verdade que nossa posição é bastante difícil, mas tivemos bas-
tante experiência com movimentos a favor do partido operário (uma
generalização pode ser ajudada por uma referência à nossa situação
em Mineápolis), e não creio que nosso crescimento seja em virtude
da nossa participação no movimento do FLP, mas de nossas ativi-
110
dades dentro dos sindicatos. Entretanto, à medida que crescemos,
devemos necessariamente participar da política do FLP, e não posso
afirmar que estou plenamente satisfeito com a situação ali existen-
te. Não posso dizer que tenhamos proposto outra linha de conduta.
De fato, em Mineápolis. estamos num bloco com os chamados re-
formistas honestos, que são perversos por conta própria, que estão
num bloco com os Democratas. Esse bloco é dirigido quase exclusi-
vamente contra os stalinistas e contra um controle mecânico que os
stalinistas têm sobre o FLP. Na ação não podemos distinguir-nos dos
chamados reformistas honestos. Distinguimos dos stalinistas, mas
somente à medida que estamos num bloco com reais reformistas
que votam pelo FLP a nível dos estados e pelos democratas a nível
nacional.
Se seguirmos tal política que consiste em se opor às candidaturas
capitalistas em favor dos candidatos do FLP,. isto de maneira séria,
sistemática e eficaz, não vejo como poderemos evitar de nos tornar-
mos os campeões do partido operário, de tomar a iniciativa e, lá onde
não existir um partido operário, formar um. A menos que todos os
sinais se revelem falsos, esses partidos operários serão um acessório
prático para Roosevelt, como era o caso do New York American La-
bor Party (Partido Operário Americano de Nova Iorque) que apoiava
Roosevelt em escala nacional e, em escala local, a Fusão Republicana.
Uma vez iniciado isso, não vejo claramente como evitaremos as con-
sequências de uma política que foi seguida em 1924 quando está-
vamos no PC, com a complicação suplementar de que os stalinistas
estão nos sindicatos; e, ao mesmo tempo em que é verdade que eles
são um partido de Roosevelt, preconizam ainda, no interior dos sin-
dicatos, a formação de um partido operário.
CANNON: Não muito. Diria que os stalinistas, no primeiro período
da frente popular, tinham o slogan “organizemos o Partido Operá-
rio como a Frente Popular Americana”, mas agora é apenas uma ação
formal. Neste ponto são até mesmo favoráveis a uma cisão prematura
do Partido Democrata. Não é verdade que o sentimento a favor de
um partido operário é menor agora que em 1924. Naquele tempo,
não havia base nos sindicatos; era principalmente um movimento de
agricultores. Atualmente, o movimento está dominado pelos sindi-
catos do CIO. Não são os velhos políticos de Gompers. Os sindicatos
estão arregimentados politicamente; o sentimento dos membros da
base a favor de seu próprio partido é muito forte. A LNPL não en-
contra eco no sentimento dos trabalhadores. A política de Lewis e
dos burocratas é tateante; se os trabalhadores reivindicarem mais,
111
eles farão concessões a esse sentimento. É um passo maior do que a
política de Gompers.
(Nota do estenógrafo: Outros argumentos a respeito da força re-
lativa do sentimento a favor do partido operário em 1922-24 são
trocados agora entre os camaradas Cannon e Dunne de um lado e
Shachtman do outro.)
TROTSKI: Esta questão é muito importante e complicada. Quando
a Liga considerou a questão pela primeira vez, ha sete ou oito anos.
para saber se deveríamos ou não favorecer um partido operário, se
deveríamos desenvolver alguma iniciativa quanto a essa questão,
o sentimento predominante era, então, o de não o fazer, o que era
totalmente correto. A perspectiva de um desenvolvimento não esta-
va clara. Acreditava que a maioria entre nós esperava que o desen-
volvimento de nossa organização fosse mais rápido. Por outro lado.
creio que nenhum de nós previa, naquela época. o aparecimento do
CIO com tal rapidez e poder. Em nossa perspectiva, superestimamos
a possibilidade de desenvolvimento de nosso partido às custas dos
stalinistas, de um lado, e, de outro, não víamos esse poderoso movi-
mento sindical e o rápido declínio do capitalismo americano. Aí es-
tão dois fatos que devemos ter em conta. Não posso falar a partir da
minha própria observação, mas teoricamente. O período de 1924 só
conheço mediante a experiência de nosso amigo comum Pepper. Ele
veio a mim e disse que o proletariado americano não é uma classe
revolucionária, que a classe revolucionária é constituída pelos cam-
poneses e que deveríamos voltar-nos para eles, e não para os tra-
balhadores. Era a concepção daquele tempo. Era um movimento de
camponeses: camponeses que, a cada crise, pela sua natureza social,
se inclinavam a procurar panaceias: o populismo, o FLP. Atualmen-
te, temos um movimento de extrema importância - o CIO; cerca de
3 000 000 de trabalhadores, ou mais, estão organizados numa nova
organização mais combativa. Esta, que começou com greves, grandes
greves, e também implicou parcialmente a AFL nessas greves por au-
mentos de salários, essa organização, nos primeiros tempos de sua
atividade, entrou na maior crise dos Estados Unidos. A perspectiva
para as greves econômicas no próximo período inexiste, dada a situ-
ação de desemprego crescente etc. Podemos prever a possibilidade
de ela colocar todo seu peso na balança política.
Toda a situação objetiva impôs isso tanto aos trabalhadores, como
aos dirigentes _ aos dirigentes num duplo sentido. Por um lado, eles
exploraram essa tendência em benefício de sua própria autorida-
de, por outro, tentaram rompê-la e impedir que fosse mais longe
112
que seus dirigentes. A LNPL tem essa dupla função. Creio que nossa
política não tem necessidade de ser revisada teoricamente. mas de
ser concretizada. Em que sentido? Somos a favor da criação de um
partido operário reformista? Não. Somos a favor de uma política que
possa dar aos sindicatos a possibilidade de colocarem seu peso na
balança de forças? Sim.
Dependendo do desenvolvimento, isto pode tornar-se um partido
reformista. É aí que entra a questão do programa. Mencionei ontem
e sublinho hoje _ devemos ter um programa de reivindicações transi-
tórias, em que a mais completa é por um governo de trabalhadores e
camponeses. Somos a favor de um partido, um partido independente,
das massas trabalhadoras que assumirá o poder do Estado. Devemos
concretizar tal proposta: somos pela criação de comitês de fábrica,
pelo controle operário da indústria mediante comitês de fábrica. To-
das essas questões flutuam no ar atualmente. Fala-se de tecnocracia
e avança-se o slogan “produção para utilização”. Opomo-nos a esta
fórmula de charlatães e avançamos a palavra de ordem de controle
dos trabalhadores sobre a produção mediante comitês de fábrica.
Lundberg escreveu o livro America’s Sixty Families (As sessenta fa-
mílias da América). O Analista afirma que seus números são falhos.
Afirmamos que os comitês de fábrica deveriam ver o livro. Esse pro-
grama deve ser desenvolvido paralelamente à ideia de um partido
operário nos sindicatos e de milícias operárias. De outra forma, seria
uma abstração e uma abstração é uma arma nas mãos da classe ad-
versária. A crítica aos camaradas de Mineápolis é que eles não con-
cretizaram um programa. Nessa luta devemos sublinhar que somos a
favor do bloco dos trabalhadores e agricultores, mas não de agricul-
tores como Roosevelt. (Não sei se vocês repararam que em seu bole-
tim de voto está marcado que sua profissão é agricultor.) Somos a fa-
vor de um bloco somente com os agricultores explorados, não com os
agricultores que exploram: os agricultores explorados e os trabalha-
dores agrícolas. Podemos tornar-nos os campeões deste movimento,
mas sobre a base de um programa completo de reivindicações. Em
Mineápolis, a primeira tarefa deveria ter sido demonstrar estatisti-
camente que 10.000 trabalhadores não têm mais votos que 10 in-
telectuais, ou 50 pessoas organizadas pelos stalinistas. Em seguida,
devemos introduzir cinco ou seis reivindicações bastante concretas,
adaptadas ao espírito dos trabalhadores e agricultores, incutidas no
cérebro de cada camarada: comitês de fábrica dos trabalhadores e, a
seguir, um governo dos trabalhadores e agricultores. Eis o verdadeiro
sentido do movimento.
113
CANNON: Proporíamos agora que os sindicatos se juntem à LNPL?
TROTSKI: Creio que sim. Naturalmente, devemos dar nosso pri-
meiro passo de forma que acumule experiência para o trabalho prá-
tico, sem se comprometer com fórmulas abstratas. mas desenvolver
um programa concreto de ação e de reivindicações no sentido de
que esse programa de transição advenha de condições da sociedade
capitalista atual e conduza imediatamente para além dos limites do
capitalismo. Não é o programa mínimo reformista, que jamais incluiu
as milícias operárias, o controle operário da produção. Essas reivin-
dicações são transitórias, pois conduzem da sociedade capitalista à
revolução proletária, são uma consequência à medida que se tornam
tanto reivindicações das massas quanto do governo proletário. Não
podemos restringir-nos às reivindicações cotidianas do proletariado.
Devemos dar aos trabalhadores mais atrasados uma palavra de or-
dem concreta que corresponda às suas necessidades e que conduza
dialeticamente à conquista do poder.
SHACHTMAN: Como motivaria você a palavra de ordem “milícias
operárias”?
TROTSKI: Pelo movimento fascista na Europa, toda a situação
demonstra que os blocos de membros liberais, radicais e da buro-
cracia operária nada representam em comparação com as gangues
fascistas militarizadas; somente os trabalhadores que tenham uma
experiência militar podem enfrentar o perigo fascista. Creio que,
na América, têm-se suficientes pistoleiros para que se possa re-
lacionar a palavra de ordem com a experiência local; por exem-
plo, mostrando a atitude da polícia, o estado das coisas em Jersey.
Nessa situação, diz-se imediatamente que essa prefeitura gangster
e esses policiais gangsters deveriam ser expulsos pelas milícias
operárias. “Desejamos aqui a organização do CIO, mas, violando
a constituição, tiram-nos o direito de organização. Se o poder fe-
deral não pode controlar o prefeito, então nós, os trabalhadores,
devemos, a fim de nos proteger, organizar milícias operarias e lu-
tar por nossos direitos”. Ou, nos conflitos entre a AFL e o CIO, po-
demos lançar a palavra de ordem de milícias operárias como uma
necessidade de proteger nossas assembleias de trabalhadores.
Particularmente em oposição a ideia stalinista de frente popular,
devemos sublinhar dessa frente: o destino da Espanha e a situação
na França. A seguir pode-se chamar a atenção sobre o movimento
na Alemanha. Devemos dizer: Vocês, trabalhadores desta cidade,
serão as primeiras vítimas dessa gangue fascista. Vocês devem or-
ganizar-se, devem estar preparados.
114
CANNON: Como você chamaria tais grupos?
TROTSKI: Podemos dar-lhes um modesto nome: milícias operárias.
CANNON: Comitês de defesa.
TROTSKI: Sim, isso deve ser discutido com os traba1h adores.
CANNON: O nome é muito importante: Comitês de defesa dos
trabalhadores pode ser popularizado. Milícias operárias soa muito
estranho.
SHACHTMAN: Não existe ainda nos Estados Unidos o perigo do
fascismo que estimularia o sentimento para a organização de tais or-
ganismos. A organização de milícias operárias pressupõe a prepara-
ção para a tomada de poder. Isso ainda não está na ordem do dia dos
Estados Unidos.
TROTSKI: Naturalmente, só podemos conquistar o poder no mo-
mento em que tivermos a maioria da classe operária, mas, mesmo
nesse caso, as milícias operárias seriam uma pequena minoria. Mes-
mo na Revolução de Outubro, as milícias eram uma pequena minoria.
Mas a questão é como conseguir essa pequena minoria que deve ser
organizada e armada com a simpatia das massas. Como podemos fa-
zê-lo? Preparando a consciência das massas por meio da propagan-
da. A crise, o aguçamento das relações de classes, a criação de um
partido operário e um partido dos trabalhadores significam um ime-
diato aguçamento das forças. A reação imediata será um movimento
fascista. Eis a razão pela qual devemos relacionar a ideia de um par-
tido operário com as consequências; de outra forma, apareceremos
como pacifistas com ilusões democráticas. A seguir, temos também a
possibilidade de propagar as palavras de ordem de nosso programa
de transição e ver as reações das massas. Veremos que as palavras
de ordem deverão ser selecionadas, algumas abandonadas, mas se
abandonarmos nossas palavras de ordem antes da experiência, antes
de ver a reação das massas, jamais avançaremos.
DUNNE: Queria fazer uma pergunta quanto à palavra de ordem do
acesso dos trabalhadores aos segredos da industria. Parece-me que
isso deve ser bem pensado e cuidadosamente aplicado, ou poderão
levar a dificuldades das quais já temos experiência. De fato, uma das
formas de os empregadores reduzirem a combatividade dos traba-
lhadores consiste (tivemos um caso assim) em mostrar os livros de
contabilidade e provar que estão sofrendo prejuízos. Se é honesto ou
não, não vem ao caso. Lutamos contra isso, dizendo que cabe a eles a
organização de seus negócios, reivindicamos condições de trabalho
decentes. Eu me pergunto, então, qual seria o efeito da nossa palavra
de ordem de acesso dos trabalhadores aos segredos industriais.
115
TROTSKI: Sim, os capitalistas abrem seus livros em dois casos:
quando a situação da fábrica é realmente ruim, ou quando podem
iludir os trabalhadores. Mas a questão deve ser colocada a partir de
um ponto de vista mais geral. Em primeiro lugar, temos milhões de
desempregados, e o governo afirma que não pode pagar mais e os
capitalistas dizem não poder dar mais contribuições; queremos ter
acesso à contabilidade desta sociedade. O controle dos rendimentos
deveria ser organizado por meio dos comitês de fábrica. Os trabalha-
dores dirão: Queremos nossos próprios estatísticos dedicados à clas-
se operária. Se se confirma que um setor da indústria está realmente
arruinado, então, responderemos: Propomos sua expropriação. Nós
administraremos melhor que vocês. Por que vocês não têm lucro?
Em virtude da condição caótica da sociedade capitalista. Dizemos:
Os segredos comerciais são uma conspiração dos exploradores con-
tra os explorados, dos produtores contra as massas trabalhadoras.
Na era livre, na era da competição, eles afirmavam ter necessidade
do segredo para sua proteção. Mas agora, não existem mais segre-
dos entre eles, mas somente para a sociedade. Esta reivindicação
transitória é também um passo para o controle dos trabalhadores
sobre a produção, enquanto plano preparatório para a direção da in-
dústria. Todas as coisas devem ser controladas pelos trabalhadores,
que serão os senhores da sociedade de amanhã. Mas apelar para a
conquista do poder parece ilegal, fantástico, para os trabalhadores
americanos. Mas se dissermos: Os capitalistas recusam-se a pagar os
desempregados e escondem seus reais lucros do Estado e dos tra-
balhadores mediante uma contabilidade desonesta, os trabalhado-
res compreenderão esta fórmula. Se dissermos aos agricultores: O
banco aproveita-se de vocês. Ele realiza grandes lucros. Propomos
a criação de comitês de agricultores para examinar a contabilidade
dos bancos, todo agricultor entenderá isso. Diremos: o agricultor só
pode confiar em si mesmo; deixemo-los criar comitês para controlar
os créditos agrícolas – eles o entenderão. Isso pressupõe um senti-
mento de militância entre os agricultores; isso não pode ser executa-
do todo dia. Mas introduzir esta ideia entre as massas e entre nossos
próprios camaradas é, agora, absolutamente necessário.
SHACHTMAN: Tanto a palavra de ordem “controle operário sobre
a produção” quanto a de “milícias operárias” são, sob meu ponto de
vista, incorretas; a palavra de ordem pelo exame da contabilidade da
classe capitalista é mais apropriada para o atual período e pode ser
popularizada. No que concerne às duas outras palavras de ordem, é
verdade que são transitórias, mas para uma etapa posterior próxima
116
à preparação para a tomada do poder. A transição implica um cami-
nho longo ou curto. Cada estágio do caminho requer suas próprias
palavras de ordem. Hoje, poderíamos utilizar essa do exame da con-
tabilidade da classe capitalista, amanhã, a do controle dos trabalha-
dores sobre a produção e das milícias operárias.
TROTSKI: Em face da atual situação mundial, que é extremamente
crítica, como poderíamos medir o nível de desenvolvimento do movi-
mento operário nos Estados Unidos? Você diz que é o começo e não
o fim. Qual é a distância? Como pode estimá-la aproximadamente?
Nos velhos tempos, os sociais-democratas diriam: agora só temos
10 000 trabalhadores, mais tarde teremos 100 000, a seguir um mi-
lhão, e depois tomaremos o poder. O desenvolvimento mundial era
para eles apenas um acúmulo de quantidades: 10.000, 100 000 etc.
Agora a situação é absolutamente diferente. Estamos num período
de decadência do capitalismo, de crises que se tornam cada vez mais
agudas e terríveis, da proximidade da guerra. Durante uma guerra,
os trabalhadores aprendem muito depressa. Se dissermos: Vejamos
o que acontece, e a seguir fizermos propaganda, então não seremos
a vanguarda, mas a retaguarda. Se me perguntam: É possível que, em
dez anos os trabalhadores americanos tomem o poder? Direi sim, é
absolutamente possível. A explosão do CIO demonstra que as bases
da sociedade capitalista estão minadas. As milícias operárias e o con-
trole operário sobre a produção são dois lados de uma mesma ques-
tão. O trabalhador não é um cotador. Quando ele pede para ver os
livros de contabilidade, quer mudar a situação mediante o controle e,
a seguir, mediante a direção. Naturalmente, as palavras de ordem que
lançamos dependem da reação que encontramos entre as massas.
Quando vemos a reação das massas, sabemos (saberemos) qual as-
pecto da questão deve ser enfatizado. Diremos que Roosevelt ajudará
os desempregados com a indústria bélica; mas se nós, os trabalha-
dores, controlássemos a produção, encontraríamos outra indústria,
não uma indústria para a morte, mas para a vida. Essa questão pode
tornar-se compreensível até para um trabalhador médio que jamais
participou do movimento político. Nós subestimamos o movimento
revolucionário entre as massas trabalhadoras. Somos uma pequena
organização de propaganda e, em tais situações, somos mais céticos
que as massas, que se desenvolvem rapidamente. No início de 1917,
Lenin dizia que o partido era dez vezes mais revolucionário que seu
comitê central e as massas eram cem vezes mais revolucionárias que
as fileiras do partido. Não existe atualmente uma situação revolucio-
nária nos Estados Unidos. Mas os camaradas que têm ideias muito
117
revolucionárias durante os períodos tranquilos podem tornar-se um
real entrave para o movimento nas situações revolucionárias, e isso
acontece frequentemente. Um partido revolucionário espera tanto
tempo pela revolução que ele se habitua a adiá-la.
CANNON: Vemos esse fenômeno nas greves: elas varrem o país e
tomam o partido revolucionário de surpresa. Propomos esse progra-
ma de transição nos sindicatos?
TROTSKI: Sim, faremos a propaganda com este programa nos
sindicatos; nós o propomos como programa de base para o partido
operário. Para nós ele é um programa transitório; mas para eles é
o programa. Neste momento, é uma questão de controle dos traba-
lhadores sobre a produção, mas só se pode realizar esse programa
por meio de um governo dos trabalhadores e agricultores. Devemos
popularizar essa palavra de ordem.
CANNON:Isso deve ser lançado enquanto programa de transição
ou é um pseudônimo da ditadura do proletariado?
TROTSKI: Em nosso entender, isso conduz à ditadura do proleta-
riado. Dizemos aos trabalhadores e agricultores: Vocês querem Lewis
como presidente? Bom, depende de seu programa. Lewis mais Gre-
en mais La Follette como representantes dos agricultores? Depende
também do programa. Tentamos concretizar o programa, torná-lo
mais preciso à medida que o governo dos trabalhadores e agriculto-
res significa um governo do proletariado que dirige os agricultores.
SHACHTMAN: Como você concilia isto com a declaração anterior
de que não podemos promover a organização de um partido operário
reformista? Gostaria de tornar claro em seu espírito o que faz concre-
tamente nosso camarada quando seu sindicato é filiado à LNPL e ele
é enviado, enquanto delegado, ao partido operário. Aí então se coloca
a questão do que fazer nas eleições e propõe-se: “Apoiem La Guardia”.
Concretamente, como a questão se coloca para nossos camaradas?
TROTSKI: Eis-nos numa reunião sindical para discutir a filiação
à LNPL. Eu diria no sindicato: Primeiramente, a unificação dos sin-
dicatos no plano político é um passo progressista. Existe o perigo de
que isso caia nas mãos de nossos inimigos. Proponho, então, duas
medidas: (1) Que só tenhamos trabalhadores e agricultores como
representantes; que não dependamos dos chamados amigos par-
lamentares; (2) Que nossos representantes sigam nosso programa,
esse programa. Elaboraremos a seguir planos concretos quanto ao
desemprego, ao orçamento militar etc. Então afirmo que se me pro-
põem como candidato é porque conhecem meu programa. Se me
enviarem como representante, lutarei por esse programa na LNPL,
118
no partido operário. Quando a LNPL toma a decisão de votar a favor
de La Guardia, tanto no caso em que me demita protestando, como
naquele em que proteste e continue lá: “Não posso votar em La Guar-
dia. Tenho meu mandato.” Obteremos grandes e novas possibilidades
para a propaganda.
A dissolução de nossa organização está fora de questão. Deixamos
absolutamente claro que temos nossa organização, nossa imprensa
etc. É uma questão de correlação de forças. O camarada Dunne diz
que ainda não podemos lançar nos sindicatos um apoio ao SWP. Por
quê? Porque somos muito fracos, Mas não podemos dizer aos traba-
lhadores: Esperem até que sejamos mais conhecidos, mais podero-
sos. Devemos intervir no movimento tal corno ele se apresenta.
SHACHTMAN: Se não houvesse movimento por um partido ope-
rário, e se fôssemos contra a criação de tal partido, como isso afetaria
o programa? Este seria ainda nosso programa de transição? Eu não
compreendo quando você diz que não podemos promover um par-
tido reformista, mas que promovemos e nos tornamos os paladinos
dos movimentos a favor de um partido operário, com o objetivo de
impor politicamente a vontade dos trabalhadores.
TROTSKI: Seria absurdo dizer que preconizamos um partido re-
formista. Podemos dizer aos dirigentes da LNPL: “Vocês fazem desse
movimento um acessório puramente oportunista dos democratas.”
É uma questão de abordagem pedagógica. Como podemos dizer que
preconizamos a criação de um partido reformista? Dizemos que não
podemos impor nossa vontade por meio de um partido reformista,
mas somente por meio de um partido revolucionário. Os stalinistas
e os liberais desejam fazer desse movimento um partido reformista,
mas temos o nosso programa, nós fazemos um partido revolucioná-
rio...
CANNON: Como você pode explicar um partido operário revolu-
cionário? Dizemos: O SWP é o único partido revolucionário, é o único
que tem um programa revolucionário. Como então explicar aos tra-
balhadores que o partido operário é também um partido revolucio-
nário?
TROTSKI: Não direi que o partido operário é um partido revolu-
cionário, mas que faremos todo o possível para que isso aconteça. A
cada reunião diria: Sou um representante do SWP. Considero o SWP
como sendo o único partido revolucionário. Mas não sou sectário. Vo-
cês tentam atualmente criar um grande partido dos trabalhadores.
Ajudá-los-ei, mas proponho que seja considerada a necessidade de
um programa para esse partido. Faço esta e aquela proposta. Começo
119
por aí. Nessas condições isto será um grande passo adiante. Por que
não dizem abertamente a verdade? Sem disfarce. sem diplomacia?
CANNON: Até :agora a questão foi sempre colocada abstratamen-
te. A questão do programa nunca foi esboçado omo você acabou de
fazer. Os lovestonistas sempre foram a favor de um partido operário,
mas eles não têm um programa: são conchavos a nível dos dirigentes.
Parece-me que se temos um programa e nos referimos sempre a esse
programa...
TROTSKI: Primeiramente, existe o programa e, a seguir. os estatu-
tos que asseguram a dominação dos sindicatos contra os liberais, os
pequeno-burgueses individuais etc. De outra forma, pode tornar-se
este um partido operário por sua composição social e um partido ca-
pitalista por sua política.
CANNON: Parece que, em Mineápolis, se ventila muito uma luta
organizacional, uma luta pelo controle da organização entre os stali-
nistas e nós. Devemos desenvolver, em Mineápolis, uma luta progra-
mática contra os stalinistas no FLP, como utilizamos anteriormente o
voto relativo no Ludlow Amendment (Emenda Ludlow).
SHACHTMAN: Agora com a eminência da guerra, o partido operá-
rio pode tornar-se uma armadilha. E continuo não entendendo como
o partido operário pode ser diferente de um partido reformista pura-
mente parlamentar.
TROTSKI: Você coloca a questão muito abstratamente; natural-
mente, ele pode cristalizar-se num partido reformista, que nos ex-
cluirá. Mas devemos fazer parte do movimento. Devemos dizer aos
stalinistas, aos lovestonistas etc.: “Somos a favor de um partido re-
volucionário. Vocês fazem tudo para torná-lo um partido reformista.”
Mas apresentaremos sempre nosso programa. E propomos nosso
programa de reivindicações transitórias. Assim como na questão da
guerra e da Emenda Ludlow que discutiremos amanhã, quando de-
monstrarei mais uma vez a utilidade de nosso programa de transição
nessa situação.
120
Um resumo das
reivindicações transitórias 44
23 de março de 1938
122
crescimento do partido revolucionário – não são um fator fundamen-
tal. Depende da situação objetiva; em última instância, o próprio ele-
mento subjetivo depende das condições objetivas, mas esta depen-
dência não é um processo simples.
Durante o último ano observamos na França um fenômeno
muito importante e instrutivo para os camaradas dos EUA. Pode-
mos dizer que a situação era quase tão madura como nos EUA. O
movimento operário havia adquirido um ímpeto enorme. Os sin-
dicatos passaram de menos de um milhão para cinco milhões em
questão de meses. As greves de braços cruzados na França eram
muito mais potentes que nos EUA. Os operários estavam dispostos
a fazer qualquer coisa, a chegar ao limite. Por outro lado, vimos o
aparato da Frente Popular; pela primeira vez podíamos demonstrar
a importância histórica da traição da Comintern. Como a Comintern
passara a ser um aparato para a manutenção social do capitalis-
mo, a desproporção entre os fatores objetivos e subjetivos ganhou
uma agudeza terrível, e a Frente Popular converteu-se no maior
obstáculo para canalizar esta grande corrente revolucionária das
massas. E tiveram êxito até certo ponto. Não podemos prever o que
acontecerá amanhã, mas na França conseguiram deter o movimen-
to de massas, e agora vemos os resultados: o giro à direita – Blum
converte-se num dirigente que forma governos nacionais, a união
sagrada para a guerra -, mas é um fenômeno secundário. O mais
importante é que temos em todo o mundo, como nos EUA, esta des-
proporção entre o fator objetivo e o subjetivo, mas nunca foi tão
aguda como agora.
Nos EUA temos um movimento de massas para superar esta des-
proporção; o movimento de Green a Lewis; de Walter a La Guardia.
Este é um movimento para superar a contradição fundamental. O PC
joga nos EUA o mesmo papel que na França, mas a una escala mais
modesta. O rooseveltismo substitui o frente-populismo da França.
Nestas condições, nosso partido deve ajudar os operários a superar
esta contradição.
Quais são as tarefas? As tarefas estratégicas consistem em ajudar
as massas, em adaptar sua consciência política e psicológica à situa-
ção objetiva, em superar as tradições nocivas dos operários america-
nos e adaptá-la [sua consciência] à situação objetiva da crise social
de todo o sistema. Nesta situação – levando em conta a pouca expe-
riência e a criação da CIO, as greves de braços cruzados etc. – temos
todo o direito de ser mais otimistas, mais intrépidos, mais agressi-
vos em nossa estratégia e nossa tática – não aventureiros -, mas para
123
levantar bandeiras que não estão no vocabulário da classe operária
americana.
Qual é o sentido do Programa de transição? Podemos chamá-lo
um programa de ação, mas para nós, para nossa concepção estraté-
gica, é um programa de transição: é uma ajuda para que as massas
possam superar as ideias, métodos e formas herdadas e para adap-
tar-se às exigências da situação objetiva. Esse programa de transição
deve incluir as reivindicações mais simples. Não podemos prever e
propor as reivindicações locais e sindicais adaptadas à situação local
de uma fábrica, nem o desdobramento dessa reivindicação até a ban-
deira de criação de um soviete operário. Ambos são pontos extremos
do desenvolvimento de nosso programa de transição para encontrar
os passos que conduzam as massas à ideia da conquista revolucioná-
ria do poder. Por isso, algumas reivindicações parecem muito opor-
tunistas, porque estão adaptadas à consciência atual dos operários.
Por isso, outras reivindicações parecem demasiado revolucionárias,
porque refletem mais a situação objetiva do que a consciência atual
dos operários. Nosso dever é reduzir ao máximo possível essa brecha
entre os fatores objetivos e subjetivos. Por isso, não podemos subes-
timar a importância do Programa de transição.
Vocês podem argumentar que não podemos prever a medida e
o ritmo das coisas e que possivelmente a burguesia encontrará um
recesso político – não está excluído – , mas então seremos obrigados
a fazer una retirada estratégica. No entanto, na situação atual, deve-
mos estar preparados para uma ofensiva estratégica, não para uma
retirada. Essa ofensiva estratégica deve estar guiada pela ideia da
criação de sovietes operários, para a criação de um governo operário
e camponês. Não proponho que se lance imediatamente a bandeira
dos sovietes – por muitas razões, e especialmente porque a palavra
não tem para os operários americanos a importância que teve para
os operários russos – para prosseguir daí em direção à ditadura do
proletariado. É muito provável que, da mesma forma que vimos nos
EUA as greves de braços cruzados, vejamos também uma forma nova,
algo equivalente aos sovietes. Provavelmente não tenha esse nome.
A certa altura, os sovietes podem ser substituídos pelos comitês de
fábrica, depois passar da escala local para a escala nacional. Não po-
demos adivinhar, mas nossa orientação estratégica para o próximo
período vai em direção aos sovietes. Todo o programa de transição
deve preencher os vazios que existam entre as condições do presente
e os sovietes do futuro” (…).
124
O atraso político
dos trabalhadores norte-americanos
19 de maio de 1938
126
de gordura, foram essas reservas do passado que permitiram a expe-
riência Roosevelt, mas elas esgotam-se... A situação geral é a mesma
em todo o lado, o perigo é o mesmo.
É verdade que a classe operária americana tem uma mentalidade
pequeno-burguesa, que conhece mal a solidariedade revolucionária,
que está habituada a um nível de vida elevado, mas a mentalidade da
classe operária americana não corresponde às realidades dos nossos
dias; reflete as recordações de um tempo que já passou.
Hoje, a situação é radicalmente diferente. Que pode fazer um par-
tido revolucionário face a essa situação? Em primeiro lugar, com-
pete-lhe dar uma imagem exata da situação e das tarefas históricas
que dela decorrem, quer os trabalhadores estejam ou não prontos
a assumir essas tarefas. As nossas tarefas não dependem do estado
de espírito dos trabalhadores, consistem antes em desenvolver a sua
consciência É isso que o programa deve formular e apresentar aos
trabalhadores avançados.
Alguns dirão: “De acordo, esse programa é um programa cientí-
fico, corresponde à situação real, mas os trabalhadores não o fazem
seu, permanecerá estéril”. É possível. Mas isso significaria apenas
que os trabalhadores seriam esmagados antes que a crise tivesse
podido ser resolvida no sentido da Revolução Socialista. Se o ope-
rário americano não faz, a tempo, deste o seu programa, será obri-
gado a aceitar o programa do fascismo. Quando nos apresentamos
perante a classe operária com o nosso programa, não podemos dar
nenhuma garantia quanto à sua rejeição ou à sua aceitação por essa
mesma classe operária. Não podemos tomar essa responsabilidade
... só podemos tomar a responsabilidade no que diz respeito a nós
próprios.
Devemos dizer a verdade aos trabalhadores, é assim que ganha-
remos os melhores elementos. Não sei se esses elementos avançados
serão capazes de conduzir a classe operária ao poder; espero que o
venham a ser, mas ninguém poderá garantí-lo.
Mas mesmo no pior dos casos, se a classe operária não mobilizar
todas as suas forças, todos os seus recursos para a Revolução Socia-
lista, se cair debaixo da bota fascista, os operários mais avançados
poderão testemunhar: “Aquele partido tinha-nos prevenido: era o
melhor”. Será a marca de uma grande tradição que continuará pre-
sente na classe operária.
É evidentemente a pior das hipóteses. Mas isso demonstra que
todos os argumentos segundo os quais não podíamos apresentar um
tal programa, por não corresponder à mentalidade das massas, são
127
falsos argumentos que só revelam o medo dos seus partidários pe-
rante a situação atual.
Claro que se fechasse os olhos, eu poderia reduzir um belo pro-
grama cor-de-rosa que toda a gente aceitaria. Mas esse programa
não corresponderia à situação, e o que é próprio de um programa é
corresponder em primeiro lugar à situação objetiva. Creio que este
argumento elementar é um elemento definitivo.
A consciência de classe dos trabalhadores está em atraso em rela-
ção aos acontecimentos, mas a consciência de classe não é uma coisa
feita dos mesmos materiais que as fabrica, as minas e os caminhos
de ferro, mas de um material bem mais maleável; pode modificar-se
rapidamente sob os golpes da crise, sob o peso de milhões de desem-
pregados.
Hoje o proletariado americano tira algumas vantagens do seu atra-
so político. Pode parecer paradoxal, mas é assim. Os trabalhadores
europeus, por seu lado, conheceram uma longa tradição social-de-
mocrata, conheceram, conheceram a tradição do Komintern, e essas
tradições são forças conservadoras. Mesmo após numerosas traições
os trabalhadores continuam fiéis às suas organizações, porque essas
organizações acordaram-nos pela primeira vez, porque lhes deram
uma cultura política. Isso torna-se uma desvantagem quando se tra-
ta de adotar uma nova orientação. Os trabalhadores americanos tem
uma vantagem: na sua grande maioria não estiveram organizados,
e só agora começam a agrupar-se nos sindicatos. Isso dá ao partido
revolucionário possibilidade de os mobilizar para enfrentar conjun-
tamente os golpes da crise.
A que velocidade se produzirão esses acontecimentos? Ninguém
sabe: pode-se simplesmente dar a orientação geral que ninguém
contesta. É somente depois que se põe a questão da apresentação do
programa aos trabalhadores : naturalmente é uma questão muito im-
portante; devemos aplicar à política o que sabemos de pedagogia e
psicologia de massas, para construir uma ponte de acesso ao espírito
dos trabalhadores.
Só pela experiência poderemos aprender neste domínio. Durante
algum tempo devemos esforçamo-nos por concentrar a atenção dos
trabalhadores sobre um ponto preciso: a escala móvel dos salários e
das horas de trabalho.
O empirismo dos trabalhadores americanos permitiu aos par-
tidos políticos obter sucessos com uma ou duas idéias essenciais,
como o imposto único, o bimetalismo etc... Essas idéias alastraram
por entre as massas como um rastilho de pólvora: quando as mas-
128
sas constatam que uma panacéia não vale nada, precipitam-se para
outra.
Nós podemos hoje apresentar um remédio honesto, que não é de-
magógico, que é parte integrante do nosso programa e que corres-
ponde absolutamente à situação presente.
As estatísticas oficiais anunciaram-nos 13 a 14 milhões de desem-
pregados, na realidade devemos contar com 16 a 20 milhões. os jo-
vens em particular estão à miséria.
O sr. Roosevelt põe hoje o acento tônico nas obras públicas. Mas
nós pela nossa parte queremos que todos tenham trabalho, tanto nas
obras públicas como nas minas, nos caminhos de ferro etc... Quere-
mos que todos possam viver decentemente, a um nível em todo os
caso igual aos dos dias de hoje e exigimos do sr. Roosevelt e do seu
“brain trust” que organizem o seu programa de obras públicas de
maneira que toda a gente possa trabalhar com salários decentes. Isso
é possível com a escala móvel de salários e das horas de trabalho. Por
todo o lado, em todas as localidades, devemos refletir sobre a manei-
ra de apresentar essas idéias. Depois devemos organizar uma campa-
nha de agitação, de tal maneira que todos saibam o que é o programa
do Socialist Workers Party. Penso que devemos concentrar a atenção
dos trabalhadores nesse ponto. Evidentemente, não é o único, mas
está integralmente adaptado à situação presente: os outros podem
ser acrescentados à medida que essa idéia se apodera das massas. As
burocracias opor-se-ão. Se essa idéia se apoderar verdadeiramente
das massas, as tendências fascistas organizar-se-ão para ripostar. En-
tão diremos que é necessário desenvolver os piquetes de autodefesa.
Penso que no início os trabalhadores farão sua esta reivindicação da
escala móvel de salários e de horas de trabalho. Mas, no fundo, o que
é esta reivindicação? Na realidade é a descrição do sistema de organi-
zação do trabalho na sociedade socialista. O número total de horas de
trabalho a prestar dividida pelo número total de trabalhadores. Mas
se apresentássemos de uma vez o sistema socialista seriamos apoda-
dos de utopistas pelo americano médio que nos dirá que são idéias
importadas da Europa. Então apresentamos esse sistema como a
solução da crise, que assegurará aos trabalhadores o seu direito e
alimentarem-se, a viver em casas decentes em condições decentes: é
o próprio programa socialista, mas na sua forma mais simples, mais
próxima das massas.
PERGUNTA: Como organizar a campanha por essa promessa?
CRUX: Poder-se-ia imaginar essa campanha do seguinte modo:
vocês começavam a agitação, por exemplo em Minneapolis. Ganha-
129
vam um ou dois sindicatos para este programa. Depois enviavam de-
legados a outras cidades, a diferentes sindicatos. Desde o momento
em que o programa tenha saído do partido para penetrar nos sindi-
catos, a batalha estará meio ganha. Enviareis delegados a Nova Ior-
que, a Chicago, aos mesmos sindicatos. Uma vez o sucesso assegura-
do, convocariam um Congresso especial. Isso obrigaria os burocratas
sindicais a tomar posição por ou contra: o debate será então público
e proporcionará ocasiões magníficas para a propaganda.
PERGUNTA: Esse programa pode ser realizado hoje?
CRUX: É mais fácil derrubar o capitalismo do que garantir efeti-
vamente a escala móvel de salários e horas de trabalho no quadro
do sistema capitalista. Nenhuma das nossas reivindicações será re-
alizada nesse quadro, é por isso que lhes chamamos reivindicações
transitórias: estabelecem uma ponte que nos permite atingir os tra-
balhadores, e uma verdadeira ponte para ir à Revolução Socialista.
Toda a questão é saber como mobilizar as massas para o combate: a
questão da divisão entre os trabalhadores e os desempregados, por
exemplo, coloca-se nesse quadro. Devemos encontrar a maneira de
superar essa divisão. A idéia de uma classe à parte, a classe dos de-
sempregados, dos novos párias, é uma idéia que faz parte da prepa-
ração ideológica para o fascismo. Se a classe operária não conseguir
superar essa divisão, sobretudo a nível sindical, o seu destino está
traçado.
PERGUNTA: Muitos camaradas não conseguem compreender po-
que é que essa reivindicação não pode ser satisfeita.
CRUX: É uma questão muito importante. Este programa não é a
invenção de um homem. Ele decorre da longa experiência dos bol-
cheviques. Repito: este programa é a concretização da experiência
coletiva dos revolucionários. É a aplicação dos velhos princípios à
situação atual. É necessário não considerá-lo como definitivamente
gravado no mármore, mas adaptá-lo à situação objetiva.
Os revolucionários consideram sempre as reformas e as conquis-
tas como subprodutos da luta revolucionária. Se nos contentamos
em reivindicar o que podemos obter, a classe dominante dar-nos
-á apenas um décimo, ou nada. Se reclamarmos mais e estivermos
dispostos a impor as reivindicações os capitalistas ver-se-ão obri-
gados a conceder-nos o máximo. Quanto mais combativos e exigen-
tes forem os trabalhadores, mais se pode exigir e obter. As nossas
reivindicações não são slogans estéreis, são meios de pressão sobre
a burguesia. No passado, durante o período áureo do capitalismo
americano, os trabalhadores obtiveram regalias pelo simples fato
130
de se terem lançado empiricamente na luta, com um espírito muito
militante.
A situação atual é muito diferente. Os capitalistas não têm aberta
à sua frente uma era de prosperidade. Não têm nenhum medo das
greves, dado o número de trabalhadores que estão à espera de em-
prego. É por isso que o programa deve tentar unir as duas partes da
classe operária, os trabalhadores e os desempregados. É o que faz
precisamente a escala móvel dos salários.
131
Comparação entre os movimentos
operários americano e europeu
31 de maio de 1938.
134
dirige essas reivindicações a esta ou àquela fração particular da bur-
guesia. mas à burguesia em seu conjunto, tal como ela é organizada
no Estado.
Pode-se dizer que encontramos, hoje, nos Estados Unidos tra-
ços característicos do desenvolvimento inglês, sob uma forma ainda
mais concentrada. pois a história dos Estados Unidos é. em si mesma,
uma sinopse.
De fato, o desenvolvimento sindical nos Estados Unidos começa
após a Guerra Civil, mas esses sindicatos estavam muito atrasados no
plano político, mesmo se comparados aos sindicatos ingleses. Eram,
frequentemente, sindicatos mistos, que agrupavam patrões e ope-
rários, e não sindicatos ativos e militantes. Eram muito setorizados
e limitados. Baseavam-se no sistema artesanal, recusando a grande
indústria. É somente nos dois ou três últimos anos que apareceram
verdadeiros sindicatos nos Estados Unidos. Esse novo movimento é
o CIO.
Qual é a razão do surgimento do CIO? O declínio do capitalismo
americano. Na Grã-Bretanha, o início desse declínio gerou unicamen-
te os grandes sindicatos da indústria. Mas nos Estados Unidos, esses
sindicatos só apareceram a tempo de assistir à nova fase de declínio
do capitalismo ou, mais exatamente, podemos dizer que a primeira
crise de 29-33 deu o impulso inicial e conduziu à criação do CIO; mas,
tão logo organizado, o CIO já teve de enfrentar a segunda crise, aque-
la de 37-38, que continua a se aprofundar.
O que isso significa? Os sindicatos levaram longo tempo para se
organizar nos Estados Unidos, mas, agora que eles existem, seguirão
a mesma evolução que os sindicatos ingleses. Isso quer dizer que, nas
condições atuais, com o declínio do capitalismo, eles são obrigados a
se voltar para a ação política. Creio que é o mais importante.
A pergunta que me foi feita ressalta o fato de “que nada indica
que o desejo de tal partido seja um sentimento presente nas massas”.
Vocês se lembram que, quando falamos disso com outros camaradas,
houve divergências. Não posso julgar se esse sentimento está ou não
difundido entre as massas: não tenho observações ou impressões
pessoais que me permitam julgá-lo, mas não creio que nos seja es-
sencial saber quem, entre os dirigentes ou militantes dos sindicatos,
está pronto hoje, e em que nível, para construir um partido político.
É muito difícil obter informações objetivas nesse assunto: não temos
meios de organizar um referendum. Só mediremos as reações a nos-
sas propostas. quando as tivermos colocado concretamente na or-
dem do dia.
135
Mas o que podemos dizer, sem medo de errar, é que a situação ob-
jetiva e absolutamente determinante. Os sindicatos, enquanto tais, só
podem ter uma atividade defensiva. À medida que a crise se aprofun-
da e o desemprego aumenta, eles perdem militantes e se enfraque-
cem. Os fundos de greve diminuem. As tarefas tornam-se cada vez
mais esmagadoras, enquanto os meios são cada vez mais limitados. Ê
um fato, nada podemos fazer contra isso.
A burocracia sindical está cada vez mais desorientada, os traba-
lhadores da base cada vez mais descontentes; seu descontentamento
é proporcional às esperanças que eles depositavam no CIO, em virtu-
de de seus sucessos anteriores.
A situação é a seguinte: em três anos são mais quatro milhões de
desempregados que devem enfrentar uma situação objetiva que os
sindicatos não podem mudar. Devemos dar uma resposta para isso.
Se os dirigentes sindicais não estão prontos para a ação política,
devemos exigir que desenvolvam uma nova orientação. Se recusa-
rem, nós os denunciaremos.
Repito aqui o que disse do programa de transição em seu conjun-
to. O primeiro problema que devemos enfrentar não é o estado de es-
pírito das massas, mas a situação objetiva, e nossa tarefa é confrontar
essas massas atrasadas com as tarefas determinadas pela situação
objetiva e não por considerações psicológicas. A mesma observação
impõe-se na questão do partido operário. Para que a combativida-
de de classe não seja esmagada, para que a desmoralização não se
apodere das massas, esse movimento deve seguir um novo caminho;
esse caminho deve ser político. Este é o argumento essencial que
deve ser utilizado em relação ao Partido Operário.
Nós reivindicamos do marxismo e do socialismo científico. O que
é o socialismo científico na realidade?
Significa que o partido que o reivindica não funda sua política em
desejos subjetivos, em tendências particulares, em estados de espí-
rito, mas em fatos objetivos, na situação material da relação entre as
diferentes classes em confronto, em reivindicações que correspon-
dam à situação real. Posteriormente é que nós adaptaremos essas
reivindicações, essas palavras de ordem, à mentalidade das massas.
Considerar essa mentalidade como elemento fundamental não cor-
responderia a uma política científica, mas a uma política conjuntural,
demagógica ou aventureira.
Pode-se perguntar como aconteceu que não prevemos o desenvol-
vimento, há cinco, seis ou sete anos, e por que não lutamos por essa
palavra de ordem de Partido Operário anteriormente. A explicação é
136
muito simples. Estávamos absolutamente convencidos, nós marxis-
tas, fundadores do movimento americano pela IV Internacional, de
que o capitalismo internacional tinha entrado num período de de-
clínio. Quer dizer, um período caracterizado pelo fato de os trabalha-
dores serem educados pelas circunstâncias objetivas e se engajarem,
subjetivamente, no caminho da revolução socialista. Era a tendência
geral, e os Estados Unidos não eram exceção. Mas a tendência geral
não é suficiente para determinar todos os fenômenos particulares.
É tudo uma questão de ritmo de desenvolvimento; desse ponto
de vista, considerando a força do capitalismo americano, vários en-
tre nós; até mesmo eu, pensávamos que esse colosso poderia resistir
mais tempo às suas contradições internas e aproveitar o declínio do
capitalismo europeu para se garantir certa folga. Por quanto tempo?
Talvez dez ou trinta anos. Em todo caso, não imaginava, no que me
concerne pessoalmente, que essa série de crises agudas abrisse tão
rapidamente, e que essas crises só continuariam aprofundando-se.
Eis por que, quando discuti há oito anos atrás com os camaradas
americanos, fui extremamente prudente em minhas hipóteses.
Minha opinião era que não se poderia prever quando os sindica-
tos americanos seriam obrigados, pela situação, a recorrer à ação
política. Considerava que se o período crítico ocorresse dali a dez
ou quinze anos, então nós, a organização revolucionária, podería-
mos tornar-nos uma força real, influindo nos sindicatos diretamente,
tornando-se a força principal. Eis por que teria sido absolutamente
abstrato, artificial e pedante proclamar, em 1930, a necessidade do
partido operário; essa palavra de ordem teria sido um obstáculo ao
progresso de nosso partido. Isso ocorria no início da crise preceden-
te. Não havíamos previsto que aquela crise fosse decuplicada por se
tratar de uma repetição!
Devemos basear-nos não nas previsões de ontem, mas na situa-
ção atual. O capitalismo americano é muito forte, porém suas contra-
dições são ainda mais fortes. O declínio progride numa velocidade
americana, e isso cria uma situação nova para os jovens sindicatos (o
CIO ainda mais que a AFL) pois esta resistirá melhor, apoiando-se em
sua base mais aristocrática.
Devemos mudar nosso programa, pois a situação objetiva mudou
totalmente.
O que isso significa? Significa que estamos seguros de que a classe
operária e os sindicatos vão aderir a essa perspectiva do partido ope-
rário? Não, não estamos seguros. Mas, no início da luta, não podemos
estar seguros de alcançar a vitória. Podemos simplesmente dizer que
137
nossa palavra de ordem corresponde à situação objetiva; os elemen-
tos mais avançados hão de compreendê-la e os mais atrasados não se
oporão, mesmo que não a compreendam.
Mesmo em Mineápolis não podemos propor aos sindicatos que
adiram à nossa organização, o Socialist Workers Party. Seria uma
brincadeira, até em Mineápolis. Por quê? Porque o declínio do ca-
pitalismo caminha dez vezes, cem vezes mais rápido do que o cres-
cimento de nosso partido. É uma nova distorção. A necessidade de
um partido político está inscrita nas condições objetivas, mas nosso
partido é muito pequeno, tem muito pouca autoridade para organi-
zar os trabalhadores em suas fileiras. Eis por que devemos dizer aos
trabalhadores, às massas: construam seu próprio partido. Mas não
podemos dirigir-nos diretamente às massas, incitando-as a aderirem
ao nosso partido.
Se uma assembleia de 500 pessoas manifesta seu acordo sobre
a ideia de que um partido operário é necessário, talvez só 5 delas
estarão prontas a integrar nosso partido, o que mostra que a palavra
de ordem do Partido Operário é uma palavra de ordem de agitação.
A segunda palavra de ordem _ integrem nosso partido _ é para os
elementos mais avançados.
Mas não deveríamos lançar apenas uma dessas palavras de or-
dem? Pelo contrário, devemos lançar as duas. A primeira, “por um
partido operário independente”, prepara o terreno para nosso pró-
prio partido. A segunda palavra de ordem prepara os trabalhadores,
ajuda-os a avançar e abre caminho para nosso partido.
Além disso, mostraremos que não estamos satisfeitos com essa
simples palavra de ordem de partido operário, que aliás não é tão
abstrata quanto há dez anos, em virtude da modificação na situação
concreta; mas mostraremos que é uma ideia que deve tornar-se con-
creta. Mostraremos aos trabalhadores que esse partido deve ser um
partido independente, não para sustentar Roosevelt ou La Follette,
mas um instrumento para os próprios trabalhadores. É por isso que
esse partido deverá ter seus próprios candidatos no terreno eleitoral.
Nesse partido operário, faremos passar nossas palavras de ordem
de transição. Não todas de uma vez, evidentemente, mas uma após
a outra, à medida que as situações forem surgindo. Eis por que não
vejo nenhuma razão fundamental para recusar essa palavra de or-
dem.
Para essa recusa, só encontro uma razão psicológica: nossos ca-
maradas, combatendo os partidários de Lovestone, lutaram por nos-
so partido contra a ideia de um partido abstrato. Evidentemente isto
138
é desagradável. Certamente os stalinistas nos chamarão de fascistas
etc... Mas tudo isso não é do domínio dos princípios: é do domínio da
tática.
Lovestone dirá que nós nos desmascaramos, mas isso não é nada.
Para estabelecer nossa política, fundamentamo-nos nas necessida-
des da classe operária, e não nas reações de Lovestone. Creio que,
mesmo do ponto de vista de nossa luta contra os partidários de Lo-
vestone, isso é uma vantagem e não um inconveniente. Se tivesse de
enfrentar um deles, explicaria quais eram nossas posições e por que
elas mudaram. Diria: “Naquele momento vocês nos atacaram. Bem,
hoje, sobre esse ponto que lhes pareceu tão importante, mudamos
de ideia O que vocês têm contra a IV Internacional?” Estou certo que,
dessa forma, poderíamos até mesmo organizar uma cisão na organi-
zação dos lovestonistas.
Quanto a isso, não vejo obstáculo.
Antes de terminar, gostaria de fazer uma correção à pergunta. A
palavra de ordem do “Partido Operário” não faz parte do programa
de transição. É um ponto separado.
PERGUNTA: Como defender a causa do Partido Operário num sin-
dicato, apresentando moções?
TROTSKI: Por que não? Se eu estivesse num sindicato, e a questão
viesse à tona, tomaria a palavra para dizer que o Partido Operário é
uma necessidade exigida pelos acontecimentos. Está provado que a
ação no plano econômico é suficiente. É necessário uma ação política.
Direi aquilo que conta, na minha opinião, em tal palavra de ordem:
explicarei que é por isso que me reservo para intervir mais tarde so-
bre o conteúdo do programa desse partido, mas que votaria nessa
proposta.
PERGUNTA: Os trabalhadores são absolutamente apáticos no que
concerne ao Partido Operário; seus líderes nada fazem, e os stalinis-
tas sustentam Roosevelt.
TROTSKI: Isso caracteriza o período que conhecemos, onde não
há programa definido, onde os trabalhadores não sabem onde pro-
curar um novo caminho. É absolutamente necessário superar essa
apatia. É absolutamente necessário fixar a nova perspectiva.
PERGUNTA: Alguns camaradas chegaram a elaborar estatísticas,
tentando provar que o movimento pelo Partido Operário está per-
dendo audiência entre os trabalhadores.
TROTSKI: É necessário distinguir a linha geral das oscilações se-
cundárias e do humor que pode remar, num ou noutro momento, no
interior do CIO. No que concerne à agressividade, é certo que o CIO
139
aparece hoje mil vezes mais perigoso que antigamente, aos olhos dos
capitalistas, porém os dirigentes têm medo de romper com Roose-
velt. As massas esperam, sem perspectivas. O desemprego aumen-
ta. É possível, talvez, provar que o movimento pelo Partido Operário
perdeu influência de um ano para cá.
Talvez a influência stalinista colabore com essa tendência. Mas
isso é apenas uma oscilação secundária, e seria muito perigoso base-
armo-nos nessas oscilações secundárias, visto que dentro de pouco
tempo o movimento pelo partido operário será a tendência princi-
pal; é a tendência de fundo que se tornará evidente, e a necessida-
de objetiva deverá encontrar sua expressão subjetiva na cabeça dos
trabalhadores. Para isso trabalhamos. O partido é um instrumento
histórico para ajudar os trabalhadores.
PERGUNTA: Alguns de nossos camaradas, que vêm do Partido So-
cialista, dizem que, quando estavam no PS, defendiam a ideia de um
partido operário e que foram convencidos pelos trotskistas de que
estavam errados. Hoje, será necessário que eles voltem atrás?
TROTSKI: Sim. É uma questão de pedagogia; é uma boa escola
para nossos camaradas. Agora, eles podem abordar esse problema
do Partido Operário de maneira mais completa e mais dialética.
140
Completar o programa
e colocá-lo em prática 46
7 de junho de 1938
142
um jugo. Assim a disciplina é uma manifestação de minha livre indi-
vidualidade. Não há oposição entre a vontade individual e o Partido,
pois a adesão ao Partido é livre. O mesmo acontece com o programa.
Uma compreensão correta tem que se assentar em uma solida base
política e moral.
Um projeto de programa não é um programa acabado. Podemos
afirmar que no nosso há carências, ao mesmo tempo em que alguns
de seus aspectos não são em absoluto programáticos, como por
exemplo, as referencias conjunturais. Nosso projeto de programa não
recolhe só consignas, senão também comentários e polemicas com
os adversários. Não é um programa acabado. Um programa acaba-
do deveria oferecer uma analise teórica sobre a sociedade capitalista
moderna em sua fase imperialista: as causas da crise atual, o aumen-
to do numero de desempregados etc. No projeto, esta analise está re-
sumida ao principio, porque sobre isso já escrevemos artigos, livros
etc. Ainda haveremos de escrever mais e melhores. Mas, para efeitos
práticos, esse resumo basta, pois todos compartilhamos da mesma
opinião. O começo do programa não é completo. O primeiro capitulo
é só um conjunto de sugestões, não um tratamento detalhado. Tam-
pouco está detalhada a parte final do programa, porque nela não se
fala da revolução social, da tomada do poder pela via insurrecional,
da transformação da sociedade capitalista na ditadura proletária e
a ditadura proletária em uma sociedade socialista. O programa dei-
xa o leitor no umbral destas questões. Limita-se a ser um programa
de ação de hoje até o começo da revolução socialista. De um ponto
de vista pratico o essencial para nós é como podemos guiar as dife-
rentes camadas do proletariado rumo à revolução social. Ouvi que
os camaradas de Nova York começaram recentemente a organizar
círculos não só para estudar e criticar o projeto de programa, senão
também para buscar os meios de apresentar o programa às massas.
Acho que este é o melhor método que pode empregar nosso Partido.
O programa é só uma primeira aproximação, inclusive bem gené-
rica, pois ao ser um texto para a próxima conferencia internacional,
se limita a expressar a tendência geral do desenvolvimento a nível
mundial. Contem também um breve capitulo dedicado aos países
fascistas, outro sobre a URSS etc. As características gerais da situa-
ção mundial são comuns, pois se devem ao influxo da economia im-
perialista, apesar das condições especificas de cada país; assim uma
política concreta deve partir dessas peculiaridades, inclusive as de
cada região do país em questão. Por isso, o primeiro dever de todos
os camaradas dos EUA é o de levar muito a serio o programa.
143
Há dois perigos na hora de desenvolver o programa. O primeiro
consiste em ficarmos em analises abstratas e repetir consignas
gerais que não encontram eco nos sindicatos locais. É o perigo
de cair na abstração sectária. O outro perigo é o contrario, uma
adaptação excessiva às condições locais, às condições especificas,
que leva a perder a linha revolucionaria geral. Penso que nos EUA
o segundo perigo é mais provável. Por exemplo, no que se refere
nossa postura sobre a militarização, os piquetes armados etc. que
alguns camaradas temiam que não fosse assumida pelos trabalha-
dores etc.
Nestes dias li um livro em francês, escrito por um trabalhador ita-
liano, sobre o surgimento do fascismo na Itália. O autor é um opor-
tunista. Era socialista, mas o importante não são suas conclusões, se-
não os dados que traz. Em particular descreve o proletariado italiano
em 1920-21. Possuía uma organização poderosa. Havia 160 deputa-
dos socialistas no parlamento. Mais de um terço dos municípios es-
tavam em suas mãos, os setores mais importantes da Itália estavam
nas mãos dos socialistas, hegemônicos entre os operários. Nenhum
capitalista podia empregar ou demitir um trabalhador, agrário ou in-
dustrial, sem o consentimento do sindicato. Parecia como se tivesse
conseguido 49% da ditadura do proletariado. No entanto, a reação da
pequena burguesia e dos oficiais desmobilizados, ante esta situação,
foi tremenda. O autor conta como organizaram pequenos bandos sob
a direção de alguns oficiais que eram enviados em ônibus a qualquer
parte em que fizessem falta. Em cidades de dez mil habitantes sob o
controle socialista bastava trinta homens organizados para entrar na
cidade, queimar a prefeitura, as casas, fuzilar os líderes e impor as
condições de trabalho capitalistas. Daí iam para outro lugar fazendo
o mesmo, uma depois da outra, em centenas e centenas de cidades.
Semearam o terror e, realizando estes atos sistematicamente, destru-
íram totalmente os sindicatos, tornando-se donos da Itália, apesar de
ser uma minoria insignificante.
Quando os trabalhadores se declaravam em greve geral, os fas-
cistas chegavam em seus ônibus, esmagavam toda greve local e com
a ajuda de uma minoria organizada, apagaram do mapa as organi-
zações operarias. Neste clima de terror aconteceram eleições e os
operários voltaram a obter o mesmo numero de deputados, que se
dedicaram a expressar seu protesto no Parlamento até que este foi
dissolvido. Essa é a diferença entre poder formal e poder real. Os de-
putados estavam convencidos de sua força, mas aquele movimento
operário gigantesco, apesar de todo seu espírito de sacrifício foi es-
144
magado, destruído, varrido por uns dez mil fascistas bem organiza-
dos, dispostos a tudo e com bons chefes militares.
Nos EUA seria diferente, mas as tarefas fundamentais seriam as
mesmas. Vejam as táticas de Hague. São um ensaio de golpe fascista.
Hague representa os pequenos patrões enfurecidos pelo agravamen-
to da crise. Seus bandos fascistas são totalmente anticonstitucionais,
mas muito, muito contagiosos. Se a crise se agrava seus procedimen-
tos podem se estender ao país todo e Roosevelt, que é um grande
democrata, se limitará a dizer que “talvez assim seja melhor”
Isto foi o que aconteceu na Itália. O primeiro ministro convidou
os socialistas para resolver a crise, mas os socialistas se recusaram.
Depois se dirigiu aos fascistas, mas os fascistas esmagaram o minis-
tro. Acho que o exemplo de Nova Jersey é muito importante também.
Tudo deve nos servir para alertar do perigo fascista, mas estes exem-
plos são fundamentais. Penso em escrever uma serie de artigos de
como chegaram a triunfar os fascistas. Nós também podemos triun-
far assim, mas para isso precisamos de um pequeno corpo armado
que conte com o apoio das massas trabalhadoras. Necessitamos da
melhor disciplina, trabalhadores organizados, comitês de autodefe-
sa. Se não seremos esmagados. Acho que nossos camaradas nos EUA
não valorizam a importância da questão. Uma onda fascista pode se
estender em dois ou três anos. Se for assim, os melhores dirigentes
operários serão linchados assim como os negros no sul. O terror nos
EUA pode ser o pior de todos. Por isso devemos começar modesta-
mente, quer dizer, com piquetes de autodefesa, que devemos promo-
ver imediatamente.
PERGUNTA: Como colocar de pé os piquetes de autodefesa?
TROTSKI: É muito simples. Existem piquetes de greve? Quando a
greve terminar diremos que temos que defender nossos sindicatos
dando caráter permanente aos piquetes.
PERGUNTA: É o próprio Partido que deve criar os piquetes de au-
todefesa com seus militantes?
TROTSKI: As consignas do Partido devem se propagar nos bairros
onde temos simpatizantes e operários que nos apoiam. Não obstante,
o Partido não pode criar esse núcleo nos sindicatos. Devemos contar
com estes grupos de camaradas dotados de uma estrita disciplina,
com lideres bons e cautelosos que não se deixam provocar facil-
mente, pois estes grupos são alvos de provocações fáceis. A princi-
pal tarefa para o próximo ano será evitar conflitos e enfrentamentos
sangrentos. Temos que reduzi-los ao mínimo, dotando-nos de uma
organização minoritária nas greves, em períodos de calma. Com o
145
objetivo de impedir a realização de reuniões de fascistas propore-
mos fazer uma frente única, já que sós não somos fortes e isso é uma
questão de relação de forças.
Hitler explica em seu livro. A social democracia era extremamen-
te poderosa. A um encontro da social democracia enviou um bando
capitaneado por Rudolf Hess, e conta que, ao acabar o encontro,
seus trinta homens desalojaram todos os trabalhadores, que não
opuseram resistência. Foi então que soube que iria triunfar. Os tra-
balhadores só estavam organizados para pagar as cotas. Careciam
de preparação para fazer outras tarefas. Agora devemos fazer o que
fez Hitler, mas invertido. Enviar quarenta ou cinquenta homens
para dissolver o encontro. Isso tem uma importância enorme. Os
trabalhadores ganham tempera, transformando-se em elementos
combativos, em força avançada. A pequena burguesia pensa que
estas pessoas são sérias. Que êxito! Isto tem uma importância enor-
me. Enquanto que grande parte da população permanece cega, se-
gue sendo atrasada e aceita a opressão, só o êxito pode despertá-la.
Hoje somente podemos despertar a vanguarda, mas esta deve des-
pertar os demais. Esse é o motivo, não me canso de repetir, porque
essa questão tem muita importância. Em Minneapolis onde conta-
mos com camaradas muito hábeis e influentes, podemos começar a
mostrar para todo o país.
Acho que seria útil discutir um pouco esta parte do projeto de
programa desenvolvida de forma insuficiente em nosso texto. Se
trata da parte geral teórica. Na ultima discussão destaquei que o
fato de que a parte teórica do programa, enquanto analise geral da
sociedade, não aparece em sua totalidade neste projeto, que se li-
mita a fazer breves referencias. Por outro lado, não contem a parte
referente à revolução, à ditadura do proletariado e à construção da
sociedade depois da revolução. Só deve ser coberto o período de
transição. Repetimos em numerosas ocasiões que o caráter cien-
tifico de nossa atividade consiste em que não adaptamos nosso
programa à conjuntura política ou ao estado de ânimo das massas,
tal como se manifesta hoje, senão à situação objetiva tal como apa-
rece representada pela estrutura econômica das classes sociais. O
nível de consciência pode ser baixo. Nesse caso a tarefa política do
Partido consiste em fazer que este nível de consciência se coloque
à altura da situação objetiva, em fazer que os trabalhadores cum-
pram suas tarefas objetivas. No entanto, não podemos adaptar o
programa à mentalidade dos trabalhadores atrasados, pois o nível
de consciência e o estado de ânimo constituem um fator secundá-
146
rio. O fator principal é situação objetiva. Isto nos valeu algumas cri-
ticas ou apreciações que dizem que algumas partes do programa
não respondem adequadamente à situação.
Em todo momento a pergunta é: O que fazer? Adequar nosso
programa à situação objetiva ou ao nível de consciência dos traba-
lhadores? Esta é a pergunta a ser colocada a todo camarada que diz
que o programa não se adapta à situação americana. O nosso é um
programa cientifico. Se baseia em uma analise concreta da situação
concreta. Não pode compreendido pelo conjunto dos trabalhadores.
Nós daríamos um sorriso de orelha a orelha se a vanguarda o com-
preendesse em um futuro próximo e se dirigisse aos trabalhadores
dizendo: “Temos que nos livrar do fascismo”.
O que entendemos por situação objetiva? A analise das condições
objetivas para a revolução social. Estas condições estão expostas nas
obras de Marx e Engels e em essência permanecem invariáveis. Em
primeiro lugar, Marx afirmou em uma ocasião que nenhuma socie-
dade deixa de existir até enquanto não esgote suas possibilidades. O
que significa isto? Que não podemos fazer desaparecer uma estrutu-
ra social através de um ato de vontade subjetivo, que não podemos
organizar uma insurreição como os blanquistas47. O que significa o
termo “possibilidades”? E o que significa “que nenhuma sociedade
deixa de existir? Enquanto a sociedade seja capaz de desenvolver as
forças produtivas e de fazer com que a sociedade seja mais rica, con-
tinuará sendo poderosa e estável. Essa foi a condição para as socieda-
des escravistas, feudal e capitalista.
Aqui chegamos a uma questão muito importante que em seu mo-
mento analisei em minha introdução ao Manifesto comunista. Marx
e Engels esperavam que a revolução acontecesse no decorrer de sua
vida. Em especial, esperavam uma revolução social nos anos 1848-
50. Por que? Diziam que o sistema capitalista baseado no lucro tinha
se tornado um freio para as forças produtivas. Isso era correto? Sim e
não. Era correto no sentido de que se os trabalhadores tivessem sido
capazes de assumir as necessidades do século 19 e de tomar o poder,
o desenvolvimento das forças produtivas teria sido mais rápido e o
país mais rico. Mas como os trabalhadores não foram capazes de fazê
-lo, o sistema capitalista sobreviveu, com suas crises etc. No entanto,
aquela tendência seguiu seu curso. A ultima guerra (1914-1918) foi
47 Blanquistas: Seguidores de Louis-August Blanqui (1805-1881), que subscrevem
a teoria da insurreição armada empreendida por pequenos grupos de conspirado-
res selecionados e treinados, frente à teoria marxista da ação de massas. O próprio
Blanqui participou de todas as insurreições francesas desde 1830, passando pela
Comuna de Paris. Esteve na prisão trinta e três de seus setenta e seis anos de vida.
147
devido a que o mercado mundial se tornou demasiado estreito para
o desenvolvimento das forças produtivas e cada país tratou de des-
locar os demais para agarrar, a serviço de seus próprios interesses, o
mercado mundial. Nenhum o conseguiu e agora vemos como a socie-
dade capitalista entrou em uma nova fase.
Muitos dizem que esta nova fase foi consequência da guerra, mas
a guerra refletia uma sociedade que tinha esgotado suas possibilida-
des, foi um reflexo de sua incapacidade em seguir se desenvolvendo.
Depois da guerra estamos assistindo uma crise histórica cada vez
mais profunda. No passado o desenvolvimento capitalista alternava
prosperidade e crise, mas a soma de crise e prosperidade era saldada
com um novo avanço. No entanto, a partir da guerra pode se observar
a existência de ciclos alternativos de crise e prosperidade em linha
descendente. O que significa que a sociedade esgotou todas suas pos-
sibilidades internas e que tem que ser substituída por outra nova,
pois do contrario a velha sociedade cairia na barbárie, assim como as
civilizações grega e romana esgotaram suas possibilidades sem que
aparecesse nenhuma substituição.
Essa é a questão que agora está em jogo, em especial nos EUA.
O primeiro requisito que tem que cumprir uma nova sociedade é
ter alcançado um desenvolvimento suficiente das forças produti-
vas que possam dar espaço para outra sociedade mais avançada.
As forças produtivas se encontram suficientemente desenvolvidas
para isso? Sim, no século 19 já estavam. Não tanto como agora, mas
em todo caso o suficiente. Agora seria muito simples para um esta-
tístico, principalmente nos EUA, demonstrar que se as forças pro-
dutivas fossem liberadas, poderiam se multiplicar por dois ou por
três. Acho que nossos camaradas deveriam realizar esta sondagem
estatística.
A segunda condição é a existência de uma nova classe progres-
sista suficientemente numerosa e economicamente influente para
impor sua vontade à sociedade. Esta classe é o proletariado. Tem que
ser a maioria do país ou ter a possibilidade de dirigir os camponeses
pobres. Nos EUA é pelo menos a metade da população e tem a possi-
bilidade de dirigir os camponeses.
A terceira condição é o fator subjetivo. Esta classe tem que ser
consciente do lugar que ocupa na sociedade e dispor de organiza-
ções próprias. Esta é uma condição que agora não existe do ponto de
vista histórico. Socialmente não só é possível, senão absolutamente
necessário no sentido de que a disjuntiva histórica será: socialismo
ou barbárie.
148
Já vimos na discussão que o senhor Hague não é um velho estú-
pido que imagina que em sua cidade impera uma espécie de sistema
feudal. É o pelotão de frente da classe capitalista americana.
Jack London escreveu O tacão de ferro48. Aproveito para recomen-
dar sua leitura. Ele o escreveu em 1907 e naquela data parecia um
pesadelo de ficção, mas agora é uma realidade palpável. Descreve o
desenvolvimento da luta de classe em um EUA em que a classe ca-
pitalista mantém seu poder com a ajuda de uma terrível repressão.
É uma antecipação do fascismo. A ideologia que retrata é inclusive
similar à de Hitler. É muito interessante.
Em Newark o prefeito começa a emular Hague: todos se inspiram
em Hague e seus congêneres. Agora, em plena crise, é completamen-
te certo que Roosevelt se dará conta de que não pode fazer nada em-
pregando meios democráticos. Não é um fascista como afirmavam
os stalinistas em 1932. No entanto, toda sua capacidade de iniciativa
ficará paralisada. O que pode fazer? Os trabalhadores estão descon-
tentes, os grandes empresários estão descontentes. Só lhe cabe ma-
nobrar até acabar seu mandato e depois dizer adeus. Está totalmente
descartado um terceiro mandato de Roosevelt.
A imitação do prefeito de Newark pode ser muito importante. Em
dois ou três anos pode haver um potente movimento fascista. Quem
é Hague? Não tem nada a ver com Mussolini ou Hitler, mas é um fas-
cista americano. Por que se indigna? Porque a sociedade já não pode
funcionar com mecanismos democráticos.
Seria, é claro, impermissível cair na histeria. O perigo de que a
classe operaria seja superada pelos acontecimentos é indiscutível,
mas só podemos combatê-lo se desenvolvemos enérgica e sistemati-
camente nossa própria atividade e impulsionamos consignas revolu-
cionarias adequadas, não dando corda solta a nossas fantasias.
A democracia é o governo dos grandes financeiros. Devemos
compreender bem o que Lundberg nos ensinou com seu livro: que
sessenta famílias governam os EUA. Como? Até hoje, com meios de-
mocráticos. São uma pequena minoria rodeada de camadas medias,
48 O tacão de ferro é a mais notável das novelas socialistas de Jack London, publicada
no inicio de 1908. Pavorosamente profética em sua descrição das insurreições ope-
rárias e do fascismo. O argumento da novela é a descoberta e publicação no quarto
século da era socialista de um documento inacabado, escrito em 1932, que descre-
ve o esmagamento do movimento operário americano e das liberdades durante o
período 1912-1932, pelo que hoje chamaríamos de um regime fascista. Em 1932,
quando de repente termina o manuscrito, o regime fascista conhecido como “o ta-
cão de ferro” esmagou o primeiro levante dos operários. Mas secretamente se está
planejando outro.
149
pequena burguesia e operários, mas tem que interessar as camadas
medias em sua sociedade. Não pode deixar que se desesperem. O
mesmo acontece com os trabalhadores, especialmente as camadas
mais altas. Se conseguem ganhar sua oposição às mudanças, ficam
rompidas as possibilidades revolucionarias das camadas baixas. Não
há outra maneira de fazer funcionar a democracia.
O regime democrático é a forma mais aristocrática de governar.
Só é possível em um país rico. Cada democrata britânico tem nove ou
dez escravos trabalhando nas colônias. A antiga sociedade grega era
uma democracia escravista. O mesmo se pode dizer, de certa forma,
da democracia inglesa, holandesa, francesa, belga. Formalmente os
EUA não tem colônias, mas tem a América Latina. De certo modo todo
o planeta é uma colônia americana. Contam ainda com um passado
carente de toda a tradição feudal. São um país historicamente privile-
giado. Mas os países capitalistas privilegiados diferem das nações ca-
pitalistas mais “párias” só do ponto de vista do atraso. Itália, a nação
mais pobre dos países capitalistas, foi a primeira a se tornar fascista.
Alemanha veio em segundo lugar, porque não possuía colônias nem
países ricos satélites. Todos os demais caminhos lhe estavam veda-
dos. Por seu lado, a classe operaria se mostrou incapaz de substituir
a burguesia. Agora chegou a vez dos EUA, inclusive antes que a da
Grã-Bretanha e França.
O dever de nosso Partido é se dirigir a todos os trabalhadores
americanos e bombardeá-los um e outra vez até que compreendam a
situação dos EUA, que não é uma crise conjuntural, senão uma crise
social global. Nosso Partido pode desempenhar um papel muito im-
portante. Para um Partido jovem imerso em um ambiente carregado
de tradições e hipocrisias é difícil lançar uma consigna revoluciona-
ria. Nos dirão que “isso é uma fantasia”, que “é inadequado para a
América”, mas pode acontecer que a situação tenha mudado quando
forem divulgadas as consignas revolucionarias de nosso programa.
Alguns rirão. Mas a coragem revolucionaria não consiste só em ser
fuzilado, senão também suportar as gozações de pessoas estúpidas
que se encontram em maioria. No entanto, quando um deles for vi-
tima de uma sova orquestrada pelo bando de Hague, pensará que é
bom ter um piquete de autodefesa e mudará sua atitude irônica.
PERGUNTA: Mas acaso a ideologia dos trabalhadores não é parte
dos fatores objetivos?
TROTSKI: Para nós, como minoria, tudo é objetivo, inclusive o es-
tado de ânimo dos trabalhadores. Mas temos que analisar e distin-
guir entre aqueles elementos da situação objetiva cuja transforma-
150
ção depende de nossa atuação e aqueles que não. Por isso dizemos
que o programa se adapta aos dados fundamentais e estáveis da situ-
ação objetiva e que nossa tarefa consiste em adaptar a mentalidade
das massas àqueles dados objetivos. Adaptar sua mentalidade é uma
tarefa pedagógica. Devemos ser pacientes etc. A crise da sociedade é
a base de nossa atividade. A consciência política em um cenário que
devemos mudar. Temos que dar uma explicação cientifica da socie-
dade e expô-la com clareza às massas. Essa é a diferença entre mar-
xismo e reformismo.
Os reformistas tem bom olfato para adivinhar quais são os dese-
jos de seu auditório. Assim, Norman Thomas, se dobra a eles. Mas
isso não é uma atitude revolucionaria séria. Devemos ter a valentia
de sermos impopulares, de dizer “sois uns cretinos”, “sois estúpidos”,
“os traem” e de quando em quando, em meio a um escândalo, lançar
apaixonadamente nossas ideias De quando em quando tem que agi-
tar para o trabalhador e a seguir voltar a agitar-lhe. Tudo isso perten-
ce à arte de dar-lhe explicações à propaganda. Mas uma propaganda
cientifica, que não faz concessões ao estado de ânimo das massas.
Nós somos os mais realistas, porque levamos em conta dados que
nem a eloquência de Norman Thomas pode mudar. Se alcançamos
um êxito imediato, nadaremos a favor da corrente das massas. Essa
corrente é a revolução.
PERGUNTA: As vezes penso que nossos dirigentes não se colocam
esses problemas.
TROTSKI: Talvez se deva a que uma coisa é compreendê-los e ou-
tra é senti-los com o corpo inteiro. Agora temos que nos convencer
da necessidade de mudar nossa política. É uma questão que não im-
porta só às massas, senão também ao Partido. E não só ao Partido, se-
não também aos seus dirigentes. Temos tido discussões, diferenças. É
impossível chegar a uma mesma postura simultaneamente. Sempre
aparecem fricções não só inevitáveis, senão inclusive necessárias. O
motivo deste programa foi provocar esta discussão.
PERGUNTA: Quanto tempo devemos conceder aos dirigentes para
abordar esta discussão?
TROTSKI: É difícil fixar. Dependerá de muitos fatores. Não po-
demos conceder-lhes muito tempo pois chegou a hora de empre-
ender uma nova orientação. Nova e velha por sua vez. Se baseia
em toda nossa atividade passada, ainda que agora se abra um novo
capitulo para o qual temos de mobilizar todas nossas forças, com
uma atitude mais enérgica. O importante, uma vez que o programa
tenha sido finalmente elaborado, é que conheçamos muito bem as
151
consignas e saibamos manejá-las habilmente, de forma a que se
empreguem simultaneamente as mesmas consignas em cada lugar
do país. Três mil pessoas podem dar a impressão de ser quinze ou
cinquenta mil.
PERGUNTA: Há companheiros que teoricamente pode estar de
acordo com este programa, mas contamos com camaradas experi-
mentados para levar suas consignas às massas? Teoricamente estou
de acordo, mas o que fazer com os trabalhadores atrasados de meu
sindicato?
TROTSKI: Nosso Partido é um Partido da classe trabalhadora
americana. Tens que levar em conta que nos EUA não houve um forte
movimento proletário, para não falar de uma potente revolução pro-
letária. Em 1917 não teríamos ganhado, se antes não tivesse havido
um 1905. Minha geração era muito jovem. Durante doze anos tive-
mos uma oportunidade memorável para refletir sobre nossas der-
rotas, aprender a corrigi-las e ganhar. Mas, mesmo então, voltamos
a perder frente aos novos burocratas. Esse é o motivo pelo qual não
podemos saber se nosso Partido conduzirá a classe operaria ameri-
cana diretamente à vitoria. É possível que os trabalhadores america-
nos, que são patrioteiros e cujo nível de vida é elevado, protagonizem
revoltas e greves. De um lado estará Hague; do outro Lewis. Isso pode
durar um longo período, anos e anos. Durante esse tempo nossa gen-
te se temperará, ganhará confiança em si mesma e os trabalhadores
dirão: “são os únicos capazes de encontrar a solução”. Só a guerra cria
heróis. Para começar contamos com elementos excelentes, educados
conscienciosamente, um bom Estado-maior não muito pequeno. Em
termos gerais sou muito otimista. Por outro lado, acho que a mudan-
ça de mentalidade dos trabalhadores americanos acontecerá em um
ritmo muito acelerado. O que fazer? Está todo mundo intranquilo,
buscando novidades. É uma situação muito favorável para a propa-
ganda revolucionaria.
Não devemos só levar em conta os elementos aristocráticos, se-
não principalmente as camadas mais pobres. Os trabalhadores ame-
ricanos cultos tem pontos a favor e pontos contra: por exemplo, sua
afeição aos esportes ingleses. Os esportes são muito bons, mas por
sua vez servem para desmoralizar os trabalhadores. Toda sua ener-
gia revolucionaria é consumida nos esportes. Os esportes foram cul-
tivados pela Grã-Bretanha, o mais inteligente dos países capitalis-
tas. O esporte deveria estar nas mãos dos sindicatos, como parte da
formação revolucionaria. No entanto, boa parte da juventude e das
mulheres carecem de possibilidades econômicas para eles. Devemos
152
nos dotar de tentáculos para penetrar em todos os lados, chegando
até os extratos mais profundos.
PERGUNTA: Acho que o Partido experimentou grandes progres-
sos desde a última convenção.
TROTSKI: Levou a cabo uma mudança de orientação muito im-
portante. Agora temos que usar esta arma de forma coerente. Uma
agitação geral e dispersa não entra na mente de quem carece de for-
mação. Mas se repetimos as mesmas consignas, adaptando-as à si-
tuação, então a reiteração, que é a mãe da educação, atuará também
na política. Frequentemente acontece que não somente o intelectual,
senão também o trabalhador acha que todos compreendem o que
ele aprendeu. Mas é necessário repetir as consignas com insistência,
diariamente e em todas as partes. Essa é a finalidade do projeto de
programa: oferecer uma impressão homogênea.
153
A
ATUALIZAÇÃO PROGRAMÁTICA
Em relação à
“inevitabilidade” do socialismo:
O que realmemte disseram Marx e
Engels
Jan Talpe
156
Na sociedade burguesa não há mais essas minorias dominadas
que podem se emancipar às custas de outros setores dominados, há
só “duas grandes classes, antagônicas entre si: burgueses e proletá-
rios”. Agora “o operário moderno, longe de melhorar sua condição
com o avanço da indústria, afunda cada vez mais abaixo das con-
dições de sua própria classe”. Agora “o movimento proletário é o
movimento autônomo da maioria absoluta no interesse da maioria
absoluta”. Agora “o avanço da indústria [...] substitui o isolamento
dos operários em concorrência por sua união revolucionaria atra-
vés da associação”. O que faz a com que a burguesia “produza antes
de mais nada seus próprios coveiros”.
Agora tampouco há a possibilidade de afundamento coletivo e de
uma volta atrás na roda da historia. 55 O afundamento da burguesia e
a vitoria do proletariado são dois lados da mesma moeda, são igual-
mente inevitáveis (gleich unvermeidlich). É por isso que Marx e En-
gels concluem que “tanto o afundamento da burguesia como a vitoria
do proletariado são inevitáveis” para qualquer desenvolvimento pos-
terior das forças produtivas.
157
classe; 2) derrubar a dominação da burguesia; 3) conquista do poder
político pelo proletariado.
Essa importante conclusão do Manifesto não aparece na polêmi-
ca. E é precisamente nisto – muito mais que em uma “definição” so-
bre a “inevitabilidade” 57 – que “a ‘teoria’ é submetida aos interesses
materiais”, 58 em particular “hoje, frente aos processos do leste”, 59
pelos novos renegados, dignos herdeiros de Kautsky e Stalin.
Leiamos o Manifesto 60
Para começar, Martín não cita corretamente essa famosa primeira
frase do primeiro capitulo do Manifesto: “A historia de toda a socie-
dade até a de nossos dias é a historia de lutas de classes”. 61 Troca a
expressão “a historia de lutas de classes” por “a historia da luta de
classes”. 62 É um detalhe importante, porque em relação às socieda-
des anteriores, o Manifesto fala de uma multiplicidade de classes
com suas lutas. Francesco e Ricardo, por seu lado, opinam que Marx
estaria dizendo que, assim como nas lutas do passado, também a luta
entre proletariado e burguesia pode acabar “ou [com uma] transfor-
mação revolucionaria de todo o sistema social ou [com o] extermínio
de ambas as classes beligerantes”. 63 Acontece que a tese dos autores
do Manifesto é justamente de que a luta entre proletariado e burgue-
sia já não é como nas lutas do passado.
Os companheiros devem ter se confundido com os erros de tradu-
ção, mas com relação às lutas do passado, o Manifesto não fala de um
“extermínio de ambas as classes” – cabe a pergunta: extermínio por
obra de quem? – senão de um “afundamento coletivo das [múltiplas]
classes em luta”. 64 Falar de ambas as classes, nas lutas do passado,
57 MV5, pág. 37 – A “enorme confusão ideológica” que acompanhou os acontecimen-
tos do leste não foi “alimentada por uma definição de Marx e Engels”. Foi alimentada
pela interpretação que a burguesia conseguiu impor na consciência em relação à
restauração. Foi alimentada, não pela tese da vitoria inevitável do socialismo, senão
pela tese de que o socialismo não servia; não pela tese da destruição inevitável do
capitalismo, senão pela tese de que o capitalismo era a única possibilidade.
58 MV5, pág. 58.
59 MV5, págs. 44-45.
60 Como dizem os companheiros Francesco e Ricardo, MV5 pág. 49.
61 Die Geschichte aller bisherigen Gesellschaft ist die Geschichte von Klassenkämpfen.
Tem que ter cuidado com as traduções do Manifesto em espanhol oferecidas na in-
ternet, frequentemente com falhas grosseiras.
62 MV5, pág. 43.
63 MV5, pág. 49.
64 “einen Kampf, der jedesmal mit einer revolutionären Umgestaltung der ganzen
Gesellschaft endete oder mit dem gemeinsamen Untergang der kämpfenden Klassen”.
158
é um erro crasso, já que é recém “em nossa época” que, para Marx e
Engels, “a sociedade inteira se divide cada vez mais em dois grandes
campos inimigos, em duas grandes classes.”
Os companheiros Francesco e Ricardo falam muito corretamente
que “se podemos falar de ‘determinismo’ em relação ao marxismo,
é só e exclusivamente neste sentido: [...] que as estruturas determi-
nam – em ultima instancia – as superestruturas. 65 Mas a coisa não
termina ai. Para os autores do Manifesto, isso era assim também nas
“sociedades até hoje” e havia então as duas possibilidades: transfor-
mação revolucionaria ou afundamento coletivo. Mas os dois jovens
autores de 1848 agregam essa conclusão muito importante: agora
esse fio da meada vermelho dos processos econômicos toma uma
forma distinta, de tal maneira que a sociedade socialista não pode
amadurecer no interior da anterior, o que implica que o proletariado
deve tomar o poder antes de poder realizar a sociedade socialista.
“Socialismo ou barbárie”
Esta expressão chega a ser central na polêmica, mas cabe escla-
recer que, contrariamente ao que se afirma, 66 a expressão não se
encontra tal e qual nem na obra citada de Karl Kautsky nem na de
Rosa Luxemburgo. Para ambos a alternativa é: avançar (ao socialis-
mo) ou regressar (à barbárie). O capitalismo leva “inevitavelmente”
a uma regressão, uma perda do conquistado pela burguesia em sua
vitoria revolucionaria sobre o feudalismo. E o socialismo é a única
possibilidade para que as forças produtivas possam de novo seguir
avançando. 67
Marx e Engels em 1848 já profetizavam essa regressão à barbárie
pela “rebelião das modernas forças produtivas contra o sistema vi-
gente de produção, contra o sistema da propriedade, que são as con-
dições de existência da burguesia e de sua dominação. [...] A socieda-
de se vê retraída repentinamente a um estado de barbárie momentâ-
nea [...] As armas com as quais a burguesia esmagou o feudalismo se
dirigem contra a própria burguesia.” 68
Para Kautsky, em 1892, “querer ficar a qualquer custo na civili-
zação capitalista é impossível; ou se avança para o socialismo ou se
65 MV5, pág. 64
66 MV5, pág. 61; MV5 pág.64
67 Em outro artigo, no mesmo numero do Marxismo Vivo (pág. 28), Martin Hernan-
dez também fala do socialismo como “A única alternativa para impedir que o impe-
rialismo faça retroceder toda a sociedade em direção à barbárie.” Sublinhado meu.
68 É a única vez que a palavra barbárie aparece no Manifesto.
159
regressa para a barbárie”. 69 E para ele, a “barbárie” é, que dada a
impossibilidade de qualquer desenvolvimento econômico posterior,
“a sociedade atual apodrece, como aconteceu há dois mil anos com o
império romano”.
Para Rosa, em 1915, o dilema é, mais que nunca, avançar ou re-
gressar, “ou a transição ao socialismo ou um regresso à barbárie”.
70
Em plena guerra mundial a perda do conquistado, a barbárie, é
– como já previam os autores do Manifesto – uma destruição sem
precedentes de forças produtivas, “circunstancialmente, nesta guer-
ra mundial – em que o triunfo do imperialismo leva ao aniquilamen-
to da cultura – e definitivamente, quando esse período de guerras
mundiais que começa agora vai seguir sem travas até suas ultimas
consequências” E Rosa conclui que: “como Engels profetizou há uma
geração, há quarenta anos, cabe a nós agora a escolha entre: o triun-
fo do imperialismo e o afundamento de qualquer cultura, como na
Roma antiga; [...] ou o triunfo do socialismo, quer dizer, a atividade
consciente de luta do proletariado internacional contra o imperialis-
mo e seu método: a guerra.”
Para Rosa, ao contrario do que dizem Francesco e Ricardo, 71 não é
“quando o capitalismo tenha colapsado” que “se abrirão duas vias: ou
a sociedade afundará posteriormente na barbárie ou avançará para
o socialismo”. É agora (em 1915, em plena guerra) que “cabe a nós”
aplicar “a atividade consciente” de resistir frente a avalanche de des-
truição massiva de meios de produção, própria da sociedade capita-
lista, que está ameaçando agora com “o afundamento de qualquer
cultura” e a perda das conquistas.
Assim que “a verdadeira origem de ‘socialismo ou barbárie’” 72
não data nem de 1915, nem de 1892, senão de 1848.
O detalhe do raciocínio de Marx e Engels tem limitações, já apon-
tadas por Trotski. 73 Mas isso não muda o fato de que a suposta “ine-
vitabilidade” atribuída aos autores significa somente uma limitação
objetiva do modo de produção capitalista. O mais importante não é
saber a quem ocorreu primeiro falar de inevitabilidade senão a con-
69 “Ein Beharren in der kapitalistischen Zivilisation ist unmöglich; es heißt entwe-
der vorwärts zum Sozialismus oder ruckwärts in die Barbarei”. Karl Kautsky, Das
Erfurter Programm, 1892 – IV- Der Zukunftsstaat – §6. Der Aufbau des Zukunfts-
staates. Destacado meu.
70 “Entweder Ubergang zum Sozialismus oder Ruckfall in die Barbarei”, Rosa Lu-
xemburgo, Die Krise der Sozialdemokratie, 1915 – Teil I. Destacado meu.
71 MV5, pág. 61.
72 Idem.
73 TROTSKI, Leon. “Noventa anos do Manifesto comunista”. (1937)
160
clusão que os jovens autores de 1848 tiram: que essa limitação obje-
tiva impede que seja constituída uma nova classe dominante no inte-
rior da anterior, e que, portanto, os proletários devem tomar o poder,
para poder começar a construção de um novo modo de produção, o
socialismo. Isto é o que escamoteiam os novos “teóricos” do socialis-
mo, 74 e que é valido mais que nunca “depois dos processos do leste”,
porque hoje, como já em 1848, há fundamentalmente duas grandes
classes antagônicas: burgueses e proletários.
161
política mundial do momento [1938] se caracteriza, antes de tudo,
pela crise histórica da direção do proletariado.” 77
162
por nossos mestres na mesma, incompatíveis com qualquer perspec-
tiva determinista.
Toda luta implica a possibilidade de perder. As circunstancias
concretas em cada momento são essenciais para estimar as possi-
bilidades concretas de ganhar, assim como as consequências de uma
eventual derrota. E cada derrota nos coloca o desafio de começar de
novo, ainda que, em geral, não devamos recomeçar do zero.
As circunstancias nas quais escreveram Marx e Engels não lhes
permitiam, por exemplo, prever a importância das classes interme-
diarias e a possibilidade do capitalismo evitar a concentração do
proletariado em grandes fabricas, mediante a terceirização. Seu oti-
mismo em relação à iminência de uma revolução socialista não foi
confirmado. Mas esse otimismo não foi um determinismo.
Trotski contava, por muitos anos, com uma regeneração da Ter-
ceira Internacional burocratizada, mas seu otimismo não foi um de-
terminismo. E teve que começar de novo, com a fundação da Quarta
Internacional.
Moreno estava convencido, até o final de sua vida, de que uma re-
volução política nos Estados operários burocratizados iria triunfar e
não se cansava de apontar indícios neste sentido. Este otimismo teve
um peso que não pode ser desprezado na dificuldade da LIT em fazer
frente às mudanças surgidas no mundo com a restauração capitalis-
ta. Mas não foi um determinismo. Moreno estava bem consciente da
conhecida alternativa formulada por Trotski. Só que, depois da que-
da do Muro de Berlim, custou à LIT o começar de novo.
Existiu um partido da LIT no país mais poderoso da Europa, Ale-
manha, mas foi sepultado em baixo dos escombros da queda do muro
de Berlim. Tivemos que começar de novos, e perdemos. Mas a tarefa
fica. E hoje mesmo estamos tentando outra vez começar de novo.
Fica em aberto inclusive a possibilidade de uma quarta época 81
na era capitalista, antes de chegar à superação do capitalismo pela
tomada do poder pelo proletariado e a realização do socialismo em
todo o planeta. Seria uma época à qual podemos dar o nome de bar-
bárie no sentido de que seria de extrema exploração brutal do pro-
letariado pela burguesia – um sentido diferente do termo utilizado
pelo Manifesto, Kautsky e Rosa, porque não seria uma volta para
trás. 82 Mas não seria uma “nova sociedade saída das entranhas da
81 Não confundir com a quarta etapa em curso da terceira época atual do capitalismo
82 Moreno utiliza a expressão neste sentido: A possibilidade de que “o capitalismo
mude e consiga uma nova forma de exploração [...] historicamente não está descar-
tada [...] Por isso falamos de barbárie. [...] uma nova sociedade de classes, pior que o
capitalismo, baseada em formas de trabalho semi escravistas”. (Conversações sobre
163
anterior”, como alternativa ao socialismo para fazer crescer de novo
as forças produtivas. Tampouco seria um afundamento coletivo das
classes em luta. Porque mais que nunca, há só “dois grandes campos
inimigos”. Seria uma vitoria brutal, histórica, de uma classe sobre a
outra, no interior do mesmo modo de produção capitalista. E nes-
te caso também teria que começar de novo, em uma luta duríssima
para tirar a humanidade desta barbárie, porque a necessidade para
a imensa maioria da humanidade permaneceria e a contradição ine-
rente ao sistema continuaria existindo.
Está excluída completamente a possibilidade do “afundamento
coletivo” das duas classes atuais em luta, na historia, definitivamen-
te? Não está! Mas agora não seria nem sequer uma volta para trás.
Seria o holocausto. “Socialismo ou holocausto [...] é a mesma antino-
mia [que socialismo ou barbárie], mas em um plano qualitativamen-
te superior, porque significa que a alternativa ao socialismo não é,
como antes, um retrocesso ao barbarismo, com a devastação de paí-
ses e civilizações – como aconteceu nas duas guerras mundiais – se-
não a destruição simples e plena da humanidade, o desaparecimento
da vida animal e vegetal da terra.” 83 O afundamento coletivo desta
vez de ambas as classes, seria então, como dizia Don Rodrigo, “por
falta de combatentes” 84, a única maneira de excluir definitivamente
qualquer “começar de novo”. E em relação a nós, para impedi-lo: “o
indispensável e lutar, lutar com raiva para triunfar”.
trotskismo -1986). Para Moreno “a barbárie [é] um novo regime de escravidão como
continuidade do sistema imperialista”. (Atualização do Programa de Transição, 1981
– tese 40) Veja também a citação de Martín Hernandez, MV5, pág. 43.
83 MORENO,Nahuel. Conversações sobre trotskismo (1986) cap. 1
84 “Et le combat cessa, faute de combattants” [“E o combate cessou por falta de com-
batentes”] é uma expressão celebre da peça de teatro Le Cid de Pierre Corneille,
criada em 1637.
164
De novo falamos sobre a
“inevitabilidade” do socialismo:
Porque Marx, Lenin e Trotski não
têm nada a ver com esta teoria
Francesco Ricci
166
2. Sobre a Tese Um, em resumo
Grande parte do artigo precedente, escrito junto com Ayala, res-
ponde – creio que de maneira suficiente e definitiva- a Tese Um. Re-
meto o leitor a este texto.
167
argumentos, utilizamos como evidencia adicional a “reductio ad ab-
surdum”, quer dizer, a redução ao absurdo, um método da lógica já
em uso em tempos de Euclides, que, por certo a camarada conhece
e que consiste em tomar por verdadeira uma premissa, comprovar
a conclusão absurda, para depois demonstrar o absurdo da própria
premissa.
Assim, demonstramos que se houve esta contradição (repito: esta)
deveríamos renunciar a nos definir como marxistas, dado que não
seria um erro de prognostico (que Marx cometeu em grande nume-
ro), senão que seria uma contradição que aniquilaria por completo a
teoria marxista. O marxismo só ficaria como um residual pré-históri-
co no desenvolvimento da teoria socialista. Seria como se descobrís-
semos nos livros de Einstein alguns fragmentos nos quais defende a
teoria geocêntrica, quer dizer, que o Sol gira ao redor da Terra, como
reivindicava Ptolomeu. Se fosse certo que Marx defendeu simultane-
amente a concepção “materialista” da historia, centrada na dialética
sujeito-objeto (unidade contraditória que se resolve na práxis revo-
lucionaria) e ao mesmo tempo, as vezes também na mesma pagina,
defendeu também uma concepção do socialismo como “inevitável”,
uma concepção produzida por um suposto “determinismo econômi-
co”, deveríamos arquivar o marxismo como fizemos com o Almagesto
de Ptolomeu, por mais brilhante que fosse seu autor.
168
sujeito-objeto, excluindo, portanto qualquer concepção de inevita-
bilidade, mas, ao mesmo tempo, um Marx que, quando escrevia, as
vezes deixava escapar de sua pluma algumas frases em contradição
completa com sua teoria não contraditória, frases antimarxistas que
não teria notado apesar de que Marx nunca publicou nenhum texto
sem ter relido e modificado se fosse necessário.
169
Não repito aqui a explicação de Riazanov dado que coincide com
a explicação que eu tinha dado naquele debate. Contei este episodio
porque nos proporciona uma lição metodológica sobre como tratar
os textos.
As frases sobre a inevitabilidade que vem citadas como evidencia
na tese de Hernández não são o resultado de uma contradição (nem
permanente como afirma a Tese Um, nem intermitente como afirma
a Tese Dois) e não são sequer lapsos de Marx (Tese Três). Simples-
mente se explica conhecendo a luta que Marx e Engels estava levando
contra as varias concepções utópicas do socialismo, um socialismo
como projeto abstrato sem relação alguma com o desenvolvimento
social: Marx e Engels demonstraram que o socialismo é historica-
mente determinado, que é uma necessidade histórica.
Não se trata de uma interpretação minha senão que Engels já ti-
nha dado em varias cartas dos últimos anos, nas quais explica que
ele e Marx tiveram que “tirar da corda” no sentido contrario ao que
faziam as correntes reformistas com as quais estavam lutando. Uma
explicação adicional de algumas palavras nos foram dadas, nos as-
pectos filológicos e terminológicos, pelo livro escrito por Michel Va-
dée (Marx, penseur du possible, Harmattan, 1998) onde se explicam
os diferentes significados que Marx atribui a algumas palavras que
foram mal interpretadas, como “leis”, “inevitabilidade”, socialismo
“cientifico” etc. Palavras que muitas vezes foram também mal tradu-
zidas alimentando controvérsias de quem reduziu o marxismo a um
cientificismo (como Althusser) ou de outros (Popper) que inventa-
ram um marxismo fatalista para desmontá-lo mais facilmente.
Alicia Sagra explica a (suposta) “contradição” na qual teriam caído
Marx e Engels com a “influencia das ciências” de seu tempo, que os
levaram a manifestar “alguns elementos de positivismo”. Hernández
cita as “leis da economia”.
Mesmo admitindo (e não estou nada convencido) que há em
Marx “alguns elementos de positivismo”, a companheira Sagra deve-
ria explicar como a partir “alguns elementos” se teria gerado aquela
que segundo Hernández seria “toda uma concepção’ que a partir de
Marx “impregnou o marxismo por mais de cem anos”. Quer dizer,
deveria explicar se trata-se de algo que mudou qualitativamente o
marxismo. E, neste ultimo caso, como podemos seguir reivindican-
do o marxismo.
Em relação a Hernández, deveria recordar que quando Marx
fala de “leis” na economia, diferente de Ricardo e dos economis-
tas burgueses, entende tendências historicamente determinadas,
170
portanto, fala de leis entre aspas, não comparáveis com as leis na-
turais. Quando Marx e Engels falam do fator econômico que é – em
ultima instancia – “determinante” estão falando das relações de
produção que são relações sociais que as classes, com sua luta,
combinam para determinar e nas quais não por casualidade tem
um papel fundamental a violência, que dirige (em forma de re-
volução) o fluxo da historia exatamente porque este fluxo não é
“inevitável”
Para Marx o capitalismo é historicamente determinado e, portan-
to, é inevitavelmente destinado a falecer como todos os sistemas so-
ciais anteriores, mas não pelo efeito de um “colapso” econômico ou
por uma crise sem solução senão pelo efeito do desenvolvimento (so-
cialismo) ou da degradação (barbárie) da sociedade. As revoluções
são o auge a que periódica e inevitavelmente nos leva a inevitável
luta entre as classes nas quais a sociedade está dividida. Aqui está o
inevitável. Mas para Marx (como para todos nós) não é inevitável o
socialismo. Ao contrario, se as massas dirigidas pelos marxistas não
conseguem destruir o capitalismo, será o capitalismo quem levará a
uma involução a humanidade inteira, o que levará à barbárie com-
pleta.
É Engels que esclarece (no Anti-Duhring) o que entende quando
fala de “inevitabilidade” e também de “certeza” da vitoria, explican-
do que é a sociedade capitalista (elemento esquecido pelos utopis-
tas) que oferece o “empurrão propulsor” das revoluções e do socia-
lismo que a partir dali pode surgir. Na mesma pagina na qual fala
desta “certeza” do socialismo acrescenta que é uma certeza relativa,
porque se os revolucionários não são capazes de fazer a revolução,
o capitalismo levará a sociedade “para a ruína, como uma locomoti-
va cujo maquinista é demasiado débil para abrir a válvula de escape
bloqueada”.
Marx e Engels trabalham com o conceito de “possibilidade real”
(Hegel), quer dizer, de uma possibilidade que não é abstrata senão
que é “potencialmente” concreta e historicamente determinada. E
falam de socialismo “cientifico” como explica Marx (nos Comentá-
rios Críticos a Estado e Anarquia de Bakunin), “só em antítese com
o velho socialismo utópico que pretende dar de beber às massas
novas fantasias em vez de limitar sua ciência ao conhecimento do
movimento social feito pelas próprias massas populares”. Observa-
mos, então, que não há “elementos de positivismo”, dos quais fala a
companheira Sagra.
171
7. Lenin e Trotski na luta contra a inevitabilidade
Hernández sustenta que Lenin e Trotski não teriam se contrapos-
to à concepção da “inevitabilidade do socialismo”, e que, ademais,
Trotski a teria defendido.
Para responder nos limitamos a reportar alguns textos que de-
monstram categoricamente como Trotski sempre se contrapôs ati-
vamente a qualquer teoria de inevitabilidade e como utilizava esta
palavra num sentido oposto àquele que lhe atribui Hernández.
O leitor poderá ver que não são frases tiradas do contexto, porque
todo o contexto da obra de Trotski vai no sentido de rechaçar o con-
ceito de inevitabilidade. Para se convencer disto tem só que pensar a
teoria da revolução permanente baseada na “lei” do desenvolvimen-
to desigual e combinado e sobre a negação das teorias do socialismo
por etapas (e de “evolução natural” do socialismo); é difícil encontrar
algo que com mais eficácia exclua e seja um contraste total e ativo
com a teoria da inevitabilidade e qualquer “elemento de positivismo”.
Comecemos com Lenin: sua redescoberta da dialética hegeliana
(nos Cadernos Filosóficos), o rechaço de uma concepção causalista
em favor da dialética causa-efeito, a polemica contra a redução feita
por Kautsky do marxismo a um determinismo evolucionista é a base
para compreender a degeneração da Segunda Internacional. É sobre
esta base que se coloca a mudança de posição de Lenin sobre a “di-
tadura democrática dos operários e camponeses” e as Teses de Abril
que armam a revolução de Outubro. Mas a Revolução de Outubro foi
possível também porque em toda sua vida Lenin tinha lutado contra
qualquer concepção da inevitabilidade. O que é na realidade a luta
contra o menchevismo? E o que é a concepção de partido de vanguar-
da, que leva o socialismo “do exterior” ao desenvolvimento normal
da luta de classes? Se a vitoria do socialismo fosse o produto das leis
econômicas que empurram inevitavelmente aos homens, não seria
necessário construir o partido que leva o socialismo “de fora” ao
combate cotidiano entre as classes. Como se pode escrever que Lenin
não teria nunca se contraposto à concepção da inevitabilidade? Na
realidade o fez não só Lenin senão o primeiro Kautsky (quando ainda
era marxista): é com Kautsky que Lenin aprendeu que “o socialismo
e a luta de classes surgem juntos, ainda que de premissas diferentes;
não se derivam uma da outra.” E o que é esta afirmação (que está na
base de toda a concepção de partido de Lenin) se não uma refutação
ativa da ideia de que o socialismo seria o produto do empurrão inevi-
tável que a “economia” impõe à ação humana?
172
Voltando a Trotski, sobre New International de dezembro de
1935 West (Burnham) critica Eastman que a partir da mesma pas-
sagem do Manifesto citada por Hernández chega às mesmas conclu-
sões que Hernández sobre Marx. Burnham diz:
Acho que (...) Eastman se equivoca e que este erro surge por ter tirado algumas
palavras de Marx fora do contexto”. Burnham explica que Marx concebe a
“inevitabilidade” como o possível salto de qualidade das possibilidades
inscritas no capitalismo, quando se determinam uma serie de condições
necessárias e em particular aquela subjetiva. “A teoria da inevitabilidade
entendida como o socialismo que inevitavelmente triunfará é típica não de
Marx, senão do kautskismo antes e do stalinismo depois: quer dizer de todos
os que eliminam a práxis revolucionaria85.
Até aqui parece que Trotski dizia que as “causas objetivas” diri-
gem inevitavelmente a ação dos homens (tese que Hernández atribui
também a Marx). Mas depois agrega:
Se o partido operário, apesar das condições favoráveis, se revela incapaz de
levar o proletariado à conquista do poder, a vida da sociedade continuará,
necessariamente, sobre bases capitalistas até uma nova crise ou uma nova
guerra; talvez até a derrubada completa da civilização europeia”. O que
aconteceu com Trotski que, segundo Hernández, “assim como Lenin, sempre
defendeu a tese de Marx [da inevitabilidade]?
85 www.marxists.org/archive/shachtma/1941/08/Trotski2.htm
173
Segundo Hernández, o conceito de “socialismo ou barbárie” seria
alheio a Marx e nunca tinha sido usado – com o significado que lhe
dá Rosa Luxemburgo – antes de Rosa. Trotski não está de acordo e
afirma que é um conceito já presente “um numero incalculável de ve-
zes” de Marx em diante. Não só isso, Trotski explica em que sentido é
utilizada (por Marx e também por ele mesmo) a palavra “inevitável”
Em um de seus textos mais importantes, Em defesa do marxismo
(1939), Trotski escreve: “A concepção marxista da necessidade histó-
rica não tem nada a ver com o fatalismo. O socialismo não vai se reali-
zar “por si próprio” senão que será o resultado da luta de forças vivas,
classes e partidos. A vantagem crucial para o proletariado nesta luta
é que ele representa o progresso histórico, enquanto que a burguesia
encarna a reação e a decadência. Esta é a fonte de nossa fé na vitoria
[aqui encontramos a inevitabilidade mas em um sentido diferente de
como a entende Hernández e segue com o parágrafo seguinte]. Mas
temos o perfeito direito de nos perguntar: o que acontecerá se ven-
cem as forças da reação? Os marxistas formularam um numero incal-
culável de vezes a alternativa: ou o socialismo ou a volta à barbárie.”
Repetimos: “um incalculável numero de vezes”, para Trotski (dife-
rente de Hernández) não é de forma alguma uma “inovação” de Rosa
Luxemburgo.
E em Relação sobre o balanço do III Congresso da Internacional
Comunista, em 1921, Trotski explica o que os marxistas entendem
quando falam de “inevitabilidade”. “Assim a burguesia e a classe ope-
raria se encontram em uma situação que torna nossa vitoria inevi-
tável, não por certo em um sentido astronômico, no sentido da ine-
vitabilidade do sol se por, senão inevitável em um sentido histórico,
no sentido que, se nós não conseguimos a vitoria, a sociedade inteira
e a civilização inteira estarão condenadas. (...) Não, a historia parece
dizer à vanguarda proletária (...) ‘Tens que saber que se não ganha
e derrota a burguesia perecerá entre as ruínas da civilização. Tenta,
portanto, realizar esta tarefa!86
Talvez tivesse bastado esta afirmação de Trotski para demonstrar
que Hernández se equivoca ao afirmar que Trotski, “assim como Le-
nin, sempre defendeu a tese de Marx [da inevitabilidade]” e também
para explicar o que entende Marx quando utiliza a palavra “inevitável”.
Mas não perdemos o tempo: se este debate nos permite resgatar
o marxismo que todos nós, sem distinções, reivindicamos, é igual-
mente útil.
86 Tradução do autor a partir da versão em inglês: www.marxists.org/archive/Trot-
ski/1924/ffyci-1/ch26.htm
174
O feminismo radical e o surgimento
das teorias do patriarcado –
Um ponto de vista marxista
Florence Oppen
176
elaborada pelos homens, a partir de experiências masculinas e que
as experiências femininas, suas epistemologias e portanto seus con-
ceitos, são e serão incomensuráveis e alheios aos conceitos da teo-
ria-ciência que manejamos90. Para nós marxistas parece que fugir da
precisão teórica e conceitual não tem nada de feminista ou progres-
sista, senão que é mais um obstáculo político para a luta. Não ter uma
teoria clara para a revolução socialista e a liberação das mulheres
nos condena a nos mantermos no nível da ideologia dominante e do
impressionismo e isso não tem nada de útil nem emancipador. Não
podemos fazer de nosso caráter de exploradas, oprimidas, subalter-
nas e dominadas uma virtude e um refugio para fugir dos debates
teóricos e políticos que nos são apresentados na hora de lutar e nos
organizarmos.
Não obstante, podemos fazer um esclarecimento preliminar,
incompleto e instável dos distintos usos que as feministas deram
ao conceito de patriarcado em suas elaborações escritas, tentando
estabelecer as diferenças e os pontos comuns para compreender
quais problemas quiseram resolver as teorias feministas de pa-
triarcado e que resposta lhes damos do ponto de vista marxista.
Para algumas feministas radicais ou socialistas, o patriarcado é
meramente uma superestrutura ideológica (Juliet Mitchell), ou
política, localizada na lei e no Estado (Carole Pateman e Zillah Ei-
senstein); para outras se trata da simples soma das manifestações
de opressão nos distintos âmbitos e níveis sociais (Kate Millett)
ou do resultado da evolução tecnológica da sociedade e da relação
entre diferenças biológicas que consistem no controle da capaci-
dade reprodutiva das mulheres ou de sua sexualidade (Shulamith
Firestone, Susan Brownmiller)91.
Finalmente, no melhor dos casos, houve uma tentativa de se re-
ferir ou integrar na analise do patriarcado elementos da teoria mar-
xista nas chamadas correntes materialistas, socialistas ou marxistas
do feminismo. Nestas o patriarcado foi pensado mais concretamente
como uma divisão desigual do trabalho por sexos, assim o teoriza-
90 Ver Sandra Harding, “The instability of the analytical cateogries of feminist the-
ory”, Signs, vol. 11, no 4. (1986).
91 Para Juliet Mitchell, Carole Pateman y Zillah Eisentein ver Psychoanalysis and Fe-
minism (Psicoanálisis e feminismo, 1974), The Sexual Contract (1988) e “Capitalist
Patriarchy and the Case for Socialist Feminism” (“O patriarcado capitalista e a ne-
cessidade de um feminismo socialista”, 1978), respectivamente. As principais obras
de Kate Millett y Shulamith Firestone, que discutiremos um pouco mais em detalhe
mais adiante, são Sexual Politics (Políticas sexuais) e The Dialectic of Sex (A dialética
do sexo).
177
ram as feministas materialistas como Christine Delphy ou Lidia Fal-
cón; como um sistema de exploração do trabalho reprodutivo das
mulheres tal e como o teorizaram feministas socialistas ou marxistas
como Heidi Hartmann, Maria Rosa Dalla Costa, Silvia Federici ou Sel-
ma James; ou finalmente como um sistema de exploração e controle
de outro tipo de produção designado às mulheres (diferente da pro-
dução de mercadorias), a produção da vida, como sustentaram Ma-
ria Mies ou Veronica Bennhold-Thomsen92. Neste caso o feminismo
marxista ou socialista tentou reconceitualizar e repensar conceitos
chaves da teoria marxista (como o da divisão social do trabalho, o
trabalho produtivo, o trabalho reprodutivo e o próprio conceito de
produção) para pensar a condição social e material das mulheres nas
sociedades de classes, e em particular no capitalismo. E, portanto,
dedicaremos um artigo especial para debater estas teorias que esta-
belecem um dialogo mais estreito com tradição marxista.
Vemos, pois, que ao invés de haver alguma teoria do patriarca-
do não haveria uma, senão muitas. O importante e distintivo destas
teorias do patriarcado, do sistema de poder dos homens, não é que
sejam as únicas que explicam a existência de desigualdades sociais
entre homens e mulheres, senão que são teorias que afirma que a
divisão hierarquizada entre homens e mulheres é uma divisão que
estabelece um antagonismo estrutural na sociedade. Ou dito de outra
forma, que a principal relação de poder que estrutura a sociedade
patriarcal ou o patriarcado é a de dominação das mulheres pelos ho-
mens.
Então, apesar das diferenças entre as diferentes teorias do pa-
triarcado que se desenvolveram na década de 1970, que situam o
patriarcado em âmbitos muito diferentes da vida social, todas afir-
maram com contundência que o elemento determinante que hie-
rarquiza e divide a sociedade em dois é uma relação de opressão e
subordinação das mulheres pelos homens. Para algumas variantes
92 Ver Lidia Falcón, La razón feminista (1981-1982) y Mujer y poder político (1992),
Critsine Delphy, The Main Ennemy: A Materialist Analysis of Women’s Oppression
(london 1977); Heidi Hartmann, “Capitalism, Patriarchy and Job Segregation”, 1976,
y “The Unhappy marriage of Marxism and Feminism: Towards a More Progressive
Union”, Capital and Class, 1979; Maria Dalla Costa, The Power of Women and the Sub-
version of the Community, Bristol, Falling Wall Press, 1973; Selma James, Sex, Race
and Class- The Perspective of Winning, a Selection of Writings 1952-2001 Pm Press,
2011; Silvia Federici, Revolution at Point Zero, Housework, Reproduction and the Fem-
inist Struggle, Brooklyn/Oakland 2012; Maria Mies, Patriarchy as Accumulation on
a World Scale: Women in the International Division of Labour, London: Zed books,
1986; Veronica Bennold-Thomsen, The Subsistence Perspective: Beyond the Global-
ised Economy (1999).
178
mais “radicais”, como as de Delphy ou Federici, o patriarcado é tam-
bém, ou principalmente, um sistema de “exploração” das mulheres
pelos homens, o que as levou a falar de patriarcado capitalista. Nes-
te ultimo caso, o que tais teorias deixam entender é que por trás do
que percebemos como “capitalismo” (e que Marx definiu como tal)
existe uma estrutura mais profunda e antiga, uma estrutura que
Marx e Engels por serem homens não chegaram a analisar e esta
estrutura estabelece a dupla relação de exploração e opressão que
é o patriarcado. O patriarcado, capitalista ou não, seria em todos
os casos o que revela a essência da sociedade, já que estabelece a
relação mais estrutural e fundamental de todas, a que está por trás
e explica o resto das relações sociais. Quer dizer que, inclusive as
feministas marxistas ou socialistas que querem combinar ambas
as teorias (marxismo e feminismo), reivindicam o feminismo e a
teoria do patriarcado como base. Ainda que seja certo que em suas
analises, que são mais sofisticadas que os das feministas radicais,
as feministas socialistas conseguem “combinar” as relações sociais
do capitalismo (relações de classe) com as relações patriarcais (re-
lações de sexo), a dominante é, para estas teorias, a patriarcal. Por
isso faz sentido que antes de abordar em detalhe as feministas so-
cialistas e marxistas, dediquemos um pouco de espaço para enten-
der o conceito de patriarcado compartilhado na década de 1970 e
elaborado pelo feminismo radical.
179
Mais adiante, em Economia e Sociedade (1968), o sociólogo Max
Weber definiu o patriarcado ou mais exatamente o “patrimonialis-
mo” como uma forma de governo baseada no poder dos pais de fa-
mília, própria do longo período feudal na Europa, quer dizer, como
uma forma de organização social onde o poder da monarquia patri-
monial é uma projeção aumentada dos múltiplos patriarcados (ou
estruturas familiares) nos quais se sustenta93. É importante apontar
que Weber só analisou a superestrutura da sociedade, mas em ne-
nhum momento conectou essa organização política com o sistema de
exploração do trabalho camponês que representava o modo de pro-
dução feudal. Esse uso weberiano do termo é o que circulou mais nos
âmbitos universitários do pós-guerra e serviu como ponto de partida
para Millett e outras teóricas e ativistas feministas.
A teoria marxista fez desde o inicio um uso muito cuidadoso do
termo patriarcado, tentando se apoiar nas pesquisas dos antropó-
logos. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado
(1884), Engels, como o resto dos antropólogos de sua época, usa
o termo “patriarcal” para caracterizar um tipo de família, em uma
época onde as famílias eram comunidades, por isso Engels fala
em um momento de “comunidade familiar patriarcal”. Na analise
materialista de Engels, mais especificamente, a família patriarcal
é uma forma transicional da família que surge entre as famílias ba-
seadas no direito materno ou o que Engels chama de “matriarcado”
(mas que convém mais descrever como famílias matrilineares ou
matrilocais) e a família monogâmica, que é a forma da família até
hoje, transformada pelo capitalismo. A família patriarcal é a família
que surge, segundo a hipótese dos antropólogos, quando a filiação
feminina e o direito materno são substituídos pela “filiação mas-
culina e o direito hereditário paterno”, pelo qual o pai se torna o
chefe da família e se constitui em torno do gene paterno. A família
patriarcal se caracteriza pelo aumento da autoridade e do poder
do pai de família sobre o grupo e a incorporação de membros de-
pendentes e servis nesta estrutura de dominação. Mas para Engels
(como para Morgan) esta família permanece por um período rela-
tivamente curto da historia humana porque a maior mudança que
vai cristalizar a opressão das mulheres ainda vai acontecer. O que
vai surgir muito rapidamente, com o desenvolvimento das forças
produtivas, é o aparecimento da sociedade de classes e portanto
93 Ver Adams, Julia. “The Rule of the Father: Patriarchy and Patrimonialism in Early
Modern Europe”, Max Weber’s Economy and Society: A Critical Companion, ed Charles
CAMIC, Stanford: Stanford University Press, 2005.
180
de um novo tipo de família baseada no matrimonio monogâmico,
onde o homem reduz sua esposa a uma propriedade e garante as-
sim uma autoridade firme e generalizada no sistema social. Neste
âmbito o desenvolvimento da antropologia não fez senão corrobo-
rar a tese de Engels, corrigindo quando foi necessário a imprecisão
histórica ou empírica de sua obra, o que é um avanço para o mar-
xismo. Há um acordo entre os antropólogos contemporâneos sobre
que a grande “revolução neolítica” (há entre 8.000 e 10.000 anos),
com o surgimento da agricultura em maior escala foi o que desen-
cadeou grandes mudanças nas forças produtivas e depois de um
longo processo deu origem às primeiras estratificações sociais, que
se tornaram relações de classe e poder. Engels e os antropólogos do
século 19 erraram, por exemplo, na hipótese de um matriarcado ge-
neralizado, quer dizer, em achar que houve uma evolução linear de
família de tipo matrilinear para famílias de tipo patrilinear, já que
se provou que ambas as formas coexistiram em distintos lugares ou
também se equivocaram em localizar as primeiras sociedades de
classe na Grécia antiga, já que estas emergiram no sudoeste da Ásia,
na Mesopotâmia, há uns 6.000 anos e depois no Egito, Irã e China e
finalmente chegaram à Europa94.
O importante para os marxistas é entender que Engels buscou
na ciência antropológica mais avançada de sua época os estudos de
Morgan e Bachofen, elementos para desnaturalizar a opressão da
mulher e fazer sua historia critica com o método materialista e his-
tórico, para entender e expor a origem das relações de exploração e
opressão. Para arrancar a exploração e opressão pela raiz, foi neces-
sário elaborar a teoria de como pode ser possível que essas relações
se estabeleceram como tais e se cristalizaram, já que não vem dadas
pela natureza e existiram sociedades que lhes foram alheias. Engels
percebeu, pois, que houve uma mudança qualitativa na família, que
não foi só uma mudança nas relações de parentesco ou filiação (de
matrilinear a patrilinear), senão uma mudança do papel social da fa-
mília e sua localização nas comunidades ou sociedades primitivas.
Essa mudança ocorre com a sociedade de classes, que dá um novo
caráter à família.
“Esta forma de família [a família patriarcal] aponta a transição do
matrimonio sindiásmico [por grupos] à monogamia. Para assegurar
a fidelidade da mulher e, consequentemente, a paternidade dos fi-
94 Para uma boa atualização antropológica do trabalho teórico de Engels ver Chris
Harman, “Engels and the Origins of Human Society”, Internacional Socialism, 265
(1992)
181
lhos, aquela é entregue sem reservas ao poder do homem: quando
este a mata, não faz mais que exercer seu direito”.
E depois acrescenta que com esta mudança: “Em qualquer caso,
a comunidade familiar patriarcal, com posse e cultivo do solo em
comum, adquire agora um significado muito diferente do que tinha
antes”. A mudança qualitativa para Engels é, pois, o surgimento da
propriedade privada da terra, dos bens e, portanto, também das mu-
lheres e dos filhos, que passam a ser percebidos como a propriedade
do pai de família. Esta mudança das relações sociais e o surgimento
de classes é o que modifica o caráter das relações de poder que já
existiam na família, dando uma base material e estabilidade às rela-
ções de dominação. A família monogâmica, também a unidade social
básica de produção nessa época, se baseia na propriedade privada e
estabelece uma hierarquia dos sexos, já que “se baseia no predomí-
nio do homem, seu fim expresso é o de procriar filhos cuja paternida-
de seja indiscutível e esta paternidade indiscutível é exigida porque
os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, hão de entrar um dia em
posse dos bens de seu pai.”
Para Engels a grande mudança da historia, que institucionaliza a
opressão da mulher, não é simplesmente o estabelecimento da lei do
pai ou da preferência paterna na hora de estabelecer a linhagem, se-
não as relações sociais dentro da família, que passam a ser com a fa-
mília monogâmica, pela primeira vez na historia, relações de classe:
Tal foi a origem da monogamia, segundo pudemos segui-la no povo mais
culto e mais desenvolvido da antiguidade. De maneira alguma foi fruto
do amor sexual individual, com o que não tinha nada em comum, sendo o
calculo, antes como agora, o móvel dos matrimônios. Foi a primeira forma
de família que não se baseava em condições naturais, senão econômicas
e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade
comum primitiva, originada espontaneamente. Preponderância do homem
na família e procriação de filhos que só poderiam ser dele e destinados a
herdar-lhe: tais foram, abertamente proclamados pelos gregos, os únicos
objetivos da monogamia95.
182
É claro que para os marxistas, desde Engels e Marx, são as relações
sociais de propriedade privada e no final a “propriedade” das mulhe-
res e a apropriação do trabalho alheios, as que dão a base material
da opressão da mulher. Não obstante, as feministas radicais deram
outro sentido ao termo patriarcado, o re-conceitualizaram para abar-
car um âmbito muito alem da família e passaram a usá-lo para definir
as relações de poder no conjunto da sociedade, que garantia que os
homens (todos os homens) estão “acima” de ou tem o poder sobre as
mulheres (todas as mulheres) em todos os níveis da sociedade. Quer
dizer que para as feministas radicais a sociedade em seu conjunto é
um patriarcado ou está marcada por relações patriarcais em todos os
âmbitos e dimensões que enfrentam os homens e as mulheres.
183
de Chicago publicou um manifesto “To the Women in the Left” (Para
as mulheres na Esquerda), defendendo a “secessão” das mulheres do
sistema patriarcal masculino, do mesmo modo que a ala radical do
movimento negro reivindicava a autodeterminação frente ao Estado
norte-americano98. Desde seu inicio, pois, o feminismo radical esteve
associado, em sua estratégia política ao separatismo e a luta de um
sexo contra o outro para acabar com o sistema de dominação chama-
do patriarcado, defendendo uma revolução feminista.
O feminismo radical se pensou a si mesmo como uma corrente da
Nova Esquerda que queria demarcar-se tanto das posições reformis-
tas liberais como do stalinismo, do chamado “socialismo realmente
existente” (que injustamente associaram com o marxismo e o socia-
lismo em geral). Frente à “esquerda tradicional” que tinha considera-
do o problema da mulher como algo secundário que se solucionaria
automaticamente com a chegada ao socialismo e que reproduzia den-
tro de suas organizações relações de opressão, o feminismo radical
argumentou que as relações de poder, que permitiam a submissão
das mulheres aos homens, não podia ser reduzido a simples reflexos
ou instrumentos para preservar a exploração econômica, que eram
distintas e deveriam ser pensadas com conceitos próprios. Antes de
prosseguir devemos esclarecer que nós que reivindicamos o marxis-
mo revolucionário estamos de acordo com o fato de que as relações
de opressão não são só “meios” para explorar ou dividir a classe tra-
balhadora, que tem uma existência social própria e semi-autônoma
e por isso diferenciamos o conceito de opressão do de exploração.
Não obstante, não estamos de acordo com a submissão inversa que
184
quer fazer o feminismo radical (reduzir a exploração e as relações
de classe à opressão entre sexos) nem com a ideia de que ambas as
relações tenham hoje um significado igual na hora de organizar a so-
ciedade, ainda que sejam diferentes e estejam combinadas, os mar-
xistas afirmamos que são as relações de classe as que emergem como
dominantes, quer dizer, as que decidem em ultima instancia, que
opressões são necessárias e quais são prescindíveis e que dimensão
podem tomar.
A maioria das mulheres norte americanas que na década de 70
iniciaram e dirigiram a segunda onda de lutas pelos direitos das
mulheres e se identificaram como “feministas” eram ativistas que
tinham participado nas lutas massivas contra a guerra do Vietnã e
pelos direitos civis, muitas delas desenvolvendo uma consciência
contra o “sistema” ou o “capitalismo” mas, como explica uma delas,
Robin Morgan:
Enquanto pensávamos que estávamos envolvidas na luta para criar uma
nova sociedade, fomos nos dando conta lenta e tristemente que estávamos
fazendo o mesmo trabalho dentro do Movimento como fora dele: escrever
a maquina os discursos que iam ser pronunciados pelos homens, fazer
o café mas não a política, ser os acessórios dos homens cuja política ia
supostamente substituir a ordem antiga99.
99 “Thinking we were involved in the struggle to build a new society, it was a slowly
dawning and depressing realization that we were doing the same work in the Move-
ment as out of it: typing the speeches men delivered, making coffee but not policy,
being accessories to the men whose politics would suposedly replace the Old Order.”
Qted in Alice Echols, Daring to be Bad, p. 23.
100 “most early women’s liberation groups were dominated by “políticos” who at-
tributed women’s oppression to capitalism, whose primary loyalty was to the left.”
Echols, Daring to be Bad, p. 3.
185
pensadas em termos políticos e que o gênero, e não a classe, era a
principal contradição”101.
E daí surgiu a necessidade de dar uma base teórica a uma locali-
zação social e a um projeto político, que resultou na elaboração das
distintas teorias do patriarcado. Mas o feminismo radical não parou
ai, na hierarquização das relações de sexo sobre as de classe, senão
que afirmou que as relações de dominação patriarcais são anterio-
res não só ao capitalismo senão ao surgimento da exploração e que,
portanto, sua origem não tem nada a ver com a sociedade de classes.
E essa “radicalidade” teórica do feminismo será a fonte de muitos de-
bates internos e debilidades. Sua maior dificuldade foi e segue sendo
onde localizar então a origem da opressão sem voltar à biologia e,
portanto, a um essencialismo naturalista. De fato, uma das maiores
tensões teóricas internas entre as feministas radicais tem a ver com
a relação que estabelecem entre a biologia ou natureza humana e o
patriarcado.
Algumas feministas radicais, como Millett ou Wittig se opuse-
ram radicalmente à ideia de que a opressão da mulher tivesse raí-
zes naturais e afirmaram que era algo absolutamente cultural e so-
cial, defendendo uma posição conhecida como o “construtivismo
radical”102. O materialismo e o marxismo foram de fato as primei-
ras teorias a rechaçar qualquer tipo de essencialismo ou a ideia
de que o homem, a mulher ou a humanidade de conjunto tenha
“destino biológico algum”. Não existe uma “essência humana”, se-
não que o humano – e todas suas categorias – são uma construção
social e histórica em constante mutação. O que o marxismo afirma,
diferente do construtivismo, é que não basta dizer que o sexo ou o
gênero (como a raça etc.) são categorias socialmente criadas, quer
dizer, não basta fazer um trabalho critico contra a naturalização
das opressões. O que preocupa os marxistas é explicar como fo-
ram geradas ou se formaram relações de sexo ou gênero cristali-
zadas de opressão e porque, para poder pensar como mudá-las e
lutar contra elas, quer dizer, elaborar uma política e uma estratégia
de liberação que implique na transformação real, material da so-
ciedade, muito além do importante e necessário trabalho critico
e intelectual. Outras feministas radicais, como Firestone ou Gre-
er, se remontaram à “natureza” para explicar a origem do sistema
101 “Radical feminists argued that women constituted a sex-class, that relations be-
tween women and men needed to be recastin political terms, and that gender rather
tan class was the primary contradiction.” .” Echols, Daring to be Bad, p. 3.
102 Ver Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays (El pensamiento hetero-
sexual y otros ensayos, 1992).
186
patriarcal. Para elas, as origens da opressão da mulher não estão
no patriarcado como estrutura sociocultural senão na biologia, na
função reprodutora das mulheres103.
Ainda assim, podemos destacar três elementos teóricos comuns
nas distintas formulações do feminismo radical que merecem uma
discussão: o caráter a-histórico e estruturalista do conceito de pa-
triarcado, a cooptação e inversão do marco marxista de analise e o
individualismo utópico contido no slogan popular do feminismo ra-
dical: “o pessoal é político”.
O primeiro traço está claramente presente no Políticas Sexuais,
onde Millett faz uma definição muito vaga e geral do patriarcado:
“Nossa sociedade... é um patriarcado. É um fato evidente à primeira
vista se considerarmos que tanto o exercito, como a indústria, a tec-
nologia, as universidades, a ciência, os cargos políticos, as finanças,
– quer dizer, toda fonte de poder em nossa sociedade, incluindo a for-
ça coercitiva da policia, está nas mãos dos homens”104. Não sabemos
muito bem segundo o livro de Millett quando surge o patriarcado
como tal, mas isto não é problema só de Millett senão da maioria das
teóricas feministas radicais. De fato, o caráter a-histórico do patriar-
cado que parece ter existido “desde sempre” é uma das principais
103 A feminista australiana Germaine Greer, por exemplo, passou do feminismo ra-
dical (The Female Eunuch, 1970) onde reivindica não só a liberação sexual feminina
senão a necessidade de que as mulheres desenvolvam o pensamento lateral criati-
vo, quer dizer, que frente ao poder teórico e racional do poder masculino exerçam
um pensamento infantil, selvagem, desmedido, baseado nas emoções e na empatia,
a defender em Sex and Destiny; The Politics of Human Fertility (1984) posições an-
ti-ocidente (já que as mulheres tem menos filhos para avançar em suas carreiras
profissionais) e pró-natalistas e mistificadoras da pobreza e da natalidade prolífica
do Terceiro Mundo, apresentando no destino biológico de ser mãe um ideal de libe-
ração feminina.
104 “Our society… is a patriarchy. The fact is evident at once if we recall that the mil-
itary, industry, technology, universities, science, political offices, finances – in short
every avenue of power within society, including the coercive force of the police, is
in male hands.” (Sexual Politics, 1970, p. 25) –Tradução propia. Seu livro que foi
sua tese de doutorado em literatura inglesa se vale de grandes nomes da literatura
(Shaw, Ruskin, Wolff, Wilde, Dickes) para exemplificar as atitudes dos varões frente
às mudanças sociais introduzidos pela primeira onda de luta das mulheres (1830-
1930) e o que chama a contra-revolução que a sucedeu (1930-1960) (atraves dos
autores patriarcais como Miller, Mailer, Lawrence e Genet) O que sem aponta é que
é um sistema que se reproduz a si mesmo, como uma roda e que se trata de “uma
instituição perpetuada por técnicas de controle”. Millett recorre a Max Weber para
definir as relações de dominação, que define como a possibilidade de impor a von-
tade própia sobre o outro, quer dizer, uma definição que parte do sujeito individual
e não das relações sociais.
187
criticas que o feminismo radical recebe dos marxistas e outras alas
mais radicais do feminismo.
A relação contraditória com o marxismo como marco teórico,
ainda que invertido, para pensar a emancipação é muito clara e ex-
plicita tanto em Firestone, como depois em Delphy ou MacKinnon.
Todas elas recorrem, cada uma de sua maneira, à teoria marxista
para pensar e desenvolver uma teoria feminista do patriarcado,
pegando emprestado os conceitos, mas invertendo sua hierarquia,
produzindo assim quase uma teoria marxista negativa, como em
um negativo fotográfico. Todas elas partiram da redução falsa e abu-
siva do marxismo a um economicismo, a uma teoria reducionista
que subordina todos os conceitos e fenômenos a meras variações
ou reflexos das relações de exploração, que são as únicas “verdadei-
ras” e “importantes”. Firestone, por exemplo, construiu sua Dialética
do Sexo em um dialogo intenso com Marx e Engels argumentando:
“Seria um erro tentar explicar a opressão da mulher a partir desta
interpretação estritamente econômica [que oferece o marxismo]. A
análise de classes constitui um trabalho engenhoso, mas de alcance
limitado (...) não tem profundidade suficiente.” Firestone afirma que
“existe um substrato sexual na dialética histórica” analisada por En-
gels (a evolução da família), mas que este não lhe agrada porque só
se empenha em “perceber a sexualidade só através de uma impreg-
nação econômica.” Sua teoria se apresenta como uma superação de
Engels, colocando na base as relações de sexo e não as de classe. Esta
tentativa de cooptar o marco teórico do marxismo e aplicá-lo de ou-
tra forma para gerar novas divisões e categorias levou Firestone a
falar de um “sistema de classes sexuais” (termo que retomaram Del-
phy e muitas outras) onde ainda que esta opressão tenha uma ori-
gem biológica é perpetuada socialmente pelas técnicas de controle
e dominação, que se materializa principalmente através do controle
da capacidade reprodutora das mulheres. No mundo liberado e utó-
pico de Firestone, a revolução feminista (ideológica e tecnológica)
que propõe alcançaria a reprodução artificial, o fim da família como
instituição social e levaria diretamente a que “a divisão do traba-
lho desapareceria mediante a eliminação total do mesmo (cyberna-
tion).” O objetivo final seria alcançado assim e “se destruiria a tirania
da família biológica”.
MacKinnon também recorre ao marxismo e sua armação teórica
para definir, por analogia, as bases teóricas do feminismo, centradas
na sexualidade e não no trabalho:
188
A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo:
aquilo que nos é mais próprio e, no entanto, o que mais nos arrebata... (...)
a modelação, direção e expressão da sexualidade organiza a sociedade em
dois sexos – mulheres e homens – divisão que é a base da totalidade das
relações sociais (...) Tal como é o trabalho para o marxismo, a sexualidade
é para o feminismo algo socialmente construído mas que, por sua vez,
constrói, universal de matéria e de mente. Assim como a expropriação
organizada do trabalho de alguns para beneficio de outros define uma classe
– os trabalhadores – a expropriação organizada da sexualidade de uns para o
uso de outros define o sexo, mulher105.
189
pensado como um processo político que deveria culminar em uma
transformação pessoal, em particular uma mudança da consciência,
uma politização da vida pessoal, onde o individuo era a por sua vez
o ponto de partida e de chegada nesse processo e as dinâmicas cole-
tivas (as marchas, os grupos de autoconsciência, a divisão do traba-
lho militante, a vida em comunas feministas, as ações diretas) eram
só uma mediação para alcançar essa transformação pessoal que se
pensava a si mesma como contagiosa. Nesse âmbito, o feminismo ra-
dical pegou emprestada a estratégia do socialismo utópico de Owen
ou Fourier.
A sexualidade se tornou, para muitas feministas radicais, o ele-
mento mais profundo e mais autentico de uma subjetividade femi-
nista radical, assim como afirma Germaine Greer, uma feminista aus-
traliana: “O pessoal segue sendo político. A feminista do novo milênio
não pode deixar de ser consciente de que a opressão é exercida na e
através de suas relações mais intimas, começando pela mais intima
de todas, a relação com o próprio corpo”106. Algumas feministas de-
fenderam o lesbianismo ou a bissexualidade como uma ação política
de transformação.
E o projeto de fazer do slogan “o pessoal é político” uma estraté-
gia e um ideal enfocado no individuo não demorou a mostrar seus
frutos desastrosos e desmobilizadores. Um elemento comum a todas
as feministas radicais, muito alem de sua atividade intelectual (pu-
blicar estes livros, fazer conferencias, ir a conferencias) tiveram um
ativismo social bem curto, já que o intenso debate político e teórico
das distintas e múltiplas correntes e tendências que surgiram dentro
do feminismo radical (e que depois se ramificaram), a necessidade
de pensar na pratica como se combina a opressão com a exploração,
o machismo com o racismo etc. as superaram e agoniaram. Assim
como a frustração de ter que lidar com os problemas de intervir no
movimento de massas, obter resultados concretos etc. O que primou
foi claramente centrar-se em uma transformação e desenvolvimento
“feminista radical” individual, que só estava ao alcance de uma pe-
quena minoria de mulheres pertencentes à classe media educada. No
inicio dos anos 70, Firestone deixou o ativismo e se mudou para o
East Village, um bairro de Nova York, para se dedicar à pintura. Mil-
lett prosseguiu em um trabalho acadêmico e se dedicou à fotografia
artística, a ser pintora e escultora e se preocupou com a conserva-
ção dos imóveis antigos (século 19) que estão ameaçados pela es-
peculação em Nova York e ainda “Graças aos lucros econômicos da
106 Germaine Greer, La mujer completa, Barcelona, Kairós, 2000, 505.
190
Millett Farm [fazenda Millett], seu enorme viveiro de pinheiros de
natal, mantém uma comunidade estival que funciona como oficina de
criação para jovens mulheres artistas (Women’s Art Colony Farm)107.
107 Alicia Puleo, “Lo Personal es político: el surgimiento del feminismo radical” Teo-
ría feminista : de la Ilustración a la globalización, p. 54.
108 “the word “patriarchy” has problems of its own. It implies a universal and a-his-
torical form of oppression which returns us to biology- and thus it obscures the need
to reconize not only biological difference, but also the multiplicity of ways in which
societies have defined gender” (Sheila Rowbotham, “The Trouble with Patriarchy”,
Dreams and Dilemmas p. 209)
109 Once patriarchy was conceptualized as a system of domination analytically
separate and independent from modes of production, its origins had to be found
in abstract, universal, ahistorical factors: biological differences in reproduction,
men’s need to control women’s sexuality, reproductive capacities and/or their labor
191
O principal problema do feminismo radical é que sua generalida-
de e imprecisão teórica se tornaram um obstáculo político para de-
senvolver a luta pela liberação das mulheres combinada com a luta
de classes. O feminismo radical propõe uma estrutura que só reco-
nhece dois sujeitos sociais que se enfrentam: homens e mulheres. Ao
não conseguir explicar como se combina a opressão da mulher com
a exploração não pode articular a luta pela liberação da mulher com
a luta pelo socialismo. O resultado é que o feminismo radical buscou
sistematicamente contrapor ambas as lutas, argumentando que a
luta dos sexos era anterior e mais profunda que a luta de classes, em
vez de integrá-las em uma estratégia comum de revolução e libera-
ção como pretende fazer o trotskismo, como herdeiro do marxismo
revolucionário. Conscientemente ou não colocou a mesma hierarqui-
zação mecânica que denunciava no stalinismo e no castrismo quan-
do estes adiaram a liberação das mulheres para um momento futuro
do socialismo. Neste sentido, se o feminismo radical conseguiu ser
um dos motores ideológicos que animaram as lutas que consegui-
ram grandes conquistas democráticas (como o direito ao divorcio,
ao aborto, aos direitos reprodutivos e uma sexualidade mais livre)
também se tornou um obstáculo fundamental “para que as mulhe-
res trabalhadoras se organizem independentemente da burguesia
e levem aos lugares de trabalho e aos bairros operários as reivindi-
cações democráticas. Quer dizer, foi obstáculo para que o poderoso
movimento de mulheres fizesse uma luta política nos espaços sociais
onde se encontravam a classe trabalhadora e os setores populares,
com mulheres e homens. Como explica Rowbotham:
O problema não é a diferença sexual, senão as desigualdades sociais de
gênero – quer dizer, todos os tipos de poder que as sociedades atribuíram
às diferenças sexuais – e as formas hierárquicas que estas impuseram nas
sociedades humanas. Alguns aspectos das relações entre homens e mulheres
são simplesmente e obviamente não opressivas, já que incluem vários graus
de ajuda mutua. Mas o conceito de “patriarcado” não tem espaço para esse
tipo de sutilezas110.
and their children’s labor; men’s drive for power over women; men’s intentional
interpretation of biological differences in reproduction; the sexual division of labor;
the psychosexual effects of mothering; the exchange of women by men; the “sex/
gender system,” etc. “GIMÉNEZ, Martha. “Capitalism and the Oppression of Women:
Marx Revisited”, Science and Society, 69.1 (2005). p. 12.
110 “It is not sexual difference which is the problem, but the social inequalities of
gender – the different kinds of power societies have given to sexual differences,
and the hierarchical forms these have imposed on human relationships. Some as-
pects of male-female relationships are evidently not simply oppressive, but include
varying degrees of mutual aid. The concept of “patriarchy” has not room, for such
192
As teorias do patriarcado apresentam uma visão simplista, uni-
lateral da sociedade, mas as relações entre homens e mulheres não
podem ser pensadas “em geral”, em uma sociedade de classes, como
categorias fixas abstraídas do mundo social, porque tudo depende
de em que classe (e adicionalmente também que “raça” ou etnia) se
situam estes homens e mulheres, em que momento da luta de classes
estamos etc. Por isso, inclusive o feminismo socialista teve que se dis-
tanciar destas generalizações: “as relações entre homens e mulheres
se caracterizam por certas reciprocidades, assim que não podemos
assumir que o antagonismo seja um fator constante. Há vezes onde a
solidariedade de classe ou raça são muito mais fortes que o conflito
sexo-gênero e casos onde as relações na família são uma fonte de re-
sistência ao poder da classe dominante”111.
Em vez de postular que os homens da classe trabalhadora são
aliados potenciais e que através de um duro combate ao machismo
nas organizações operarias, estudantis, populares e nas lutas, teriam
que ser educados e ganhos para a liberação das mulheres, porque
em ultima instancia o socialismo revolucionário (que abarca em seu
programa a luta contra todas as opressões) é uma luta comum, o fe-
minismo radical com suas teorias do patriarcado colocou os homens
como inimigos sistemáticos das mulheres e defendeu uma estratégia
de separação e confrontação entre homens e mulheres. Mesmo o fe-
minismo radical mais “construtivista” como o de Wittig, que insistia
que “homem” e “mulher” são papeis socialmente construídos, acaba
fazendo dos homens inimigos de fato das mulheres, aplicando sem
se dar conta um essencialismo invertido. Como aponta Gimenez, em
resposta a essas teorias:
Em suas varias formulações o patriarcado postula que as características e/ou
intenções dos homens são a causa da opressão das mulheres. Esta maneira
de pensar desvia a atenção das relações sociais que colocam a mulher em
uma situação de desigualdade em cada dimensão de sua vida e canaliza o
olhar para os homens como causa da opressão. Mas os homens não tem tal
posição privilegiada na historia que seja independente das determinações
sociais, o que sim podem ter é a visão e o poder de modelar uma organização
social dada a seu favor. Mas os homens, como as mulheres, são seres sociais
cujas características refletem a formação social da qual emergem como
agentes sociais112.
193
Em sua tentativa de gerar uma teoria do patriarcado como uma
imagem congelada e invertida do marxismo vulgar, o feminismo ra-
dical não só produziu uma teoria abstrata, desconectada da realida-
de histórica, senão que afirmou que a realidade socioeconômica das
mulheres não importa, que a relação de opressão se articula a nível
da sexualidade ou da diferenciação de sexo, da capacidade reprodu-
tora das mulheres. Portanto não conseguiu estabelecer como surge
a opressão, nem como se articula aos demais âmbitos da realidade
social, principalmente as relações de trabalho e outras dimensões
materiais da existência. Uma categoria teórica surpreendentemente
ausente do feminismo radical foi a do trabalho, já que em nenhum
momento se considerou como importante ou central o problema do
trabalho domestico ou o trabalho reprodutivo ou o problema da ex-
ploração salarial do trabalho da maioria das mulheres (porque sua
condição de exploradas as “aproximaria” dos homens da classe tra-
balhadora). E essa será a principal critica que fazem as feministas
socialistas e marxistas ao feminismo radical, sublinhando seu caráter
“pequeno burguês”, quer dizer, primeiro sua tentativa de abstrair a
opressão da mulher de sua condição social material e em particular
das formas de trabalho explorado as quais tem sido e segue sendo
submetida e, segundo, seu esforço para situar a liberação em um âm-
bito individual e em uma mudança pessoal, voluntaria.
Onde colocar o famoso “patriarcado” ou as relações de opressão?
A análise marxista mostrou que o desenvolvimento do capitalismo
industrial se apoiou e transformou a família monogâmica, que já era
uma unidade institucionalizada de relações de opressão e exploração
e que as revoluções burguesas institucionalizaram a condição desi-
gual da mulher no Estado e no direito burguês. Mas se nos mantemos
só a nível do direito e das leis burguesas não conseguimos entender
a especificidade da opressão das mulheres sob o capitalismo, que é
uma opressão marcada pela estrutura de classes. Tanto a analise de
Marx como a de marxistas contemporâneos mostrou que com o de-
senvolvimento do capitalismo e a socialização da produção em uma
as the cause of women’s oppression. This way of thinking diverts attention from
theorizing the social relations that place women in a disadvantageous position in
every sphere of life and channels it towards men as the cause of women’s oppression.
But men do not have a privileged position in history such that, independent of social
determinations, they have the foresight and power consciously to shape the social
organization in their favor. Men, like women, are social beings whose characteristics
reflect the social formation within which they emerge as social agents. “
GIMÉNEZ,
Martha. “Capitalism and the Oppression of Women: Marx Revisited”, Science and
Society, 69.1 (2005). p. 14.
194
escala maior a família deixou de ser uma unidade produtiva e essa
mudança exógena à família reforçou de novo a opressão da mulher,
que foi progressivamente fechada no espaço domestico, excluída de
uma participação igual na esfera publica (sem igualdade de direitos)
e atada ao trabalho “invisível”, mas necessário de reprodução da for-
ça de trabalho. A superestrutura burguesa (o Estado, as leis, a ideolo-
gia etc.) fez todo o possível para manter a discriminação em relação à
mulher e não lhe outorgar a igualdade de direitos que reivindicaram
as mulheres na época das revoluções burguesas. O capitalismo se
apoiou em uma superestrutura sexista e machista, que alguns cha-
mam de “patriarcal”, que discrimina as mulheres e fez o possível para
assegurar sua sobre-exploração e sua exclusão da vida política.
Nesse sentido, o instinto teórico do feminismo radical, de locali-
zar a opressão da mulher além do âmbito individual, privado e do-
mestico, além da família, foi correto, como também o foi a intuição de
que combater a origem da opressão não era meramente uma questão
de reformas legais como o pretendia o feminismo liberal ou burguês.
A intuição de que a condição de subordinação e superexploração
tinham raízes mais profundas que suas manifestações na superes-
trutura burguesa foi também acertada. Mas as distintas teorias do
patriarcado não conseguiram explicar o processo histórico e a base
material e institucional que sustentam essas relações de dominação,
desigualdade e abuso. Ainda que não estejam arraigadas só na família
e no Estado, sua origem não está na biologia nem na ideologia senão
na sociedade de classes e, hoje em dia, no único motor que alimenta a
sociedade burguesa: a busca de lucros capitalistas a todo e qualquer
preço. O feminismo radical acabou tratando o marxismo como um
inimigo quase igual ou análogo ao patriarcado, porque partiu da base
de que as principais organizações e sociedades que se reivindicavam
“marxistas” eram verdadeiras “aplicações” do socialismo marxista.
Sua frustração com o machismo e a homofobia do stalinismo e das
burocracias sindicais e seu distanciamento da classe trabalhadora, as
levou a atuar com uma caricatura muito grosseira, mecânica e pouco
dialética do marxismo. O resultado foi a produção de teorias do pa-
triarcado a-históricas, abstratas, com pouca base material social para
explicar a opressão, muito radicais – se quiser – mas muito pouco
dialéticas e, principalmente, a formulação de um fundamento “teó-
rico” para a estratégia separatista dos movimentos de mulheres e a
“guerra dos sexos”, uma estratégia que até hoje não conseguiu acabar
com o “patriarcado” e menos ainda arrastar a maioria das mulheres
trabalhadoras.
195
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