DOSSIE Anti-Intelectualismo Revista Plural PDF

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plural

revista de ciências sociais


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA

v.25 nº 1 | ISSN 2176-8099 | primeiro semestre de 2018 revistas.usp.br/plural


plural
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA DA USP

25

Departamento de Sociologia
Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo
Plural
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo

Universidade de São Paulo


Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretor: Profa.Dra.Maria Arminda do Nascimento Arruda
Vice-Diretor: Prof. Dr. Paulo Martins

Departamento de Sociologia
Chefe: Prof. Dr. Ruy Gomes Braga Neto
Coordenador do Programa de Pós-Graduação:
Profª. Drª. Marcia Regina de Lima Silva

Equipe Editorial - Revista Plural v. 25, n. 1


Comissão Editorial
Alvaro A. Comin, Fernando Antônio Pinheiro,
Ricardo Mariano (editor responsável)

Comissão Executiva
Os conceitos e ideias emitidos nos textos
André Campos Rocha, Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian, Brenda
publicados são de exclusiva responsabili-
Rolemberg, Cristhiane Falchetti, Danilo Mendes Piaia, João Filipe
dade dos autores, não implicando obriga-
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toriamente a concordância nem da Equi-
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pe Editorial nem do Conselho Científico
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de Sociologia - FFLCH/USP Av. Prof.
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Brito Leal Ivo, Angélica De Sena, Daisy Moreira Cunha, Dominique Vidal, E-mail: [email protected]
Edson Silva de Farias, Evelina Dagnino, Flavio Wiik, Heloísa André Pontes, Site: http://www.revistas.usp.br/plural
Iram Jácome Rodrigues, Jordão Horta Nunes, Marcelo Kunrath Silva, Marcelo Facebook: www.facebook.com/pages/
Ridenti, Maria José Rezende, Maria Lívia de Tommasi, Martha Celia Ramírez- Revista-Plural/293342497360416
Gálvez, Mirlei Fachini Vicente Pereira, Myriam Raquel Mitjavila, Roberto
Vecchi, Sergio Costa, Simone Meucci. Publicação eletrônica semestral referente
ao 1º semestre de 2018. Plural. Revista
Equipe Técnica do Programa de Pós-Graduação em
Diagramação: Diagrama Editorial Sociologia da USP, Faculdade de Filosofia,
Revisão de texto: Comissão Executiva da Plural Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, vol. 25, n. 1, 2018 (publicado
Capa: Black Circle (1923) - Autor: Kasimir Malevich - Propriedade The State em julho de 2018).
Russian Museum - São Petersburgo
ISSN: 2176-8099
Financiamento: CAPES 1. Sociologia 2. Ciências Sociais

Plural 25.1
Sumário
Dossiê
Um espectro ronda o Brasil (à direita)

Apresentação

Um espectro ronda o Brasil (à direita). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1


Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

Entrevista
Entrevista com Yves Cohen. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Realizada por Dmitri Cerboncini Fernandes
Tradução e transcrição realizadas por Pedro Serra

Artigos
Golpe na cultura – Intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil . . . 32
Maria Arminda do Nascimento Arruda

Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45


Marcelo Ridenti

Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia


ação e estrutura: o espaço internacional como fonte de legitimação dos
Think Tanks latino-americanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Maria Caramez Carlotto

A direita brasileira em perspectiva histórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92


Fabio Gentile

“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil


a partir do discurso de Jair Bolsonaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Martin Egon Maitino

“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: 30 anos (1987-2017)
de pautas políticas de Jair Bolsonaro nos jornais brasileiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

2017
Palestra
Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja . . . . . . . . . . . . . . 172
Sergio Miceli

Resenha
Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal:
a constituição de uma razão-mundo competitiva e empresarial . . . . . . . . . . . . . . . . 178
Samuel Silva Borges

Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver!


O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
César Niemietz

Artigos
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis:
perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Cristiana D. Martins

Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do


destino de São Paulo na década de 1950 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
Bruno de Macedo Zorek

Tradução
Fin de siècle. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
Christophe Charle
Tradutores: João V. Kosicki; Marcello G. P. Stella

Resenha
A teoria crítica na ordem do dia: Horkheimer hoje. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Bruna Della Torre de Carvalho Lima e Eduardo Altheman Camargo Santos

Plural 25.1
Apresentação

Um espectro ronda o Brasil (à direita)

A spectre is haunting Brazil (from the right)

Dmitri Cerboncini Fernandesa e Debora Messenbergb

Resumo  Na primeira parte deste texto introdutório, refletimos sobre a ausência


histórica de trabalhos sociológicos que lidem com o fenômeno do pertencimento à
direita no Brasil. Ensaiamos, na segunda parte, algumas hipóteses explicativas para
tal situação, bem como analisamos os poucos trabalhos que se dedicaram a isso nas
décadas de 1980 a 2000. Na terceira parte procedemos à apresentação dos textos que
compõem o presente dossiê.
Palavras-chave  Sociologia da Direita; Sociologia da Sociologia; História das Ciências
Sociais.

Abstract  In the first part of this introductory text we reflect on the historical absence
of sociological studies that deal with the phenomenon of belonging to the right in
Brazil. In the second part we examine a number of explanatory hypotheses for this
tendency, and analyze the limited literature on this subject area between 1980 and
2000. In the final part the integral texts of the dossier are presented.
Keywords  Sociology of Right-wing; Sociology of Sociology; History of Social Sciences.

Desde os movimentos sociais emergentes a partir de 2013 até think tanks hoje
bem solidificados, passando por inúmeras produções de intelectuais midiáticos,
universitários e o que pode se chamar de opinião pública em geral – além de grupos
online, da política institucional e de várias espécies de extremistas e extremismos
–, todos estes vetores sinalizam um novo ar dos tempos. “Nova direita”, “neocon-
servadorismo”, “onda conservadora”, “retomada do neoliberalismo”, “fascismo à
brasileira”, dentre outros designadores, sejam aparentados, pertinentes ou não,
constituem termos usualmente empregados pela imprensa, ensaístas etc., que
disputam a compreensão de conjuntura supostamente recente e avassaladora:
a guinada à direita presenciada no Brasil. A própria agenda governamental e
parlamentar, ainda com o Partido dos Trabalhadores (PT) no poder executivo,

a Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.


E-mail: [email protected].
b Professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. E-mail: de-
[email protected]

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.1-12
2 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

expressava tal novo consenso, em que se dizer “de direita” não mais significava
algo pejorativo e a se evitar – como sucedia nos anos 1980-1990 tanto em meio
a políticos de profissão quanto a cidadãos comuns (Pierucci, 1987, p. 36) –, mas
motivo de orgulho para muitos, e de defesa – ou de ataque – incondicional – e
apaixonado – para tantos outros.
A sociologia brasileira, no entanto, disciplina que muito teria a dizer sobre
tal(is) fenômeno(s), ainda não desenvolveu estudos suficientes e articulados que
possibilitem o aclaramento de tal figuração. Na realidade, essa ciência pouco
se debruçou com verve, constância e intensidade sobre o assunto dentro de sua
melhor e mais prolífica perspectiva, isto é, percorrendo suas tradições próprias,
suas teorias, suas metodologias e suas formas analíticas já testadas e comprovadas
em distintos domínios. A carência de análises de fôlego, de empreitadas eminen-
temente sociológicas que encarassem de frente o destrinchar dos sentidos do
pertencimento do agente social ao espectro da direita sempre foi patente por estas
bandas. Reportagens de jornais e revistas, entrevistas com eleitores e apoiadores de
candidatos e partidos identificados à direita, com pertencentes às hostes de novos
grupamentos, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e demais entidades variadas
de Internet, a leitura sistemática de textos de colunistas da grande imprensa e o
contato com demais personagens que orbitassem e orbitem em torno do que se
convencionou chamar de direita são elementos que inusitadamente não costumam
integrar o rol de materiais de análise de uma possível sociologia sobre a direita no
Brasil. Se em décadas passadas a mencionada lacuna se justificaria em razão da
alentada expectativa no restabelecimento da democracia – o que voltou os olhos
de quase toda aquela geração de cientistas sociais às movimentações que ocor-
riam em sindicatos, igrejas progressistas, agremiações políticas que fomentassem
a participação direta pelo voto etc. –, hoje em dia não há mais razões que deem
conta dessa aparente falta de interesse. Sobretudo em um contexto político-social
como o nosso.
Variadas hipóteses auxiliares poderiam ainda ser levantadas por uma
sociologia da sociologia no intento de elucidar tal ausência temática. Seja a da
proeminência exercida pelo objeto “autoritarismo de Estado”, experimento pronto
a nos rondar na América Latina de tempos em tempos, geralmente à direita, e que
sempre agregou pesquisadores de escol em detrimento da visualização de suas
reverberações na sociedade civil; seja um suposto desejo militante e conjuntural
de parte dos cientistas sociais em não quererem enxergar a vida como ela é, rele-
gando o ser de direita a uma menoridade não só política, mas também em termos
de objeto legítimo e válido a ser escrutinado e mais bem compreendido. Seja

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Um espectro ronda o Brasil (à direita) 3

ainda o açambarcamento da temática pela denominada “ciência política”, disci-


plina instituída de fato como relativamente autônoma da sociologia em meados
dos anos 1970 (K einert, 2011) e que, ao se aproveitar do abandono do tema pela
sociologia, abraçou como sua propriedade, dentro de seus ferramentais próprios,
os repertórios de casos que envolvessem coordenadas como os referenciais polí-
ticos direita-esquerda.
Fato é que guinadas e eternos retornos à direita por parte da sociedade
civil, esse ente anunciado desde pelo menos o hoje um tanto proscrito Oliveira
Vianna como de difícil compreensão sociológica no Brasil, sugerem que o ingênuo
marxismo ativista, aquele que vislumbra a revolução logo ali na esquina, equivoca-
-se tanto ou mais do que os que projetam na mesma sociedade civil certa tendência
quase que imanente à vida democrática, contribuinte natural à conformação de
per si de uma imaginada esfera pública tupiniquim. Ambos os lados costumam
quebrar a cara de tempos em tempos, e amiúde permanecem rezando suas carti-
lhas sem entender bem, ao final das contas, o por quê. Mais do que isso: dentre
os poucos interessados no assunto ao longo da história, incluíam-se aqueles que
se enredavam no jogo da mera condenação ou da exaltação laudatória do objeto
– a depender do lado em que se posicionassem –, deixando de lado as já deveras
conhecidas precauções metodológicas anunciadas por um Max Weber, que tão bem
fariam para, por exemplo, não nos surpreendermos mais com supostas reviravoltas
político-ideológicas sucedidas aparentemente do dia para a noite. Aparentemente,
frise-se, porque não há pesquisa o suficiente nos moldes aludidos, que em nossa
opinião ensejariam se existentes, ao menos a condição de tomarmos ciência e
acompanharmos historicamente os fenômenos políticos que ocorrem em meio a
determinadas camadas da população – não só nos momentos extracotidianos do
voto e das manifestações.
Uma das comprovações do que dizemos é a exceção à regra nesse campo de
estudos, os trabalhos do sociólogo, pioneiro no tema na década de 1980, Antônio
Flávio Pierucci. Embora suas investidas iniciais à primeira vista dedicassem-se
tão somente ao escrutínio dos votos concernentes às surpreendentes eleições de
Jânio Quadros à prefeitura de São Paulo, em 1985, e à quase eleição de Paulo Maluf
ao governo do mesmo estado, em 1986 – logo, dentro de uma tradição já cara à
ciência política –, na realidade ele apontava para a concretização de uma típica e
pura sociologia webero-bourdiesiana. Falamos aqui de uma prática de pesquisa
teoricamente orientada no intento de compreender os sentidos da ação dos votantes,
sociologia esta facilmente observável em razão da análise que movimentava os
cruzamentos entre estilos de vida, opiniões e posição ocupada no espaço social.

2018
4 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

Desta forma, Pierucci se valeu, certamente pela primeira vez no Brasil, do ferra-
mental contido no clássico A Distinção (Bourdieu, 1979), no afã de delimitar o
entrecruzamento sucedido entre classe – no melhor, mais alargado e mais prolífico
sentido do termo – e tomada de posição política, tentando recuperar para a socio-
logia o objeto por vezes tão desprezado: o pertencimento à direita e sua miríade
de significados, que ultrapassa em muito simplesmente o mecânico “ato de votar”.
Chama a atenção que, em seus estudos da década de 1980, Pierucci já empre-
gava o termo “nova direita”, tão em voga na atualidade entre acadêmicos e demais
agentes que intentam capturar o significado dessa suposta novidade. Com isso,
naquele instante, ele visava circunscrever os apoiadores que impeliam os fenô-
menos de votação Jânio Quadros e Paulo Maluf à cabeça dos processos eleitorais,
candidatos da direita que demonstravam certo vigor em uma conjuntura política
aparentemente desfavorável aos rebentos da ditadura recém-encerrada. Por meio
de longas entrevistas em profundidade com eleitores-ativistas, uma sensibilidade
ímpar em suas interpretações, o manuseio e a análise de dados empíricos relativos
aos votos e seus respetivos distritos eleitorais ele apreendeu sinteticamente o que
significava a tal antiga “nova direita”:

Mas que direita é esta? E até que ponto é “nova”? Questões complicadas. […]
estamos às voltas com indivíduos arregimentáveis para causas antiigualitárias
radicais e soluções autoritárias de direita. Estranhamente, porém, são favorá-
veis às greves dos trabalhadores e ao direito de greve, embora não façam greve
e tenham cisma de que as greves degenerem em bagunça. Defendem a reforma
agrária e, deste modo, estão bem longe da UDR; reprovam contudo as invasões
de terras urbanas. Querem gastos públicos com a mesma veemência com que
exigem as penas mais severas para o crime. Segurança policial e seguridade
social são consideradas direitos urgentes de todos os cidadãos decentes e homens
de bem: querem mais efetivos policiais, mais equipamentos e mais modernos,
para o combate ao crime, maiores salários para os policiais; querem sobretudo
a ROTA, emblema das decisões de polícia tornadas decisões de justiça. Mas
querem, também, serviços públicos de saúde, escola, creches, orfanatos, refor-
matórios, internatos, às vezes campos de concentração com trabalhos forçados,
transporte coletivo estatizado, seguro desemprego e aposentadoria condigna,
tudo isto e muito mais eles querem do Estado. O papo liberal anti-welfare, claro
está, não é com eles. Do comunismo como fantasma assustador, velho pânico
das direitas de um modo geral, do sobressalto ante a revolução socialista ali ao
dobrar da esquina, nem sombra. Anticomunismo, quando há, é dos chefes, não

Plural 25.1
Um espectro ronda o Brasil (à direita) 5

das bases, assim como o pouco que se encontrou de neoliberalismo econômico


provou-se minguante quanto mais longe das cúpulas das máquinas eleitorais
ou partidárias se achava o entrevistado (Pierucci, 1987, p. 27).

Direita que, àquela altura, sublinhe-se, vexava-se ao ter de se assumir como


direita. Além do mais, que não comungava de cartilhas anticomunistas, algo bem
diferente do que observamos na atualidade (Messenberg, 2017). Pela descrição de
Pierucci, o direitista típico da década de 1980 tratava-se de um ser híbrido, teme-
roso, conservador, que apostava no que restava de sua identidade de “homem de
bem” contra o que identificava como falta de ordem, de moral, de religião; que se
postava contra os direitos humanos, o migrante nordestino, o pobre, o “diferente”,
enfim, que poderia vir a ameaçá-lo, a roubá-lo, a tomar o lugar dele, a conviver
próximo demais a ele. Como Pierucci deixava claro, a defesa do neoliberalismo e
seus derivados, um elemento basilar na definição do que viria a constituir a “nova
direita” hodierna (Dardot; L aval, 2016), era ausente das fileiras de base dessa
“nova direita” oriunda da experiência da ditadura militar (Pierucci, 1987, p. 27);
uma direita estatista, moralista, que abraçava algumas pautas inimagináveis a
partes mais intransigentes e barulhentas da direita atual, como a reforma agrária,
o transporte coletivo estatizado, a seguridade social. Uma direita eminentemente
branca, de classe média baixa, destituída de capital cultural, embora muitas
vezes tivesse posses econômicas razoáveis; uma direita que vivia “do outro lado
da cidade” (Pierucci, 1989), isto é, em bairros intersticiais posicionados entre a
periferia e o centro expandido, distantes dos principais serviços e equipamentos
culturais disponíveis em São Paulo. E isso tudo, frise-se, referia-se unicamente ao
universo paulistano. A direita brasileira, nesse sentido, permanecia e permanece
uma grande incógnita aos estudos sociológicos.
O adjetivo “nova”, aliás, emergido àquela altura, é bem sintomático do que
vimos argumentando: em um campo de estudos carente de acúmulo sobre suas
próprias bases temáticas, tudo o que vem a ser enquadrado cientificamente
aparenta certo ar de novidade, logo, de uma “nova” direita. Era o caso nos idos dos
anos 1980, continua a ser o caso de hoje, quando o irrompimento de movimentos
de direita toma os cientistas sociais mais uma vez desprevenidos, pois desconhe-
cedores que somos da gestação silenciosa e sempre presente do que significa o
pertencimento à direita, ou ao menos a defesa e o apoio a pautas consideradas
de direita na sociedade brasileira. Naquele longínquo caso, Pierucci lidava com a
ressurgência ou sobrevivência de expectativas e anseios que se acreditavam extintos
depois de toda a experiência traumática da ditadura militar; viu-se que nada

2018
6 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

mais equivocado do que a crença quase que miraculosa na “força da democracia”


institucional, deixando-se de lado o conhecimento dos meandros da sociedade
na qual se pretende alicerçar esta mesma democracia. A direita militaresca
outorgou constelações de sentido à posteridade, assim como a posteridade tratou
de rearranjá-las em formatos condizentes com as modificações sócio-históricas
pertinentes. Nem tudo se perde, nem tudo se preserva, lição básica das ciências
naturais, mas também de sociologia. Lição esta que continuamos ingloriamente a
aprender, com a consequente adjetivação de “nova” com o que deveria ser “velha”,
ou “transformada”, ao menos. Pois para se nomear algo como “novo”, pressupõe-
-se que se tenha plena ciência das formas passadas, e não é bem esta a situação.
Na esteira das análises de Pierucci, Gonzaga (2000) percebe certas modifi-
cações no caráter da “nova” direita que se anunciava em meados dos anos 1990.
Embora seus achados corroborassem o surgimento de certa clivagem no âmbito
daquela direita caracterizada por Pierucci nos anos 1980, clivagem esta devida à
emergência de outra “nova direita” em meados dos anos 1990, não houve estudos
que aprofundassem sua interessantíssima hipótese central: a de que certa direita
neoliberal assomava, ancorando-se, sobretudo, em estratos de classe média alta,
escolarizada e relativamente cosmopolita (Gonzaga, 2000, p. 220), ao passo que a
velha “nova” direita vislumbrada por Pierucci nos anos 1980 restava ativa, porém
fincada nas mesmas camadas destituídas de capital cultural, como outrora. O
desenvolvimento de mais teses e artigos que tomassem a sério o nascimento no seio
social dessa “nova nova” direita, entendida por meio do prisma do pertencimento
social, poderia ter nos rendido muito mais acurácia na determinação de fenômenos
que estavam por vir logo adiante. Talvez a raiz da nossa “nova nova nova” direita
dos anos 2010, continuando na adjetivação inaugurada por Pierucci, estivesse aí,
quer dizer, nesses idos dos anos 1990, quando modificações morfológicas sociais
e políticas ensejaram a adoção de um liberalismo em várias dimensões de parte
de camadas de classe média – outrora adeptas de certo progressismo político e
cultural, como mostravam as pesquisas do mesmo Pierucci (1989). Tudo leva a crer
que os residentes “do mesmo lado da cidade”, empregando de modo irônico o título
do artigo citado logo acima (Pierucci, 1989), cultivaram e apoiaram as mudanças e
transformações no ar dos tempos, redefinindo o pertencimento à direita. Alianças
estratégicas entre as direitas foram vistas em mais de uma ocasião, e o reinado
quase soberano do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) no estado de
São Paulo talvez possa significar o mais pujante exemplo da diluição eleitoral dessas
possíveis duas direitas, socialmente localizadas em posições distintas. Afinal, os
viúvos de Paulo Maluf e de Jânio Quadros provavelmente preferirão um tucano a

Plural 25.1
Um espectro ronda o Brasil (à direita) 7

alguém que venham a identificar como um “esquerdista”. Mas isto é um fenômeno


a ser mais bem avaliado por meio de pesquisas sociológicas futuras. De preferência,
pesquisas teoricamente orientadas, que lidem empiricamente com opiniões, seja
empregando métodos quantitativos ou qualitativos, análises de movimentos sociais,
da produção intelectual vinculada a figuras proeminentes desta nova figuração,
de genealogias que deem conta de termos, conceitos e do léxico empregado por
nativos, estudos de grupos e instituições específicos, de formas de organização
e ativismo online até o exame que envolve a política partidária e seus agentes.
Futuros estudos que hoje fazem muita falta.
Após as manifestações de 2013, começaram a emergir alguns livros e artigos
filiados sobretudo, mais uma vez, à ciência política (Chaloub; Perlatto, 2015; Cruz
et al., 2015; Ortellado et al., 2015; Telles, 2015; Tatagiba, 2015). O presente dossiê,
embora não tenha a pretensão de resolver o problema de décadas de ausência
temática sobre a direita na sociologia, reúne artigos dentro da aventada prática
teórica que pode vir a contribuir e muito não só para o fortalecimento da área em
sua visada sobre o assunto, como também para a diversificação de estudos sobre
a direita. Ele é aberto com a entrevista realizada junto ao historiador francês
Yves Cohen, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS), na qual é discutida a expansão dos movimentos sociais que, desde 2010,
ocuparam praças e ruas de vários países da Europa e do mundo. Cohen reconhece
que tais ações coletivas “interrogam as ciências sociais em suas próprias bases,
sobre suas maneiras de interpretar, suas maneiras de relacionar-se com a atuali-
dade e com o contemporâneo”. A análise das novas experiências democráticas exige,
portanto, formas reflexivas distintas das quais estamos acostumados a operar,
como, por exemplo: as clivagens entre direita e esquerda, as noções clássicas de
representação e participação, assim como a suposta inexorabilidade da institucio-
nalização da ação política para o seu êxito. Cohen aponta ainda para a explosão de
movimentos sociais sem lideranças claras, pautados pela organização episódica
de coletivos, associações e grupos horizontais, que rejeitam formas hierárquicas
de poder e reivindicam demandas específicas. As atuais dinâmicas processuais da
vida democrática permanecem, contudo, irrefletidas e incompreendidas, pois os
intelectuais insistem em enquadrá-las em chaves interpretativas já ultrapassadas,
ou se negam a vivenciar momentos reflexivos junto aos próprios atores desses movi-
mentos. Há que se reconhecer que há uma dinâmica democrática mais complexa
a ser decifrada, e “é preciso experimentar formas de encontro e de experiências”.
Os dois artigos em sequência são resultados de palestras proferidas durante
seminário organizado, em dezembro de 2016, pelo Grupo de Estudos de Sociologia

2018
8 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

da Cultura, e denominado Golpe na Cultura: intelectuais, universidade pública e


contextos de crise no Brasil. Mantendo o mesmo título do evento, Maria Arminda
do Nascimento Arruda elabora análise que discute os efeitos perversos da atual
crise política brasileira sobre a área da cultura, seja em termos da redução de
políticas públicas dirigidas a esse setor, seja no sentido da sua reflexão enquanto
campo. Os intelectuais e seu espaço institucional privilegiado, a universidade,
vêm sendo sistematicamente questionados sobre a relevância de suas práticas e
a pertinência de seus legados em sociedades marcadas sobejamente pela valori-
zação da técnica sobre a cultura. Acresce-se a essa condição o aprofundamento da
debilidade das entidades de ensino superior no país em contexto de crise, o que
acaba por reforçar a dispensa dos intelectuais como mediadores interpretativos
do mundo social e construtores de enquadramentos sociais. Os desafios a serem
enfrentados são, segundo a autora, de grande envergadura e exigem o repensar
entre as disciplinas humanísticas e culturais dos seus próprios problemas e objetos
de pesquisa, bem como ousadia na proposição de novas perspectivas analíticas.
Marcelo Ridenti trata de discutir em seu artigo intitulado Mudanças cultu-
rais e simbólicas que abalam o Brasil a estreita relação entre a dinâmica da crise
atual da democracia brasileira e a mobilização das classes médias escolarizadas.
Apresentando dados que apontam a predominância dos setores escolarizados nas
grandes manifestações sociais que assolaram o país a partir de junho de 2013,
Ridenti insiste em que tais mobilizações revelam a complexa combinação entre
sonhos irrealizados e medo da perda de privilégios. Expressam, do lado da classe
média ascendente, a profunda frustação quanto à não concretização de expecta-
tivas de ascensão social pelo saber formal e a inclusão pelo consumo. Do lado da
classe média tradicional, evidencia-se o temor da não reprodução histórica de
suas condições distintivas dentro da sociedade brasileira. Em ambos os lados, a
insatisfação crescente com relação às promessas não cumpridas e a disposição
para ações reivindicatórias, que se dirigem tanto à direita quanto à esquerda do
espectro político.
Ampliando a análise para o plano internacional, Maria Caramez Carlotto
traz como contribuição ao dossiê o artigo denominado Inevitável e imprevisível,
o fortalecimento contemporâneo da direita para além da dicotomia ação e
estrutura: o espaço internacional como fonte de legitimação dos Think Tanks
latino-americanos. Nele, afirma que o entrelaçamento dos fenômenos da pola-
rização política e a expansão dos movimentos sociais de direita adquiriu, nas
últimas décadas, extensão planetária. A explicação para tal sincronicidade envolve
diferentes dimensões: da estrutura à ação, aos processos político-econômicos

Plural 25.1
Um espectro ronda o Brasil (à direita) 9

globais frente aos fatores socioculturais de origem local. Carlotto combina ambas
as perspectivas analíticas ao discutir os resultados de sua investigação acerca do
crescimento dos Think Tanks latino-americanos, como espaços legítimos para a
produção de conhecimento, formação e circulação de elites, decorrente tanto de
fatores estruturais, que impelem as elites desses países para o espaço internacional,
como contextuais, enquanto reação aos efeitos promovidos pela democratização da
educação superior na região a partir dos anos 2000. O desvelamento dos vínculos
entre estrutura e ação e entre o macro e o microssocial é o que permite não só a
melhor compreensão da natureza desses processos, como também os “sentidos
envolvidos”.
Ajustando as lentes para o enfoque do recrudescimento dos movimentos à
direita no contexto brasileiro, o artigo de Fábio Gentile, A direita brasileira em
perspectiva histórica, propõe pensar o fenômeno da direita brasileira a partir
da análise da tensão liberalismo-autoritarismo, que atravessa toda a nossa vida
política contemporânea. Utilizando-se da categoria de direita “plural”, caraterizada
por uma multiplicidade de experiências, Gentile tenciona demarcar num longo
voo interpretativo, que recobre desde a experiência da “ditadura republicana” de
matriz positivista à experiência atual da direita brasileira, a convivência ambígua
de elementos democráticos e permanências autoritárias.
Os dois últimos artigos que compõem o dossiê discutem a ação de um mesmo
personagem: Jair Bolsonaro. Pré-candidato à Presidência da República nas eleições
de 2018 pelo Partido Social Liberal (PSL), Bolsonaro vem apresentando, de acordo
com os grandes institutos de pesquisa (Datafolha, IBOPE, Voxpopuli), expressiva
capacidade de angariar votos em todas as regiões brasileiras. Sua força eleitoral
reflete indubitavelmente o recrudescimento das manifestações de direita no país,
assim como o compartilhamento de suas ideias e valores em relação a parcela
significativa da sociedade.
O trabalho “Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no
Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro, de Martin Maitino, busca elucidar, a
partir da análise dos discursos proferidos pelo referido deputado federal durante as
54ª e 55ª legislaturas e de algumas de suas entrevistas à mídia escrita e televisiva,
quais os valores e práticas que sustentam a sua ação política e quais aqueles que
cindem discursivamente os campos da esquerda e o da direita, que o mesmo julga
representar. Bolsonaro não é membro da “direita envergonhada”, a qual compôs
tipicamente parte significativa do parlamento brasileiro após a redemocratização.
Ao se apresentar como “direita sem vergonha”, abandonando eufemismos, seja
em suas narrativas, seja em suas práticas políticas, ele não só se distingue “em

2018
10 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

meio aos políticos conservadores do establishment”, como se apresenta enquanto


porta-voz de segmento da sociedade que não mais esconde sua oposição crítica ao
ideário do que se convencionou chamar de “politicamente correto”.
Discutir a imagem pública do deputado federal Jair Bolsonaro com base nas
pautas políticas associadas a ele em matérias jornalísticas publicadas nos jornais
Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, entre os anos de 1987 e 2017, é o objetivo
central do artigo “Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: 30 anos
(1987-2017) de pautas políticas de Jair Bolsonaro nos jornais brasileiros, de autoria
de Leonardo Nascimento, Milena Alecrim, Jefte Batista, Mariana Oliveira e Saulo
Costa. A análise das pautas políticas veiculadas pelos jornais analisados revela,
primeiramente, que a atuação do deputado se constrói de forma privilegiada em
direção à crítica aos direitos humanos, a salvaguarda aos direitos dos militares,
a apologia à tortura e à violência, assim como a defesa da ditadura e do golpe
militar. De outra feita, a postura polêmica e calcada em insultos, característica
das “performances” políticas de Bolsonaro, sugerem certo “estilo” de atuação, que
lhe garantem visibilidade crescente perante a mídia, a qual reforça, por sua vez, a
reprodução de ações dessa natureza por parte do parlamentar.
Esta parte conta ainda com a contribuição de Sergio Miceli, em transcrição de
palestra sucedida em evento já aventado, em que também tomaram parte Maria
Arminda do Nascimento Arruda e Marcelo Ridenti. Em Intelectuais, mídias
e universidade pública em contexto de peleja o sociólogo traz à tona questão
controversa e intrincada, que deve estar na ordem do dia para a compreensão da
conjuntura sociopolítica atual: o papel desempenhado pela mídia nativa na cons-
trução de narrativas hegemônicas sobre o mundo social. Miceli aborda os princípios
de estruturação de poder dessas instituições e o emprego que elas fazem de suas
posições de força política e econômica na confrontação com o mundo intelectual
legítimo, ou seja, a academia. O debruçar-se sobre o trabalho intelectual de quali-
dade surge como a contraposição necessária a tal estado de coisas, deletério para
a noção de cultura como um todo no Brasil atual.
O dossiê é concluído com resenhas de duas obras dialogicamente imbrincadas
à sua temática central. A primeira, de autoria de Samuel Silva Borges, apresenta o
livro de Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre
a sociedade neoliberal (São Paulo, Editora Boitempo, 2016). A segunda, elaborada
por César Niemietz, discorre sobre a publicação Direita, volver!: o retorno da
direita e o ciclo político brasileiro (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2015), coletânea de artigos organizada por Sebastião Velasco e Cruz, André Kaysel
e Gustavo Codas.

Plural 25.1
Um espectro ronda o Brasil (à direita) 11

Os trabalhos que compõem o presente dossiê convergem em direção similar


ao investirem tanto no esclarecimento de certas questões que envolvem o recru-
descimento dos movimentos de direita no Brasil, como instigam a autorrevisão e a
renovação intelectual dessa agenda de pesquisa, mobilizadora de diferentes áreas
do saber nas humanidades. A expectativa dos seus organizadores é a de trazer para
o debate visões sociológicas plurais acerca da temática em foco, como assinalar a
importância decisiva de sua reflexão em tempos de crise da democracia no Brasil
e no mundo, na melhor esteira legada pelos trabalhos citados anteriormente, e que
tão misteriosamente não frutificaram com abundância por aqui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bourdieu, Pierre. La Distincion: critique sociale du jugement. Paris: Editions de Minuit,
1979.
Chaloub, Jorge; Perlatto, Fernando. Intelectuais da “nova direita” brasileira: ideias,
retórica e prática política. ANPOCS 2015. Disponível em: <http://www.anpocs.org/
portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=9620&Itemid=461>.
Acesso em: 10 jun. 2018.
Cruz, Sebastião Velasco et al. (Org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político
brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.
Dardot, Pierre; L aval, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo, Boitempo Editorial, 2016
Gonzaga, Maria Tereza. Conteúdos Ideológicos da Nova Direita no Município de São Paulo:
análise de surveys. Opinião Pública, Campinas, Vol. 6, n. 2, p. 187-225, 2000.
K einert, Fábio Cardoso. Cientistas sociais entre ciência e política (Brasil, 1968-1985).
Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.
Messenberg, Debora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de
opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, Brasília,
vol. 32, n. 3, p. 621-647, set./dez. 2017.
Ortellado, Pablo et al. Pesquisa manifestação política 12 de abril de 2015. Disponível
em: <http://gpopai.usp.br>. Acesso em 12 maio 2018.
Pierucci, Antônio Flávio. As bases da nova direita. Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo,
n.19, p. 26-45, 1987.
. A direita mora do outro lado da cidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
São Paulo, v. 4, n.10, p. 46-64, 1989.

2018
12 Dmitri Cerboncini Fernandes e Debora Messenberg

Tatagiba, Luciana et al. “Protestos à direita no Brasil (2007-2015)”. In: Cruz, Sebastião
Velasco et al. (Org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 197-212.
Telles, Helcimara de Souza. “O que os protestos trazem de novo para a política brasileira?”.
Em Debate, v. 7, n. 2, p. 7-14, 2015.

Plural 25.1
Entrevista

Entrevista com Yves Cohen

Realizada por Dmitri Cerboncini Fernandesa

Tradução e transcrição realizadas por Pedro Serrab

O professor titular (directeur d’études) de História na École des Hautes Études


en Sciences Sociales de Paris, França, Yves Cohen, é muito mais do que um acadê-
mico “puro”. Tendo sido um dos personagens ativos de maio de 1968, conheceu
tanto a prisão quanto o chão de fábrica de montadoras automotivas francesas por
conta de suas atividades políticas. Desde então, vem pesquisando vigorosamente,
sem deixar de lado uma marcante pegada sociológica, o que ele denomina uma
“História da Ação”. Essa subdisciplina se estende para a tentativa de compreensão
de movimentos sociais atuais, tais quais os ocorridos em países árabes há alguns
anos, ou os que tiveram início no Brasil em 2013. Autor de diversos livros, dentre
os quais figura o Le Siècle des Chefs: una histoire transnationale du comman-
dement et de l’autorité (1890-1940), nesta entrevista Yves Cohen foi convidado
a partilhar conosco suas impressões e reflexões sobre as formas de organização
dos movimentos sociais atuais, sobretudo os de direita, mas acabou se vertendo
também sobre os de esquerda, pois a inteligibilidade de um não se dá sem o outro.
O encontro ocorreu em agosto de 2017, nas dependências da Universidade de São
Paulo.

Revista Plural  Você se interessa há muito tempo por interstícios que envolvem
história comparada, filosofia, sociologia, psicologia social etc. Seu livro Le siècle
des chefs1 é um grande exemplar desse exercício interdisciplinar que você vem
desenvolvendo. Nesse caso, você lidou com materiais de pesquisa mais tradicio-
nais, existentes em arquivos, bibliotecas, etc. Hoje em dia, você está estudando
os movimentos sociais contemporâneos, como os ocorridos no Brasil em 2013.
Quais seriam as principais diferenças de abordagem, emprego e uso de técnicas,
teorias e materiais em pesquisas como essas que você vem desenvolvendo?
Yves Cohen  Por um lado, eu sempre considerei a herança de Marc Bloch do ques-
tionamento da história a partir do presente. Nunca abandonei uma presença no

a Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e Professor Adjunto do Departamento de


Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
b Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.
1 Cohen, Yves. Le siècle des chefs. Une histoire transnationale du commandement et de l’autorité
(1890-1940). Paris: Éditions Amsterdam, 2013.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.13-31
14 Dmitri Cerboncini Fernandes

tempo presente que inspirasse meus questionamentos de historiador sobre o sé-


culo XX.
Enquanto historiador, é claro que trabalho com arquivos, obras, livros, etc.
Mas o que me interessa são as fontes da prática, muito próximas das pessoas e
de suas ações. Arquivos escritos, claro; há outros tipos de arquivos. A ação é a
própria escrita, então podemos nos interessar pelo que é escrito. Me interessa
muito também ter contato com a ação no momento em que ela acontece por meio
de documentos que estejam bem próximos dos atores e da sua ação.
Eu fiz esse trabalho sobre a autoridade, a obsessão e o culto do chefe no século
XX, e isso dialoga com questões do presente. Em 1968 eu era antiautoritário, nós
questionávamos muito a autoridade. Não só na França, os estudantes alemães
também. É assim que nós interpretamos a Revolução Cultural, como uma revo-
lução antiautoritária. Não era estúpido no que diz respeito ao guarda vermelho
comum, mas era estúpido do ponto de vista da dinâmica do governo chinês. Mas
são questões que tínhamos sobre a autoridade. Então eu quis movimentar a história
em relação a essas questões de autoridade. E, de fato, o que eu descobri no final
das contas, após mais de 20 anos de pesquisa, é uma situação totalmente diferente
da situação na qual me formei e, inclusive, da época da formação das ciências
sociais. Então eu trabalhei sobre o chefe, a autoridade, e percebi que a afirmação
das ciências sociais, em particular por Weber e Durkheim, se dava em uma época
em que, justamente, a liderança tornava-se um problema: a liderança das massas
dentro da produção, dentro da guerra, e até mesmo na revolução.
Na verdade, a sociologia, em sua própria definição, e mais amplamente as
ciências sociais – já que a psicologia também estava incluída – tratavam, de certa
forma, dessa questão da autoridade, e outras intervinham, de alguma maneira, na
sociedade. O que eu descobria no momento do lançamento do meu livro em 2013,
é que a situação da relação com a autoridade, com a hierarquia, era totalmente
diferente. E é por isso que eu me interessei pelos movimentos dos anos 2010,
grosso modo a partir dos eventos de Tunis, em dezembro de 2010, que surgiram
como um movimento sem lideranças.
Eu acho, portanto, que há ao mesmo tempo uma interrogação da história a
partir do presente, mas – e isso é justamente algo que eu venho dizendo – os movi-
mentos sociais dos anos 2010 – no mundo, não somente na Europa e nos EUA, mas
na Ásia, até na África (Burkina Faso), no Brasil – interrogam as ciências sociais
em suas próprias bases, sobre suas maneiras de interpretar e suas maneiras de
relacionar-se com a atualidade, com o contemporâneo.

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 15

Revista Plural  Como você vê essas manifestações que você citou – a partir da
primavera árabe, passando pelos indignados e essas jornadas de junho no Brasil
–, que de certa forma mostraram uma crítica às instituições e à classe política de
uma forma geral, também talvez uma crítica a essa antiga forma de liderança?
De acordo com seus estudos, que abrangem o final do século XIX até hoje, você
conseguiria traçar alguma hipótese explicativa para esse tipo de modificação
de que você fala, com a qual as próprias ciências sociais não conseguem lidar?
Yves Cohen Em primeiro lugar, acho que não devemos, como muitos intelectu-
ais fazem, nos limitar aos Indignados, ao Occupy. Pois é um desenvolvimento
mundial. Na Tunísia, não queriam ser um movimento sem líder, eles se
perceberam assim, e então o reivindicaram. No Egito, a mesma coisa. Na
Turquia também; aliás, ali tratava-se de um objetivo tão pequeno quanto o
aumento de vinte centavos no Brasil: a preservação do Parque Taksim Gezi em
Istambul. No entanto, esse pequeno motivo provocou algo enorme, totalmente
inesperado por todos. E, mais uma vez, sem liderança, com uma maneira de se
organizar no próprio lo-cal, como em Kiev.
É preciso sair da ideia de considerar apenas os movimentos dos Indignados e
Occupy, caso contrário nos limitamos aos países da velha democracia. Se obser-
varmos esses movimentos sem líderes e sem partido no mundo, eles estão também
fora da Europa Ocidental. Estão na Europa Oriental, na Europa Meridional, e em
outros continentes. Então, há uma dinâmica mundial. Acho que, contrariamente
ao que você diz, ela não é anti-institucional. Ela coloca problemas específicos que
são deliberados pelas próprias pessoas (em um vocabulário antigo, pela própria
multidão). A multidão delibera ali mesmo ou pelas redes. Nas ruas, é claro, se for
possível permanecer ali. Ela delibera em torno dos objetivos, e os objetivos que
emergem são objetivos que reúnem centenas de milhares ou milhões de pessoas,
de maneira totalmente inesperada.
No século XX, dizia-se às pessoas tanto nas empresas, no exército, é claro,
mas também nos movimentos sociais e políticos: “É preciso se organizar, ter um
chefe”. É o que diz o “Que fazer?” de Lênin, de 1902. O bolchevismo é isso: os
bolcheviques devem ser chefes. “Precisamos de uma organização de chefes”, é o
que diz Lênin, exatamente como os outros.
Esses movimentos fazem uma crítica em atos de tudo isso. É claro que já
havia movimentos como o de Maio de 68. Mas em Maio de 68 nós tínhamos um
horizonte que era revolucionário, e a ideia era fazer uma revolução melhor do
que as outras (do que a soviética, do que uma revolução cultural antiburocrática
como a chinesa...). Eu acho que esse objetivo revolucionário não existe mais hoje.

2018
16 Dmitri Cerboncini Fernandes

Fala-se de revolução, mas não é a mesma, não é uma revolução de classes. É bem
diferente. E é uma crítica em atos. É por isso que não concordo com quem diz
que não deram em nada. Muitos dizem isso, que os movimentos das praças não
chegaram aonde queriam chegar. Mas não era o objetivo deles chegar a
alguma revolução. O objetivo era derrubar Ben Ali, derrubar Mubarak,
derrubar Yanukóvytch, impedir o aumento de vinte centavos nos transportes. E
era por isso que milhões de pessoas compareciam. Para além de objetivos
pontuais como esses, esses milhões já não comparecem mais! E é isso que nos
interessa, e que talvez não consigamos entender.

Revista Plural  Poderíamos pensar então que são movimentos que são mais reação
ao estado de coisas, por exemplo a Mubarak, aos vinte centavos, a toda uma situ-
ação de constrangimento social de várias sociedades ao mesmo tempo, do que
manifestações de uma ação visando a transformação global do mundo?
Yves Cohen  Sim, mas se você olhar as revoluções que funcionaram – 1789 na
França, 1917 de que muito se fala – eram reações também. Só que houve um mo-
mento em que surgiu a ideia de fazer uma constituinte, ou de se livrar da reale-
za dentro da dinâmica da revolução. No começo eram reações, inesperadas. Em
1917 também, era antitsarista, mas houve o partido bolchevique, que soube cap-
tar a dinâmica do acontecimento. E é isso que difere, e que abre um período ex-
tremamente interessante da política. Esses movimentos não querem destruir a
sociedade, não querem acabar com a democracia representativa. Eles querem al-
guma coisa, apenas. No entanto, isso é insuportável para o poder. Seria fantásti-
co se fosse possível que um processo como esse, que é democrático, mas de uma
democracia diferente, direta, conseguisse conviver com a democracia represen-
tativa. Mas o poder detesta isso, como o que aconteceu na Turquia. A dinâmi-
ca da ditadura turca se inicia no movimento do Parque Gezi. Putin, um dia após
a destituição de Yanukóvytch, que foge da Ucrânia, toma a Crimeia, para punir.
Ou seja, ele toma um território e provoca uma guerra no leste da Ucrânia. Então,
são reações extremamente violentas contra um movimento que dizem ser peque-
no e não ter chegado ao seu objetivo. E foi o Exército que aproveitou para termi-
nar. Veja no Egito. Duas vezes as pessoas voltaram a se manifestar. Se manifes-
taram uma vez, houve eleições e a Irmandade Muçulmana ganhou. Em seguida
voltaram a se manifestar, quando o Exército interveio para prender, matar e li-
quidar o movimento.
Então, temos uma reação extremamente violenta contra movimentos que,
eles próprios, não estão em uma dinâmica de violência. E é isso que é interessante,

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 17

pois se trata de um vocabulário da ação totalmente diferente ao que estamos


acostumados. Todos dizem “mas para além das mobilizações, é preciso institucio-
nalizar-se”. Justamente, não! A grande aposta desta dinâmica é justamente que
se mantenha uma tensão entre o que é institucionalizado e o que não é. Porque se
esses movimentos se institucionalizam, isso desemboca em um Podemos ou um
Siriza, ou seja, partidos de governo quase como os outros.
Há um nível também muito interessante. Na França, por exemplo, não houve
muita coisa. Teve um Occupy bastante fraco, e o Nuit débout no ano passado
(2016), que foi uma experiência extraordinariamente interessante. Uma espécie
de experiência de democracia direta, mas com seus limites.
Na verdade, as democracias tradicionais, ou seja, as velhas democracias
– contrariamente ao caso brasileiro, de uma democracia muito jovem –, elas
absorvem esses movimentos. Mas o que acontece? E isso ainda é pouco estudado
pela sociologia. Há um movimento muito mais subterrâneo de associações, de
grupos, de coletivos horizontais para fazer jardins, para trabalhar com a economia,
com a cultura, universidades operárias, para defender imigrantes, por exemplo.
Uma multiplicidade de coisas que não são muito visíveis mas que agem sobre o
social muito profundamente, e que estão nesta mesma crítica do século XX.
Há algo muito importante na França, por exemplo, que é a associação. Há
uma lei, de 1901, que tornou possível a associação. Mas o que é característico é
que a associação não necessita de autorização do Estado, basta declarar a asso-
ciação para que ela exista. Até então, criava-se uma associação com um escritório,
presidente, presidente-adjunto, tesoureiro, era necessário uma diretoria eleita por
uma assembleia geral. Há alguns anos, criam-se associações sem diretoria, sem
presidente, porque não está na lei. As prefeituras têm dificuldades em registrá-las,
mas são obrigadas a fazê-lo. São as chamadas associações colegiais (associations
colégiales).
Ou seja, não há apenas os movimentos das ruas e das praças. Tem também
todos esses pequenos movimentos, e me parece que existe isso também no Brasil.
Eu conheci, em Belo Horizonte, um professor de Belas-Artes, na UFMG, que
mantém, com outras pessoas, um coletivo de artes locais, que foi instalado em
uma casa aberta, e que me disse que existem vários, em vários lugares diferentes.
No Brasil, tiveram as manifestações de junho (de 2013), mas elas foram conti-
nuadas pelo movimentos dos alunos secundaristas, um movimento que surgiu
de maneira espontânea. Um pouco no princípio do MPL, sem partido, sem
líder, autônomo. Ou seja, há um trabalho muito profundo das sociedades, e é
isso que é preciso entender.

2018
18 Dmitri Cerboncini Fernandes

Revista Plural  É interessante isso. Talvez por meio desse exemplo dos alunos secun-
daristas se compreenda bem isso que você está tentando dizer, essa mudança
de forma... Mas, de uma maneira ou de outra, fazendo uma provocação aqui:
contrapondo a essa visão de um certo horizontalismo formal que essas associa-
ções estão tomando no mundo, temos também algumas situações no Brasil que
são essas situações de concentração muito grande de poder, principalmente a
concentração midiática. E vemos que muito dos movimentos daquele momento,
de 2013 principalmente, que apareciam como movimentos que não conseguiam
mais suportar a corrupção, hoje praticamente inexistem. Houve talvez uma insu-
flação muito grande por parte da imprensa, uma imprensa comprometida com
uma agenda ou não... Como conciliar essa visão que de fato existe uma nova
horizontalidade em torno da forma desses movimentos e uma concentração de
poder, principalmente ideológico e econômico muito grande, de outro lado? Você
já pensou em alguma forma de lidar com essa interconexão, qual seria uma nova
forma de relação entre mídia e sociedade no mundo de hoje, em todos esses movi-
mentos, ou no Brasil em específico?
Yves Cohen  É uma pergunta muito importante. Eu não estava no Brasil durante
as manifestações de junho, mas eu estive aqui depois e pesquisei bastante. Algo
me pareceu muito interessante. Justamente as questões da corrupção vieram
através da interrogação dos meios de comunicação. Mas os meios de comunica-
ção estão numa mesma situação que os poderes, ou seja, eles precisam de porta-
-vozes. Acho que essa é uma questão muito difícil de se resolver.
Mas há um outro aspecto que me parece importante. Movimentos se desenvol-
veram, que são anticorrupção, e de direita. Eles eram contra a corrupção porque
eram, na verdade, contra Lula e Dilma, e isso desde as manifestações de 2013.
Aliás, é uma das razões pelas quais o MPL se retirou das manifestações a partir
de um certo momento. Em primeiro lugar, porque eles tinham alcançado o
objetivo deles. Em segundo lugar, porque eles não sabiam o que fazer em um
movimento que propunha algo totalmente diferente.
E eu vi, nos anos seguintes, 2014, 2015, que houve manifestações contra a
corrupção que estavam, na verdade, aparentemente quase nos mesmos princípios:
“A democracia está nas ruas”. Aparentemente também sem chefe, sem partido, mas
uma vez que Dilma foi destituída, não havia mais nada.
Há uma coisa que é preciso pensar. Esses movimentos de rua, da maneira
como se desenvolveram na década de 2010, não são, finalmente, nem de direita nem
de esquerda. E isso cria um problema de interpretação. Porque, afinal de contas,

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 19

a direita, ou melhor, movimentos que a esquerda não reconhece como sendo de


esquerda, também podem se mobilizar desta forma.
Tem o outro aspecto também, o da concentração de poder. Acho que as cons-
tituições do século XX são constituições que se definiram amplamente como
presidencialistas, inspiradas na Constituição Americana. A proposta de Max Weber
também é essa. Ele tinha uma grande desconfiança a respeito do parlamentarismo
na Alemanha. O parlamento seria incapaz de formar e selecionar líderes, então é
necessário um presidente eleito por todos, logo, uma constituição presidencialista.
É o que faz Charles De Gaulle em 1958. Mas ele é diretamente inspirado por Gustave
Le Bon, que é o homem do século na minha opinião. Todo mundo se inspira nele,
em sua obra “A psicologia das massas”, de 1895. Os homens, em multidão, não
poderiam deixar de ter líderes. Todo mundo se inspira nele, inclusive Lênin. Em
“Que Fazer?”, a influência de Le Bon é perceptível. Além disso, não somente De
Gaulle era leboniano, mas ele participou, nos anos 1920, do salão de Gustave Le
Bon em Paris. A relação é direta.
As constituições presidencialistas supõem a concentração do poder, e muita
gente aprecia muito essa forma de poder, que a agarram e só buscam reforçá-la.
Além disso, estamos confrontados a uma interpretação do social que deve ser um
pouco nova porque não estamos nem um pouco acostumados a pensar movimentos
que rejeitam as formas hierárquicas. Eles não são interpretáveis pelo poder, e é
por isso que o poder os detesta. Pois na ausência de interlocutores, os poderes
não têm nenhum controle. Não podem comprar ninguém, não podem reprimir
individualmente alguns líderes para destruir o movimento. Então, resta fazer a
repressão de massas.
Temos dificuldades pra interpretar o que está acontecendo. É por isso, aliás,
que na minha opinião é preciso refletir com as pessoas que estão ali dentro,
com ativistas reflexivos. E acho que podemos ter surpresas. Os movimentos de
extrema esquerda não estão acostumados com isso porque são passadistas, têm
uma visão um pouco antiga das coisas. Aliás, na maior parte do tempo eles estão
afastados desses grandes movimentos das praças. Eles não estão lá! Não conse-
guem se integrar, estão pensando em outra coisa, estão pensando além. E, mais
uma vez, é o esquema de “Que Fazer”: ao final da reivindicação que está sendo
feita – Lênin falava de reivindicações econômicas – está a revolução. Por exemplo,
movimentos chegaram na Praça Maidan, em Kiev, dizendo “Tudo bem, é preciso
assinar o tratado com a União Europeia, mas e o social, e os salários, e o aumento
dos preços?”. Mas não era disso que se tratava. Estamos acostumados com algo
diferente, por isso temos muito a aprender, e é muito difícil.

2018
20 Dmitri Cerboncini Fernandes

É por isso que, de certa forma, os poderes, em democracias que não são
capazes de absorver isso – dou o exemplo da França, das velhas democracias – é
a força, o autoritarismo.

Revista Plural  A fórmula estatal weberiana, do final do século XIX, que é sobre
o monopólio da violência...
Yves Cohen  Exatamente. O uso máximo disso. Porque na França, a partir de um
momento, não é mais possível discutir.
O exemplo que eu vou dar, da França, é um exemplo muito interessante, dessa
captação dos movimentos pela democracia. É o atentado ao Charlie Hebdo, no dia
7 de janeiro de 2015. Houve uma mobilização, lançada no Facebook por jornalistas,
marcada para as 17 horas na praça da República. Dezenas de milhares de pessoas
se encontraram na praça. Então aí também, sem líder, sem partido, sem orga-
nização, e foi extraordinário. Extraordinariamente emocionante, uma bondade
recíproca, uma inventividade! As pessoas inventaram slogans, como Liberté des
Crayons (“liberdade dos lápis” – um trocadilho com liberté d’expression), On
n’a pas peur (“não temos medo”), ou Pas d’amalgame (“Sem amálgama”), que
significa não confundir muçulmanos com islamistas. A própria praça inventava
palavras de ordem. Foi realmente emocionante. E durou horas, certamente 100 ou
150 mil pessoas participaram. E eu acho que foi, em grande parte, graças à força
dessa praça que François Hollande decidiu fazer uma manifestação no dia 11 de
janeiro. Quer dizer, houve, além disso, os atentados do dia 9 de janeiro. Mas uma
democracia como a democracia francesa foi capaz de perceber o que acontecia e
transformá-la em uma operação. Isso é uma coisa interessante no último livro de
Boltanski e Chiapello, “O novo espírito do capitalismo”,2 porque uma das teses do
livro é que o capitalismo foi capaz de incorporar a crítica (ele fala de crítica social
e artística) do capitalismo e também, aliás, a crítica da autoridade. E é verdade que
o capitalismo, por sua vez, experimenta formas de cooperação e colaboração que
são menos hierárquicas. É claro que quando o mestre, e não dezenas de milhares
de pessoas, nos diz “libertem-se”, nós suspeitamos. Mas mesmo assim, há uma
reação, para se adaptar a isso.

Revista Plural  Mesmo lá dentro dos escritórios, hoje em dia, é muito bem vista
essa questão de “não, não somos mais chefes, todos somos colaboradores”. Ainda

2 Bolstanki, Luc; Chiapello, Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Editora WMF Mar-
tins Fontes, 2009.

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 21

que, materialmente, as coisas ainda não funcionem assim, pelo menos é algo que
perpassa o espírito de época, e as pessoas querem viver esse tipo de horizonta-
lidade também.
Você acha que, no meio disso tudo, existe ainda algum tipo de especificidade
nesses movimentos em termos de o que viria a ser uma esquerda, o que viria a
ser uma direita? Ou isso já se confundiu muito, de acordo com essas pautas que
foram aparecendo? Por exemplo, na Europa tem a questão dos atentados. Como se
movimenta a esquerda em relação a esses movimentos sociais, em relação a essas
pautas, a essas agendas? E no Brasil, seria possível dizer que existe uma esquerda
e uma direita muito específicas, onde se vê a defesa de pautas e de agendas? Há
uma possibilidade de isso se converter em movimentos, ou é aquilo mesmo que
você disse: uma esquerda tradicional um tanto quanto perdida naquela multidão,
sem saber direito como se colocar, com aquelas formas de ação provenientes de
outras formas de organização? Como você vê essa questão desse geografismo
social em se colocar o mundo entre esquerda e direita dentro desse novo contexto?
Yves Cohen  Eu acho, em primeiro lugar, que nós estamos acostumado a querer
classificar entre direita e esquerda e estamos acostumados a refletir sobre o des-
tino da esquerda. Nós somos de esquerda. E, principalmente, “eu sou de esquer-
da, porque não sou de direita”. E a esquerda tem sido extremamente decepcio-
nante nesses últimos anos; é o caso da França e, evidentemente, do Brasil. O que
significa “de esquerda” no Brasil quando o Partido dos Trabalhadores foi o orga-
nizador – não o primeiro, talvez não o mais esperto – da corrupção a altíssimos
níveis? A questão é: o que significa manter-se de esquerda hoje? É aí que será ne-
cessário pensar, e pensar muito, e pensar em função de uma realidade que nos
escapa completamente, inclusive a nós, pesquisadores de ciências sociais. Admi-
tamos que seja necessário respeitar a democracia representativa porque não há
outra. Eu permaneço otimista, porque vejo que há uma dinâmica em outro lugar,
que não se define em termos de direita e esquerda. Que se define, aliás, talvez por
valores que são o fundamento da esquerda: a solidariedade e a igualdade. Acho
que há uma renovação do valor de igualdade que é fantástico. Bom, eu tenho uma
formação francesa, da igualdade de direitos, de 1789, “Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mas a igualdade de direitos, nós
vimos no desenvolvimento dos séculos XIX e XX: talvez haja uma igualdade dos
direitos do cidadão, mas há uma desigualdade fundamental econômica e tam-
bém do jogo político. Por milhares de razões. E é essa desigualdade que se tornou
totalmente insuportável. Há uma nova concepção da desigualdade em que não se
suporta mais que possa haver desigualdade por razões econômicas, etc. Há uma

2018
22 Dmitri Cerboncini Fernandes

busca de igualitarismo, de cooperação igualitária que me parece bastante nova,


renovando a concepção “Revolução Francesa” da igualdade.
Então, eu acho que esses valores motivam mais os movimentos. Igualdade
significa também igualdade de religião. Por exemplo, fico muito tocado por teste-
munhos que recebo do que aconteceu do ponto de vista religioso no Egito ou na
Turquia. Na Turquia, muçulmanos e cristãos rezavam juntos, em público, e homens
e mulheres muçulmanos rezavam juntos sem se separar em locais diferentes. É uma
redefinição do que é a igualdade e o respeito mútuo. Então, acho que é esse tipo de
valores que me parece interessante nesses movimentos, e não uma referência em
termos de direita e esquerda. Para mim, não há razão para que esses movimentos
sejam mais de direita que de esquerda. E isso coloca um conjunto de questões.
Pois, por exemplo, a extrema esquerda tem um discurso sobre o movimento de
Maidan na Ucrânia tratando o movimento como fascista. Porque havia, de fato,
fascistas no local. Mas se fosse um movimento de esquerda, haveria confrontos
e os fascistas teriam sido expulsos da praça, eu imagino. Mas não foi o caso. Eles
não definiam, de maneira alguma, a dinâmica da praça. Eles estavam lá e, aliás,
só tiveram 2% nas eleições (eu explicarei a relação com as eleições). Mas eles não
definiam a praça. Na verdade, houve confrontos com grupos de autodefesa fascistas
e os grupos de autodefesa da praça, mas são os fascistas que estavam em menor
número. Certa vez, por exemplo, um grupo de autodefesa fascista acusou outro
grupo: “Vocês vão nos deixar a praça, seu cu preto”, que é um tipo de insulto racista
para designar os caucasianos na Ucrânia e na Rússia. E o grupo de autodefesa da
praça, que não era fascista disse: “O que você disse? E de que nacionalidade era o
primeiro morto de Maidan?”. Era um armênio (um cu preto). Então, os fascistas
haviam perdido. Os fascistas foram contidos na praça. A praça não era fascista,
isso foi propaganda do Putin.
Esses movimentos não se definem dessa forma, nem em termos de associação
ou coisas do tipo. E esse é um dos fatores que contribui ao incômodo dos políticos.
Porque os políticos precisam se definir, e ter bandeiras de esquerda ou direita
para melhor tentar captar o eleitorado. Mas, definitivamente, não é o caso desses
movimentos.
Acho que há uma dinâmica difícil de entender pois, em primeiro lugar, é
surpreendente. Isso confunde nossos modos de interpretação, que são concebidos
no mundo antigo e em relação a esse mundo antigo. Mas, na verdade, estamos no
início de um processo de grande escala. E eu espero que esses movimentos não
sejam sempre reprimidos com sangue.

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 23

Mesmo no Brasil, a dinâmica da reação de 2013 contra o governo provinha do


sentimento de não querer nunca mais aquilo. É uma dinâmica muito forte.
Então, é preciso se acostumar a pensar que há outra coisa, uma dinâmica
processual de uma outra vida democrática, tanto pública quanto de organizações
coletivas, etc. que se inicia e que podemos desejar que não seja sempre a guerra
ou a ditadura, como na Turquia ou no Egito. Um bom exemplo é a Tunísia.

Revista Plural  Por outro lado, a gente vê um tipo de retomada, ou aparecimento


de pessoas que se declaram de direita, não só pessoas, mas também movi-
mentos sociais. A gente vê na França a Frente Nacional tendo uma votação
muito expressiva, de gente que se define de direita, ou nacionalista. E ao mesmo
tempo a gente vê também na esquerda, uma esquerda ou parte dela que se finca
muito hoje em dia nessa questão identitária. Talvez na França tenha sido muito
forte nos anos 1968 e 1970, período no qual surgem os movimentos feminista e
negro renovados no Brasil. Algo que certa esquerda critica muito, por dizer que
são movimentos que não conseguem integrar as pautas a uma crítica global
ao capitalismo, ficando apenas num viés identitário, diferencialista. A minha
provocação é: sim, por um lado existe uma propensão a uma integração igua-
litária como os exemplos que você colocou. Por outro lado, a gente vê tanto na
esquerda quanto na direita esse tipo de movimentação em se estabelecer novas
fronteiras. Que é algo clássico da direita: estabelecer fronteiras. Pegando essa
questão que você mencionou da igualdade, que virou um valor quase universal,
e tentando contrapor a isso o fato de que a gente enxerga tanto na direita quanto
na esquerda esse estabelecimento de fronteiras. Como você vê isso? Você acha
que talvez seja algo mais restrito à América, por influência dos EUA, e aqui a
gente tenha uma forma mais específica de a esquerda absorver isso, coisa que
não acontece na França?
Yves Cohen  Eu acho que há uma história desses movimentos. Por exemplo, o
movimento feminista é um movimento que age sobre o social em seu conjunto.
Ele cria fronteiras? Claro que podem haver movimentos feministas radicais, por
exemplo, que não admitem homens em reuniões. Mas, no fundo, não são movi-
mentos identitários. Mesmo as lutas de demarcação, são lutas que propulsionam
direitos de pessoas identificadas, mas não têm vocação a construir novas frontei-
ras sociais. Pelo contrário, eles querem destruir as fronteiras sociais.

Revista Plural  Na esquerda, tudo bem, posso concordar, mas e na direita? Por
exemplo, o Front National, e talvez a direita brasileira? Essa direita da França

2018
24 Dmitri Cerboncini Fernandes

é algo que talvez no Brasil não haja algo similar. Mas de uma forma ou de outra,
você acha que aqui essa direita se organiza de uma maneira....
Yves Cohen  É muito complicado. Mesmo na França, é mais complicado do que
isso. Uma das coisas que fortaleceram o voto em Le Pen foi também um protes-
to. Para muitas pessoas, uma vontade de protestar que já não havia na França, e
eles a encontraram ali.

Revista Plural  Não seria uma direita autêntica? Não são direitistas autênticos
que foram votar nela então?
Yves Cohen  Claro que há um núcleo de direita. Mas há uma parte do eleitorado
que são comunistas ou socialistas. E há outro aspecto: nós vemos muito os popu-
listas, os racistas e os nacionalistas, inclusive nas ruas, e muito se fala disso. Mas
há muita gente nas cidades e nos vilarejos que, quando são confrontadas com a
chegada de refugiados, está mais para atos de solidariedade, de generosidade, de
se abrir e se organizar para ajudar. Então há também milhares de práticas locais
que são quase invisíveis. Tem um caso famoso na França de um agricultor que,
na fronteira italiana, organiza a passagem da fronteira italiana até a França, e foi
processado. Mas esses movimentos a gente vê menos. Às vezes, as mesmas pes-
soas votam em Le Pen e ajudam a abrir ginásios para abrigar refugiados, quan-
do são confrontados com situações concretas. O que ocorre é que Le Pen dá um
nome ao protesto deles. Mas acho que ainda nos confrontaremos muito com isso.
Porque as ondas migratórias e de refugiados apenas começaram. Então nos con-
frontaremos com isso continuamente, e com tentativas de identificação e de for-
talecimento de políticas identitárias.

Revista Plural  Na França, as pessoas se confrontam com esses casos específicos,


e ali a gente vê as contradições. No Brasil, por exemplo, a gente vê uma figura
que talvez quisesse ocupar esse espaço político, o deputado Jair Bolsonaro. Uma
figura misógina, que coloca centralmente uma pauta endêmica que temos no
Brasil, que é a violência. Mortes por assassinato por ano, nós temos mais aqui
do que na guerra da Síria.
São questões complicadas e ele se coloca como um salvador, talvez como a
Le Pen. Por outro lado, nos EUA temos uma figura que foi eleita, o Donald Trump,
que de uma forma ou de outra surge em casos semelhantes.
Você acha que esses novos movimentos, de alguma forma, por não estarem
vinculados a essa noção de uma direita e esquerda antigas, ou de ter essa
coerência que a gente pede aos intelectuais, ou aos intelectuais antigos, emba-

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 25

sados nas antigas figuras de liderança, precisam de uma pessoa como as citadas
para organizar suas demandas? Com esse tipo de modificação desses movimentos,
eles podem gerar esse tipo de político a ser eleito por conta de demandas espe-
cíficas do país, de medos, de questões que emergem?
Yves Cohen  Eu não acho. Veja, o eleitorado de Trump é de fato um eleitorado
de pessoas esmagadas pela economia, pessoas pobres, e que são esmagadas por
Trump também. Mas é também esse eleitorado racista; quando vemos o que ele
manifesta, a gente vê o Ku Klux Klan. Não é uma organização nova e portadora
de ideais igualitários. É isso que se vê, é a referência nazista.
Uma coisa que me interessa, que tento refletir junto com outras pessoas, é
justamente a que preço, e como esses movimentos conseguem ser inventivos. E
isso supõe uma capacidade de deliberação. Eles têm essa capacidade. Quando eles
se instalam em uma praça, quando se encontram todos os dias no mesmo lugar,
quando debatem na internet etc. há uma capacidade de liberação que é muito
mais forte do que simplesmente as formas organizadas hierárquicas tradicionais.
Há uma forma de co-presença de pessoas que são muitas vezes de origens sociais,
raciais e políticas muito variadas, e logo uma dinâmica de debate que, na minha
opinião, não costuma conduzir a manifestações racistas etc. Claro, isso pode
acontecer também. Na França há manifestações de direita que foram muito bem
sucedidas. Manifestações contra o casamento para todos (mariage pour tous),
por exemplo. Manifestações organizadas, no final das contas, pela igreja ou por
pessoas próximas à igreja, que deram muito certo e reuniram milhões de pessoas.
E fizeram o governo recuar. Ou seja, na França, a manifestação de rua de direita
pode ganhar, também. Evidentemente é o caso de outros países. Mas eu não acho
que, neste caso, tenhamos essa mesma característica de “multidões razoáveis”,
de pessoas que aprendem a se falar na confrontação. Isso supõe condições muito
precisas de poder, coabitar ou ocupar locais. Muitas vezes não é o caso. Aliás não
era o caso das manifestações de junho, que eram manifestações esporádicas. O
movimento de junho não ocupou o vão do MASP.
Acho que é essa a reflexão que devemos ter. Até que ponto as multidões não
são multidões demoníacas de Le Bon, mas são multidões razoáveis. No fundo, são
multidões da economia moral de E. P. Thompson, na qual podemos ter reivindi-
cações categoriais, como a de camponeses que querem manter o preço do trigo e
impedir a especulação...

2018
26 Dmitri Cerboncini Fernandes

Revista Plural  Nesse aspecto, você acha que esse tipo de multidão estaria mais
próximo de ocupar um espaço de uma democracia direta do que servir de uma
massa amorfa para ser manipulada por um lado ou outro?
Yves Cohen  Sim. Justamente, esses movimentos não são manipuláveis. Além dis-
so, eles desaparecem muito rápido, já que eles só existem porque têm uma rei-
vindicação muito específica. Então, uma vez que são bem sucedidos... E muitas
vezes foram, mas não sempre. Por exemplo, houve um movimento desse tipo na
Bulgária, contra o governo búlgaro. Um movimento da rua também, em que as
pessoas ocuparam as ruas durante dois meses, no verão de 2013, exclusivamen-
te por efeito das redes. E não foram bem sucedidos.
Então são movimentos que, por definição, justamente por não serem insti-
tucionalizados – o que não é um defeito, na minha opinião – não podem ser
instrumentalizados. Eles tampouco têm uma repercussão eleitoral. Aliás, quais
foram as eleições depois das manifestações de 2013?

Revista Plural  Em 2014, foi a presidencial.


Yves Cohen  Isso, e a extrema esquerda não teve votação expressiva. Eu discutia
com amigos que se espantavam com isso, que após 2013 nada havia mudado em
2014. Pois é, porque são coisas totalmente diferentes. São coisas que não se mis-
turam, e não repercutem uma na outra. Aliás, um exemplo forte disso é Maio de
68, na França. Tivemos o maior movimento social da história francesa: 10 mi-
lhões de grevistas, muito mais do que em 1936, à época do Front Populaire. Um
fantástico movimento de estudantes, camponeses, trabalhadores, o movimento
social mais forte. E no final das contas, no dia 30 de junho, a câmara mais à direi-
ta que a França conheceu. Nenhuma repercussão eleitoral do movimento. A lição
é essa: não esperar uma repercussão eleitoral. Reconhecer que existe uma demo-
cracia representativa e uma democracia não institucionalizada, direta. Uma for-
ma de democracia muito mais difícil, porque ela é muito menos palpável. Mas re-
conhecer essa interação. É isso que é difícil e é algo que ainda não terminamos de
refletir sobre, na minha opinião.

Revista Plural  Você estudou, no seu livro Le siècle des Chefs, formas específicas
de autoridade, e autoritarismo também, que poderia ser o exercício desse tipo
de autoridade em certas sociedades. Você acha que hoje, na história presente,
existem alguns tipos de certo autoritarismo que nós poderíamos comparar com
antigamente, para entendermos a especificidade dele na atualidade? Ou você

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 27

acha que aquele tipo de autoritarismo é algo que diz respeito àquelas sociedades,
e a gente não poderia fazer qualquer espécie de comparação hoje?
Yves Cohen  Aparentemente, o que acontece é que os autoritarismos de hoje em
dia não são de movimentos como o fascismo ou o nazismo. Há o caso da Vene-
zuela, em que o autoritarismo está a ponto de se transformar em uma ditadura
a partir de uma dinâmica socialista, no fundo. Mas o que é interessante, mesmo
aqui, é que muitos dizem que isso é uma ditadura. Mas não é. Mesmo se possa-
mos dizer que houve um golpe de Estado legal. Certamente. Mas não é uma di-
tadura.
E no entanto, há formas muito próximas que designam muito bem o autori-
tarismo nessa forma de suposta legalidade. Aliás, estive em Belo Horizonte, onde
há uma exposição: “Desconstruindo a memória da ditadura”, na UFMG. É uma
pequena e notável exposição sobre a ditadura, cheia de invenções museológicas
e museográficas. Mas houve, não sei de que forma, uma proibição de se fazer a
divulgação, e mesmo de se fazer cobertura jornalística sobre essa exposição. Ela
existe, está aberta, pode ser visitada mas é proibido fazer qualquer cobertura dela.
O que é isso? Pelo governo Temer, claro. Estamos tipicamente em uma forma de
autoritarismo, que não é ditadura. Ninguém é preso, não há processo, não há
violência física. E, no entanto, há algo incrível, que é a proibição da imprensa “livre”
de fazer qualquer cobertura ou divulgação.
Na Turquia é muito mais grave, porque tem milhares de prisões, inclusive
de intelectuais que tinham simplesmente se correspondido com alguém, ou nem
isso. Há dezenas de milhares de professores que estão sendo perseguidos. E neste
caso, também, pode-se dizer que é totalmente legal, há uma Constituição que foi
aprovada. Estamos num totalitarismo que não é necessariamente baseado em um
movimento fascista. Há um totalitarismo que se reivindica como sendo da ordem,
da constituição. Já o caso brasileiro é muito misterioso, pois há um impasse polí-
tico terrível. Um impasse que se constituiu pela desagregação da política e pelo
poder de esquerda também.

Revista Plural  A gente vê aqui como determinados grupos de direita, ou vincu-


lados a pautas de direita, a um liberalismo econômico mais explícito, souberam
lidar melhor com os movimentos que surgiram em 2013. O MBL, por exemplo, que
soube catalisar bastante aquele movimento. Há ainda outros grupos de internet,
como “Vem Pra Rua”, “Na Rua” etc., que são grupos com agenda no mesmo tom
de liberalismo econômico. E a esquerda não conseguiu lidar muito bem, talvez
por estar no poder. Você vê alguma diferenciação entre espectro político e saber

2018
28 Dmitri Cerboncini Fernandes

lidar com essa nova forma de movimento político, ou você acha que nenhum dos
espectros políticos está conseguindo lidar bem com essa nova forma de movi-
mento social?
Yves Cohen  Claramente, no Brasil a direita tentou captar isso. No Brasil, esses
movimentos não são nem de direita nem de esquerda. São movimentos cujas for-
ças vêm de outro lugar, de um objetivo deliberado livremente etc. Então é cla-
ro que a direita tenta captar esses movimentos. E é um momento difícil para a
esquerda no Brasil. Porque a direita evidentemente orientou esses movimentos
contra o governo para fazer deles um movimento político contra o governo. E fi-
nalmente foi de fato um movimento fortemente dedicado ao impeachment de
Dilma. E a esquerda estava num estado completamente incapaz de reagir.

Revista Plural  Essa questão é baseada em uma frase que o Pierre Bourdieu disse,
se não me engano, no livro “Sobre a televisão”. Ele diz que a esquerda estaria a
umas seis revoluções simbólicas atrás dos instrumentos que o Estado e a direita
conseguiram estabelecer como uma espécie de uma doxa no mundo. Não sei se
você concorda.
Yves Cohen  É uma ideia muito boa, com alguns pontos fracos. Por exemplo, a rua
nunca assustou a direita. A direita sempre foi às ruas.
Na França houve, recentemente, um livro publicado por um historiador cujo
título era “A esquerda vai desaparecer?” de André Burguière.3 É essa ideia, mais
uma vez, de sentimento de perda da esquerda. Acho que há, na frase de Bourdieu,
a mesma ideia. De que se a esquerda estiver perdida, não há outra solução.
E é justamente o contrário disso que eu acho que os movimentos dos anos
2010 mostram. Uma outra possibilidade. Que é uma possibilidade de outro social,
outro político para além daquele definido pela oposição esquerda – direita. É tão
difícil pensar pela direita quanto pela esquerda. A direita gostaria de transformar
isso em algo de direita, já que não é nem de esquerda, nem de direita. E a esquerda
não consegue. É o que aconteceu em maio de 68. Houve um momento em que
não havia mais poder estabelecido, no final do mês de maio. Dois dias antes de
De Gaulle deixar a França para ir à Alemanha ver o que o Exército poderia fazer
e ser mandado de volta para a França pelo general Massu – que disse que ali era
o lugar em que De Gaulle deveria estar –, houve a famosa reunião no estádio
Charletty. Foi uma reunião organizada pelo partido socialista; um tipo de convite
ao movimento de 68, nos seguintes termos: Juntem-se a nós e ganharemos. Pois

3 Burguière, André. La gauche va-t-elle disparaître. Paris: Éditions Stock, 2017.

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 29

bem, o movimento de 68 não ganhou! Então, a esquerda se preocupa com isso,


pois é algo que lhe escapa.
Eu acho que é preciso se acostumar a pensar de outra forma. É muito difícil,
eu tampouco tenho a solução. Nós estamos apenas no começo de um processo.
Estamos apenas no começo da reflexão sobre esse processo, que é um processo
em nível mundial, interconectado. Por exemplo, se você observa a revolução no
Egito, é uma revolução que se inspira nos acontecimentos na Tunísia. As pessoas
se conhecem. O movimento do Nuit Débout estava em contato, por exemplo, com
o Brasil. É um movimento mundial.
De fato a gente está acostumado a pensar em termos nacionais. Mas agora,
nós somos convidados a pensar em outros termos, a fazer comparações interna-
cionais, a fazer uso tanto da extensão geográfica como da profundidade histórica.
Precisamos também parar de nos preocupar com o destino da esquerda. Há algo
para além da esquerda. É claro, nem falemos da direita, não se trata de passar para
a direita. Há algo mais, outras formas de reflexão, de organização, de cooperação,
de encontro entre pessoas, de saberes, de competências, de religião, de opinião,
de sexos diferentes.
Eu lamento, pois talvez eu não responda a sua questão sobre os movimentos
de direita.

Revista Plural  Sua visão é no mínimo instigante, e é justamente o que a gente


queria conhecer mais de perto.
Uma última questão, fazendo uma provocação em cima disso que você acabou
de dizer. De fato, a gente está acostumado a pensar em termos nacionais, e isso
que está acontecendo é algo mundial, que não conseguimos entender direito em
suas interconexões e como pode ser algo interessante, que foge desse espectro
direita/esquerda ao qual estamos acostumados. No entanto, a gente vê que,
por outro lado, têm pessoas que pensam em termos globais, e há muito tempo.
São os chamados think tanks, sobretudo os think tanks norte-americanos.
Eles pensam em como fomentar, em vários lugares, aquilo que eles imaginam
que tem que ser, ou como o mundo tem que ser. Eles têm dinheiro para isso, e
investem pesado.
Ultimamente soubemos que movimentos como o MBL receberam dinheiro
da Atlas Network, que é uma das mais famosas dessas organizações norte-
-americanas que congregam um monte de grupos em defesa de ideias liberais
na economia.

2018
30 Dmitri Cerboncini Fernandes

Ainda que tudo isso esteja muito em disputa, será que talvez, em última
instância, não tenha uma força soprando, uma força maior do que imaginamos,
por meio dos tentáculos dessas organizações? E quanto elas não podem desar-
ranjar todo esse potencial que essa forma de democracia direta que vem se
desenhando pode vir a ter?
Yves Cohen  Essa é uma das principais questões, e seria necessário que esses mo-
vimentos, essa dinâmica, se coloquem em uma escala muito ampla também. Evi-
dentemente, esses think tanks não são apenas americanos, mas internacionais
(como Bilderberg, Davos...). Há, de fato, uma porção de lugares em que o capita-
lismo pensa a sua estratégia.
Mais uma vez, é preciso ousar pensar a novidade dessa dinâmica. Por exemplo,
eu acho que os altermundialistas foram muito importantes nessa dinâmica que
conduziu a esses movimentos de Porto Alegre4 etc. Foram lugares de reflexão muito
menos organizados do que seus opostos.
E eu acho que, mais uma vez, a gente não vê tudo. Como fazer? Acho que é
preciso manter a não institucionalização desses movimentos. E isso é um enorme
desafio. Pois uma das coisas a qual estamos acostumados a pensar é que é neces-
sário institucionalizá-los. Eu acho que não, porque neste caso, justamente, passa-se
para o outro lado.
Uma coisa interessante é que muito se diz que são revoluções da era das redes,
do Facebook etc. Mas se isso é possível, é porque estamos em uma época que pode
refletir sobre o passado dos movimentos do século XX. As ferramentas de rede
oferecidas pela internet são absolutamente fantásticas, e têm diversos usos. Se
não houvesse essa reflexão em atos... Aliás, a internet contribui para essa forma
de igualdade não somente pelo fato de podermos nos comunicar e nos colocar em
rede, mas porque podemos acessar formas de saberes. Isso é notável no área da
medicina. Há uma porção de associações, de usuários da medicina que compar-
tilham saberes e se tornam interlocutores da medicina, e isso acontece em largas
escalas. Então é possível que haja coisas acontecendo em grandes escalas para
além das formas de existência às quais estávamos acostumados anteriormente.
É claro que o capitalismo é muito poderoso, inclusive em sua capacidade de
integrar a crítica que lhe é feita. Mas o social age de maneira inventiva, inclusive
desta forma que mencionei, e nessa escala muito ampla. Mas eu sou incapaz de
aprofundar, este não é meu principal tema de pesquisa. Dito isso, esse pode ser
o papel dos intelectuais. Hoje eles não têm um grande papel, grosso modo, eles

4 Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

Plural 25.1
Entrevista com Yves Cohen 31

têm as mesmas posições que a extrema esquerda, e não compreendem muito bem
o que está acontecendo. Eles gostariam que as coisas ocorressem de outra forma,
se perguntam por que esses movimentos não vão mais longe. Mas o que podemos
fazer, e que eu tentei fazer com uma colega socióloga em Paris, é nos reunirmos em
presença de atores reflexivos desses movimentos. É preciso experimentar formas
de encontro e de experiências. Porque pertencemos a instituições que podem pagar
viagens e facilitar encontros pessoais. É muito difícil, tanto mais porque a história
acontece rapidamente.

2018
Artigo

GOLPE NA CULTURA
Intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil1

COUP IN CULTURE
Intellectuals, public university and crisis contexts in Brazil
Maria Arminda do Nascimento Arrudaa

Resumo  O artigo analisa as relações entre as disciplinas humanísticas e culturais, no


contexto da crise brasileira atual, que aprofundou a debilidade das instituições públicas
de ensino superior no Brasil. Reflete, igualmente, sobre o impacto da transformação
do cânone cultural moderno sobre essa área do conhecimento, ao qual se soma o
enfraquecimento da esfera institucional. Nessa perspectiva, chama a atenção sobre
os impasses da área, oriundos tanto do processo de valorização do domínio técnico
e experimental, bem como das profissões ligadas diretamente ao mercado, que
produzem novos desafios aos saberes voltados para o tratamento dos fenômenos sociais
e da cultura, compelidos a repensar o seu arcabouço analítico e os seus problemas
consolidados de pesquisa.
Palavras-chave  Universidade; Cultura; Crise.

Abstract  The article analyzes the relations between humanistic and cultural subjects
in the context of the current Brazilian crisis, which deepened the weakness of
public institutions of higher education in Brazil. It also reflects on the impact of the
transformation of the modern cultural canon in this area of knowledge, to which the
weakening of the institutional sphere is added. In this perspective, it draws attention
to the impasses of the area, both from the process of appreciation of the technical
and experimental domain, as well as the professions directly linked to the market,
which produce new challenges to the knowledge geared to the treatment of social
phenomena and culture compelled to rethink their analytical framework and their
consolidated research problems.
Keywords  University; Culture; Crisis.

1 Este texto resulta de exposição realizada em seminário organizado pelo Grupo de Estudos de
Sociologia da Cultura: Objetos e Perspectivas, que reúne estudantes da Pós-Graduação em So-
ciologia da USP, em 9/12/2016. Por essa razão, o artigo aproxima-se do estilo oral da exposição.
Preservei, também, o tema proposto, expresso no título.
a Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.32-44
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 33

O tema Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos


de crise no Brasil – não é de simples equacionamento. Por articular múltiplos
e importantes problemas, requer o tratamento das partes, o que não exclui o
exercício de relacioná-las e de interpretar o conjunto. O tema sugere, ainda, a iden-
tificação de dois pares conceituais: o de cultura e o de intelectuais; na sequência,
o de universidade pública e de crise. Há uma questão oculta e não integralmente
explicitada, porém importante à interpretação: os intelectuais e a cultura são
componentes da universidade e a crise institucional tem posto em xeque tanto
o ofício quanto o seu legado, deixando dúvidas sobre o seu lugar e pertinência
numa sociedade dominada pela tecnologia e pela ventriloquia das redes sociais.
Nesse contexto, o debate público qualificado perde substância, deslocando atores
tradicionalmente reconhecidos, sejam intelectuais, sejam jornalistas da grande
imprensa. Acrescente-se a essa gama variada de assuntos o título geral, de natureza
conjuntural, que alude à reduzida importância da cultura e do seu par a ciência, na
construção das políticas governamentais vigentes no Brasil; no entanto, o assunto
não se reduz à mera oportunidade, pois remete a problemas de largo escopo. Desse
modo, a proposta alia temáticas de diversa natureza, pois combina visadas de
alcances distintos. O golpe na cultura não se desprende, portanto, de processos
sociais contemporâneos; tampouco se reproduz de maneira uniforme em contextos
distintos. No caso brasileiro, a atual conjuntura de crise das instituições produz
expressões peculiares às questões sugeridas pelo tema.
Pensando nesses termos e sem refletir particularmente sobre cada uma das
categorias de cultura, intelectual, universidade, parece ser possível admitir que,
pelo menos no Brasil, a identificação entre intelectuais, universidade e cultura
é datada, revelando a impossibilidade de se operar com noções substantivadas.
Para explicitar a minha compreensão a respeito, esclareço que tomo a noção de
intelectual no sentido comum, isto é, refere-se àqueles que produzem nas áreas
das chamadas humanidades (categoria ela própria repleta de controvérsias) e das
artes (se é possível encontrar algum consenso a respeito). Diante de tais questões,
é aconselhável localizar algumas compreensões difundidas no meio que apontam
para o universo das representações dos próprios participantes2.

2 No Brasil, Roberto Schwarz tem contribuições interessantes à reflexão sobre os intelectuais,


especialmente sobre os intelectuais engajados. No ensaio Nunca fomos tão engajados, identifica
o moderno intelectual “ao antifascismo europeu, ao ascenso operário do pós-guerra e chegou
até ao terceiro-mundismo dos anos 60. Salvo engano, ela pressupõe a formação burguesa do
intelectual, e, de outro lado, uma semi-exclusão civil e cultural dos trabalhadores. Mais no fundo,
deslocando tudo tragicamente, estava a Guerra fria”. (Schwarz, 1999, p.172).

2018
34 Maria Arminda do Nascimento Arruda

O entendimento de que haveria uma relação entre os intelectuais e a univer-


sidade pública, identificando-a como instituição central na produção de cultura,
vicejou especialmente em São Paulo, após a fundação da USP, em 1934. Diferen-
temente da França, onde a imagem do intelectual se difundiu no bojo do processo
Dreyfus, quando o escritor Èmile Zola denunciou a falsidade da acusação de traição
do oficial, no Brasil, a institucionalização do estilo universitário paulista, ao longo
dos decênios de 1940-1950, promoveu uma espécie de identificação entre cultura e
intelectuais, na figura do acadêmico cônscio dos seus instrumentos disciplinares3.
As distinções de constituição do intelectual moderno entre os dois países revelam
diferenças marcantes da atividade: entre nós, as instituições públicas e o Estado
eram, para o bem e para o mal, a garantia do exercício letrado; na França, o
caráter diferenciado da cultura francesa, resultado da universalização da educação,
conferiu maior independência à vida intelectual; em ambos os casos, a moderni-
zação da imprensa alterou os meios de difusão das ideias, ainda que ocorressem
diferenciações quanto aos vínculos e a natureza da contribuição, originadas das
particularidades dos países.
Nesse contexto de particular inserção da intelectualidade brasileira, a vida
cultural percorreu um circuito primordial no ambiente das instituições, movimento
pleno de consequências, uma vez que o exercício, a ação e o alcance dos intelectuais
ficaram submetidos às constrições do contexto, como aconteceu durante a dita-
dura militar instaurada em 1964, sem desconhecer a excessiva normatização das
universidades nos dias atuais, óbices poderosos à atividade, como já demonstrara
a criação do sistema de pós-graduação, no bojo do regime autoritário na década de
19704. Até a criação da universidade, a imagem corrente do intelectual confundia-se
com personalidades publicamente reconhecidas, de formação eclética, comumente
polígrafas, produtos híbridos do bacharel e do literato, como bem analisou Sérgio

3 O artigo J’accuse, publicado por Zola, no jornal e L’Aurore, em 13/1/1898, a respeito do episódio,
é considerado um marco na construção da imagem do intelectual defensor de causas públicas.
O acontecimento selou uma aliança entre a imprensa de opinião e a intelectualidade francesa.
Nesse sentido, representa uma clivagem na história dos intelectuais e da imprensa. No Brasil, a
enquete realizada pelo jornal O Estado de São Paulo, denominada Plataforma da Nova Gera-
ção, nos anos 1943-1944, sob a coordenação de Mário Neme, com 29 representantes da geração
emergente de intelectuais, entre os quais os jovens acadêmicos da revista Clima, pode ser visto
como uma espécie de manifesto da intelectualidade nascente. Cf: Pontes (1998), especialmente,
capítulos 2 e 4.
4 A minha perspectiva de análise sobre a universidade tem como referência a Universidade de São
Paulo – USP – na qual sou professora e venho ocupando cargos de direção. Creio, no entanto,
que por ser a instituição de referência no Brasil, permite que seja tomada como modelo para
tratar dos problemas atuais dessas instituições de ensino superior. Esclareço, no entanto, que
as minhas considerações se restringem às instituições públicas.

Plural 25.1
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 35

Miceli5. Não obstante, a geração de 1930, dos ensaístas modernos, comumente


denominados “intérpretes do Brasil”, representou uma clivagem no modelo até
então corrente, por sua condição de figura mista entre a personalidade cultivada
e o especialista, já agora embebida no caldo cultural do modernismo, mas que já
se aproximava de campos disciplinares, a exemplo de Gilberto Freyre visto como
sociólogo, Caio Prado Júnior como historiador e Sérgio Buarque de Holanda como
representante das duas tradições.
No pós-guerra – e independente do vínculo institucional - o intelectual identifi-
cava-se, sobretudo, com o profissional crítico, formulador de projetos para a nação,
situado nos altos escalões governamentais, a exemplo do economista cepalino Celso
Furtado; dos participantes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – Iseb,
espécie de agência ideológica do desenvolvimentismo e da modernização; daqueles
filiados ao Partido Comunista, denominada pelo sociólogo Marcelo Ridenti de
“brasilidade revolucionária, [...] criação coletiva, [que] viria a definir-se com mais
clareza a partir do final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte,
seguido de seu declínio” (R identi, 2010). A chamada intelligentsia mannheimiana,
dos intelectuais formuladores dos destinos coletivos, distinguia-se da comunidade
mertoniana, de corte acadêmico, que opunha dois modelos de projetos políticos
e disciplinares e, ao mesmo tempo, diferenciava os campos culturais do Rio de
Janeiro e de São Paulo (Vianna, 1997).
O pós-guerra no Brasil produziu um adensamento do campo cultural, na
esteira do processo de modernização do país, ultrapassando os modelos até
então vigentes. Os acadêmicos da Universidade de São Paulo, herdeiros de Clima,
como Antonio Candido e outros de grande significado na cena cultural da cidade
e os cientistas sociais congregados em torno da denominada Escola paulista de
sociologia, dirigida por Florestan Fernandes, eram representantes conspícuos
da mudança e diferenciação do meio (A rruda, 2015; Pontes, 1998). Alterava-se,
enfim, o estilo dos intelectuais, que, apesar do perfil universitário, aproximou-se
do ideário da “brasilidade revolucionária”, movimento derivado, primeiramente, da
própria modernização conservadora que alijava da cena político-social as camadas
populares; posteriormente, a repressão instaurada pelo regime autoritário sobre
a instituição, especialmente após a promulgação do Ato Institucional número 5,
de 13 de dezembro de 1968, provocou um aprofundamento da crítica e ampliou a
adesão a projetos de esquerda. O modelo do intelectual-acadêmico, formado nos

5 Em vários trabalhos, Sérgio Miceli explorou em diversos ângulos o problema. Cf: Miceli, (1979);
(2001).

2018
36 Maria Arminda do Nascimento Arruda

anos 1950-1960, nos quadros das instituições públicas, disseminou-se, porém,


entre as gerações universitárias seguintes, por aliar docência, pesquisa e reflexão,
práticas que não estiveram alheias à agenda política do momento6. Não por casua-
lidade, a afirmação dessa intelectualidade dependeu da condição pública dos seus
institutos, mas que não estava liberta das flutuações derivadas da política e dos
programas governamentais.
Em consequência, tal conjunção não dispensa, antes pressupõe, a vivência de
problemas e limitações: a instituição universitária, embora ofereça condições ao
desenvolvimento da vida intelectual, tende a circunscrevê-la aos parâmetros do
previsível. Mesmo que se rejeite a noção de intelectuais demiurgos, tipicamente
mannheimiana e hoje questionada, não há como desconhecer que o exercício inte-
lectual e a produção cultural encontram nas universidades o seu suporte central.
Esse fenômeno mundial, marcadamente característico no Brasil, expressa tanto
modalidades de profissionalização da atividade, quanto a propagação de requisitos
formais de construção da reflexão, condições de base da produção das linguagens e
da construção das legitimações. As universidades passaram a desempenhar o papel
que, no passado, a imprensa tivera, enquanto meio de sobrevivência, de criação
de reputações e classificações, de hierarquias e prestígios7. Acontece, porém, que
tais processos ocorrem no interior de instituições excessivamente normatizadas,
pois são grandes organizações burocráticas reguladoras do próprio modo de se
conceber a prática acadêmico-científica, como se percebe nos requisitos ao finan-
ciamento das pesquisas, nas avaliações disseminadas, inclusive entre pares. O
resultado é a criação de imensos organismos de administração, guiados por normas
e por regras anônimas, semelhantes a outros congêneres públicos ou privados. As
instituições da cultura, como revelou Adorno há mais de meio século, quando se
burocratizam operam sob a mesma lógica das administrações; a sua contra face
é o saber especializado (A dorno; Horkheimer, 1971).
Nessa perspectiva, a identificação entre intelectuais e universidade rear-
ranja todo um universo de representações sobre a propalada autonomia dos seus
representantes. Paradoxalmente – e essa é uma questão pouco difundida –, a
comunidade universitária costuma propugnar por mais regulamentação, com o fito
de lhe garantir o atendimento das suas demandas e ampliação dos suportes insti-

6 Para Roberto Schwarz, nesse período, o país estava “irreconhecivelmente inteligente”. (Schwarz,
1987). Ver também o ensaio citado, “Nunca fomos tão engajados”, de 1999.
7 Processo semelhante de institucionalização ocorreu com as artes, uma vez que “a arte con-
temporânea quase não existe sem um texto assinado ... por um especialista”. Essas mudanças,
segundo a socióloga Nathalie Heinich, correspondem à passagem de “uma arte ‘orientada pelo
mercado’, para uma arte ‘orientada pelo museu”’. (Heinich, 2014, p. 379-381).

Plural 25.1
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 37

tucionais, particularmente em áreas inseguras em relação à inserção profissional,


pois ocupam posições distanciadas do mercado. Nesse terreno movediço, a posição
das Humanidades, das Ciências Sociais stricto sensu, mesmo das Artes, ou seja,
disciplinas que trabalham com os sentidos e a cultura, é de franca desvantagem,
pois são dependentes de decisões que emanam da administração, apresentadas de
modo racional e neutro, forma velada de manifestação de propósitos francamente
políticos. Até por isso, ocorre, sobretudo nessas áreas, tendência ao revigoramento
das reivindicações. Nesse quadro, as disputas internas ao campo e externamente a
ele se acirram, envolvidas em bandeiras de legitimidade intelectual, de concepção
de universidade oriunda de visões que desconsideram, muitas vezes, as mediações.
A vocalização de tais demandas é amplificada pela crise de financiamento das
universidades públicas brasileiras. As contendas em torno das narrativas mais
legítimas acabam por ocupar grande parte do cotidiano institucional, sugando
energias potencialmente criadoras. As chamadas disciplinas intelectuais, cujas
posições são de franca desvantagem frente ao mundo da tecnologia, das redes
sociais, da valorização da inovação produtiva, do empreendedorismo, do domínio
da técnica sobre a cultura, veem sua identidade questionada. Os efeitos dessas
transformações provocam uma re-hierarquização entre domínios do conhecimento,
com predomínio das disciplinas técnicas e de mercado.
Esse fenômeno interno às universidades - e que reposiciona o lugar das disci-
plinas da cultura no âmbito da instituição - não se esgota no circuito acadêmico,
pois as próprias transformações atingem outras organizações, a exemplo da grande
imprensa, hoje acicatada pela difusão das informações que grassam nas redes
sociais, nas formas instantâneas de transmissão das notícias, na horizontalidade
da veiculação. Diante dessa realidade, os meios de informação, organizados em
poderosos conglomerados, são levados a buscar outros nichos para afirmar a sua
influência, tendo em vista que são incapazes de concorrer com a instantaneidade
característica das redes. Nesse cenário de agências variadas e de expansão dos
produtores, independentemente da qualidade da informação, a grande imprensa
reage criticando as áreas acadêmicas, especialmente aquelas dedicadas ao trata-
mento da cultura. Essas reações são componentes do mal-estar da imprensa em
relação ao alcance das informações difundidas pelos meios tecnológicos, pois,
ainda que estas sejam superficiais, indiferenciadas e se construam como se fossem
expressão veraz dos acontecimentos, produzem fortes impactos na sociedade.
Quanto à universidade, constrangida por requerimentos de vária ordem e fragi-
lizada frente à crise, tateia na busca de afirmar a natureza específica, igualmente
abrangente, da sua vocação. Em todo caso, dispensa-se o papel dos mediadores

2018
38 Maria Arminda do Nascimento Arruda

na construção das opiniões, assumindo o equívoco de considerar o mundo social


transparente e auto-evidente.
Nesse contexto, as disputas por legitimidades e reputações resultam em
relações conflituosas entre os atores mais habilitados a garantir certos padrões
de qualidade, como o são os intelectuais e os jornalistas dos veículos de prestígio,
provocando dissensões e alterando parcerias tradicionais. A rigor, as transforma-
ções em curso na sociedade atingem a todos – e nem poderia ser diferente. Nas
universidades, persegue-se um novo modelo institucional, mas de resultados
imprevistos, no qual especialmente as disciplinas intelectuais e da cultura parecem
não vislumbrar, tanto a sua posição no todo, quanto o caráter legítimo da sua
contribuição. A grande imprensa busca formas alternativas de transmissão das
informações, seja aderindo aos meios eletrônicos, como tentativa de acompanhar
a instantaneidade da notícia, seja esboçando novas modalidades de transmissão,
particularmente visível no jornalismo analítico televisivo.
Esse conjunto geral de problemas – se referido ao caso brasileiro e tomando
como paradigma a Universidade de São Paulo – comumente manifesta-se nos
discursos triunfantes a respeito da relevância e importância da USP, vista como
a mais exitosa instituição acadêmica brasileira, mas ressalta a sua defasagem vis
a vis os grandes centros mundiais de ensino e pesquisa. Esses discursos híbridos,
aparentemente incompatíveis, escondem na verdade representações de agentes
diversamente situados. No âmbito interno, as afirmações que enfatizam a crise da
universidade originam-se de atores responsáveis pela alta administração que, ao
remarcarem as dificuldades de financiamento, justificam os ajustes orçamentários
horizontais, sem considerar as particularidades, processo francamente desfavorável
às áreas da cultura, como se percebe no conteúdo das mensagens de celebração que
exaltam os avanços das ciências experimentais, tecnológicas e aplicadas. Na cena
exterior, seguidamente a grande imprensa noticia a crise das universidades como
fruto dos próprios impasses do modelo, quando não atribui à má gestão dos docentes
o uso perdulário dos recursos, resvalando para julgamentos que desconsideram as
limitações impostas à instituição. Perdidas em meio a esse cipoal de disputas, as
disciplinas humanísticas passam a não vislumbrar o seu lugar nesse emaranhado de
posições díspares, quando não contraditórias, sendo as áreas mais atingidas pelas
políticas regulatórias e pelos reclamos por maior eficiência administrativa, segundo
critérios de resultados quantitativamente aferidos 8.

8 Advirto que utilizo noções substantivas para referir-me às áreas disciplinares, bem como às
instituições, apenas para encaminhar o raciocínio. Não desconheço que se trata da ação de
atores situacionalmente posicionados.

Plural 25.1
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 39

As Humanidades reagem, muitas vezes, desobservando representações


sedimentadas sobre a natureza do métier acadêmico e profissional, ruptura
manifesta em reivindicações de puro corte corporativo, afastando-se da deon-
tologia consagrada; atitudes de isolamento e de recusa silenciosa são o anverso
do ativismo recorrente, mas orientam condutas de afastamento e de alienação
dos reais problemas a serem enfrentados. Nesse quadro incerto, pode-se inquirir
sobre as razões subjacentes às representações mais comuns e perguntar-se sobre
as motivações e interesses diversos que movem o conjunto. Finalmente, não há
como desconhecer que as áreas técnicas e as profissões de mercado não possuem
a mesma relação com a instituição daquela das disciplinas humanas e básicas. Por
esse motivo, a relação que mantêm com a tradição que regulou o modelo consagrado
de universidade é quase inexistente. Enquanto nas disciplinas humanísticas e
básicas o horizonte profissional é nublado e, em geral, preso às demandas de caráter
social e público como a docência, a relação dos setores diretamente profissionais
está comprometida com o mercado. Deriva daí a diversidade das representações
sobre a situação institucional.
A rigor, a denominada crise da universidade é mais afeita aos setores mais
fragilizados profissionalmente, afetando de modo inequivalente o conjunto. As
Humanidades costumam enfrentar esse estado de coisas apegando-se a um modelo
do passado, que também já não possui a mesma força para corresponder aos anseios
que grassam nesse ambiente de expectativas inseguras; protegem-se preservando
uma imagem de universidade que, talvez, só tenha existido como ideário, apro-
fundando o isolamento e alimentando a autorreferência, estado inibidor à reflexão
sobre as múltiplas questões afeitas a esse campo do conhecimento. Os desafios
a serem enfrentados são de grande monta que, a meu juízo, exigem repensar os
nossos próprios problemas e objetos de pesquisa. Alterar, em suma, a hierarquia
dos temas e ousar propor novas perguntas e enquadramentos analíticos.
Se o impacto da tecnologia de informação e da internet redefiniu estrutural-
mente a esfera pública,9 igualmente relevante tem sido a prolífera produção cultural
localizada nos bairros periféricos e pobres das grandes metrópoles, fazendo emergir
uma gama variada de propostas e de produtores localizados à margem das insti-
tuições acadêmicas de prestígio. A chamada cultura da periferia, representada
pela literatura marginal, o cinema da quebrada, o teatro do oprimido, apenas
para nomear as linguagens mais próximas do cânone acadêmico, tem abalado
os alicerces da cultura letrada. Não se pode desconhecer, assim, a interferência

9 Cf: Martucelli, 2015.

2018
40 Maria Arminda do Nascimento Arruda

dessa vasta e diferenciada produção cultural na cena contemporânea, construída


à margem das universidades e das suas concepções dominantes, embora esteja
suscitando o aparecimento de novos objetos de pesquisa, em meio à variegada
produção de trabalhos e de teses acadêmicas oriundas da institucionalização
da pós-graduação. Esses novos movimentos no campo da cultura, ainda insufi-
cientemente compreendidos, questionam representações consagradas, rompem
consensos, aprofundam uma espécie de sentimento de impotência, de derrota e de
crise geral no âmbito das disciplinas humanísticas. Resultam desse processo visões
que tendem a confundir projetos de universidade em oposição, com personalização
das responsabilidades; a prática política legítima na academia transmuta-se em
contendas pessoais, dificultando a construção de alternativas.
O que parece estar no horizonte é o surgimento de um fenômeno mundial de
outra ordem, que tenho denominado de mudança do cânone cultural moderno,
levando de roldão os significados atribuídos aos intelectuais com os quais está-
vamos familiarizados e os nossos entendimentos a respeito da cultura, que, no
Brasil, esteve identificada com a figura do intelectual cônscio da sua missão civi-
lizatória, que se exprime por meio do ensaismo crítico. Esta forma de reflexão foi
redefinida, mas não integralmente superada, ao longo do processo de institucio-
nalização da produção acadêmica, identificada sob a categoria dos estudos sobre
a formação (A rruda, 2017). Apenas com a constituição e expansão do sistema de
pós-graduação alterou-se o modelo do intelectual, especialista em temas circuns-
critos, analiticamente competente no seu campo disciplinar. As visões abrangentes
tornaram-se, no entanto, campo específico de pesquisa e especialidade reconhecida,
voltados ao tratamento de autores e obras marcantes da nossa tradição, classifi-
cados no rol de estudos do pensamento social brasileiro, história dos intelectuais,
sociologia da cultura, sociologia dos intelectuais.10 Esses trabalhos, na medida em
que põem em escrutínio os intelectuais e a sua produção, desmitificam a própria
prática, sendo componentes e sintomas do processo de perda de aura da atividade
intelectual.
Ao lado disso, o legado moderno - que foi tão marcante na construção da
nossa herança letrada - é posto em questão, no contexto em que a globalização, a
financeirização do hipercapitalismo destruíram o nosso ideário de nação moderna,
para cujo concurso os intelectuais brasileiros foram centrais. Hodiernamente,
são os especialistas, técnicos do ajuste ao mundo global, isto é, ao capitalismo

10 Um balanço sobre os estudos da Formação, Cf: Arruda, Maria Arminda do Nascimento, 2018; sobre a
sociologia da cultura, idem, 1.

Plural 25.1
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 41

mundial com seus movimentos avassaladoramente desintegradores, os principais


vocalizadores dos destinos do país. Reversivamente, os ilustrados do passado estão
submetidos ao exame sistemático das novas gerações; em decorrência, surgem
trabalhos críticos que propõem a revisão, quando não a superação, do chamado
“paradigma da formação”, posto sob os holofotes da realidade global.
O que se percebe, é que à instabilidade internacional, de certa forma comum
a todos os países, embora com efeitos muito diferenciados, agregou-se no Brasil a
presença de instituições em frangalhos, aprofundando-se os impasses do nosso
presente. Nesse quadro de falência das promessas civilizatórias e de domínio auto-
crático, para me apropriar do conceito desenvolvido por Florestan Fernandes (1975),
naufragam tanto a cultura, quanto o domínio intelectual, debilitando a esfera
institucional, haja vista os dilemas recentes da pasta da cultura, bem como das
universidades públicas, patentes nos problemas de financiamento e em propostas
que alteram o sentido das instituições públicas. Não por casualidade, as bandeiras
civilizatórias, comprometidas com os valores modernos e cosmopolitas da nossa
cultura e com o desenvolvimento da ciência, foram deslocadas e substituídos por
exigências da internacionalização da produção acadêmica, e da inovação dirigida
ao sistema produtivo.
A antiga ideia do moderno e da modernização que pressupunha o tratamento
do modernismo desvaneceu-se na esteira dos nossos problemas, aos quais se
somam manifestações regressivas internas e externas. Estas, particularmente,
foram solapadas pela cultura de mercado que vem absorvendo as vanguardas
pelo menos desde o pós-guerra, como revela Raymond Williams (1997), processo
que, ao combinar-se às realidades particulares, produz efeitos de intensidades
diferenciadas, retrovertendo sobre as condições de desenvolvimento da área
cultural. Para um autor da envergadura de T. J. Clarke, vivemos a plena crise do
tempo, porque estamos imersos no caldo de cultura resultante do rompimento dos
padrões modernos, minando os alicerces da modernidade civilizatória (Clarke,
2013). No mesmo sentido, para Pierre Bourdieu

a cultura está ameaçada, porque as condições econômicas e sociais nas quais ela
pode se desenvolver estão profundamente afetadas pela lógica do lucro nos países
avançados, onde o capital acumulado, condição da autonomia, já é importante,
e, a fortiori, nos outros países (Bourdieu, 2001, p. 81).

2018
42 Maria Arminda do Nascimento Arruda

No entanto, considero que outras questões relevantes e que remetem para


contextos particulares presentes como os do Brasil atual exigem a compreensão
das conjunturas econômica e política do país. A relação de identificação entre
a intelectualidade nativa de esquerda e o Partido dos Trabalhadores (PT), que
participou da criação da agremiação, questionou a condição dos intelectuais enga-
jados, quando foram obrigados a se defrontar com ações dissolventes cometidas
por expoentes partidários. Apesar do conhecido anti-intelectualismo do seu líder
máximo, Lula, a criação do PT representou um alento para as esquerdas brasi-
leiras e esperança para as internacionais, vergastadas pelas denúncias do Gulag,
do totalitarismo soviético, da perda de aura da revolução cubana. Na França, a
morte de Sartre já simbolizara o recuo da personalidade do intelectual engajado;
com a eleição do socialista François Mitterrand, em 1981, ocorreu nítida separação
entre a esquerda política e a esquerda intelectual, entre poder político e poder
espiritual (Winock, 2000).
A vitória do PT no Brasil, renovou os ânimos de uma intelectualidade crítica e
de esquerda, que, diga-se de passagem, já mantinha certa relação simbiótica entre
a reflexão e os compromissos políticos, porém, o êxito não dirimiu completamente
os conflitos, mesmo durante o período mais hegemônico do partido. A mescla
entre a organização e o aparelho do Estado levou a dissidências e discordâncias,
agravadas, posteriormente, com as denúncias de corrupção, dos vários processos
judiciais e da revelação de utilização de métodos discutíveis no exercício do poder.
A crise institucional, já inaugurada no segundo Governo de Dilma Rousseff, em
2014, se questionou o apoio da intelectualidade nativa ao projeto do PT, os seus
desdobramentos atingiriam a legitimidade da cultura. Essa “experiência da
derrota” para lembrar o verso do grande poeta inglês, Milton, aprofunda-se ao
se mesclar às transformações estruturais do tempo, que, de per se, já impõem
mudanças profundas ao exercício ilustrado. Essa “esquerda sem futuro” segundo
o desalentado programa de Clarck (Idem, ibidem), é fenômeno mundial, mas
com expressões particulares no Brasil, porque esgarça o compromisso social da
intelectualidade da terra.
Do ângulo da universidade, aprofunda-se o fosso que separa as chamadas
Humanidades das áreas experimentais e tecnológicas, com clara desvantagem
para as primeiras, dada a característica das últimas de seguirem o movimento
social dominante, tornando-as, no entanto, debilitadas para cumprir o papel de
inquirirem-se sobre as dimensões éticas das pesquisas e de se indagarem sobre
os seus fins. As disciplinas da cultura, todavia, não se fortalecem; contrariamente,
tornam-se prisioneiras do cipoal de regimentos que, no limite, inibem a criativi-

Plural 25.1
Golpe na Cultura – intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil 43

dade e apequenam o seu potencial de crítica do presente, atributo distintivo da


sua reflexão. Por essa razão, a crise que a todos alcança tem efeitos mais deletérios
para as áreas da cultura, por incidir, diretamente, sobre o sentido da sua reflexão.
Penso, no entanto, ser possível, e mais do que isso, imprescindível, rever
todo o arcabouço disciplinar, o que levaria a reconsiderar os sentidos da reflexão
crítica, dos estudos da cultura, da condição dos intelectuais e das universidades
na produção do conhecimento. Encontrar, enfim, um outro telos para enquadrar o
movimento de ruptura do cânone cultural herdado. As profundas transformações
portam impactos imprevisíveis, a exemplo do abalo sofrido pela cultura clássica
com a emergência e posterior domínio do cristianismo. Construir um outro lugar
da reflexão levaria a inquirir sobre esses deslocamentos, tensões e abalos que têm
desarticulado o papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas, transfor-
mado a cultura e questionado as instituições de suporte. O movimento produzirá,
certamente, mudanças ponderáveis nos sentidos compartilhados, desestabilizará
as nossas certezas, mas poderá abrir espaços à retomada de certos compromissos
primordiais; pelo menos romperá a perplexidade reinante, em nome da necessidade
de imaginar novos projetos civilizatórios.

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44 Maria Arminda do Nascimento Arruda

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Plural 25.1
Artigo

Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil

Cultural and symbolic changes that shake Brazil

Marcelo Ridentia

Resumo  Apesar de envolver toda a sociedade, a dinâmica social e política da crise por
que passa a democracia brasileira é dada pelas lutas sociais que mobilizam as classes
médias escolarizadas. Um forte indício nesse sentido está na composição social das
manifestações de rua a partir de 2013 e outros dados analisados no artigo, como o
acesso crescente ao ensino superior, resultado de mudanças culturais e simbólicas nos
últimos anos, sem que tenham ocorrido transformações estruturais. Essas mudanças
ajudam a compreender a polarização política em curso que ameaça a democracia.
Palavras-chave  crise da democracia; governos Lula; governo Dilma Rousseff; manifestações
de rua pós-2013; classes médias escolarizadas.

Abstract  Despite the fact that it involves the whole of society, the social and political
dynamics of the present crisis of Brazilian democracy is due to the social struggles
that mobilize the middle classes with access to higher education. A strong indication in
this sense is the social composition of the street demonstrations from 2013 and other
data analyzed by the article, such as the increasing access to higher education, that
result from the cultural and symbolic changes in recent years, even if no structural
transformation had taken place. These changes help understand the ongoing political
polarization which threatens democracy.
Keywords  democracy crisis; Lula government; Dilma Rousseff government; post-2013
street demonstrations; middle classes with access to higher education.

a Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade


Estadual de Campinas.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.45-62
46 Marcelo Ridenti

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Agradeço aos organizadores do seminário pela iniciativa e pela oportunidade
de diálogo nesta noite, buscando compreender aspectos do que se vem passando
na sociedade brasileira.1 Sem pretender dar conta de toda a complexidade da
situação, gostaria de colocar algumas ideias que possam contribuir para o debate.

MUDANÇAS?
Não parece que tenhamos vivido grandes mudanças estruturais na sociedade
brasileira neste século XXI. Nem mesmo os governos liderados pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) conseguiram implementar reformas de fundo na organização
econômica, social e política do Brasil. Não foram realizadas reformas como a
agrária, do sistema de tributação, do poder judiciário, de democratização da mídia,
do sistema político. A conformação institucional do país segue sendo – no essen-
cial – aquela estabelecida nos anos do regime militar, mesmo após a chamada
“constituição cidadã” de 1988, que criou uma série de direitos sociais.
Particularmente nos governos de Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff
(2011 a 2016), mesmo sem reformas estruturais, foram ampliados significativa-
mente os mecanismos compensatórios de assistência social, como o bolsa família,
as farmácias populares, os programas “luz para todos” e “minha casa, minha vida”,
e ainda melhoraram o acesso à saúde e especialmente ao ensino, inclusive o superior,
que – apesar de sua qualidade questionável – se tornou mais permeável também
aos mais pobres e aos não brancos. As medidas compensatórias e a expansão
econômica permitiram a relativa melhora salarial e de condições de vida dos de
baixo. Os referidos governos tenderam a optar por políticas passíveis de encontrar
menor resistência política, pretendendo conciliar interesses contraditórios, sem
afrontar o sistema, antes buscando desenvolver o capitalismo brasileiro com muito
financiamento público e o reforço do mercado interno. A seu modo, trataram ainda
de incorporar os despossuídos na pauta política institucional, buscando integrá-
-los melhor à ordem estabelecida.
Tudo isso ajudou a tirar setores populares significativos da situação de miséria
absoluta e a gerar alguma ascensão social, bem como a gerar enormes expectativas
em relação ao futuro, otimismo que era compartilhado pelas classes dominantes,

1 Palestra apresentada na mesa de encerramento do evento “Golpe na cultura: intelectuais, univer-


sidade pública e contextos de crise”. Seminário de Sociologia da Cultura: Objetos e perspectivas.
Programa de Pós-graduação em Sociologia. FFLCH, USP. São Paulo, 9 de dezembro de 2016. Este
artigo mantém a forma original de exposição, apenas atualizando alguns dados e acrescentando
algo da conjuntura mais recente nas considerações finais.

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 47

as que mais ganharam com o avanço econômico durante as administrações do


PT. Como se sabe, a situação econômica e política mudou recentemente, inviabi-
lizando as expectativas de ganhos para todos, gerando frustação social inédita,
que se expressou em manifestações de rua numerosas e com muita participação
a partir de junho de 2013.
Sem poder ou querer realizar reformas de fundo que alterassem a estrutura
social, a opção pela linha de menor resistência acabou gerando uma realidade
política nova, a partir de mudanças culturais e simbólicas, por exemplo, com o
aumento da escolaridade e o acesso à informática para a maior parte da população,
incluindo setores mais pobres e não brancos que passaram a partilhar um espaço
antes exclusivo das classes médias e altas. A noção democrática da universalização
dos direitos sociais, posta na Constituição de 1988 e desenvolvida sobretudo nos
governos petistas – mas sem que houvesse reformas estruturais que de fato diminu-
íssem a concentração de renda e as desigualdades – tende a gerar certa frustração,
sobretudo nos setores sociais médios com acesso ao ensino superior, onde se pode
detectar expectativa, insegurança e insatisfação com a situação nova criada.

UMA HIPÓTESE E ALGUNS DADOS ESTATÍSTICOS: AS CLASSES MÉDIAS


ESCOLARIZADAS NA CENA POLÍTICA
A hipótese que proponho é que – apesar de envolver toda a sociedade – a dinâ-
mica social e política da crise porque passa a democracia brasileira é dada pelas
lutas sociais que mobilizam as classes médias escolarizadas. Um forte indício nesse
sentido está na composição social das manifestações de rua a partir de 2013. Elas
apresentam notáveis semelhanças, como indicam os dados abaixo, referentes a
manifestações ocorridas em São Paulo, como a de 20 de junho de 2013 – gigantesca
e com um caráter amplo de protesto –, a enorme manifestação de direita contra
a presidente Dilma Rousseff em 13 de março de 2016, e a resposta expressiva de
esquerda no dia 18 do mesmo mês. Nas três manifestações – que destaco por terem
sido as que contaram com dezenas de milhares de participantes – quase 80%
dos que foram às ruas tinham acesso ao ensino superior, bem acima dos 28% da
população paulistana em geral. A escolaridade secundária nos três atos também
apresenta percentuais parecidos entre eles, cerca de um quinto dos participantes.
Atesta-se, assim, que foram os setores escolarizados os que mais se mobilizaram,
independentemente da posição política.

2018
48 Marcelo Ridenti

Gráfico 1. Manifestações em São Paulo, Av. Paulista – Escolaridade (Fonte: DataFolha).

Por sexo, os números também estão próximos, em torno de 60% de partici-


pação masculina e 40% feminina:

Gráfico 2. Manifestações em São Paulo, Av. Paulista – Sexo (Fonte: DataFolha).

No que se refere à idade, surgem diferenças: a manifestação de 2013 foi inte-


grada pelos mais jovens: 51% até 25 anos de idade, 84% até 35 anos. Já a direita
contou com os mais velhos: 40% acima de 50 anos e 83% acima de 35, quase o
espelho oposto. Por sua vez, o ato de esquerda teve certo equilíbrio: cerca de um
quarto para cada grupo: até 25 anos, de 26 a 35, de 36 a 50, e de 51 anos ou mais.

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 49

Gráfico 3. Manifestações em São Paulo, Av. Paulista – Idade (Fonte: DataFolha).

Os números referentes à renda dos participantes – com base em pesquisas


do DataFolha e agora também do IBOPE – apresentam diferenças, sendo os direi-
tistas paulistanos os mais ricos (63% recebendo mais de 5 salários mínimos ao
mês), enquanto em todo o Brasil os manifestantes de 2013 eram os mais pobres
(45% ganhando até 5 salários mínimos). Mas, conforme os dados a seguir, nota-se
que as manifestações de 2013 em várias cidades também foram as que tiveram
maior número de participantes com renda superior a dez salários mínimos, 23%,
atestando o caráter multifacetado daquele evento, que reuniu tanto os setores
escolarizados mais ricos como os mais pobres.

Gráfico 4. Manifestações no Brasil – Renda (Fontes: DataFolha, 2016, em São Paulo; IBO‑
PE, 2013, no Brasil).

Comparando os dados por idade, renda, sexo e escolaridade, verifica-se a


participação central dos setores escolarizados, e um pouco mais masculinos, nas
três grandes manifestações. Entretanto, elas tiveram discrepâncias significativas
no que se refere à renda e à idade. Então, cabe tentar compreender os vetores

2018
50 Marcelo Ridenti

diferenciados que levaram tanta gente das camadas médias escolarizadas às ruas
nos últimos tempos, em atos com sentidos políticos diferentes.
Essas manifestações expressam um processo cultural que vem ao menos desde
o fim dos anos 1950, que foi acelerado no novo século. Ele envolve ao mesmo tempo
a democratização (expansão do acesso à educação e à cultura), e a massificação
(submissão à racionalidade da sociedade produtora de mercadorias), no contexto
de modernização periférica, com a ampliação do público e do mercado cultural,
com a generalização da lógica produtiva de bens simbólicos da indústria cultural.

ACESSO RECORDE AO ENSINO SUPERIOR


Esse processo pode ser detectado pelo aumento no acesso ao ensino superior,
conforme os dados do gráfico a seguir, que expressam bem o salto enorme no
século XXI: para uma população brasileira que era de cerca de 70 milhões em 1960
(com menos de 100 mil universitários), e de 170 milhões de pessoas em 2000 (com
pouco mais de dois milhões e meio de universitários), chegou-se em 2013 a mais
de sete milhões de estudantes no ensino superior para uma população em torno
de 201 milhões, contando também os números do ensino à distância. O total de
matriculados chegou a mais de oito milhões em 2015.2 Um salto que – conforme
minha hipótese – está no centro das mudanças culturais e simbólicas que vêm
abalando a sociedade brasileira, mesmo sem mudanças de fundo econômicas ou
institucionais. Ele envolve um processo de ampliação de direitos que não cabe mais
na armadura institucional vigente. O salto lembra em proporção o aumento ocor-
rido nos anos 1960, que esteve na base da agitação cultural e política do período.
Mas agora em números absolutos muito maiores. Naquela oportunidade, junto
com a repressão, houve o chamado “milagre econômico”, que deu emprego aos
contingentes formados, os quais, não obstante, seguiram em parte como críticos
da ditadura.

2 Em decorrência da crise econômica e institucional, esse número estancou em 2016, conforme


matéria da Folha de S. Paulo, com dados do Censos Educação Superior do MEC (“Ensino Su-
perior tem estagnação de matrículas inédita desde 2006”, 01/09/2017, p. B6).

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 51

Gráfico 5. Universitários no Brasil (Fonte: MEC – Censos Educação Superior).

A maior parte dos estudantes universitários está no setor privado, em escolas


de qualidade acadêmica questionável, muitas vezes em cursos como Pedagogia e
Administração de Empresas, de baixo custo para os empresários do setor e que
raramente se adequam aos padrões acadêmicos desejáveis. Mas também houve
notável expansão do sistema universitário público, como atestam os dados abaixo:

Gráfico 6. Universitários no Brasil (fonte: MEC – Censos Educação Superior).

Nota-se que, em 2013, o ensino privado atendia a mais de 73% do alunado,


confirmando a tendência que vinha do tempo da ditadura militar, quando os
matriculados na escola pública passaram a ser minoria. De 2000 a 2013, os matri-
culados nas escolas privadas quase triplicaram, mas também houve aumento do
ensino estatal, que mais do que dobrou o número de alunos atendidos em menos
de 15 anos, chagando a quase dois milhões em 2013.

2018
52 Marcelo Ridenti

Esse tipo de expansão do ensino tende a apresentar problemas, como desis-


tência de muitos alunos antes de terminar o curso, seja por dificuldades para
acompanhar, seja pela falta de recursos, com revelam os dados a seguir, que
apontam para uma evasão escolar de mais de 17% no ensino público, chegando a
mais de 27% no privado.

Gráfico 7. Taxa de evasão no ensino superior presencial (Fonte: Mapa do Ensino Superior
no Brasil – 2015)3.

A área de educação universitária é um bom exemplo da política dos governos


federais comandados pelo PT: optaram pela conciliação de interesses contraditórios
a fim de encontrar menor resistência. No caso, houve ampliação tanto do ensino
superior público como do privado, mantendo-se a estrutura estabelecida no setor.
Buscava-se agradar a todos com mudanças pontuais, sem mexer nas estruturas,
cativando tanto os donos das escolas – que ganhavam muito com o financia-
mento dos estudantes pelo governo – como os alunos pobres e suas famílias que,
frequentemente, pela primeira vez em gerações, conseguiam ter um membro na
universidade, não raro no ensino público, beneficiados por uma política crescente
do estabelecimento de cotas para não brancos e de baixa renda. Os dados a seguir,
de 2013, são expressivos: quase 30% dos universitários eram os primeiros de suas
famílias a entrar no ensino superior. E 56% do total era de alunos que estudaram
no segundo grau em escola pública.

3 Assessoria Econômica do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior, p.12, http://conver-


genciacom.net/pdf/mapa-ensino-superior-brasil-2015.pdf. Consulta realizada em 3 de dezembro
de 2017.

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 53

Gráfico 8. Origem dos universitários no Brasil (Fonte: Censo da Educação Superior 2013)4.

Ainda mais surpreendente é o aumento do acesso de não brancos ao ensino


superior. Mesmo que os brancos sigam sendo maioria, a participação dos negros
na universidade (8%) já equivale a sua presença proporcional na população. Os
autodeclarados pardos, pouco mais de 43% da população em geral, constituem
31% dos universitários, como revelam os dados abaixo:

Gráfico 9. Distribuição étnica no Brasil - Alunos do Ensino Superior (Fonte: Censo E. Su‑
perior 2013); População em geral (Fonte: Censo IBGE, 2010).

4 Acesso e Permanência no Ensino Superior, José Francisco Soares (Presidente do INEP), http://portal.
mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=17199-cne-forum-educacao-supe-
rior-2015-apresentacao-10-jose-soares&Itemid=30192. Consulta realizada em 3 de dezembro de 2017.

2018
54 Marcelo Ridenti

Essa inclusão social não alterou a organização do ensino superior privado


como um negócio, que nesse contexto se tornou um dos mais rentáveis, envolvendo
bilhões de reais, seguindo a mesma tendência geral de concentração de capital dos
demais ramos da economia, e ainda com incentivos do governo. Os dados a seguir
expressam a magnitude do empreendimento:

Tabela 1. Maiores grupos educacionais privados do Brasil (Fonte: Hoper Educação; Folha
de S. Paulo, 29/06/2017, p. A24).
Receita líquida Matrículas Participação no
(em milhões de reais)* em 2016** mercado (%)
Kroton
(inclui Anhanguera, Unopar, Fama, 5.244,70 877.033 14,4
Pitágoras, Uniderp)
Estácio
3.184,50 436.300 7,2
(inclui Uniseb)
Unip 2.641,60 403.358 6,6
Laureate
(inclui Anhembi-Morumbi, FMU, 2.111,40 245.921 4,1
UniNorte)
Ser Educacional
1.125,40 137.194 2,3
(inclui Univeritas)
Uninove 810,40 131.733 2,2
Cruzeiro do Sul Educacional 573,20 102.286 1,7
Anima 1.076,30 85.138 1,4
Devry 800,00 75.000 1,2
Unicesumar 379,00 66.960 1,1
TOTAL DO SETOR PRIVADO 54.874,70 6.071.429
*estimativa; **presencial e à distância.

Os grupos Anhanguera e Kroton fundiram-se em 2013, quando eram os dois


maiores no ramo. Em 2016, o grupo Kroton fez oferta de R$ 5 bilhões para adquirir
o vice-líder (Estácio), disputando a compra com o Ser Educacional. A transação
acabou por não ser realizada, pois não obteve o aval do Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (CADE), órgão do governo federal, que vetou o negócio para
evitar o excesso de concentração num “mercado potencial de 12 milhões de alunos
no segmento”, segundo a Folha de S. Paulo (29/06/2017, p. A24). Mas os dados dão
uma ideia do montante envolvido no setor, que tem contado com apoio do Estado.
Vejam-se, por exemplo, alguns números do Fundo de Financiamento Estudantil
(FIES) do Ministério da Educação (MEC):

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 55

Gráfico 10. Contratos firmados – FIES, em milhares (Fonte: Mapa do Ensino Superior no
Brasil, 2015)5.

Os dados apontam o forte investimento do Estado. Os mais críticos diriam


que, assim, o governo financia e compactua com o sistema de ensino privatizante
e de baixa qualidade, que vende ilusões de ascensão social. Mas essa política abriu
as portas da universidade a milhares de jovens das camadas populares, especial-
mente as não-brancas.
Outros indicadores de investimento no estudantado dizem respeito à interna-
cionalização, como constatou o Portal Terra: o número de brasileiros que realizaram
estudos no exterior aumentou 500% na última década e, apenas em 2014, cerca
de 230 mil jovens estudaram fora do Brasil, informou nesta segunda-feira a Asso-
ciação Brasileira de Organizações de Viagens Educacionais e Culturais (Belta). A
maioria dos brasileiros busca aprender ou aperfeiçoar uma segunda língua, mas,
nos últimos anos, aumentou de maneira notável o número de jovens que fazem um
curso universitário fora do país. De acordo com a Belta, isto foi possível, em parte,
graças ao programa Ciências Sem Fronteiras, que desde 2011 ofereceu bolsas de
estudos em universidades estrangeiras para mais de 83 mil estudantes do Brasil,
em centros universitários de países como Canadá, Estados Unidos e Austrália.6
Ou seja, especialmente nos governos de Lula e Dilma, houve um inusitado
aumento de investimento governamental no ensino superior. Surge uma juven-
tude crescentemente escolarizada e que trabalha. Mas não se deve esquecer que
cerca 70% dos jovens entre 18 e 24 anos não estavam na escola, conforme levan-

5 Assessoria Econômica do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior, p.14. http://conver-


genciacom.net/pdf/mapa-ensino-superior-brasil-2015.pdf . Consulta realizada em 3 de dezembro
de 2017.
6 Portal Terra, 9/3/2015, http://noticias.terra.com.br/educacao/numero-de-brasileiros-que-estu-
dam-no-exterior-aumenta-500-em-uma-decada,1ca7c3e8dd00c410VgnCLD200000b1bf46d0R-
CRD.html. Consulta realizada em 3 de dezembro de 2017.

2018
56 Marcelo Ridenti

tamento do Ipea para 2009 (com base no Pnad/IBGE). Muitos deles deverão estar
nos bancos escolares nos próximos anos, outros serão “nem, nem” (nem escola,
nem trabalho). Seja como for, há uma tendência à mudança na escolaridade da
população e no perfil dos trabalhadores, cada vez mais escolarizados e com acesso
crescente à tecnologia nas comunicações e na cultura, apesar dos limites quali-
tativos do processo.

DADOS DA DEMOCRATIZAÇÃO E MASSIFICAÇÃO DA CULTURA


A velocidade do processo de democratização e massificação da cultura pode ser
detectado por indicadores como o acesso acelerado ao uso de telefones celulares,
que em menos de dez anos passou de cerca de um terço para mais de dois terços
da população, conforme os dados seguintes:

Gráfico 11. Proprietários de telefone celular pessoal, em % da população com mais de 10


anos (Fonte: IBGE/PNAD 2015).

Um outro aspecto muito notado, com fortes implicações simbólicas, tem sido
o aumento no número de passageiros em voos pelo Brasil, que foi da ordem de
170% em dez anos, a contar de 2004. Uma pesquisa da Secretaria de Aviação Civil
apontou que 117 milhões de passageiros voaram de avião em rotas nacionais em
2014, conforme matéria do R7 Notícias, de 22/10/2015.7
O rápido aumento do número de brasileiros com acesso à internet também
é expressivo das mudanças culturais e simbólicas em curso. Houve um salto de

7 http://noticias.r7.com/brasil/numero-de-passageiros-em-voos-pelo-brasil-cresceu-170-em-
-dez-anos-22102015 Consulta realizada em 3 de dezembro de 2017.

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 57

35 para 120 milhões de pessoas nesse quesito, entre 2006 e 2014, conforme os
dados a seguir:

Gráfico 12. Acesso à internet no Brasil, em milhões de pessoas (Fonte: IBOPE).

Esse acesso crescente da população à internet – que é uma característica


mundial do capitalismo na era digital – ajuda a entender as mobilizações para as
manifestações de rua recentes. Por exemplo, dados do IBOPE referentes à parti-
cipação em atos de protesto em oito capitais no dia 20/6/13 apontam que 62% dos
participantes souberam das manifestações por intermédio do Facebook:

Gráfico 13. Como soube da realização da manifestação de hoje? (Fonte: IBOPE)8.

O aumento do uso da internet para informação é expressivo, enquanto jornais


e revistas são cada vez menos usados. Mas o rádio e especialmente a televisão
seguem sendo os meios mais utilizados, como indicam os dados a seguir:

8 Disponível em http://especial.g1.globo.com/fantastico/pesquisa-de-opiniao-publica-sobre-os-
-manifestantes/. Consulta realizada em 01 de fevereiro de 2017.

2018
58 Marcelo Ridenti

Gráfico 14. Uso dos meios de comunicação no Brasil, 2015 (Fonte: Brasil. Presidência da
República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos
de consumo de mídia pela população brasileira. – Brasília: Secom, 2015 (IBOPE, mais de
18 mil entrevistas)9.

A televisão continua muito assistida no país, por 95% da população. 87%


assistem quatro dias por semana ou mais, sendo que 73% ligam o aparelho todos
os dias. Em média, cada telespectador vê quatro horas e 31 minutos por dia da
semana e quatro horas e 14 minutos nos finais de semana. 79% dizem que usam
a televisão “para se informar, saber as notícias” (Brasil, 2015: 15-28). Justamente
por isso é o meio que mais atrai investimentos em publicidade. Em segundo lugar
vem o rádio, com 55%.
Ou seja, o poder de comunicação do rádio e especialmente da televisão segue
sendo muito expressivo, mas é um terceiro meio que vem tendo audiência crescente
sobretudo entre os jovens: a internet. Ela já ocupa o segundo lugar, se computadas
apenas as pessoas que a acessam quatro vezes por semana ou mais (44% contra
42% para o rádio). 48% dos brasileiros têm acesso à internet, conforme os dados
de 2015, 37% usam o serviço diariamente e 44% ao menos quatro dias da semana.
Os jovens entre 16 e 25 anos são os usuários mais expressivos, 67% acessam
diariamente e apenas 20% não usam a internet. Dentre as pessoas com ensino
superior, só 12% não a utilizam. O meio é mais acessado proporcionalmente pelos

9 http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-
-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf. Consulta realizada em 3 de
dezembro de 2017. Todas as referências a esse relatório aparecem entre parênteses, no texto,
como “Brasil, 2015”.

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 59

mais ricos: 76% dos que têm renda familiar acima de 5 salários mínimos. O uso é
mais frequente quanto maior o porte do município. No geral, cada usuário acessa
a internet em média quatro horas e 59 minutos no meio de semana e 4 horas e 24
minutos nos finais de semana. 67% dos usuários afirmam usar a internet para se
informar (Brasil, 2015: 49-64).
Esses indicadores ajudam a entender, por exemplo, a disputa pela cobertura
das manifestações de rua de junho de 2013, que questionaram a imprensa, radio-
fônica e televisiva, identificando nela uma conivência inaceitável com a ordem
estabelecida. Cenas de hostilidade a esses meios foram frequentes, como ataques
a veículos de redes de televisão. A surpresa com os acontecimentos e a necessidade
de competir com as mídias sociais pela informação gerou uma cobertura inédita
da imprensa escrita, do rádio e sobretudo da televisão, que se sentiram amea-
çados pelo uso da internet e trataram de intervir, buscando influenciar os rumos
do movimento. As longas horas ao vivo, dedicadas pelas principais emissoras de
televisão, especialmente após as manifestações de rua expressivas nas principais
cidades em 17 de junho, em parte mudaram o viés preconceituoso das primeiras
coberturas. Elas provavelmente colaboraram para a presença maciça de pessoas
nas ruas nos dias seguintes, até quase o final do mês. Assim como ajudaram a
mobilizar as massas em favor do impeachment da presidente Dilma em 2016.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No conjunto, os dados apresentados apontam para mudanças culturais e
simbólicas expressivas no século XXI, com a ampliação do acesso à educação e à
cultura na era digital, mas de modo massificado. E a estruturação da sociedade
brasileira praticamente não mudou: os lugares sociais são os mesmos e cada vez
mais disputados. A competição é crescentemente acirrada por vagas nas univer-
sidades de qualidade, lugares privilegiados no mercado de trabalho, postos no
aparelho de estado, com forte disputa por distinção e prestígio social.
A promessa de ascensão social pelo ensino e a inclusão social pelo consumo
– inclusive de bens culturais – geraram muitas esperanças e expectativas nos
primeiros anos do século, mas logo seu caráter ilusório se revelou, gerando
insatisfação crescente, em especial nos meios intelectualizados. A frustração
generalizou-se quando foi ficando claro que as expectativas não se realizariam.
Daí as grandes manifestações de rua de 2013 e as que se seguiram, mobilizando
sobretudo os setores mais escolarizados. Imbricaram-se o desejo irrealizado de
ascensão, realização e reconhecimento dentro da organização da sociedade como
ela é, com certa insatisfação com a mercantilização universal da vida cotidiana

2018
60 Marcelo Ridenti

nas condições precárias de trabalho, moradia, saúde, educação e transporte para


a maioria. Por exemplo, torna-se cada vez mais difícil pagar planos de saúde e
escolas privadas.
Especialmente a juventude escolarizada vem expressando dúvidas sobre a
possibilidade de assegurar ao menos o mesmo nível de vida dos pais (para os mais
privilegiados), ou ascender socialmente (para os mais pobres). Os dados indicam
que se vai gestando uma realidade cultural nova, com altas expectativas que não
encontram lugar nem nas instituições (especialmente as políticas), nem na ordem
econômica tal qual estabelecida.
Da perspectiva das classes médias estabelecidas – que tradicionalmente
ocupam os postos privilegiados do trabalho intelectual, público e privado –, sente-
-se o risco de perder seus lugares (conquistados por trabalho, mérito ou herança)
para os setores emergentes, incluindo não brancos, migrantes internos e minorias.
Elas se sentem ameaçadas, até mesmo roubadas, o que se casa com o tema da
corrupção, que dá um motivo moral e conscientemente aceitável para o protesto
contra a ampliação de direitos sociais, quando não ocorre a adesão aberta a posi-
ções racistas, homofóbicas e antidemocráticas.
Entre as camadas intelectualizadas ascendentes, a insatisfação também é
grande, mas a perspectiva é outra: detectam que – se há alguma democratização
e mobilidade social – elas são muito limitadas. Os anseios de bem-estar rapida-
mente se chocam com a realidade. As promessas não se cumprem, nem mesmo
as de integração social pelo consumo de mercadorias. Os diplomas de nível supe-
rior não garantem melhores empregos, nem prestígio ou igualdade social. Esse
descontentamento pode levar à busca de transformação mais profunda. Mas a
politização é baixa, não raro a insatisfação se volta apenas contra o Estado e os
corruptos, fazendo também desses setores ascendentes um solo fértil para práticas
antidemocráticas e discursos conservadores.
Essa situação tem gerado respostas à esquerda e à direita. À esquerda, com
reivindicações de mudança estrutural, associadas à reinvenção democrática na
ocupação do espaço urbano, com o florescimento de movimentos culturais, inclu-
sive nas periferias das grandes cidades (grupos de teatro, criação literária, música,
hip-hop, produção audiovisual). Já a direita conseguiu dar o tom predominante
ao aprovar o impeachment da presidente Dilma Roussef, com anseios de retorno
à ordem tradicional e de retomada do neoliberalismo na economia, não hesitando
em tomar atitudes antidemocráticas.
Num contexto de recessão econômica, o temor de alguns de perder espaços
de poder, prestígio e privilégios, uniu-se ao medo de outros de não conseguir

Plural 25.1
Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil 61

ganhá-los. Sonhos frustrados, os insatisfeitos foram às ruas, manifestaram-se na


internet, agindo como podiam, abrindo possibilidades de ampliar a democracia e
também para o autoritarismo frutificar.
Acontecimentos recentes atestam essa polarização. O presidente Michel Temer
logo encampou a pauta neoliberal e aprovou no Congresso um projeto que congelou
os gastos públicos para os próximos governos, por vinte anos, a fim de realizar
o chamado “saneamento das contas públicas”, com prejuízo para investimentos
sobretudo em educação e saúde, sem que tivesse obtido mandato nas urnas para
implementar propostas desse teor. Depois patrocinou uma reforma trabalhista que
possibilita a troca de empregos formais por contratos temporários ou intermitentes,
flexibilizando as relações de trabalho para colocar o mercado em sintonia com a
desregulamentação na área em âmbito internacional. Mas não obteve sucesso em
sua reforma da previdência. Impopular por sua política econômica e fragilizado
por denúncias de corrupção, tratou de imprimir uma intervenção militar para
garantir a segurança no estado do Rio de Janeiro, sem planejamento estratégico,
que logo foi questionada pelos especialistas em segurança pública e por analistas
que viram aí uma jogada política para ganhar popularidade.
A intervenção ficou em xeque sobretudo após o assassinato da vereadora
carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes em março de 2018,
provavelmente cometido por inimigos das políticas de direitos humanos e de afir-
mação popular que ela defendia. Forças de esquerda foram às ruas em protesto em
todo o país, mobilizando setores populares para além das classes médias escola-
rizadas que vinham sendo predominantes nas manifestações. A própria Marielle,
negra e favelada de 38 anos, que se formou em Ciências Sociais na PUC do Rio
de Janeiro e defendeu o mestrado em Administração na Universidade Federal
Fluminense em 2014, encarnava as mudanças culturais e simbólicas referidas neste
artigo. Sua trajetória é expressiva do potencial democrático dessas mudanças, e
sua execução representa bem a direção oposta.
Nesse contexto, rapidamente as pesquisas passaram a apontar o ex-presidente
Lula como favorito para ganhar as eleições presidenciais de 2018, apesar de
sua candidatura ser improvável com o cerco de ações judiciais que o tornariam
inelegível, sem contar a tradicional má vontade da grande mídia em relação a ele.
Lula realizou campanhas mobilizadoras nas ruas em todo o país, sobretudo na
região Nordeste, crescendo em suas bases o desejo de um “reformismo forte”, em
contraste com as reformas modestas de seus governos. Em reação, sua caravana
política foi hostilizada e agredida por segmentos de extrema direita no Sul do país,
apoiados não só nas camadas jovens escolarizadas referidas – base de mobilizações

2018
62 Marcelo Ridenti

como as do Movimento Brasil Livre (MBL) –, mas também em outros segmentos


e classes sociais, como os chamados “ruralistas”, classe dos grandes proprietários
fundiários. Eles jogaram pedras, ovos, tomates e usaram de outros recursos para
inviabilizar a caravana de Lula, até mesmo atirando em um de seus ônibus na
passagem pelo Paraná no fim de março. A escalada de extrema direita no país
pode ser atestada também pelo aumento nas intenções de voto do candidato Jair
Bolsonaro, que não esconde sua admiração pela “revolução de 1964” e pelo “regime
militar” que se seguiu.
Em suma, a situação é complexa e polarizada, num crescendo desde 2013. Não
há como ter clareza sobre seus desdobramentos no momento em que fecho a revisão
deste artigo, logo após um grande movimento de caminhoneiros que paralisou
o país por vários dias no final de maio de 2018, contra o aumento de preços dos
combustíveis. Esses caminhoneiros também se beneficiaram das mudanças cultu-
rais e simbólicas dos últimos anos aqui mencionadas. Por exemplo, eles tiveram
acesso a novas tecnologias, como telefones celulares e redes sociais: foi através
do WhatsApp que organizaram o movimento, com uma presença expressiva de
setores de extrema direita a pedir o retorno dos militares ao poder.
Os acontecimentos recentes – como a polêmica condenação de Lula pelo Judi-
ciário no caso do “tríplex do Guarujá” e sua prisão em abril de 2018 – expressam
o fim de um ciclo histórico cujo início simbólico pode ser sua primeira prisão, em
1980, em meio à greve de metalúrgicos que liderava no ABC paulista, desafiando
a ditadura militar. Mas isso seria tema para um outro artigo.

Plural 25.1
Artigo

Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além


da dicotomia ação e estrutura: o espaço internacional como
fonte de legitimação dos Think Tanks latino-americanos

Inevitable and unpredictable, the strengthening of the right beyond the


action and structure dichotomy: the international space as a source of
legitimacy for latin-american Think Tanks
Maria Caramez Carlottoa

Resumo  O presente artigo parte de uma reconstrução do debate teórico sobre a ascensão
da direita conservadora, marcado pelas dicotomias ação/estrutura, local/global e
política/economia, para defender uma abordagem que pense a articulação entre essas
dimensões através de um olhar estrutural para as novas modalidades de mobilização
e circulação internacional de elites locais. Através dessa operação, eu procuro mostrar
como essas novas modalidades de atuação internacional ajudam a constituir uma nova
posição no espaço de produção e difusão de conhecimento, na figura dos Think Tanks.
No entrecruzamento de lógicas distintas, os Think Tanks passam a disputar espaço
com as instituições de ensino superior, em particular as universidades públicas de
pesquisa, que viveram um processo de democratização a partir dos anos 2000, período
que coincide, justamente, com a crescente expansão e legitimação dos Think Tanks na
América Latina. Assim, procuro mostrar como essas novas modalidades de atuação
do internacional só podem ser compreendidas estruturalmente à luz das hierarquias
sociais que constituem a formação de elites intelectuais nessas sociedades nacionais.
Palavras-chave  ascensão conservadora; nova direita; Think Tanks; ensino superior;
circulação internacional.

Abstract  This article departs from a reconstruction of the theoretical debate about
the rise of the conservative right, marked by dichotomies as action / structure, local
/ global and politics / economics, to defend an approach that thinks the articulation
between these dimensions through a structural look for the new modalities
international circulation of local elites. Based on this operation, I try to show how
these new modalities of international action constituted a new position in the social
space of production and diffusion of knowledge, in the figure of Think Tanks. In

a Professora do Bacharelado de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais e vice-


-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial da UFABC.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.63-91
64 Maria Caramez Carlotto

the intertwining of distinct logics, the Think Tanks began to compete with higher
education institutions, in particular public research universities. Those universities
had undergone a democratization process since the 2000s, a period that coincides
with the growing expansion and legitimization of Think Tanks in Latin America.
This article proposes that these new modalities of international action can only be
understood structurally, that means, in light of the social hierarchies that constitute
the formation of intellectual elites in these national societies.
Keywords  conservative rise; new right; Think Tanks; higher education; international
circulation.

INTRODUÇÃO

No great historical event is better calculated than the French Revolution to


teach political writers and statesmen to be cautious in their speculations; for
never was any such event, stemming from factors so back in the past, so inevi-
table and yet so completely unforeseen (Tocqueville, The Old Regime and the
French Revolution, 1856)1

O fortalecimento de partidos políticos e movimentos sociais situados à direita


do espectro político é um fenômeno que tem chamado a atenção das ciências
sociais contemporâneas. Um dos aspectos mais interessantes desse processo é o
fato dele estar acontecendo, simultaneamente, em diferentes contextos nacionais.
O caráter sincrônico do fenômeno parece sugerir que ele independe da ação social
de setores nacionais específicos, resultando, antes, da dinâmica estrutural da
economia internacional. Por outro lado, estudos mais aprofundados sobre a história
desses movimentos sugerem que eles vêm sendo construídos ao longo de décadas,
implicando um enorme esforço de organização, mobilização e articulação sem o

1 A sugestão de usar esta passagem de O Antigo Regime e a Revolução, de Alexis de Tocqueville,


como inspiração para o título e epígrafe deste artigo surgiu na leitura do livro de Jerome Him-
melstein To the Rigth: the transformation of American Conservantism (Himmelstein, 1990).
Neste livro, Himmelstein mobiliza esta tradução do inglês, de 1955, feita por Stuart Gilbert.
No entanto, é importante frisar que essa tradução é imprecisa. No original, o trecho que abre
a primeira parte do livro de Tocqueville diz “Il n´y a rien de plus propre à rappeler les philo-
sophes et les hommes d´État à la modestie que l´histoire de notre Révolution; car il n´y a eut
jamais d´événements plus grands, conduit de pluis loin, mieux préparés et moins prevues”
(Toqueville, 1967, p.56). A tradução brasileira do livro feita por Yvonne Jean é mais fiel ao
original e diz: “Nada mais indicado para recordar a necessidade de modéstia que a história
da nossa Revolução, pois nunca houve acontecimentos maiores, conduzidos de mais longe,
melhor preparados e menos previstos” (Tocqueville, 1997, p. 51). Mesmo reconhecendo que a
tradução é imprecisa, decidi mantê-la na epígrafe porque ela ilustra melhor as ideias que quero
trabalhar, de inevitabilidade e, ao mesmo tempo, imprevisibilidade. É essa ideia, que remonta
tanto à importância de fatores estruturais quanto à ação social, que quero preservar.

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 65

qual não se pode explicar essa “ascensão conservadora”. De novo, parece que nos
deparamos com a clássica dicotomia ação/estrutura, aqui expressa sob a forma de
uma aparente tensão entre a dimensão global e local, ou entre economia e política.
Neste artigo, eu procuro sugerir que uma forma de enfrentar esse problema
é estudar, justamente, a ação política internacional desses movimentos a partir
de uma chave estrutural. Não só porque a sua articulação internacional ajuda a
explicar, empiricamente, o caráter simultâneo de tais fenômenos mas, sobretudo,
porque a propulsão contemporânea das elites nacionais para o espaço interna-
cional só pode ser explicada estruturalmente, constituindo-se como um elo de
ligação entre ação e estrutura que permite compreender melhor a natureza desses
processos.
Em termos mais concretos, partindo de uma literatura que pensa a estratégia
internacional das elites nacionais de uma perspectiva estrutural (Bourdieu, 1989;
Dezalay; Gath, 2002; Dezalay; Madsen, 2013; Engelman, 2013; Guilhot, 2005; 2011),
proponho pensar a crescente legitimação dos Think Tanks latino-americanos como
espaços de produção de conhecimento a partir da sua vinculação internacional,
que passa tanto por redes formais de articulação quanto por novas modalidades
de circulação internacional dos seus membros. Mas essa nova forma de atuação
dos Think Tanks e dos seus dirigentes só se torna plenamente compreensível à luz
das mudanças estruturais que atingiram o campo de produção e reprodução de
conhecimento a partir dos anos 2000, especialmente o processo de democratização
das instituições públicas de educação superior.
O presente artigo sistematiza os resultados de uma pesquisa em andamento
que procura analisar a atuação internacional de Think Tanks latino-americanos
e seus líderes em diferentes níveis, enfatizando, por sua vez, as dimensões estru-
turais que impelem as elites desses países para o espaço internacional. Para tanto,
divide-se em três partes, para além da introdução e conclusão. Na primeira, apre-
sento duas vertentes contemporâneas que procuram explicar a ascensão da “nova
direita”: uma, que coloca peso nos fatores estruturais; outra que pensa o processo de
construção social desses movimentos ao longo das últimas décadas, para, a partir
dessa reconstrução, defender uma abordagem teórica que ponha em diálogo os dois
níveis, através de um olhar estrutural para a ação internacional. Na segunda parte,
procuro analisar a ascensão dos Think Tanks latino-americanos, mostrando como
o seu apelo à dimensão internacional é constitutiva da sua afirmação como uma
nova posição no espaço de produção e distribuição de conhecimento na região. Na
terceira parte, volto-me para os fatores estruturais que levariam as elites nacio-
nais que atuam nesses espaços a buscar novas formas de atuação internacional,

2018
66 Maria Caramez Carlotto

mostrando como isso ilumina as disputas contemporâneas pela imposição da


“excelência” no espaço de produção e distribuição de conhecimento. Na conclusão,
retomo o que considero as principais contribuições da presente pesquisa.

1. ESTRUTURA INTERNACIONAL OU MOBILIZAÇÃO LOCAL? LINHAGENS EXPLICATIVAS


DA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
A polarização política e o fortalecimento da “direita”2 que, na maior parte
dos casos, lhe é correspondente são, definitivamente, fenômenos internacionais.
O sociólogo Alvaro Comin, em um artigo recente publicado na Novos Estudos,
sintetizou o caráter claramente internacional desse processo: “A última década
e meia se caracterizou por uma onda de polarização social e política que atingiu
praticamente todas as regiões do globo” (Comin, 2017, p. 59, grifos colocados).
De fato, ao longo do seu texto, Comin mostra como dos Estados Unidos ao Irã,
passando pelo Egito, Tunísia, Turquia e Brasil, sem falar dos países da Europa e
da Ásia, é possível observarmos processos importantes de polarização política,
mesmo que nem sempre faça sentido pensá-los a partir das categorias de “direita”
e “esquerda”, já que os rótulos identitários que organizam essas diferentes oposi-
ções são diversos e dispersos.
Ainda assim, é inegável que a polarização política e, na maior parte desses
casos, a ascensão de movimentos e partidos identificados com a direita do espectro
político são processos que estão emergindo simultaneamente em todo o mundo.
O caráter sincrônico desses fenômenos que surgem de modo homólogo nos mais
diferentes contextos nacionais reabriu um interessante debate sobre o peso dos
fatores estruturais, ligados à dinâmica da economia mundial, na conformação
dos embates políticos em nível local. Nessa linha, uma guinada estruturalista da
teoria social parece ganhar força.
Um autor emblemático desse movimento é o escocês Mark Blyth. Depois de se
tornar uma voz influente nas ciências sociais ao defender, contra o economicismo
preponderante nas análises sobre a economia, que a promoção de políticas de
austeridade, no contexto do chamado neoliberalismo, não se explicava nem pela
eficiência dessas políticas, nem, ao contrário, pela pura potência econômica dos

2 O presente artigo tenta evitar, propositalmente, definir o que seja a “direita” ou a “nova direi-
ta” brasileira e latino-americana pelo seu conteúdo específico. Isso porque reconhece que um
dos problemas centrais a ser estudado é, justamente, a dinâmica complexa de nomeação e
autonomeação, com seus jogos de inclusão e exclusão, que determinam as posições centrais do
espectro político. Nesse sentido, é possível reconhecer uma ascensão da direita contemporânea
no Brasil e na América Latina justamente porque crescem os grupos que se autodefinem como
“de direita”, fenômeno novo depois que décadas de regimes autoritários na região tornaram a
categoria quase impronunciável na esfera política local (Pierucci, 1987).

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 67

interesses que lhes davam sustentação, mas sim pela força da ideia ela mesma,
pensada como um consenso cognitivo socialmente construído (Blyth, 2017), Blyth
está, hoje, na linha de frente dos defensores do estruturalismo macroeconômico
como base para análises políticas.
Em artigo de 2017, publicado em parceria com Matthias Matthijs, o autor do
recém-traduzido Austeridade: a história de uma ideia perigosa (Blyth, 2017)
sugere a necessidade de operar uma inflexão em relação ao construtivismo cogni-
tivo que orientou o seu trabalho até então. No lugar de uma ênfase na análise da
ação social inerente à construção e à difusão de “consensos”, Blyth e Matthijs reivin-
dicam uma economia política mais estruturalista, ancorada em uma abordagem
“macroeconômica”, que lança luz sobre as dimensões estruturais dos processos
políticos (Blyth; Matthijs, 2017). Para eles, essas dimensões estruturais são não
apenas econômicas, mas também internacionais, e servem para enfrentar o erro
de grande parte das análises políticas que operam um “reducionismo metodo-
lógico” ao “estudar a dinâmica da política doméstica isolando-a de um contexto
internacional mais amplo e de [seus] macroprocessos” (Blyth; Matthijs, 2017, p.
206, grifos colocados).
A ambição da economia política internacional defendida por Blyth e Matthijs
nesse artigo é explicar a crise de 2008, o Brexit, a eleição de Donald Trump nos
Estados Unidos e outros fenômenos políticos semelhantes que apontam para uma
conservadora “revolta neo-nacionalista no ocidente” como parte de um “mesmo
processo histórico” (Blyth; Matthijs, 2017, p. 205), cuja lógica é determinada
pela economia global. A economia global, nesse caso, é pensada como um sistema
fechado que gera choques endógenos pelo seu próprio desenvolvimento, portanto,
independentemente da ação social e política visando a construção de consensos
cognitivos através da produção e difusão de valores, ideias e visões de mundo
(Blyth; Matthijs, 2017).
A inspiração central de Blyth e Matthijs é um pequeno artigo de Michael
Kalecki publicado em 1943 chamado “Aspectos políticos do pleno emprego”. Nesse
texto, considerado, por muitos, visionário, Kalecki deduz, da dinâmica econômico-
-política interna ao capitalismo, os elementos que levariam à crise inevitável das
políticas de pleno emprego que estavam sendo desenhadas na Europa e nos Estados
Unidos no contexto do pós-guerra. Segundo Kalecki, embora a intervenção estatal
na economia visando a garantia dos níveis de investimento, emprego e renda
fosse, nos anos 1940, amplamente aceita pelo pensamento econômico, subsistia
uma oposição, por parte dos “experts em economia largamente conectados com a
indústria e os bancos” (K alecki, 1943, p.3) à promoção de tais políticas.

2018
68 Maria Caramez Carlotto

Essa oposição cognitiva, inerente ao debate econômico e inspiradora de oposi-


ções no plano político e partidário, embora importante, não seria, no entanto, a
causa última do abandono das políticas ditas de “pleno emprego”. Para Kalecki,
a causa essencial derivaria, na verdade, da própria dinâmica econômica capita-
lista: mesmo gerando lucro e expansão, a promoção do pleno emprego aumentava
o poder de barganha dos trabalhadores, minando “a disciplina das fábricas” e
a “estabilidade política” do sistema (K alecki, 1943, p.3). Consequentemente, “o
instinto de classe [dos líderes de negócios] os sugere que a permanência do pleno
emprego é inconveniente do seu ponto de vista, e que o desemprego é parte integral
do sistema capitalista normal” (K alecki, 1943, p.3).
Assim, sem desconsiderar completamente a importância da mobilização
política necessária à construção de consensos hegemônicos de “direita” ou de
“esquerda”, Kalecki procurava explicar as inflexões no âmbito político pelas dinâ-
micas estruturais inerentes à economia capitalista, marcada pela oposição entre
interesses de classe de trabalhadores e capitalistas financeiros e industriais. O
fato de Kalecki ter descrito, com trinta anos de antecedência, as alianças que
fundamentariam uma guinada neoliberal na condução da política econômica a
partir dos 1970, e ao propor que a hegemonia neoliberal seria igualmente cíclica
e entraria, ela também, em crise, aumenta, contemporaneamente, o apelo do seu
estruturalismo macroeconômico de inspiração marxista. A crise do neoliberalismo
seria consequência, nessa perspectiva, de dinâmicas econômicas que estariam na
raiz, em última instância, de todo o processo político, seja nas disputas políticas
tecnocráticas, seja nas batalhas políticas stricto sensu.
Essa inspiração estruturalista marca a análise de Blyth e Matthijs (2017), mas
também a do sociólogo alemão Wolfgang Streeck (2013; 2016). Em Política na era
da austeridade, organizado em parceria com Armin Schäfer, por exemplo, Streeck
vai atribuir toda a recente crise da democracia representativa e as turbulências
políticas dela derivadas à “maturação dos regimes de bem-estar social”, compre-
endida como um processo quase natural, portanto, independente das disputas
políticas pela construção de consensos e visões de mundo (Schäfer; Streeck, 2013).
A redução da margem de manobra do Estado, pelo “amadurecimento” do regime de
bem-estar e a consequente ascensão de uma “era de austeridade”, é o que explica,
em última instância, toda a démarche política do período recente. Em outros
trabalhos, Streeck (2013; 2016) vai colocar sua ênfase sobre a crise de acumulação
capitalista, que desde os anos 1970 levaria o capitalismo ao que alguns chamam de
“estagnação secular”, gerando consequências políticas como a crise da democracia
representativa e a ascensão de movimentos conservadores de caráter populista. A

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 69

síntese do seu argumento é clara: “Se tratarmos a crise [de 2008] como uma fase
intermediária numa longa sequência evolutiva, verificar-se-á que os paralelos e
as interações entre os países capitalistas superam de longe as [suas] diferenças
institucionais e econômicas” (Streeck, 2013, p. 20).
Essa seleção não exaustiva de autores que estão pensando os processos polí-
ticos contemporâneos pelas lentes da estrutura econômica internacional3 serve
para mostrar a importância que a explicação estruturalista vem recobrando
contemporaneamente. Para essa perspectiva, a ascensão do neoliberalismo, a
partir dos anos 1970, e, mais recentemente, o fortalecimento do conservadorismo
religioso e/ou nacionalista – dois componentes importantes da direita brasileira
contemporânea – se explicariam por fatores macroeconômicos mundiais, numa
chave estrutural interessada antes nas sincronias e homologias internacionais do
que nas especificidades dos fenômenos nacionais, que pressupõem a existência
de trajetórias históricas singulares e, portanto, de ação social em sentido estrito.
Porém, se as explicações pautadas em fatores macroestruturais acertam ao
enfrentar o desafio de olhar para além dos contextos nacionais, retirando inteligi-
bilidade da comparação internacional em um cenário em que, de fato, os processos
político-econômicos estão imbricados globalmente, por outro lado, elas falham
ao abandonar, muito rapidamente, os fatores socioculturais de origem local que
dão densidade para esses processos e podem explicar, em última instância, o seu
desfecho. E eles importam não só porque as categorias de organização desses
conflitos políticos variam segundo o contexto nacional em que se desenham o
jogo político, mas também porque são elas que permitem acessar “os sentidos
envolvidos para os agentes desses conflitos” (Comin, 2017, p. 59) e, portanto, a
própria ação política que é capaz de explicar, se não a polarização, pelo menos o
seu desfecho, para um ou outro polo.
Em outras palavras, se os estruturalistas acertam ao explicar a “inevitabili-
dade” da ascensão da direita em plano nacional e internacional, eles falham ao
não dar conta da sua “imprevisibilidade”. Por que, mesmo sendo estruturalmente
esperada, todo mundo, inclusive os estruturalistas, foram pegos de surpresa pela
força contemporânea das ideias “de direita” no plano econômico e cultural?
Essa pergunta abre o livro de Jerome Himmelstein intitulado To the right:
the transformation of American Conservatism (Himmelstein, 1990). Dialogando
sobretudo com a tradição sociológica norte-americana, o livro de Himmelstein é

3 Embora não seja exaustiva, o levantamento procurou dialogar com autores que têm impacto,
muito recentemente, no debate teórico das ciências sociais, particularmente no Brasil.

2018
70 Maria Caramez Carlotto

parte de uma outra vertente teórica, também em expansão no contexto atual, que
procura explicar os processos políticos de ascensão do neoliberalismo econômico
e, mais contemporaneamente, o fortalecimento do conservadorismo, através da
reconstrução dos movimentos políticos que produziram e reproduziram essas
ideias em contextos locais específicos.
O livro de Himmelstein é interessante justamente por romper explicitamente
com uma leitura tácita das ciências sociais norte-americana dos anos 1950, 1960
e 1970 (Bell, 1963, 1965; Lipset; R aab, 1978; Lubell, 1965) que considerava o
surgimento de movimentos de direita, em especial da direita radical conservadora,
“uma erupção episódica na vida política norte-americana, um grito de protesto fútil
contra a transformação social inexorável, uma resposta emocional e transitória
ao sentimento de deslocamento social” (Himmelstein, 1990, p. 2). Embebidos nos
pressupostos da teoria da modernização, esses autores consideravam a mobilização
da direita conservadora uma reação quixotesca a mudanças profundas e inevitáveis
que ocorriam nas sociedades “modernas”, em particular, e eu grifo “a primazia
da educação sobre a herança” (Himmelstein, 1990, p. 3). Para eles, portanto, “o
que a direita combate, na sobra do comunismo, é essencialmente a modernidade”
(Bell, 1963, p. 102). Nessa chave, a ação política da direita radical era vista como
necessariamente exótica, periférica, inócua e estéril, dada a inexorabilidade das
transformações contra as quais ela se levantava.
Himmelstein, ao contrário, integra toda uma outra vertente analítica que, a
partir dos anos 1980, em função de inflexões teóricas mas também de mudanças
na conjuntura política, passou a levar a mobilização da direita radical norte-
-americana um pouco mais a sério, considerando-a como um fenômeno político
digno de ser analisado como tal, isto é, capaz de conquistar e legitimar uma nova
hegemonia política e cultural. No lugar de olhar para esse movimento como um
fenômeno exótico fadado ao ostracismo, essa tradição sociológica passou a prio-
rizar a análise de todo o longo processo de mobilização social e articulação política
desse setor, que o transformou, primeiro, em uma voz legítima do debate público
norte-americano no final dos anos 1970 e, depois, em força política consistente ao
ponto de conquistar a presidência dos Estados Unidos, já em meados dos anos 1980.
Em resumo, o que Hilmmelstein propõe, juntamente com outros autores
da sua geração (Blumenthal, 1987; Crawford, 1980; Dye, 1986; Ellerin; A lisa,
1982; Gamson, 1982; Goldstein, 1982; Miles, 1980; Nash, 1979), é pensar a direita
conservadora como um movimento social stricto sensu, levando a sério a sua ação
política, enfatizando a sua capacidade de agência e articulação e, portanto, o caráter
relativamente contingente do seu surgimento e fortalecimento.

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 71

É importante lembrar, para os fins deste artigo que, para fazer isso, esses
autores precisaram romper, também, com o estruturalismo então em voga
(Himmelstein, 1990, p. 152) que, como eu tentei argumentar, vive hoje um novo
florescimento. Nesse sentido, o trabalho de Himmelstein sobre a “nova direita”
norte-americana é importante na medida em que explicita a afirmação de toda
uma outra vertente, de caráter mais construtivista, que também se propõe a pensar
a mobilização da direita e que tem produzido trabalhos importantes.
Sem pretender realizar uma reconstrução exaustiva, e enfatizando contribui-
ções recentes, podemos localizar nessa linha o livro de Issac William Martin, Rich
people´s movements: grassroots campaigns to untax the one percent¸ publicado
em 2013, no qual o autor descreve, em diálogo com a literatura dos novos movi-
mentos sociais, o longo processo de mobilização dos setores mais ricos da sociedade
norte-americana contra a cobrança de impostos progressivos. Acompanhando a
construção desse movimento ao longo do século XX, com a sua apropriação de
um repertório político originalmente ligado a movimentos “de esquerda”, Martin
consegue explicar o sucesso contemporâneo dessas forças sociais, expresso na
ascensão de organizações como o Tea Party nas eleições norte-americanas de
2010 (Martin, 2013). A intenção de reconstruir a longa história desses movimentos
contra o imposto é, justamente, para combater a ideia de que eles são inevitáveis:
“É verdade que o movimento dos ricos não teria emergido na ausência de impostos
federais sobre a renda e grandes fortunas. Mas esse movimento não é inevitável
apenas porque a Constituição passou a autorizar os impostos progressivos” (Martin,
2013, p. 198).
Um outro exemplo interessante nessa linha é a análise de Daniel Stedman
Jones em Masters of the Universe sobre a história do neoliberalismo nos Estados
Unidos e na Inglaterra. Jones coloca no centro da sua análise a “estratégia de
formação de opinião liderada pela e direcionada para a elite intelectual” (Jones,
2012, p. 4). Segundo ele:

Assim como Keynes, Hayek acreditava que as ideias se infiltravam na política


muito lentamente. Portanto, a forma de garantir que o livre mercado triunfasse
era focar na transformação das mentes dos “mercadores de ideias de segunda
mão”, os intelectuais. A estratégia era clara: os pensadores neoliberais precisa-
vam mirar a inteligência mais ampla, formada por jornalistas, experts, políti-
cos e formuladores de política. Isso foi feito através da formação de uma rede
transatlântica de empresários simpáticos e empreendedores ideológicos que

2018
72 Maria Caramez Carlotto

lideravam think tanks e da popularização de ideias neoliberais por jornalistas e


políticos (Jones, 2012, p. 4)

Como o título do livro sugere e a citação acima enfatiza, Daniel S. Jones


procura enfatizar a agência dos atores sociais na disputa pela afirmação de visões
de mundo. Nesse sentido, Jones explicita um ponto comum a grande parte desses
trabalhos sobre os movimentos sociais situados à direita do espectro político: o
papel absolutamente central desempenhado pelas redes internacionais de Think
Tanks para a articulação e o fortalecimento da direita contemporânea, tanto nos
Estados Unidos quanto no resto do mundo4. De fato, Himmelstein, ao lado de
outros autores que estudaram a ascensão da chamada “nova direita” nos Estados
Unidos a partir dos anos 1970 (Ellerin; A lisa, 1982; Peele, 1984), enfatiza que o
que há de “novo” na direita contemporânea não são inflexões ideológicas, já que
o movimento é marcado, desde sempre, segundo ele, pela crítica do Estado forte,
defesa da liberdade de iniciativa e mobilização de “guerras culturais” em torno de
assuntos morais5. Segundo esses autores, a inovação da direita consiste mais na
transformação das suas práticas, em especial da sua forma de articulação, calcada,
justamente, na construção de uma densa rede de organizações, com os Think Tanks
economicamente liberais e/ou politicamente conservadores no centro.
Foi a consolidação dessas redes que permitiu com que o movimento se
expandisse e se capilarizasse, tornando os chamados Think Tanks essenciais
para entender a força contemporânea de partidos e movimentos considerados “de
direita”. Foram sobretudo essas organizações que passaram a disputar o debate
público e a legitimar políticas específicas que catalisaram as disputas contem-

4 É importante frisar que embora o surgimento de instituições privadas de expertise, atualmente


denominadas Think Tanks, não seja um fenômeno exclusivamente “de direita”, é reconhecido
na literatura que as camadas dominantes da sociedade exercem mais influência no espaço dos
Think Tanks pela sua capacidade de financiamento de um setor que depende, essencialmente, de
clientes privados, marcadamente grandes empresários. Isso é verdade para os Estados Unidos,
mas também para países latino-americanos como Argentina e Brasil (Dreifuss, 1987; Heredia,
2004; 2012; 2015; Medvetz, 2012; Pucciarelli, 2004).
5 Enquanto o estruturalismo pensa a “direita” como um movimento que deriva de um lugar
específico, reduzindo a importância do conteúdo ideológico das suas reivindicações e das suas
divergências e fissuras internas, para essa vertente que se importa com a mobilização política
desses setores, a “direita” não é vista como um bloco monolítico. Ao contrário, as diferenças
internas importam tanto quanto suas coalizões, o que coloca em primeiro plano o problema das
ideias específicas defendidas por esses atores. No caso da chamada nova direita norte-americana,
que emerge com força a partir dos anos 1970 em oposição às políticas do New Deal, a coalizão
essencial é entre um conservadorismo religioso, que enfatiza temas ideológicos, e um (neo)libe-
ralismo econômico herdeiro do anti-comunismo e do anti-coletivismo. Segundo Himmelstein,
apesar das diferenças profundas entre esses dois grupos, eles acabam se aproximando, tanto
que “apoiam as mesmas causas, financiam os mesmos comitês, recebem financiamento das
mesmas fontes e compartilham lideranças e ideias” (Himmelstein, 1990, p. 68).

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 73

porâneas pela afirmação de novos consensos sociais. Além disso, foram elas que
facilitaram a internacionalização de uma agenda política liberal no plano econô-
mico e, mais recentemente, conservadora no plano cultural, bem como facilitaram
o compartilhamento de repertórios que ajudam a explicar o caráter sincrônico da
ascensão da direita internacionalmente.
No entanto, se olhar sobre a articulação de Think Tanks pressupõe uma abor-
dagem mais construtivista, atenta ao papel da ação política na configuração de
realidades sociais, por outro lado, essa estratégia elitista de formação de opinião
(Jones, 2012, p. 4) pode ser melhor compreendida a partir de uma abordagem
que leve em consideração as transformações estruturais do espaço de produção e
difusão de conhecimento que estão na origem dos Think Tanks e, principalmente,
do seu apelo às redes e formações internacionais como fonte de “excelência” acadê-
mica.
Ao fazer isso, esta pesquisa se aproxima, em primeiro lugar, de toda uma
literatura que vem pensando a importância das redes transnacionais para a recon-
figuração do campo econômico e político, em particular da atuação dos Estados
Nacionais. De fato, na disciplina de Relações Internacionais, não são poucos os
trabalhos que têm procurado enfatizar o papel que as redes internacionais de atores
não estatais como experts, profissionais, ONGs, multinacionais e Think Tanks
assumiram na construção de uma nova ordem mundial, calcada no liberalismo e,
mais recentemente, em doutrinas de segurança inspiradas em narrativas quase
teológicas como a de “choque de civilizações” (Haas, 1992; Finnemore, 1996; Pjil,
1984).
O grande problema dessas interpretações, no entanto, é a carência de uma
perspectiva sociológica capaz de situar os atores internacionais nacionalmente,
posicionando-os dentro de estruturas sociais nacionais que ajudem a explicar a sua
possibilidade de acessar o plano internacional. Ou, como afirmam Yves Dezalay
e Mikael Madsen:

(...) as pesquisas sobre as redes internacionais de consultoria não levam nem um


pouco em conta as lógicas escolares em que são produzidos esses assessores e
consultores e suas competências e, ainda mais, ignoram as lógicas sociais e fami-
liares que influenciam intensamente a reprodução dessas hierarquias escolares
(Dezalay; Madsen, 2013, p. 26-27).

É justamente esse olhar para as lutas pela transformação das hierarquias


sociais, que definem as posições e os recursos que os agentes mobilizam nas suas

2018
74 Maria Caramez Carlotto

disputas políticas, que permite entender a ascensão e legitimação contemporânea


da direita na América Latina tanto à luz da estrutura socioeconômica quanto da sua
ação social. No item a seguir eu procuro mostrar como o apelo ao “internacional”
é um recurso essencial da atuação contemporânea dos Think Tanks latino-ameri-
canos e seus líderes para afirmar a sua “excelência” no campo de produção e difusão
de conhecimento. Com isso, como eu tento indicar na sequência, eles reagem às
transformações estruturais que impactaram o espaço de produção e difusão de
conhecimento da região a partir dos anos 2000, tentando subverter os efeitos que
a democratização da educação superior na região produziram socialmente.

2. THINKS TANKS LIBERAIS LATINO-AMERICANOS E SUAS REDES INTERNACIONAIS


No seu trabalho sobre Think Tanks norte-americanos, Thomas Medvetz chama
a atenção para o fato de que o surgimento e difusão da categoria Think Tank para
designar centros privados de investigação é inseparável do enorme crescimento
dessas instituições a partir dos anos 1970 e do concomitante desenvolvimento de
uma série de estudos sobre esse objeto, nos Estados Unidos, no mesmo período
(Medvetz, 2012). A abordagem relacional e reflexiva (Bourdieu, 1980) adotada por
Medvetz, o obriga a pensar o problema conceitual essencial para quem trabalha com
esse objeto – afinal, que instituições podem ser classificadas como Think Tanks,
isto é, o que esse conceito denomina exatamente? – como parte do problema de
pesquisa, sob a forma de batalhas classificatórias, implicadas na ação social de
“nomear”. Essas batalhas, vale notar, não pairam sobre o espaço dos Think Tanks,
pelo contrário, elas ajudam a constituir esse espaço, contribuindo para definir o
objeto de que tratamos6. Nesse sentido, embora centros privados de investigação
existam desde a primeira metade do século XX7, a afirmação dos Think Tanks

6 Medvetz vai além e chega a identificar abordagens teóricas específicas sobre esse objeto – o eli-
tismo, de um lado, e o pluralismo, de outro – como atrelado a posições sociais. Medvetz mostra
que a denúncia do elitismo inerente aos Think Tanks advém de setores mais autônomos do espaço
de produção de conhecimento, em especial as universidades de pesquisa, que consideram os
Think Tanks instituições puramente a serviço das elites dominantes. Ao passo que o pluralismo,
que nega qualquer relação entre os Think Tanks e as classes dominantes corresponde, sobretudo,
às posições mais dependentes do espaço, sobretudo ligadas aos Think Tanks cujo financiamento
depende da clientela.
7 Muitas análises históricas tentam reconstruir a gênese dos primeiros Think Tanks nos Estados
Unidos, Europa e América Latina. Fala-se, por exemplo, da Carnegie Foundation, de 1903, da
Russell Sage Foundation, de 1907 e da Rockfeller Foundation, de 1913. Na Europa, o destaque
quase sempre é à Mont Pelerin Society. No Brasil, o IPES e o IBAD, dos anos 1960, acabam
ganhando destaque, ou então a própria FGV, de 1944. O problema dessa abordagem – quase
hegemônica – que procura identificar Think Tanks antes da consolidação dessa categoria social é
que ela ignora o fato de que essas instituições eram, até então, tratadas isoladamente e reconhe-
cidas na sua especificidade. O que eu procuro apontar, na esteira do trabalho de Medvetz (2012),

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 75

como uma posição socialmente significativa no espaço de produção e difusão de


conhecimento é inseparável da consolidação dessa nova categoria.
No Brasil, assim como nos Estados Unidos, a nomeação de instituições de
pesquisa como Think Tanks começa a se tornar mais frequente a partir dos anos
1970. O jornal Folha de S. Paulo registra o primeiro uso do termo junho de 1970,
na coluna de “notas econômicas” de Joelmir Beting. Nessa primeira referência
ao termo, o jornalista econômico resenhava a tese de Zbigniew Brzezinski, então
professor da Columbia e conselheiro pessoal do ex-presidente norte-americano
Hubert Humphey, sobre a emergência de uma “era da tecnetrônica”, em que a
tecnologia ocuparia o lugar da ideologia, a economia da política e o mundial subs-
tituiria, definitivamente, o local (Folha de S. Paulo, 1970, p. 16). Nesse processo de
transformação profunda das “sociedades industriais modernas”, segundo Beting,
“a torre de marfim [em] que se converteu a universidade em nações subdesenvol-
vidas que praticam tentativas de industrialização [...] será substituída por uma
universidade convertida em ‘think tank’ vivamente complexa e fonte de inspiração
e condutores da sociedade” (Folha de S. Paulo, 1970, p. 16).
A referência que aparece nesse primeiro uso do termo pela Folha de S. Paulo
não podia ser mais significativa. De fato, como procuro mostrar na próxima seção,
a disputa dos Thinks Tanks será diretamente com a universidade de pesquisa,
grande parte delas públicas, que ocuparam sozinhas, por muito tempo, a posição
dominante no espaço de produção e difusão de conhecimento em diferentes
sociedades. Mais do que isso, Beting antecipa o fato de que o grande trunfo dos
Think Tanks nessa disputa com as universidades será, justamente, o seu caráter
mais “internacional” da sua produção, o que, na “era da tecnetrônica”, segundo
ele, seria um recurso essencial.
A importância da dimensão internacional é definidora do uso que a mídia brasi-
leira fez do termo em um primeiro momento. De fato, ao longo de toda a década de
1970, a categoria seria mobilizada pela Folha de S. Paulo seja para designar insti-
tuições de pesquisa “modernas” porque internacionalmente conectadas, seja, como
era mais comum, para nomear instituições internacionais stricto sensu, em geral
norte-americanas, como o Stanford Research Institute, a Georgetown Foundation,
o Instituto de Estudos Estratégico do Pentágano ou o Instituto Hoover – todas
instituições denominadas de Think Tank pela Folha nos anos 1970. A primeira
referência a um Think Tank brasileiro é à Fundação Pedroso Horta, ligada ao

é que o fenômeno relevante é o reconhecimento social de que o conjunto dessas instituições


constitui uma posição nova no espaço de produção e reprodução de conhecimento e que isso é
inseparável da difusão da categoria ela mesma.

2018
76 Maria Caramez Carlotto

Movimento Democrático Brasileiro, em 1977 e, em 1983, o grande entusiasta do


uso do termo no jornal, Joelmir Beting, classificaria o Conselho Econômico da
FIESP, pela sua expertise e excelência, como um Think Tank típico (Folha de S.
Paulo, 1983, p. 19).
Se um olhar mais detido revela esses sentidos específicos inerentes à mobili-
zação esporádica do termo a partir dos anos 1970, um sobrevoo mais panorâmico
explicita que, na verdade, a categoria Think Tank só se popularizou de fato na
imprensa escrita brasileira partir do começo dos anos 2000, como demonstra o
gráfico abaixo, feito a partir de uma pesquisa no Acervo Eletrônico da Folha de
S. Paulo.

Fonte: Acervo Folha de S. Paulo. Elaboração: própria

No campo de estudos acadêmico, o interesse pelos Think Tanks como objeto


específico também surge mais tardiamente no Brasil e nos demais países latino-
-americanos. O portal de buscas acadêmicas Scielo registra 21 artigos na busca pelo
termo Think Tanks e 11, quando o termo consta no singular. O artigo mais antigo é
de 2005, versando sobre políticas de inovação e desenvolvimento e publicado em
uma revista de química (Politzer, 2005). Embora os dados do Scielo não esgotem
os estudos acadêmicos sobre o tema, eles são um indício de que o desenvolvimento
das pesquisas sobre Think Tanks é quase concomitante à disseminação do uso
dessa categoria pela imprensa escrita brasileira. Nos dois casos, fica claro que os
Think Tanks emergem como fenômeno social relevante, no país e, ao que tudo
indica, na região8, somente a partir dos anos 2000.

8 Na plataforma Scielo, o Brasil é país com mais artigos dedicados ao tema, seguido da Colômbia,
México e Chile. Todos seguem o mesmo padrão temporal, de trabalhos desenvolvidos a partir
dos anos 2000.

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Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 77

De fato, outros dados sugerem que parece haver uma mutação no espaço dos
Think Tanks latino-americanos a partir do começo da década de 2000. Ao anali-
sarmos comparativamente os Think Tanks liberais latino-americanos listados no
Global Go To Think Tank Index Report de 2015 (McGann, 2015)9, ficou explícito
que parece existir duas “ondas” de Think Tanks liberais na América Latina: uma
primeira, que vai de 1979 a 1990 e uma segunda que surge a partir do começo
dos anos 2000 (R amos; Carlotto, 2017), como é possível notar na tabela abaixo.

Tabela 1. Think Tanks liberais latino-americanos listados no Global Go To Index 2015 por
nome, país sede e ano de fundação.
Nome País sede Fundação
Instituto Libertad y Democracia Peru 1979
Centro de Divulgación del Conocimiento Económico para la Venezuela 1984
Libertad (CEDICE)
Instituto de Estudos Empresariais Brasil 1984
Instituto Liberdade do Rio Grande do Sul Brasil 1986
Fundación Libertad Argentina 1988
Libertad y Desarrollo Chile 1990
Fundación Caminos de la Libertad México 2004
Instituto Millenium Brasil 2005
Instituto Político para la Libertad Peru 2005
Instituto de Pensamiento Estrategico Ágora México 2008
Centro de Investigaciones Sobre la Libre Empresa México 2010
Fundación Libertad y Progreso Argentina 2011
Fonte: Ramos; Carlotto, 2017. Elaboração: própria.

Pensando esses dados historicamente e inspirando-se no esforço de Medvetz


(2012) para analisar a conformação de um espaço dos Think Tanks nos Estados
Unidos, é possível dizer que as instituições criadas até os anos 2000, embora
possam ser, hoje, classificadas como Think Tanks, nem sempre foram conside-

9 O Global Go To Index é, essencialmente, um ranking de Think Tanks internacionais produzido a


partir de um survey aplicado anualmente com aproximadamente 7.500 pessoas entre jornalistas,
acadêmicos, doadores, e policy makers que, através das suas respostas, ajudam a classificar
6.600 Think Tanks segundo diferentes critérios. O Index é publicado anualmente desde 2008
e é coordenado por James Macgann no âmbito do Think Tanks and Civil Society Program, da
Universidade da Pensilvânia. Atualmente, o Global Go To Index é a mais importante fonte siste-
matizada de informações sobre Think Tanks de todo o mundo e o trabalho do grupo consolidou
uma tipologia que classifica dos Think Tanks segundo a sua filiação institucional, ou seja: a)
autônomos e independentes; b) quase independentes; c) universitários; d) partidários; e) gover-
namentais; f) quase-governamentais; e g) lucrativos. Apesar de ser uma fonte importante para
o início do mapeamento do espaço dos Think Tanks, o Index apresenta limitações importantes,
em particular porque, ao enfatizar a construção de uma tipologia no lugar de uma topologia
(Medvetz, 2012), a pesquisa de Macgann perde a dimensão das lutas e disputas pela definição
de posições legítimas no campo de produção e difusão de conhecimento.

2018
78 Maria Caramez Carlotto

radas assim10. Isso significa – e esse é o dado relevante para esta pesquisa – que
a consolidação da percepção social de que existe um novo tipo de instituição
voltado à produção e à difusão de conhecimento e que pode ser designado como
Think Tank é um indício da afirmação de uma posição nova no espaço social de
produção e difusão de conhecimento.
A maior prova de que os Think Tanks se afirmam como uma nova posição e
cada vez mais prestigiosa quando comparadas às instituições de ensino superior
são os efeitos de renomeação que podemos observar contemporaneamente, com
institutos de pesquisa e de ensino consagrados que passam se reconhecer e a se
reivindicar, cada vez mais, como Think Tanks.
Um exemplo significativo nesse sentido é a Fundação Getúlio Vargas. Criada
em 1944 pelo então presidente do Departamento Administrativo do Serviço Público
(DASP), Luiz Simões Lopes, inspirado em contatos deste com intelectuais norte-
-americanos, a FGV dedicou-se originalmente à formação de um “novo profissional”
voltado aos “problemas concretos da administração” (Vasconcellos, 1998, p. 63).
Nesse espírito,

Seu objetivo geral era estudar e difundir os princípios e métodos de organização


racional do trabalho, conforme definido no seu decreto de fundação: “o Presi-
dente do Departamento Administrativo do Serviço Público fica autorizado a
promover a criação de uma entidade que se proponha ao estudo e à divulgação
dos princípios e métodos da organização racional do trabalho e ao preparo de
pessoal qualificado para a administração pública e privada, mantendo núcleos
de pesquisas, estabelecimentos de ensino e os serviços que forem necessários”
(Carlotto, 2014, p. 162).

Assim, o sucesso da FGV na produção e disseminação de conhecimento econô-


mico e gerencial no país, inclusive em função “convênios firmados, a partir da
Segunda Guerra Mundial, tanto com a Organização das Nações Unidas quanto com
o governo dos Estados Unidos” (Carlotto, 2014, p. 162), fez com que a Fundação
passasse a ser identificada e a se identificar como uma instituição de ensino supe-
rior e pesquisa. A FGV, porém, figura no Global Go To Think Tank Index Report
como o Think Tank mais influente da América do Sul e um dos mais influentes do

10 Medvetz (2012) as denomina, com razão, a meu ver, de proto Think Tanks. De fato, ao analisar
os Centros Privados de investigação econômica na Argentina, Mariana Heredia (2012) evita,
propositalmente, o termo Think Tank. E André Dreifuss (1987), no seu estudo sobre o IPES e o
IBAD na ditadura militar brasileira não usa o termo.

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Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 79

mundo desde a sua primeira edição (McGann, 2009). E o que era, a princípio, uma
nomeação externa e até peculiar passou a ser reivindicada pela própria instituição
como um sinal distintivo de competência, como fica explícito na imagem abaixo,
que reproduz a página oficial da FGV na Internet.

Fonte: Imagem retirada do portal da FGV em 01 de fevereiro de 2018.

A reivindicação simbólica da FGV, de ser identificada como um Think Tank, é


um indício importante da consolidação de uma nova posição no espaço de produção
e reprodução de conhecimento, distinta daquela representada pelas instituições
de ensino superior e pesquisa. Pensando nos Estados Unidos, Medvetz classificou
essa posição como marcada por uma indefinição estrutural: mais do que uma
organização em si mesma, os Think Tanks são “uma rede complexa de organiza-
ções que articulam lógicas opostas como a acadêmica, a política, a midiática e a
econômica” (Medvetz, 2012, p. 13). Assim, o sociólogo norte-americano chama a
atenção para a importância da articulação em redes para a estruturação dos Think
Tanks. E, de fato, essas conexões – sobretudo as de caráter internacional – parecem
ganhar destaque na imagem mobilizada pela FGV, assim como nas imagens de
outros Think Tanks latino-americanos.

2018
80 Maria Caramez Carlotto

Fonte: Imagens retiradas, em sentido horário, dos portais da Fundación Libertad (http://
libertad.org.ar/web/nuestras-redes.php); do Cedice (Disponível em: http://cedice.org.ve/
aliados-y-redes/); do Think Tank Libertad y Desarrollo (Disponível em: http://lyd.org/enla‑
ces/); e do Think Tank Libertad y Progreso (Disponível em: http://www.libertadyprogreson‑
line.org/nosotros/alianzas), em 01 de fevereiro de 2018.

Levantamento anterior feito com os Think Tanks liberais latino-americanos


que constam no Global Go To Index 2015 mostrou que uma característica marcante
da sua consolidação é o fato de existir uma forte articulação institucional e inter-
nacional entre eles, seja através de relações diretas – explícitas sob a forma de

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Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 81

parcerias e convênios – seja através de redes formais de articulação dentre as quais


duas se destacam: a Red Liberal de América Latina (RELIAL) e a Atlas Network.
Camila Rocha (2015) já havia apontado a importância das redes internacionais
para a consolidação dos Think Tanks de direita na América Latina, tanto nos anos
entre os anos 1970 e 1990 quanto, mais recentemente, a partir dos anos 2000.
Porém, do ponto de vista sociológico, importa não só reconhecer a existência
dessas redes, mas notar o destaque dado a essa articulação pelos próprios Think
Tanks analisados, o que indica que isso é, para eles, um traço distintivo. De fato,
considerando os Think Tanks liberais que compõem a amostra desta pesquisa,
quase todos dão destaque para as suas redes e aliados, como fica explícito, de
novo, nas imagens acima.
Mas não é apenas a articulação internacional formal de Think Tanks que
merece destaque, mas também a trajetória internacional dos seus líderes. No
caso dos Think Tanks brasileiros que constam nesta seleção feita no Global Go To
Index, um traço comum dessas trajetórias é a realização de alguma etapa da sua
formação, em geral nas fases iniciais do processo de formação em nível superior,
integralmente no exterior.
No caso do Instituto Millenium, a atual diretora-executiva, Priscila Pereira
Pinto, fez a sua graduação integral nos Estados Unidos. Mais precisamente, ela é
formada em ciência política pela Fordham University, localizada em Nova Iorque,
tendo feito seu mestrado em “gerenciamento político” pela George Washington
University, sediada na capital federal norte-americana. O Instituto de Estudos
Empresariais (IEE) não é diferente. Seu presidente, Rodrigo Tellechea Silva, apesar
de ter feito graduação em ciências jurídicas e sociais pela PUC-RS e doutorado em
direito pela USP, tem uma especialização em “Liderança e Negócios” pela McDo-
nough School of Business da George Town University. O Instituto Liberdade, do
Rio Grande do Sul, tem à frente do seu Conselho Acadêmico, Leonidas Zelmanovitz.
Formado em Direito pela Federal do Rio Grande do Sul, fez mestrado e doutorado
em “economia austríaca” pela Universidade Rey Juan Carlos, em Madrid, mas é,
atualmente, fellow do Liberty Fund Inc. sediada nos Estados Unidos.
O que essa pequena amostra sugere, sobretudo quando interpretada à luz
de outros trabalhos sobre circulação internacional de elites locais contemporâ-
neas11, é a afirmação crescente de uma nova modalidade de circulação que passa,

11 Fabiano Engelman, ao analisar a recomposição das elites jurídicas brasileiras pós-redemocra-


tização, mostra que a emergência de um padrão de atuação do direito mais próxima do mundo
dos negócios, em oposição à tradicional prática jurídica brasileira centrada no Estado, com a
Magistratura e o Ministério Público como ápice da carreira, é inseparável das novas estratégias

2018
82 Maria Caramez Carlotto

necessariamente, pela realização de pelo menos uma etapa da sua formação


integralmente no exterior.
A centralidade da circulação internacional como estratégia de legitimação e
socialização de elites e seus efeitos em termos políticos não é um fenômeno novo,
nem um problema inédito para as ciências sociais. José Murilo de Carvalho enfa-
tiza, na sua análise sobre a construção do Estado imperial brasileiro (Carvalho,
2003), a centralidade da formação em direito em Coimbra como destino comum
das elites coloniais brasileiras, inclusive para a manutenção da nossa integridade
territorial, para não falar para a conformação da nossa burocracia estatal.
Outros trabalhos mais recentes procuraram analisar a recomposição das
elites políticas nacionais dessa perspectiva. Dentre esses, merece destaque a
análise de Letícia Canêdo sobre o perfil dos políticos mineiros entre 1964 e 2010,
que mostra como os “políticos herdeiros”, que tinham na tradição política das
“grandes família” seu recurso essencial, vão perdendo espaço para um grupo de
militantes que encontram nas instituições escolares – em particular, no Colégio
Estadual Central e na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG – seu espaço
de socialização principal e porta de entrada para a atuação política. Esse segundo
grupo vai mobilizar, justamente, diferentes modalidades de circulação interna-
cional para ganhar espaço na política pós-ditadura12. Mas o determinante é que
em todos esses casos, o financiamento dessa circulação internacional não passa
pelo capital familiar e, portanto, distingue-se da geração anterior, de “herdeiros”.
Na mesma linha, Ana Maria Almeida e Águeda Bittencourt (2013) mostraram
como o campo de estudos sobre educação se transformou a partir de estratégias
de circulação internacional, que definiram o predomínio das análises econômicas
nessa área (Almeida, 2008). Outros trabalhos sobre a mesma temática (Hey, 2008;
Carlotto; Garcia, 2015; 2017) também destacam a centralidade da circulação
internacional para a recomposição de elites dirigentes no campo educacional. No

de circulação internacional. Em particular, ele mostra a estreita relação entre o movimento


“direito e economia”, que tem nos cursos de direito da FGV seu epicentro, e um padrão específico
de circulação internacional, que passa pela realização da pós-graduação, particularmente nos
Estados Unidos, o que era até então pouco valorizado pelos juristas brasileiros (Engelman, 2013,
p. 137-139). Essas pós-graduações, muitas delas lato sensu ou feitas integralmente no exterior,
se inscrevem nessa nova modalidade que estou descrevendo, uma vez que não contam com
financiamento do Estado dependendo, em alguma medida, de estratégias de autofinanciamento.
12 Canêdo analisa três modalidades principais: o financiamento de militantes da esquerda anti
estatista por agências norte-americanas como a Fundação Ford de estudos nos Estados Unidos,
que vai dar origem a trajetórias de destaque dentro do campo acadêmico de ciências sociais,
envolvendo sobretudo políticos do PSDB; o financiamento da Igreja Católica para militantes
da esquerda católica que vai dar origens a trajetórias ligadas a ONGs da sociedade civil como o
IBASE; por fim, uma circulação financiada por movimentos políticos, sobretudo para países da
África e América Latina, que vai marcar a trajetória de políticos ligados ao movimento sindical
e, através dele, a partidos de esquerda como o PDT e o PT.

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Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 83

entanto, todos esses trabalhos lidam com modalidades de circulação internacional


que não passam pelo financiamento familiar e, portanto, se ligam, em geral, a
disputas simbólicas contra os “herdeiros” de então13, marcando “a primazia da
educação sobre a herança” contra a qual se mobiliza o neoconservadorismo nos
Estados Unidos (Himmelstein, 1990) e na Europa (Guilhot, 2006).
O padrão de circulação dos líderes de Think Tanks liberais brasileiros sugere,
porém, a emergência de uma nova modalidade de circulação internacional, carac-
terizada pelo financiamento familiar de etapas iniciais da formação acadêmica, em
especial, cursos de inglês pré-universitários, graduações integrais, especializações
(MBA) e mestrados. Para entender a emergência dessa nova modalidade de interna-
cionalização da formação proponho olhar, desde uma perspectiva estrutural, para
as disputas que marcam, hoje, o campo de produção e reprodução de conhecimento
na América Latina e, particularmente, no Brasil, considerando ser esta uma das
trincheiras essenciais dos embates culturais e políticos que se desenham na região.

3. MUDANÇAS NA ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA E SEU IMPACTO NO CAMPO DE


PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Bárbara – Conta para ela a novidade!


Fabinho – Vou passar seis meses fora morando sozinho.
Val – Fora aonde?
Fabinho – Na Austrália, Val.
Val – Nossa, que lonjura.
Bárbara – Tem um curso incrível de inglês lá, é bom que ele fica e estuda.
Val – Não gostei, vou ficar seis meses sem ver ele?
Fabinho – Olha essa praia aqui, ó.
Val – Linda demais. Parece o Recife.
(Que horas ela volta?)

Um dos diálogos finais do filme de Anna Muylaert – Que horas ela volta?
–, apesar de parecer despretensioso, revela um aspecto essencial da transfor-
mação estrutural do campo de produção e reprodução de conhecimento no Brasil
contemporâneo. Depois de saber da reprovação do filho no vestibular da USP e

13 Desnecessário dizer que em todos os casos, não se trata exatamente de perfis oriundos de famílias
“despossuídas”. No entanto, em termos relacionais, sua oposição era em relação aos herdeiros
das grandes famílias que, nos anos 1960, controlavam quase que completamente os espaços de
poder nacional.

2018
84 Maria Caramez Carlotto

da aprovação de Jéssica, a filha da empregada Val, no mesmo vestibular, Bárbara


decide mandar o filho estudar inglês no exterior. O alargamento do espaço de
possibilidades de estudo pelas elites brasileiras, que passam a incluir, cada vez
mais, um circuito internacional na formação dos seus filhos, não é, como procurei
mostrar, fenômeno novo. Mas a emergência de novas modalidades de circulação,
priorizando etapas iniciais da formação e com financiamento familiar, parece ser
uma das consequências mais importantes e menos estudadas da transformação
estrutural que atingiu o ensino superior brasileiro e latino-americano nos últimos
anos.
No caso do Brasil, embora o ensino superior continue sendo consideravelmente
excludente (Brito, 2013), é inegável que o efeito social de um conjunto de políticas,
dentre as quais o Programa Universidade para Todos (Prouni), a consolidação do
Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), a Lei 12.711/2012, que institui cotas
raciais e sociais, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), o Sistema
Universidade Aberta do Brasil, a Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (Reuni) e a nacionalização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)
resultaram numa relativa democratização do ensino superior no país, com efeitos
sobre o perfil social dos ingressantes. Nesse sentido, destaca-se o aumento da
participação de alunos autodeclarados pardos e pretos, oriundos de famílias de
renda baixa ou média e que cursaram o ensino médio em escolas públicas (Oliveira;
Silva, 2017).
Essa transformação não é exclusiva do Brasil. Claudio Rama considera que
a América Latina e Caribe14 vivem, no âmbito da educação superior nos anos
2000, uma terceira onda de transformações marcada pela internacionalização e,
sobretudo, massificação desse nível de ensino (R ama, 2006). Ainda segundo Rama,
embora as matrículas de ensino superior, na América Latina, venham aumentando
progressivamente desde os anos 1980, a maior expansão se deu, sem dúvida, a
partir dos anos 2000: enquanto na década de 1980 as matrículas aumentaram 45%,
passando de 4.662.364 para 6.701.373, na década de 2000 o crescimento foi de
95%, saltando de 8.146.843 para 15.932.105 matrículas anuais (R ama, 2009). Do
ponto de vista que interessa a este artigo, Rama é explícito em afirmar que “essa
massificação do acesso à educação e à formação de capital humano está produ-
zindo tanto uma deselitização da própria educação quanto uma transformação na
conformação das elites sociais” (R ama, 2009, p. 174).

14 Por razões de espaço, não vou analisar o caso de outros países latino-americanos, mas para uma
análise sobre o padrão de expansão do ensino superior latino-americano e, particularmente,
equatoriano pode ser encontrado em Hitner, Carlotto e Mercado (2017).

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 85

É essa relação específica que me interessa, e não apenas em relação aos


estudos de graduação do país, mas também ao acesso a cursos de graduação e
pós-graduação no exterior. Nesse sentido, é interessante notar que Marie-Claude
Muñoz, ao analisar os bolsistas brasileiros na França entre os anos de 2000 e
2001, concluiu que metade deles era “a primeira geração a ter acesso ao ensino
superior e ao ensino em nível internacional” (Muñoz, 2013, p. 348). Ainda assim, a
autora enfatiza a sobrerrepresentação de filhos de diplomados em ensino superior
em comparação com a população brasileira como um todo, o que se relacionava,
segundo ela, ao caráter elitista do ensino superior brasileiro ele mesmo. Portanto,
mesmo considerando que o financiamento de estudos no exterior já era, no anos
2000, relativamente aberto a filhos de famílias de baixa escolaridade, parece
evidente que a abertura do ensino superior público contribuiu para a democrati-
zação do acesso aos estudos fora do país que, no Brasil, se desenvolve como política
de Estado, através de um conjunto de programas de financiamento público pelas
principais agências de política científica (Garcia Jr., 2013, p. 193-195).
Além disso, a ampliação dos recursos para as políticas de educação superior,
ciência, tecnologia e inovação teve efeitos importantes sobre os programas públicos
de financiamento da formação no exterior no âmbito de graduação e pós-graduação,
que também se ampliaram. A expansão das bolsas de doutorado sanduíche e o
surgimento de novos programas como o “Ciência sem fronteiras” – ambas moda-
lidades de financiamento de estudos parciais de graduação e pós-graduação no
exterior – contribuíram para alterar o peso da formação internacional na confi-
guração das elites locais. Em outras palavras, a ampliação do acesso ao estudo
no exterior, nessa modalidade específica que passa pelo financiamento público e
quase sempre parcial, parece ter tido, como resposta, a sobrevalorização da reali-
zação de etapas integrais da graduação e pós-graduação fora do país. Com poucas
chances de financiamento público, essa modalidade privilegia membros das elites
econômicas que, munidos dessas novas formações, operam uma reconfiguração
do espaço de produção e reprodução de conhecimento através da valorização de
novas credenciais, que funcionam como barreiras de entrada e signos de “exce-
lência acadêmica”.
A valorização de formação integral no exterior já é uma tendência nas escolas
privadas de ensino superior do país, em particular aquelas mais próximas do
espaço dos Think Tanks (Engelman, 2013). Também parece ser uma tendência,
como procurei mostrar, entre as lideranças de Think Tanks liberais nacionais. O
pertencimento a redes internacionais é parte essencial da legitimação dos Think
Tanks contemporâneos da região (Rocha, 2015; R amos; Carlotto, 2017). Vistos

2018
86 Maria Caramez Carlotto

em conjunto, esses processos sugerem que o apelo ao internacional como fonte de


legitimação está contribuindo para reconfigurar as hierarquias internas do campo
de produção e reprodução de conhecimento. A maior prova disso é que as univer-
sidades de pesquisa não ficaram imunes a esse processo: não há instituição desse
tipo que não valorize a internacionalização e que não procure ostentar o caráter
internacional do seu corpo docente como sinal de “excelência acadêmica”. Essas
mudanças são parte essencial das disputas que se travam, contemporaneamente,
pela definição da excelência no campo de produção e reprodução de conhecimento
a partir da sua relativa – porém importante – democratização.

CONCLUSÃO
O presente artigo partiu de um debate teórico sobre a ascensão da direita
contemporânea para analisar as modalidades de articulação e de circulação inter-
nacional que caracterizam uma nova posição do espaço de produção e difusão de
conhecimento, na figura dos Think Tanks. No entrecruzamento de lógicas distintas,
os Think Tanks passam a disputar espaço com as instituições de ensino superior,
em particular as universidades públicas de pesquisa. Tradicionalmente identifi-
cadas como referência de excelência na produção e reprodução de conhecimento, as
universidades de pesquisa, em particular, as públicas, passaram por um processo
de democratização a partir dos anos 2000, período que coincide, justamente, com
a crescente expansão e legitimação dos Think Tanks na região.
Minha proposta neste artigo foi de pensar a afirmação dos Think Tanks como
uma nova posição no espaço de produção e difusão de conhecimento à luz das
mudanças estruturais que levaram à valorização crescente de novas modalidades
de circulação e articulação internacional. A literatura mostra que as estratégias de
circulação internacional podem ser mobilizadas por setores não estabelecidos, na
disputa com os “herdeiros”, sobretudo quando é financiada pelo Estado (Canêdo,
Tomizaki; Garcia Jr. 2013). Porém, não parece ser este o caso das novas modali-
dades de circulação, que passam prioritariamente pelo financiamento familiar.
Quando se reivindica como critério de excelência acadêmica e de competência
técnica reconhecida uma modalidade de circulação internacional que pressupõe
financiamento familiar – como é o caso dos cursos de inglês, graduações integrais,
MBAs, especializações e mestrados integrais no exterior – subverte-se o critério
de mérito até então estabelecido: doutorados nas melhores universidades do país,
preferencialmente com estágios de pesquisa no exterior. A afirmação progressiva
dessas novas credenciais reposiciona os “herdeiros” na disputa pela excelência
acadêmica e, até mesmo, pelas regras de certificação do conhecimento. É nesse

Plural 25.1
Inevitável e imprevisível, o fortalecimento da direita para além da dicotomia ação e estrutura:... 87

campo específico que os Think Tanks vão ganhando espaço e reconhecimento que,
antes, parecia pertencer quase que exclusivamente às universidades de pesquisa
e, com isso, se reposicionam para disputar o espaço público. Essa transformação,
se é estruturalmente inevitável, não deixa de ser politicamente contingente, e
entendê-la em profundidade apresenta-se como uma tarefa teórica urgente.

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2018
Artigo

A direita brasileira em perspectiva histórica

The Brazilian Right in historical perspective

Fabio Gentilea

Resumo  O objetivo deste trabalho é pensar o fenômeno da direita brasileira


contemporânea numa perspectiva histórica, dado que esta tradição está fortemente
enraizada na estrutura econômico-social colonial do país. A proposta metodológico-
teórica é de utilizar uma categoria de direita “plural”, caracterizada por uma
multiplicidade de experiências, cujo elemento aglutinador é a tensão liberalismo-
autoritarismo, que atravessa toda a história do Brasil contemporâneo.
Palavras-chave  Liberalismo; Autoritarismo; Direita.

Abstract  The objective of this work is to analyze the phenomenon of contemporary


Brazilian Right in historical perspective, as this tradition is strongly rooted in the
colonial economic and social structure of Brazil. The methodological-theoretical
proposal is to use a “plural” right category, characterized by a multiplicity of
experiences, whose unifying element is the liberalism-authoritarianism tension,
crossing the whole history of contemporary Brazil.
Keywords  Liberalism; Authoritarianism; Right.

INTRODUÇÃO
Por um longo tempo os estudos sobre a “direita”, suas configurações ideológicas
e organizações políticas, foram poucos e bastante frágeis tanto no perfil metodo-
lógico quanto no teórico. Tratou-se, enfim, de um tema bastante marginalizado
no campo das ciências sociais.
Há muitos fatores que podem explicar esta lacuna. De forma geral, pode-se
dizer que a “direita” foi apresentada como um apêndice tout court da época dos
regimes fascistas entre as duas guerras mundiais. Na área dos estudos sobre o
fascismo registrou-se um domínio do paradigma antifascista, na sua versão liberal
ou marxista, de acordo com o qual o fascismo seria um “parêntese” no caminho
progressivo da civilização ocidental. Uma vez concluído o “parêntese” do fascismo
com o fim da segunda guerra mundial, os pequenos grupos que ainda se inspiravam

a Coordenador do programa de Pós Graduação em Sociologia do departamento de Ciências Sociais


da Universidade do Ceará.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.92-110
A direita brasileira em perspectiva histórica 93

nos regimes de Mussolini e Hitler vieram a ser apresentados como sobrevivências


marginais daqueles fenômenos.
Associar a categoria de direita “monoliticamente” ao nazifascismo teve entre
as demais consequências a marginalização da experiência das direitas liberais e
conservadoras na Europa continental e aquelas de matriz anglo-saxônicas entre
o final do século XIX e a época entre as duas guerras mundiais.
Por se considerar e ser considerada desde as suas primeiras manifestações a
herdeira do nazifascismo, um fenômeno específico de uma época que nunca mais
ia voltar na história da humanidade, as ciências sociais atribuíram à direita uma
função exclusivamente “antissistêmica”, embora, com o início da Guerra Fria,
os movimentos espalhados de combatentes e militantes dos regimes fascistas
(sobretudo na Itália e na Alemanha), sob o controle dos serviços secretos norte-
-americanos, desenvolveram um papel estratégico no combate ao comunismo,
apoiando governos conservadores na Europa Ocidental1.
Enfim, a ambiguidade da direita – dentro e fora do novo sistema democrático
(Ignazi, 1989)- nos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, levou
muitos cientistas sociais e políticos a pensarem que esta área não fosse produ-
tora de uma específica ideologia, embora os fundadores dos grupos de direita
reivindicassem o seu caráter de novidade e de originalidade, destacando que o
“neofascismo” não era uma simples apêndice do regime fascista. Pelo contrário, era
a realização, em um novo contexto, do programa social do movimento fascista das
origens, uma vez que o regime não conseguiu alcançar todas as metas de política
social fixadas.
Entre a segunda metade da década de 1970 e a década de 1980, o panorama
mudou sob o efeito do fim da guerra fria. Novos movimentos de direita, qual a
“nouvelle droite” francesa de Alain De Benoist (1979), articulando uma reflexão
bastante original na área da direita, que prefigurava cenários das últimas duas
décadas (implosão da União Soviética, globalização, declínio da democracia
representativa e “antipolítica”, ascensão do neoliberalismo e crises financeiras),
chamaram a atenção das ciências sociais sobre o tema crucial da “ideologia da
direita” (Gentile, 1979). A proposta era de abrir o campo teórico e metodológico,
cruzando o plano histórico-político com o plano ideológico. Um dos principais
resultados do renovamento do debate foi uma definição de “ideologia da direita”,
que se tornou rapidamente um ponto de partida fundamental para uma nova
geração de analistas e cientistas sociais.

1 É o caso do Movimento Sociale Italiano. Ver Parlato, 2006; Gentile, 2013.

2018
94 Fabio Gentile

É possível resumi-la desta forma: um corpus de identidades simbólicas,


mitológicas e litúrgicas manifestado na forma de redes conceituais e códigos
comunicativos, não necessariamente caracterizado por uma intrínseca origina-
lidade, capazes, porém, de despertar os sentimentos mais profundos das massas,
visando ganhar um consenso de caráter fideísta.
Finalmente, a direita estava sendo liberada do preconceito de ser apenas um
resíduo do fascismo para se tornar um fenômeno complexo, capaz de produzir
uma ideologia autônoma.
Com o fim da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim em 1989, a direita se
reinventou em torno de novos temas: o populismo “antipolitico”, a crise da repre-
sentação tradicional e a imigração, entre os principais.
O novo desafio das ciências sociais e políticas era então a compreensão deste
variado arquipélago de direita, enquanto os “think tanks” orgânicos à nova ordem
“neoliberal”, hegemonizada pelos EUA, celebravam o “fim da história” e o triunfo
histórico definitivo do capitalismo e da democracia representativa, capazes de
derrotar todos os inimigos ideológicos após o 1989 (Fukuyama, 1992).
Contra os perigos de ser absorvido pelo pensamento único globalizado,
caraterizado pela extinção das categorias direita-esquerda (Sternhell, 1989),
fascismo-antifascismo – reduzidas a velhas categorias do século XX e, portanto,
não adequadas para compreender a nova ordem mundial –, Norberto Bobbio
reafirmava a necessidade de manter a dicotomia direita-esquerda (1995), dado
que elas são portadoras de duas Weltanschauung totalmente opostas, elaboradas
como fundamento de um projeto ideológico-político bem definido, que vai até
além do campo político para caracterizar uma diferente visão das relações sociais
quotidianas (Pierucci, 1990, p. 11).
À luz destas considerações, precisamos ainda manter direita e esquerda contra
o pensamento único neoliberal globalizado, que pretende se afirmar também
absorvendo qualquer oposição num comunitarismo indistinto, sem classes sociais.
Nesta perspectiva, o fenômeno da direita brasileira contemporânea, suas
configurações ideológicas e suas organizações políticas se torna um labora-
tório privilegiado para pensar a ascensão das direitas na América Latina e no
Ocidente capitalista (López Segrega, 2016). Se por um lado ela reproduz de forma
atualizada a peculiar convivência de princípios liberais e práticas autoritárias
características da história do Brasil contemporâneo, por outro está reproduzindo
na sociedade brasileira um aspecto importante do desequilíbrio das sociedades
“pós-democráticas” (Crouch, 2004): a aliança entre movimentos neoliberais e a
direita nacionalista, criando coalizões ou até convivendo no mesmo partido. Para

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 95

dar um exemplo, os movimentos neoliberais brasileiros estão entre os principais


defensores da globalização, implementada por meio de uma agenda de políticas
transnacionais, portanto não compartilham o programa racista e homofóbico do
movimento de Bolsonaro, porém o consideram útil para desviar as críticas dos
interesses que representam.
Pensar a direita brasileira contemporânea como laboratório original de
alianças entre pensamento neoliberal globalizado e práticas autoritárias pode
também proporcionar um avanço importante no campo do pensamento político-
-social brasileiro, em direção de um novo caminho metodológico e teórico trilhado
pela construção de “redes de interdependências que necessitam ser recompostas
por uma sociologia interessada na transnacionalização da cultura” (Borges Leão,
2018, p. 27). Assim, o foco não vai ser mais sobre a lógica tradicional de um centro
criador de ideologia e de uma periferia meramente reprodutora. Pelo contrário,
o objetivo é criar novos espaços transnacionais de circulação de ideias, interação
e comparação entre fenômenos que compartilham a mesma raiz ideológica e
política. Nesta perspectiva, o desafio é pensar as matrizes teóricas da nova direta
“plural” numa circulação transnacional de ideias, compatibilizando o autoritarismo
“instrumental” de Oliveira Vianna, na década de vinte, com a aliança entre neoli-
beralismo e ditadura militar “provisória”, teorizada pelo pensamento autoritário
brasileiro da década de 1950, e corroborada na década de Sessenta pelo pensamento
liberal-conservador de Von Hayek e, sobretudo, pela doutrina neoliberal de Milton
Friedman, inspirador da ditadura de Pinochet no Chile, a “[...] primeira experiência
neoliberal sistemática do mundo” na década de 1970 (A nderson, 1995, p. 19) .
As ciências sociais brasileiras ainda estão num nível pioneiro de estudos e
reflexões sobre a direita. Provavelmente porque a confiança de muitos analistas
na transição pela democracia, juntamente com a exigência de pensar um modelo
constitucional e institucional democrático das relações Estado-sociedade, tem
longamente marginalizado o tema do autoritarismo, até reduzir a direita, como
aconteceu na Europa após a Segunda Guerra, a uma persistência marginal de um
passado que nunca mais iria voltar na história do país.
O ciclo de protestos iniciado em Junho de 2013 e culminado com o impea-
chment de Dilma Rousseff mostrou a consolidação de uma “nova” direita, tanto
sob o perfil ideológico quanto sob o perfil organizativo. Foram visualizados três
grandes vertentes da nova direita: os pentecostais, que passaram a interagir na
política institucional desde a década de 1970, os institutos liberais, criados por
forças empresariais para difundir o neoliberalismo no Brasil desde a década de
1980 (Gros, 2004, p. 143-159), e o movimento articulado em torno da figura de

2018
96 Fabio Gentile

Jair Bolsonaro. A dificuldade de muitos analistas em tentar definir algo que se


apresentava como “novo” no panorama político social brasileiro levou a destacar
principalmente os elementos de novidade da direita na onda do que estava acon-
tecendo desde a década de 1990 nos EUA. Um novo modelo de luta ideológica e de
organização política tendo como pauta as grandes questões da “pós-modernidade”.
Sem ainda ter esgotado os temas clássicos do Estado e do desenvolvimentismo, a
nova direita pareceu estar projetada nas redes sociais lidando com questões como
a liberalização de algumas drogas e o debate sobre uma nova geração de direitos,
além de um novo discurso racial.
Diante de uma galáxia tão diversificada, o primeiro grande desafio para estudar
em profundidade este complexo fenômeno é achar uma categoria de direita rigorosa
e versátil ao mesmo tempo, capaz então, por um lado, de colher os elementos que
podem ser conduzidos ao nível de interpretação geral, mas por outro lado, capaz
de destacar os traços específicos das diferentes famílias e experiências políticas
que se colocam na área da direita brasileira.
Sob perfil metodológico e teórico, nossa proposta é de utilizar uma categoria
de direita “plural” (Caldiron, 2001), caracterizada por uma multiplicidade de expe-
riências, cujo elemento aglutinador é a tensão liberalismo-autoritarismo, traço
marcante de toda a história do Brasil contemporâneo. Ao mesmo tempo, como
destacado anteriormente, estudar a direita brasileira proporciona também uma
melhor compreensão de tendências políticas, econômicas e sociais do mundo atual.
Tendo em vista o nosso objetivo de apresentar uma teoria da compatibilidade
entre neoliberalismo e autoritarismo, focada no estudo especifico da direita “plural”
brasileira, reunida em torno da tensão liberalismo-autoritarismo, é preciso em
via preliminar definir, embora essencialmente, o que entendemos por “neolibera-
lismo” e quais suas aproximações e diferenças com o liberalismo clássico, uma vez
que o neoliberalismo é utilizado para definir um amplo espectro de experiências,
gerando também muitos desentendimentos, sobretudo a respeito da sua relação
com o liberalismo.
Por um lado, não há como negar as profundas diferenças entre liberalismo e
neoliberalismo. Diante o rumo economicista que o neoliberalismo está tomando
desde a década de Sessenta do século XX, muitos pensadores liberais se concentram
mais sobre o tema político-jurídico da justiça, revertendo a relação tradicional
de subornação que ela tem com a liberdade e colocando-a no foco do liberalismo
político.
Porém e para fins de nossa análise é mais profícuo se focar sobre as apro-
ximações entre liberalismo e neoliberalismo. Do ponto de vista das ideias, o

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 97

neoliberalismo – bem como todas as doutrinas que pretendem se apresentar como


“novas” – se caracteriza por um resgate em um contexto diferente de uma matriz
liberal originária comum (mercado livre, empresa livre, trabalho livre, eficiência,
bem estar e felicidade coletiva etc.), que nunca realizou-se plenamente - nem no
século XIX, ápice do liberalismo -, dado que a partir do 1870 as relações interna-
cionais tomaram o rumo do protecionismo, e que a reconstrução após a segunda
guerra mundial foi atuada com base na teoria keynesiana de apoio ao gasto público
e aos investimentos nas infraestruturas. Nesta perspectiva, não há conflito teórico
entre liberalismo e neoliberalismo a respeito da mesma raiz comum e dos fins a
serem alcançados.
Nem o caminho metodológico do liberalismo e do neoliberalismo é muito
diferente. Se no liberalismo “clássico” há uma preocupação em recompor a
ruptura epistemológica entre a “ciência positiva” preocupada em sistematizar o
que “positum” na realidade, e uma “ciência normativa” criadora de um sistema de
regras para alcançar um determinado fim, o neoliberalismo compartilha a mesma
preocupação no seu método de investigação da economia. Neste horizonte, Milton
Friedman, na década de cinquenta, afirmava que as conclusões da economia posi-
tiva são de fundamental relevância para importantes problemas normativos (1953).
O papel da economia “positiva” é de apresentar um conjunto de generalizações
a serem utilizadas para fazer previsões corretas sobre as consequências de uma
eventual mudança das circunstâncias. Friedman manifesta uma postura realista
nas questões da ética. Uma desconfiança nas capacidades do processo deliberativo
e normativo no esforço de achar uma raiz comum objetiva capaz de levar todos os
indivíduos para a uniformidade.
Tentando exemplificar estas ideias no caminho do liberalismo ao neolibe-
ralismo, é necessário destacar a aproximação entre o liberalismo clássico de
Benedetto Croce e o neoliberalismo de Milton Friedman. Se no pensamento de
Croce, a analise “positiva” da realidade após a primeira guerra mundial levava
a teorizar que o fascismo poderia ser uma “parêntese” aceitável, desde que ele
cumprisse o papel de criar as condições de reconduzir a crise da sociedade liberal
no caminho certo do progresso civilizatório liberal (Croce, 1973), diante o avanço
ameaçador do comunismo totalitário; da mesma forma, Milton Friedman constrói
sobre a ciência “positiva” a sua proposta político-normativa (1962). Se o objetivo
final do neoliberalismo é a realização da sociedade de mercado, e o modelo insti-
tucional é apenas um instrumento para alcançar este objetivo, segue-se que uma
ditadura “transitória” (Pinochet no Chile) se torna perfeitamente compatível com
o liberalismo, uma vez que o Welfare State democrático, de matriz keynesiana é

2018
98 Fabio Gentile

totalmente inconciliável com a teoria da estabilidade econômico-monetária da


Escola de Chicago, e o comunismo soviético é – nesta visão - o regime totalitário
mais opressivo da historia da humanidade, até mais que o nazifascismo.
Como veremos ao longo do trabalho, o pensamento de Oliveira Vianna,
moldado no positivismo castilhista, antecipa a teoria liberal da “ditadura autori-
tária” como “parêntese”. Já na primeira grande obra Populações Meridionais do
Brasil (1987) não haveria então incompatibilidade entre liberalismo e autoritarismo,
desde que o autoritarismo fosse pensado como um “instrumento transitório” para
dar estrutura, educação e consciência coletiva à sociedade brasileira, de modo tal
que ela pudesse apoiar a introdução de instituições genuinamente liberais no Brasil2.

AS RAÍZES DA DIREITA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: LIBERALISMO,


CONSERVADORISMO E AUTORITARISMO
Entender as configurações ideológico-políticas da direita no Brasil requer uma
perspectiva histórica, dado que esta tradição está fortemente enraizada na própria
estrutura econômico-social colonial do país, consolidada em torno da ascensão ao
poder de uma elite de proprietários e comerciantes, depositários de uma tradição
patrimonialista e oligárquica herdada da dominação portuguesa, articuladores de
um mecanismo de cooptação das clientelas ligado à economia agroexportadora e
aos defensores da propriedade da terra e da escravidão.
A combinação de liberalismo e escravidão só pode aparentemente parecer
uma contradição. Um olhar mais profundo mostra, porém, que na sociedade pós-
-colonial brasileira o liberalismo não tomou a forma do pacto da tradição política
moderna, nem se associou à ética burguesa da livre iniciativa (Bosi, 1992).
Se por um lado, o liberalismo “heróico” das origens se afirmou como a ideologia
da independência, por outro lado - observa Alfredo Bosi - o conceito de liberal,
consolidada a independência, logo assumiu o significado de “conservador de um
complexo de liberdade”, desde a iniciativa econômica gratuita, passando pelo
direito de voto baseado no censo até a liberdade de ter trabalhadores escravos em
regime de coerção legal (Bosi, 1992, p. 199-200).

2 Como o mesmo Vianna esclarece desde sua primeira obra: “Dar consistência, unidade, consci-
ência comum a uma vasta massa social ainda em estado ganglionar, subdividida em quase duas
dezenas de núcleos provinciais, inteiramente isolados entre si material e moralmente: - eis o
primeiro objetivo. Realizar, pela ação racional do Estado, o milagre de dar a essa nacionalidade
em formação uma subconsciência jurídica, criando-lhe a medula da legalidade; os instintos
viscerais da obediência à autoridade e à lei, aquilo que Ihering chama “o poder moral da ideia
do Estado”; - eis o segundo objetivo” (Oliveira Vianna, 1987, p. 275-276).

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 99

Não houve, portanto, nenhuma incompatibilidade entre ser liberal e ser dono
de escravos, dada a ausência de uma relação necessária entre o liberalismo e a
abolição da escravidão. Os ideais burgueses, liberais e republicanos ficaram no nível
da “consciência possível” (Faoro, 1994), sendo assim rapidamente sufocados por
um autoritarismo clânico-oligárquico, de cunho hierárquico, e baseado em laços
de fidelidade material e simbólica a uma elite homogênea, defensora do centra-
lismo estadual, como pode se observar no sistema político imperial, ratificado
pela constituição de 1824, e pela criação dos dois grandes partidos - o liberal e o
conservador - que, além de algumas diferenças ideológicas, representavam os inte-
resses de grupos sociais similares (Murilo de Carvalho, 1981). A conciliação entre
liberalismo e conservadorismo encontrava seu momento de expressão máxima no
modelo de Estado “Saquarema” (Lynch, 2010), representado pelos grandes teóricos
do Estado imperial centralizador, eficiente e criador do povo brasileiro, dentre as
quais se destaca a figura do Visconde do Uruguai (Nunes Ferreira, 1999).
Entre a proclamação da Primeira República e a Revolução de 1930, época rica
em novas expressões em todos os campos (o modernismo no campo artístico, por
exemplo), vão se estruturando as configurações ideológicas e políticas da direita
brasileira.
De acordo com o historiador argentino Beired, a análise da formação de um
pensamento de direita nos sugere pensá-la como um “campo” de relações intelec-
tuais e políticas polarizadas em torno de um conjunto de problemas que vão desde
questões de longo prazo do pensamento brasileiro (a ausência de uma consciência
nacional e a centralidade do Estado na criação da sociedade) até os desafios da
modernização, ligada à crise do modelo agroexportador no contexto mais amplo
da crise do Estado liberal, pensado como inadequado a soldar o país legal das
elites com o país real da pobreza e do atraso (Beired, 1999).
Entre a década de 1920 e a “Era Vargas”, a direita “plural” brasileira se arti-
cula em três linhagens ideológicas e políticas principais: o nacional-autoritarismo
cientificista, herdeiro da tradição positivista brasileira; a direita católica; a direita
fascista, representada pelo integralismo, que de acordo com uma análise consoli-
dada seria o movimento ideológico e político mais próximo ao fascismo europeu
(Trindade, 1974).
Embora caracterizadas por um conjunto diferenciado de reflexões teóricas
e políticas (o autoritarismo como manifestação dos interesses das classes domi-
nantes ou como resposta elitista à desarticulação da sociedade civil, a mobilização
católico-fundamentalista das massas), as três correntes da direita brasileira entre a
segunda metade dos anos 1920 e os 1930 vieram a compartilhar a visão “normativa”

2018
100 Fabio Gentile

do Estado autoritário, pensado como a única maneira de corrigir os desequilíbrios


de longo prazo do Brasil. Como observa Bolívar Lamounier, a “ideologia do Estado
autoritário brasileiro” não era uma mera cópia do fascismo europeu, dado que
foi alimentada desde o início do século XX por uma síntese entre o pensamento
conservador brasileiro do século XIX e uma bagagem de ideias “protofascistas”
que há muito tempo estavam circulando no Brasil: do autoritarismo ao corpora-
tivismo, do anti-liberalismo ao anti-socialismo, ao centralismo e ao nacionalismo
(L amounier, 1977).
Assim, no Brasil, entre as duas guerras mundiais não se configura uma relação
necessária entre modernização e Estado autoritário, embora o próprio Getúlio
Vargas e os próprios colaboradores da ‘Revolução de 30’ nunca tenham feito segredo
sobre terem sido inspirados pelas ideias de Alberto Torres ou de Oliveira Vianna.
Mas é preciso pensar a época varguista como um “campo aberto” de propostas,
caracterizadas pela tensão liberalismo-autoritarismo. Conforme destacado por
Ângela de Castro Gomes, na década de 1930, houve várias propostas em confronto
sobre a relação Estado-mercado-indivíduo (Gomes, 2003, p. 112-145), algumas das
quais suportadas por uma ideologia nacionalista e autoritária, mas também outras
que afirmavam uma perspectiva essencialmente liberal, refletindo a complexidade
do campo intelectual da época (Correa, 2016, p. 955-966).

A TENSÃO LIBERALISMO-AUTORITARISMO NO PENSAMENTO DE OLIVEIRA VIANNA


Para tentar abordar a tensão permanente autoritarismo-liberalismo, que
acompanha toda a trajetória da direita brasileira, precisamos utilizar o conceito
de “autoritarismo instrumental” em uma nova perspectiva analítica (Gentile,
2018, p. 27-46).
Teorizado pelo cientista brasileiro W. G. dos Santos na década de 1970, o
“autoritarismo instrumental” tornou-se, desde aquela época, uma categoria funda-
mental do pensamento político-social brasileiro (Santos, 1978). Visando diferenciar
o autoritarismo de Oliveira Vianna das outras famílias do pensamento autoritário
brasileiro (o integralismo, o catolicismo e o tenentismo), o cientista político elabora
um conceito capaz de dar conta do sentido mais profundo do pensamento do soció-
logo, ideólogo do Estado autoritário e consultor jurídico do Ministério do Trabalho
na década de 1930. Nesta perspectiva, o “autoritarismo instrumental” é pensado
como um instrumento transitório, cuja utilização é limitada ao cumprimento da
sua tarefa de criar as condições para a implantação de uma sociedade liberal no
Brasil. É uma explicação parcialmente satisfatória. O “autoritarismo instrumental”
formulado por Santos a partir de uma hipótese de convivência ambígua entre

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 101

autoritarismo e liberalismo não explica de forma adequada as causas e as trajetó-


rias do complexo processo de assimilação na legislação trabalhista brasileira do
modelo fascista corporativista, de cunho totalitário.
Em outras palavras, a questão central é como foi possível no pensamento de
Oliveira Vianna adaptar para a sociedade brasileira o Estado corporativo, pensado
como o melhor e mais moderno “instrumento” na época entre as duas guerras
mundiais para pôr ordem na crise do Estado liberal, sem necessariamente cair
na teoria da “ditadura permanente” do totalitarismo fascista.
Para que o conceito ainda mantenha o seu fecundo potencial analítico na área
dos estudos e das reflexões sobre o autoritarismo e a direita brasileira é preciso
fundamentá-lo com novos elementos teóricos, devendo ser repensado tendo em
vista mais dois fatores:
1. O autoritarismo se caracteriza como “instrumental” para uma futura
sociedade liberal não apenas porque, como observa Murilo de Carvalho, “Oliveira
Vianna absorveu muitos temas do liberalismo conservador do Império” (Murilo
de Carvalho, 1993, p. 22), mantendo de qualquer forma um diálogo sempre aberto

com o liberalismo. Mas, sobretudo, porque busca a sua legitimidade no afasta-


mento do Estado totalitário (fascista ou comunista) europeu, caracterizado por
uma visão teleológica do Estado, pelo anti-liberalismo radical e pela simbiose
partido único–Estado.
Uma vez afastado do totalitarismo, o “autoritarismo instrumental” pode ser
então apresentado como o mais “adequado” para sustentar a nova ordem industrial
do País, e ao mesmo tempo, dado o seu caráter “instrumental” e transitório, ele
apresentaria sempre uma possibilidade em cada fase da ditadura varguista de se
abrir para uma sociedade liberal, enquanto no caso europeu não é possível alguma
compatibilidade entre liberalismo e totalitarismo.
Esta tensão permanente entre autoritarismo e liberalismo na década de 1930
ajuda também a ditadura varguista a se manter estável e longamente no poder.
2. No pensamento nacional-autoritário brasileiro, o autoritarismo se vincula
à teoria do “desenvolvimento tardio” em sua variante nacionalista, segundo a qual
alguns países da “periferia” do capitalismo privilegiaram o Estado autoritário como
centro organizador da nação em todos os seus aspectos, tendo em vista superar
o atraso e cortar a dependência dos países mais desenvolvidos (Cardoso; Faletto,
1970)3. Então ele é “instrumental” não apenas porque é “transitório”, visando

3 Embora o pensamento econômico teórico desenvolvimentista stricto sensu, articulado em torno


a um conjunto de propostas a serem implementadas mediante políticas publicas, consolidou-se
nas décadas de cinquenta e sessenta, tendo como sua referência a Cepal, centro catalizador e

2018
102 Fabio Gentile

construir as condições estruturais para uma democracia liberal, mas sobretudo


porque é o mais “adequado” para misturar alguns elementos totalitários de matriz
europeia com o liberalismo.
Esse “ecletismo” manifesta-se claramente no processo de apropriação criativa
que Oliveira Vianna faz dos modelos econômicos, políticos e sociais mais modernos
da época, compatibilizando-os com a realidade brasileira. Isso explicaria porque
nos anos 1930 os teóricos autoritários se apropriam do modelo corporativo fascista
para industrializar o país, mas também ajuda a entender porque nos anos 1960
uma das vertentes mais importantes do autoritarismo procura compatibilizar
ditadura autoritária, totalitarismo e neoliberalismo, como mostram as trajetórias
dos economistas Eugênio Gudin e Roberto Campos.
Ademais, não foi à toa que o general Golbery do Couto e Silva utilizou Oliveira
Vianna como grande referência no seu trabalho sobre a geopolítica do Brasil, um
dos documentos fundamentais da doutrina da segurança nacional (Couto e Silva,
1981; Trevisan, 1985). E, indo mais à frente, o “ecletismo” econômico e político-
-social brasileiro, visando dar prioridade ao desenvolvimento do país, pode até
explicar porque o processo de redemocratização da década de 1980 deixa a ambígua
convivência entre os princípios básicos da liberal-democracia e a estrutura sindical-
-corporativa de cunho fascista, herança do autoritarismo varguista, incorporada
na ditadura militar.

AS DÉCADAS DE 1950 E 1960: DIREITA, NEOLIBERALISMO E DITADURA “PROVISÓRIA”


Seguindo a nossa análise, a época que vai da democracia populista até a
ditadura militar (1945-1964) se apresenta como o laboratório da tensão liberalismo-
-autoritarismo, além de antecipar uma das tendências atuais da globalização, quer
dizer, a aliança entre o neoliberalismo e a direita nacionalista.
A recusa do estado totalitário, nazifascista ou comunista abre um espaço de
reflexão sobre o conservadorismo de tradição anglo-americana, também sob o

difusor das teorias elaborada por Raul Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, Osvaldo Sunkel,
Maria da Conceição Tavares e José Medina Echevarría, entre outros, o desenvolvimentismo tem
uma longa tradição ideológico-politica, abrangendo não apenas escolas econômicas mas também
autores e correntes voltados para o estudo das sociedades pós-coloniais subdesenvolvidas. No
caso brasileiro basta pensar aos primeiros teóricos da organização nacional da questão social
brasileira na segunda metade do século XIX, quais Silvio Romero e Alberto Torres, precursores
de um pensamento nacional-desenvolvimentista que se tornou um projeto material de politicas
polarizadas em torno do Estado interventor. De acordo com Ricardo Bielschowsky (1988), é
legitimo então, pensar o desenvolvimentismo como um ciclo que inicia com a “Era Vargas” e
chega até o 1964, tendo como seu foco a ideologia da transformação da sociedade brasileira
por meio da industrialização, do planejamento e dos investimentos, embora não haja na época
varguista uma teoria econômica desenvolvimentista “cientifica”.

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 103

efeito da diáspora de muitos intelectuais europeus fugitivos da Alemanha para os


centros universitários dos EUA. É uma geração (Hannah Arendt, Leo Strauss etc.)
que assume a experiência dos Estados nazistas e estalinistas dentro da mesma
categoria de totalitarismo, apagando todas as diferenças histórico-genéticas,
ideológicas e econômicas entre os dois modelos. Diante da tragédia das duas
experiências totalitárias, o pensamento liberal conservador defende os valores
do liberalismo político-econômico, seguindo duas vertentes: o conservadorismo
liberal-constitucional (Michael Oakeshott), que recusa o racionalismo universalista
e o coletivismo. Argumenta que a política serve apenas para manter um sistema
de normas nas quais o indivíduo é livre para buscar seus objetivos, ao passo que
o governo pode até ter um papel econômico-social, porém não pode de forma
alguma mexer na estabilidade monetária do país (Oakeshott, 1962); e, sobretudo,
a escola econômica da nova direita (Hayek), cujo argumento central é que uma
sociedade livre necessita de um livre mercado, ou, em outras palavras. a política
“limitada” do pensamento conservador é possível apenas num sistema capitalista
(Hayek, 1944, 1960).
As novas direitas anglo-americanas foram bastante utilizadas pela direita
brasileira após a Segunda Guerra mundial. É o caso de Roberto Campos, discípulo
de Hayek.
De acordo com Hélgio Trindade, a época que vai da “redemocratização” sob
a égide do populismo varguista até o golpe militar de 1964 reflete a persistência
de um “hibridismo” brasileiro, combinando formas de pensamento liberal com
práticas autoritárias e corporativistas, de cunho fascista (Trindade, 1985, p. 46-72).
É um ponto crucial para entender as relações de continuidade entre a primeira
geração de pensadores autoritários (Torres, Vianna, Amaral, Campos) e a segunda
geração, representada, sobretudo, pelos economistas Roberto Campos e Eugênio
Gudin, dois dos principais teóricos e colaboradores da ditadura militar.
Compartilhamos o argumento central do cientista político Ricardo Silva.
O elemento comum para as duas gerações pode se encontrar na defesa de uma
“ideologia do Estado autoritário”, organizada em torno de um conjunto de argu-
mentos em favor da implantação do Estado autoritário como remédio aos males
do país (Silva, 2004). Segundo Silva, no caso de Campos e Gudin, trata-se de
uma atualização, em um contexto histórico diferente, dos argumentos elaborados
pelos teóricos do Estado Novo. Se na visão dos principais teóricos da “ideologia do
Estado autoritário”, o modelo autoritário varguista foi apresentado como o mais
“adequado” naquele momento para a realidade social brasileira, Campos e Gudin,

2018
104 Fabio Gentile

com diferentes modalidades, voltaram a defender o argumento do autoritarismo


como o melhor “instrumento” para alcançar uma sociedade liberal (Campos, 1978).
De forma específica Campos, economista “eclético” e expoente da “ala direita”
do desenvolvimentismo” (Bielschowsky, 1988, p. 104-126), retomando as ideias dos
autoritários da década de 1930, configura uma ditadura autoritária “provisória”
consistindo numa primazia do poder executivo, dominado pelos militares e pelos
tecnocratas, únicos depositários do “bem” e do “racional”, com base na “incapaci-
dade” do povo brasileiro em ter instituições democrático-liberais, de acordo com
a teoria do “autoritarismo instrumental”, de matriz cientificista e positivista.
Trata-se de uma reformulação, em um contexto diferente, da ideologia do
militar-político, que veio sendo elaborada durante a Era Vargas diante da inefi-
ciência das elites políticas da época liberal e da suposta fragmentação do povo
brasileiro. Formulada claramente pelo general Góes Monteiro, em A Revolução de
30 e a Finalidade Política do Exército (1934) (Góes Monteiro, 1934), se torna um
argumento fundamental para o golpe de 1964, que busca a legitimidade ideológica
da intervenção militar na política na doutrina da “segurança nacional”, bem como
na reelaboração do argumento do “perigo comunista”, em continuidade com o
anticomunismo varguista fixado na Lei da Segurança Nacional, reproduzindo o
discurso ideológico-simbólico “amigo-inimigo” (Schmitt, 1921), típico dos regimes
totalitários e autoritários. É o novo papel das forças armadas no processo político
brasileiro.
O Estado autoritário em Campos e Gudin tem como seu pressuposto teórico
fundamental a adesão à escola monetarista, na desconfiança, compartilhada pela
maioria dos teóricos da estabilidade monetária, nas teses do estruturalismo e na
visão de que a democracia não é o melhor regime para programar políticas econô-
micas de cunho liberal. Nessa postura teórica há uma clara antecipação da aliança
entre neoliberalismo e direita. Se no pensamento de M. Friedman e da Chicago
School of Economics o capitalismo de livre mercado é o único sistema possível,
dado o fracasso dos modelos totalitários de direita e de esquerda, e, portanto, para
proporcionar riqueza não pode se apoiar a nenhum princípio moral ou político
humano, a democracia ou a ditadura se tornam perfeitamente compatíveis com
ele, desde que garantam “pragmaticamente” a livre circulação transnacional de
capitais financeiros, sem fazer alguma diferença entre graus diferentes de desen-
volvimento dos países.
Da mesma forma, no pensamento da direita economicista brasileira das
décadas de 1950 e 1960, configura-se uma aliança “eclética” e pragmática entre
neoliberalismo ortodoxo, planejamento econômico “racional” e ditadura, anteci-

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 105

pando a experiência do Chile de Pinochet e também, de certa forma, as políticas


neoliberais da década de 1980 na Inglaterra e o no EUA.
Nesta visão, a ditadura militar, por sua vez, embora mais repressiva no plano
político-social, amplia o campo das possibilidades de desenvolvimento econômico
do país, pois recupera, atualizando-a, a ideologia do Estado autoritário numa visão
mais “eclética” ou “pragmática”, que, mesmo privilegiando o estatismo autoritário
como via ao desenvolvimento brasileiro, devido também à formação dos militares
no poder, não exclui aprioristicamente a compatibilidade de intervencionismo e
corporativismo estatal dos anos 1930, estruturalismo dos anos 1950 e neolibera-
lismo.

A TENSÃO LIBERALISMO-AUTORITARISMO COMO ELEMENTO AGLUTINADOR DA


NOVA DIREITA “PLURAL” BRASILEIRA
Sem pretensão alguma de fazer a historia das vertentes ideológicas e polí-
ticas que se encontram na direita brasileira, o objetivo deste trabalho foi fornecer
algumas trilhas teóricas e metodológicas para entender o crescimento rápido na
atual conjuntura brasileira da “nova direita” - um movimento heterogêneo “plural”
que não compartilha uma única doutrina -, destacando como as varias tendências
que conformam a direita, mesmo reivindicando orgulhosamente a própria espe-
cificidade, se caracterizam pela confluência no neoliberalismo, desde a segunda
metade da década de oitenta.
A hipótese sustentada ao longo do trabalho é a de que nas raízes desta conflu-
ência há uma tensão liberalismo-autoritarismo que marca toda a história da direita
brasileira, desde as origens da formação de um pensamento autoritário na Primeira
Republica, passando pela “Era Vargas” e pela ditadura militar e chegando até a
redemocratização de 1988.
Para sustentar a nossa hipótese, foi necessário analisar as aproximações entre o
liberalismo o neoliberalismo, apontando que em ambos há uma convergência sobre
a ideia do que a sociedade de mercado pode ser alcançada plenamente também
mediante um regime autoritário “instrumental”, dado o fracasso da socialdemo-
cracia, de matriz keynesiana nos últimos trinta anos. Temos argumentado que o
“ecletismo” de Oliveira Vianna no campo sociológico e aquele de Roberto Campos
no campo econômico se encontram perfeitamente nesta compatibilidade entre
liberalismo e autoritarismo - traço permanente do pensamento, bem como da
própria estrutura do Estado brasileiro -, antecipando as teorias do neoliberalismo
na década de Sessenta e seu apoio à ditadura militar no Chile.

2018
106 Fabio Gentile

Trata-se agora de fazer algumas considerações finais sobre a tensão libera-


lismo-autoritarismo como elemento aglutinador da nova direita “plural” brasileira.
Por um lado, a nova direita aceita os princípios do liberalismo e da democracia,
dado que se apresenta as eleições para ganhar o consenso, por outro lado ela é
“herdeira da Arena e depois do PDS, partidos de sustentação política do regime
ditatorial” (Codato; Bolognesi; Mattos Roeder, 2015, p. 116).
Enquanto os movimentos da direita logo no inicio da redemocratização da
década de 1980 eram marcados pela manutenção da estrutura sindical-corpora-
tivista da Era Vargas, de cunho fascista (Gentile, 2014, p. 84-101), bem como pelo
apoio à ditadura (K aysel, 2015, p. 68), a nova direita já durante a fase constituinte
combinava medidas institucionais de cunho autoritário e neocorporativista com o
engajamento em politicas neoliberais, introduzidas no Brasil graças aos grandes
empresários brasileiros vinculados à rede internacional de “Think tanks, funda-
ções e organizações neoliberais estrangeiras (...), como o Liberty Fund, a Tinker
Foundation, a Atlas Economic Research Foundation e o Center for International
Private Enterprise” (Gros, 2004, p. 145). Nas manifestações antipetistas e a favor
do impeachment, as organizações neoliberais contribuíram para construção do
discurso de odeio e de intolerância da “atual cosmovisão da direita no Brasil,
compreendida como um universo multidimensional, o qual abarca diferentes
tonalidades ideológicas e emissões discursivas” (Messenberg, 2017, p. 633).
Os grupos organizados protagonistas das manifestações de junho de 2013
(Revoltados Online, Nas Ruas, Vem Pra Rua, MBL e também o neofascismo
dos Carecas do ABC) se organizaram em torno de uma plataforma ideológico-
-politica comum, indo do antipetismo ao antibolivarianismo, renovação ideológica
do anticomunismo da década de cinquenta, passando pela antipolitica e pelo
conservadorismo moral (família tradicional, patriotismo, combate a criminali-
dade, oposição as cotas raciais) - reformulação nesta nova conjuntura da lógica
de inclusão-exclusão dos regimes autoritários -, até os argumentos tradicionais
do neoliberalismo (estado mínimo, sociedade de mercado, liberdade de empresa,
fim do estado social) (Messenberg, 2017, p. 633).
Se focamos também a atenção na frente nacionalista e fascista, é possível
ver esta a tensão liberalismo-autoritarismo como traço marcante da nova direita
brasileira. O discurso de Jair Bolsonaro mistura o autoritarismo da ditadura militar
com os tópicos do neoliberalismo na economia e não parece estar em conflito
com as posições neofascistas de Levy Fidelix e do PRTB (Caldeira Neto, 2016, p.
29-34). Da mesma forma, os movimentos pentecostais e neopentecostais estão se

Plural 25.1
A direita brasileira em perspectiva histórica 107

expandindo mediante uma tendência a amalgamar princípios do neoliberalismo


com a recusa moral dos avanços nos direitos de gênero (A lmeida, 2017, p. 1-27).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na nossa perspectiva crítica trata-se de considerar o legado das experiências
autoritárias como fixação de aspectos que se tornaram perenes e que estão inse-
ridos na própria redemocratização pós-ditadura, de acordo com um processo que
alguns cientistas sociais chamam de “hibridismo” da “semidemocracia” brasileira,
caracterizada por uma convivência ambígua de novos elementos democráticos e
permanências autoritárias (Mainwaring, 2001, p. 645-687).
Voltar a refletir sobre tópicos de longo prazo, quais sejam, a “ditadura republi-
cana” de matriz positivista, a “ideologia do Estado autoritário”, o “autoritarismo
instrumental”, e o hibridismo de lógica liberal e práxis autoritária, ou sobre a
coexistência de um ideário neoliberal, difundido desde a década de 1980 no
Brasil e na América Latina por institutos liberais a serviço da burguesia brasileira
junto com o legado da Era Vargas – sindicato corporativo e formação de uma
“cidadania regulada” pelo alto, concedendo previamente direitos sociais -, cujo
modelo nacional-autoritário é incorporado ao processo de militarização do Estado
e da sociedade civil brasileira nas décadas de 1960 e 1970, é fundamental para a
compreensão tanto da tensão liberalismo-autoritarismo que permeia a ideologia da
direita brasileira contemporânea, uma mistura de princípios neoliberais e defesa
de retrocessos no campo dos direitos humanos e sociais, quanto também o papel
estratégico por ela exercido no contexto mais amplo da “pós-democracia”, marcada
pelos lobbies multinacionais, pelas mídias e por novas formas de poder oligárquico.

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Plural 25.1
Artigo

“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita


no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro1
“Right, unashamed”: conformations on Brazil’s political
right through Jair Bolsonaro’s discourses
Martin Egon Maitinoa

Resumo  Como a “nova direita” se diferencia e se aproxima das tradições do campo


conservador brasileiro? Em que medida o fenômeno da “direita envergonhada” é
afetado pelo discurso desses grupos? O artigo discute tais questões por meio da análise
do discurso de um dos principais polos da direita contemporânea no Brasil – o deputado
Jair Bolsonaro. Entendendo as narrativas como importantes mecanismos para a
conformação de grupos políticos, busca-se compreender como esse ator contribui para
as transformações no campo através de suas operações discursivas: quais os valores,
atores e práticas atribuídos aos campos da esquerda e da direita pelo parlamentar. Como
material primário, foram usados seus discursos na 54ª e 55ª legislatura para análises
quantitativas e selecionadas entrevistas e declarações para análises qualitativas. Os
resultados apontam para uma baixa relevância de questões econômicas no discurso
do parlamentar, com ênfase em questões de cunho moral e na oposição aos governos
petistas. Percebe-se grande valorização do período militar e uma reatualização do
discurso anticomunista, vinculando-o ao antipetismo.
Palavras-chave  Nova direita; Direita; Antipetismo; Anticomunismo; Discurso Político.

Abstract  How is the “new right” different and similar to the traditions of the Brazilian
conservative field? In what sense is the “shamed right” phenomena affected by these
groups discourses? The paper discusses these issues by analyzing the discourses of one
of the main leaders of contemporary right in Brazil – federal deputy Jair Bolsonaro.
By highlighting the importance of narratives as mechanisms for conforming political
groups, we try to understand how this actor contributes to the transformations in
this field through his discursive operations: what are the values, actors and practices
the congressman attributes to the left and to the right fields. As primary material,

1 Este artigo é uma versão estendida e modificada de trabalho apresentado anteriormente no 1º


Simpósio Direitas Brasileiras (Da Redemocratização ao Governo Temer), ocorrido na Univer-
sidade de São Paulo entre 7 e 9 de novembro de 2017.
a Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo
(USP). Contato: [email protected].

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.111-134
112 Martin Egon Maitino

pronouncements in the 54th and 55th legislature were used for quantitative analysis
and interviews and other declarations were selected for qualitative analysis. The
results point to low saliency of economic issues and an emphasis on issues of moral
character and opposition to the Worker’s Party (PT) government. The military period
is valued in a highly positive way and anticommunist narratives are updated through
a coupling with anti-PT discourse.
Keywords  New right; Right; Anticommunism; Political Discourse.

O retorno de grupos de vocabulário anticomunista, abertamente simpáticos


ao regime militar, a posições de destaque no debate político nacional vem gerando
surpresa e apreensão em muita gente. Essas transformações, associadas ao surgi-
mento de uma “nova direita”, põem em cheque algumas das noções estabelecidas
sobre o campo conservador brasileiro, renovando o interesse no estudo das forma-
ções políticas de direita (Velasco e Cruz, 2015; K aysel; Codas, 2015).
Mais especificamente, chama a atenção a forma pela qual esses grupos
reivindicam para si os rótulos e tradições de “direita” (Chaloub; Perlatto, 2015),
rompendo com o fenômeno da “direita envergonhada” – isto é, da direita que não
se assumia como tal, prevalente ao menos desde a redemocratização (Pierucci,
1987; Souza, 1988; Mainwaring; Meneguello; Power, 2000; Madeira; Tarouco,
2010; Caldeira Neto, 2016). Essa diferenciação entre uma nova direita, que “diz
seu nome”, e a direita tradicional, “envergonhada”, suscita uma série de questões.
Como se dá a tensão e a interação entre esses dois grupos? Como a “nova direita”
concebe o campo conservador no Brasil? Quais as narrativas sustentadas pela
“nova direita” e em que medida elas se relacionam com os discursos sustentados
pela direita brasileira no passado?
Este artigo busca explorar tais questões a partir da análise do discurso de um
dos principais líderes da direita “sem vergonha”: o deputado federal Jair Bolsonaro.
Bolsonaro representa um objeto interessante para o estudo não só por ocupar uma
posição de destaque, atuando como um “polo” no campo da direita. Exercendo a
função parlamentar desde 1991, o deputado representa, de certo modo, um caso
desviante: nunca se colocou como “direita envergonhada” e tampouco acompanhou
o movimento do campo da direita em direção ao neoliberalismo na década de 1990.
A ascensão do deputado a uma posição de destaque no debate público, porém,
é fato recente: seu crescimento é paralelo às transformações no campo da direita
que costumam ser associadas ao surgimento de uma “nova direita” no país. Nesse
sentido, é razoável supor – como, de certa forma, já o fazem os analistas que

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 113

apontam para uma “onda conservadora” no país2 – que a ascensão de Bolsonaro


e o impulso dado a novos atores que se posicionam aberta e orgulhosamente como
“direitistas” são fenômenos afins3. Ao identificar os valores, atores e práticas atri-
buídos aos campos da esquerda e da direita pelo parlamentar e as narrativas que
usa para a conformação da disputa política, este estudo busca identificar o que
há, de fato, de “novo” no fenômeno da “nova direita” brasileira.
O trabalho está estruturado em cinco partes. Primeiramente, discutem-se
noções conceituais, apresentando a ideia de direita adotada no estudo. A segunda
seção enfoca a direita no Brasil, dando destaque ao fenômeno da “direita enver-
gonhada”. Em seguida, apresenta-se a metodologia usada para a análise empírica.
A quarta parte, então, debruça-se sobre os resultados dessa análise. Por fim, os
resultados são discutidos à luz de estudos anteriores sobre o campo.

1. CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS: A DIREITA COMO UM CAMPO DE INTERAÇÕES


DISCURSIVAS
Como é comum com termos centrais no debate político, ainda que os conceitos
de “esquerda” e “direita” sejam usados de forma relativamente consistente, há
grande controvérsia em relação a definições conceituais precisas (Velasco e Cruz,
2015). Essas controvérsias não se restringem ao âmbito do debate público, gerando
problemas para aqueles que desejam estudar academicamente os campos da
esquerda e da direita política: como dividi-los e operacionalizá-los empiricamente?
Revisando a literatura sobre a direita, Morresi (2015) identifica quatro abor-
dagens distintas para a questão das definições. O primeiro enfoque, que o autor
chama de “ideológico”, busca associar formações de direita a determinadas ideias
ou valores – em geral, o conservadorismo, o autoritarismo ou o livre-mercado;
no trabalho clássico de Bobbio (1996), à desigualdade como positiva e caracterís-
tica natural da sociedade. A segunda abordagem, dita “sociológica”, identifica os
grupos de direita com as forças políticas que defendem os interesses das classes
mais elevadas – um exemplo seria o estudo de Gibson (1996) sobre os partidos
conservadores na Argentina. A terceira possibilidade, uma definição “topológica”,
partiria da ideia de que a distinção esquerda-direita seria relacional, não sendo
possível definir a priori a localização de atores nesse eixo. Nessa linha, o autor

2 Sobre a ideia de uma “onda conservadora”, ver a posição de André Singer em Brasilino (2012).
3 Essa ideia é corroborada pela análise de Chaloub e Perlatto (2015). Para eles, o adensamento
discursivo da nova direita não responde apenas ao surgimento de novos atores, mas também
ao fato de que “vozes outrora isoladas e pouco influentes ganharam força, velhos personagens
assumiram renovada persona política” (Chaloub; Perlatto 2015, p. 8).

2018
114 Martin Egon Maitino

insere os estudos que buscam localizar os diferentes atores no eixo esquerda-


-direita a partir de métodos como surveys e a análise de programas partidários4.
Por fim, uma última abordagem seria um enfoque “historicista”, que enfati-
zaria a diversidade sócio-histórica das formações políticas sem perder de vista
seus aspectos ideológicos comuns. Nesse sentido, a direita se caracterizaria como
“a posição política resultante de uma série cumulativa de reações ou rechaços
concretos, historicamente situados, a inovações sócio-políticas de caráter inclusivo”
(Morresi, 2015, p. 1110). O exemplo clássico desse tipo de estudo é o trabalho de
René Remond (1982) sobre a conformação das direitas na França, traçando sua
trajetória desde 1815 até os dias atuais.
Rémond (1982) identifica, na direita francesa, três tradições políticas distintas,
com sistemas de pensamento próprios e irredutíveis umas às outras: a direita
legitimista, a orleanista e a bonapartista, que poderiam ser relacionadas, respec-
tivamente, ao reacionarismo, ao liberalismo conservador e a um autoritarismo
de tipo plebiscitário. Na concepção do autor, no entanto, não é possível localizar
precisamente as diferentes tradições em um eixo de gradação (mais ou menos à
direita): trata-se de uma distinção tipológica, uma diferença de qualidade entre os
grupos políticos, não de intensidade. Nesse sentido, Morresi (2015, p. 1111) consi-
dera que uma metáfora mais apropriada para compreender a direita política seria
a de um campo, no qual diferentes formações “competem entre si pelo domínio
do espaço, mas [...] são capazes de atuar de forma solidária quando o campo se
encontra sob o ataque de forças externas”5.
Em uma proposta similar, Pierucci (1987, p. 40) entende a extrema direita como
“constelações”, nas quais as diferentes posições “se interpenetram, reagem uma
sobre a outra, se misturam às vezes, se fagocitam sempre, aqui se enriquecem, ali
se anulam, aqui aparecem e ali se escondem”. Analisando entrevistas semiestrutu-
radas na cidade de São Paulo, o autor busca identificar “famílias” de pensamento
a partir de “ideias-chave” e “clivagens por campos semânticos”.
Seguindo essa linha e compreendendo as narrativas e discursos como
elementos importantes nos processos de construção e conformação de grupos polí-
ticos (Mayer, 2014), é de se esperar que a face discursiva das diferentes interações
no campo da direita seja de grande relevância para o estudo desse agrupamento.

4 Para um exemplo recente desse tipo de estudo para o Brasil, ver Tarouco e Madeira (2013).
5 Essa abordagem parece condizer com o trabalho de Kaysel (2015, p. 50), para quem “as hete-
rogêneas forças que hoje parecem constituir um bloco homogêneo, não só não o fazem, como
pertencem a diferentes tradições, frequentemente contrapostas, cuja compreensão me parece
indispensável para quem deseje entender a crise contemporânea vivida pelo país”.

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 115

Se, como afirma Chilton (2004, p. 5), “são percepções compartilhadas de valores
que definem associações políticas. E a faculdade humana para a linguagem tem a
função de ‘indicar’ – i.e. significar, comunicar – o que é considerado [...] certo ou
errado no interior daquele grupo”, os discursos de políticos da direita brasileira
devem ser um material central para estudá-la, sinalizando os valores que sustentam
as coalizões, as fronteiras entre grupos e as divergências entre diferentes forma-
ções de direita.
Como mencionado anteriormente, a proposta aqui é a de focalizar as falas de
um ator de grande destaque na direita brasileira, um “polo” no campo: o deputado
federal Jair Bolsonaro – o terceiro deputado federal mais votado em 2014 e segundo
colocado em pesquisas de intenções de votos para a eleição presidencial de 2018.
Essa proposta é coerente com Mayer (2014), para quem os líderes políticos não
devem ser encarados como meros transmissores de valores do grupo, mas também
como construtores de narrativas, buscando moldar as crenças e atitudes comuns.
Nesse sentido, este estudo, de forma exploratória, busca observar os tensiona-
mentos e movimentos que o deputado realiza discursivamente no interior e no
exterior do campo6, ajudando a conformar o que se entende por “ser de direita” – e,
por extensão, “ser de esquerda” – no Brasil de hoje.

2. A “DIREITA ENVERGONHADA” E O CAMPO DA DIREITA NO BRASIL


Como destaca Kaysel (2015), a trajetória das direitas no Brasil tem longa
história, estando intimamente relacionada não só a correntes ideológicas como
também a movimentos da conjuntura política doméstica e internacional. Assim,
além de variações relativas às ambiguidades e diferenças internas entre os campos
conservador, liberal e autoritário, a unidade e a fragmentação do campo da direita
no Brasil também foram fortemente afetadas por movimentações gerais do campo
político – o varguismo durante a Segunda República; o programa de João Goulart
antes do Golpe de 1964; o rechaço à ditadura militar durante a década de 1980.
No que se refere à conformação do campo da direita no Brasil pós-redemocra-
tização, um fenômeno merece atenção especial: a chamada “direita envergonhada”
– isto é, a direita que não se assumia como tal. Assim, embora tanto estudos
acadêmicos com parlamentares não conservadores fossem capazes de localizar

6 Seguindo Morresi (2015), a ideia de “campo” remete aqui a uma metáfora, não estritamente à
teoria dos campos (Bourdieu, 2011). O “interior” do campo refere-se ao compartilhamento de uma
“gramática comum” em suas interações discursivas; o “exterior” do campo, por sua vez, remete
à ideia de um “exterior constitutivo”, isto é, da exclusão e valoração negativa de determinados
conceitos como um elemento definidor do campo – no caso, as ideias associadas à “esquerda”
(Morresi, 2015, p. 1111-1112).

2018
116 Martin Egon Maitino

os partidos de forma consistente em um eixo esquerda-direita, “os membros


dos partidos conservadores diminuem a importância da ideologia, recusam-se a
responder ou se autoclassificam em posições distantes da realidade” (Mainwaring;
Meneguello; Power, 2000, p. 43).
O desprestígio do regime militar, associado à continuidade pós-redemocra-
tização de políticos e partidos que o haviam apoiado são apontados como fatores
importantes para a explicação do fenômeno (Pierucci, 1987; Souza, 1988; Madeira;
Tarouco, 2010; Caldeira Neto, 2016). Se, à época, “o apoio à ditadura era a principal
baliza que definiria o pertencimento à direita” (K aysel, 2015, p. 68), tornava-se
necessário dissociar-se também do rótulo de “direita”, sendo comum a auto-defi-
nição de atores políticos considerados de direita como de “centro”7 (Mainwaring;
Meneguello; Power, 2000, p. 43-46).
Esse fenômeno foi modificado pela ascensão da direita neoliberal, que contri-
buiu para redesenhar o campo no país, alterando as conotações do que significa
“ser de direita” (Mainwaring; Meneguello; Power, 2000; Madeira; Tarouco, 2010;
K aysel, 2015). A centralidade de questões como privatização e desregulamentação
da economia no debate político da década de 1990 associou o campo à defesa de
políticas de liberalização econômica, reduzindo o peso da dimensão histórica na
definição do campo no país (Madeira; Tarouco, 2010). É importante ressaltar, no
entanto, que o fenômeno da “direita envergonhada”, estando na origem do sistema
partidário atual, ainda encontra ecos no sistema político contemporâneo – como
ressaltam Madeira e Tarouco (2010, p. 175), a “atual distribuição dos principais
partidos políticos brasileiros na escala também é coerente com o grau de aproxi-
mação/distância com relação ao regime autoritário”.
Mais recentemente, analisando os discursos de intelectuais da “nova direita”
brasileira, Chaloub e Perlatto (2015, p. 8) apontam para uma mudança no compor-
tamento da direita brasileira. Em grande parte como uma reação ao longo período
do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal, a direita teria passado a
“dizer seu nome”. Nesse sentido, ainda que Singer (2010) destaque que, entre 2002
e 2006 o PT teria se deslocado em direção à direita (tanto em termos de alianças
eleitorais como em termos de base social), o fenômeno do “antipetismo” (Paiva;

7 A auto-definição de políticos de direita como de “centro” ajuda a compreender a relação entre


os fenômenos da “direita envergonhada” e o que Souza (1988, p. 569) chama de “centrismo
invertebrado”, isto é, “a existência de um vasto centro – um espaço onde todos estão com todos
e de que não se conhecem nem os limites nem a espinha dorsal”.

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 117

Krause; L ameirão, 2016; Ribeiro; Carreirão; Borba, 2016) parece ter se estabelecido
como um elemento discursivo central no campo da direita (Messenberg, 2017)8.
Nesse contexto, a figura do deputado Jair Bolsonaro representa um caso
desviante. Apesar de ser deputado federal desde 1991, nunca se caracterizou como
“direita envergonhada”, assumindo abertamente sua posição à direita e sua adesão
ao regime militar. Tampouco acompanhou a movimentação do campo na década
de 1990, rechaçando o neoliberalismo9. No entanto, o grande crescimento de sua
popularidade nos anos recentes contribuiu para torná-lo uma voz importante no
campo antipetista – ainda que isso cause constrangimento a outras lideranças10.

3. MÉTODO
Como discutido anteriormente, o objetivo deste trabalho é observar como
Jair Bolsonaro compreende o campo da direita no Brasil – quais os valores que o
deputado ressalta como representativos, os temas que pauta como centrais e as
linhas de cisão que visualiza interna (entre grupos de direita) e externamente (em
relação ao campo da esquerda). Essas questões são abordadas a partir de análises
quantitativas e qualitativas de pronunciamentos de Bolsonaro.
Para reduzir eventuais problemas de representatividade e de viés na seleção
dos discursos, a análise geral dos temas abordados pelo deputado foi realizada a
partir de métodos quantitativos de análise de conteúdo – a contagem de palavras e
bigramas. Para isso, foram coletados os pronunciamentos de Bolsonaro em plenário
entre 01/01/2011 e 31/05/201711 e contabilizados tanto os termos presentes nos
discursos como os temas de indexação no sistema da Câmara dos Deputados12. A
amostra corresponde a 430 pronunciamentos e 1881 temas de indexação.

8 Paiva, Krause e Lameirão (2016, p. 655) analisam a auto-identificação dos antipetistas no eixo
esquerda-direita, descobrindo uma porcentagem de 44,6% identificados como de direita ou
centro-direita (35,2% da amostra não soube ou não quis responder à pergunta; 11,1% se iden-
tificou como de centro e 9,1% como de esquerda ou centro-esquerda). As análises encontram,
também, correlação entre o fenômeno da rejeição ao PT e a preferência pelo PSDB (Paiva; K rause;
L ameirão, 2016; R ibeiro; Carreirão; Borba, 2016).
9 Em episódio famoso, à época da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, o deputado afir-
mou que o então presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ser “fuzilado” por sua “traição
à pátria” (Monteiro; Souza; Silva, 2010).
10 Um exemplo ilustrativo são os relatos das tentativas de Bolsonaro de participar da campanha
de Aécio Neves nas eleições de 2014, tendo suas sugestões ignoradas e sendo impedido de subir
em um carro de som. Ver Moraes (2014); Bolsonaro (2015).
11 O recorte temporal focaliza o período de “ascensão” do deputado na cena pública, ilustrado pelo
significativo impulso de sua votação nas eleições – em 2010, recebeu 120.646 votos; em 2014,
464.572, tornando-se o deputado mais votado do Rio de Janeiro (Tribunal Superior Eleitoral,
2010, 2014). O período corresponde, também, ao momento no qual Codato, Bolognesi e Roeder
(2015) localizam um crescimento de partidos da “nova direita”. O ponto final da análise res-
pondeu a critérios pragmáticos, relativos à disponibilidade de dados à época da elaboração das
primeiras versões do manuscrito.
12 As análises quantitativas foram realizadas em R, usando os pacotes rvest e tidytext.

2018
118 Martin Egon Maitino

Esse tipo de análise, no entanto, apresenta limitações, impedindo análises


mais aprofundadas das narrativas e das construções presentes nos discursos
estudados. Dessa forma, o estudo baseou-se na análise do discurso político
(Chilton, 2004) como forma de observar outras dimensões da linguagem, como as
interações entre indivíduos e a troca de imagens sobre o mundo. Com esse intuito,
a análise quantitativa foi complementada pela análise qualitativa de um corpus
mais reduzido de textos. Os discursos foram selecionados de modo a garantir que
a amostra apresentasse tanto variação temporal como de gênero textual, como
pode ser observado na tabela 1.

Tabela 1. Textos usados na análise qualitativa


Texto Ano Gênero textual Posição
Entrevistador
“O Povo Quer Saber” - CQC, TV 2011 Entrevista TV/ N/A
Bandeirantes Entretenimento [entrevistadores
diversos, gravados]
Entrevista a leitores, Revista Época 2011 Entrevista N/A
Imprensa [entrevistadores
diversos, por
escrito]
Brasil em Discussão, TV Record 2012 Entrevista TV Confrontação
Entrevista Coletiva: Candidatura à 2014 Entrevista Confrontação
Presidência da Comissão de Direitos Coletiva
Humanos
“Dois dedos de prosa” - Programa do 2014 Entrevista TV Misto
Ratinho, SBT
Agora é Tarde - TV Bandeirantes 2014 Entrevista TV/ Confrontação
Entretenimento
Entrevista a Marcelo Moraes, Estado de 2014 Entrevista N/A [poucas
S. Paulo Imprensa perguntas, difícil
classificar]
Pronunciamento no plenário em 09/12 2014 Discurso N/A
Plenário
Entrevista a Alexandre Frota 2015 Entrevista TV Abertura
Voto no impeachment de Dilma 2016 Discurso N/A
Rousseff Plenário
Entrevista a Thais Bilenky, Folha de S. 2017 Entrevista Confrontação
Paulo Imprensa
Textos do site pessoal do deputado --- Website N/A

4. RESULTADOS
Os resultados obtidos foram separados em quatro subseções. Primeiramente,
são apresentados os temas mais recorrentes na agenda do deputado. Em seguida,
é discutida a narrativa de Bolsonaro sobre o período da ditadura militar e sua

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 119

centralidade para a forma como concebe os campos da direita e da esquerda no


país. A terceira subseção aprofunda as concepções do deputado sobre os dois
campos, atentando para a forma como descreve a esquerda e define a direita. Por
fim, é apresentada a narrativa do deputado sobre “os valores sob ataque”, aplicada
a alguns temas da agenda política.

4.1 TEMAS NA AGENDA


Assumindo que a competição política não se dá apenas pela tomada de posição,
incluindo também a própria definição dos temas presentes na agenda política
(M adeira; Tarouco, 2010), os assuntos presentes nas comunicações do depu-
tado ganham um significado especial. Nesse sentido, ao observar os temas mais
frequentes nas comunicações de Bolsonaro no Parlamento, seria possível identificar
as pautas que julga mais relevantes no interior do campo político-parlamentar e,
consequentemente, também no campo da direita.
Analisando os principais temas abordados nos pronunciamentos de Bolsonaro
na Câmara dos Deputados, chamam a atenção dois grandes grupos: as questões
relativas às atividades militares (“defesa”, “militar”, “Comissão Nacional da Verdade”
etc.) e aquelas diretamente referentes ao governo de Dilma Rousseff (“presidente da
república”, “Dilma Rousseff”, “PT” etc.). A tendência se mantém quando se focaliza
o conteúdo dos discursos – os dois bigramas (grupos de duas palavras seguidas)
mais frequentes são, respectivamente, “Dilma Rousseff” e “Forças Armadas”. O
forte destaque dado a críticas à ex-presidenta e a seu partido é coerente com a ideia
de que o antipetismo ocuparia um espaço central no discurso da direita. A análise
de conteúdo, no entanto, permite compreender melhor o teor das críticas do depu-
tado ao governo petista: as expressões “direitos humanos”, “kit gay”, “maioridade
penal” e “bolsa família” apontam para uma disputa em torno de políticas públicas
específicas, fortemente associadas à ideia de políticas “de esquerda”13.

13 Esses temas também aparecem frequentemente quando o deputado possui a chance de expressar
o que considera mais importante na agenda política ou em sua trajetória. Como um exemplo, ver
a descrição de sua biografia em seu site pessoal: “Jair Bolsonaro é conhecido por suas posições
em defesa da família, da soberania nacional, do direito à propriedade e dos valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa. Suas bandeiras políticas são fortemente combatidas pelos partidos
de ideologia esquerdista. Em seus mandatos parlamentares, destacou-se na luta contra a
erotização infantil nas escolas e por um maior rigor disciplinar nesses estabelecimentos, pela
redução da maioridade penal, pelo armamento do cidadão de bem e direito à legítima defesa,
pela segurança jurídica na atuação policial e pelos valores cristãos.” (Bolsonaro, s.d.).

2018
120 Martin Egon Maitino

Principais temas de indexação dos discursos


(sem atividades parlamentares comuns)

Defesa
Presidente da República
Dilma Rousseff
Ministro de Estado
Militar
PT
Comissão Nacional da Verdade
Partido Político
Governo Federal
Regime Militar
Forças Armadas
Câmara dos Deputados
Ministério da Defesa
Soldo
Reumunaração
País Estrangeiro
Governo
Ditadura
Direito Humanos
Brasil
Celso Amorim
Violação
Investigação
Reajuste
Medida Provisória
Cuba
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Gráfico 1. Temas de Indexação dos pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câmara dos
Deputados (2011-2017)14.

Nota-se, assim, além de uma forte presença de temas caros à corporação


militar – o núcleo de sua base eleitoral original15 – uma estratégia de confrontação
com o governo, ressaltando as figuras da ex-presidenta Dilma Rousseff, de seu
partido e do ex-Ministro da Defesa, Celso Amorim. É interessante observar que,
ao contrário do que ocorre com outros partidos da direita, a crítica ao governo
não está centrada em temas econômicos, mas em questões que, como será discu-

14 Para melhor observar os temas ressaltados nos pronunciamentos de Jair Bolsonaro, foram
desconsiderados temas de indexação referentes a atividades parlamentares recorrentes (no
caso, os seguintes temas: “crítica”, “deputado federal”, “Jair Bolsonaro”, “atuação”, “projeto de
lei”, “criação”, “aprovação”, “apoio”, “protesto”, “avaliação”, “declaração”, “repúdio”, “solicitação”,
“esclarecimentos”, “contestação”, “participação”, “alteração”, “elogio”, “projeto de lei ordinária”,
“proposta”, “votação”).
15 De acordo com o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro
teria se dado por sua projeção nos meios militares e pelo voto de “suas bases eleitorais na Vila
Militar e em algumas zonas de Resende” (Monteiro; Souza; Silva, 2010).

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 121

Bigramas mais frequentes nos discursos

Dilma Rousseff
Forças Armadas
São Paulo
Direitos Humanos
Medida Provisória
Nesta Casa
Kit Gay
Fidel Castro
Não podemos
Assim sendo
Maioridade Penal
Celso Amorim
Bolsa Família
Tribunal Federal
Supremo Tribunal
Não pode
Há pouco

0 20 40 60 80 100 120
Gráfico 2. Bigramas mais frequentes nos pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câmara
dos Deputados (2011-2017).

tido mais adiante, o deputado enquadra como morais ou de segurança, ameaças


à “família brasileira” e à nação.

4.2 AS NARRATIVAS SOBRE O REGIME MILITAR

Rafinha: Essa manchete o senhor assina embaixo: “Dilma Rousseff não foi
torturada”?
Bolsonaro: Mentira dela! A grande maioria não... alguns foram, eu não tenho
dúvida disso. Até porque quando você precisa de informações em tempo real
– e esse pessoal não tava aqui de brincadeira. Eles não tavam na rua, Rafinha,
pedindo ‘eu quero, eu quero o fim da corrupção’ – que praticamente, prati-
camente não existia. Tanto é que não acha nenhum militar rico – nenhum!
(Bolsonaro, 2014c)

Uma das características mais distintivas de Jair Bolsonaro é a reivindicação


política explícita e sem reservas que faz da ditadura militar. Ao contrário do que
se observa em outros agrupamentos de direita no país, Bolsonaro nunca adotou

2018
122 Martin Egon Maitino

o discurso da “direita envergonhada”, chegando a criticar o regime democrático


em diversos momentos ao longo de sua trajetória16. De fato, como sugere a análise
quantitativa, o regime militar ocupa espaço central em seus discursos, servindo
de modelo e contraste em relação aos governos do período pós-1988.
Nesse sentido, uma primeira narrativa recorrente sobre o período consiste
no rechaço à caracterização do regime militar enquanto “ditadura”. O primeiro
elemento da negação do caráter autoritário do regime diz respeito à defesa da
legitimidade do golpe civil-militar de 196417. Assim, o apoio civil à queda de João
Goulart é enquadrado como uma prova do caráter “democrático” de sua retirada
do governo, afinal “quem cassou o João Goulart, foi o Congresso Nacional no dia
2 de abril de 64. E quem elegeu Castelo Branco foi o Congresso Nacional”18. Além
da legitimidade popular, a derrubada de Goulart seria justificada pelo contexto
prévio, no qual a esquerda atentaria contra a democracia com o intuito de instaurar
uma “ditadura do proletariado”19.
Assim, o regime teria sido uma “necessidade para aquele momento”20, que o
deputado caracteriza como uma “situação de guerra”21. Nesse contexto, “armas”
como a tortura seriam legítimas e justificadas, pois “mil vezes anos de chumbo,
do que rios de sangue”22. Não se trataria de uma ditadura, pois não teria ocorrido
“privação do direito de ir e vir”23, e apenas aqueles que “cometeram crimes de
sangue”24 teriam saído. Da mesma forma, as alegações de tortura seriam sobre-
dimensionadas, pois “qualquer vagabundo preso diz que foi torturado”25.
A legitimação da ditadura militar permite que o regime seja reivindicado
enquanto modelo a ser seguido, contrastando-o com o período da Nova República
– o qual tem, muitas vezes, suas credenciais democráticas questionadas. Constrói-
-se, assim, uma imagem idílica e idealizada dos governos militares, “um período
de pleno emprego, segurança, liberdade e respeito”26, no qual as “autoridades [...]

16 Para alguns exemplos, ver Monteiro, Souza e Silva (2010).


17 Deve-se ressaltar, porém, que, seguindo o discurso do regime militar, Bolsonaro não considera
os acontecimentos de 1964 como golpe, mas sim como “revolução”. Na sua visão, “Os militares
não dão golpe. As Forças Armadas são instituições permanentes e, tradicionalmente, sempre
atenderam os anseios do povo, já que desde suas criações são formadas por integrantes de todos
os segmentos sociais.” (Bolsonaro, 2011b).
18 Ver Bolsonaro (2014c).
19 Ver, por exemplo, Bolsonaro (2011b, 2012).
20 Ver Bolsonaro (2011b).
21 Ver Bolsonaro (2012, 2014c).
22 Ver Bolsonaro (2012).
23 Ver Bolsonaro (2012, 2014c).
24 Ver Bolsonaro (2012).
25 Ver Bolsonaro (2014c).
26 Ver Bolsonaro (2011b).

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 123

exerciam a autoridade sem enriquecer”27. Esse quadro se contraporia ao período


contemporâneo, marcado pela corrupção, pela imoralidade, pela insegurança e até
mesmo pela “maior taxa de desemprego do mundo”28. Além de associar o período
democrático com a corrupção e a ineficiência dos serviços públicos, Bolsonaro
destaca as conexões entre as lideranças políticas de esquerda no período pós-1988 e
a luta armada no período militar. Dessa forma, reforça sua narrativa sobre a “falsi-
dade” da democracia petista29, uma “‘democracia’ [...] governada por ‘líderes’ que
idolatram ‘democratas’ como Fidel Castro, Hugo Chávez, Ahmadinejad e Khadafi”30.

4.3 INIMIGOS E DEMARCAÇÕES

Fala do teu Governo, o Governo mais corrupto da história do Brasil! Dilma


Rousseff. Dilma Rousseff. Deve estar envergonhada, sim, S. Exa., por ter rouba-
do só 2,5 milhões de dólares da casa do Ademar. Agora são bilhões da PETRO-
BRAS. Foi Presidente do Conselho de Administração, Ministra de Minas e Ener-
gia, Chefe da Casa Civil, é Presidente da República e não sabe de nada! Quantas
dezenas de milhares de pessoas morrem por causa desse dinheiro desviado
para o seu partido, para a sua causa? (Bolsonaro, 2014d)

A continuidade entre a esquerda guerrilheira do período autoritário e a contem-


porânea ocupa um lugar importante na forma como Bolsonaro descreve o campo
político do Brasil democrático. Ao ressaltar essa ligação, o deputado projeta sobre
a disputa política contemporânea as clivagens da Guerra Fria e do período militar,
reatualizando o anticomunismo e elementos da Doutrina de Segurança Nacional31.
Por cima dessa clivagem – opondo comunismo, autoritarismo e fragmentação
a capitalismo, democracia e unidade nacional – o deputado constrói um discurso
pautado no antipetismo. O Partido dos Trabalhadores é reconhecido como o eixo

27 Ver Bolsonaro (2011a).


28 Ver Bolsonaro (2014b).
29 É interessante notar que, nos primeiros anos do regime democrático, Souza (1988, p. 584) des-
taca que os setores conservadores também atribuíam à esquerda uma “valorização retórica da
democracia”.
30 Ver Bolsonaro (2011b).
31 Essa questão aparece marcadamente em referências internacionais nos discursos do deputado,
que remetem à ideia do esquerdista como “inimigo interno”, ameaçando a “Nação” pela importa-
ção de “ideias estrangeiras” e pela “articulação do comunismo internacional”. Para um exemplo
ilustrativo, ver o alerta do deputado para o risco de “cubanização” do país, decorrente de supos-
tos vínculos do PT com as FARC, e outros movimentos de esquerda (Bolsonaro, 2014d). Outro
exemplo aparece no site do deputado, que afirma combater a esquerda para manter a unidade
nacional: “não desejamos importar ideologias que destruam nossa identidade” (Bolsonaro, s.d.).
Sobre a Doutrina de Segurança Nacional, ver Castagnola e Mieres (1996).

2018
124 Martin Egon Maitino

central da política nacional e, portanto, como seu principal inimigo32. As lideranças


petistas seriam marcadas pela imoralidade e pelo desrespeito à propriedade
privada33, o que seria compartilhado por sua militância34. São ressaltados, ainda,
os vínculos internacionais do PT com movimentos de esquerda da América Latina35,
fazendo referências ao “Foro de São Paulo”36 – conferência de partidos esquer-
distas da região e objeto frequente de teorias conspiratórias da direita brasileira
(Chaloub; Perlatto, 2015).
Nesse contexto, as referências a Cuba servem como um símbolo e uma
evidência da continuidade do ideário comunista37. O passado guerrilheiro das
lideranças esquerdistas – em especial, o de Dilma Rousseff – contribui para desle-
gitimar as ações do governo, acusando-o de revanchismo e de conivência com a
criminalidade38. Retoma-se, dessa forma, a ideia de que a esquerda seria hipócrita,
falsamente comprometida com a democracia e com o povo39.
As ações do governo são enquadradas dentro de uma agenda mais ampla: a
“implantação da luta de classes” no país, que dividiria a nação e suas instituições
basilares, como a família, ao enfatizar divisões40. Essas divisões, “disseminadas
de cima para baixo pelo PT”, teriam expressão em políticas públicas como a Lei da
Palmada, o Bolsa Família e as políticas de proteção a minorias, jogando brancos
contra negros, ricos contra pobres e héteros contra homossexuais41.

32 Ver Moraes (2014); Bolsonaro (2015). Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro
atribui a maior parte dos votos de Aécio Neves ao antipetismo, vislumbrando nesse fenômeno
um espaço para seu crescimento (Moraes, 2014).
33 Nesse ponto, são ilustrativas as conexões entre ações da luta armada como roubo de bancos e
assassinatos e fatos mais recentes, como escândalos de corrupção e o assassinato do prefeito
de Santo André, Celso Daniel. Ver Bolsonaro (2012, 2014d).
34 Um exemplo ilustrativo pode ser encontrado em Rede Brasil (2015): “Mostra quem é o PT. Você
conhece algum petista empresário, comerciante, agricultor, empreendedor? Não tem. Eles vêm
de movimentos... sindicais ou da ociosidade. Por que que o PT detesta a propriedade privada?
Porque eles nunca trabalharam.”
35 Vale notar que esse vínculo é associado também a um vínculo com o crime internacional, como
se observa na interpretação do deputado sobre a Academia de Defesa da UNASUL: “Este agora
na UNASUL se reunindo com a escória da América Latina, tratando, entre outras coisas, da
abertura do espaço aéreo para os países da UNASUL. Cuba não faz parte deles, mas está no
bolo. Além de tráfico de drogas, há tráfico de armas e munições!” (Bolsonaro, 2014d).
36 Ver Bolsonaro (2016).
37 Ver Bolsonaro (2011a, 2011b, 2012, 2014b, 2014c, 2014d).
38 Ver Bolsonaro (2011b, 2012, 2014b, 2014d).
39 Para um exemplo ilustrativo, ver a declaração de Bolsonaro em entrevista a Alexandre Frota
(Bolsonaro, 2015): “Eu desafio qualquer deputado do PT a sair comigo nas ruas. Desafio. Já que
eles falam tanto em povo, falam tanto em pobre né. Mas não têm essa coragem de sair comigo
nas ruas.”
40 Ver Bolsonaro (2015).
41 Ver Bolsonaro (2015).

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 125

A direita, na visão de Bolsonaro, se definiria, portanto, de forma reativa no


combate a essa agenda42. Nesse sentido, a posição de Bolsonaro corrobora a visão
de analistas como Giordano (2014), e Oliveira e Benetti (2014), para quem as
“novas direitas” seriam definidas a partir de uma reação às políticas promovidas
por governos de esquerda na América Latina, buscando resgatar a legitimidade e a
capacidade eleitoral do campo direitista. A definição reativa explica a centralidade
do antipetismo na definição das fronteiras do campo da direita, uma vez que, para
Giordano (2014, p. 53), “o aglutinante das direitas é a necessidade de fazer frente
(e vencer) forças políticas de esquerda e centro-esquerda”. Essa questão fica ainda
mais patente quando, em entrevista à TV Record, o deputado define o campo da
direita pela negação, reforçando as definições relacionais de esquerda e direita.
Isto é, ser de direita é “ser oposição à esquerda que tá aí. Que usa demagogia, é
o populismo, é a enganação, é não investir onde deve investir, tá ok? É posar de
vestais da democracia – que não são. Eles nunca foram democráticos”43.
Apesar da definição simples, que explica a centralidade do antipetismo na
definição das fronteiras do campo da direita, o deputado hesita em atribuir esse
rótulo a outros partidos e políticos44. Essa hesitação sugere a existência de uma
dimensão ideológica subjacente à relacional, estando associada à percepção de que
os partidos e políticos brasileiros seriam incoerentes, pois os partidos venderiam
apoio ao governo e os políticos tentariam “agradar todo mundo”45. Nesse sentido,
Bolsonaro se constrói como diferente de toda a classe política no país46, ressaltando
sua independência por não “dever favores” a outros políticos47, sua coerência e
disposição a “falar o que pensa”48 e sua incorruptibilidade49.

42 Um exemplo ilustrativo pode ser encontrado na homepage do site do deputado: “DIREITA JÁ:
Nossos valores, crenças e cultura não podem ser deturpadas para que se atinjam propósitos
estranhos ao povo brasileiro. Somos um país que tem orgulho de nossas cores e não desejamos
importar ideologias que destruam nossa identidade.” (Bolsonaro, s.d.).
43 Ver Bolsonaro (2012).
44 É interessante notar, porém, certa mudança nas percepções de Bolsonaro a respeito de seus
“aliados”. Enquanto em 2012 o deputado parecia construir a imagem de uma luta solitária contra
a esquerda no país (Bolsonaro, 2012), em 2014 afirma considerar o deputado Marco Feliciano
um “grande irmão”, “defensor da família” (Bolsonaro, 2014b). Já em 2017, Bolsonaro afirma
considerar os evangélicos como parte de sua base, ao lado das Forças Armadas (Bilenky, 2017).
45 Ver Bolsonaro (2012). É ilustrativa a resposta de Bolsonaro à pergunta de Nirlando Beirão sobre
a existência ou não de uma direita no Brasil: “Quando o PT era oposição, o PT votava comigo.
Agora que o PSDB é oposição, o PSDB vota comigo.”
46 Essa construção discursiva remete ao que Kaltwasser (2014), descrevendo as estratégias da
“nova direita” latino-americana, caracteriza como “opções eleitorais não partidárias”. Isto é, a
construção de lideranças eleitorais baseadas na ruptura com a classe política tradicional e de
organizações personalistas montadas a posteriori.
47 Ver Bolsonaro (2014b).
48 Ver Bolsonaro (2012, 2014b); Bilenky (2017).
49 Ver Bilenky (2017): “Sou acusado de tudo, só não de corrupto”.

2018
126 Martin Egon Maitino

4.4 OS VALORES SOB ATAQUE: OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS DA MAIORIA

Se lutar para impedir a distribuição do kit-gay nas escolas de ensino funda-


mental com a intenção de estimular o homossexualismo, em verdadeira afronta
à família é ser preconceituoso, então sou preconceituoso, com muito orgulho.
(Bolsonaro, 2011b)

Assim como atribui à esquerda a tentativa de “dividir a nação” e “desgastar”


seus valores, a disputa política é associada a um embate no campo moral. Desse
modo, a baixa qualidade dos serviços públicos – em especial, da educação e da
segurança pública – é relacionada ao fim da ditadura militar, quando se teria
perdido o respeito às autoridades e à disciplina50. Da mesma forma, muitos dos
valores defendidos pelo deputado, “reflexo do pensamento da maioria das famí-
lias honestas brasileiras”51, estariam sendo atacados pelas políticas da esquerda
no governo.
A principal aplicação dessa narrativa aparece nas políticas de Direitos
Humanos, entendidas como políticas de proteção a minorias. Para o deputado, as
pessoas teriam sido “pervertidas” a acreditar que “direitos humanos é defender
minoria”, quando o correto seria “brigar para que todos nós sejamos iguais perante
a lei”52 – isto é, evitar as divisões, pois “o país é um só”53. Ressignificando a relação
entre “minoria” e “maioria” no contexto das políticas de Direitos Humanos, Bolso-
naro alude aos princípios majoritários. Defende, assim, que “a política é o contrário”,
isto é, “minoria tem que se calar, se curvar à maioria”54.
A política atual, exemplificada nos casos das políticas de educação sobre gênero
e orientação sexual e de segurança pública, seria marcada por uma lógica invertida.
Assim, “uma minoria de marginais aterroriza a maioria de pessoas decentes”55 e
“assassinar um heterossexual é menos grave que matar um homossexual”56. Essa
inversão aparece também na leitura de que o país teria “leis demais”57, interfe-
rindo em terrenos que deveriam estar fora do alcance estatal, como a família58. No

50 Ver Bolsonaro (2011b).


51 Ver Bolsonaro (2017).
52 Ver Bolsonaro (2014a).
53 Ver Bolsonaro (2015).
54 Ver Bolsonaro (2014a).
55 Ver Bolsonaro (2014a).
56 Ver Bolsonaro (2011b).
57 Ver Moraes (2014).
58 Essa questão aparece frequentemente nas discussões sobre o chamado “kit gay” e a “lei das
palmadas”. Ver, por exemplo, Bolsonaro (2012, 2015).

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 127

entanto, o que poderia ser à primeira vista confundido com uma concepção liberal
de Estado mínimo pode ser também interpretado como uma crítica às restrições
legais ao aparato de repressão estatal59.
Assim, o “desgaste dos valores familiares”60 e a “lavagem cerebral em nossas
crianças por meio de ações de forte apologia ao sexo precoce”61 fariam com que o
país caminhasse rumo à anarquia62, pois sem a preservação da família “uma nação
simplesmente ruirá”63. A defesa de direitos para homossexuais seria uma demanda
por privilégios64 e a discussão de temas como homofobia nas escolas uma agenda
voltada a “estimular nossos filhos a ser homossexuais”65 e, “demagogicamente”,
que “deviam se orgulhar dessa condição”66.
Além disso, a defesa de “marginais como se fossem excluídos da sociedade”67
dificultaria o combate ao crime e até mesmo recompensaria o “vagabundo”68. Nesse
sentido, as soluções para a segurança pública no país passariam pelo endurecimento
de penas, pela redução da maioridade penal e pelo uso de “métodos enérgicos” no
combate ao crime69. A prova da eficácia do endurecimento das penas no combate
à criminalidade seria apontada pelo comportamento dos próprios criminosos no
país: “o pessoal defende o menor porque diz que ele não tem consciência do que
ele faz. Agora eu te pergunto: por que que ele não rouba na favela? Por que que não
assalta na favela? Sabe por que? Porque lá tem pena de morte pra ele”70. O rechaço
à garantia de direitos a criminosos se dá por uma ênfase na função retributiva da
pena – a prisão como lugar de “pagar seus pecados”71, legitimada pelo sentimento
popular decorrente da impunidade72.

59 Essa questão fica patente quando se observa a forma como a ideia das “leis demais” era en-
quadrada pelo deputado no passado: “Também no mesmo ano, voltou a provocar polêmica ao
defender o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso Nacional.
Alegava o deputado que a existência de muitas leis atrapalhava o exercício do poder e que, ‘num
regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que
está atrapalhando’” (Monteiro; Souza; Silva, 2010).
60 Ver Bilenky (2017).
61 Ver Bolsonaro (2017).
62 Ver Bilenky (2017).
63 Ver Bolsonaro (2011a).
64 Ver Bolsonaro (2014a).
65 Ver Bolsonaro (2011b).
66 Ver Bolsonaro (2011b).
67 Ver Bolsonaro (2014a).
68 Ver Bolsonaro (2014b).
69 Ver, por exemplo, Bolsonaro (2014a, 2014b); Moraes (2014); Bilenky (2017).
70 Ver Bolsonaro (2014b).
71 Ver Bolsonaro (2014a).
72 Ver, por exemplo, Bolsonaro (2012): “Se você fizer uma pesquisa aqui, dá, no mínimo, 85%
favorável à redução. Mas você fica com ódio a partir do momento em que aquele que cometeu
um mal pra você ou pra sua família, pra filha nossa, uma mãe, uma irmã nossa, não é punido.”

2018
128 Martin Egon Maitino

O ataque a políticas de direitos humanos, dessa forma, retoma as críticas gerais


à esquerda. Assim, a ideia de priorização de minorias em detrimento da maioria
reforça as noções de que a esquerda seria hipócrita em sua retórica de que defenderia
“o povo” e a democracia. Nesse sentido, os direitos humanos não protegeriam os
“humanos direitos”, apenas os “bandidos, estupradores, marginais, sequestradores
e até corruptos”73, “vagabundos marginais que vivem às custas do governo74”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: ECOS DO PASSADO E CAMINHOS FUTUROS


Os discursos de Bolsonaro ecoam o passado para além de sua narrativa sobre
a ditadura militar. Observando-os, é inevitável recordar a discussão de Pierucci
(1987) sobre as bases do que, à época, se chamava de “nova direita”. A “agressivi-
dade em relação aos outgroup”, o “sentimento de insegurança”, a associação entre
direitos humanos e “mordomia para os presos”, a religiosidade, a defesa de “mais
autoridade e menos permissividade” e a valorização simultânea do intervencio-
nismo estatal e da capacidade empreendedora individual que Pierucci identifica
em uma parcela das classes médias paulistanas estão todos presentes no discurso
de Bolsonaro e seus seguidores. Ironicamente, se em 1987 Pierucci destacava a
surpreendente ausência de um anticomunismo nessas bases, hoje, quase trinta
anos após a queda do Muro de Berlim, o medo da “ameaça comunista” reaparece.
O retorno do “perigo vermelho” reforça a ideia do anticomunismo como um
fenômeno duradouro na história política brasileira, marcado por “surtos” nos quais
se torna uma força política influente (Motta, 2002). De fato, pode-se traçar uma
série de paralelos entre os discursos de Bolsonaro e a tradição anticomunista no
Brasil, como o imaginário da ameaça estrangeira e a associação do comunismo à
imoralidade e criminalidade.
Evidentemente, ainda que o imaginário se mantenha, os referentes políticos
se transformam – hoje, ao invés da ameaça soviética, a ênfase recai sobre o “boli-
varianismo”, simbolizado por Cuba e Venezuela. Da mesma forma, a Intentona
Comunista é substituída pela luta armada como “prova” da violência e imorali-
dade comunista. A degradação moral promovida pelos comunistas, que visariam
“destruir a família, corromper a juventude e demolir as noções de decência e come-
dimento” (Motta, 2002, p. 65) se manifestaria agora nas políticas voltadas para a
proteção de minorias LGBT, que “estimulam nossos filhos a serem homossexuais”
(Bolsonaro, 2011b).

73 Bolsonaro (2014d).
74 Bolsonaro (2014a).

Plural 25.1
“Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro 129

Como na tradição anticomunista militar, a solução estaria na defesa da “ordem”,


associada à hierarquia, à desigualdade e a limites ao exercício de direitos (Teixeira,
2014, p. 159-160). Frente às investidas comunistas que buscariam desagregar o
povo – visto como uma “unidade orgânica de todas as classes sociais” (Teixeira,
2013, p. 63) – seria necessário um líder que inspire respeito, um “homem de bem” e
“incorruptível” capaz de reconstituir a autoridade do Estado. O que, de fato, parece
novo na “nova direita” contemporânea é o contexto em que surge. No cenário atual,
sua disposição a “dizer seu nome” surpreende, abandonando os rótulos de “centro”
e o discurso da “pós-ideologia”. Ao colocar-se como direita “sem vergonha”, com
coragem de “dizer o que pensa”, Bolsonaro apresenta-se como exceção em meio
aos políticos conservadores do establishment.
Os ecos do passado nas falas de Bolsonaro, porém, contrastam fortemente
com a ideia de que as movimentações no campo da direita no Brasil estariam asso-
ciadas ao surgimento de uma “nova direita”, esposando novas ideias e discursos.
Em que pese o crescimento de partidos que associem o ideário conservador à
aceitação pragmática de políticas sociais (Codato; Bolognesi; Roeder, 2015), o
caso de Bolsonaro parece fortalecer a suspeita de Chaloub e Perlatto (2015, p. 29),
de que o “novo” talvez seja “o velho discurso da direita mais radical, travestido e
adaptado”. Enquanto a “nova direita latino-americana” faz movimentos no sentido
da incorporação de uma “agenda social” à defesa da agenda neoliberal (Giordano,
2014; Codato; Bolognesi; Roeder, 2015), tanto Bolsonaro como os “intelectuais da
nova direita” tensionam o campo brasileiro em um sentido oposto – mais próximo
de uma “velha direita”.
Para Chaloub e Perlatto (2015), a coesão da nova direita brasileira nasce da
noção de um “inimigo em comum”, mas é viabilizada por uma “compatibilidade”
entre o conservadorismo e o liberalismo extremado. Também Bolsonaro coloca o
conflito na base de sua construção política, de onde se origina a centralidade do
antipetismo. Ao fazê-lo, atualiza seu discurso, enquadrando as políticas petistas em
chaves conceituais usadas à época do regime militar. Nesse movimento, propõe a
velha tradição anticomunista como forma de sustentar o “elogio dos conservadores
ao liberalismo econômico” e a “adesão dos liberais econômicos ao conservadorismo
moral” (Chaloub; Perlatto, 2015, p. 24) que marcariam a “nova direita”.
Ao atualizar o imaginário anticomunista por meio do antipetismo, Bolsonaro
articula fortemente dois campos semânticos centrais para os novos movimentos
de direita no país: o antipetismo e o conservadorismo moral (Messenberg, 2017).
As narrativas propagadas pelo deputado facilitam a união entre ideários distintos
no campo da direita brasileira, impulsionando-o como liderança.

2018
130 Martin Egon Maitino

No entanto, observando as diferenças internas no campo da direita radical


no Brasil, que une anticomunistas, ultraliberais e fundamentalistas religiosos
(Miguel, 2016), é difícil imaginar sua coesão sem a presença de um inimigo em
comum. Embora a centralidade da questão moral e da família no discurso de
Bolsonaro favoreça sua ponte com a direita religiosa, sua ligação com os liberais
é mais complexa. Mesmo que o anticomunismo se revele um imaginário capaz
de articular uma aliança entre conservadores e liberais, a história dos “surtos
anticomunistas” (Motta, 2002) sugere não se tratar de uma “solução” duradoura.
Nesse sentido, o relativo silêncio do deputado sobre questões econômicas é
significativo, apontando para uma tensão mais profunda. Como a direita popular
descrita por Pierucci (1987), Bolsonaro – ecoando a política nacional-desenvolvi-
mentista do período militar – aparentemente vê a intervenção estatal na economia
e na sociedade com bons olhos. No entanto, para habilitar-se como líder em um
campo definido, desde os anos 1990, pela adesão ao neoliberalismo, Bolsonaro
precisa se credenciar como um “liberal autêntico”. Independentemente da “solução”
encontrada pelo deputado para esse problema, a forma como essa tensão se resol-
verá parece central para compreender os rumos da direita radical no país.

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Plural 25.1
Artigo

“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”:


30 anos (1987-2017) de pautas políticas de
Jair Bolsonaro nos jornais brasileiros1

“I don’t speak what people want, I am what people want”: 30 years


(1987-2017) of Jair Bolsonaro’s political agenda in Brazilian newspapers

Leonardo Nascimentoa, Mylena Alecrimb, Jéfte Oliveirac, Mariana Oliveirad, Saulo Costae

Resumo  O presente artigo tem como objetivo apresentar a constituição da imagem


pública do atual deputado federal Jair Bolsonaro a partir das pautas políticas associadas
a ele em 30 anos de matérias jornalísticas. Foram utilizadas matérias de 1987 a 2017
veiculadas por dois jornais impressos de alcance nacional: a Folha de S. Paulo e
O Estado de S. Paulo. Ao longo dos diferentes cargos políticos que ocupou, de que
maneira seus posicionamentos dentro do debate político foram sendo apresentados a
uma infinidade de leitores? Seria possível percebermos algum tipo de continuidade e/
ou alteração de pautas, indicando – ou não – certa “coerência” política? Quais seriam
estes posicionamentos ou pautas? Estas são algumas das questões que animaram
este trabalho. Na primeira seção do artigo serão feitas algumas ponderações teórico-
metodológicas sobre as fontes utilizadas para a compreensão da natureza e do alcance
dos nossos dados. Em seguida, apresentamos as técnicas e os métodos empregados,
bem como o processo de coleta e caracterização dos dados. A terceira seção descreve
a construção das categorias de análise utilizadas. A quarta e última sessão é composta
pelos resultados qualitativos e quantitativos obtidos permeados por reflexões sobre
as pautas políticas mais recorrentes nas matérias.
Palavras-chave  Imagem pública; Jair Bolsonaro; Análise de Mídia.

1 O título do artigo é uma frase proferida pelo deputado Jair Bolsonaro em uma matéria da Folha
de S. Paulo (Folha de S. Paulo, 9 Jun. 2016, p. A10).
a Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail para contato:
[email protected] .
b Mestranda em Ciência Sociais, PPGCS/UFBA.
c Bolsista IC/PIBIC, UFBA.
d Mestranda em Ciência Sociais, PPGCSO/UFJF.
e Bolsista IC/PIBIC, UFBA.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.135-171
136 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Abstract  This article aims to present the constitution of the current congressman
Jair Bolsonaro’s public image by the political agenda associated to him in 30 years
of newspapers’ articles. Articles used were from Folha de S. Paulo and O Estado de
S. Paulo, between 1987 and 2017. During his diverse political positions, how were
his opinions within the political debate presented to readers? Would it be possible
to glimpse some continuity and/or agenda alterations, indicating – or not – some
political “coherence”? Which would be those opinions or agendas? These are some of
the questions that guided this work. In the first section of the article, some theoretical-
methodological considerations over the sources used are made, as to understand the
nature and reach of our data. Next, technologies and methods are presented, as well
as the process of data gathering and characterization. The third section describes
the construction of categories of analysis. The fourth and last section exposes the
qualitative and quantitative results obtained, mixed with reflections over the most
recurrent agenda in the articles.
Keywords  Public image; Jair Bolsonaro; Media analysis.

‘Se uma forma de esquecimento puder então ser legitimamente evocada, não
será um dever calar o mal, mas dizê-lo num modo apaziguado, sem cólera’
(Paul Ricoeur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, 2000)

INTRODUÇÃO
Talvez não precise muito esforço argumentativo para nós concordarmos com a
ideia de que “a capacidade ou incapacidade dos órgãos oficiais...” – e isso incluiria
todos aqueles que ocupam cargos eletivos – “em produzir e controlar as notícias,
constitui uma parte importante do poder de governar [...]” (Bennett, 2016, p. 12).
No entanto, o entendimento acerca da relação entre a produção de notícias e o exer-
cício do poder exige, diante de cada caso específico, um esforço de investigação que
considere toda a estrutura da sociedade. Isto porque, ao analisarmos as notícias
que dizem respeito às ações de determinados agentes políticos, nós estamos, em
termos mais amplos, tentando perceber as possíveis articulações entre a memória,
a duração histórica e as disputas pelo poder.
O presente artigo tem como objetivo apresentar a constituição da imagem
pública do atual deputado federal Jair Bolsonaro a partir das pautas políticas asso-
ciadas a ele em trinta anos de matérias jornalísticas. Foram utilizadas matérias de
1987 a 2017 veiculadas por dois jornais impressos de alcance nacional: a Folha de S.

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 137

Paulo e O Estado de S. Paulo. Ao longo dos diferentes cargos políticos que ocupou,
de que maneira seus posicionamentos dentro do debate político foram sendo
apresentados, por aqueles jornais, a uma infinidade de leitores? É possível perce-
bermos algum tipo de continuidade e/ou “coerência”? Se sim, quais seriam estes
posicionamentos? Estas são algumas das questões que animaram este trabalho.
Na primeira seção do artigo serão feitas algumas ponderações teórico-meto-
dológicas sobre as fontes que são fundamentais para a compreensão da natureza e
do alcance dos nossos dados. Em seguida, vamos apresentar as técnicas e métodos
empregados bem como o processo de coleta e caracterização dos dados. A terceira
seção descreve a construção das categorias de análise que foram utilizadas. A
quarta e última sessão é composta dos resultados qualitativos e quantitativos
obtidos permeados por reflexões sobre as pautas políticas mais recorrentes nas
matérias. Trata-se de um artigo exploratório que faz parte de um projeto sobre
mídia e política mais amplo e que ainda está sendo aperfeiçoado. Por fim, ainda
que os resultados obtidos possuam particularidades e limitações que serão deta-
lhadas logo mais abaixo, sua leitura vem em momento oportuno dentro e fora do
campo das ciências sociais.

1. ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DAS FONTES


De início, algumas questões precisam ser levantadas. Por que escolhemos
matérias de jornais impressos no intento de esboçarmos a carreira político-midi-
ática de um deputado federal? Uma segunda questão diz respeito à escolha dos
jornais: por que jornais predominantemente do estado de São Paulo, sendo que o
deputado em questão sempre teve seus mandatos vinculados ao estado do Rio de
Janeiro? Por fim, existe a justificativa, nem um pouco óbvia, das motivações e da
relevância de tratarmos de um político com o perfil do deputado Jair Bolsonaro.
Em relação às fontes escolhidas, podemos considerar que, à primeira vista,
uma pesquisa sobre parlamentares deveria ter como ponto de partida discursos,
projetos de lei e posicionamentos oficiais dos deputados ou senadores. Obviamente,
tais materiais constituem aquilo que efetivamente descreve e corporifica a carreira
de um político ou agente público. Entretanto, tais documentos, para chegarem a
círculos mais amplos de leitores (e eleitores) necessitam ser “traduzidos” e enviados
a indivíduos que nem sempre têm condições, podem e/ou querem se inteirar
plenamente dos termos em jogo no debate político.
De fato, é por meio dos jornais que se efetiva tal tradução e, no caso específico
do Brasil, embora não possua o “monopólio da distribuição do capital político”, a
mídia “condiciona as trajetórias políticas” dos diferentes agentes (Miguel, 2002, p.

2018
138 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

170). Outra peculiaridade é a de que os intelectuais e políticos da chamada “nova


direita” brasileira encontram nos principais órgãos de imprensa do país um locus
fértil de visibilidade, promoção e defesa de suas bandeiras e pautas (Perlatto;
Chaloub, 2015).
A intervenção do jornalismo sobre a política é, portanto, decisiva para a
conformação de uma imagem pública2 e, por isso, ela é disputada pelos indivíduos
e instituições que precisam criar, alterar ou ratificar uma determinada imagem
pública buscando atingir o seu objetivo principal: disputar e capturar o espec-
tador, o eleitor (Weber, 2004). A construção das imagens públicas de lideranças
políticas é um processo complexo, dinâmico e coletivo, uma vez que é constituído
pela interação de três elementos fundamentais: agentes políticos, mídias e público
(Just; Crigler, 2000). É a imagem pública que leva o cidadão a conformar suas
preferências políticas, não bastando ao representante ser apenas um bom gestor,
sendo também fundamental aparecer publicamente como tal (Marques; Montal-
verne, 2013).
Sendo assim, uma vez que “o jogo da política é cada vez mais jogado nos olhos
do público do que atrás de portas fechadas” (Schudson, 2002, p. 251; Mazzoleni;
Schulz, 1999; K ernell, 2006), a análise da mídia jornalística possibilita enten-
dermos como são construídas as imagens públicas dos agentes políticos. Essa
construção está estreitamente relacionada com os valores expressos pelo político
através das pautas políticas e/ou dos posicionamentos morais que ele professa.
Sabemos que a investigação sobre os valores que estão em jogo em uma determi-
nada sociedade constitui uma tarefa sociológica por excelência3. Neste sentido, a
análise jornalística é uma etapa para a compreensão da própria sociedade.
No caso específico de Jair Bolsonaro, pode-se dizer que as pautas políticas
veiculadas pelos jornais analisados se referem a posicionamentos da figura pública
do deputado sobre assuntos variados – como veremos mais adiante –, como direitos
humanos, pena de morte, militarização da sociedade, ditadura, etc. Consideramos
que tais pautas traduzem

2 Os líderes representantes na política precisam mostrar-se em seus papéis, gerar representação,


se fazer ver e se fazer acreditar” (weber, 2009, p. 15).
3 Por este motivo, Max Weber vai afirmar que, diante dos diferentes pontos de vista em disputa
em um dado momento histórico, seria tarefa das ciências sociais esclarecer quais os valores
que, de fato, estão em jogo. Em outros termos, “explicar de forma compreensível” os pontos de
vista dos atores sociais e políticos – de fato e não na aparência – constitui uma tarefa funda-
mentalmente sociológica(Weber, 1917, p. 90–91). As matérias jornalísticas constituem, deste
modo, um manancial inesgotável sobre como estão articulados os valores de uma determinada
sociedade.

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 139

um esforço controlado, por parte desse político, de impor e justificar ideias e


ações para o grupo que nele, em nome de verdades, confiou e, para tanto, ele
depende da mídia, que detém o poder de fazer, desfazer e questionar verdades.
(Weber, 2004, p. 271).

Em relação a nos restringirmos a jornais do estado de São Paulo, a decisão


obedeceu a critérios principalmente práticos. Uma coleta preliminar no acervo
digital de O Globo4 gerou 2.263 páginas de matérias que continham, ao menos
uma vez, a ocorrência do termo “Bolsonaro”. A coleta no Jornal do Brasil5 – que
ainda está em andamento – sugere um número ainda maior de matérias com
detalhes particulares sobre a atuação política do deputado Jair Bolsonaro. Por
conta do volume de matérias dos jornais O Globo e Jornal do Brasil, preferimos
analisar este material em um segundo momento. Mesmo optando apenas pelos
jornais paulistas, o volume de trinta anos de matérias – ainda que seja pequeno
em relação à coleta de matérias de políticos de envergadura nacional tais como
ex-presidentes e outros – exigiu o uso de aplicativos para a análise qualitativa e
quantitativa dos dados. Descreveremos as ferramentas utilizadas na seção sobre
os materiais e métodos empregados.
Por fim, a escolha do deputado Jair Bolsonaro ocorreu porque parece ser
um dos representantes do “autoritarismo à brasileira”, portador de um tipo de
discurso bem demarcado que contribui para engrossar o “caldo cultural ideal para
o agravamento de experiências autoritárias e a procura por saídas despóticas” para
os problemas do Brasil (Messenberg, 2017, p. 644). Além disso, presencia-se um
progressivo aumento de visibilidade do deputado nas eleições para a presidência
do Brasil em 2018. O fato de ele estar tão em relevo nas pesquisas eleitorais chama
a atenção para como esse tipo de figura é importante para se compreender socio-
logicamente a política brasileira.
Apesar desta constatação, nós tivemos, em todas as etapas, o cuidado de não
oferecer ao campo acadêmico, já demasiadamente eivado de valores exógenos, um
artigo com finalidades acusatórias escusas e/ou dissimuladas. Queremos com isso
alertar aos leitores que, embora a escolha do presente tema seja motivada por um
interesse acadêmico acerca da conjuntura política brasileira, os procedimentos
e os achados não foram – na falta de um termo mais ameno – condicionados a
algum tipo de objetivo político-partidário.

4 Cf. http://acervo.oglobo.globo.com/.
5 Cf. https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC

2018
140 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

O rastreamento, como denominamos acima, de pautas e posicionamentos


políticos através de jornais de grande circulação, parece constituir um meio de
acessarmos – ao longo de trinta anos – os matizes do que foi denominado de
“despolitização da política” (Pierucci, 1987, p. 43). Um jeito de “fazer política” no
“Brasil metropolitano” da década de oitenta que encontraria na “demagogia do
moralismo” um modo de mobilizar as tensões da sociedade e, com isso, atingir
eleitores e construir carreiras políticas.

2. MATERIAIS E MÉTODOS E CARACTERIZAÇÃO DA BASE DE DADOS


Ao longo de todas as etapas da pesquisa foram utilizados os aplicativos Sphinx
(Le Sphinx Développement, 1986) e o ATLAS.ti (Friese, 2014). O Sphinx foi utilizado
para acelerar a tabulação dos dados, enquanto o ATLAS.ti para recuperarmos
os trechos das diferentes matérias analisadas de modo sistemático e, também,
perfazermos algumas análises quantitativas.
Em termos da metodologia utilizada, o artigo assume a perspectiva dos
métodos mistos (Tashakkori; Teddlie, 1998; Kuckartz, 2014; Creswell, 2014), uma
vez que, a partir da codificação interpretativa das pautas políticas presentes nas
matérias – construídas através da teoria fundamentada nos dados (Strauss; Corbin,
2008; Charmaz, 2009) –, foi possível percebermos regularidades quantitativas ao
longo dos anos de publicação, tal como veremos logo abaixo.
Por meio de técnicas de webscraping6, utilizando uma combinação de scripts
em R (R Team Core, 2014) e Python7, foram obtidas 978 matérias no acervo do
jornal Folha de S. Paulo8 e 692 matérias no acervo de O Estado de S. Paulo9 que
continham, ao menos uma vez, o termo “Bolsonaro”. Em seguida, três codificadores
realizaram leituras sistemáticas das 1670 matérias dos dois jornais com o objetivo
de classificá-las em dois tipos:

a) matérias que apenas citavam Jair Bolsonaro, sem apresentar qualquer


pauta política ou relevância histórica acerca do político. Por exemplo, a lista
diariamente atualizada dos deputados que eram contra ou a favor do impe-
achment do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Foram suprimidas
algumas poucas matérias sobre pessoas com o sobrenome “Bolsonaro” que

6 Trata-se de uma técnica proeminente para a coleta automatizada de dados on-line. (Marres;
Weltevrede, 2013)
7 Cf. https://www.python.org/
8 Cf. https://acervo.folha.com.br
9 Cf. http://acervo.estadao.com.br/

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 141

não tinham relação com os objetivos da pesquisa. As matérias com os filhos


do deputado Jair Bolsonaro só foram mantidas se houvesse algum tipo de
fala ou comentário direto com argumentos de defesa acerca dos posiciona-
mentos políticos do pai;
b) matérias que apresentassem algum tipo de pauta política abertamente
defendida pelo deputado ou imputada a ele. Foram conservadas ainda as
matérias historicamente relevantes, especialmente aquelas anteriores ao
primeiro cargo eletivo ocupado pelo atual deputado.

Ao final da pré-seleção, obtivemos um total de 536 matérias (N=536) do tipo


b, distribuídas entre os dois jornais segundo o Gráfico 1 abaixo. Todas as análises
subsequentes trataram apenas das matérias do tipo b.

Gráfico 1. Porcentagem e número absoluto de matérias analisadas segundo o veículo de


comunicação.

O Gráfico 2 apresenta a frequência de publicação das matérias analisadas de


27 de outubro de 1987 a 30 de novembro de 2017.

2018
142 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Gráfico 2. Número total de matérias analisadas quanto ao jornal ao longo dos anos (1987-
2017).

As matérias analisadas apresentavam formatos diferentes (consequentemente


extensões diferenciadas), o que vai condicionar tanto a presença/ausência de
pautas políticas bem como as quantidades apresentadas. Os Gráficos 3 e 4 abaixo
apresentam, respectivamente, o percentual total de formatos analisados nos dois
Percentualdedepublicação
jornais e a frequência matérias por
dosformato nosao
formatos jornais
longoanalisados
dos trinta anos.

Carta do leitor; 68; 13% Manchete; 45; 8%

Box ou nota; 75; 14%


Reportagem; 151; 28%

Editorial; 5; 1%

Entrevista; 6; 1%

Coluna ou artigo; 186; 35%


Gráfico 3. Porcentual de matérias por formato nos jornais analisados.

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 143

35

30

25

20

15

10

0
19
19 7
19 8
19 9
19 0
19 1
19 2
19 3

20 0
20 1
20 2
20
20 4
20 5
20 6
19 4
19 5
19 6
19 7
19 8
20 9
20 0
20 1
20 2
20 3
20 4
20 5
20
20 7
20 8
20
8
8
8
9
9
9
9
9
9
9
9
9
9

1
1
1
13
1
1
1
17
0
0
0
0
0
0
06
0
0
09
Manchete Reportagem Entrevista Coluna do artigo Editorial Carta do leitor

Gráfico 4. Número total de matérias analisadas segundo o formato ao logo dos anos
(1987-2017).

3. CONSTRUÇÃO DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE


Uma vez caracterizados os dados, vejamos como foram construídas as catego-
rias de análise que buscaram descrever as pautas políticas associadas ao deputado
Jair Bolsonaro. Antes, porém, precisamos fazer algumas breves ressalvas. Enfati-
zamos o termo “associado” pois foram contabilizadas toda e qualquer pauta política
professada ou atribuída a Jair Bolsonaro10. Alertamos para este fato visto que o
que nos interessou metodologicamente foi identificar a probabilidade de algum
leitor em potencial encontrar, ao longo de 30 anos de matérias de diferentes jornais
e em diversos formatos, determinada pauta política que estivesse relacionada ao
deputado. É bastante provável que a leitura de certas pautas políticas venha a
desencadear algum tipo de tomada de posição, mas, sobre este aspecto, o presente
esforço não teria como fazer nenhum tipo de conjectura.
Tratou-se, antes de tudo, de um exercício sociológico de conseguir imputar
algum tipo de sistematicidade as notícias publicadas ao longo de três décadas e que,
a priori, se as considerarmos individualmente, não tinham esse objetivo. Com isso
queremos rejeitar, logo de saída, a pressuposição de uma coerência ou lógica interna

10 Ou seja, consideramos de maneira similar, independentemente se a pauta política havia sido


proferida pelo próprio deputado ou atribuída ao mesmo pelo(s) autor(es) das diferentes matérias
analisadas – ou mesmo por um adversário político.

2018
144 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

aos dados analisados11. Além disso, por meio da teoria fundamentada tentamos
superar a suposição subjacente às pesquisas que utilizam a análise de conteúdo,
a de que se um evento ocorre com mais frequência ele é, necessariamente, mais
importante do que um evento que ocorre raramente (Rose, 2001, p. 66).
Por fim, decidimos por não utilizar a propagada e defendida metodologia da
análise de valência (MAV) (Feres Júnior, 2016) por concordar que “a atribuição do
caráter positivo, negativo ou neutro carrega uma indiscutível carga de subjetividade”
(Miguel, 2015, p. 172). Ademais, tais metodologias negligenciam aspectos funda-
mentalmente hermenêuticos subjacentes à interpretação de matérias e terminam
por confundir “a intenção do jornal ou do jornalista, a apreciação pelos agentes
políticos, o impacto na recepção e a codificação pela equipe de pesquisa” (Miguel,
2015, p. 174). Ou seja, o ato de classificar as matérias em “contrárias”, “a favor”
ou “neutras” em relação ao deputado empobreceria as possibilidades analíticas
contidas na caracterização da imagem pública baseada nas pautas políticas que
o deputado defendeu.
Dito isso, passemos aos aspectos operacionais. Nós listamos as 536 matérias
em uma planilha eletrônica. Em uma segunda coluna, atribuímos números alea-
tórios a cada uma delas. Em seguida, ordenamos as matérias do menor valor ao
maior. Com isso foi possível tornar as matérias cronologicamente aleatórias, além
dos formatos e jornais. Em seguida, criamos cotas de 25 matérias que eram lidas
e discutidas diariamente. Todos os autores liam e discutiam as mesmas matérias
com o objetivo de detectar similaridades, diferenças, frequências, sequências,
correspondências e causalidades12 (Hatch, 2010, p. 155).
Ao longo de três rodadas de leituras percebemos a formação de alguns clusters
de pautas políticas que foram rotuladas e operacionalmente definidas. Nas três
rodadas seguintes os agrupamentos de pautas foram testados ao mesmo tempo
em que estávamos atentos a novas pautas que não se encaixavam nas que foram
criadas. Ao final da oitava rodada (200 matérias) nós decidimos que a saturação
havia sido alcançada, isto é, as leituras não despertavam novos insights, nem
revelavam novas categorias acerca das pautas políticas (Strauss; Corbin, 2008;
Charmaz, 2009).

11 Segundo Quentin Skinner, algumas vezes os pesquisadores supõem, mediante afirmações


dispersas na obra de determinado autor, a existência de uma doutrina que seria professada por
este (mitologia das doutrinas). Outras vezes, os pesquisadores imaginam que sua tarefa seria
encontrar, mediante uma exegese mítica, a coerência ausente no conjunto da obra de deter-
minado autor (mitologia da coerência) (Skinner, 2002, p. 24). Embora estejamos tratando de
matérias jornalísticas e não de obras eruditas, consideramos importante lembrar este aspecto
hermenêutico.
12 Trata-se aqui dos métodos comparativos constantes descritos por Glaser; Strauss (1966).

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 145

Ao final desses procedimentos, nós obtivemos as seguintes categorias repre-


sentadas na Imagem 1 abaixo através de uma visão de rede (network view) no
ATLAS.ti.
PAUTAPOL::ANTI-DH~
PAUTAPOL::OUTROS

is part of
PAUTAPOL::Direitos dos Militares~ is part of
PAUTAPOL::Combate a
is part of is part of corrupção~

PAUTAPOL:: is part of
is part of PAUTAPOL::Apologia a Tortura e
uso da Violência~
is part of
PAUTAPOL::Apologia a Ditadura
e ao Golpe Militar~ is part of is part of is part of

PAUTAPOL::Apologia da Pena de
morte~

PAUTAPOL::Política Externa~ PAUTAPOL::Campanha à


PAUTAPOL::Militarização da
presidência~
Sociedade~

Imagem 1. Visão de rede (network view) no ATLAS.ti.

As categorias acima foram definidas segundo a tabela 1 abaixo:

Tabela 1
PAUTAPOL: ANTI-DH Todos os trechos de matérias que continham temáticas
Anti-LGBT, contra refugiados, acusações de pedofilia,
racismo contra quilombolas e machismo, contra a liberdade
de expressão, ataques diretos aos defensores dos direitos
humanos.
PAUTAPOL: Anti- Todos os trechos de matérias contra demarcação de Terras
Povos e Comunidades Indígenas (por exemplo, sobre a polêmica em torno do
Tradicionais Nióbio).
PAUTAPOL: Apologia a Todos os trechos de matérias que defendiam o uso de
Tortura e uso da Violência tortura ou alguma apologia à tortura. Matérias com
incitação à violência, defesa da repressão a manifestantes.
Entram nesta categoria todas as vezes em que o deputado
disse que “vai dar surra”, “bater” ou “quebrar a cara” de
alguém. Entraram nesta categoria as falas sobre tortura
relacionadas a Guerrilha do Araguaia e, também, o pedido
de fuzilamento do então presidente Fernando Henrique
Cardoso.
PAUTAPOL: Apologia da Todos os trechos de matérias que defendiam a pena de
Pena de morte morte.
Continua...

2018
146 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Tabela 1. Continuação...
PAUTAPOL: Apologia Todos os trechos de matérias em defesa do golpe militar e/
Ditatura e Golpe Militarou fechamento do Congresso. Todos os trechos com defesa
e/ou apologia à intervenção militar e/ou à ditadura militar.
Entraram também trechos com defesa da censura e toda
e qualquer menção que exaltasse o regime militar. Foram
codificados, por exemplo, os trechos das matérias que
descreviam a homenagem do deputado ao coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra
PAUTAPOL: Campanha à Todos os trechos de matérias sobre a campanha para a
presidência presidência em 2018. Por exemplo, matérias sobre o uso de
redes sociais para a campanha.
PAUTAPOL: Combate a Todos os trechos de matérias pedindo o combate e/ou
corrupção denunciando corrupção.
PAUTAPOL: Direitos dos Todos os trechos de matérias com reivindicações salariais
Militares para os militares. Trechos que tratavam do pedido de
isonomia salarial de generais ou sobre a defesa dos
direitos/interesses dos militares etc.
PAUTAPOL: Militarização Todos os trechos de matérias sobre a legalização do porte
da Sociedade de arma e a defesa da militarização das escolas. Entram
nessa categoria os trechos sobre a defesa do uso de armas
de fogo pela Guarda Municipal e, também, questões sobre
segurança pública e o estatuto do desarmamento.
PAUTAPOL: Política Todos os trechos de matérias que relatavam apoio,
Externa reverência ou acusação a governos exteriores ao Brasil. Por
exemplo, a defesa da ditadura de Alberto Fujimori no Peru,
apoio a Donald Trump, etc..
PAUTAPOL: OUTROS Categoria residual usada para trechos que os codificadores
consideraram relevantes e que não se encaixavam nas
categorias acima. Posteriormente, esta categoria poderia
ser desmembrada e recategorizada.

Uma vez construídas as categorias passamos à etapa de codificação. Cada um


dos autores do artigo recebeu cotas aleatórias (dos dois jornais e diversos anos de
publicação) das 536 matérias. Em seguida, elas foram lidas e codificadas dentro
do aplicativo ATLAS.ti. Era comum que a mesma matéria apresentasse muitas
pautas políticas. Sendo assim, os gráficos sobre a frequência de pautas (Gráficos
5 e 6) não apresentam somente a presença/ausência, mas a quantidade de vezes
em que determinada pauta foi mencionada na matéria.
Foram feitas duas rodadas (no início e no meio da etapa de codificação) para
verificar o grau de confiabilidade entre os codificadores. O cálculo da confiabilidade
foi feito com duas amostras probabilísticas de todo o universo das matérias do
estudo. Uma vez obtida a quantidade de amostras necessárias e quais as matérias

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 147

selecionadas para compor a amostra, elas foram codificadas por todos os codifica-
dores através do ATLAS.ti. As unidades hermenêuticas13 foram unificadas (merge)
e os dados enviados para a página Coding Analysis Toolkit (CAT)14. Foram utili-
zadas as comparações padrão (standard comparisons) e o parâmetro escolhido
foi o Kappa de Fleiss (Fleiss, 1971). Os valores obtidos para as categorias, nas duas
testagens variaram de 0,83 a 0,7215, indicando um grau aceitável de confiabilidade
entre os codificadores (K rippendorff, 2004).

4. ANÁLISES E RESULTADOS

4.1. SOCIOGÊNESE DA IMAGEM PÚBLICA


A sociogênese da imagem pública – ou seja, a primeira vez em que “possíveis
leitores vão saber da existência” de Jair Bolsonaro por meio dos jornais – é algo
extremamente relevante para atentarmos como a memória social e, por conseguinte,
a imagem pública, vai sendo instilada por capilaridade ao longo de um lento e
imprevisível processo histórico mediado pelas notícias de jornal16. Sabemos que
a leitura e os comentários sobre fatos descritos nos jornais ocupam uma parte
significativa do conteúdo da vida nas grandes cidades. Além disso, as “percepções
reproduzidas ao longo do tempo” se conectam ao “efeito cumulativo do próprio
jornalismo e de outros aparelhos ideológicos” (Miguel, 2015, p. 174). Por fim, temos
uma imbricada caixa de ressonância, entre memória, cultura e sociedade que se
articulam na elaboração da imagem pública de todo e qualquer agente político.
A primeira matéria sobre Jair Bolsonaro no jornal O Estado de S. Paulo ocorreu
em 27 de outubro de 1987 e intitulava-se “Exército garante: os capitães não falaram”
(O Estado de S. Paulo, 27 out. 1987, p.5). A matéria tratava do plano de colocação
de bombas por dois capitães da Escola de Aperfeiçoamento do Exército – entre
eles, o atual deputado Jair Bolsonaro – em alguns quartéis, caso o governo federal
não desse aumento de soldo aos militares. Segundo a reportagem, a operação foi
batizada de “beco sem saída”. Esta matéria foi consequência de uma reportagem

13 Arquivo básico do ATLAS.ti


14 Cf. http://cat.texifter.com/default.aspx acesado em 03 jan. 2017.
15 O valor do Kappa pode variar de -1 a +1. Quanto maior o valor do Kappa (mais próximo de +1),
mais forte a concordância. Quando Kappa = 1, nós temos a concordância perfeita (que, na prática,
seria impossível); Kappa = 0, a concordância é aquela totalmente atribuída ao acaso; Kappa <
0, a concordância é mais fraca que o esperado pelo acaso. Na pesquisa qualitativa em ciências
sociais, valores acima de 0,7 já podem ser considerados aceitáveis.
16 “Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que parece toda pessoal, reflexões toma-
das de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem tão bem à nossa maneira
de ver que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos nós” (Halbwachs,
2004, p. 64).

2018
148 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

da revista Veja (Veja, 28 out. 1987, p. 56-57) que, embora esteja publicada com a
data de 28 de outubro de 1987, já estava circulando e sendo debatida pela imprensa
dois dias antes, em 26 daquele mesmo mês e ano. Todas as matérias publicadas
nos anos seguintes abordam o desenrolar dessa história.
Na Folha de S. Paulo (vide Gráfico 2), nenhuma matéria foi publicada sobre Jair
Bolsonaro em seu primeiro cargo eletivo de vereador do Rio de janeiro (1989-1991).
A primeira matéria só vai ocorrer em 18 de abril de 1992, durante seu mandato
como Deputado Federal (1991 a 1995) pelo Rio de Janeiro, cuja posse ocorreu
em 1.º de fevereiro de 1991. A matéria trata de uma pauta política recorrente do
deputado, tal como veremos adiante, ao longo de todas as notícias analisadas: a
questão da defesa dos interesses dos militares por meio de isonomia e aumentos
salariais (Folha de S. Paulo, 18 abr. 1992, p.5). A segunda matéria publicada na
Folha de S. Paulo trata do insulto proferido pelo deputado contra o então Ministro
do Exército Carlos Tinoco (Folha de S. Paulo, 01 mai. 1992, p.6).
Nas reportagens analisadas foi possível encontrar muitos episódios de insultos
do deputado Jair Bolsonaro contra uma diversidade de pessoas:

O deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ) chamou o cardeal arcebispo de São Paulo


d. Paulo Evaristo Arns, de ‘desocupado’, ‘vagabundo’ e ‘megapicareta’ duran-
te discurso no plenário da Câmara. Procurado pela Folha, d. Paulo disse que
não comentaria as declarações feitas em Brasília pelo deputado Jair Bolsonaro.
(Folha de S. Paulo, 20 mar.1998, p.4).

Bolsonaro reagiu: ‘Vossa excelência tem uma tremenda cara de pau’. Aplaudi-
do pelos funcionários, emendou: ‘todos os funcionários gostariam de ter um
aumento apenas aparente’. Bresser ficou impassível. Respondeu às perguntas
de outros dois deputados e ignorou Bolsonaro. Irritado Bolsonaro o acusou de
‘sem vergonha’. Mais uma vez, aplaudido, repetiu cinco vezes a acusação e deixou
a sala. (Folha de S. Paulo, 24 mar. 1995, p.4).

‘Não estou preocupado com a reação do presidente. Ele foi um traidor mes-
mo. E repito isso quantas vezes precisar’, foi o complemento de Jair Bolsonaro,
acompanhando sua precaução de mandar a Fernando Henrique um fax com as
declarações. (Folha de S. Paulo, 13 set. 1996, p.5).

O deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ) chamou o ministro da Defesa, Geraldo


Quintão, de ‘canalha’, ‘patife’, ‘imoral’ e ‘vagabundo’ ontem durante discurso

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 149

no plenário da Câmara. O que motivou o discurso foi a medida provisória que


concedeu reajuste salarial aos militares. (Folha de S. Paulo, 03 ago. 2001, p. A6).

Logo que Dirceu começou a falar brotou o tumulto: ele dizia defender a liberda-
de de imprensa porque foi vítima da censura e da ditadura. ‘Terrorista!’, gritou
quatro vezes Jair Bolsonaro. (O Estado de S. Paulo, 23 jun. 2005, p. A8).

‘Todo mundo apenas fala do gay, já reparou? Do homossexual ativo ninguém fala,
apenas dos boiolas. Senhor presidente (Severino), temos de começar a desmas-
carar este governo: se a corrupção existe nesta Casa, quem a pratica, o homos-
sexual ativo, é o presidente Lula’, disse. ‘Temos de começar um movimento para
desbancar o presidente da República. Não queremos homossexual passivo nem
ativo neste governo’. (O Estado de S. Paulo, 24 jun. 2005, p. A9).

As matérias sobre insultos e/ou agressões sempre acarretaram uma maior


frequência de notícias nos jornais além de, consequentemente, uma maior visibi-
lidade de Jair Bolsonaro em relação aos leitores. Ao longo dos 30 anos de matérias,
as agressões verbais compõem uma parte considerável da imagem pública do
deputado. Geralmente, após a publicação da matéria noticiando o insulto, surgem
cartas de leitores, colunas de opinião e reportagens sobre o “andamento da queixa
e/ou do processo”. Deste modo, as polêmicas desencadeadas por insultos terminam
por alimentar a visibilidade, parecendo forjar uma espécie de “estilo” que se tornou
uma das marcas mais características da imagem pública do deputado.
Se os insultos, a defesa da ditadura e as reações contra os direitos humanos
parecem ocupar uma parte significativa da imagem pública do deputado Jair
Bolsonaro, caberia então indagar: e se pudéssemos sair de uma perspectiva
impressionista das matérias em direção a uma análise mais sistemática? Como
poderíamos expressar a continuidade e/ou “coerência” dos posicionamentos
morais e/ou das pautas políticas do deputado ao longo de trinta anos? Vejamos
como tentamos responder a tais perguntas.

4.2. TRINTA ANOS DE PAUTAS POLÍTICAS


Ao longo de trinta anos, encontramos no total de matérias analisadas a ocor-
rência das seguintes pautas políticas:

2018
150 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Quantidade total de pautas políticas


codificadas nas matérias analisadas
250

200 191

150
141 114
100
70 73
50 30 41
12 14 15 17
0

PAUTAPOL::ANTI-DH

PAUTAPOL::OUTROS
PAUTAPOL::Política Externa

PAUTAPOL::Combate a corrupção
PAUTAPOL::Militarização da Sociedade

PAUTAPOL::Apologia da Pena de Morte

PAUTAPOL::Anti-Povos e Comunidades Tradicionais

PAUTAPOL::Campanha à presidência

PAUTAPOL::Apologia a Tortura e uso da violência

PAUTAPOL::Direitos dos Militares

PAUTAPOL::Apologia a Ditadura e Golpe Militar

Gráfico 5. Quantidade total de pautas políticas codificadas nas matérias analisadas.

As pautas políticas contra os direitos humanos, a apologia à ditadura e ao


golpe militar, a defesa dos direitos dos militares e a apologia à tortura e à violência
ocupam a maior frequência de ocorrências. A categoria residual “Outros” (desta-
cada em amarelo) engloba todos os posicionamentos do deputado em votações no
Congresso, além de opiniões sobre os mais variados assuntos, como a concordância
com frases fascistas do ditador Benito Mussolini (Folha de S. Paulo, 29 jul. 2013,
p. E2), até colunas de humor. Por este motivo ela teve muitas ocorrências.
Se, além disso, analisarmos a frequência das pautas ao longo dos 30 anos, é
possível percebermos regularidades nos posicionamentos do deputado. Quando
determinados eventos passam a ser vistos em termos de sua – ainda que breve
– duração , eles se prestam a revelar dinâmicas que, no calor do curto prazo,

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 151

escapam aos olhos dos espectadores históricos. O Gráfico 6, abaixo, nos revela
algumas dinâmicas interessantes que, obviamente, poderiam vir a ser cotejadas
com o trabalho parlamentar do deputado a fim de comprovarmos ou não sua
correspondência. Nas análises que se seguem, nós optamos por discorrer sobre
as quatro pautas políticas de ocorrência mais frequente, pois eram justamente as
mais relevantes para a configuração da imagem pública de Jair Bolsonaro.
Frequência das pautas políticas ao longo dos anos (1987-2017)

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0
08

PAUTAPOL::ANTI-DH PAUTAPOL::Apologia a Ditadura e Golpe Militar

PAUTAPOL::Apologia a Tortura e uso da Violência PAUTAPOL::Direitos dos Militares

Gráfico 6. Frequência das pautas políticas ao longo dos anos (1987-2017).

4.2.1. DIREITOS DOS MILITARES


A pauta dos direitos dos militares (cf. Gráfico 6 acima, em lilás) nunca deixou
de estar presente nos trinta anos de matérias sobre o deputado.

Os militares podem obter um aumento de até 160%, em seus soldos, caso tenha
parecer positivo o requerimento feito no dia 24 ao Estado-Maior do Exército pelo
capitão Jair Bolsonaro, vereador pelo município do Rio. No requerimento, o capi-
tão pede a revisão do decreto de 9 de janeiro, que extinguiu a isonomia salarial
com o Superior Tribunal Militar (STM). (O Estado de S. Paulo, 3 mar. 1989, p. 6).

Jair Bolsonaro (PP-RJ) esclarece que, em audiência com o ministro Nelson Jobim
(Defesa), manifestou-se contra a desvinculação dos salários de militares da ativa
das aposentadorias. (Folha de S. Paulo, 19 abr. 2008, p. A4).

2018
152 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Entretanto, podemos notar que a frequência dela é bem maior no início da


carreira do que nos anos seguintes. Por outro lado, a defesa dos direitos dos mili-
tares é numericamente inferior às outras três pautas. Podemos interpretar, segundo
as matérias analisadas, que os direitos dos militares foram apenas secundaria-
mente um componente da imagem pública do deputado nas páginas dos jornais.

Além disso, a defesa dos militares – desde a emblemática matéria da revista


Veja – sempre esteve acompanhada de atos de subversão da ordem e desrespeito à
hierarquia, comportamentos que costumam ser repudiados dentro da vida militar.
Até mesmo, como vimos acima, ofensas a Ministros da Defesa e do Exército já
foram noticiadas. Um exemplo expressivo de tais atitudes foi noticiado em 16 de
agosto de 1992, quando o deputado estacionou seu carro na entrada da Academia
Militar das Agulhas Negras, impedindo a entrada do então ministro do exército
Carlos Tinoco.

Imagem 2. Matéria de 1992, quando Jair Bolsonaro estacionou seu carro na entrada da
Academia Militar das Agulhas Negras, impedindo a entrada do então ministro do exército
Carlos Tinoco (Folha de S. Paulo, 16 ago. 1992, p. 7).

Obviamente, apenas um estudo sobre as percepções dos militares poderia


nos indicar, com uma margem de segurança, qual sua opinião acerca do deputado
Jair Bolsonaro. O que podemos afirmar é que, em relação às notícias analisadas,

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 153

paralelamente à pauta de “defesa dos direitos dos militares”, sempre estiveram


presentes atos de insubordinação e desrespeito.

4.2.2. APOLOGIA À TORTURA E USO DA VIOLÊNCIA


A apologia à tortura e ao uso da violência (cf. Gráfico 6, em vermelho) constitui
uma marca indelével da imagem pública do deputado Jair Bolsonaro. Trata-se
de uma pauta que o próprio Jair Bolsonaro reconhece como sendo uma das suas
bandeiras que mais atrai votos. Em matérias mais recentes, que já tratam o depu-
tado como candidato à presidência, encontraremos uma entrevista que melhor
exemplifica as categorias que construímos para este artigo:

P: E os métodos de violência para obter informação?


R: Tem de ter métodos enérgicos. Eu proponho, o Congresso aprova. Ninguém
é candidato para ser ditador.
P: O que é método enérgico?
R: Tratar o elemento com a devida energia.
P: Bater?
R: Qual o limite entre bater e tratar com energia? Não tem limite, pô. O cara
senta ali, faz a pergunta, ele responde. Se não responde, bota na solitária. Fica
uma semana, duas semanas, três meses, quatro meses... Problema dele.
P: Com comida?
R: Dá comidinha para ele, dá. Dá um negocinho para ele tomar lá. Um pãozinho,
uma água gelada, um brochante na Coca-Cola. Tá tranquilo.
P: O que é brochante?
R: Calmante, um ‘Boa noite, Cinderela’.
P: Acha construtivo adotar um discurso violento?
R: Você não combate violência com amor. Combate com porrada. Pô. Se bandido
tem pistola, [a gente] tem que ter fuzil. (Folha de S. Paulo, 13 mar. 2017, p. A16).

Os exemplos são tão diversos e numerosos que seria impossível relatar todos
eles no espaço deste artigo. Seguem abaixo alguns exemplos icônicos:

Bolsonaro defende a atuação da Polícia Militar do Pará no massacre de sem-terra


em Eldorado do Carajás, em abril de 96. No episódio morreram 19 sem-terra,
classificados pelo deputado como ‘desocupados que estavam desrespeitando a
lei’. Nenhum PM morreu (Folha de S. Paulo, 13 mar. 1998, p. 10).

2018
154 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

O deputado federal Jair Bolsonaro (PPB-RJ) defendeu ontem a pena de morte


para os cinco chilenos, dois argentinos e dois canadenses condenados no Bra-
sil pelo sequestro do empresário Abílio Diniz. Antes da execução da pena, ele
ressalta que os ‘sequestradores devem ser torturados para revelar os nomes de
todos os seus cúmplices’. [...] ‘Esses vagabundos deveriam estar todos mortos,
mas antes devem ser torturados para contar quem são os integrantes de suas
quadrilhas’, pregou Bolsonaro (O Estado de S. Paulo, 18 abr. 1998, p. 24).

Entre os anos 2000 e 2001, a pauta de apologia à tortura e uso da violência


foi bastante noticiada. Isso ocorreu por conta de matérias que trataram de uma
declaração de Jair Bolsonaro sobre um possível fuzilamento do então presidente
Fernando Henrique Cardoso. O fato ocorreu durante um almoço em desagravo ao
ex-comandante da aeronáutica Walter Bräuer no Rio de Janeiro (Folha de S. Paulo,
6 jan. 2000, p. 6). Dentre as inúmeras publicações que tratavam do processo de
quebra de decoro no Congresso, um editorial de O Estado de S. Paulo de 08 de
janeiro de 2000, intitulado “Dejetos da Democracia”, foi o mais contundente:

Sarcasmos à parte, os militares brasileiros não merecem essa desmoralizante


‘representação’ congressual. Até porque esse irresponsável congressista, de fato,
não representa ninguém, a não ser, talvez, alguns adeptos de um folclórico e
anacrônico radicalismo de direita. É claro que ele jamais poderá falar pelos
militares. O que não o impede de confundir os desavisados e dar a impressão
de que exerce no Parlamento esse tipo de representação (O Estado de S. Paulo,
8 jan. 2000, p. A3).

Uma análise dessa categoria parece revelar que o uso da força parece ser o
único meio de colocar ordem em uma sociedade em uma suposta decadência e/
ou descontrole. Dentro desse raciocínio, o retorno da ordem social advém da
disciplina, e o único meio de implantar a disciplina é mediante a violência. Essa
interpretação vai desde a situação doméstica, passando pelo tratamento aos que
se opuseram à ditadura, até o combate à corrupção.

‘Naquela época, existia respeito. Os filhos chamavam o pai de senhor. A gente se


borrava de medo, porque todo mundo apanhava em casa. O irmão mais velho, o
Guido, era o disciplinador, o capataz. Pegava o fio de ferro e dava lambada nos
irmãos. Sem problema nenhum, ninguém sofreu bullying. Minha mãe, basica-
mente, era aquela chocadeira: um filho atrás do outro. Foram três homens e três

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 155

mulheres.’ [...] ‘Teve gente torturada, sim. Nós não negamos. Você só pode obter
informações dessa maneira, é a regra do jogo. O pessoal da esquerda fazia bes-
teira —carro-bomba, sequestro – e depois se vitimizava. Se o cara matou colega
seu, é do ser humano pegar para arrebentar. Hoje, com a cabeça que tenho, faria
muito melhor. Tem que eliminar. Guerra é guerra’ (Folha de S. Paulo, 16 mai.
2011, Folhateen, p. 10-11).

O deputado nega que tenha sido favorável a ditaduras, ‘muito menos’ à tortura,
embora, contraditoriamente, faça apologia do regime militar, em que a prática
está fartamente documentada. ‘Eu defendo a verdade sobre o período. Você
tinha direito de ir e vir. Não tinha essa violência que está aí fora. E com essa de
tortura que você fala aí, olha, é tática de qualquer pessoa aprisionada falar que
foi maltratada para buscar compaixão’ (Folha de S. Paulo, 9 jun. 2016, p. A10).

As polêmicas nas redes sociais, onde combate ‘o politicamente correto’, fizeram


o deputado passar a falar para fora de seus clientes tradicionais do meio militar.
Bolsonaro deixou de ser apenas um capitão do Exército para se tornar também
o arquétipo do tio conservador que toda família do interior do País abriga. Quer
ordem na escola, ordem na família, quer ordem, enfim. ‘Há excesso de direitos
no Brasil’, diz (O Estado de S. Paulo, 2 abr. 2017, p. A8).

A defesa do uso da violência como forma de exercício legítimo da política jamais


poderia se esgotar naquilo que é dito ou atribuído a um único e singular agente
político. Se considerarmos que todo discurso político assume sempre algum tipo
de ontologia da própria sociedade17, a suposição de uma aderência de potenciais
leitores e eleitores a uma pauta política dessa natureza deve ser entendida na sua
relação com a sociedade como um todo. Em termos sociológicos, o posicionamento
político de apologia à violência associado à imagem pública do deputado só é
possível de ser enunciado porque encontra reverberação na estrutura específica
de relações de longo prazo de nossa sociedade.
Assim, em termos comparativos, considerando que o “recurso desenfreado
a atos de violência como o único veículo realista e decisivo de política” de Adolf
Hitler, só foi possível de ser entendido por conta da “expansão de modelos mili-

17 “Conversas e textos políticos envolvem assumir, negociar ou impor ontologias do discurso - re-
presentações de pessoas, objetos, lugares etc., que existem, e as relações entre eles, isto é, quem
faz (fez, pode fazer, ou vai fazer) o quê para quem, quando e onde, quem ou o que causou o quê,
etc.” (Chilton, 2004, p. 203).

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156 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

tares em setores da classe média alemã” (Elias, 1997, p. 27). E, além disso, devido
a relação que tais modelos guardam com processos históricos de longa duração
da constituição da Alemanha. Da mesma maneira e guardando as devidas parti-
cularidades: cada ato de linguagem em apologia ao uso violência proferido pelo
deputado só pode vir a ser devidamente interpretado se considerarmos como os
limites – ou melhor dizendo, a falta de limites – no uso da violência estiveram no
centro da estrutura de organização do poder da sociedade brasileira (Adorno, 1995).

4.2.3. CRÍTICA AOS DIREITOS HUMANOS


De todas as pautas políticas analisadas, a que mais parece constituir a imagem
pública do deputado Jair Bolsonaro é aquela contrária aos direitos humanos. A
presença desta pauta é bastante tímida nos primeiros anos das matérias analisadas
e teve uma maior ocorrência a partir de 2011. Isto parece ter ocorrido devido ao
papel que tais temas adquiriram nos governos do Partido dos Trabalhadores, em
especial no mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). Diante dos
eventos, projetos de lei, planos nacionais, dentre outros, sempre sucediam decla-
rações do deputado nos diversos canais de comunicação disponíveis. Geralmente,
por conta do seu claro posicionamento contrário a tais assuntos e, em especial,
aos temas vinculados aos LGBT, as declarações resultavam em polêmicas que iam
parar nas páginas dos jornais.
Os posicionamentos contrários aos direitos LGBT constituem uma grande
plataforma política e eleitoral de Jair Bolsonaro. Recorrendo ao discurso em defesa
da família tradicional – enquanto uma constituição da união entre o homem e a
mulher –, o deputado Jair Bolsonaro toca numa questão sensível para grande parte
da sociedade brasileira. Nesse sentido, ele ganha popularidade por externar esses
valores morais para dentro da política. Tais valores sempre estiveram presentes
no cotidiano, mas se apresentavam de maneira sutil e/ou mascarados. O depu-
tado rompe com a lógica do politicamente correto embutido nessas concepções e
delineia aspectos específicos da sociedade brasileira como meio de promoção de
sua carreira política.
São inúmeros os exemplos dos posicionamentos públicos de Bolsonaro contra
os direitos humanos e, em especial, contra os LGBT:

Na terça-feira, o deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ), capitão da reserva do Exérci-


to, colocou a foto de FHC segurando a bandeira gay na porta de seu gabinete, com
a frase ‘Eu já sabia...’. Questionado, Bolsonaro não quis revelar como termina
a frase. ‘O objetivo é tirar sarro’, disse, sem conter a risada. ‘Não vou combater

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 157

nem discriminar, mas, se eu ver (sic) dois homens se beijando na rua, vou bater’
(Folha de S. Paulo, 19 mai. 2002, p. C9).

À Rádio Tupi, do Rio, Bolsonaro voltou a dizer ontem que não é racista (ele já
havia dito que a mulher é afrodescendente e o sogro, negão), mas ampliou os
ataques aos gays. Para ele, é preferível uma criança morar na rua a ser adotada
por um casal gay (Folha de S. Paulo, 01 abr. 2011, P. C4).

‘Nenhum pai tem orgulho de ter um filho gay’, diz o deputado a Fry (A Folha de
S. Paulo, 7 jun. 2014, p. E16).

Agora criaram a Frente Gay na Câmara. O que esse pessoal tem para oferecer?
Casamento gay? Adoção de Filhos? Dizer pra vocês, jovens, que se tiverem um
filho gay é legal, vai ser o orgulho da família? Esse pessoal não tem nada a ofe-
recer (Folha de S. Paulo, 31 mar. 2011, p. C11).

Em 2011 ocorreram 91 matérias com algum tipo de pauta política sobre o


deputado Jair Bolsonaro (cf. Gráfico 2). Ao longo dessas matérias, nós tivemos 78
ocorrências de pautas codificadas com críticas aos direitos humanos (cf. Gráfico 6
acima, em azul). Esse grande número de reportagens ocorreu por dois motivos. O
primeiro deles foi por conta das declarações do deputado ao participar do programa
humorístico de televisão “Custe o que Custar – CQC” da TV Bandeirantes, em 28
de março de 201118. No mês de abril de 2011 foram publicadas matérias sobre o
assunto que ocuparam páginas inteiras com entrevistas e reações de personali-
dades e políticos.

Imagem 3. Folha de S. Paulo, 30 mar. 2011, p. C1.

18 Para um trecho do programa cf. https://www.youtube.com/watch?v=J8BmyNh03FA acessado


em 10 de fev. 2018.

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158 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Imagem 4. Folha de S. Paulo, 31 mar. 2011, p. C11.

Imagem 5. O Estado de S. Paulo, 30 mar. 2011, p. A1 e A8.

Em seguida, em maio de 2011, uma nova onda de reportagens por conta das
reações do deputado ao material do “Escola sem Homofobia”, elaborado pelo Minis-
tério da Educação para formação dos professores acerca de questões de gênero
e sexualidade19. As notícias gravitavam em torno de um panfleto elaborado pelo
deputado com críticas ao “Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos

19 “O Projeto Escola sem Homofobia visa contribuir para a implementação e a efetivação de ações
que promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos e da
respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de gênero no âmbito escolar brasileiro”.

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 159

Humanos de LGBT”. Uma reportagem de página inteira, na Folha e S. Paulo,


juntamente com uma entrevista com o deputado descreveu em detalhes o ocorrido.

Jair Bolsonaro mandou imprimir 50 mil cópias de um panfleto contra o plano


nacional que defende os direitos dos gays. O deputado federal eleito pelo PP
do Rio está distribuindo o material em residências e escolas do estado. Um dos
textos do impresso chega a associar o homossexualismo [sic] à pedofilia. (...)
‘Apresento alguns dos 180 itens deste que chamo Plano Nacional da Vergonha,
onde meninos e meninas, alunos do 1º Grau, serão emboscados por grupos de
homossexuais fundamentalistas, levando aos nossos inocentes estudantes a men-
sagem de que ser gay ou lésbica é motivo de orgulho para a família brasileira’.
Bolsonaro leva panfleto antigay a escolas (Folha de S. Paulo, 11 mai. 2011, p. C5).

Em maio de 2011 também ocorreu, por decisão unânime do Supremo Tribunal


Federal, o reconhecimento legal da união homoafetiva. Em reportagem ao jornal
O Estado de S. Paulo o deputado afirmou:

‘Eu não quero que o meu filho menor vá brincar com o filho adotivo de dois
homossexuais. Não deixo. Não quero que ele aprenda com o filho do vizinho
que a mamãe usa barba, que isso é normal. Não vou deixá-lo nessas companhias
porque o futuro do meu filho também será homossexual’, disse o deputado. ‘Vão
dizer que estou discriminando e estou, sim’(...) ‘Se ser homofóbico é defender as
crianças nas escolas, defender a família e a palavra de Deus, pode continuar me
chamando de homofóbico com muito prazer, pode me dar o diploma de homo-
fóbico’, declarou (O Estado de S. Paulo, 7 mai. 2011, p. A21).

Em dezembro de 2014, uma nova polêmica. Desta vez por conta de um pronun-
ciamento proferido pelo deputado na Câmara dos Deputados, onde repetiu uma
afirmação feita em 2003, de que não estupraria a Deputada Maria do Rosário
(PT-RS) porque “ela não mereceria” (Folha de S. Paulo, 11 dez. 2014, p. A12) (vide
Imagem 6 a seguir).

Disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2015/11/kit-gay-
-escola-sem-homofobia-mec1.pdf acessado em 12 fev. 2018.

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160 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Imagem 6. Folha de S. Paulo, 14 dez. 2014, Caderno Folha 10, p. 2.

As matérias analisadas indicam a existência de uma nítida retroalimentação


entre as pautas críticas aos direitos humanos e o maior número de matérias com as
repercussões do posicionamento político do deputado. Em outros termos, quanto
maior o avanço da agenda política dos direitos humanos, mais notícias surgem
com as repercussões das declarações contrárias a esta mesma agenda. Deste
modo, parece haver um elo curioso e perverso entre determinadas agendas polí-
ticas, declarações polêmicas e a visibilidade midiática do deputado. Ao canalizar
os anseios sociais contrários às políticas de direitos humanos (atacando LGBT’s,
quilombolas, mulheres etc.) e, também, fomentando o extermínio de criminosos,
o deputado vai ao encontro de uma parcela significativa da população:

Quero parabenizar o deputado Bolsonaro pela iniciativa de mostrar o lado das


pessoas que prezam a família e a moral, tão esquecidas nesta sociedade que
valoriza as aberrações que afrontam os que defendem a decência. MARCELO
MARTINS (Mauí, SP) (Folha de S. Paulo (Painel do Leitor), 12 mai. 2011, p. A3).

O Brasil precisa de gente como esse deputado para se contrapor às ideias libe-
rais vendidas pela mídia. Carlos Garibaldo, via Folha.com. (Folha de S. Paulo,
23 mai. 201, Folhateen, p. 3).

Essa deputada chamou Bolsonaro de estuprador. Ela é quem deve ser punida.
Isso é crime de difamação. MARCELO FREITAS (O Estado de S. Paulo, 13 dez.
2014, p. A3).

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 161

Em outros termos, a mobilização das tensões e das disputas da sociedade pelo


deputado não ocorre no “campo político stricto sensu” mas “se difunde no campo
metapolítico das relações sociais” (Pierucci, 1999, p. 18). Este, segundo Antônio
Flávio Pierucci, sempre foi o jeito característico das direitas operarem com suas
pautas e posicionamentos, por meio da

combinação não apenas de ideias mas de práticas (práticas de ataque e autodefe-


sa, de distinção e hierarquização, desprezo e humilhação, intolerância e agressão,
profilaxia e higienização, discriminação e segregação), de discursos espontâneos
e discursos doutrinários abrangendo a esfera pública e a vida privada, de solu-
ções políticas e econômicas mas também de demandas de restauração moral e
correção comportamental, princípios e estereótipos, fantasmas e preconceitos,
girando em torno ou nascendo em raio de uma obsessão identitária, isto é, de
uma necessidade sempre auto-referida de preservação à outrance de um ‘eu’ ou
um ‘nós’... (Pierucci, 1999, p. 18)

Como vimos, o crescimento da mobilização de grupos em torno de pautas


relacionadas aos direitos humanos caminha, em passo de igualdade, com uma
reação moral do deputado que, por seu turno, mobiliza anseios de uma parte signi-
ficativa da sociedade brasileira. Essa substituição do debate pela mobilização de
anseios morais acontecerá também, só que desta vez em relação à interpretação de
processos históricos, em relação ao período da ditadura militar no Brasil. Vejamos
como isso ocorreu.

4.2.4. APOLOGIA À DITADURA MILITAR


Embora a pauta contra os direitos humanos seja a mais prevalente nas matérias,
a pauta de apologia à ditadura e ao golpe militar – por motivos ao mesmo tempo
históricos e contemporâneos – ocupa um lugar de destaque e, por este motivo, foi
deixada por último. A defesa do regime militar no Brasil sempre foi uma pauta
política amalgamada à imagem pública do deputado (vide linha verde do Gráfico
6), recorrentemente mencionada em depoimentos, discursos e entrevistas.
Na década de 1990, um discurso proferido na Câmara dos Deputados em 24
de junho de 1993 acarretou muitas notícias sobre o deputado:

Sr. Presidente, a atual Constituição garante a intervenção das Forças Armadas


para a manutenção da lei e da ordem, conforme previsto no art. 142. Mas essa
desordem e descumprimento da lei só acontece, logicamente, após a falência

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do Poder Legislativo. O que tenho feito nas minhas reuniões é alertar para isso,
exatamente. Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde
que este Congresso Nacional dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu
entender está muito próximo. Perguntaria: na atual democracia, temos como
resolver os problemas nacionais? (Brasil, 1993, p. 13530)

Os jornais analisados prontamente noticiaram este discurso com matérias


de página inteira.

Imagem 7. Folha de S. Paulo, 25 jun. 1993, p. 8.

Imagem 8. O Estado de S. Paulo, 25 jun. 1993, p. 5.

Durante os meses que se seguiram, foram publicadas diversas notas, comen-


tários, análises e opiniões que totalizaram mais de 50 matérias contabilizando
os dois jornais em pauta. Entre as matérias publicadas, havia cartas de leitores
exaltando o posicionamento do deputado:

A ‘ditadura’ defendida pelo deputado Bolsonaro, apesar do choque que causou


na ilha bela de Brasília, não é de todo abominável, uma vez que nossa sociedade
vive sob esse regime há quase 500 anos.[...] A ditadura não deve ser uma ver-

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 163

gonha para as Forças Armadas, e sim para um país que demonstra não saber
aquilatar o valor da palavra ‘liberdade’. Os militares mantiveram a inflação em
níveis muito baixos, graças aos tanques apontados para as classes produtora e
comercial, e o povo, mesmo pobre, comprava seus bens duráveis. Hoje, a classe
dominante fez retroceder o País, sua cultura e seus valores, numa verdadeira
viagem ao colonialismo e até mesmo ao coronelismo. Leo Lingnau. Jaraguá do
Sul (SC) (O Estado de S. Paulo, 08 jul. 1993, p. 3).

Doze anos depois, em 2005, mais um episódio polêmico. Desta vez por conta
de uma sessão solene na Câmara dos Deputados, organizada por Jair Bolsonaro, de
tributo aos militares que participaram da Guerrilha do Araguaia. A sessão contou
com a presença do tenente-coronel da reserva do Exército Brasileiro, Lício Augusto
Ribeiro Maciel. Ao tenente-coronel é atribuído o sequestro, tortura, assassinato e
ocultação de cadáver de diversos militantes da guerrilha20 (Maklouf, 2004).

Saudado por Bolsonaro como ‘herói do Araguaia’, o coronel Lício ocupou a tri-
buna por uma hora fazendo um relato frio sobre a morte dos guerrilheiros e
demonstrando orgulho da operação. Ele chegou a chorar ao falar de outros mili-
tares que também estiveram na repressão da guerrilha. (O Estado de S. Paulo,
25 jun. 2005, p. A11).

Imagem 9. O Estado de S. Paulo, 25 jun. 2005, p. A11.


Um dos mencionados pelo tenente-coronel foi o então Deputado Federal e
ex-membro da guerrilha do Araguaia, José Genoíno.

20 Para a denúncia do Ministério Público Federal cf. http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/


arquivos/Denuncia_MPF_Guerrilha_Araguaia_Licio_Curio_homicios_ocultacao_cadaveres.
pdf acessado em 12 fev. 2018.

2018
164 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

O ápice do pronunciamento aconteceu quando o militar afirmou se arrepender de


‘não ter dado uma bolacha’ em Genoíno, que, disse, entregou os companheiros da
guerrilha sem ser torturado. ‘Genoíno, olha no meu olho. Eu te prendi na mata
e não toquei num fio de cabelo seu. Não te demos uma bolacha, coisa de que me
arrependo hoje’, disse, sob aplausos. (Folha de S. Paulo, 25 jun. 2005, p. A15).

Em 2009, ainda sobre a Guerrilha do Araguaia, matérias denunciaram um


cartaz afixado no gabinete do deputado (vide imagem 10 abaixo):

Imagem 10. Imagem extraída de: https://brasilpagina1.wordpress.com/2009/06/27/jair‑


-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-procura-osso-e-cachorro/ acessado em
12 fev. 2018.

Único parlamentar a defender abertamente a ditadura militar, Bolsonaro afirma


que está fazendo um protesto contra as indenizações ‘bilionárias’ concedidas aos
ex-presos políticos. ‘A mentira deles não é a verdade da história. O povo tem de
dar graças a deus aos militares. Tenho o direito de me expressar’, diz o parla-
mentar. O cartaz da discórdia foi feito em 2005 para provocar o então ministro
da Casa Civil, José Dirceu, que havia feito um discurso na Casa. Ele disse: ‘vamos
atrás dos ossos...? Na ocasião não houve repercussão’, diz Bolsonaro. (O Estado
de S. Paulo, 28 mai. 2009, p. A11).

Cinquenta anos após o golpe militar de 1964, diversos eventos aconteceram no


Brasil para relembrar e debater o tema. Entre eles uma sessão solene organizada
pela então deputada federal Luiza Erundina. O deputado Jair Bolsonaro compa-
receu à sessão com uma faixa com os dizeres “Parabéns militares 31 de março de
64. Graças a vocês o Brasil não é Cuba”, causando um alvoroço entre os partici-
pantes e indo direto para as páginas dos jornais. A imagem da Folha de S. Paulo
abaixo retrata a referida faixa exposta por Bolsonaro junto com título da matéria

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 165

(Imagem 11). No mesmo dia, a capa do jornal O Estado de S. Paulo apresentou os


manifestantes, com fotos de desaparecidos políticos, de costas para o deputado
quando ele subiu à tribuna para defender a ditadura militar (Imagem 12).

Imagem 11. Folha de S. Paulo, 02 abr. 2014, p. A8.

Imagem 12. O Estado S. Paulo, 02 abr. 2014, p. 1.

Todas as matérias apresentadas reforçam que a apologia à ditadura militar,


de fato, é um dos elementos mais fundamentais da imagem do deputado Jair
Bolsonaro. No entanto, a descrição exaustiva das fontes seria totalmente em vão
se não problematizasse o caráter propriamente sociológico desta apologia. Um dos
aspectos centrais do raciocínio sociológico – e que torna a sociologia tão difícil
de ser entendida por leigos e/ou por não especialistas – é que não é possível, em

2018
166 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

hipótese alguma, compreender o indivíduo sem compreender a totalidade de outros


indivíduos com os quais, direta ou indiretamente, convivemos21.
Deste modo, a defesa recorrente e aberta, década após década, da ditadura e
do uso da violência, sempre associada a sucessivas vitórias eleitorais e jurídicas,
tudo isso parece extrapolar a questão de um singular deputado e vem ao encontro
de aspectos estruturais particulares de uma sociedade. Talvez a pergunta mais
radical sobre a pauta política em torno da apologia à ditadura e ao golpe militar não
deva ser feita em direção ao indivíduo Jair Bolsonaro. Ao contrário, deveríamos
perguntar à própria estrutura da sociedade brasileira: de que modo a ditadura
foi elaborada historicamente, coletiva e emocionalmente, para que ela continue,
década após década, a retornar como pauta política defensável? Como é possível a
defesa da reimplantação da ditatura como solução política por legisladores, jorna-
listas, eleitores, vizinhos, vendedores de jornal etc.? Nos termos do psicanalista
Thales Ab’Saber,

Quando dizemos que nossos índices sociais são, em alguns casos, africanos, que
nossa polícia é a polícia que mais mata, que o desrespeito aos direitos humanos
e a tortura são endêmicos em nossas delegacias e presídios, que a concentração
de renda brasileira continua sendo a maior do universo econômico conhecido –
ou que os bárbaros, assassinos e torturadores da ditadura militar brasileira não
foram minimamente punidos, não sofreram nenhum constrangimento público
ou político e estão muito bem, obrigado, aposentados, condecorados e premiados,
de chinelo em casa, ou ainda na ativa no Exército brasileiro ou, o que consegue
ser ainda pior, em funções públicas de Estado –, quando elencamos o rosário
da face bárbara de nossa vida social real, nunca resgatada, o que é o único papel
histórico verdadeiro da esquerda, a posição ideológica predominante e a defesa
subjetivante política hegemônica que se observa é a recusa generalizada em tor-
nar esses fatos de fato plenamente conscientes, como objetos de um trabalho do
sujeito histórico [...] (Ab’sáber, 2010, p.195 apud Teles; Safatle, 2010)

Neste sentido, todas estas matérias com declarações de apoio e/ou defesa do
regime militar representam um convite à investigação e reflexão. De que maneira

21 “Tomemos, por exemplo, um presidente que declara ‘está encerrada a sessão’ ou um padre que diz ‘eu
te batizo’. Por que esta linguagem possui um poder? Não são as palavras que agem por uma espécie de
poder mágico. O que ocorre é que, em dadas condições sociais, certas palavras têm força. Tiram sua
força de uma instituição que possui sua própria lógica os títulos, o arminho e a toga, o púlpito, a palavra
ritual, a crença dos participantes etc. A sociologia chama a atenção para o fato de que não é a palavra
que age, nem a pessoa permutável que a pronuncia, mas a instituição” (Bourdieu, 1983, p. 26).

Plural 25.1
“Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: ... 167

todos os processos e julgamentos após o fim da ditadura ainda não foram “histo-
ricamente suficientes” para que a sociedade brasileira pudesse se apropriar – no
sentido de prestar contas – do que, de fato, aconteceu nesse período? Obviamente
que o problema desta “apropriação histórica dos acontecimentos” guarda uma forte
relação com a mudança geracional. O público aparentemente jovem que costuma
aderir ao “mito” Jair Bolsonaro parece ignorar as atrocidades do regime ditatorial
brasileiro porque,

os projetos se transformam de tal maneira durante o caminho que o ensinamento


dos fatos não pode ser recolhido, pois as gerações que fazem o seu balanço não
são aquelas que instituíram a experiência deles. (Merleau-Ponty, 1980, p. 41).

Compreender, por um lado, o efeito diferenciado que os eventos históricos


exercem sobre os diferentes membros de uma sociedade e, por outro, a utilização
“fantasmagórica” da ditadura na política brasileira pode vir a servir como ponto de
partida para uma aproximação entre “partidários” e “detratores” do deputado. Além
disso, tal postura pode servir para elaborarmos – como os psicanalistas costumam
dizer – essa “compulsão à repetição” que se manifesta em todas as crises nacionais
e que preconiza que a “única saída” é o retorno a uma ditadura militar.

5. À GUISA DE CONCLUSÃO
A discussão sobre o papel da mídia nos processos políticos das sociedades
contemporâneas permanece longa e ainda em aberto para as ciências sociais.
Embora persista uma polifonia de vozes e tomadas de posição acerca deste debate,
parece que ele gira muito mais em avaliar o grau, o alcance e os efeitos do que
propriamente em negar o papel central e preponderante das mídias no mundo em
que vivemos. A tentativa do artigo foi a de contribuir para este debate ao apresentar
a imagem pública do deputado Jair Bolsonaro baseando-se nas pautas políticas
que defendeu ao longo de 30 anos de matérias.
Por meio de técnicas de coleta e análise de dados digitalizados foi possível
mapearmos como o deputado se posicionou dentro do debate público mediante
um conjunto de pautas políticas que deram a tônica da sua imagem pública. Em
diversos momentos sugerimos que uma exegese mais profunda de cada uma
daquelas pautas políticas passaria, necessariamente, por um entendimento da
estrutura da sociedade brasileira. Foi por este motivo que escolhemos uma frase
do próprio deputado Jair Bolsonaro para intitular o presente trabalho.

2018
168 Leonardo Nascimento, Mylena Alecrim, Jéfte Oliveira, Mariana Oliveira, Saulo Costa

Por fim, foi possível detectar coerências no discurso que o deputado expressa
em repetidas tomadas de posição que, por sua vez, acarretavam manchetes, colunas,
entrevistas, cartas de leitores etc. Como dissemos anteriormente, este é um
trabalho inicial que precisa ser considerado à luz dos outros jornais e, posterior-
mente, cotejado com o próprio trabalho parlamentar. Não obstante esse caráter de
incompletude, acreditamos ter oferecido ao debate acadêmico e extra-acadêmico
um retrato esboçado de um político que, ao que tudo indica, será forte candidato
à presidência do Brasil nas próximas eleições.

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2018
Palestra

Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja1

Intellectuals, media and public university in a battle context

Sergio Micelia

Resumo  A palestra de Sergio Miceli trata da relevância que a imprensa escrita,


televisiva e demais agentes e meios comerciais tomaram ao longo do tempo no Brasil.
Segundo o seu diagnóstico, eles passaram a disputar a hegemonia intelectual com o
setor tradicionalmente produtor de conhecimento: a universidade. Isso posto, cabe
fazer uma reflexão sobre o papel do intelectual na universidade e a busca por soluções
nessa guerra simbólica.
Palavras-chave  Universidade Pública; Imprensa; Intelectuais.

Abstract  Sergio Miceli’s lecture approaches the relevance that written press and
television, as well as other agents and commercial means, took over time in Brazil.
According to his diagnosis, they began to dispute the intellectual hegemony with the
traditionally knowledge producing sector: the university. That said, it should be
time to reflect upon the role of the intellectual in the university and the search for
solutions in this symbolic war.
Keywords  Public University; Press; Intellectuals.

Hesitei muito em aceitar o convite porque não me agrada discorrer sobre


temas que não estudo e ainda mais nesta mesa de balanço político. No entanto,
em tempos de crise generalizada, tenho de me manifestar. Parte do que gostaria
de suscitar no debate tem a ver com a área da educação. Mas antes tenciono tratar
do enfrentamento da indústria cultural com a universidade, e vice-versa: a mídia
em postura agressiva por razões defensivas, enquanto a universidade está imersa
numa conjuntura de escassez de recursos, acuada por um desígnio político.
No Brasil, a expansão do ensino superior, o incremento dos diplomados, a
democratização acelerada do acesso à educação sucedeu por iniciativa do poder
público, em contexto de competição com a indústria cultural cumprindo funções

1 Palestra proferida no encerramento do I Seminário de Sociologia da Cultura, realizado na Facul-


dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo entre os dias 7 e 9
de dezembro de 2016. Na mesma mesa constavam os professores Maria Arminda do Nascimento
Arruda (USP) e Marcelo Siqueira Ridenti (Unicamp).
a Professor Titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.172-177
Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja 173

para-pedagógicas. Nos países europeus, e mesmo na vizinha Argentina, por conta


da escolaridade obrigatória e universal, a televisão jamais desfrutou da centrali-
dade lograda aqui.
Houve esperança, em determinado momento, de que o declínio da audiência
televisiva, somado à ampliação do lazer privado – tópicos abordados por Raymond
Williams no livro Televisão: Tecnologia e Forma Cultural (Williams, 2016) –
pudesse alterar a situação. A expansão da Netflix, do streaming, da TV a cabo,
redundaria no recuo do investimento publicitário e da legitimidade de convocatória
da mídia sobre a população pouco escolarizada. Houve um declínio de audiência
da novela, do noticiário, mas não um recesso proporcional da televisão como a
mídia mais pujante no tocante à concentração do investimento publicitário.
Em compensação, ou melhor, em contrapartida, a imprensa está a braços
com ameaças à sobrevivência, despedindo centenas de jornalistas, e buscando
equilibrar o negócio entre suporte impresso e internet, na tentativa de emular o
projeto em curso ora implementado, por exemplo, pelo The New York Times, The
Guardian, Le Monde, entre outros. Entretanto, ao contrário da parceria desses
veículos cosmopolitas mencionados com sua respectiva inteligência nacional, os
principais diários no país – Folha de São Paulo, Globo e O Estado de S. Paulo – se
voltaram contra a universidade pública tendo em mira aqueles setores do campo
intelectual dotados de autonomia material e de voz autoral. A universidade pública
se tornou, na última década, um alvo prioritário de crítica, de demonização, de
detração. Como se fosse possível dispensar a instituição que vem suprindo a mão
de obra indispensável à existência e à continuidade da indústria cultural.
Roberto Schwarz, quando do golpe de 1964, escreveu um artigo inspirado
em número especial sobre o Brasil na revista Les Temps Modernes, mostrando
naquele momento que a esquerda continuava detendo a hegemonia no campo
cultural (Schwarz, 1992). Hoje, o que enxergamos em termos de enfrentamento?
As reportagens e matérias na mídia impressa execram o ensino público e enaltecem
as empreitadas do ensino particular, sem falar na veiculação maciça de publicidade
paga por esses grupos de investidores e corporações, algumas multinacionais.
Suplementos especiais sobre o ensino privado, cobertura favorável nos editoriais,
em paralelo à insistente desqualificação da universidade pública, como se onerasse
o contribuinte ao “subsidiar” uma classe de docentes tidos como “privilegiados”.
Campanhas sistemáticas de desqualificação e de desmonte da inteligência. A
Folha de São Paulo publicou há muitos anos uma lista dos que eles chamavam de

2018
174 Sergio Miceli

“improdutivos”.1 E mais recentemente, divulgou o salário dos professores, como se


tal informação, por si só, fosse sintoma dos desmandos de privilégio na distribuição
de renda dos produtores da atividade intelectual.2
A razão da postura anti-intelectualista da imprensa antiacadêmica, anti-
-universidade pública, tem muito a ver com o chamado insistente a favor do
desmonte do Estado, em especial naquelas atividades voltadas para democratizar
o acesso, educação e saúde. Outro indicador sugestivo: a editora Três Estrelas,
pertencente ao Grupo Folha, privilegia a difusão de textos inovadores, na fachada,
mas de fato de alguns livros obscurantistas, como, por exemplo, a parolagem de
um sujeito que discute as teorias raciais sustentando um novo racialismo, como se
fosse grande novidade. Ou então, uma defesa da sociobiologia, um tipo de racio-
cínio e de argumentação, reiterados por certos colunistas, especialistas da doxa
rasteira, os quais se pronunciam sobre quaisquer assuntos, girando em torno de
uma suposta natureza humana, do ser; eles sabem o que é o homem, a mulher, o
desejo, como a mulher gosta do homem, o homem da mulher, e assim por diante.
São aulas insossas de um ersatz de fenomenologia, de patologia, de morfologias
despidas de contingências históricas. Eis o aspecto mais anedótico.
Quero chamar a atenção para o que está em jogo se nós entendermos a ativi-
dade intelectual não como atividade reservada a intelectuais credenciados, mas
como práticas concorrentes no interior de um mercado de bens simbólicos, um
sistema integrado de produção cultural. O que está em disputa em meio a tais
enfrentamentos? O alvo perseguido pela imprensa e pela televisão transparece
em entrevistas e debates cuja agenda segue à risca as pautas políticas da mídia. A
televisão também se lançou com energia nesse prélio, não para garantir audiência,
e tampouco por cálculo de investimento econômico, visando sobretudo a conquista
de alguma autoridade cultural: explicita a política de defesa arrogando-se o status
de poder se constituir em instância legítima de consagração cultural – o nó do
imbróglio.
Vale a pena lembrar a notável entrevista com Renato Janine Ribeiro no
programa Roda Viva,3 ao tempo de sua gestão como Ministro da Educação. Saiu-se
com brilho diante de uma bancada de “experts” em educação, adiante convocados
pelo governo Temer para implementar políticas privatistas na área. Lembrei do
entrevero porque sinalizou um dado relevante: as alusões às divergências em torno

1 O valor dos improdutivos. Folha de S. Paulo, p. A2, 24 fev. 1988.


2 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/infograficos/2014/11/117724-ranking-de-salarios-
-da-usp.shtml, acessado em 29 jun. 2018.
3 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2b4NjuCvK4s, acessado em 29 jun. 2018.

Plural 25.1
Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja 175

do encaminhamento da Lei de Diretrizes e Bases, o qual se estendeu por anos de


discussão, evidenciaram o fato de que os interlocutores naquele momento incluíam
os representantes dos sindicatos de docentes, de funcionários, os porta-vozes da
associação de reitores, das corporações patronais do ensino médio, de congrega-
ções católicas, ou seja, um confronto efetivo dos grupos de interesse atuantes na
área. E hoje, o que vemos na discussão? Um coletivo de ONGs e de entidades de
assessoria política, a que se juntam os emissários desses lobbies no Congresso.
Uma rede articulada de grupos privados e de investidores.
Em seminário recente de que participei, no Rio de Janeiro, a respeito da
recepção da obra de Pierre Bourdieu no Brasil,4 tive a oportunidade de ouvir a
competente exposição de Ana Maria de Almeida sobre o assunto, em que ressal-
tava o número expressivo de sociólogos e de cientistas sociais contratados por
esses organismos e think tanks, aferrados a projetos privatistas de intervenção no
ensino, exercendo uma advocacia justificadora dos interesses de tais entidades na
discussão do Plano Nacional de Educação.
O problema crucial consiste na luta política em curso no universo cultural.
Vivemos isso cada dia. Pode-se perceber o que se passa pelo viés anedótico dos
colunistas de direita, feição menor da conjuntura. Cumpre reagir e contestar
tal reclamo de autoridade cultural monopolista: rechaçar o projeto de a mídia
se converter em instância decisiva de juízo. A mera existência da universidade
pública suscita incômodo. Não é por acaso que pululam subentendidos e chacotas
sobre intelectuais, alguns deles vazados em termos caricatos, nomeando assim,
pelo avesso, o chão pretensamente realista do que se alardeia como nefasto. As
invectivas contra a sociologia, por exemplo, constam até de escritos de críticos de
cinema, os quais desqualificam um filme como “demasiado sociológico”. Trata-se
de um trabalho persistente e azeitado de sapa cultural, permeando diversas frentes
de detração que apelam a estereótipos da atividade intelectual.
Mas não queria acabar em tom de crítica negativa. A iniciativa desse semi-
nário revela a feição coletiva do trabalho intelectual. Uma experiência marcante
de minha iniciação como sociólogo, durante o período como doutorando em Paris,
me fez ver o trabalho intelectual como atividade que se fazia em equipe, fruto de
um coletivo. Havia uma divisão do trabalho bastante diferente da ideia que eu
trazia daqui. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP costuma
valorar o feitio artesanal do trabalho intelectual, em detrimento de outros aspectos.

4 Colóquio Pierre Bourdieu no Rio de Janeiro – 15 anos da morte do escritor, realizado entre os
dias 05 e 09 de dezembro de 2016. Ver http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/coloquiobour-
dieu/, acessado em 29 jun. 2018.

2018
176 Sergio Miceli

Este seminário resultou de uma empreitada em parceria, cuja montagem decerto


suscitou desavenças e dissensões. As lutas constituem o fulcro da vida intelectual.
A experiência parisiense teve continuidade após meu retorno. Quis realizar o
projeto de pesquisa sobre a história das ciências sociais no Brasil por meio de uma
equipe diversificada e multidisciplinar, cabendo a cada pesquisador um objeto, na
tentativa de reeditar, à brasileira, a iniciação francesa.
Ora faço um fecho polêmico porque o assunto me incomoda. Na universidade,
tem havido inúmeras greves, ocupações, cadeiraços. Apesar da necessidade dessas
manifestações, por vezes tais atitudes se tornam abusivas e revertem contra nós,
contra nossos interesses; constituem um tiro no pé da atividade intelectual e
da vida institucional na universidade. Não estamos assim contribuindo para a
legitimação de nossa atividade, ou nutrindo o reforço da autoridade intelectual,
política e institucional. Reconheço que quase sempre tivemos aumento salarial
aqui em função de uma greve liderada pela Adusp (Associação dos Docentes da
Universidade de São Paulo); respeito de verdade a Adusp e a política consistente de
defesa de nossos interesses. Todavia, tem sido desastroso o descalabro entre esse
trabalho político de êxito e o que vem acontecendo nos últimos anos. Teremos de
fixar um limite. A saída consiste em dirigir nossos esforços e investimentos para
a atividade intelectual, e temos de levar a sério tal empenho. Eis a única garantia
de continuidade ao trabalho já acumulado pelos que nos precederam, trabalho
que está na raiz de uma tradição intelectual de impacto, um tesouro de interpre-
tações, de análises, de diagnósticos da sociedade brasileira. O patrimônio desta
universidade é fenomenal – não apenas acervos documentais preciosos, coleções
de livros e de obras de arte –, mas sobretudo a formação de gerações sucessivas
da inteligência brasileira em todos os campos do saber. Podemos e devemos fazer
reivindicações, campanhas, greves, motivadas e oportunas, mas estamos levando
tais pleitos à beira do suicídio institucional.
Também não estou convencido do acerto de tais condutas em nome de agendas
identitárias; tais demandas são válidas e devem ser discutidas, mas não podem se
converter em norma exclusiva e predominante de avaliação e de juízo dos rumos
de uma instituição universitária, ora exposta a tantos fogos. Tivemos um treina-
mento que nos ensinou a tolerância, a apreciar e encorajar a diversidade. Qual é
a inclinação da maioria dos professores? A de que isso tudo é aceitável? Estamos
militando contra a instituição e dando pólvora às pretensões heterônomas das
instâncias e grupos de interesse empenhados em desacreditar a autoridade simbó-
lica da universidade.

Plural 25.1
Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja 177

Estou chamando a atenção para a parcela de nossa responsabilidade na história


do que está acontecendo intramuros; os impasses não derivam de forças externas.
Temos contribuído e muito para o desmonte institucional em andamento, e não
estou me colocando fora ou acima do que se passa. Meus cumprimentos a vocês que
organizaram o evento como homenagem ao trabalho intelectual. Como cientistas
sociais, não estamos obrigados à profecia política; fomos treinados a empreender
um trabalho intelectual consistente sobre temas e objetos de nossa competência.
Eis a única força que possuímos, e o seminário é a expressão desse legado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O valor dos improdutivos. Folha de S. Paulo, 24 fev. 1988.
Ranking de salários da USP. Folha de S. Paulo, 16 nov. 2014
Schwarz, Roberto. “Cultura e Política: 1964-1969”. In: Schwarz, Roberto. O pai de família
e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 61-92.
Williams, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2016.

2018
Resenha

Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal


A constituição de uma razão-mundo competitiva e empresarial
From the crisis of liberalism to the neoliberal hegemony
The constitution of a competitive and entrepreneural world-rationality
Samuel Silva Borgesa

Dardot, Pierre; L aval, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016 [2009].

Publicado originalmente na França em 2009 pelo sociólogo Christian Laval


e o filósofo Pierre Dardot, “A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal” ganhou edição brasileira em 2016 pela Editora Boitempo, em um
contexto de guinada política no país, com a destituição da Presidenta Dilma
Rousseff, a eclosão de movimentos da “Nova Direita” clamando pela conjunção
do conservadorismo moral, desregulação econômica e hipertrofia penal, além da
urgência que setores da elite política e empresarial impuseram para a adoção de
medidas severas de austeridade político-econômica. O neoliberalismo estava, por
assim dizer, na ordem do dia.
Contudo, ainda que a obra de Dardot e Laval discuta os aspectos político-
-econômicos do neoliberalismo, ela se destaca, principalmente, por destrinchar
como ele se constitui numa racionalidade. Isto é, não como uma teoria econômica
ou uma ideologia imposta aos indivíduos, mas como a própria razão que institui
os sujeitos. A subjetivação neoliberal estrutura a conduta e a organização da socie-
dade em nível global e local, pois supera a esfera econômica, englobando todas
as dimensões do ser humano, condicionando o ser, o estar e o fazer no mundo.
Traduz-se, então, numa razão-mundo. Tal racionalidade deriva de um conjunto
de discursos, práticas e dispositivos marcados pelo princípio universal e genera-
lizado da concorrência, sendo essa sua norma de conduta. Assim, revela-se um
sujeito-empresa que compete com outros como ele por sucesso, investindo em seu
“capital humano”, assumindo riscos e responsabilidade individual por sua sorte
(Dardot; L aval, 2016, p. 9-17).

a Cientista Político e Mestrando em Sociologia pela Universidade de Brasília.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.178-185
Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal 179

Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver,
certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está
em jogo é nada mais nada menos do que a forma de nossa existência, isto é, a
forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e
com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades
ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho
da modernidade. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num univer-
so de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar
em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o
modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas,
muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se
como uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as
políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a
sociedade, remodela a subjetividade (Dardot; Laval, 2016, p. 16).

Dividida em nove capítulos, a obra também se separa em duas seções. A


primeira é a “Refundação Intelectual” e a segunda é “A Nova Racionalidade”.
Segundo os autores, para compreender o neoliberalismo é necessário entender
a natureza do seu projeto social, o que ele representa desde 1930, a partir do
balanço da crise do liberalismo clássico. Dardot e Laval assumem que, desde o
seu princípio, a unidade do liberalismo é problemática e tensa. Se, de um lado, o
pensamento liberal dominante no século XIX se traduz pelos dogmas do direito
natural, liberdade de comércio, propriedade privada e as virtudes do equilíbrio de
mercado, de outro, critica-se o individualismo extremado de suas proposições e
seus efeitos sociais nocivos. Assim, entra em crise e bifurcam-se diferentes tipos
de liberalismo – um associado a um ideal de bem comum, assumindo possíveis
reformas sociais, e outro, que assume a liberdade individual como um fim abso-
luto, não podendo ser condicionado a problemas como a desigualdade ou extrema
pobreza (Dardot; L aval, 2016, p. 37).
As críticas ao liberalismo têm como elemento comum apontar o contraste
entre a teoria e a prática dos mercados desregulados. Sua “mão invisível” era
contrastada com a mão visível de empresários e de outros detentores do poder
econômico. Esses distorciam o ideal de “livre concorrência”, que supostamente
deveria beneficiar a todos, a favor de seus interesses privados – formando mono-
pólios, cartéis e fazendo dos contratos do mercado de trabalho entre livres partes
uma imposição da exploração (Dardot; L aval, 2016, p. 40-41).

2018
180 Samuel Silva Borges

No primeiro capítulo, os autores apresentam o confronto sobretudo do


liberalismo de inspiração utilitarista, exemplificado por John Stuart Mill, ao de
inspiração concorrencialista, exemplificado por Herbert Spencer. Enquanto para
o primeiro a finalidade das políticas tem que se adequar ao ideal da felicidade do
maior número de indivíduos, o que o faz relativizar até o direito à propriedade e
justificar a intervenção estatal, o segundo representa uma contraofensiva dos indi-
vidualistas ao que percebiam como traição e “socialismo” dos reformistas sociais
que condicionariam os direitos individuais ao ideal do bem-estar da população
(Dardot; L aval, 2016, p. 45-46).
Inspirado numa apropriação problemática da teoria evolucionista de Charles
Darwin, Spencer criticava qualquer política de socorro aos mais necessitados, já
que essa se chocaria com a primazia da luta social pela vida, que seleciona os
mais aptos e elimina os mais fracos: “O mandamento: ‘Se uma pessoa não deseja
trabalhar, não deve comer’ é simplesmente o enunciado cristão dessa lei da natu-
reza sob império da qual a vida atingiu seu grau atual, a lei segunda a qual uma
criatura que não é suficientemente enérgica para se bastar deve perecer” (Spencer
apud Dardot; L aval, 2016, p. 48). Tal perspectiva, sistematizada pelo sociólogo
William Graham Sumner e que ficou conhecida como darwinismo social, seria
a única forma de fazer justiça social: recompensando o mérito dos mais habili-
dosos na luta e punindo os mais fracos. Combater as desigualdades seria a coisa
menos natural possível, “invertendo os valores”, que a sociedade deveria cultivar,
“tirando dos melhores para dar aos piores”, favorecendo seus “piores membros” e
destruindo a liberdade (Dardot; L aval, 2016, p. 50-55).
A reação violenta do spencerismo é importante pela tentativa de renovar
o dogma do “laissez-faire”, estando prenhe de posições retomadas no neolibe-
ralismo em seus ataques à seguridade social. Não obstante, prevaleceram nas
políticas ocidentais do final do século XIX posições liberais menos extremadas,
preocupadas com a melhoria das condições dos pobres e sem a fobia do Estado.
A Primeira Guerra Mundial e as crises que a sucederam levaram, porém, a uma
revisão do liberalismo clássico, inspirando um liberalismo intervencionista, não
contra o capitalismo, mas pela sua preservação. Tal “novo liberalismo” tem como
expoente John Maynard Keynes, combinando críticas do liberalismo clássico e
também do socialismo, pensando na melhor forma de intervenção governamental
para atingir os fins da civilização liberal e rechaçando a possibilidade de revoltas
operárias a partir do acirramento da luta de classes. Promove-se, assim, um
Estado administrativo e regulador da economia e da sociedade que visa, como

Plural 25.1
Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal 181

ficou conhecido sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o “bem-estar social”


(Dardot; L aval, 2016, p. 56-60, 64).
O intervencionismo e o reformismo social de inspiração keynesiana torna-se
um dos alvos centrais da crítica neoliberal a qual, ainda que não retome a ideia
de passividade governamental, opõe-se à qualquer ação que entrave o jogo da
concorrência privada. A virada neoliberal está justamente não na ideia da “reti-
rada do Estado”, mas na teorização de uma intervenção estatal liberal favorável à
concorrência de entes privados (Dardot; L aval, 2016, p. 69-73).
Enquanto muitos citam a Sociedade Mont Pèlerin em 1947 como marco do
nascimento do neoliberalismo, tema do segundo capítulo, Dardot e Laval assumem
que o momento fundador situa-se antes, no Colóquio Walter Lippmann em 1938.
Ambos eventos, contudo, valorizam o trabalho de refundação intelectual do libe-
ralismo para assegurar sua vitória. Desde a primeira conferência, que tinha como
meta discutir o estado do liberalismo no entreguerras, destaca-se o cisma das
diferentes interpretações sobre o caos da crise econômica. Para uns, os fatores
principais da crise estavam na traição dos fundamentos do liberalismo clássico
(Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises, Jacques Rueff) e, para outros, estavam
justamente nos fundamentos equivocados desse liberalismo (Louis Rougier, Walter
Lippmann) (Dardot; L aval, 2016, p. 71-72, 77).
De acordo com os primeiros, tem-se o postulado de que a intervenção estatal
é inerentemente problemática, emperrando mecanismos de equilíbrio automático
do mercado e sendo direcionada à coletivização total da economia e ao totalita-
rismo. Dessa forma, não há como se falar em falência do liberalismo, visto que
é a intervenção do Estado que gera a crise. Já para os alemães Wilhelm Ropke e
Alexander Rustow, assim como Rougier e Lippmann, a crise é endógena ao libe-
ralismo clássico e, assim, criticam alguns de seus postulados, como aquela da
concorrência como um estado natural a ser preservado da intervenção do Estado,
constituindo assim uma teoria negativa. Contra o naturalismo, eles postulam que
o neoliberalismo (termo cunhado por Rustow) deveria se traduzir na intervenção
consciente de uma ordem legal que fomentasse a iniciativa privada submetida à
concorrência, sendo então uma teoria positiva (Dardot; L aval, 2016, p. 77-80).
O terceiro capítulo aborda as duas tendências centrais do ordoliberalismo,
baseado na Escola de Freiburg, uma defendida por juristas e economistas, como
Walter Eucken e Franz Bohm, e outra de inspiração sociológica, contando com
Ropke e Rustow entre os seus expoentes. Os primeiros focam no quadro jurídico-
-político, nas “regras do jogo” da economia e do mercado, enquanto os segundos
privilegiam o quadro social em que ocorre a atividade econômica. Em seu sentido

2018
182 Samuel Silva Borges

normativo, “ordo” representa uma organização economicamente eficaz e respei-


tosa da moral humana, só podendo ser, segundo seus defensores, uma economia
de mercado. Isso porque, só ela poderia superar a escassez de bens e permitir
que os indivíduos conduzam livremente as suas próprias vidas. Tal seria possível
respeitando o princípio da concorrência, que ganha assim primazia sobre a troca,
princípio mor do liberalismo clássico. Se troca implica equivalência, a concorrência
implica desigualdade (Dardot; L aval, 2016, p. 105-106, 110-111).
Os capítulos quatro e cinco abordam a vertente “austro-americana” do neoli-
beralismo, com os seus expoentes Von Mises, Hayek e Milton Friedman. Em suas
formulações teóricas, Dardot e Laval destacam os aspectos subjetivistas e antide-
mocráticos dessa abordagem. Primeiro, ressaltam a prevalência do entendimento
do indivíduo como plenamente livre e responsável por suas escolhas, salientando o
potencial empreendedor e a agência criadora, que podem ser tolhidos pelas inter-
venções governamentais. O mercado, ao contrário, é o espaço de autoformação
do sujeito econômico especulador, que se educa pelos erros e acertos, tentando
melhorar a sua sorte. A figura mítica do empreendedor também se deve às formula-
ções de Joseph Schumpeter, para o qual esse seria um inovador, um desafiador do
ordinário, um “homem da destruição criadora” (Dardot; L aval, 2016, p. 140, 153).
Destacadamente, a vertente “austro-americana” esforça-se para negar uma
descontinuidade entre liberalismo e neoliberalismo, embora não retomem o sentido
original do “laissez-faire” e ainda que seguidores de Mises como Murray Rothbard
e David Friedman radicalizem no “anarcocapitalismo”, opondo-se frontalmente à
legitimidade estatal. Para Hayek, não se trata do volume de intervenção do Estado
existente, mas de sua natureza, sendo explícito na sua preferência a uma ditadura de
livre concorrência frente a uma democracia com planificação econômica (Dardot;
L aval, 2016, p. 133-135, 157-158).
Iniciando a segunda seção, o capítulo seis aborda a “grande virada” social à
razão neoliberal, décadas após o surgimento da sua teorização. Destacam-se a
presença da luta ideológica, da propaganda e da educação para tornarem popu-
lares teses pró-desigualdade e think tanks de “evangelistas do mercado”. Contudo,
Dardot e Laval são enfáticos na crítica de um paralogismo que identifica os benefi-
ciários das políticas neoliberais como seus estrategistas, reduzindo o processo que
tornou o neoliberalismo uma razão hegemônica a um complô da elite econômica
e seus ideólogos, confundindo, assim, o efeito pela causa. Ao contrário, advogam
por uma interpretação de uma “estratégia sem estrategista”, afirmando a predomi-
nância de uma lógica das práticas que precede à atuação deliberada e consciente
de atores sociais, a qual também não deve ser confundida com uma explicação

Plural 25.1
Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal 183

economicista, cujas transformações da base econômica suscita automaticamente


transformações ideológicas. A explicação dada pelos autores é influenciada pelos
conceitos de Michel Foucault, visibilizando como dispositivos de disciplina entre
outras técnicas de poder, levaram ao autogoverno dos sujeitos segundo critérios da
competição e valorização do capital (Dardot; L aval, 2016, p. 192-193, 205-207, 231).
Além disso, o capítulo enfatiza ainda a dimensão do neoliberalismo como
aplicação de “austeridade” político-econômica elitista, sobretudo nos governos de
Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Impressiona os paralelos que se podem traçar
com o Brasil contemporâneo do ajuste fiscal proposto no governo de Dilma Rousseff
e as reformas trabalhista, previdenciária e do Novo Regime Fiscal propostas pelo
governo de Michel Temer, onde “terapias de choque” são impostas numa ofensiva
sem apoio popular e como solução tecnocrática e incontestável à crise vivenciada. O
mantra de Thatcher que “não há alternativa” mostra-se absoluto: é preciso abaixar
o custo do trabalho, disciplinar a mão-de-obra, privatizar empresas e o sistema de
previdência pública, comprimir os gastos públicos e mecanismos de solidariedade
e assistência social. Tudo isso sem nunca questionar os privilégios tributários das
elites nem as prioridades do uso do orçamento público, pois o problema é a falta de
espírito empreendedor dos pobres ociosos sem responsabilidade individual, que
será solucionado pela austeridade que forçará a adaptação dos indivíduos (Dardot;
L aval, 2016, p. 198-199, 212-213, 237).
O capítulo sete aborda a conjunção europeia do ordoliberalismo com o keyne-
sianismo e a herança de um Estado de bem-estar social, aliada a uma já formada
organização da classe operária. Os autores se opõe ao que seria uma “cantilena do
neoliberalismo de esquerda” de uma Europa continental livre do “ultra-liberalismo”
anglo-saxão. Ao contrário, para ambos, a história é menos binária e maniqueísta,
havendo uma capitulação da esquerda à gestão neoliberal, marcada pelas formu-
lações de Tony Blair e Anthony Giddens e nas distorções concorrenciais expressas
no dumping social e fiscal dos governos europeus para atrair capital (Dardot;
L aval, 2016, p. 237, 245, 258-259).
Já o capítulo oito aborda como a lógica neoliberal tomou conta da gestão
pública, influenciada sobretudo pela teoria da Escolha Pública, que combate
uma visão romantizada do servidor público altruísta, substituindo-a por uma
visão mais cínica, pensando os servidores como tão egoístas e autointeressados
como os demais indivíduos. Como isso levaria, na gestão pública, à má utilização
dos recursos, as repartições públicas, então, deveriam seguir normas da gestão
privada, de padrões de desempenho, eficácia e eficiência, com sistema de incentivos,
indicadores de resultado e mecanismos de vigilância, punição e bônus individual.

2018
184 Samuel Silva Borges

A racionalização empresarial deve tornar o burocrata mais um empreendedor,


sujeito à lógica da competição, fazendo o Estado se curvar aos padrões do mercado
(Dardot; L aval, 2016, p. 296-298, 300-301, 305, 321).
O último capítulo é o de maior destaque na obra por ser onde se encontram
as principais reflexões do neoliberalismo enquanto razão totalizante, subjetivação
empresarial e competitiva. Isto é, a constituição geral de empresas-de-si-mesmo,
baseada num estilo-de-vida totalizante, que exige plena entrega de corpo e alma do
sujeito-empresa para a eficiência competitiva e a autovalorização. Esse sujeito é o
que assume plena responsabilidade por suas escolhas, assumindo risco individual
do fracasso ou sucesso, procurando autossuperação. Segue-se uma ética da exce-
lência profissional, a qual exalta os self-made-men. Na busca de alta performance,
o sujeito-empresa procura novas formas de “asceses” do desempenho, em que os
guros são os Coaches que, com diversas técnicas, da meditação às programações
neurolinguísticas, da psicologia e hipnose às palestras motivacionais, visam
fornecer ao indivíduo uma autossuficiência, um maior domínio de si mesmo, de
suas emoções, conquistando autoconfiança, uma maior eficiência na conquista de
objetivos pessoais e nas relações interpessoais (Dardot; L aval, 2016, p. 333-334,
338-339, 348, 350).
Tal lógica não é limitada à esfera econômica, mas coloniza outras esferas
da vida, conforme o novo dispositivo do desempenho/gozo. Como esse sujeito-
-empresa é fabricado para ganhar nas competições, a figura idealizada tende a
ser o desportista de alto nível, em vez de banqueiros bilionários. Daí o culto aos
esportes e seus mitos, como Michael Phelps, Usain Bolt, Simone Biles, Cristiano
Ronaldo. O ideal de alta performance também é muito influente na vida sexual, em
que se estimulam metas de parceiros variados e socialmente desejados, múltiplas
transas de longa duração e impecável desempenho, combinando habilidade em
posições e ritmos culminando em gozos de alta intensidade, respondendo a uma
libido que deve permanecer intensa em todas idades e circunstâncias. A questão é
vincular desempenho ao prazer, constituindo um sujeito que produz sempre mais
e goza sempre mais. O imperativo é viver no limite, se transcender, atingindo um
metagozo (Dardot; L aval, 2016, p. 353-356).
Se, de um lado, essa mentalidade alinha os interesses individuais ao da
empresa, motivando o trabalhador pela modulação de paixões, desejos, crenças
e emoções, de outro, isso não está separado de novos diagnósticos clínicos do
sujeito, com patologias mentais e definhamento das instituições e estruturas
simbólicas em que o sujeito se inseria. A sociabilidade hiperindividualista não
protege o sujeito do sofrimento no local de trabalho, do estresse, da frustração,

Plural 25.1
Da crise do liberalismo à hegemonia neoliberal 185

dos assédios, da solidão, da depressão, da ansiedade e da ideação suicida. Ao


contrário, a defesa do acúmulo de um capital emocional que tornaria o indivíduo
resiliente ao sofrimento psíquico intensifica a culpa individual, dificultando a
superação desse cansaço-de-si-mesmo. Como o estilo de vida ultracompetitivo faz
indivíduos competirem como se mercadorias fossem, enaltecendo os vencedores
e desprezando os não-adaptados, estes são vistos como incapazes de lidar com os
desafios da vida, sendo os “piores membros” da sociedade numa atualização das
concepções do darwinismo social (Dardot; L aval, 2016, p. 359-367).
A principal contribuição da obra é enfatizar como a esquerda não conseguirá
se contrapor ao neoliberalismo se limitar sua compreensão às suas teorizações e à
série de medidas político-econômicas que levam seu rótulo, sem compreender que
se trata, sobretudo, de uma racionalidade interiorizada com diversas implicações
práticas. Assim, a importância do livro de Dardot e Laval está na articulação dos
elementos dessas três frentes do fenômeno do neoliberalismo em um contexto que
a necessidade de entendê-lo é eminente. Como os autores alegam, é mais fácil sair
de uma prisão do que de uma subjetividade normalizada, sendo que a única forma
de resistência é a elaboração de formas alternativas de subjetivação. Isto demanda
um esforço de imaginação política, que os autores também abraçam, tentando
pensar a lógica do comum como a adversária da neoliberal, em um contexto em
que a crise do neoliberalismo vem indicando não sua superação, mas sua radica-
lização (Dardot; L aval, 2016, p. 396).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dardot, Pierre; L aval, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016 [2009].

2018
Resenha

Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita,


volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro
Epistemological fronts, political fronts: review of Direita, volver!
O retorno da direita e o ciclo político brasileiro
César Niemietza

Velasco e Cruz, Sebastião; K aysel , André; Codas, Gustavo (Orgs.) Direita, volver!: o
retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2015, 304 p.

No Brasil, a agenda de pesquisa em Ciências Sociais tem se modificado de


maneira intensa, de modo que a forma de lidar com as atuais contingências no
terreno das ideias e das práticas passou a exigir esforços cada vez mais coletivos.
Nesse cenário vertiginoso de ascensões e declínios de forças sociais conservadoras
e progressistas, o adiantado da hora serve como provocação aos cientistas sociais,
estimulando entre eles a necessidade de desenvoltura para analisar os fenômenos
in flux, antes considerados domínio de jornalistas e fast thinkers midiáticos de
plantão. E é este o desafio geral dos estudos reunidos em Direita, volver! O retorno
da direita e o ciclo político brasileiro, organizado por Sebastião Velasco e Cruz,
André Kaysel e Gustavo Codas: tensionar a análise sociológica de conjuntura.
Ao longo das trezentas páginas e catorze artigos que preenchem a obra, dezoito
autores escrevem, cada qual do seu respectivo posto de observação, sobre os temas
que consideram mais urgentes para o entendimento das recentes dinâmicas sociais
observadas no Brasil e em alguns de seus vizinhos continentais – o Paraguai, ao sul,
e os Estados Unidos, ao norte – focalizando a feroz tomada de assalto da direita
nos principais campos de disputa que compõem o atual contexto nacional e inter-
nacional, bem como suas interações com os polos pertencentes ao campo do poder.
Se desde a redemocratização a direita brasileira tentou de algum modo se
libertar da consciência de si, uma vez que “ser de direita” havia saído de moda com
a crise do regime militar e a posterior abertura política, a segunda metade dos
anos 2010 parece retomar o resgate do orgulho de valores e ideias conservadoras e
reacionárias, evidenciando a emergência de um novo ciclo, no qual o pensamento
progressista parece perder espaço a cada renovada leitura do jornal diário. Embora

a Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade de São Paulo.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.186-201
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 187

esse fenômeno já seja investigado há algum tempo pelos pesquisadores europeus


e anglo-saxões, pode-se afirmar que a fortuna crítica sobre o tema aqui no Brasil
é ainda incipiente, destacando assim a importância da obra apresentada.
No primeiro artigo da coletânea, “Elementos de reflexão sobre o tema da
direita (e esquerda) a partir do Brasil no momento atual”, Sebastião Velasco e
Cruz realiza uma reconstrução histórica dos usos sociais da divisão esquerda/
direita, enfatizando as dinâmicas políticas nacionais em seus processos revolu-
cionários e contrarrevolucionários. Para além da tradicional tese essencialista
feita por Norberto Bobbio, segundo a qual o elemento último de orientação das
posições assumidas pela direita e pela esquerda se encontra na assimilação oposta
do ideal da igualdade (atitude positiva à esquerda, e negativa à direita) (Bobbio,
1994), Velasco e Cruz procura enfatizar as identidades, tradições e origens que
circunscrevem as duas posições nas lutas políticas e sociais em seus respectivos
contextos nacionais.
O exercício inicial de leitura histórica realizado pelo autor indica a possi-
bilidade de um diagnóstico acerca da atuação das direitas nacionais na recente
conjuntura política global, qual seja o de que em meio a irregulares avanços e
retrocessos no campo das políticas sociais progressistas, o Brasil está inserido no
centro da disputa entre esquerda e direita no continente americano, consubstan-
ciada pelos elementos antigos e modernos de sua formação histórica. O aspecto
novo desse processo estaria no radicalismo com que os porta-vozes da direita tem
se municiado nas disputas pelo espaço público.
No artigo seguinte, “Regressando ao regresso: elementos para uma genealogia
das direitas brasileiras”, de André Kaysel, as mutações das políticas conservadoras
durante a história do Brasil são investigadas. Nele, o autor encontra no período do
Império e na Primeira República as raízes da conflituosa e ambígua relação entre
liberalismo e conservadorismo, bem como os antigos recursos das atuais caracte-
rísticas atribuídas à “nova” direita brasileira. Trata-se de uma desmistificação do
“novo”, em benefício de uma análise que conecta ao presente outras manifestações
conservadoras realizadas no passado. Assim como os tambores evocam memórias
ancestrais, as panelas percutidas durante o processo de impeachment remontam
também às longínquas tradições do povo brasileiro.
Segundo Kaysel, quatro paralelos são suficientemente nítidos para que não
sejam desconsiderados pelos analistas de conjuntura: a) o moralismo capitaneado
pela UDN nos anos 1950 e 1960 e as multidões que atualmente se manifestam nas
ruas; b) as críticas ao intervencionismo estatal da política econômica do primeiro
mandato de Dilma Rousseff e as que foram feitas durante o segundo governo de

2018
188 César Niemietz

Vargas; c) os atuais discursos que apregoam a necessidade de medidas firmes


contra a corrupção e as ideias defendidas por pensadores autoritários nos anos
1920 (a exemplo daquelas apresentadas por Oliveira Viana); d) o ambiente pré-
-golpe de 1964, no qual havia uma ojeriza aos discursos que propunham mudanças
favoráveis à diminuição das desigualdades sociais, e o que se pode observar hoje,
nos ataques cada vez mais frequentes cometidos contra representantes desses
discursos. Tais indicações de Kaysel nos demovem da tendência a representar o
atual contexto como mero fruto de condicionantes inéditos. É o caso também do
artigo de Schilling e Koerner, que resgata um percurso narrativo usado com certa
frequência na vida política brasileira, a saber o da atuação do poder judiciário na
política nacional.
Antes de ser algo específico do presente momento, no qual verificamos a cres-
cente expectativa, em meio ao debate público, de restituição da moralidade e da lei
na figura de juízes e promotores públicos, o discurso jurídico acusador da política
corrompida também mastreou a oposição do segundo mandato de Vargas. Além
disso, tal discurso serviu como importante mote no golpe militar de 1964 e esteve
presente também na Nova República desde o seu início. Um roteiro conhecido no
qual os papéis já estão dados, restando apenas a designação dos atores sociais:
denúncia → escândalo → condenação moral e política → condenação purificadora,
realizada por “juízes imparciais que vêm restaurar a ordem” (Schilling; Koerner,
2015, p. 76). Circuito lógico que define os limites políticos da atuação de certas
oligarquias existentes na ordem democrática, respaldadas pelo discurso passível
de interpretações que caracteriza o Estado de direito.
Política e justiça, dessa forma, dissociam-se na doxa que se impõe. Esta, por
sua vez, caracteriza-se, de acordo Pierre Bourdieu, como uma produção discursiva
fundamentada na “incompetência científica politicamente competente” (Bourdieu,
1985, p. 154), enunciada por supostos especialistas fadados “a dar aparências
de ciência a um terreno em que as aparências sempre são a favor da aparência”
(Bourdieu, 1985, p. 154). Tais especialistas do senso comum são amparados pelo
sedutor discurso da imparcialidade presente nos representantes das instituições
judiciárias, que se promovem como restituidores naturais do vigor de regimes
democráticos afetados pelas supostas vicissitudes de uma cultura democrática
corrompida. No contexto brasileiro recente, o direito tende a se definir como uma
racionalidade prática favorável a setores sociais específicos, de modo a contribuir
para a “distorção dos processos de formação de opinião pública e, com isso, da
própria democracia” (Schilling; Koerner, 2015, p. 88).

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 189

Ainda no que se refere às doxas, Venício de Lima apresenta no quarto capítulo


uma análise fundamental sobre os mecanismos de sua reprodução nos meios de
comunicação. De saída, devemos lembrar que o perfil dominante dos jornalistas
e articulistas que compõem as redações das grandes empresas jornalísticas
brasileiras é de direita, e o autor parte dessa premissa, já amparada por análises
anteriores, para explorar a firme militância conservadora das empresas de comu-
nicação no Brasil. Ressalta-se que aqui ainda vigora a ausência de legislação sobre
a chamada propriedade cruzada, na qual um mesmo empresário pode possuir
diferentes meios de um mesmo mercado – rádios, televisões aberta e paga, portais
de internet, jornais impressos – fazendo com que a atuação das empresas de
comunicações ofereça pouca pluralidade editorial.
Essas características vigoram em nossa vida pública desde os anos 1930,
quando das primeiras concessões de serviços de rádio e, posteriormente, nos anos
1950, dos serviços de televisão. Sobre essa prática consolidada, Lima oferece um
breve balanço que investiga a participação desses grandes conglomerados midi-
áticos na legitimação de intervenções reacionárias e propostas conservadoras
desde o golpe de 1964. Viu-se, naquele momento, a complexa contradição que
permanece até hoje no discurso da imprensa: assume-se o discurso da política
democrática ao mesmo tempo em que são realizados apoios às práticas políticas
que defendem seu oposto.
Tanto ontem como hoje, o que se verifica no estudo da participação das
grandes empresas brasileiras de comunicação é a existência de um embasamento
ideológico previamente formatado pelos thinks tanks de direita. Se hoje as rela-
ções entre o Instituto Millenium e o jornal O Estado de S. Paulo são conhecidas
de todos – O Estado, junto com outras empresas, é um de seus financiadores –,
quando da formulação de justificativas para o golpe de 1964, não foi diferente.
Naquele contexto, muito importante foi a criação da Rede de Democracia, em
1963, para a formulação da ideologia dominante contrária ao governo de João
Goulart. Essa entidade consistia numa cadeia de emissoras de rádio que tinham
como seus consultores empresários, políticos e intelectuais ligados ao Instituto
de Pesquisa Social (IPES) e ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD),
ambos notadamente antiesquerdistas. Essas colorações ideológicas eram pronta-
mente publicadas nos grandes jornais do período.
Embora as gerações mais recentes não estejam diretamente conectadas às
tradicionais empresas de mídia como outrora estiveram, pode-se afirmar que
a lógica de atuação dessas empresas impregnou de tal maneira a produção das
notícias, que mesmo indiretamente sua influência é ainda muito presente, através

2018
190 César Niemietz

da padronização dos mecanismos usados para a apresentação da informação. A


atual estratégia de desqualificação da política e dos políticos (system blame) é uma
das práticas visíveis nos grandes jornais em momentos de acentuação da crise
democrática. Ao invés de analisar as causas econômicas e afins, os jornalistas
e formadores de opinião da grande mídia atuam de maneira insidiosa. Segundo
Maria do Carmo Campello de Souza, citada por Schilling e Koener, a tendência
à denúncia (fundamento básico de potencialização da venda da notícia, diga-se
de passagem) estabelece no senso comum uma “ligação direta e extremamente
nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos
regimes democráticos” (Souza apud Schilling; Koerner, 2015, p. 100), resultando
em uma desqualificação seletiva de determinados setores da sociedade, dando a
impressão de que “corrupção, cinismo e desmando são monopólios dos políticos,
dos partidos ou do Congresso” (Schilling; Koerner, 2015, p. 100).
Há de se ressaltar também o comprometimento das grandes empresas jornalís-
ticas com a rejeição das propostas de regulação dos meios de comunicação, sendo
que essa importante pauta democrática passa a ser associada pelos conglomerados
midiáticos a supostas posições autoritárias de esquerda. Nesse terreno pouco
aberto à participação democrática, a emergência de discursos de ódio simplifica-
dores, definidos e difundidos a partir dos grandes veículos, tem livre circulação
no debate público. Esses componentes contraditórios, segundo Lima, contribuem
para a compreensão da defasagem entre discurso democrático e práticas antide-
mocráticas realizadas pelas empresas de comunicação.
Dos dados trazidos pelo artigo de Codato, Bolognesi e Roeder, intitulado A
nova direita brasileira: uma análise da dinâmica partidária e eleitoral do campo
conservador, vários corroboram a tese de que a direita no Brasil vem crescendo
de maneira significativa, tendência esta que acompanhou o crescimento da ala
mais extremada da direita também na Europa (Reino Unido, Grécia, Alemanha
e Hungria). Embora o artigo tenha sido escrito antes do Brexit e da vitória de
Donald Trump, os autores já haviam notado, em 2015, a adesão dessa chamada
“nova direita” à agenda anti-imigração.
A direita renovada, no Brasil, retirou da antiga – Arena e PDS – a manutenção
de posturas conservadoras em relação aos costumes. Todavia, diferente dela,
adotou elementos novos que antes não eram observados, a exemplo da formação
de alianças com setores mais alinhados à esquerda e propensos a admitir estra-
tegicamente certos programas sociais. Essa hipótese, no próximo e distante ano
de 2015, foi apresentada a partir da leitura que os autores fizeram dos dados
estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral. A pesquisa empreendida pelos autores

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 191

teve como intuito a investigação da força partidária representada por candidatos a


deputados federais – bem como aqueles que foram eleitos – nas eleições de 1998,
2002, 2006 e 2010.
Por sua vez, Marco Antonio Faganello, em “Bancada da bala: uma onda da
maré conservadora”, aponta para a miríade de posicionamentos à direita que,
embora não possam ser reduzidos a uma totalidade definida por concepções
estritamente idênticas, possuem uma unidade conjuntural. É possível, desse modo,
estabelecer uma série de tipologias habitáveis no seio mesmo da macro-categoria,
de forma que essas categorias tendem a flutuar de acordo com as tensões que se
observam nesse espaço. Das derradeiras eleições de 2014, mantiveram-se nas
casas legislativas, segundo o autor, ao menos três sub-grupos principais: Bancada
Empresarial, reunindo os estandartes do liberalismo econômico; Bancada Religiosa
Conservadora, empenhada na cruzada pelos direitos da família e pela moralização
dos costumes; Bancada da Bala, representante dos setores favoráveis à redução
da maioridade penal e contrários ao Estatuto do Desarmamento.
O caso paulista demonstra bem a força que a Bancada da Bala vem ganhando
em meio à maré conservadora mais geral. Entre os parlamentares que foram eleitos
em 2012, muitos ostentavam graves discursos que violavam premissas básicas dos
Direitos Humanos. Em sua grande maioria vinculados às instituições militares,
os deputados e vereadores dessa bancada desfrutam de grande popularidade no
eleitorado mais suscetível a acreditar que a questão social pode ser reduzida à
securitização dos espaços públicos. Nessa lógica, a referida bancada vem engros-
sando o caldo dos defensores de “menos direitos e mais deveres” – expressão de
uma ideologia securitária-autoritária que ganha crescente terreno na política
institucional –, justificando ações extremistas e discursos de ódio contra minorias
e populações com menos acesso aos bens públicos e privados.
Tem-se uma ideologia que canaliza os ódios em direção a determinados
setores, retirando a responsabilidade de outros. Assim, o policial, a despeito das
precárias condições de trabalho em que exerce suas atividades, é apresentado
como um legítimo herói, portador de uma “autonomia radical” (Faganello, 2015,
p. 151). Aos críticos dos abusos dessas forças é atribuído o epíteto de “defensores
de bandidos”. Todavia, esse aparato discursivo não se sustenta por si só, uma vez
que não há coesão lógica, pois “se constitui enquanto uma disposição difundida
nas relações sociais cotidianas, com certa fluidez e falta de rigor lógico-formal,
sem propósitos pautados objetivamente para a conformação de uma ação política
coordenada” (Faganello, 2015, p.153).

2018
192 César Niemietz

Embora seja impossível aferir que os estratos médios tendem sempre a assi-
milar esses discursos com mais facilidade, no caso da cidade de São Paulo, estudado
pelo autor, há uma correlação entre a proeminência desses discursos autoritários-
-securitários e os referidos estratos. O mesmo não é observado nos estratos mais
periféricos da cidade, uma vez que se observa entre eles sobretudo a votação em
candidatos alinhados ao discurso religioso que, embora não possa ser reduzido
e compreendido como expressão do conservantismo, possui relações profundas,
como indicam os recentes estudos efetuados pelos sociólogos que atualmente se
dedicam à análise das questões religiosas.
No capítulo sete, a relação entre o discurso religioso e os pensamentos perten-
centes ao espectro da direita é pesquisada por Julio Córdoza Villazón, em artigo
intitulado “Velhas e novas direitas religiosas na América Latina: os evangélicos
como fator político”. Afirma o autor que a presença evangélica no espaço público
latino-americano, de maneira esquemática, sucedeu-se por quatro etapas. A
primeira delas, datada da passagem do século XIX para o século XX, pautou-se
pela defesa da liberdade religiosa frente o Estado. O segundo momento esteve rela-
cionado com a polarização ideológica dos anos 1960 e 1970, na qual os evangélicos
assumiram uma postura pouco combativa contra regimes militares, tendendo a
apoiá-los. Já nos anos 1980 e 1990, durante o processo de redemocratização, a
presença religiosa passou a se institucionalizar na lógica partidária, sendo possível
assinalar a criação de partidos políticos de base evangélica. Por fim, a partir dos
anos 2000 o que se percebe é a mudança de atuação política dos evangélicos, não
mais veiculadas sobre partidos abertamente de confissão evangélica, mas sim
através de uma força moral exercida sobre partidos diversificados.
No século XXI, de acordo com Villazón, os autointitulados grupos “pró-família”
e “pró-vida” passam a adquirir uma grande influência na vida política brasileira.
A composição social desses grupos, como se sabe, obedece a um discurso rigo-
roso, e muitas vezes abertamente intransigente, segundo o qual há um modelo
correto de socialização centrado na família nuclear, heterossexual e liderada pelos
homens. Quando presente no espaço público, tais discursos tendem a estabelecer
práticas avessas às mudanças sociais. Os discursos teológicos, por serem lidos
como sagrados, tendem a se impor sobre as diferenças no jogo político ao redor da
América Latina, como é o caso das batalhas travadas sobre os corpos das mulheres
no que se refere às tentativas de regulamentação do aborto e da implementação de
métodos contraceptivos, atualmente em curso em países como Brasil, Nicarágua,
Costa Rica, Peru, Equador e Bolívia.

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 193

A classe média, como se sabe, é vasta em sua composição, de modo que é


possível criar subdivisões conceituais em seu interior. Segundo Sávio Cavalcante,
no oitavo capítulo, “Classe média e conservadorismo liberal”, uma das categorias
sociais que vêm desempenhando um papel político importante desde as manifes-
tações de 2013 é a chamada alta classe média, que pode ser caracterizada segundo
alguns atributos aproximados: possuidora de rendimentos superiores a dez salá-
rios mínimos e não integrante da esfera do 1% mais rico da sociedade brasileira;
profissionais com alto grau de autonomia (médicos, professores universitários,
gestores públicos em cargos de direção, engenheiros e economistas); detentores
de alto capital cultural.
A tese defendida pelo autor é a de que o ciclo político dos governos do Partido
dos Trabalhadores (2003-2015), através de políticas neodesenvolvimentistas
que pouco atacaram o núcleo do pensamento neoliberal consolidado nos anos
1990, secundarizaram o “critério meritocrático como forma de escolha/seleção
em instituições ou serviços públicos” (Cavalcante, 2015, p. 180), potencializando
a reprodução social da classe média, não apenas no que diz respeito à ascensão
financeiro-econômica, observada na ampliação do consumo, mas também nos
componentes ideológicos próprios dessa classe, a exemplo da ideologia do dom e
do merecimento, que naturalizam desigualdades sociais previamente existentes
nas trajetórias pessoais.
O capítulo nove, “Protestos à direita no Brasil (2007-2015)”, escrito por Luciana
Tatagiba, Thiago Andrade e Ana Claudia Chaves Teixeira trata da onda de protestos
recentemente protagonizados pela direita. No artigo, os autores buscam o momento
de mudança da hegemonia desempenhada pela esquerda nas ruas desde a redemo-
cratização: 2015 foi o ano em que, pela primeira vez desde o fim do regime militar,
a direita se organizou para realizar atos de protesto contra a situação política do
país. Todavia, a construção dessa disposição foi iniciada de maneira mais evidente
em 2007, quando do surgimento do então incipiente “Cansei”, movimento liderado
por setores pertencentes às camadas médias e altas da sociedade brasileira que
se manifestaram inicialmente contra o acidente envolvendo o voo 3054, da TAM
Linhas Aéreas.1

1 Ao observador atento não passou despercebido que a atual promessa de renovação do PSDB,
o empresário João Dória Jr., atuou como um dos líderes, dez anos atrás, dos atos do Cansei.
Na ocasião, Dória Jr. afirmou que as duas principais pautas do movimento eram o combate
à corrupção e a reforma tributária. Desde então, como se viu, tais bandeiras permaneceram
flamulando nos movimentos de direita. Ver: “Prefiro cães à ladrões”, entrevista publicada em
Revista Veja, edição 2023, 29 de agosto de 2007.

2018
194 César Niemietz

Desde então, os atos realizados por esses setores mantiveram o mesmo


mote de duras críticas ao Partido dos Trabalhadores, associado pelos manifes-
tantes à corrupção e ao mau uso da máquina pública. Assim, a despeito das reais
responsabilidades dos governos do PT no que diz respeito à corrupção do sistema
político, houve a partir desse momento uma grande construção social do discurso
antipetista entre os setores médios e altos, reverberado pela cobertura sempre
parcial da mídia brasileira. Vociferada em uníssono pelos manifestantes, a posição
antipetista foi o principal elemento agregador presente nos atos de protesto que a
direita protagonizou a partir de então.
Com a internet, a articulação dos setores conservadores vem ganhando novas
formas de manifestação. No décimo capítulo que compõe o livro, “Direita nas redes
sociais online”, Sérgio Amadeu investiga a dinâmica da direita junto ao “ecossis-
tema comunicacional” (A madeu, 2015, p. 215), possibilitado pelo ambiente digital.
Nesses espaços, Amadeu afirma que se constituiu uma ambivalência fundamental,
já que a presença da diversidade de matizes sociais e políticas possibilita uma
disseminação também de conteúdos antidemocráticos, contrários aos Direitos
Humanos e outras causas duramente conquistadas por setores progressistas, uma
vez que, segundo as pesquisas realizadas pelo autor, as informações trocadas pelos
usuários depreendem seu lastro de veracidade a partir de laços de amizade ou de
simpatias, a despeito da factualidade a elas atribuídas.
Novamente, um momento de inflexão é observado a partir das manifestações
de junho de 2013, já que a pesquisa acerca da movimentação das redes sociais no
período evidencia que a internet passou a ser uma das principais arenas de disputa
pelas visões de mundo à esquerda e à direita. O efeito negativo dessa mudança
de espaços de disputa recaiu sobre os tradicionais partidos e sindicatos, uma vez
que não conseguiram acompanhar de imediato as novas estratégias em jogo. O
efeito positivo, de acordo com o autor, foi um dos responsáveis pela formação de
uma nova direita:

A esquerda foi mais lenta e menos capaz de disputar o senso comum nas redes
sociais. A direita cresceu compartilhando reportagens da revista Veja, textos de
Olavo de Carvalho, discursos do Bolsonaro, notícias contra a corrupção do PT
combinadas às críticas contundentes às políticas sociais do governo Lula (Ama-
deu, 2015, p. 223)

Uma dessas novas estratégias de disputa no espaço inaugurado pela internet é


a dos chamados memes, ideias que possuem forte apelo emocional e que dialogam

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 195

diretamente com o senso comum, replicadas exaustivamente com maior ou


menor intensidade pelos usuários durante um certo período. Embora não seja
conscientemente definido pelos que os compartilham, o memes fazem parte do
léxico político utilizado na internet, e a análise de sua potência tem se mostrado
importante para a compreensão dos discursos que fundamentam as tomadas de
posição no atual espaço público. Os perfis e as páginas de direita que produziram
memes de cunho político, segundo o levantamento de Amadeu, incidiam em três
principais posições: a) a esquerda trouxe consigo a corrupção como prática de
governo; b) as políticas sociais dos governos de esquerda beneficiam pessoas que
optam por não trabalhar; c) a noção de direitos humanos serve apenas para que
os criminosos fiquem impunes (A madeu, 2015, p. 224).
O levantamento de Sérgio Amadeu também traz outros dados reveladores para
a compreensão das últimas disputas políticas. Segundo ele, no primeiro semestre
de 2015, as principais lideranças da direita alcançaram, através da internet, uma
audiência diária próxima a 40 milhões de usuários. Por fim, o autor faz ressalvas
à tese de que o poder político do país é alcançado apenas através da ocupação
dos governos, pois, segundo ele, os até então chamados “militantes de sofá”, ao
participarem dos debates públicos através das redes sociais online, exercem uma
significativa influência na reprodução de valores conservadores e autoritários.
O artigo de Álvaro Bianchi, “Buckley Jr., Kirk e o renascimento do conserva-
dorismo nos Estados Unidos”, traz uma extensão dos temas até então trabalhados
no livro para o contexto internacional. Bianchi esboça uma linhagem presente no
renascimento do pensamento conservador dos Estados Unidos iniciado a partir
dos anos 1950. Essa vertente teve como seus divulgadores pensadores decididos
a interferir na guerra pelas “mentes da geração emergente” (Bianchi, 2015, p. 258)
defendendo ataques agressivos a qualquer forma de expressão política ligada ao
coletivismo, sobretudo os comunistas e simpatizantes de ideias progressistas de
mudança social e de maior presença do Estado na economia – atribuídos à tradição
do liberalism estadunidense.
Nos Estados Unidos, o ambiente instado pelo pós-guerra definiu a luta pelos
corações e mentes como um dos principais espaços de disputa. Duas trajetórias
são assimiladas por Bianchi para expor esse campo de batalhas pelas ideias junto
ao espaço público do período 1960-1980: a de William Buckley Jr. e de Russell
Kirk. A presença de ambos foi bastante significativa no embate empreendido
pelos conservadores contra os liberais, sendo a união de forças entre diferentes
correntes do conservadorismo estadunidense fundamental para a emergência das

2018
196 César Niemietz

políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1980 – Reagan, grande


admirador dos dois, condecorou-os com a Presidential Citizens Medal, em 1989.
Buckley Jr. foi fundador da revista National Review, em 1955, e através dela
exerceu grande influência na disseminação do pensamento radical de direita,
alinhado ao conservadorismo. Kirk, por sua vez, autor de The Conservative Mind,
notabilizou-se pelo violento ataque contra o pensamento liberal e pela reconsti-
tuição da história dos Estados Unidos através da linhagem de pensadores iniciada
por Edmund Burke. Tanto um quanto outro defendiam a urgência na elaboração
de uma frente ampla no terreno da cultura, de maneira a promover uma reforma
ética capaz de cessar a presença de ideias progressistas e comunistas no debate
público estadunidense.
O capítulo “A organização das células neoconservadoras de agitprop: o fator
subjetivo da contrarrevolução” foi escrito por Reginaldo C. Moraes. No artigo,
percebe-se que para além dos já tradicionais meios de barganha política nas
democracias representativas ao redor do mundo, oficialmente canalizadas pelos
partidos políticos, associações e sindicatos – bem como extraoficialmente, no caso
brasileiro, pelos lobistas de grandes empresas – Moraes traz ao debate a presença
e a força dos chamados think tanks na dinâmica política e social. Tais think tanks,
ressalta-se, não podem ser considerados meras instituições que atuam orientados
pela aprovação dos interesses dos meios empresariais junto aos governos, uma vez
que “não se limitam a modular as políticas. Tentam é modelar o ambiente geral da
política, a agenda” (Moraes, 2015, p. 232). Essa característica nuclear de atuação
tem se destacado de maneira crescente na análise das práticas e dos discursos em
voga na Administração Pública.
Assim, enquanto os lobbies são caracterizados pelo assédio direto aos agentes
governamentais capazes de conduzir votações legislativas em benefício do empresa-
riado, os think tanks operam na esfera da remodelagem das informações e debates
levados ao espaço público pautados pelo lema “mais mercado, menos Estado”:
como exemplo disto estão as reformas trabalhistas, tributárias, urgência das
privatizações etc. Tais espaços são definidos sobretudo na imprensa – produção
de press releases e difusão das pesquisas realizadas por essas instituições – e
nas universidades – criação de cátedras, revistas, patrocínio de eventos etc. –,
cumprindo-se, segundo Moraes, o papel de agenda setting e de framing. O esforço
não parece ter sido em vão, haja visto a manutenção da imagem positiva do empre-
sariado brasileiro em meio aos escândalos de corrupção que tem protagonizado
nos últimos anos.

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 197

A presença e o crescimento dos think tanks tem se tornado uma questão


bastante importante para compreender a difusão de determinadas visões de
mundo junto aos meios de comunicação e às instituições públicas.2 No Brasil
conta-se atualmente com 89 instituições que correspondem aos critérios definidos
pelo Global To Go Think Tanks Index Report.3 O termo, originado nos Estados
Unidos no contexto da Guerra Fria esteve desde então associado a instituições
que promovem visões de mundo alinhadas às tendências encontradas entre os
variados pensamentos de direita. Entretanto, a despeito da diferença de aborda-
gens receitadas para os formuladores de políticas públicas e influenciadores de
opinião (por Hayek chamados de “ideólogos de segunda classe”), a maioria dessas
instituições está de acordo com a redução do papel do Estado junto à economia.
A atuação desses think tanks, inicialmente discreta e pouco associada à esfera
pública, ganhou contornos de ativismo político a partir da década de 1970, cujo
modelo de referência se tornou a Heritage Foundation, de 1973. Nos anos 1980,
essas instituições foram as principais formuladoras das políticas neoliberais nos
Estados Unidos e na Inglaterra, o que explica em grande parte a similaridade
existente entre os discursos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan – bem como a
posterior difusão para os então chamados países em desenvolvimento – resultantes
do intercâmbio entre intelectuais e ativistas de direita oriundos desses dois países.
O crescimento desde então se manteve constante. Durante anos 1970, os Estados
Unidos, que contavam com cerca de 70 instituições, passou a abrigar aproxima-
damente 300 delas, mantendo-se no topo do ranking de número de thinks tanks e
de influência sobre políticas públicas disseminadas ao redor do mundo. Nos anos
1980, essas instituições propagadoras do ideário neoliberal se reuniram em uma
central coordenadora, denominada Atlas Economic Research Foundation – atual
Atlas Network – que se expandiu de maneira exponencial, fomentando outras
semelhantes ao redor do mundo.
Como se sabe, o Chile durante o governo de Pinochet foi um país estratégico
para as experimentações neoliberais durante os anos 1970. Todavia, os think
tanks defensores do neoliberalismo começaram a ganhar terreno na América

2 A definição oferecida por Camila Rocha engloba todas as instituições permanentes de “pesquisa
e análise de políticas públicas que atuam a partir da sociedade civil, procurando informar e
influenciar tanto instâncias governamentais como a opinião pública no que tange à adoção de
determinadas políticas públicas” (Rocha, 2015, p.262).
3 Os dados que Camila Rocha utiliza são provenientes do relatório de 2014, quando o Brasil contava
com 82 instituições. Em dois anos esse número subiu para 89 instituições. A Argentina, país no
qual se encontram o maior número de thinks tanks da América Latina, manteve estável sua lista
de 137 instituições, o que demonstra uma crescente tendência na criação dessas instituições no
Brasil. Ver: Global Go To Think Tank Index Report, University of Pennsylvania, 2016.

2018
198 César Niemietz

Latina somente durante os anos 1980 e 1990, e atuação do Atlas, nesse sentido,
foi fundamental para a padronização do discurso levado adiante por essas insti-
tuições recém-criadas.
Com o passar dos anos as políticas públicas implementadas sob influência
desses thinks tanks não resultaram necessariamente em crescimento econômico e
melhores condições de vida para as populações, contrariando na prática o discurso
formulado pelos seus defensores. Na América Latina, esse fracasso acarretou
uma crescente simpatia por agendas políticas progressistas como ficou evidente
nas eleições que levaram ao poder vários políticos de esquerda, durante primeira
década dos anos 2000. Com o referido turn left, os think tanks latino-americanos
passaram a desfrutar de menor influência direta nos governos, o que resultou
numa mudança em suas frentes de atuação, buscando uma maior abrangência e
disseminação de suas visões de mundo nos setores civis. Desde então esses think
tanks não pararam de crescer: em 2005 eram 35; em 2014, período abordado pelo
artigo de Camila Rocha, eram 72; e em 2017, são 82 instituições filiadas ao Atlas,
4
todas elas recebendo constantes e crescentes aportes financeiros de variados
setores ligados ao empresariado nacional e internacional.
O último capítulo da obra, intitulado “O golpe parlamentar no Paraguai. A
dinâmica do sistema de partidos e o poder destituinte do Congresso”, escrito por
Fernando Martínez-Escobar e José Tomás Sánchez-Gómez, amplia o olhar para
o que ocorreu no Paraguai em 2013, com a controvertida deposição do presi-
dente eleito Fernando Lugo, através do impeachment organizado pelo Congresso.
Segundo os autores, o Congresso paraguaio se tornou um poder destituinte-arbi-
trário, de modo que as maiorias políticas adquiriram a capacidade discricionária
de deposição de um presidente legitimamente eleito com base em provas incon-
sistentes – de “conhecimento público”, no caso.
As raízes do processo são familiares a vários países da América do Sul. No
caso específico do Paraguai, desde o século XIX, as mudanças políticas haviam
sido efetuadas contando sempre com o protagonismo das forças armadas, aliados
a setores civis, em detrimento de mecanismos políticos democráticos. Segundo
os autores, somente na eleição de Fernando Lugo, em 2008, houve de fato uma

4 No Brasil as instituições filiadas à rede Atlas e que defendem o livre mercado são: Centro In-
terdisciplinar de Ética e Política Personalista, Estudantes Pela Liberdade, Instituto de Estudos
Empresariais, Instituto de Formação de Líderes, Instituto Liberal de São Paulo, Instituto Li-
beral, Instituto Liberdade, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, Instituto Millenium, Líderes do
Amanhã, Mackenzie Center for Economic Freedom e Students for Liberty Brazil. Ver: https://
www.atlasnetwork.org/partners/global-directory/latin-america-and-caribbean/3 (acessado
em 25/06/2017).

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alternância de partido na presidência. Todavia, não se pode afirmar que depois


disso houve a consolidação de fato de uma democracia representativa, na qual a
divisão de poderes e o pluripartidarismo estão incluídos. Ocorreu, em verdade,
uma mudança na dinâmica política, de modo que o número de canhões foi
deixado de lado, em benefício do número de cadeiras políticas, como afirmam
Martínez-Escobar e Sánchez-Gómez. Essa dinâmica instaurou aquilo que pode ser
compreendido como um julgamento político capaz de dissolver governos eleitos
pelo voto popular.
A genealogia traçada pelos autores indica uma mudança de influências dos
militares apenas no mandato de Juan Carlos Wasmosy (1993-1998), quando de uma
crescente manifestação popular que conduziu a aposentadoria forçada do então
influente general Lino Oviedo. Todavia, a despeito do fim do julgo sempre presente
dos militares, as decisões e forças transferidas para o Congresso permaneceram
arbitrárias, instituindo uma série de golpes civis (em 2003, contra Raúl Cubas
Grau, provocando sua renúncia; e a de seu sucessor, Luís Ángel González Macchi,
no mesmo ano), mas apenas em 2013, quando do processo de impeachment de
Fernando Lugo, foi levada a cabo sua culpabilização seguida de deposição. Tanto
as motivações quanto as reais responsabilidades do presidente foram consideradas
pouco importantes frente ao peso dos votos dos congressistas. Ou seja, tratou-se
de um mecanismo fora de lugar, uma vez que a atuação do Congresso foi pautada
por princípios do parlamentarismo, embora a constituição do país seja baseada
no presidencialismo, evidenciando-se as características do golpe. As acusações
contidas no Libelo Acusatório pouco importaram frente à perda de confiança do
presidente junto ao Congresso.
Desse modo, no caso do Paraguai, pode-se afirmar que houve uma justaposição
de condicionantes históricas, institucionais e políticas no golpe, decorrentes de
uma articulação de variados setores tradicionais da sociedade paraguaia. Estranho
presságio a obra terminar com essas conclusões, uma vez que poucos meses após
a publicação da obra aqui foi iniciado um processo similar ao do nosso vizinho,
que teve como efeito de escárnio a deposição de Dilma Rousseff pelo Congresso
Nacional.
A finalidade dos artigos reunidos pelos autores não é totalizante, o que fica
visível na variedade de frentes mobilizadas. Entretanto, os esforços compilados
fazem com que a obra permaneça atraente para os interessados em compreender os
variados arranjos da direita, através de suas práticas remodeladas. Entre possíveis
considerações finais pode-se ressaltar a importância da mobilização também de
sociólogos preocupados diretamente com outros terrenos de mudança discursiva,

2018
200 César Niemietz

destacando-se o vertiginoso crescimento da direita também na produção cultural


do Brasil nos últimos anos. Sobre isso, importa compreender como desde o funda-
mental Cultura e Política, de Roberto Schwarz, a esquerda parece estar afastada
– ou, pelo menos, sob ataque redobrado – daquilo que o crítico outrora identificou
como o domínio de sua hegemonia, a saber a produção cultural (Schwarz, 2001).
Além disso, uma análise – ou autoanálise – da atual posição ocupada pelas Ciências
Sociais na presente configuração do campo acadêmico é importante de ser reali-
zada, de maneira a tornar mais nítidos os universos de possibilidades existentes
para a atuação intelectual, bem como de investigar estratégias nas frentes de luta
epistemológica promovidas pela direita. Essas ausências, no entanto, só estimulam
a produção renovada e constante de esforços coletivos para a compreensão da
radicalidade e do efeito de integração que a direita vem adquirindo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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política e racionalidade jurídica na atual ofensiva conservadora”. In: Velasco e Cruz,
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direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2015, p. 75-91.

Plural 25.1
Frentes epistemológicas, frentes políticas: resenha de Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro 201

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de agitprop: o fator subjetivo da contrarrevolução”. In: Velasco e Cruz, Sebastião;
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Velasco e Cruz, Sebastião; K aysel , André; Codas, Gustavo. (orgs.) Direita, volver!: o
retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2015.

2018
Artigo

Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis:


perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa1
Aspects of individuality in superhero characters: sociological perspectives
and the case of captain américa
Cristiana D. Martinsa

Resumo  Em vista do destaque e da relevância que as personagens de super-heróis têm


tido no atual cenário cinematográfico e da compreensão do cinema como um objeto
específico e privilegiado para análise do mundo social, este artigo visa compreender
como, nessas personagens, estão construídos dilemas e anseios relativos à questão do
indivíduo e da individualidade na atualidade. Tomando-se os filmes como capazes de
fornecer pistas para a análise sociológica, como elabora Pierre Sorlin em sua proposta
para estudos sobre cinema, a metodologia privilegiada na investigação é a análise
interna do filme Capitão América – O Primeiro Vingador (Captain America: The
First Avenger, 2011).
Palavras-chave  Individualidade; Super-heróis; Cinema. Capitão América; Teoria
Sociológica.

Abstract  Due to the prominence and relevance of the superhero characters in the
current film scenario and the comprehension of cinema as a specific and privileged
object for analysis of the social world, this project aims to understand especially
how the dilemmas and anxieties related to the individuals and the individuality are
constructed in these caracters. As Pierre Sorlin elaborates on its proposal to film
studies, the preferred methodology in this research is the internal analysis of the
film Captain América: The First Avenger (2011).
Keywords  Individuality; Superheroes; Film; Captain America: Sociological Theory.

1 Este artigo compreende uma versão estendida do texto apresentado no II Seminário Discente do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. Formulado a partir
da pesquisa de mestrado “Super-heróis e indivíduos na contemporaneidade: dilemas e anseios
presentes nas personagens de Os Vingadores”, realizada na Universidade Federal de São Paulo
com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, sob a
orientação do Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai.
a Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Contato: cristiana.dmar-
[email protected].

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.202-225
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 203

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Figuras emblemáticas no contexto da cultura pop, primeiramente consoli-
dadas como personagens de Histórias em Quadrinhos (HQs), os super-heróis
têm retomado seu destaque através do cinema. Essa trajetória transmidiática,
que segundo especialistas traz diferenças significativas na forma como esse tipo
de personagem é retratada e construída em cada uma das mídias (A ranha et al,
2009), revelou-se comercialmente potente; os super-heróis no cinema são capazes
de levar multidões às salas de exibição ao redor do mundo e seu alcance ultrapassa
os limites da grande tela.
Faz-se interessante comentar que, apesar de terem demonstrado potencial de
mercado a partir dos anos 70, com filmes como Super-Homem (1978) e Batman
(1989), as adaptações das estórias de super-heróis dos quadrinhos para o cinema
ganharam verdadeiro destaque e consolidação enquanto gênero cinematográfico
no século XXI (A ranha et al, 2009, p. 88; Costa; Orrico, 2013, p. 7).

Embora sempre tenham sido feitas adaptações esporádicas dos super-heróis


nunca ocorreu um “fenômeno” como na atualidade. Transformando-as em algo
que poderíamos chamar de um “novo gênero” no cinema, o de “filmes de super-
-heróis”. [...] A partir de 2008, a Marvel Comics, analisando o sucesso de filmes
inspirados em seus super-heróis, como Homem-Aranha – lançado pela Sony
Pictures – e X-Men – lançado pela Twentith Century Fox – dentre outros, resolve
lançar com sua própria produtora de filmes – a Marvel Studios – uma série de
filmes adaptados dos seus personagens das HQs, com um maior controle sobre
todo o processo de adaptação. (Costa; Orrico, 2013, p. 7)

Esse fenômeno, como apontam os autores, pode ser relacionado às transforma-


ções no perfil psicológico das personagens do tipo super-herói. Já fora observado
que esse tipo de personagem, ao longo da história, seja nos filmes ou nas HQs,
vêm sofrendo mudanças e sendo reinventadas (Chagas, 2008, p. 136). Em relação
às últimas décadas, foi observado um processo de humanização dos super-heróis
onde, hoje, os perfis psicológicos dessas personagens envolvem crises de identidade,
fraquezas, incertezas e sensibilidade (Chagas, 2008, p. 151).
A figura do herói não é exclusiva da sociedade moderna, porém, é na moderni-
dade que surge a imagem específica do super-herói, nascida nos gibis dos anos 30
(Souza, 2013, p. 71). Esta figura, do super-herói, sempre esteve ligada aos anseios
dos indivíduos modernos, como demonstrou Umberto Eco, autor referência em
estudos sobre super-heróis e sociedade. Eco observou, ao analisar as estórias do

2018
204 Cristiana D. Martins

Superman, que o primeiro dos super-heróis modernos respondia simbolicamente


às “exigências de poder que o cidadão comum nutre e não pode satisfazer” (Eco,
2011, p. 247). Entretanto, como mencionado acima, hoje a perfeição, a invencibi-
lidade e a moral irrepreensível do super-herói não são mais o que aparece como
principal nas personagens do gênero. Rahde e Cauduro apontam que, em compa-
ração ao herói do começo do século XX,

O herói pós-moderno, como as personagens das histórias em quadrinhos ou


as do cinema contemporâneos, é pleno de incertezas, e não mais o ser invencí-
vel do bem e da verdade, pois é marcado por desconstruções visuais e textuais,
demonstrando a sua fraqueza, suas incertezas e sensibilidade frente às lutas
cotidianas. O herói pós-moderno é muitas vezes o anti-herói, tentando conciliar
seu mundo imaginário, idílico, mítico, com a luta pela sobrevivência em terrenos
hostis. (Rahde; Cauduro, 2007, p. 7)

Apesar dos autores acima tratarem dos heróis, em sua abordagem mais ampla,
essa proposição também é válida para os super-heróis. Não se trata aqui em enten-
dermos o caso dos super-heróis como único dentre as estórias que o cinema tem
contado, mas de compreender que essas mudanças também afetaram esse tipo
de personagem. Há hoje um novo tipo de super-herói que tem sido significante ao
público de uma maneira diferente. O enfoque dos filmes do gênero é a personagem
do super-herói. O nome dos filmes é sempre o nome do super-herói, às vezes
acompanhado de qual vilão ou ameaça irá combater. Assim, é possível entender
que, por mais que haja um problema que desencadeia o enredo, a trama dos filmes
gira em torno da personagem do super-herói e como que a personagem irá lidar
com seus dilemas e com a ameaça maior que pode destruir toda a cidade, todo o
mundo ou, até mesmo, todo o universo.
Nesse contexto, os super-heróis que compõem o grupo Os Vingadores, da
Marvel2, encontram-se em posição de destaque. Inspirada pela série de HQs, onde
foi criado o grupo, e impulsionada pelo sucesso de bilheteria de Homem-Aranha
(Spiderman, 2002) e Hulk (2004), em 2008, a Marvel criou um projeto para a
produção de filmes cujas estórias estariam interligadas e culminariam com o
lançamento de Os Vingadores (The Avengers, 2012). Assim, foram produzidos e
lançados cinco filmes que serviriam de base para o filme em questão: O incrível

2 A Marvel Comics, fundada em 1930, é uma das editoras mais importantes no ramo das histó-
rias em quadrinhos, ao lado da DC Comics, sua corrente mais direta. Em 2009, a Marvel foi
comprada pela Walt Disney Company.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 205

Hulk (The incredible Hulk, 2008), Homem de Ferro (Iron Man, 2008), Homem
de Ferro 2 (Iron Man 2, 2010), Thor (Thor, 2011) e Capitão América - o primeiro
Vingador (Captain America: the first avenger, 2011).
Além do representativo sucesso de bilheteria de tais filmes3, a repercussão
de suas personagens é bastante significativa. É possível encontrar, com facilidade,
muitas referências a essas personagens em produtos (camisetas, bonés, mochilas,
squeezes, etc.), sites e blogs especializados em discutir e divulgar os filmes e
diversas referências feitas nas redes sociais.
Entretanto, é importante destacar que ao tomar como objeto de análise filmes
tidos como blockbusters não significa que se tenha, aqui, uma concepção do
cinema americano como um sistema totalizante ou que se suponha a existência de
um processo de americanização do mundo através do cinema. Com relação isso,
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy apontam que o domínio e o alcance das produções
cinematográficas americanas relacionam-se, além das razões mercadológicas, à
projeção, em tela, de uma cultura mais essencialmente cosmopolita do que ameri-
cana (Lipovetsky; Serroy, 2011, p. 124). Uma das provas disso, para eles, é que o
western, gênero mais tipicamente americano, parece estar desaparecendo.

Na verdade, o que se consome no mundo não é de modo algum uma cultura


tipicamente americana; é a própria cultura-mundo, que não é mais americana
do que europeia. O que é vendido pelos americanos é menos americano que
mundial, podendo ser visto e apreciado pelos diversos públicos do mundo inteiro.
E o público mundial não consome fundamentalmente o imaginário americano;
consome o espetacular, ação, sexo, violência, beleza, emoção. (Lipovetsky; Ser-
roy, 2011, p. 124)

Portanto, não há para esses autores um consumo passivo dos produtos ameri-
canos para o resto do mundo, antes o que há é uma mundialização do cinema
estadunidense que se tornou mais cosmopolita. O que explica e torna o cinema
hollywoodiano consumível segundo tais autores seria “o fato de conseguir oferecer,
aos olhos e corações dos homens de todos os países e de todas as culturas, os
grandes arquétipos da narrativa ‘eterna’” (Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 301). Ou
seja, o sucesso dos filmes estaria relacionado às narrativas simples e genéricas

3 Através de uma análise comparativa realizada a partir dos dados sobre bilheteria fornecidos pelo
site www.boxmojo.com <acesso em: julho de 2016>, foi possível verificar que o filme, apesar
de pequenas variações, alcançou destaque nas bilheterias de diversos países, ficando sempre
posicionado entre os filmes mais vistos no ano de 2012.

2018
206 Cristiana D. Martins

de suas estórias, mas que, por isso, trazem ao espectador a possibilidade de se


reconhecer e se reencontrar nelas (Lipovetsky; Serroy, 2009). Assim, não é tanto
o poder mercadológico e sim a capacidade de Hollywood ser significativa aos seus
consumidores e ao cotidiano que fomenta seu uso enquanto objeto de análise para
os fins aqui propostos.
Tal característica do cinema já havia sido observada por Siegfried Kracauer
na década de 40. De acordo com Kracauer, há alguns fatores que permitem que o
cinema seja concebido com a capacidade de captar o que ele chama de “camadas
da mentalidade coletiva” (K racauer, 1988, p. 18). Primeiramente, segundo ele,
essa capacidade estaria diretamente ligada à forma como se dá a produção cine-
matográfica que, por seu caráter social, envolve muitas pessoas nos diferentes
processos e etapas de produção e, por consequência, promove uma supressão da
individualidade “em favor de traços comuns a muitas pessoas” (K racauer, 1988,
p. 17). Em segundo lugar, o caráter popular do cinema de Hollywood, que busca
atingir o maior público possível para alcançar o maior lucro possível, faz com que
este se dirija à satisfação dos desejos das massas e se imponha a si, portanto, a
necessidade de acompanhar as mudanças do “clima mental” (Kracauer, 1988, p. 18).
Com relação a isso, ao expor sobre a relevância sociológica do cinema comer-
cial de Hollywood, produzido para o consumo do público amplo, o sociólogo Túlio
Rossi salienta que um dos pontos que demonstra a validade desse tipo de cinema
como indicador de “valores, percepções e ideologias presentes na comunicação
entre indivíduos” (Rossi, 2010, p. 94) é justamente a capacidade que seus filmes
possuem de penetrarem a vida cotidiana. Ele explica que,

Tamanha mobilização de pessoas para assistir um filme, seguida da incorporação


de linhas de seus diálogos no cotidiano e do entendimento de sua história, trilha
sonora e imagens (...) indicam uma relação que extrapola o simples consumo de
entretenimento. Pessoas reconhecem signos, discursos e aspirações presentes
no filme (...). (Rossi, 2010, p. 94)

O cinema de Hollywood consegue penetrar a vida cotidiana, segundo Rossi,


não apenas por fazer uso de clichês e padrões já estabelecidos e reconhecidos pelo
público, já tão acostumado com esse tipo de mídia, mas porque consegue captar e
reproduzir visões de mundo em consonância às constituídas culturalmente (Rossi,
2010, p. 97). Há, para ele, a existência de um processo dialético no qual, a despeito
de qualquer esforço para construção de visões de mundo (propositais ou não),
os espectadores só consomem o que reconhecem e desejam (Rossi, 2010, p. 97).

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 207

Portanto, ao contrário do que se pode acusar como consequência de uma alienação


do público pela indústria cultural, no caso específico do cinema hollywoodiano, o
sucesso de público não depende apenas da utilização de fórmulas prontas.
Sendo assim, o sucesso de bilheteria dos filmes da Marvel indica que estes
têm sido significativos para um público mais abrangente do que apenas os especta-
dores dos EUA. Entretanto, não há como ignorar a presença marcada e constante
de referências à história, à cultura e às ideologias daquela nação. Apenas, como o
processo de globalização das mídias e a crescente demanda por lucro, Hollywood
hoje precisa que seus filmes sejam significativos para um público multicultural.
Há duas características do cinema enquanto objeto que valem ser ressaltadas:
primeiro a relação entre cinema e realidade; segundo a questão do significado do
filme. O cinema, apesar de propor-se a tarefa de captar o real, não exprime a reali-
dade; seu processo de produção e seu aparato tecnológico acrescentam sensações
às imagens captadas. É própria do cinema uma percepção sensorial diferente do
mundo visível, que é, como explicou Kracauer (1988, p. 18), montada através de seu
aparato tecnológico e das diversas atividades da câmera que modificam o olhar;
como o primeiro plano. Desta forma, ao olhar para um filme é necessário entender
que este não reproduz a realidade, mas é uma construção sobre esta.
De acordo com Walter Benjamin (2012, p. 85), cujo trabalho teve grande
contribuição aos estudos sobre cinema, a realidade captada pelo aparato cinema-
tográfico é modificada pelo olhar da câmera que, juntamente com o processo de
montagem das imagens, confere ao filme sentidos que não tinha antes. Entretanto,
os sentidos e significados do filme não pertencem a ele, são consequência do olhar
do espectador. Pierre Sorlin, autor da obra Sociología Del Cine (1992), explicara
que a conferência de significado ao filme está ligada ao que aquele que o investiga
traz enquanto recursos teóricos e questionamentos.

À medida que se afirma o domínio teórico e técnico dos investigadores, à medi-


da que se expande o domínio de investigação das ciências humanas, se colocam
outras perguntas, se propõem outras questões. Não existe uma significação ine-
rente ao filme: são as hipóteses de investigação que permitem descobrir certos
conjuntos significativos. (Sorlin, 1992, p. 49; em livre tradução)4

4 Traduzido livremente pela autora, assim como todos os textos citados nesse trabalho cujas
versões indicadas na bibliografia encontram-se em língua estrangeira.

2018
208 Cristiana D. Martins

Por compreender o filme enquanto um objeto que, de acordo com Sorlin


(1992, p. 49), não possui significado inerente, mas significa a partir das hipóteses
de investigação colocadas pelo pesquisador que a próxima parte deste trabalho
visa construir o problema da individualidade no mundo contemporâneo e suas
possíveis relações com as personagens de super-heróis.

1. SUPER-HERÓIS E A BUSCA PELA INDIVIDUALIDADE


Quando se fala em super-heróis, ainda que em simples menção a esse tipo
de personagem, logo vem a imagem ou a ideia de um indivíduo dotado de super-
-poderes. Entretanto, ao contrário do que possa parecer, um super-herói não é
definido pelo tipo de poderes que possui. Alguns deles, é verdade, possuem poderes
extraordinários, mas nem todos. No caso específico do grupo aqui analisado,
apenas metade deles se encaixa na categoria dos super-poderes: Thor, Steve Rogers
(Capitão América) e Bruce Banner (Hulk). Os demais podem ser definidos como
possuidores de extraordinária habilidade: Tony Stark (Homem de Ferro), Natasha
Romanoff (Viúva Negra) e Clint Barton (Gavião Arqueiro).
A pesquisadora portuguesa Sónia Sebastião explica que a diferença do tipo de
poder e habilidade não interfere na possibilidade de enquadrar uma personagem
na categoria de super-herói. Segundo ela,

O super-herói é uma personagem dotada de habilidades ou poderes extraordi-


nários que o permitem realizar coisas que não são acessíveis ao homem comum.
Tal poder pode ser de natureza física ou psicológica, e ser de origem natural,
sobrenatural ou tecnológica. (Sebastião, 2010, p. 4; grifos colocados)

Assim, o que define um super-herói não são os poderes e habilidades, mas a


sua extraordinariedade e o uso dessa extraordinariedade para realizar tarefas que
o homem comum não seria capaz de realizar. Pode-se entender, portanto, que ser
um super-herói está intimamente ligado a superar as limitações que se colocam
sobre os indivíduos, sejam elas físicas ou psicológicas. Sobre isso, Eco diz que em
uma sociedade industrializada, onde a força da máquina humilha e determina
os movimentos do homem, é necessário que os heróis, como imagem simbólica,
encarnem a superação das limitações (Eco, 2011, p. 247).
De acordo com Bauman, a individualidade é um privilégio cobiçado, na medida
em que é ela que permite a um indivíduo o destaque em meio à multidão (Bauman,
2008, p. 50-51). Assim, a individualidade não está dada, ela é, antes, algo pelo

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 209

qual os indivíduos devem se esforçar para conquistar ou, do contrário, ela seria
algo banal.

Afinal de contas, a individualidade só é um “valor” na medida em que não se


apresente como uma “amostra grátis”, se for algo pelo se deva lutar e que exi-
ja um esforço para ser obtido – e por todos esses motivos seja disponível, em
princípio, a alguns, enquanto permanece obstinadamente além do alcance dos
demais. (Bauman, 2008, p. 51)

Dessa forma, a individualidade, ainda que em um contexto de individuali-


zação, possui status de coisa extraordinária; ela não se encontra no padrão ou
naquilo que é comum, ela se encontra na extraordinariedade. Entretanto, como
alerta Bauman (2008), ela precisa ser conquistada pelo indivíduo. Sendo assim,
o ganho da individualidade ou a conquista da individualidade é a outra face da
extraordinariedade dos super-heróis, ou seja, suas habilidades e poderes que lhes
permitem ultrapassar os limites do ordinário também os permitem desfrutar das
glórias da individualidade.
Apesar de essa extraordinariedade ser também observável em outras persona-
gens heroicas ou anti-heroicas do cinema e da literatura5, o caso dos super-heróis,
enquanto um gênero de personagens, parece acentuar tal característica. Isso
pois, ao atribuir a eles a categoria de super, é produzido um efeito de afastamento
imediato da categoria de pessoa comum o que torna a ideia de que seus feitos
poderiam ser reproduzidos na vida real menos factível. Já se comparadas a perso-
nagens do universo fantástico (bruxos, elfos, extraterrestres, fadas, hobbits etc.),
os super-heróis ainda mantém uma relação com o mundo das pessoas comuns. Ou
seja, as personagens de super-heróis, ao mesmo tempo que aumentam a distância
entre as pessoas comuns e a possibilidade de realizar feitos extraordinários, não
afastam totalmente essa possibilidade. A exemplo disso, temos a personagem do
Capitão América, a qual tomaremos como foco.
Steve Rogers possui todas as premissas necessárias para se tornar o perfeito
herói nacional: elevado senso de justiça e padrão moral, honra e disposição para
servir seu país até a morte. Seu problema? Ele é um garoto fraco, de baixa esta-
tura e fisicamente fragilizado por diversas doenças crônicas e, para sua grande
frustração, tudo isso o impede de ser aceito pelo exército americano. Ele consegue

5 Podemos citar personagens como John McClane, o policial da série Dura de Matar (Hard to
Kill); o detetive Sherlock Holmes; o soldado Rambo; ou os arqueólogos Indiana Jones e Tommy
Raider.

2018
210 Cristiana D. Martins

perseguir seu status de herói após ser submetido a um experimento científico que
transforma seu corpo frágil em um corpo forte, ágil e invencível que o permite lutar
contra os alemães e os derrotar. E sua trajetória para conseguir ser reconhecido
como super-herói que iremos analisar a seguir.

2. DE STEVE ROGERS A CAPITÃO AMÉRICA


O filme Capitão América - O Primeiro Vingador (Captain America - The
first Avenger, 2011), resgata e reconstrói a estória de Steve Rogers, um jovem
nascido e criado no Brooklyn e que tem como sonho de vida poder servir ao seu
país unindo-se ao exército estadunidense. Dirigido por Joe Johnston, estrelado
por Chris Evans (Steve Rogers) e contando em seu elenco a atriz Hayley Atwell
(Agente Peggy Carter) e os reconhecidos Tommy Lee Jones (Coronel Chester),
Stanley Tucci (Doutor Abraham Erskine), o longa-metragem pode ser divididos em
três grandes blocos. O primeiro destina-se a mostrar a superação das limitações
físicas do rapaz, franzino e doente, em um Super Soldado através de um esforço
que uniu exército e ciência. O segundo bloco do filme mostra a busca do rapaz
por reconhecimento e utilidade em um mundo que duvida que ele seja capaz de
realizar algo extraordinário. E um último bloco no qual ele, já consagrado e reco-
nhecido como super-herói, persegue a missão de derrotar seu inimigo. Para os fins
deste artigo, analisaremos brevemente o primeiro bloco, apenas para seguirmos à
análise dos momentos nos quais, ao longo do segundo bloco, os dilemas da busca
pela conquista da individualidade aparecem de forma mais latente.
A sequência na qual Steve Rogers será introduzido mostra que ele se encontra
em uma sala de exames físicos para alistamento no exército dos Estados Unidos,
no contexto da Segunda Guerra. A primeira imagem que temos dele mostra seu
corpo, pequeno e fraco, visivelmente diferente dos corpos dos outros tantos rapazes
presentes na mesma sala, todos altos e fortes. Há um padrão estético, comum a
todos, ao qual Steve não corresponde. De acordo com Goffman, quando um estigma
é imediatamente evidente, como o caso da altura e da força física da personagem,
o indivíduo encontra-se em condição de desacreditado, ou seja, ele não tem como
esconder seu defeito porque este é facilmente detectado pelos outros (Goffman,
1988, p. 6). Um dos aspectos cruéis do estigma, ainda segundo Goffman (1988, p.
9), é que o indivíduo estigmatizado, por ter incorporado os padrões da sociedade,
tende ele mesmo a acreditar que está abaixo do esperado. Porém, ainda que o
indivíduo acredite em si mesmo uma situação de comparação pode abalar sua
confiança, pois a comparação reforça o estigma (Goffman, 1988, p. 9).

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 211

O fato de todos estarem sem camisa não apenas ajuda a tornar a diferença
mais perceptível como também mostra o tipo de exposição à qual eles estão sendo
submetidos: seus corpos estão expostos à avaliação para que sejam, seus corpos e
não eles, admitidos ou recusados pelo alistamento. Ao olharmos para o efeito que
isso causa na construção fílmica da personagem, é possível notar a importância
que o corpo adquire na trama, uma vez que será por meio deste que as personagens
serão notadas e avaliadas. Apesar da cena focar nas características desacreditadas
do rapaz, ou seja, sua baixa estatura e sua fraqueza, que são características desa-
creditadas pois são facilmente reconhecidas visualmente (Goffman, 1988, p. 7), há
mais uma questão importante sobre o corpo que merece ser pontuada: o corpo
como o marcador da existência do indivíduo, seja pelas características corporais
ou pela diferença entre o eu e o outro. Com relação a isso, Le Breton afirma que

Antes de qualquer coisa, a existência é corporal (...). Do corpo nascem e se pro-


pagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele
é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma
forma através da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem
apropria-se da substância de sua vida (...). (Le Breton, 2007, p. 7)

Ao defender a importância de uma sociologia dedicada ao corpo, David Le


Breton salienta que esse é a primeira forma de existência dos homens. Segundo
ele, o corpo, que encarna o homem, torna-se a marca do indivíduo na sociedade
moderna individualizada, pois ele demarca a fronteira limite entre o eu e os outros
(Le Breton, 2007, p. 30). Entretanto, quando o corpo existe como elemento de
individuação esse acaba por traduzir “o aprisionamento do homem sobre si mesmo”
(Le Breton, 2007, p. 31). Assim, ao mesmo tempo que o corpo delimita os indiví-
duos ele também os restringe dentro de um imaginário social de individualidade.
Tal restrição que o corpo nos impõe, dentro do imaginário social, não diz respeito
apenas à concepção de individualidade, ela também diz respeito ao tipo de corpo
individualizado que se espera. O corpo, assim, como parte da construção da indi-
vidualidade, também nos aprisiona, como vimos com relação à teoria de Goffman
(1988), em estigmas capazes de nos desacreditarem socialmente.
Quando chega a vez de Steve ser avaliado pelo médico6, este dá uma rápida
olhada para o rapaz e começa a avaliar sua ficha. No diálogo que se passa entre

6 Apesar desse não ser identificado como tal, sua vestimenta, jaleco branco sobre um uniforme
militar, sugere que ele seja um médico. Além de que a função dele é avaliar a ficha médica e
apontar se o candidato tem condições físicas de ser aceito.

2018
212 Cristiana D. Martins

os dois, o médico se interessa apenas pelos dados médicos do rapaz e de seus


familiares. Qualquer outra coisa dita pelo aspirante sobre suas intenções, sobre
a tradição de sua família no serviço militar ou sobre sua vontade de honrar a
memória de seus pais é ignorada. Mais uma vez, a única coisa que importa naquele
momento é o corpo de Steve. No meio da conversa, a câmera focaliza por alguns
segundos uma lista, enorme, de doenças da personagem: asma, febre escarlatina,
febre reumática, sinusite, resfriados frequentes ou crônico, pressão alta, palpi-
tação ou arritmia cardíaca, fadiga, problemas cardíacos, ansiedade, teve contato
com pessoa com tuberculose em sua casa, pais/irmãos com diabete ou câncer7. O
médico rejeita Steve assim que termina de ler seu histórico de doenças e a cena
termina com a imagem do carimbo “4F”8 batendo em sua ficha, como uma espécie
de veredicto.
Imediatamente após mostrar o rosto decepcionado de Steve por ter sido
rejeitado surge na tela a bandeira do partido nazista, em preto e branco e em
movimento. Em seguida, um vídeo que faz propaganda do alistamento para captar
voluntários. O filme está sendo projetado no cinema e Steve está lá, reiterando
a impossível fuga de seu estigma e seu fracasso, uma vez que até quando vai ao
cinema, meio de entretenimento e distração, ele é lembrado de seu problema e
de, por isso, ter tido o seu sonho frustrado. O filme mostrará a imagem de uma
multidão praticamente homogênea de homens altos e fortes que se dirigem em
direção ao alistamento e, em sequência, homens sem camisa alinhados sendo
avaliados por médicos. Enquanto isso o narrador anuncia com orgulho: “todo
o jovem fisicamente capaz está se alistando para servir ao seu país”9. Assim, se
ainda havia dúvidas disso, Steve é automaticamente, pela exclusão, classificado
como jovem fisicamente incapaz.
Nas duas cenas acima o corpo será construído e avaliado a partir de uma lógica
específica: a lógica do discurso médico. Apesar das comparações e da posição de
Steve como desacreditável, o discurso médico será o principal fator de estigmati-
zação do rapaz. Assim, a medicina aparece como detentora do poder de avaliação
dos corpos, pois é dentro do discurso médico que se pode determinar a aptidão ou
a incapacidade física de alguém. Ora, é preciso lembrar que, embora tais esforços
tenham sido desencorajados após o início da Segunda Guerra, os Estados Unidos

7 Traduzido pela autora a partir da imagem. A versão legendada do filme contém apenas alguns
itens da lista na legenda.
8 “4F”, dentro do sistema de classificação do Exército americano, significa rejeição por razões
médicas, odontológicas ou similares. Fonte: <directionindentistry.net/4f-unfit-for-service-
-because-of-teeth> acesso em novembro de 2016.
9 Original: Every able-bodied young man is lining up to serve his country.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 213

foram um dos países onde as ideias de eugenia encontraram investimento e entu-


siasmo10. Segundo The Oxford Handbook of the History of Eugenics, a Eugenia
pode ser elaborada enquanto

(...) um projeto para avaliação e classificação dos seres humanos. As designa-


ções “adequado” e “inadequado” eram aplicadas tanto para populações quanto
para indivíduos, e a literatura eugênica está repleta de dados sobre a hierarquia
entre os humanos, alguns estatísticos, alguns visuais, todos confiantes em sua
capacidade em avaliar, classificar e corrigir as características e qualidades dos
seres humanos. (Levine; Bashford, 2015, p. 8, em livre tradução)

Apesar de ser mais facilmente relacionada à Alemanha Nazista, com suas


práticas de extermínio, a eugenia pode ser entendida como um fenômeno moderno
que permeou o mundo ocidental no início do século XX (Dikötter, 1998, p. 467). A
classificação dos corpos e a demanda para que estes sejam melhorados não se deu
como um evento extraordinário, ao contrário do que normalmente se quer pensar,
tudo isso é parte da modernidade (Dikötter, 1998). Sendo assim, a classificação
a qual o rapaz foi submetido pode ser relacionada a tal contexto mais amplo, bem
como a preocupação do médico em avaliar a causa mortis de seus pais. Assim,
portanto, dentro de um discurso classificatório, não haveria esperanças para o
fraco rapaz, biologicamente fadado ao fracasso. Entretanto, Steve encontrará
sua oportunidade de mudança ao ir com seu amigo Bucky à “feira do futuro”, de
Howard Stark11.
Ao chegarem na feira o locutor anuncia: “Bem-vindos ao Pavilhão Maravi-
lhas12 Modernas e O Mundo do Amanhã. Um mundo maior. Um mundo melhor”13.
A feira é uma grande celebração da ciência e sua tecnologia, onde o progresso é o
objetivo e o futuro é a realização de um mundo melhor. Quando a câmera abre o
plano e eles se perdem em meio à multidão, é possível ver, no centro de tudo, um
boneco de um homem vestido em um collant vermelho, desses típicos de trajes de
super-heróis, bem alto e musculoso. O boneco encontra-se dentro de uma cápsula
de vidro, como de um experimento científico. É um prenúncio do que acontecerá:

10 Para isso, ver, por exemplo, o documentário Homo-sapiens 1900 (1999), do diretor Peter Cohen,
sobretudo no tocante ao modo como os Estados Unidos lidou com as ideias eugênicas no século
XX.
11 A personagem Howard Stark já havia sido introduzida no filme Homem de Ferro 2 (ano), como
o brilhante inventor pai de Tony Stark, mas ganhará maior destaque neste filme.
12 Aqui a palavra usada no original para maravilhas é marvel, em alusão ao nome do estúdio.
13 Original: Welcome to the Modern Marvels Pavilion and the World of Tomorrow. A greater
world. A better world.

2018
214 Cristiana D. Martins

a ciência fará um mundo melhor criando homens melhores. E um dos indicadores


desse indivíduo melhor é o corpo – alto e musculoso.
Após não ficar muito empolgado com a espetacular apresentação de Howard
Stark e seu carro com tecnologia de inversão de gravidade, Steve olha em volta e,
acima da multidão, vista a histórica e icônica propaganda de alistamento do Tio
Sam14, aquela na qual uma pessoa de cartola e barbas brancas, apontando o dedo,
diz “Eu quero você para o exército dos EUA”15. Ele vai até o local de alistamento e
para em frente a uma ilusão de ótica na qual é possível colocar seu rosto no corpo
de um soldado, por efeito do jogo de luz, que serve, no filme, para encorajar os
jovens a se verem como soldados e se alistarem, porém, Steve não é alto o suficiente
para se encaixar na ilusão de ótica como soldado, ficando a imagem de seu rosto
projetada na altura do pescoço do corpo na imagem. Enquanto ele discute com seu
amigo que o questiona sobre a necessidade de provar alguma coisa conseguindo
entrar para o exército, a propaganda do Tio Sam, colocada em forma de quadro
na parede, figura ao fundo. Há, assim, uma mistura de intenções e pressões que
se colocam ao rapaz. O dever de servir sua pátria, sua inadequação física, sua
vontade em provar que é capaz de fazê-lo.
Na cena seguinte, ao se submeter novamente aos exames médicos necessá-
rios à admissão no exército, Steve está em um consultório médico típico (maca,
balança, quadro para teste de visão) sendo examinado por um doutor quando a
consulta é interrompida e, após um momento de tensão pelo medo de ser pego por
mentir em seu formulário (o único meio para que ele pudesse realizar múltiplas
tentativas de admissão seria modificando alguns dados em seu formulário, no caso,
ele mudava sua cidade natal) entra na sala um senhor de paletó marrom, óculos
e cabelos brancos, meio calvo. Trata-se do Dr. Abraham Erskine, um cientista
expatriado que agora, representante da Reserva Científica Estratégica16, trabalha
em colaboração com o exército americano.
Enquanto o diálogo ocorre, há duas informações visuais que figuram ao fundo.
Atrás do doutor há uma placa que adverte que “É ilegal falsificar o formulário

14 Considerado como uma personificação dos Estados Unidos, o Tio Sam foi criado por soldados
americanos a partir de uma brincadeira com as iniciais dos EUA, em inglês United States, ins-
critas em barris de alimentos fornecidos pela empresa de Samuel Wilson ao exército, chamando
a este de Tio Sam (Uncle Sam). Mais tarde o desenho feito por Tomas Nast do Tio Sam, inspirado
no rosto de Abraham Lincoln, for usado por James Flagg para a propaganda de alistamento, a
pedido das Forças Armadas dos EUA, durante a Primeira Guerra Mundial. Fonte: <www.bra-
silescola.uol.com.br/geografia/tio-sam.htm> acesso em: 21/12/2016.
15 Original: I want you for U.S. army.
16 Agência fictícia que, no filme, tem como objetivo desenvolver armas para as Forças Armadas
dos EUA.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 215

de alistamento”17, essa placa aparece desde o início da cena, como um lembrete


constante de que Steve está fazendo algo ilegal. Steve, inclusive, olha para a placa
algumas vezes, enquanto o doutor, porém, a ignora. A outra informação contida na
sala de exames é um quadro com a lista de doenças que impedem a aceitação no
alistamento. Novamente, a imagem contém todas as doenças que o filme já mostrou
como doenças que Steve Rogers tem ou já teve. A diferença é que nessa cena a
lista apenas figura ao fundo do rapaz, como algo que paira sobre ele o tempo todo.
Tanto a primeira placa quanto a segunda revelam o que o Dr. Erskine sabe
sobre o rapaz, seu estigma desacreditado, que ele não pode esconder, e seu jeito
ilegal para continuar perseguindo o alistamento. Disso denota-se que a escolha
em aceitar o rapaz não será feita por ignorância a respeito de seus problemas de
saúde ou de sua falsificação, mas será uma escolha feita a despeito do primeiro e
motivada pelo segundo, já que o doutor se mostra, ao invés de aborrecido, impres-
sionado pela quantidade de tentativas do rapaz.
Será apenas após o carimbo A, de aceito, ser registrado em sua ficha, que
a placa com a lista de doenças sairá de cena e a câmera, que até então apenas
mostrava o rapaz de cima para baixo e através dos ombros de seus interlocutores,
passa a registrá-lo de baixo para cima. Tudo isso consegue criar dois efeitos: de
libertação do estigma que o persegue, uma vez que a placa acusadora de seus
defeitos desaparece; e de exaltação, criada pelo ângulo de filmagem.
A intervenção do cientista, dotado de autoridade técnica, foi capaz de mudar a
situação estigmatizada do rapaz. E a intervenção da ciência irá além da mudança na
classificação do rapaz, a inovação técnica será capaz de efetivamente transformar
seu corpo. Não por acaso, Steve encontrou-se com o Dr. Erskine na feira do futuro
e do progresso científico. No filme a ciência aparece, então, como aquela capaz de
trazer o melhoramento e o progresso sobre o corpo. O corpo, como elemento da
natureza, se impõe aos indivíduos, entretanto, a modernidade, como projeto de
controle da natureza em seus riscos e infortúnios, também ambiciona o melhora-
mento dos corpos. Nas palavras de Bauman:

(...) a partir do Iluminismo o mundo moderno se caracterizou por uma posição


ativa, planejada, em relação à natureza e a si mesmo. A ciência não deveria ser
praticada por si mesma; passou a ser vista, antes e acima de tudo, como um ins-
trumento de poder tremendo que capacita seu detentor a melhorar a realidade,

17 Original: It is ilegal to falsify your enlistment form.

2018
216 Cristiana D. Martins

a moldá-la de acordo com os projetos e interesses humanos e a contribuir para


seu auto aperfeiçoamento. (Bauman, 1998, p. 93)

A ciência é assim, na modernidade, aquela que permite o auto aperfeiçoamento.


Dos estudos genéticos às pílulas para emagrecimento; das cirurgias plásticas às
atividades físicas; há diversas tentativas por parte dos indivíduos em modificar
seus corpos para que estes se tornem melhores e mais adequados às expecta-
tivas. Porém, o paradoxo reside em que a modernidade se coloca para resolver os
problemas que ela mesma criou. Aqui, a mesma ciência que classifica Steve Rogers
como inato através de seu discurso é a única capaz de lhe oferecer uma solução
frente à imposição da natureza do corpo, porém, tal natureza só é considerada
inadequada pelos padrões médicos de classificação.
Eugenia e melhoramento, ambos lados de uma mesma moeda, ambos
modernos e ambos impostos aos indivíduos como necessários. Se as Luzes preten-
diam trazer liberdade frente aos infortúnios da natureza, elas apenas conseguiram
criar pesos.

A modernidade não apenas conseguiu concretizar os ideais das Luzes que obje-
tivava alcançar, mas também, ao invés de avalizar um trabalho real de liberta-
ção, deu lugar a um empreendimento de verdadeira subjugação, burocrática e
disciplinar, exercendo-se igualmente sobre os corpos e os espíritos. (Charles,
2004, p. 16)

Ora, o que o filme nos traz até então com relação aos dilemas e anseios vividos
pela personagem se enquadra justamente no âmbito da subjugação dos corpos em
seu duplo caráter: classificação de corpo saudável e a busca pelo aprimoramento de
seu desempenho. Entretanto, segundo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, a saúde
e o desempenho não encerram todas ambições dos indivíduos contemporâneos
com relação aos seus corpos, em suas palavras,

Engana-se quem afirma que a obsessão pelos objetivos e a excelência se apodera


de todas as preocupações, incluídas as referentes ao equilíbrio e ao bem-estar
pessoal. Na sociedade atravessada pela dinâmica da “individualização”, outras
preocupações aparecem, entre as quais as exigências de respeito e reconheci-
mento de si não são menos significativas. (Lipovetsky, 2007, p. 269).

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 217

Ao fazer tal afirmação, Lipovetsky (2007) está empreendendo uma discussão


sobre as teorias que colocam que a sociedade contemporânea como a sociedade
que poderia ser chamada a sociedade do desempenho. Segundo ele, entretanto, isso
não se confirma porque o indivíduo também requer reconhecimento e valorização
pelo outro sobre as atividades que ele é capaz de realizar. Não basta, assim, ser
fisicamente capaz, é necessário que os outros o reconheçam. E é nesse sentido que
prosseguirá a trama do filme, mostrando agora a busca de Steve pelo reconheci-
mento enquanto Capitão América.
Minutos após seu novo corpo ser revelado pela abertura da máquina usada para
potencializar os efeitos do soro desenvolvido por Dr. Erskine, responsável por sua
mutação, Steve teve oportunidade de usar seus músculos recém-adquiridos para
perseguir um assassino. A perseguição será seu primeiro encontro com a Hidra,
divisão científica do governo nazista, que se tornará seu grande inimigo. Além
da importância de tal divisão científica por sua capacidade de inovação bélica e
de seu poderoso chefe Johann Schmidt, o grande vilão da trama, a motivação da
perseguição foi vingar o assassinato do Dr. Erskine e recuperar o soro roubado. A
cena envolve Steve perseguindo o carro do assassino correndo pelo Brooklyn e o
resgate de um garoto usado como escudo humano. O problema é que, mesmo após
o sucesso de sua transformação corpórea e a prova prática e pública que Steve
agora está mais do que apto para a ação, o seu superior o impede de ir lutar contra
Schmidt dizendo que Steve “não é bom o suficiente”. O olhar de decepção volta ao
rosto da personagem. Vale destacar que nesse momento Steve ainda não veste o
uniforme do exército, apenas uma camisa bege sem insígnias.
Ao ser, mais uma vez, impedido de realizar seu sonho de ir ao fronte lutar, a
alternativa que oferecem ao rapaz é que, devido ao sucesso de sua aparição pública
pelas ruas de Nova Iorque, ele se torne garoto propaganda do governo. Assim
nasce o Capitão América: como espetáculo e propaganda. Vestido com um collant
predominantemente azul, com listras brancas e vermelhas na região abdominal
e uma estrela branca no peito (além de botas vermelhas e uma máscara, que
cobre parcialmente seu rosto, com a letra “A”, de América, bem no meio da testa),
Steve será chamado de Capitão América pela primeira vez no filme ao subir com
essa roupa, mais o escudo18, em um palco com dançarinas, também nas cores da
bandeira. O nome Capitão América, inclusive, será mencionado pela primeira vez
através da canção proferida pelas dançarinas.

18 Esse escudo também será igual ao escudo usado pelo Capitão América dos primeiros quadrinhos,
porém o escudo que Steve usará mais tarde nas cenas de ação e nos próximos filmes é o escudo
apresentado na introdução do filme.

2018
218 Cristiana D. Martins

Construída sobre o pano de fundo de uma música de propaganda, a sequência


mostra o Capitão América acompanhado de dançarinas em teatros por vários
lugares do país apresentando um espetáculo montado para vender títulos de
guerra19. A letra da música, cantada pelas dançarinas, descreve e celebra a perso-
nagem como símbolo da nação, como aquele que defende o american way20 e o
que é certo. Mas a verdadeira base de toda a sequência será a bandeira americana,
onipresente em suas cores e estrelas, desde as vestimentas das dançarinas e do
próprio Capitão até as cortinas dos teatros e, ela própria aparecendo em diversos
momentos. Assim, o filme lembra mais uma vez quem foi o Capitão América: um
símbolo da defesa da nação e seus ideais.
A sequência funciona, então, tanto como homenagem à história da perso-
nagem quanto como alusão ao seu uso como propaganda para ajudar o governo
americano a aumentar o apoio popular à sua participação na Segunda Guerra. A
sequência mostrará, inclusive, crianças comprando e lendo o primeiro quadrinho
do Capitão América produzido pela Timely21 em 1941. Há ainda um momento
em que se mostra um soldado (identificável pelo uniforme com o qual o exército
americano é mostrado no filme), em um lugar que aparenta ser um acampamento
de guerra (camas enfileiradas sob uma larga tenda, em um terreno terroso), lendo
a revista com um sorriso no rosto. Tal cena é uma breve alusão à distribuição dos
quadrinhos de Capitão América aos soldados, durante a guerra, para animá-los e
encorajá-los, bem como distraí-los da realidade cruel dos combates (Chagas, 2008,
p. 140). Há ainda outra referência às HQs da personagem presente na sequência,
uma vez que um dos elementos mais marcantes da capa da primeira revista é a
ilustração do Capitão América desferindo um golpe de punho no maxilar de Adolf
Hitler (Chagas, 2008, p. 144) e, no show, Steve, como Capitão América, encena
nocautear um ator fantasiado como o líder alemão.
Apesar de desconfortável em tal papel no começo, aos poucos Steve começa
a gostar das apresentações e do tipo de reconhecimento que ele recebe como
Capitão América. Com lindas garotas pedindo seu autógrafo, audiências lotadas
o aplaudindo com entusiasmo e seu espetáculo contando com uma produção cada

19 Títulos de Guerra foram papéis vendidos pelo governo americano aos cidadãos, que os compra-
vam por livre escolha, para ajudar a cobrir os custos da Segunda Guerra. Graças às propagandas,
em junho de 1944 o então presidente, Franklin Roosevelt, informou em entrevista à revista Veja
que os Estados Unidos já haviam vendido mais de 600 milhões de títulos que somavam mais de
32 milhões de dólares. Fonte: <www.veja.abril.com.br/especiais_online/edicao007/entrevista.
shtml> acesso em: 21/12/2016
20 Termo amplamente utilizado para designar o estilo de vida almejado e defendido pelos ameri-
canos.
21 Timely Comics foi o primeiro nome de empresa que viria a se tornar mais tarde a Marvel Comics.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 219

vez mais elaborada; Steve experimenta os prazeres do reconhecimento como


uma estrela. Porém, seu entusiasmo e satisfação serão destruídos ao finalmente
encontrar-se com a guerra.
Em um enquadramento que mostra apenas seu rosto mascarado, Steve, fanta-
siado de Capitão América, discursa sobre socar Hitler com a empolgação de um
animador de plateias, mas logo fica constrangido pelo silêncio de sua audiência que,
então, descobrimos tratar-se de soldados em um acampamento de guerra. Há um
nítido contraste entre o palco do Capitão América e sua vestimenta, ambos coloridos
e festivos, e a multidão de soldados com tanques de guerra ao fundo, toda uma
realidade sombria em tons esverdeados e acinzentados, além dos rostos com feições
sofridas, que evocam a realidade cruel que os homens enfrentam em uma situação
de guerra. Letras brancas no quadrante inferior da tela informam a localização e a
data nas quais se passa tal situação: trata-se de um acampamento estabelecido na
Itália, a apenas cinco milhas da linha de fronte, em novembro de 1943.
O filme não oferece informações suficientes para que seja possível quantificar
com exatidão por quanto tempo Steve estava trabalhando com propaganda como
Capitão América, mas se contarmos que ele conseguiu entrar para o exército em
1941 e que passou por um período de treinamento em uma base, é cabível supor
que ele estaria nessa função por algum período próximo a um ano.
Sua interação com os soldados, então, revela-se pouco amistosa e Steve é
hostilizado e humilhado por sua condição de Capitão América como figura de
propaganda e entretenimento. A diferença fica marcada pelo contraste e a realidade
da guerra relembra Steve que ele ainda não recebeu o tipo de reconhecimento que
procura. A guerra é o lugar dos homens honrados e seu trabalho de propaganda
é apenas uma atividade de auxílio que não merece o mesmo valor e respeito. Ele
deixa o palco com a cabeça baixa, humilhado. Agora já sem a máscara de Capitão
América, enquanto ele, sentado no degrau inferior da escada, abrigando-se da forte
chuva, desenha um macaco de circo vestido com a roupa do Capitão América em
seu caderno, o que define sua honra como a mesma que a de um macaco no circo:
ela só existe enquanto entretenimento a outrem.
É importante destacar, entretanto, que Steve encontrava certo prazer e satis-
fação sua vida como estrela nacional, como comentado acima, e que ele apenas se
dá conta de que tudo aquilo não é bom o suficiente quando ele está de frente com
os soldados, honrados por estarem em batalha, e ele não é reconhecido por eles
como igual. Isso parece relacionar-se com um fenômeno observado por Lipovetsky
(2007) sobre a relação entre trabalho e realização. De acordo com o pensamento

2018
220 Cristiana D. Martins

do filósofo, o grau de satisfação dos indivíduos com seus trabalhos não diz respeito,
necessariamente, à atividade que exercem, mas a outros fatores:

Na realidade, é menos a própria atividade do trabalho que proporciona satisfação


do que os fatores ditos “extrínsecos”: segurança, relações sociais, salários, van-
tagens sociais, melhoria do nível de vida. Sem dúvida, as pontuações maciças de
satisfação no trabalho (...) traduzem a dificuldade em reconhecer as dificuldades
profissionais ou um sentimento de fracasso numa sociedade em que o indivíduo
é pensado como único responsável por sua situação. (Lipovetsky, 2007, p. 268)

Se contarmos com tais aspectos, Steve não teria, ao que parece, motivos para
estar insatisfeito - e, por um certo período, de fato ele não estava. Entretanto,
como alerta Lipovetsky (2007), a necessidade em se enumerar tantas vantagens é
apenas um subterfúgio para que o indivíduo, em uma sociedade individualizada,
não encare sua frustração de ser considerado o único culpado por ela. E é esse o
comportamento que veremos em Steve em seu diálogo com a agente Peggy Carter
quando ela o encontra desenhando a si mesmo como um macaco de circo em seu
momento de frustração.
Ao ser chamado, ironicamente, por ela de “nova esperança da América”, ele
rebate com a informação de que as vendas dos títulos de guerra crescem por
onde ele passa. Ao confrontá-lo novamente e comparar seu discurso com o de um
político, ele responde que ao menos ali ele estava tendo a oportunidade de fazer
algo ao invés de ficar em um laboratório (o que havia sido a sugestão do coronel
responsável por aquela divisão). E, por fim, ao questioná-lo sobre essas serem as
únicas opções que ele tem, ela o encoraja ao lembrar que o propósito de o terem
criado era muito maior. Em outros termos, enquanto ele tenta se convencer de que
está satisfeito em apoiar sua honra sobre as bases do entretenimento (o que são
apenas desculpas para que ele não reconheça sua frustração consigo mesmo), a
agente Carter vai desconstruindo cada argumento por ele utilizado para sustentar
sua fuga.
Surge, então, uma situação perfeita para resolver tal dilema: Steve descobre
que o pelotão de seu amigo Bucky, Sargento Barnes, havia sido capturado e prova-
velmente teria sido dizimado. Steve decide, então, entrar na guerra na tentativa de
resgatar o pelotão capturado e, quem sabe, seu amigo também. É a oportunidade
para que ele, partindo de uma escolha individual, finalmente tenha a oportunidade
de provar sua virtude em batalha.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 221

Ao tomar tal decisão e ir se preparar para a jornada, alguns elementos mudam:


a chuva que caía finalmente cede e é possível ver uma luz quente por entre a neblina
formada pela água se evaporando como se o final da chuva sugerisse a chance de
um recomeço. Seus trajes também mudam: ele não abandona a roupa de Capitão
América, mas veste uma calça bege com bolsos (geralmente usada por persona-
gens em situações de aventura e desbravamento nos filmes de Hollywood) e uma
jaqueta de couro marrom que deixa apenas a estrela branca, da fantasia de Capitão
América, à mostra em seu peito. Não se trata, portanto, de abandonar o Capitão
América, mas de colocar outra conotação por cima da ideia de defensor da nação,
onde o show fica como secundário e o principal, em cores sóbrias e tecidos mais
funcionais, é a aptidão para a batalha.
Finalmente, após uma sequência de ação na qual Steve consegue enfrentar o
inimigo ao invadir suas instalações para libertar os soldados americanos captu-
rados, teremos a cena de consagração de Steve como o Capitão América à qual nos
deteremos em uma breve descrição.
Algo agita o acampamento do exército americano e o coronel, juntamente com
a agente Carter, vai conferir o que está mobilizando a atenção de seus soldados. Ao
se aproximarem da cancela que delimita a entrada do local, soldados se amontoam
para ver algo que se aproxima. Uma música triunfal cresce à medida que a câmera,
posicionada de baixo para cima, se aproxima de um grupo de homens que chega
pelo caminho entre as altas árvores que cercam a estrada. No exato momento que
o tema da música ecoa dos metais, torna-se possível identificar o Capitão América
à frente do pelotão por ele resgatado. A câmera sobe e mostra a dimensão do grupo
resgatado, alguns sobre um tanque de guerra inimigo que fora roubado durante
a batalha, e então volta-se para dentro do acampamento, onde os que estavam
ali formam um corredor de passagem para receber com aplausos e entusiasmo
aqueles que retornam. Capitão América, ao lado de seu melhor amigo, caminha
com a postura e a serenidade no olhar de quem conseguiu conquistar seu objetivo
e sorri levemente ao seu companheiro que, mostrando a cumplicidade entre eles,
balança sutilmente a cabeça em sinal de aprovação. Os mesmos soldados que o
hostilizaram agora se agitam com animação ao vê-lo retornar com seus compa-
nheiros resgatados.
Como ele não tinha permissão do coronel para a ação desferida, Steve se
apresenta a ele para se submeter à disciplina, porém o coronel afirma que isso não
seria necessário e, pela primeira vez, esboça um sorriso de aprovação ao rapaz.
A agente Carter, apesar de tentar manter sua postura em tom de seriedade, mal
consegue conter a feição de orgulho de Steve pelo feito incrível que ele realizou.

2018
222 Cristiana D. Martins

A cena termina com Bucky chamando os soldados a reverenciarem o Capitão


América com suas palmas, ao qual os soldados respondem que entusiasmo e, por
cima, podemos ver Steve cercado de homens o aplaudindo e o ovacionando.
Não bastasse sua honra e reconhecimento serem construídos ao longo de
toda cena triunfal. Ele ainda irá livrar-se da imagem de garoto propaganda ao
não aparecer para receber a medalha de honra dada a ele pelo governo, em uma
solenidade preparada reverter sua virtude em batalha em um espetáculo e fará
sua próxima aparição, no quartel general da operação, vestido com o uniforme
oficial, com as insígnias das águias e com as patentes de capitão do exército. Assim,
apenas após participar efetivamente da guerra é que ele consegue transformar sua
imagem e receber o tipo de reconhecimento que almejara por tanto tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em outras palavras, o desenvolvimento da sociedade rumo a um nível mais ele-


vado de individualização de seus membros abre caminho para formas específicas
de realização e formas específicas de insatisfação, chances específicas de felici-
dade e contentamento para os indivíduos e formas específicas de infelicidade e
incômodo (...). (Elias, 1994, p. 109)

Em seu livro Sociedade dos indivíduos (Elias, 1994), Elias já alertava sobre os
efeitos do processo de individualização como fonte de novas formas de desconten-
tamento e é possível observar, como demonstrado, que a imposição de se tornar um
indivíduo e de superar o ordinário e comum para que se esteja dentro do padrão
almejado é, dentre outros dilemas contemporâneos, perceptível nas personagens
de super-heróis. Assim, ao tentar compreender como estão construídos, em tais
personagens, os dilemas e anseios dos indivíduos a questão da busca pela conquista
e afirmação da individualidade torna-se latente. Assim, é a própria individualidade
que aparece como o grande anseio e sua busca como um incessante dilema.
Assim como Marcel Mauss (2003) já havia mostrado, em seu ensaio Uma
categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”22, originalmente
publicado em 1938, que a categoria do eu não é inata, mas foi sendo desenhada ao
longo da história da sociedade ocidental, Norbert Elias (1994) também desenvolveu
uma análise sobre a historicidade da noção de indivíduo como unidade fechada,

22 Mauss, Marcel. “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu””. In: Mauss,
Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 367–397.

Plural 25.1
Aspectos da individualidade em personagens de super-heróis: perspectivas sociológicas e o caso do capitão américa 223

separada e independente da sociedade. Em seus escritos, Elias procura apontar


que as pessoas se vivenciam como indivíduos não porque tal concepção possa ser
observada, mas porque há sentimentos e valores que as fazem entender indivíduo
e sociedade como distintos (Elias, 1994, p. 75). Ele diz,

Esses padrões emocionais funcionam como moldes aos olhos da mente; deter-
minam, em boa medida, quais os fatos percebidos como essenciais e quais os
descartados como sem importância ao se refletir sobre as pessoas isoladas e
sobre as sociedades que elas formam em conjunto. E quando, como é comum
suceder hoje em dia, esse mecanismo seletivo funciona de maneira a que os
aspectos individuais e sociais das pessoas sejam percebidos e valorizados como
diferentes, é fácil atribuir-lhes um tipo de existência especial e diferenciada.
(Elias, 1994, p. 75)

Pensarmo-nos como unidades fechadas, autônomas e independentes e, como


consequência e condição, pensarmos também aos outros nas mesmas condições
é, para Elias (1994), uma forma de ver o mundo social colocada pela sociedade
ocidental moderna. Ora, o que Elias (1994) faz, além de apontar a noção de indi-
víduo como uma autoconsciência socialmente construída, é buscar compreender
que os mecanismos pelos quais se constrói e se mantém a individualidade agem
de forma tal que naturalizam o que, na verdade, não é mais do que uma repre-
sentação. Entretanto, por ser uma representação, esse tipo de apresentação das
pessoas como indivíduos, apesar de típica da sociedade moderna, precisa ser
reencenada e reforçada.
Ao comentar o pensamento de Elias (1994) sobre a questão da noção de indi-
víduo, Zygmund Bauman (2001) concorda com ele ao afirmar que “a sociedade
moderna existe em sua atividade incessante de ‘individualização’” (Bauman, 2001,
p. 39). A concordância se dá na medida que, para Elias, o processo de individua-
lização é uma das faces do processo de civilização (Elias, 1994, p. 103); processo
este fundamental na configuração da modernidade. Nesse sentido, Bauman afirma
ainda que, por serem em si uma mesma condição social, falar em individualização
moderna significaria fazer uso de uma expressão pleonástica (Bauman, 2001, p. 41).
E é apenas, portanto, através da compreensão da categoria indivíduo, enquanto
par opositor da categoria sociedade, como consequência de um processo histórico-
-social que é possível que compreendamos o que os autores acima entendem por
necessidade de reafirmação dessa ideia aos e pelos indivíduos.

2018
224 Cristiana D. Martins

Dentro disso, o que este artigo procurou demonstrar foi que, se é socialmente
necessário que se reforce a ideia de indivíduo, em um contexto de individuali-
zação, as representações cinematográficas não estariam, assim, alheias a esse
processo de reafirmação e tão pouco o estariam os filmes de super-heróis. Como
afirmam os autores citados, a noção de indivíduo é constantemente reafirmada
como representação e o cinema é um meio pelo qual as representações podem ser
apreendidas (Sorlin, 1991, p. 28). Assim, a análise aqui apresentada apontou para
a possibilidade de investigar uma das características mais básicas relativa à ideia
de indivíduo, a questão individualidade e dos aspectos que a constroem, a partir
de uma investigação sociológica das personagens de super-heróis no cinema atual.

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dezembro de 2016.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA
Capitão América: o primeiro vingador. Direção: Joe Johnston: Paramount Pictures, 2011.
1 DVD (124min), cor. Título original: Captain America: the first avenger.

2018
Artigo

Esgarçamento do futuro: transformações nas representações


do destino de São Paulo na década de 1950
Fraying of the future: transformations in São Paulo destiny
representations in the 1950s
Bruno de Macedo Zoreka

Resumo  Ao se acompanhar as representações de futuro da cidade de São Paulo


produzidas ao longo da década de 1950, percebe-se uma importante mudança no
sentimento hegemônico em relação a ele. No início da década, o futuro da cidade
era visto com otimismo e dominantemente representado como o de um crescimento
contínuo e ilimitado. No final da década, em contraste, continuava-se imaginando que
o destino da metrópole seria crescer indefinidamente, mas isso passara a ser motivo de
preocupação e pessimismo. A passagem de um sentimento ao outro é marcada, em um
primeiro momento, pelo acirramento das discussões entre urbanistas que ocupavam
posições importantes no campo político. No entanto, foi a partir da entrada vigorosa
das ciências humanas nos debates sobre a cidade, que o pessimismo se consolidou
como sentimento dominante. Como se procura argumentar ao longo do artigo, a
mudança dos ânimos não foi fruto exclusivo da argumentação dos cientistas sociais e
veio acompanhada de transformações na divisão do trabalho de dominação: figuras
antes importantes nos debates sobre a cidade perderam espaço para um grupo de novos
intelectuais, que se impuseram e passaram a controlar o debate público sobre São Paulo.
Palavras-chave  representações de futuro; cidade de São Paulo; história do urbanismo;
história da sociologia.

Abstract  Following the representations of the future of the city of São Paulo produced
during the 1950s, we can see an important change in the hegemonic feeling related to
it. At the beginning of the decade, the future of the city was viewed with optimism and
dominantly represented as one of continuous and unlimited growth. By the end of the
decade, in contrast, it was still imagined that the destiny of the metropolis would be to
grow indefinitely, but that became a matter of concern and pessimism. The transition
from one feeling to another is marked, in the first instance, by the intensification of
discussions between urban planners who occupied important positions in the political
field. However, it was from the vigorous entry of the humanities in the debates on the

a Doutorando em História pela Unicamp, Bolsista Fapesp.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.226-247
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 227

city that pessimism was consolidated as a dominant feeling. As we argue throughout


the article, the change of the moods was not only a result of the social scientists’
arguments, and it was accompanied by transformations in the division of the work
of domination: important figures in the debates about the city lost space for a group
of new intellectuals, who imposed themselves and came to control the public debate
about São Paulo.
Keywords  representations of future; city of São Paulo; history of urban planning;
history of sociology.

INTRODUÇÃO
Durante os anos 1950, a expectativa hegemônica sobre o futuro da cidade de
São Paulo sofreu uma importante transformação. Desde o surto urbano da década
de 1870 – consagrado pela historiografia como “segunda fundação de São Paulo”
(Revista de História – USP, 1954; Morse, 1970; Queiroz, 2004; Campos, 2002; Castro,
2013) – até meados do século XX, a representação dominante do futuro da cidade
era marcada pelo otimismo e por uma aposta nos benefícios que o crescimento
contínuo traria para a metrópole (Prestes Maia, 1930; Moses, 1950; O Estado de
São Paulo, 1954; Campos, 2002). Havia disputas em torno de quais estratégias de
urbanização deveriam ser adotadas para favorecer esse crescimento: se a aposta
deveria ser na funcionalidade dos equipamentos urbanos ou se questões estéticas
deveriam prevalecer (Campos, 2002), mas praticamente não havia dúvidas de que
o crescimento era bom. As vozes que porventura questionassem essa premissa,
mesmo estando presentes nos debates urbanos locais desde pelo menos a década
de 1920, não tinham força suficiente para abalar a certeza otimista. Ou melhor: não
tiveram força até a década de 1950. Até este momento, a narrativa que organizava
o futuro da cidade era marcada por um télos épico e glorioso.
A partir de então, as críticas ao crescimento começaram a ganhar espaço. Entre
os urbanistas, a tese de que a expansão contínua e indeterminada condenaria a
cidade ao caos e à morte tornava-se cada vez mais influente (Meyer, 1991; Leme,
2001; Feldman, 2005). Quanto maior fosse São Paulo, mais problemática e difícil
de se viver seria para seus habitantes. A única salvação possível seria promover
a inversão de seu crescimento, mudando radicalmente a paisagem local (A nhaia
Mello, 1954). O futuro alternativo que se desenhava para São Paulo transformaria
a metrópole em um conglomerado de pequenas cidades-jardim – cada uma com
um limite populacional de 30 mil habitantes, separadas entre si por cinturões-
-verdes e espalhadas por um território vinte vezes maior do que o ocupado pela
cidade naquele momento (A nhaia Mello, 1954). Duas narrativas complementares,

2018
228 Bruno de Macedo Zorek

portanto, entraram com força na disputa pela produção do futuro da cidade: uma
essencialmente trágica – que se referia ao destino manifesto da metrópole – e
outra cujo final seria a salvação de São Paulo e que se oferecia para substituir a
tragédia que se avizinhava.
Na interação entre essas narrativas, as críticas ao crescimento e as discussões
sobre os problemas que o gigantismo da cidade causava tinham mais ressonância
na redefinição do futuro de São Paulo do que aquela representação alternativa – a
confederação de cidades-jardim –, tida como utópica e irrealizável (Moses, 1950).
Nesse sentido, a expectativa dominante continuou representando o futuro de São
Paulo como sendo o de um crescimento contínuo e indeterminado, mas, ao mesmo
tempo, incorporou as críticas então em voga, deixando de ver esse futuro como algo
exclusivamente positivo. Em outras palavras, São Paulo se transformava em uma
cidade em que o caos estava no horizonte próximo – às vezes como expectativa
(Koselleck, 2006), às vezes presentificado (Bourdieu, 2007) –, caos provocado por
sua própria expansão e, em certa medida, cada vez com menos perspectivas de
que pudesse escapar de tal destino (Fernandes, 2008 [1959]).
O que se pretende adiante é apresentar cada uma dessas representações
de futuro, bem como os personagens históricos que melhor lhes encarnavam, e
explicar como e por que a expectativa hegemônica sobre São Paulo se transformou
ao longo da década de 1950. Para isso, o texto segue em quatro partes: na primeira,
apresenta-se a representação do futuro de São Paulo que foi hegemônica até a
década de 1950, e que tinha como seus enunciadores fundamentais Francisco
Prestes Maia e Robert Moses; na segunda, discute-se a representação alternativa,
fortalecida nos debates sobre São Paulo a partir de 1954 e cujo principal advogado
era Luiz de Anhaia Mello; na terceira, explica-se o surgimento de uma nova repre-
sentação hegemônica, derivada da crítica de ambas as perspectivas anteriores e da
inscrição de novos instrumentais disciplinares – como os da geografia e da socio-
logia – nos debates sobre a cidade; e, enfim, na última parte, aponta-se algumas
das implicações dessas transformações para a produção do futuro de São Paulo.

“SÃO PAULO NÃO PODE PARAR”


Em 1930, alguns meses antes da eclosão do movimento armado que derrubou
Washington Luiz da presidência da República, um jovem engenheiro da prefeitura
de São Paulo, descendente de uma família de políticos e latifundiários, publicou
o imediatamente famoso Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São
Paulo. O documento fora encomendado pelo então prefeito José Pires do Rio, que
pretendia promover uma profunda reforma urbana na cidade. Seu autor, Francisco

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 229

Prestes Maia, foi aplaudido por seus colegas engenheiros e arquitetos: seu trabalho
foi premiado no 4° Congresso Pan Americano de Arquitetura, realizado em 1930,
no Rio de Janeiro e recebeu elogios de Alfred Agache, importante arquiteto francês
que então visitava o Brasil (Cpdoc, 2001; Campos, 2002; Ficher, 2005).
O Plano de Avenidas de Prestes Maia propunha uma reestruturação viária para
São Paulo baseada na combinação entre avenidas perimetrais e avenidas radiais.
De um ponto de vista aéreo, as perimetrais seriam percebidas como uma série de
círculos concêntricos, lembrando as ondas que uma pedra provoca ao atingir uma
superfície de água parada, ou a figura de um alvo. As avenidas radiais, por sua vez,
seriam vistas como linhas retas, cortando as perimetrais em todas as direções e
ligando as periferias ao centro da cidade. Dentre as avenidas perimetrais, uma
ocupava um lugar de destaque, aquela que Prestes Maia chamava de Perímetro de
Irradiação. Esse perímetro – que seria o primeiro e menor dos círculos e deveria
ser construído em torno do centro histórico – serviria para ampliar a zona comer-
cial e facilitar a distribuição de veículos em diversos pontos do centro. O principal
propósito do perímetro era aliviar o congestionamento da área central.

Imagem 1. Esquema Teórico para São Paulo no Plano de Avenidas (Prestes Maia, 1930)

2018
230 Bruno de Macedo Zorek

As intervenções urbanísticas propostas no Plano de Avenidas vinham anco-


radas na certeza de que São Paulo seguiria crescendo. Esse futuro já se encontrava
inscrito no presente da cidade de então, sobretudo nas transformações em curso
que Prestes Maia identificava. Essas transformações, cuja origem era diversificada
e difusa, eram reforçadas e garantidas por planos como o de Prestes Maia, especial-
mente quando chancelados pelo Estado. Nas palavras do engenheiro, percebe-se
tanto aquela certeza do crescimento, quanto a consciência do papel do Estado
no processo de organização da expansão urbana, além de serem marcadas pela
perspectiva otimista de que o crescimento era bom para São Paulo:

Estamos, sob todos os pontos de vista, em um momento decisivo da nossa exis-


tencia urbana. No centro os arranha-céus se multiplicam; no taboleiro alem
do Anhangabahú os primeiros grandes predios começam a emergir no meio
do casario terreo […]. Na propria administração municipal novo regimen se
prepara com a cooperação do Estado. A varzea do Tieté, que por si só será uma
cidade nova, acha-se em vias de completa metamorphose. Outras grandes obras
se executam: calçamento, exgotto, abastecimento, grandes parques e edificios
publicos. A situação geral do Estado é promissora. O proprio ambiente parece
até certo ponto preparado […] (Prestes Maia, 1930, p. 7).

A Revolução de 1930 interrompeu a administração de Pires do Rio, e os planos


de reforma urbanística para São Paulo foram engavetados por algum tempo.
Somente a partir de 1934, quando Fábio Prado assumiu a prefeitura da cidade – e
se tornou o primeiro prefeito a conseguir cumprir um mandato completo desde
a ascensão de Vargas –, foi que grandes obras de intervenção urbana voltaram a
figurar em São Paulo (Campos, 2002). Contudo, quem controlava a prefeitura eram
adversários políticos de Prestes Maia – por isso, mesmo sendo uma das mais
importantes referências do urbanismo local, o engenheiro não teve participação
nenhuma nesta administração. Com o advento do Estado Novo, entretanto, o
próprio Prestes Maia foi escolhido para prefeito da metrópole – as novas alianças
de Vargas reabilitaram o grupo do qual o engenheiro fazia parte e lhe abriram as
portas da administração municipal.
De 1938 até 1945, Prestes Maia colocou em prática sua concepção de cidade
e construiu as partes fundamentais de seu Plano de Avenidas. O perímetro de
irradiação e um sistema de três grandes avenidas radiais (chamado “Sistema Y”)
constituíram seu principal legado. No entanto, o custo político dessas obras foi alto.
Essas intervenções urbanas foram possíveis somente porque o governo ditatorial,

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 231

de modo autoritário, garantia ao poder executivo grandes liberdades orçamen-


tárias, evitando a necessidade de negociar com o legislativo ou quaisquer outros
diálogos democráticos. Prestes Maia tinha consciência disso e se comprometia
com este estilo de governo:

Êste acêrvo de concretas realizações comprova dum modo insofismavel, no


campo do municipalismo, a excelência do regime administrativo e das diretri-
zes implantadas pelo Presidente Vargas, pois não se conceberia no regime das
disputas demagógicas, dos embaraços formalisticos e da incerteza financeira
(Prestes Maia, 1945, p. 5).

O tipo de urbanismo defendido por Prestes Maia nunca foi uma unanimidade
em São Paulo (e, talvez, em lugar nenhum), embora fosse a tendência dominante.
Suas grandes avenidas, as linhas retas, as perspectivas – que não escondem a
inspiração haussmanniana – disputavam contra um urbanismo de valorização
do pitoresco, de ruas sinuosas, que revelavam novas paisagens a cada curva, e
cujo patrono poderia ser Camillo Sitte (Campos, 2002). Um urbanismo “pragmá-
tico” contra um urbanismo “esteticamente orientado”. Ainda assim, Prestes Maia
não pode ser acusado de ser completamente haussmanniano, pois várias vezes se
mostrou preocupado, por exemplo, com a harmonização dos volumes construídos
com as praças e as ruas – uma questão tipicamente sitteana.1 De qualquer forma,
como indicado acima, a São Paulo que emergia do debate urbanístico poderia ser
mais funcional ou mais bonita, conforme a combinação entre as tendências em
disputa, mas seria necessariamente uma cidade grande, uma metrópole – a capital
do estado que se auto-intitulava a “locomotiva do Brasil” (Love, 1982).
A partir do fim do Estado Novo e, portanto, também do encerramento da
prefeitura de Prestes Maia, uma terceira perspectiva começou a ganhar força nos
debates urbanísticos. Uma perspectiva que tanto propunha uma cidade comple-
tamente diferente quanto fazia críticas importantes a um elemento central do
urbanismo usualmente adotado em São Paulo: a certeza de que o crescimento da
cidade era positivo. O discurso hegemônico sentiu os golpes provenientes dessa
crítica e precisou reagir. Um exemplo nesse sentido é O Programa de Melhora-

1 Um indício dessa preocupação é a citação a seguir, onde Prestes Maia concorda com a necessi-
dade de se elaborar esteticamente as cidades: “Nos desenhos não nos preocupamos com estylos
archtectonicos, pois em urbanismo só interessam os effeitos de massa e as disposições geraes.
Elles revelam, não obstante, infinitas possibilidades estheticas, que os engenheiros habitual-
mente esquecem e as cidades desperdiçam” (Prestes Maia, 1930, p. 9).

2018
232 Bruno de Macedo Zorek

mentos Públicos para a cidade de São Paulo, plano urbanístico encomendado pela
prefeitura de São Paulo, sob administração de Lineu Prestes (1950-51), ao reno-
mado “mestre construtor” estadunidense Robert Moses. O Programa de Moses
pode ser visto como uma atualização do Plano de Avenidas de Prestes Maia, pois
ambos partiam de uma mesma concepção de cidade e compartilhavam os mesmos
princípios urbanísticos (Moses, 1950; Leme, 2001). Contudo, no momento em que
Moses apresentou seu trabalho, ele precisou se posicionar claramente em relação
àquela terceira perspectiva que ganhava forças e criticava o tipo de urbanismo
que seu Programa propunha:

São Paulo já traçou as linhas e características gerais do plano da cidade. Seria


supérfluo discutir o adotado, mesmo que a isso estivéssemos inclinados, o que
não é o caso. Se vale a metáfora fisiológica convencional, diremos que o esque-
leto da cidade está formado; o coração, ou o centro comercial, e a maioria das
artérias principais já ganharam forma; os subúrbios, geralmente fóra dos limi-
tes da cidade, servem-lhe de pulmões. Aparentemente, não tem havido em São
Paulo a tendência, ambição, ou disposição psicológica, de criar qualquer plano
urbano destinado a promover a descentralização e a dispersão dos habitantes, a
formação de cidades satélites, a reserva dos terrenos, entre uma região e outra,
destinados a parques, jardins, chácaras, etc.; a proibir a construção de prédios
altos em certas partes e todo excesso de concentração humana. Assim, quem
pretenda qualquer plano de melhoramentos e de formação de zonas não deve,
para que seja o mesmo plano exeqüível, ignorar que o paulistano comum, embora
orgulhoso da própria cidade, ansioso por seu desenvolvimento e zeloso de sua
reputação, é um cidadão mais ou menos conservador, cujos conceitos de admi-
nistração municipal não abrigam intuitos revolucionários (Moses, 1950, p. 11-12).

O ataque de Moses a seus críticos, condenando suas contrapropostas como


irrealizáveis, dizia respeito tanto ao contexto paulistano quanto aos debates urba-
nísticos dos Estados Unidos. As ideias antimetropolitanas de Ebenezer Howard e
Patrick Geddes, que viam a grande cidade como o estágio final da decadência da
civilização, estavam sendo renovadas por críticos como Lewis Mumford e arqui-
tetos como Frank Lloyd Wright, adversários frequentes de Moses nos EUA (Ballon;
Jackson, 2007). Ao passo que, em São Paulo, arquitetos e urbanistas liderados por
Anhaia Mello se apropriavam dessa discussão, adaptando-a para os debates locais.
Mesmo assim, esse futuro de São Paulo – proposto por engenheiros e urba-
nistas como Prestes Maia e Robert Moses, no qual o crescimento era motivo de

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 233

orgulho e deveria ser estimulado – continuava dominando as representações da


cidade. A partir de 1954, contudo, as atenções foram redirecionadas para outros
aspectos da grande metrópole – sobretudo seus problemas –, e o futuro de São
Paulo, aos poucos, passou a ser visto com outros olhos.

“SÃO PAULO PRECISA PARAR”


Em 1954, a cidade de São Paulo comemorou seu quarto centenário. Foi um ano
de festas, cuja principal atração foi uma feira internacional, montada no recém-
-fundado parque do Ibirapuera (Lofego, 2000; Barone, 2007). Esse aniversário
estimulou uma enxurrada de discursos sobre a metrópole, que se disseminavam
pelas mais diversas mídias – livros, jornais, revistas, peças publicitárias, programas
de rádio e televisão, obras e apresentações artísticas etc. A origem desses discursos
era difusa, mas a autoridade que respaldava a representação hegemônica estava
concentrada na legitimidade intelectual de engenheiros e arquitetos – que, por
sua vez, expressavam-se no vocabulário do urbanismo, principal chave de inter-
pretação da cidade naquele momento (Leme, 2001).
Entretanto, é preciso frisar que – embora o urbanismo fosse fundamental
nas definições de São Paulo – os discursos mais eficazes nasciam da combinação
da expertise específica no urbanismo com a experiência na gestão pública. Os
agentes de maior destaque na produção do futuro de São Paulo ocupavam lugares
privilegiados no campo político e potencializavam suas vozes com o apelo à sua legi-
timidade como urbanistas. Em outros termos: o urbanismo era reconhecido como
a principal área do conhecimento com autoridade para determinar os destinos da
cidade, mas sua autonomia frente ao campo político era bastante limitada.
De qualquer forma, a enxurrada dos 400 anos multiplicou as referências e
favoreceu que outras linguagens se inscrevessem de modo eficaz nas representações
da cidade. Nesse sentido, o urbanismo perdeu espaço nas disputas em torno do
futuro da cidade e outros instrumentais começaram a redefinir a representação
dominante, tanto pela adição de novos vocabulários quanto pelo distanciamento
em relação à urbanística. Os jornais da cidade, sobretudo em datas comemora-
tivas – como os aniversários da cidade –, são um bom exemplo de como essas
transformações se difundiam. Se, na primeira metade do século XX, o discurso
mais frequente era elogioso e respaldado nas autoridades do Estado e, por tabela,
na do urbanismo; da década de 1950 em diante, as críticas ao gigantismo e as
lamúrias relativas aos problemas urbanos se tornavam cada vez mais frequentes
e, ao mesmo tempo, passavam a se sustentar em novas autoridades – tornando a
representação da cidade e de seu futuro mais melancólica, mesmo nas ocasiões

2018
234 Bruno de Macedo Zorek

festivas (O Estado de S. Paulo, 1914, 1934, 1939, 1954; Folha da Manhã, 1939; Folha
da Noite, 1934; Folha de São Paulo, 1964, 1969). Ainda assim, pelo menos no início

da década de 1950, esses novos discursos – que inauguravam as novas autoridades


– compravam a perspectiva otimista dominante e ajudavam em sua reprodução.
Essas mudanças na narrativa hegemônica começaram, como indicado acima,
no próprio seio do urbanismo, com as representações otimistas do crescimento
futuro da cidade sendo questionadas. A principal voz desafiante era de Luiz de
Anhaia Mello que, naquele momento, era uma figura bastante respeitada nos
debates urbanísticos. Anhaia Mello fora vereador e prefeito de São Paulo, professor
da Escola Politécnica, fundador e primeiro diretor da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP, secretário de Viação e Obras Públicas do estado de São Paulo,
além de ser um membro atuante da Sociedade Amigos da Cidade e um frequente
articulista do Boletim do Instituto de Engenharia e da Revista de Engenharia
– dois dos periódicos mais importantes para a área do urbanismo. Anhaia Mello,
portanto, encarnava as autoridades de gestor público, de acadêmico e de arquiteto,
além de ser o principal representante de um modelo alternativo de urbanismo,
que desafiava a perspectiva hegemônica no planejamento urbano em São Paulo
(Bresciani, 2010, 2014; Leme, 2001; Ficher, 2005; Meyer, 1991; CPDOC, 2001).
Na verdade, a condição de representante de pontos de vista alternativos e que
desafiavam as perspectivas hegemônicas era o que fundamentava o lugar-social
ocupado por Anhaia Mello.2 Sua posição lhe permitia articular três perspectivas
“dominante-dominadas” sobre a cidade de São Paulo, conferindo-lhes uma força
inesperada. Como gestor público, Anhaia Mello frequentemente esteve na oposição
– embora fosse uma oposição comportada, de caráter liberal. Como acadêmico, era
um dos principais promotores de uma importante ruptura na Escola Politécnica da
USP, que retirou a arquitetura e o urbanismo da alçada dos engenheiros – a partir
da fundação da FAU, em 1948. Como arquiteto e urbanista era fundamentalmente
um teórico, pois foram poucas as oportunidades que teve de aplicar seus princí-
pios em larga escala. Portanto, ao encarnar as autoridades mencionadas, Anhaia
Mello o fazia de uma forma peculiar que, como se verá adiante, produzia efeitos
disruptivos nas representações hegemônicas da metrópole.
Foi justamente no final do ano de 1954, ano do quarto centenário e quando
o vocabulário urbanístico foi submergido pela enxurrada de novas referências
nas representações de São Paulo, que Anhaia Mello apresentou, da maneira mais
explícita e eficaz em sua carreira, tanto um futuro alternativo para a metrópole

2 Sobre o conceito de lugar-social, cf. Certeau (1982).

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 235

quanto críticas firmes contra o estímulo ao crescimento da cidade. A São Paulo


do futuro precisava começar a ser construída imediatamente, sendo o Estado
o principal protagonista do processo. Seria preciso estabelecer um programa
nacional de planejamento urbano, com destaque para as regiões de metrópoles,
cuja tarefa mais urgente seria resolver o caso de São Paulo, a maior e, portanto,
mais problemática cidade brasileira:

A limitação [populacional] deve ser forçada, pôr fatos exteriores de planejamento


orgânico e criador. O ciclo de crescimento é reversivel, por meio de regionalis-
mo e polinucleação. […] As atuais cidade, tipo ‘cible’, ou alvo, mononucleadas,
devem ser substituidas por cidades tipo cacho, ‘grappe’, polinucleadas, reunidas
em federação” (Anhaia Mello, 1954, p. 35 e 47).

Essa federação de cidades em formato de “cacho” seria planejada con-


forme um conjunto de princípios caros aos autores como Patrick Geddes, Lewis
Mumford e, especialmente, Ebenezer Howard:

Três são os conceitos básicos, criadores dessa ação: 1/ A cidade jardim; 2/ A idea
de Radburn; 3/ A “neighborhood unit”; ou, em outras palavras: 1/ a cinta verde
para a limitação da extensão da cidade, e abastecimento de “fresh food”; 2/ a
superquadra, que permite a convivência pacifica com o automóvel; e 3/ a unida-
de de vizinhança, que permite a rearticulação social e comunitária nas urbes
(Anhaia Mello, 1954, p. 38).

Em contraste com o urbanismo dominante em São Paulo, a cidade do futuro


apresentada por Anhaia Mello promoveria uma transformação radical da sociedade,
e não só um conjunto restrito de intervenções urbanísticas. As relações humanas
também estavam em jogo. A cidade, nesse sentido, tinha um papel determinante,
no sentido forte do termo, na definição de como as pessoas se relacionavam entre si:

As relações primárias [de família, de vizinhança, de comunidade] foram substi-


tuídas pelas secundárias [superficiais, burocráticas, transitórias, rápidas], o que
exerce uma influência desintegradora na ordem material e moral, responsável
pelo aumento de vicios e crimes nas metropoles (Anhaia Mello, 1954, p. 45).

2018
236 Bruno de Macedo Zorek

Por outro lado, nas cidades-jardim: “Os contatos são faceis e a amizade é culti-
vada. A atitude de um pedestre para com outro, é sempre cordial e amiga; muito
diversa da do motorista apressado e… malcriado” (A nhaia Mello, 1954, p. 46).
O contraste que Anhaia Mello construía entre os dois tipos de cidade não
deixava espaço para zonas cinzentas. A proposta do urbanista era de um mani-
queísmo claro, onde a metrópole era a encarnação do mal, enquanto a pequena
cidade, a “eópolis”, era a representação do bem.3 O maniqueísmo de Anhaia Mello
não se reduzia somente à caracterização das cidades e, também, separava aqueles
que mereciam ser reconhecidos como urbanistas (e que concordam com seu ponto
de vista) daqueles que não:

Os urbanistas de todo o mundo são hoje unanimes em afirmar que o sistema de


distribuição das populações sôbre o solo, consequência da Revolução Industrial
e Demográfica, e característico da época paleotécnica, hoje ainda prevalecente,
está errado e é desumano e anti-social (Anhaia Mello, 1954, p.1, grifo do autor).

Portanto, Anhaia Mello recusava a autoridade de urbanista a qualquer um


que defendesse ou propusesse modelos de cidade em que o crescimento fosse um
fator valorizado (como Moses ou Prestes Maia, por exemplo). No caso brasileiro,
conforme Anhaia Mello, a população estaria distribuída de maneira completamente
irregular pelo território nacional. Haveria “imensas áreas abandonadas”, como as
regiões Norte e Centro-Oeste do país. As regiões rurais constituiriam um terri-
tório de tipo hostil, onde “o homem [estaria] disperso e abandonado, perdido nas
distâncias imensas, sem um mínimo de equipamento social capáz de integra-lo na
cultura”. Nos povoados e vilas, que estariam “congelados material e socialmente”,
não haveria infraestrutura suficiente. Nas palavras do urbanista, nessas localidades
“não [havia] transportes nem comunicações; nem assistência nem higiene, nem
orientação educacional; fomento e assistência técnica, mecanização ou crédito”.
Eram lugares “crescendo ou estagnando ao léo […], na poeira ou na lama dos
cruzamentos de estradas ou simples caminhos, confiando apenas na Providência
Divina, que tarda mas não falta” (A nhaia Mello, 1954, p.2). E, finalmente, havia
a situação das cidades, que:

3 “Eopolis: É a comunidade aldean, e o aldeão é o homem eterno. Desenvolvimento da habitação


permanente e dos orgãos externos de associação. É a mais duradoura das fórmas coletivas,
resistindo a todas as transformações da civilização. É o prototipo da cidade. Os outros tipos
deferenciados urbanos florescem e desaparecem; mas a eopolis persiste; é a raiz essêncial da
vida urbana” (A nhaia Mello, 1954, p. 33).

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 237

maiores ou menores – polis, metropolis ou megalopolis, [estavam] crescendo


sem plano, congelando nos centros, e se enquistando de “ghettos” e favelas nas
periferias, e sem equipamento social adequado e serviços públicos ou de utili-
dade pública a altura das necessidades; teatro de uma exploração imobiliária
criminosa e desumana (Anhaia Mello, 1954, p.2., grifo do autor).

Para concluir, Anhaia Mello fechava o trecho da seguinte maneira: “O quadro


é negro, mas real ” (A nhaia Mello, 1954, p.2, grifo do autor).

“UM FUTURO TRÁGICO PARA SÃO PAULO”


Embora, em 1954, Anhaia Mello restringisse o universo dos urbanistas
somente àqueles que compartilhavam consigo a condenação do crescimento das
cidades, no passado, ele convocara uma série de outros profissionais a colaborarem
com o planejamento urbano:

Mas para transformar em realidade os beneficios que a technica da engenharia


pode trazer para a vida em commum é necessaria e imprescindivel a collaboração
e cooperação do jurista, do legislador, do economista, do sociologo, dos governos
que dão força ás iniciativas e adoptam dispositivos convenientes á sua efficacia,
do cidadão que se submette de bom grado ao sacrificio de algumas das proprias
commodidades e proveitos pelo bem geral (Anhaia Mello, 1928, p. 238).

Esse “chamado” foi atendido por geógrafos, como Aroldo de Azevedo (1958),
historiadores, como Caio Prado Jr. (1953), sociólogos, como Florestan Fernandes
(2008 [1954; 1959]), entre outros. As datas, contudo, indicam que as respostas
foram tardias – e, na verdade, vieram por outros motivos que não necessaria-
mente se reduziam ao chamado de Anhaia Mello. Os novos discursos acabaram
forçando uma transformação importante nas representações da cidade – na qual
tantos as críticas que Anhaia Mello fazia quanto aquelas que ele recebia foram
incorporadas pelas novas perspectivas. Florestan Fernandes, que, na década de
1950, vivia uma ascensão meteórica no campo intelectual paulistano (Miceli, 2001;
Garcia, 2002; Pontes, 1998; Peixoto, 2000; A rruda, 2001), produziu os textos que
mais evidentemente revelam as transformações em curso.
A sociologia urbana não foi um dos temas mais estudados por Florestan
Fernandes. Suas pesquisas de formação – mestrado e doutorado – foram sobre os
tupinambás (Garcia, 2002). Em seguida, patrocinado pela Unesco e pela Revista
Anhembi, o sociólogo – em parceria com seu amigo e ex-professor, Roger Bastide

2018
238 Bruno de Macedo Zorek

– realizou uma investigação a respeito da situação das populações negras no Brasil


(Peixoto, 2000). Daí em diante, seu trabalho se voltou, em primeiro lugar, para
o reexame crítico das antigas e a produção de uma nova interpretação do país,
sustentada por diversas monografias que ele e seus alunos estavam escrevendo
(Garcia, 2002; Miceli, 2001; 2012). Ainda assim, em alguns momentos pontuais,
Fernandes dedicou sua atenção à cidade de São Paulo. Para os interesses deste
artigo, duas dessas situações – que não são as únicas – merecem destaque: sua
participação no XXXI Congresso de Americanistas, em 1954 – que aconteceu em
São Paulo como parte das celebrações dos 400 anos da cidade – e um artigo que
publicou na edição especial de 30 anos do Diário de São Paulo, em 30 de abril de
1959 (Fernandes, 2008 [1954; 1959]). Em ambas as ocasiões, o sociólogo discutiu a
situação presente da metrópole, escreveu sobre o seu passado e apresentou refle-
xões sobre seu futuro. A comparação entre esses textos é especialmente relevante
porque – embora haja apenas 5 anos separando um do outro – as perspectivas do
sociólogo sobre os destinos de São Paulo são significativamente diferentes em cada
um deles. Em 1954, Fernandes se deixava contaminar pelo otimismo hegemônico
nas representações do futuro da cidade, mas, em 1959, assumia um ponto de vista
bastante pessimista – ainda que depositasse alguma esperança no futuro, caso
houvesse investimentos na educação do povo brasileiro.
O pessimismo de Florestan Fernandes é diferente do de Anhaia Mello, e é cons-
titutivo das representações do futuro de São Paulo que se tornaram hegemônicas
na segunda metade do século XX. Talvez seu papel não tenha sido tão decisivo para
consolidar, no campo intelectual, a imagem de uma cidade sem possibilidade de
salvação, como foram os estudos de sociólogos da década de 1970 que se dedicaram
especificamente à sociologia urbana – por exemplo, Lúcio Kowarick. Também não
pode ser dito que Fernandes seja um pioneiro nas pesquisas sobre o tema, afinal,
pelo menos desde os trabalhos de Donald Pierson – que chegou ao Brasil e à Escola
Livre de Sociologia e Política de São Paulo na década de 1930 –, havia sociólogos
investigando a metrópole. Contudo, os trabalhos de Pierson – independentemente
de sua importância para a sociologia urbana ou para os conhecimentos sobre São
Paulo – não alteraram a narrativa dominante que organizava o sentido da história
da metrópole: uma epopéia de final glorioso. Da mesma forma, as pesquisas de
Lúcio Kowarick e demais sociólogos de sua geração – também de inegável impor-
tância para o aprofundamento das reflexões sobre São Paulo –, do ponto de vista
da produção do futuro da cidade, apenas reforçaram um destino que já estava
dado: um drama de final trágico.

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 239

O que justifica o destaque a Fernandes é a combinação e a coincidência entre


as transformações de suas propriedades sociológicas e as modificações de sua
perspectiva sobre a cidade – além do momento específico em que essas mudanças
ocorriam: a segunda metade da década de 1950. Justamente quando se instaura
uma crise no seio do urbanismo, representada pelo acirramento da polêmica
entre as perspectivas defendidas por Prestes Maia e Anhaia Mello, um terceiro
ponto de vista emerge, distanciando-se dos dois primeiros. Ao mesmo tempo e de
modo complementar, as ciências humanas – institucionalmente amparadas nas
universidades, com destaque para a USP – começam a esboçar uma forma própria
de interpretar a realidade, relativamente autônoma das demais. Neste contexto,
sociólogos, geógrafos, historiadores e outros passaram a refletir sobre a cidade de
São Paulo a partir de novos critérios e de novos instrumentais. O terceiro ponto
de vista em questão tem exatamente no Florestan Fernandes de 1959 sua manifes-
tação típica-ideal – combinando as especificidades da autonomia em processo de
consolidação com a autoridade que a posição de liderança de uma área do saber
em ascensão oferecia.
***
No seu trabalho apresentado no XXXI Congresso Internacional de Ameri-
canistas, – realizado em São Paulo, em 1954, também parte das comemorações
do IV Centenário –, Fernandes descrevia a metrópole como uma cidade grande e
complexa, com um papel decisivo para a economia nacional e uma das aglomera-
ções mais cosmopolitas da América Latina. Depois dessa descrição, o sociólogo,
com uma ligeira ironia, arremedava:

Os paulistas se envaidecem com tudo isso, apreciando discretamente as avaliações


do gênero: “São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo” ou “São Paulo é o
maior centro industrial da América Latina”, e outras tantas que tais. O passado
possui pouca significação. O que importa é o presente e, acima de tudo, o futuro
(Fernandes, 2008 [1954], p. 187).

A condição de cidade grande era, conforme Florestan, um desenvolvimento


recente. Apesar de estar completando 400 anos, seus primeiros 330 foram os de
uma cidade pequena e pacata. Apenas a partir do terceiro quartel do século XIX,
a cidade acelerara seu ritmo de crescimento. E, na avaliação do sociólogo, teriam
sido nos últimos 40 ou 50 anos que o crescimento “explodiu” – o que gerava uma
série de problemas a serem considerados:

2018
240 Bruno de Macedo Zorek

Como toda mudança rápida acarreta desorganização social, poucas são as


esferas da vida social que se mantêm equilibradas ou integradas. Os serviços
públicos não acompanham o crescimento da cidade, que se espraiou mais do
que seria necessário ou prudente, segundo afirmam alguns urbanistas; há crises
de habitações, apesar do ritmo acelerado das construções; o sistema de abasteci-
mento interno, de gêneros, de víveres e de outras utilidades, é defeituoso e enca-
rece onerosamente o nível de vida; o sistema escolar não consegue corresponder
ao aumento da população e à diferenciação da procura; em todos os setores, é
frequente o recurso à mão-de-obra semiespecializada como se fosse especializada,
a falta de planejamento racional, o desperdício e suas consequências econômicas;
nas relações humanas, nas mais diversas circunstâncias – dentro dos lares ou
das fábricas, nas escolas ou nos escritórios – o entrechoque de expectativas de
comportamento contraditórias e o conflito de concepções antagônicas do mundo
criam tensões emocionais e insatisfações morais; os laços de solidariedade são
crescentemente substituídos por considerações racionais de interesse e de fins; a
instabilidade econômica e a disparidade entre os níveis dos salários e os do custo
das utilidades fomentam comportamentos egoísticos, até pouco tempo desco-
nhecidos ou restritos a certas esferas das relações humanas; a aspiração ao êxito
financeiro e à ascensão social, alimentada pelo enriquecimento fácil de muitos
e pelas oportunidades que se abrem aos indivíduos empreendedores, prevalece
sobre as demais aspirações, imiscuindo-se tanto na concepção do mundo dos
homens de ação, [quanto] na dos educadores, dos médicos e dos intelectuais;
enfim, elabora-se um novo clima moral, em que “cada um é por si e num estado
de tensão em face de todos os outros”, como já notou Tönnies, com referência aos
mesmos fenômenos na formação da sociedade burguesa na Europa. É evidente
que o progresso não beneficia a todos igualmente e que o ônus da nova ordem
social cai, pesadamente, sobre os que dependem do valor pecuniário da própria
força de trabalho. (Fernandes, 2008 [1954], p. 187-188).

Essa avaliação de Florestan Fernandes, obviamente, usa o instrumental clás-


sico da sociologia – desde Durkheim e suas análises sobre anomia social, passando
por Weber e o desencantamento do mundo provocado pela burocratização, e
chegando em Marx com sua avaliação das dificuldades que a classe trabalha-
dora têm para enfrentar o desenvolvimento do capitalismo, sem contar Tönnies,
explicitamente citado –, mas também se vale das críticas que o urbanismo anti-
-metropolitano desenvolvia. A referência a “alguns urbanistas”, no caso, diz respeito
àqueles que se alinhavam a forma de pensar de Anhaia Mello – que justamente se

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 241

preocupavam com os problemas derivados do crescimento “exagerado” da cidade.


De fato, os problemas diagnosticados por ambos são muito parecidos, embora cada
tradição disciplinar os desdobrasse de formas específicas.
Ainda assim, no ano do IV Centenário de São Paulo, o sociólogo ainda via
com bons olhos o desenvolvimento próximo da metrópole. Apesar dos inúmeros
problemas que a cidade apresentava, o futuro seria promissor:

Tendo-se em vista as condições em que se processaram a desagregação da antiga


ordem social escravocrata e senhorial e a formação incipiente da nova ordem de
classes sociais, a urbanização representa e assegura a evolução para situações
sociais de vida historicamente desejáveis no Brasil. Baste-nos um exemplo: com
ela é que se inicia o aparecimento de condições sociais que comportam o livre
exercício do voto, a organização de partidos de massas, a ascensão política das
classes médias e das camadas populares, o advento de correntes e instituições
políticas compatíveis com a instauração de um regime democrático. (Fernandes,
2008 [1954], p. 191)

A entrada de novas vozes nos debates sobre São Paulo – como a de Fernandes
– tanto reproduzia quanto desorganizava as representações hegemônicas. O soci-
ólogo, no caso, deixava-se contaminar pelo otimismo reinante (A rruda, 2001),
mas, ao mesmo tempo, fundava suas esperanças em elementos bem diferentes
daqueles que sustentavam o bom futuro de urbanistas como Prestes Maia e Robert
Moses. Não seriam intervenções urbanísticas, nem o crescimento por si só o que
construiria um futuro promissor para São Paulo, mas sim transformações sociais,
politicamente orientadas para a democracia.
Cinco anos mais tarde, “outro” Florestan Fernandes, então consolidado como
o líder do que se convencionou chamar de “Escola Sociológica Paulista” (Garcia,
2002), voltou a refletir sobre a cidade de São Paulo. As críticas à ineficiência do
urbanismo aplicado à metrópole continuava forte, em parte aproveitando as
análises do texto anterior e, também, recuperando as avaliações dos urbanistas
críticos à expansão urbana:

O lado dramático da transformação do cenário ecológico está na incapacidade


de o homem promover alterações igualmente rápidas e profundas em seu siste-
ma adaptativo. […] O busílis, aqui, está na relação entre o substrato material da
vida social e o crescimento progressivo dos serviços públicos, proporcionados
por instituições oficiais ou particulares. O homem, saído da antiga sociedade

2018
242 Bruno de Macedo Zorek

provinciana, era destituído de padrões que regulassem suas escolhas e exigências


no novo mundo em formação. Os espaços ocupados o foram nas condições
mais precárias. Com frequência, sem serviços regulares de abastecimento de
água potável, de esgotos, de assistência médica, de ensino, de calçamento, de
iluminação pública etc. Nas áreas onde se processou o crescimento vertical pro-
priamente dito, nada se fez para reajustar as vias de comunicação, os serviços
de águas ou de esgotos, de calefação etc., às estruturas dos prédios grandes e à
maior concentração demográfica. No conjunto, o homem conquistou o espaço,
mas não o domesticou no sentido urbano. A jornada para o trabalho ou deste para
o lar, por exemplo, está cheia de aventuras, de inconvenientes e de provações,
produzindo um encurtamento indireto do período útil da vida humana. Deste
ângulo, as perspectivas são sombrias, pois a menor calamidade pública exporia a
cidade e seus habitantes a crises terríveis, dadas as lacunas do abastecimento de
água e de víveres, das formas de proteção da saúde e dos meios de preservação
da ordem (Fernandes, 2008 [1959], p. 270-271).

Neste trecho, além de reforçar sua descrença na capacidade administrativa do


poder público e de seus urbanistas, o sociólogo revelava também uma nova pers-
pectiva sobre o futuro da cidade: o que estava por vir não era mais necessariamente
bom, na verdade, o futuro seria sombrio. Não havia mais qualquer otimismo nas
expectativas de Florestan Fernandes. Em 1954, o sociólogo, com distanciamento
crítico, tinha expectativas positivas sobre o desenvolvimento de São Paulo. No
entanto, em 1959, era a desesperança que dava o tom do texto: “Nesse terreno, no
qual está em jogo a segurança e o conforto dos moradores da cidade tanto quanto
a continuidade do progresso dela no futuro, falharam por diferentes motivos o
empreendedorismo particular e o empreendedorismo oficial” (Fernandes, 2008
[1959], p. 271).
Finalmente, e usando um vocabulário que ecoava referências de Anhaia Mello
(o urbanista, baseado em Geddes, previa que as grandes cidades terminavam seu
ciclo existencial como “necropolis” – cidades mortas), Florestan Fernandes anun-
ciava o futuro desolador que poderia ser o de São Paulo:

Como acontece em outros países subdesenvolvidos e de economia tropical, a


ausência de equilíbrio nas relações campo-cidade contribui para dar ao cres-
cimento econômico de São Paulo em caráter tumultuoso, desordenado e
descontínuo em pontos vitais. Por isso, o perigo de uma “retração” permanente
existe e a cidade corre um risco que nos deve preocupar fundamentalmente. Ela

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 243

poderá converter-se em uma cidade morta gigantesca (Fernandes, 2008 [1959],


p. 275).

Esta perspectiva passou a se generalizar a partir do final dos anos 1950 e


se tornou hegemônica ao longo das décadas seguintes. Florestan Fernandes não
é o formulador original deste ponto de vista nem necessariamente o principal
responsável pela sua difusão. Ainda assim, o sociólogo encarnou de maneira
típico-ideal o que estava se tornando a representação dominante do futuro de São
Paulo, justamente quando a produção dos destinos da cidade começou a escapar
das mãos do campo político e do discurso dos urbanistas.
A representação dominante passou a ser formulada – do ponto de vista
simbólico – preferencialmente por intelectuais, artistas, jornalistas e outros
agentes do mundo cultural que, naquele momento, distanciavam-se das posições
dirigentes do Estado. Nesse sentido, Fernandes ocupou uma posição estratégica
na condução do controle sobre a produção simbólica do que era e do que seria a
metrópole paulistana. Em um momento de reformulação da divisão do trabalho de
dominação – no qual o Estado (no seu aspecto governamental) e o campo político
perdiam parte de seu controle sobre as esferas culturais, científicas e intelectuais
(Miceli, 2001) –, a condição de maior sociólogo brasileiro (ou, ao menos, de forte
concorrente ao título), ao ser mobilizada na reflexão sobre os destinos de São Paulo,
favoreceu a tomada, pelo campo intelectual, da responsabilidade pela produção
das representações dominantes sobre a cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento que levou à substituição da hegemonia de uma representação
otimista do futuro de São Paulo por uma pessimista é um processo complexo, mas
que pode ser esquematicamente desdobrado em quatro aspectos fundamentais.
Em primeiro lugar, houve, no seio do urbanismo paulistano – área funda-
mental para a produção do futuro de São Paulo até meados do século XX –, o
acirramento da disputa em torno do modelo de cidade que deveria ser adotado
por São Paulo. De um lado, o ramo dominante do urbanismo local apostava na
continuidade da metropolização e apresentava esse desenvolvimento como um
destino épico e glorioso para a cidade. De outro, o ramo concorrente trazia para
o primeiro plano uma série de críticas ao gigantismo de São Paulo, destacava os
problemas urbanos causados pelo crescimento e, ao mesmo tempo, oferecia um
destino alternativo para a cidade – no qual haveria redenção. Nesse sentido, a
representação hegemônica – alimentada pelo urbanismo dominante – passou a ser

2018
244 Bruno de Macedo Zorek

questionada desde “dentro”. Quem fazia a crítica ao destino glorioso de São Paulo
compartilhava da mesma autoridade que os urbanistas formuladores da perspec-
tiva dominante possuíam: uma autoridade fundada sobretudo no campo político.
Em segundo lugar, as comemorações dos 400 anos de São Paulo atraíram
muitas e diversas atenções para o tema da metrópole. A enxurrada de discursos que
o aniversário promoveu fez com que o vocabulário urbanístico, até então central
para a produção do futuro da cidade, perdesse espaço e passasse a disputar com
os instrumentais da geografia, da sociologia e de outras especialidades. Portanto,
por um lado, havia o enfraquecimento das imagens produzidas pelo urbanismo por
conta das cisões internas e, por outro lado, a emergência de discursos concorrentes
de diferentes origens e fundados em diversos pontos de vista.
Em terceiro lugar, o crescimento da Universidade de São Paulo, sobretudo da
Faculdade de Ciências e Letras, e, mais especificamente, a consolidação de alguns
de seus professores como intelectuais de envergadura, somado a ampliação das
vozes desses intelectuais através dos jornais e das revistas de cultura (como a
Anhembi e a Brasiliense) (Jackson, 2004; Miceli, 2001) permitiu que aquela enxur-
rada de discursos sobre a cidade fosse desviada em favor de uma nova autoridade,
proveniente das ciências humanas.
Em quarto lugar, finalmente, a comparação entre as relações que os urbanistas
e os intelectuais das humanidades tinham com os governos em São Paulo, fossem
municipais, fossem estaduais, também ajuda a entender o tipo de pessimismo que
se tornou hegemônico. Os urbanistas de destaque faziam (ou fizeram) parte do
Estado em suas instâncias decisórias mais importantes – algumas vezes ocupando
cargos executivos que lhes permitiam grande capacidade de intervenção. Os
intelectuais das humanidades, por sua vez, estavam apartados dessas posições. A
crença na ação do Estado como solução possível para os problemas urbanos – e
que fundamentava em parte o otimismo hegemônico – era mais frequente entre
aqueles que estavam mais próximos das esferas de decisão do Estado. Ao passo
que, os mais distantes também eram mais céticos em relação a essa capacidade de
solução – afinal, não participavam de suas formulações. Portanto, o que se observa
é um descolamento entre, de um lado, o planejamento urbano e sua aplicação pelo
poder público, e, de outro, o poder de representar o futuro da cidade.
Antes dos 400 anos, as representações hegemônicas do futuro de São Paulo
caminhavam juntas com o planejamento urbano da metrópole. Passado o aniver-
sário, as representações se tornaram prerrogativa de um grupo que não tinha
nem acesso aos instrumentos de intervenção e, ao mesmo tempo, os urbanistas
perderam a capacidade de produzir, no sentido pleno, o futuro de São Paulo. Na

Plural 25.1
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950 245

nova divisão do trabalho de dominação, as humanidades passaram a exercer um


importante papel na definição das representações relacionadas à sociedade brasi-
leira – embora não participassem das decisões políticas sobre as intervenções de
grande impacto. Ao passo que o campo político (urbanistas em parte incluídos)
– sem deixar de ser fundamental para a produção da cidade – precisou restringir
sua atuação a outros aspectos dessa produção.
A representação do futuro de São Paulo, a partir do final da década de 1950,
tornou-se esgarçada. A expectativa dominante passou a prever uma cidade gigan-
tesca e problemática, cada vez mais definida pelo caos e pela impossibilidade de se
tornar um bom lugar seus habitantes – um ponto de vista produzido e sustentado
pelo campo cultural, cuja autoridade emanava fundamentalmente da universidade
e das humanidades. Por outro lado, a capacidade de mobilização dos recursos do
Estado para intervir na cidade continuava monopólio praticamente exclusivo do
campo político que, por sua vez – e baseado ainda nos discursos dos urbanistas
– investia justamente no crescimento de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2018
Tradução

Fin de siècle

Christophe Charlea

Tradutores1: João V. Kosickib; Marcello G. P. Stellac

À memória de Carl E. Schorske (1915-2015)

A singularidade do cronônimo fin de siècle está vinculada a precocidade de


sua autodefinição. Corriqueiramente, a maioria das expressões que qualificam
períodos são retrospectivas, basta pensarmos na “Belle époque” ou nos muito
célebres “Trinta Gloriosos”2. Os contemporâneos denunciam em vão para si
mesmos o artifício que consiste em identificar a evolução de um século às fases de
desenvolvimento, de apogeu ou de declínio de um corpo orgânico que atravessa as
diversas fases da vida. Quanto mais nos aproximamos de decênios fatídicos, mais
a temática se afirma e aqueles que tentam contestá-la ou propor outra visão do
tempo histórico devem recorrer a estratégias retóricas defensivas. Essa maneira
terminológica tenderia então a se esgotar junto com o momento que a viu nascer.
Mas é imperativo constatar que ela permanece vigorosa e abundantemente soli-
citada como etiqueta para expressiva quantidade de trabalhos contemporâneos,
que a tomam como espécie de evidência em si mesma, apesar de suas fragilidades
originais. É no desvendamento desse paradoxo que nós nos deteremos. Para além
do caso singular, ele pode fornecer ensinamentos sobre o mau emprego de modos
de periodização que introduzem frequentemente um viés de enquadramento à
compreensão de um momento por meio das problemáticas parasitas que os próprios
cronônimos inconscientemente induzem quando são utilizados.3

a Professor de história contemporânea na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne (1HMC) e


membro honorário do Institut Universitaire de France.
b Doutorando em sociologia no PPGS-USP.
c Mestrando em sociologia no PPGS-USP.
1 Agradecemos o auxílio de Rafael Souza Barbosa na revisão de partes dessa tradução.
2 Cf. a contribuição de Dominique Kalifa publicada em Revue d’histoire du xixe siècle, n° 52, 2016/1
sobre a Belle époque, e Pawin, Rémy. “Retour sur les ‘Trentes Glorieuse’ et la périodisation du
second XXª siècle”, Revue d’histoire moderne et contemporaine, n° 60-1, p. 155-175, 2013.
3 Gilbert, Stéphane; Bihan, Jean Le; Mazel, Florian [org.]. “Découper le temps. Actualité de la
périodisation em histoire”, Atala, n° 17, 2014, particularmente o “avant-propos” de Gilbert,
Stéphane, “Les enjeux renouvelés d’um problème fondamental: la périodisation en histoire” p.
7-31, e meu posfácio “Discordance des temps, dénivellations spatiales et periodisation, les défis
de l’homo historicus”, p. 325-334.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.248-264
Fin de siècle 249

AVATARES DO SÉCULO4
Para compreender a aparição, o desaparecimento, depois a ressurreição do
fin de siècle, é preciso remontar muito longe no tempo e não se contentar em
examinar, como poderíamos crer, unicamente os decênios finais do século XIX,
seu período de eclosão e de consagração posterior pelos trabalhos eruditos sobre
os quais voltaremos mais a frente. É necessário partir do golpe de força simbólico
fundador de Voltaire, que põe o “século” como unidade cronológica pertinente. Em
1751, o autor de Candido retira à força da palavra século suas conotações religiosas
pejorativas e, na verdade, com o Século de Luís XIV (Le siècle de Louis XIV) cria o
primeiro cronônimo erigido em norma de apreciação para construir representações
de longa duração de períodos históricos (as decupagens precedentes canonizadas
como “Idade Média”, “Antiguidade” abarcavam vários “séculos”). É a abertura
desse livro sobre o século XVII apreendido globalmente que mudou o status de
uma palavra banal ao mesmo tempo que elevava o status de um grande rei:

Mas qualquer um que pense, e, o que é mais raro, qualquer um que tenha bom
gosto, conta somente apenas quatro séculos na história do mundo. Essas quatro
idades felizes são aquelas onde as artes se aperfeiçoaram e que, servindo de época
para a grandeza do espírito humano são exemplo para a posteridade.
O primeiro desses séculos, ao qual a verdadeira glória está vinculada, é aquele de
Felipe e de Alexandre, ou aquele de Péricles, de Demóstenes, de Aristóteles, de
Platão, de Apeles, de Fídias, de Praxiteles; e essa honra foi encerrada nos limites
da Grécia; o resto da terra conhecido então era apenas barbárie.
A segunda idade é aquela de César e de Augusto, designada ainda pelos nomes
de Lucrécia, de Cícero, de Tito-Lívio, de Virgílio, de Horário, de Ovídio, de Var-
rão, de Vitrúvio.
O terceiro é aquele que seguiu a tomada de Constantinopla por Maomé II. O lei-
tor pode se lembrar que viu-se então na Itália uma família de simples cidadãos
fazer o que deveriam fazer os reis da Europa. Os Médicis chamaram em Florença
os sábios que os turcos expulsavam da Grécia; era o tempo de glória da Itália.
As belas artes ali tinham já ganhado vida nova; os Italianos as honravam pelo
nome de virtù, de maneira semelhante a como os primeiros Gregos a haviam
caracterizado o nome da sabedoria. Tudo tendia a perfeição. [...]

4 Cf. sobre esse ponto, Leduc, Jean. Les Historiens et le temps. Conceptions, problématiques,
écritures, Paris, Seuil, 1999, p. 97-99.

2018
250 Christophe Charle

O quarto século é aquele que chamamos o século de Luís XIV, e é talvez aquele
dos quatro que mais se aproxima da perfeição. Enriquecido pelas descobertas
dos três outros, ele fez mais em certos gêneros que os três anteriores juntos.
(Voltaire, 2000, p. 616-617)

A noção de século como época específica, rica de caracteres originais, nasce


com essa periodização da civilização por Voltaire. Ela implica, como o demonstra
esse começo de “Século de Luís XIV”, a alternância de tempos raros e gloriosos
com longos tempos obscuros e decadentes dominantes na história dos homens. Em
reação, os partidários das Luzes (e longinquamente até Michelet) vão se colocar
em oposição a visão estática volteriana, construindo uma temática baseada em
um avanço contínuo no seu próprio século (século das Luzes) rompendo com a
descontinuidade fatalista entre séculos gloriosos e séculos de escuridão. Embora
a problemática instalada no decênio final do século XVIII, essa nova dinâmica de
séculos encontra sua expressão sintética no célebre ensaio de Condorcet, Esboço
de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1794) onde ele divide
a história em “épocas” no número de dez, das quais uma desenha uma espécie de
futuro; cada uma dá sua pequena contribuição para o progresso global.
Em afronta, os adversários da Revolução e, mais generalizadamente, os das
Luzes não recorreram da mesma maneira a temática lógica do fin de siècle que
retomava a descontinuidade volteriana. Eles preferiram convocar, nós o sabemos,
uma retórica renovada da visão religiosa da história onde o orgulho humano,
herança do pecado original, quer seja aquele do grande homem (Napoleão em
primeiro lugar) ou quer seja de homens revoltados das massas revolucionárias é
punido pela lei divina através de uma série de catástrofes que obrigam a França a
retornar a antiga ordem: terror, guerra civil, invasão, ocupação, restauração. Mas
como essa restauração durou longo tempo ao menos na França, desde os anos
1820 e mais ainda depois de 1830, para os liberais, para os saint-simoneanos como
para os republicanos, a concepção de progresso de Condorcet relançou uma iden-
tificação do novo século com um movimento ascendente. Este movimento passa
de mutações técnicas visíveis na vida cotidiana a domínios mais vastos do que as
letras, as artes ou as ciências, caros aos enciclopedistas5. No meio do século XIX,
essa visão positiva do novo século, a despeito das críticas que vinham dos meios
conservadores ou católicos intransigentes ou de minorias intelectuais decadentes

5 Ver Charle, Chistophe. Discordance des temps. Une brève histoire de la modernité, Paris, Colin,
2011.

Plural 25.1
Fin de siècle 251

e irônicas, adquire pouco a pouco a força de um lugar comum, em todo caso ao


menos entre a parte mais visível dos publicistas e no seio do público burguês que
os lia, ao ponto de suscitar o aborrecimento e o desprezo dos intelectuais e artistas
menos conformistas, Baudelaire e Flaubert em primeiro lugar6.
Esse elogio do tempo presente é regularmente reativado quando da ocasião
de balanços realizados pelas exposições universais sempre no mesmo espírito de
comparação no tempo e no espaço em benefício da França. O governo imperial,
em 1855 como em 1867, convocando o mundo inteiro a Paris, pode se gabar de
sucessos parisienses em matéria de urbanismo, de progressos industriais e técnicas
que facilitam o quotidiano de todos e de um florescimento artístico internacional
ainda não alcançado em outras partes.
Apesar de tudo, o fim dos anos 1860 começa já uma virada como indicam
certas passagens da introdução ao relatório geral sobre a Exposição universal de
1867. O comissário geral, Michel Chevalier, ali percebe os sinais inquietantes que
não podem estar de acordo com a temática do progresso inelutável e sobretudo
da hegemonia indefinida da Europa sobre o resto do mundo:

A Europa que se considera como a representação mais elevada do gênero humano,


a Europa que, na hora atual, possui as técnicas úteis e as belas-artes, atributos
distintivos e signos característicos da civilização, a Europa cujas, crianças reuni-
das nos sítios da Exposição, parecem prontas a se abraçar mutuamente, oferece
bem mais o aspecto de uma horda do que aquele de um grupo ou comunidade de
homens industriosos e esclarecidos, honrando a Deus, amando seus semelhantes,
orgulhosos de facilitar o progresso universal e individual pelo desenvolvimento
da liberdade geral e das liberdades particulares. Quanto mais longe remontamos
na história, não encontraremos jamais uma coleção parecida de homens arma-
dos, uma reunião de tantos instrumentos de guerra7. (Chevalier, 1867, p.DXII)

Essas apreciações pessimistas impactam tanto mais, pois concluem o volume.


Elas contrastam com a tonalidade geral positiva do relatório e retomam explicita-

6 Essa convivência entre mainstream e humor crítico data de 1830 como nos mostra José-Luis
Diaz (“Comment 1830 invente le XIXª siècle”) ou Alain Corbin (“Le XIXª siècle ou la necessite de
l’assemblage”) em L’invention du XIXª siècle, textos reunidos por Alain Corbin, Pierre Georgel,
Stéphane Guégan, Monique Michaud, Judith Milner, Nicole Savy, Paris, Klincksieck/Presses
de la Sorbonne nouvelle, 1999 respectivamente p. 177-193 e p. 153-159. Ela também facilitará o
retorno do humor geral depois de 1870.
7 Exposição universal de 1867, Rapports du jury international introduction por Chevalier, Michel,
Paris, Imprimerie administrative Paul Dupont, 1868, p. DXII. É possível realizar o download
no endereço: http://cnum.cnam.fr/PDF/cnum_8XAE149.1.pdf.

2018
252 Christophe Charle

mente os conflitos recentes que ensanguentaram a Europa, em particular a vitória


da Prússia sobre a Áustria em Sadová em 1866. Elas desembocam no anúncio
possível de um declínio da civilização incarnada pela Europa e de maneira super-
lativa pela França (a derrota da expedição ao México no mesmo ano em que são
escritas essas linhas é um dos primeiros indícios). Esse prognóstico é ainda mais
inquietante por emanar de um importante responsável (de cargo elevado) que
depois de sua juventude saint-simoneana sempre teve fé no progresso ininterrupto
rompendo com as maldições dos séculos precedentes.
Na verdade, este tema de um fim de século possivelmente inquietante foi esbo-
çado por polêmicos marginais, ainda que seus lugares comuns fossem ressucitados
nas décadas seguintes. Em 1852, por exemplo, podíamos ler na pluma de um autor
conservador como Eugène de Montlaur no De l’Italie et de l’Espagne:

O começo do século XIX foi cheio de vivacidade e grandeza.O século XVIII foi
avariado e perdido numa noite profunda. Ele ali teve, no caminho de seu encer-
ramento, como que um naufrágio universal; e sobre as ruínas amontoadas das
leis, dos costumes, das crenças, como uma geleia geral de povos do continente.
Combatíamos aqui em nome da ordem social atacada até suas bases; ali, em
nome de confusas teorias que uma demagogia furiosa, excitada por insaciáveis
ambições, explicadas em lugares públicos com tochas de incendiários e a gui-
lhotina. Esse fim de século lembra a esses fantásticos e grandiosos quadros do
pintor inglês Martins, como eles o fim de século da uma vertigem e faz duvidar o
pensador que crê na marcha progressiva da humanidade. (Montlaur, 1852, p. II)

Esse esquema binário que queria que os começos e os fins de século obede-
cessem às orientações opostas está presente como representação muito antes que
dele seja feito uso intensivo a partir dos anos 1880. Em 1855, Eugène Huzar toma
o contrapé da visão dominante anunciando não o progresso, mas “o fim do mundo
pela ciência8”: o progresso técnico a medida que se acelera causará catástrofes e
problemas ambientais mais e mais profundos. Essas sombras no quadro do século
triunfante vão se estender ainda um pouco mais nos decênios seguintes.

TRINTA ANOS ANTES

8 Huzar, Eugéne. La Fin du monde par la Science, introduction de Jean-Baptiste Fressoz, Alfor-
tville, Ere, 2008. Cf. também sobre os “danos do progresso”, Fressoz, Jean-Baptist. L’Apocalypse
joyeuse. Une histoire du risque technologique, Paris, La Découverte, 2014.

Plural 25.1
Fin de siècle 253

O fin de siècle como representação inquietante começa precocemente na


França, trinta anos antes do fim oficial do século. As temáticas que são evocadas à
saciedade no curso dos anos 1890 surgem na alvorada dos anos 1880, na verdade
já nos anos 1870 quando da ocasião das amargas reflexões sobre a derrota Alemã9,
já se nota sua presença. Essa precocidade está ligada a coincidência de três fenô-
menos independentes que vão produzir efeitos cumulativos para o apogeu do tema
da decadência ou da degenerescência associada a ideia do fin de siècle. O primeiro
é a incerteza política que dura de 1871 a 1878 e a hostilidade de uma fração impor-
tante dos intelectuais ligados ao Império ou a Ordem moral face a emergência do
novo regime. O mais célebre é evidentemente Taine, principal autoridade do campo
intelectual com Renan até sua morte em 189310. Nas suas Notes sur l’Anglaterre
(1872) como nas Les Origines de la France contemporaine (1875 – 1893) ele desen-
volve a temática do declínio nacional por um jogo de espelhos com a Inglaterra,
preservada de revoluções. Ele estabelece um paralelo entre o fim do século XVIII,
época revolucionária, e o momento em que ele escreve o qual ele assemelha ao
retorno dos “jacobinos”, supostos ancestrais dos republicanos radicais alçados ao
poder depois de 1879. Esse livro conhece um amplo sucesso entre os letrados e no
exterior (por exemplo, Nietzsche o cita) e prepara os espíritos para as temáticas
fin de siècle e “decadentes”11.
O segundo fator incitando a um humor do “declínio” é o clima econômico geral
de depressão após a quebra das bolsas de 1882, as dificuldades agrícolas e a inquie-
tude ligada a fraqueza demográfica francesa em comparação ao desenvolvimento
da população alemã e dos países “anglo-saxões” atestadas pelo desenvolvimento
de suas colônias de povoamento. O primeiro aspecto concerne a toda Europa, mas
se traduz pelo recuo econômico relativo da posição francesa face à Alemanha ou a
Inglaterra e logo às potências não-europeias como os Estados Unidos. O discurso
neo-saint-simoneano ou do livre comércio que havia dominado sob o Segundo
Império cede em face de um discurso mais defensivo, protecionista, ganhando
penetração inclusive nos meios anteriormente liberais. O projeto colonial da nova
República de Jules Ferry se serve de um contra-argumento: já que os mercados

9 Sobre as reflexões precoces acerca da decadência francesa dos 1870-1871, cf. Charle, Christo-
phe. “Trois écrivains face à une autre ‘étrange défaite’: Goncourt, Flaubert et Zola et la guerre
de 1870”. In: Betz, Albrecht; Martens, Stefan [org.]. Les Intellectuels et l’occupation (1940-44),
Paris, Autrement, 2004, p. 14-37.
10 Cf. Charle, Christophe. Paris fin de siècle. Culture et politique, Paris, Seuil, 1998, capítulo 3 e
R ichard, Nathalie. Hippolyte Taine. Histoire, psychologie, littérature, Paris, Garnier, 2013.
11 Em Le Disciple (1889) Paul Bourget coloca em cena um filósofo que se assemelha à Taine e ao
qual responsabiliza pelo cinismo e pela falta de senso moral da decadente juventude contem-
porânea.

2018
254 Christophe Charle

europeus escapam da França é necessário construir novos mercados em “espaços


virgens” e protegidos da África e da Ásia.
O terceiro motivo central e mais importante na temática fin de siècle é aquele
de uma crise moral, fundamento secreto dos declínios materiais precedentes: o
pessimismo, a exacerbação das paixões e as excitações nervosas seriam produ-
zidos pela civilização moderna. Essa crise toca em primeiro lugar as elites urbanas
das grandes metrópoles e particularmente os meios artísticos e literários mais
expostos a essa modernidade doentia de luta concorrencial de todos contra todos
que difunde a vulgarização do tema darwiniano da luta pela vida. Esse esquema
interpretativo é, ele também, precoce como indica esse extrato de 1882 sob a pluma
de um crítico de teatro pouco inclinado habitualmente a considerações filosóficas:

Ultimamente, alguém chamava a minha atenção que nossos artistas, neste


momento tão organisados e graves, quando observam uma sociedade moderna,
veem apenas loucos, exaltados, em resumo, artistas. É o mundo de pernas para
o ar. Somos tentados a dizê-lo. Onde estão, então, vossos doentes? Mostrai-nos,
seus degenerados! Neste fim de século que, com algumas gotas de morfina, pode-
ria ganhar ares de sonâmbulo, a única e maior neurose que existe é a ganância
! (Mortier, 1882, p. X)

No mesmo ano, um romancista popular Dubut de Laforest cita os mesmos


lugares comuns sobre as neuroses contemporâneas no prefácio de um romance
de título chamativo Tête à l’enver, situado na “boa sociedade”:

E agora que todo mundo diz que os cérebros se degeneram, que a neurose nos
persegue e que a humanidade chega a seu fim, não seria mais que uma parca
honra a este romancezinho de ter questionado o problema tão grave e ainda sem
solução do livre-arbítrio. Na realidade, seria curioso para este fim de século, inva-
dido por um formidável desejo de experimentação, saber se todas as mulheres
que caem em perdição ainda são mestras de ficar em pé contra ventos e maré.12
(Laforest, 1882, p. VI-VII)

Uma sondagem feita com a expressão fin de siècle nos volumes digitalizados
do Gallica confirma que essas associações de ideias de precocidade não são alea-
tórias. Uma constelação de vocábulos negativos surge quase automaticamente na

12 Prefácio escrito em maio de 1882.

Plural 25.1
Fin de siècle 255

escrita de autores os mais diversos quando eles recorrem a expressão fin de siècle,
ao ponto que são raros os defensores de um resto de otimismo nesse fim de século,
os quais estão em posição defensiva em face a nova corrente de opinião dominante
mais pessimista. Aqui alguns exemplos:

Léon Bloy (1884): “Esse fim de século terrível e carregado de mistério, como a
maior parte dos fins de século.” (Bloy, 1884, p. 271)
Dubut de Laforest (1884): “nesse fim de século, um pouco problemático, onde
tantos cérebros deterioram.” (Laforest, 1884, p. 274)
Léon Bloy (1886): “A delinquência psicológica literária desse fim de século.”
(Bloy, 1886, p. 38)
Edouard Drumont (1889): “as melancólicas tristezas desse fim de século.” (Dru-
mont, 1889, p. 115)

O estudo exaustivo de Marc Angenot das publicações do ano de 1889 permite


confirmar que essas associações de ideias características se encontram em todos os
tipos de discurso e em todos os tipos de suporte esperando que outros a substituam
quando se aproxima os anos 1900. Vemos, todavia, que elas são bem anteriores ao
ano escolhido pela pesquisa de Angenot em função da coincidência com o cente-
nário de 1789 e dos possíveis efeitos de eco entre “fins de siècle”13.
Contra essas temáticas negativas, os defensores fervorosos do progresso
se encontraram isolados em registros militantes ou de discursos oficiais pouco
escutados e obrigados a se situarem face aos pessimistas da decadência. Assim
nessa frase conclusiva de memórias de um antigo reitor em cima do muro quanto
a um diagnóstico:

Se fosse verdade que a saúde moral de um país se mede pelo prestígio da autori-
dade que está no topo do poder, pela força que está em baixo nas famílias, nosso
fim de século estaria bem doente, alguns raios de esperança se projetam sobre
ele as maravilhas da ciência e os esplendores da arte. (Mourier, 1889, p.397)14

13 A ngenot, Marc. 1889. Un état du discours social. Longueuil. Québec: Editions du Préambule,
1989, notadamente p. 373-407.
14 Mourier, Adolphe. Notes et souvenirs d’un universitaire. Paris: imprimerie Jacob, 1889, con-
clusion, p. 397.

2018
256 Christophe Charle

Três anos mais cedo, Eugène Melchior de Voguë no entanto havia tentado
demonstrar o paralogismo sobre o qual repousava a expressão fin de siècle e as
deduções falaciosas quanto a evolução moral que ela permitia difundir:

Nos deixamos facilmente abater por essa expressão fatídica de um fin de siècle. É
um engano. O século começa sempre por aqueles que tem vinte anos. Nós divi-
dimos o tempo em períodos artificiais, nós o comparamos ao transcorrer de uma
existência humana; a força criadora da natureza não se preocupa com nossos cál-
culos; ela movimenta implacavelmente as gerações no mundo, ela confia a eles um
novo tesouro de vida sem olhar a hora de nossos ponteiros. (Voguë, 1886, p. LIII)

Os raros professadores de um otimismo ou de energia nada podiam. Tudo era


atraído pelo sentido inverso: a atmosfera geral de crise evocada precedentemente,
a voga entre os escritores e intelectuais do pessimismo à la Schopenhauer que
se começava a traduzir (Colin, 1979, p. 130-131), a retomada por provocação dos
termos “decadência” ou “decadentes” pela juventude literária a procura de novas
etiquetas para se distinguir de seus veteranos na “batalha literária” (Richard, 1961),
a incapacidade das novas elites da República de fornecerem uma imagem positiva
de sua ação a despeito das reformas realizadas anteriormente. A amplificação e
extensão do crônonimo fin de siècle se opera por um desvio que vulgarizou no
estrangeiro seu uso, no livro de sucesso de Max Nordau, Entartung (1892), tradu-
zido para Dégénérescence na edição francesa de 1894.
A obra logo versada para as principais línguas europeias (holandês, 1893;
italiano 1893; francês, 1894; inglês, 1895) confere à França um lugar central, e
sua primeira parte é intitulada precisamente Fin de siècle. O primeiro capítulo
“Crépuscule des peuples” erige a França em paradigma de todos os maus do fin de
siècle resumidos precedentemente:

Fin de siècle é francês, pois é a França que, primeiramente tomou consciência


do estado de espírito que denominamos assim. A palavra se espalhou pelos dois
mundos e encontrou acesso em todas as línguas cultivadas. É a prova que ela
respondia a uma necessidade. O estado fin de siècle dos espíritos hoje se encontra
em toda parte; mas ele é somente em muitos casos uma imitação de uma moda
estrangeira tida por distintiva, e não tem nada de orgânico. É no país de sua

Plural 25.1
Fin de siècle 257

origem que ela se apresenta de modo mais autêntico; e Paris é o lugar designa-
do para observar suas múltiplas variedades e variações. (Nordau, 2010, p. 31)15

Se Max Nordau sintetizou em seu best-seller os principais temas do cronônimo


e na verdade fez de uma palavra uma espécie de senha europeia, ele não foi por
outro lado nenhum inventor, como vimos. Ele aproveitou de sua posição de inter-
mediário entre culturas: judeu húngaro desvinculado de sua religião de origem,
da cultura alemã, ele viveu em Paris desde 1880 e serviu de correspondente para
jornais germânicos. Essa situação é ideal para vulgarizar temas da moda de um
país para o outro, jogando sobre o monopólio da informação que ele detinha a partir
de sua longa estadia em Paris onde ele completou seus estudos de medicina. Sob
um fundo aparentemente “objetivo” de uma pesquisa nosográfica16, ele propõe um
retrato perfeitamente negativo de inúmeras personalidades parisienses célebres ou
menos famosas, reforçadas por alguns inovadores estrangeiros (Wagner, Tolstoi),
todos tomados como testemunhas e atores da degenerescência fin de siècle. Ele
retoma as expressões que fazem um ar dos tempos da Paris literária e artística dos
anos 1880; aquelas que corriam pelo mundo dos boulevares e dos teatros ou entre
os cafés frequentados pela boemia do quartier latin e são repetidas sem cessar
como vimos sob todos os tipos de forma (em anedotas e assuntos de variedades,
artigos de jornais, de revistas, ensaios, personagens tipos de romances parisienses
como À Rebours (1884) ou Là-bas de Huysmans (1891), peças de teatro) depois
de mais de uma dezena de anos17. Abandono das tradições, fim do mundo, obso-
lescência rápida das ideias, preocupação da superoferta, gosto pelo desrespeito
às regras sob todas as suas formas, esnobismo oportunista, todos esses traços do
fin de siécle segundo Nordau estão concentrados na medíocre elite de vanguarda
parisiense que promove as modas, aproveitando da caixa de ressonância de uma
imprensa sedenta por polêmicas (ver l’Enquête sur l’évolution littéraire de Jules

15 Primeira edição Berlin, Duncker & Humblot, 1892, tradução francesa: Paris, Alcan, 1894.
16 O emprego de um vocabulário médico que ele empresta de sua primeira formação ou de qualquer
outros autores conhecidos (Morel, Lombroso, etc) e a dedicação elogiosa à Cesare Lombroso
são os sinais desse jogo duplo literário e para-científico que um outsider, autor de best-sellers,
Gustave Le Bon, pratica no mesmo momento e sobre temas semelhantes.
17 O autor admite ele mesmo como construiu sua proposta a partir de publicações recentes: «Le
plus sûr moyen de savoir ce qu’on entend par « fin de siècle » est de passer en revue une série
de cas où ce mot a été employé. Ceux que nous allons citer ici sont empruntés aux journaux et
aux livres français des deux dernières années. » (Nordau, 2010, p. 33). “O meio mais seguro
de saber o que entendemos por fin de siècle é pensar nas mais variadas ocasiões em que essa
expressão foi utilizada. O que nós iremos citar aqui são empréstimos tomados dos jornais e
livros franceses dos dois últimos anos.” (Nordau, 2010, p. 33).

2018
258 Christophe Charle

Huret, Paris, Charpentier, 1891), do cosmopolitismo de uma capital que dá ainda


o tom das vanguardas similares em outros países:

Um período da história que chega a seu termo, e um outro se anuncia. Todas as


tradições são atravessadas por uma ruptura, e o amanhã não parece desejar se
vincular ao hoje; aquilo que existe vacila e se esvai, e nós o deixamos a deriva
pois estamos lá e não cremos que sua conservação é digna de esforço. (Nordau,
2010, p. 35)

RENOVAÇÃO DO FIN DE SIÈCLE


A despeito da hostilidade suscitada na França pela visada negativa susten-
tada por Dégénérescence logo de sua publicação por Alcan, as obras de autores
atacados principalmente por Max Nordau como símbolos da decadência do país
(em primeiro lugar Zola e os naturalistas e certos poetas simbolistas) prolonga
largamente a temática decadente e fin de siècle até o ano 1900, e mais adiante
inclusive. Essa última estava apesar desse fato, próxima de colocar um termo
(já que um novo século se iniciava) no processo de desregramento, tanto que ela
coincide com uma nova Exposição universal que visava abrir o século XX, a fazer
esquecer os combates do caso Dreyfus e a religar-se com a temática do progresso
de uma humanidade reconciliada na cidade luz.
De fato os principais romancistas se propõem ainda nos últimos anos do
decênio de 1890 e até no começo do século XX, a pintar quadros desencorajando
as evoluções sociais, culturais ou políticas que não tem nada a ver com os diag-
nósticos pessimistas de ensaístas como Le Bon na Psychologie des foules (1895)
ou dos sociólogos como Durkheim de Suicide (1896). A trilogia Trois villes de
Zola se fecha em dois retratos decadentes das capitais da civilização, aquela de
coabitação difícil entre a antiga Roma papal e a nova Roma monárquica (Rome,
1896), aquela de Paris (1898) dos atentados anarquistas e do escândalo do Panamá,
transposto em chaves mais transparentes de entendimento para os contemporâ-
neos. A trilogia os Déracinés de Barrès (1897) prolongado pelo L’Appel au soldat
(1900) e Leurs figures (1902) instrui sobre o processo de corrupção da vida pública
na república dos escândalos, do boulangismo ao panamismo. Os romances inspi-
rados pelo caso Dreyfus onde os autores acertam contas não totalmente pagas
pelo compromisso instável do processo de Rennes e da graça presidencial (1899)
alimentam a lembrança da crise de fim de século bem depois de 1900, o que a
querela anticlerical ou o acirramento dos conflitos sociais nos anos 1900 ampli-

Plural 25.1
Fin de siècle 259

ficam ainda mais18. Assim o fin de siècle e seu cortejo de decadências, de neurose e
de incertezas políticas e sociais não terminou de terminar, ao menos no espaço de
representações literárias e jornalísticas mais difundidas. “O espírito fin de siècle”
feito do cinismo e da transgressão de tabus morais abateu-se também na crueza
das confissões do Journal d’une femme de chambre de Octave Mirbeau onde a
doméstica de origem bretã, seduzida pelos seus patrões parisienses muito fin de
siècle, termina por incarnar de alguma forma uma virtude face a hipocrisia do
burguês provinciano caxias e mesquinho mas ao mesmo tempo obcecado pelo
dinheiro ou pelo sexo dos parisienses ou das parisienses da boa sociedade19.
Como já mostramos em maiores detalhes, na aurora do século XX se vê bem
o renascer das utopias como se conheceu nos primeiros decênios do século XIX,
mas no século XX se trata mais de “distopias”. O otimismo remanescente do culto
ao progresso que acompanhava a aurora de um novo século ali era largamente
carregado de ameaças e de más surpresas. Inspiravam-se, na realidade, em uma
visão de história dos decênios precedentes cheia de conotações negativas20.
É a Primeira Guerra Mundial, catástrofe que ultrapassa em horror todos esses
prognósticos angustiantes, e o surgimento progressivo de um cronônimo novo e
concorrente, Belle époque, que contribui mais ainda para comprometer a carreira
e a lembrança do fin de siècle. Proust que viveu os dois períodos e procura deci-
frar a cor específica dos “tempos perdidos” sabe indicar aos leitores nostálgicos
a especificidade do pré-1900 pelo reemprego seletivo dessa noção a partir desse
momento démodé. Assim, na passagem seguinte de Du côté de chez Swann onde
Madame Cottard, encarnação do gosto médio em pintura, diz a Swann a propósito
de um retrato um pouco vanguardista demais na sua opinião:

Mas eu devo vos alertar francamente, vós não deveis me encarar um pouco fin
de siècle demais, mas eu digo o que penso, eu não entendi nada. Meu Deus, eu

18 Charle, Christophe. Paris fin de siècle. Culture et politique, Paris, Seuil, 1998, capítulo 7; L a-
louette, Jacqueline. “L’affaire Dreyfus dans le roman français”. Revue historique, 1999, n° 123,
p. 555-576; K ettani, Assia. De l’histoire à la fiction. Les écrivains français et l’affaire Dreyfus.
Thèse de littérature, université de Paris 3 Sorbonne nouvelle, 2010, <https://tel.archives-ouvertes.
fr/tel-00860862>
19 A gênese do romance se estende pelo decênio de 1890: uma primeira versão curta em folhetim
[feuilleton] aparece em 1891-1892, uma segunda versão em folhetin, enriquecida de novos
episódios, é publicada na Revue blanche de 15 de janeiro à 1 de junho 1900. Enfim o volume é
publicado em primeiro de julho de 1900 pela Fasquelle. Evitado pela crítica, o romance conhece
o sucesso porque toca onde lhe faz mal (cf. Michel, Pierre; Nivet, Jean-Françous. Octave Mira-
beau l’imprécateur au coeur fidèle, biographie. Paris: Sérguier, 1990).
20 Charle, Cristophe. Discordance des temps, Une brève histoire de la modernité, Paris, Colin,
2011., p. 327-337. Um fenômeno análogo se dá na Inglaterra: cf. Stokes, John. Fin de siécle, Fin
du globe. Fears and Fantasies of the Late Nineteenth Century, Londres: Mac Millan, 1992.

2018
260 Christophe Charle

reconheço as qualidade que há ali no retrato de meu marido, é menos esquisito


que o que ele faz comumente, mas era preciso que ele lhe pintasse os bigodes
de azul (...) eu acho que a primeira qualidade de um retrato, sobretudo quando
ele custa 10.000 francos, é de ser parecido e de uma semelhança agradável21.
(Proust, 1984, p. 375)

O leitor mais velho em 1913 deve ter sorrido lendo essa passagem, as audácias
impressionistas do final do século XIX que chocavam a mulher do doutor Cottard
(“bigodes azuis”) davam uma impressão bem tímida principalmente a partir da
vociferação dos Fauvistas ou das deformações cubistas das figuras humanas
propostas no Salão de Outono.
Apesar de seu lado fora de moda e sem sal um ou dois decênios após 1900,
que testemunham o reemprego irônico e fanfarrão por Proust para dar uma cor
temporal, o fin de siècle vai conhecer um renascimento fulgurante com um século
de distância de sua emergência. Uma pergunta a partir da ferramenta de visua-
lização Ngram viewer administrada pelo Google Books sublinha a renovação da
presença da expressão em um volume importante de produções impressas a partir
dos anos 1980. A curva está em perfeita simetria com o que foi produzido cem
anos mais cedo. Trata-se menos, atualmente, de designar os decênios terminais
do século XX que de revisitar o “verdadeiro” fin de siècle anterior, contribuindo
para legitimar seu valor heurístico privilegiando na realidade – na maior parte dos
trabalhos que dele se ocuparam – de uma fração bastante fina da sociedade e da
cultura que o havia visto nascer e o colocara em circulação. Isto se sucede ainda
tanto na produção em francês como nas produções inglesas e alemãs em que o
cronônimo é retomado tal qual, sem tradução, nos títulos de obras históricas ou
literárias, e se carregam de conotações (sofisticação, esteticismo, vanguardismo,
modernidade exacerbada) utilizadas a exaustão nas temáticas do final do século
XIX. Mas dessa vez elas são tomadas de maneira positiva enquanto que elas eram
o mais das vezes denunciadas pelos comentadores e críticos do século precedente.
É impossível fazer a exegese em detalhe do conjunto dessa produção proporcio-
nalmente mais abundante que aquela nascida nos últimos decênios do século
precedente, mas é incontestável que a reutilização corrente da expressão está ligada

21 Proust, Marcel. “Du côté de chez Swann” (1913), In: À la recherche du temps perdu. éd. Pierre
Clarac et André Ferré, volume I, Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1984, p. 375, citado
também por K eller, Luzius. “Selbstarstellung, Porträt und Karikatur im Fin de siècle: die Gräfin
Castiglione, Robert de Montesquiou, Marcel Proust”, In: Warning, Rainer; Wehle, Winfried (org.),
Fin de Siècle., Munich: Wilhelm Fink, 2002, Romanistisches Kolloquium, X, p. 125.

Plural 25.1
Fin de siècle 261

a seu perfume de época e encontra algum eco no momento de sua revivescência


na pluma dos especialistas que dela se apossam, pois entra em ressonância com
as temáticas pós-modernas em pleno desenvolvimento concomitantemente.
Se nos limitamos as obras onde a expressão é nominalmente citada no título
depois da Segunda Guerra Mundial conservadas na Library of Congress22, a crono-
logia sugerida pelo Ngram Viewer pode ser afinada mas também confirmada. Nós
contamos 3 títulos somente entre 1946 e 1959, 5 entre 1960 e 1969; na sequência
a presença da expressão no título passa por uma progressão geométrica: 12 entre
1970 e 1979, 33 entre 1980 e 1989, 108 no decênio de 1990. O movimento continua
já que o catálogo registra ainda 96 obras invocando o fin de siècle publicados entre
2008 e 2015.
Os dois decênios decisivos para a expansão do cronônimo podem ser simbo-
lizados por dois exemplos célebres e os mais precoces em matéria de contribuição
erudita sobre o fin de siècle: Fin de Siècle Vienna (1979) de Carl E. Schorske e France
fin de siècle de Eugen Weber (1986)23. Apesar da obra de Schorske, a qual a fortuna
e influência ulteriores não são necessárias comprovar dada a grande quantidade de
países a que se espraiou24, fazer um uso meio frouxo do cronônimo que utiliza como
título. A expressão serve, sobretudo, para ligar entre si quatro artigos bem diversos
uns dos outros publicados bem anteriormente em revistas sobre uma vintena de
anos: somente o primeiro dentre eles “Politics and the Psyche in Fin de siècle
Vienna: Schnitzler and Hofmmannsthal” mencionam a categoria fin de siècle25. A
abrangência cronológica de cada um dos ensaios é muito variável, alguns vão dos
anos 1860 aos anos 1910. Notadamente, o capítulo 2 trata em detalhe a construção
da Ringerstrasse e sua orientação historicista e depois sua crítica pelos arquitetos
anti-historicistas, Camillo Sitte e Otto Wagner. Assim também no capítulo 6 (“A
transformação dos jardins”) que vai desde os dias posteriores da revolução de 1848
ao fim do século XIX. Outros capítulos cobrem, sobretudo, o pré 1914 (capítulo 8
“Explosões nos jardins: Kokoschka e Schoenberg”). Dois estão fixados na virada

22 Eu prefiro esse catálogo àquele da Biblioteca Nacional Francesa, pois cobre de modo melhor a
produção anglófona e germanófona e sobretudo porque possuiu melhores funcionalidades para
o acesso dos conteúdo dos livros para assim evitar os “rastros falsos” [“faux amis”]
23 Respectivamente Londres, Weidenfeld e Nicholson e Cambridge (Mass) Harvard University
Press 1979; tradução francesa respectivamente: Paris, Seuil, 1983 e Paries, Fayard, 1986.
24 Laureado pelo prêmio Pulitzer, o livro foi traduzido para o espanhol em 1981 (Barcelona), para
o alemão em 1982, para o francês em 1983, para o português (Brasil) em 1988, em italiano
em 1991. Diversos outros trabalhos se vincularam às problemáticas levantadas por Schorske,
em particular o livro de Deborah L. Silverman, Art Nouveau in Fin de Siècle France: Politics,
Psychology, and Style, Berkeley, University of California Press, 1989 (tradução francesa Paris,
Flammarion, 1994).
25 Primeira publicação American Historical Review, vol. 66, juillet 1961, p. 930-946.

2018
262 Christophe Charle

dos anos 1900 (o capítulo 5 sobre Gustav Klimt e a Secessão vienense, o capítulo
4 sobre A interpretação dos sonhos de Freud). A expressão fin de siècle não figura
nem mesmo no índex final e designa menos uma época fechada sobre ela mesma e
mais a tese central do livro: a crise do liberalismo fundado na crença no progresso
e na razão empunhada pelos criadores e intelectuais vienenses em recuo ou por
elitismo em face a um mundo cada vez mais hostil onde nacionalismo, populismo
e antissemitismo marginalizavam a grande burguesia e os artistas e escritores
que a ela estavam ligados. A despeito desses laços entre vanguardas europeias,
o fin de siècle vienense tem origem no que os historiadores da cultura anglófona
chamam modernism e é em realidade bem diferente da origem parisiense que o
batizou, como indica essa passagem comparativa:

Em síntese, os estetas Austríacos não eram nem tão alienados de sua própria
sociedade como seus pares franceses e nem tão engajados nela como seus colegas
ingleses. Faltava a eles o espírito amargo antiburguês dos primeiros e a crença no
esforço humano dos segundos. Nem dégagé e nem engagé, os estetas Austríacos
eram alienados não de sua classe, mas eram alienados com ela de uma sociedade
que derrotou suas expectativas e rejeitou seus valores. (Schorske, 1979, p. 304)

Não é aqui o lugar, apesar de toda admiração que podemos ter por esse livro
pioneiro, de criticar em detalhe a comparação bastante retórica (fundada sobre
uma dupla negação simétrica um pouco bela demais para dar conta de campos
intelectuais tão diferentes e complicados) entre vanguardas ou intelectuais dos
três países citados. A simetria é muito mal balanceada para nos levar a adesão e
tentamos mostrar um pouco mais em detalhe que a alienação invocada aqui da
vanguarda parisiense não impedia de jeito nenhum seu engajamento fora das
trilhas clássicas da política quando do caso Dreyfus, enquanto que o liberalismo
supostamente “natural” dos intelectuais ingleses podia conduzir alguns a arte
pela arte, outros a crítica do liberalismo para abraçar o socialismo (os intelectuais
fabianos), outros ao chauvinismo imperial e racista (Kipling e muitos outros)26. Essa
passagem ilustra sobretudo que a expressão francesa transposta a Viena designa

26 Cf. Charle, Christophe. Naissance des « intellectuels » 1880-1900. Paris: Minuit, 1990. ; Les
Intellectuels en Europe au XIXe siècle, essai d’histoire comparée. Paris: Seuil, 1996. ; Charle,
Christophe. Vincent, Julien; Winter, Jay (eds). Anglo-French Attitudes. Comparisons and Trans-
fers between French and English Intellectuals 18th-20th Centuries,. Manchester: Manchester
University Press, 2007. ; Collini, Stefan. Absent Minds. Intellectuals in Britain. Oxford: Oxford
University Press, 2005.

Plural 25.1
Fin de siècle 263

todo um outro momento social e intelectual ou artístico que o fin de siècle original
francês descreveu anteriormente.
Teríamos mais sucesso, como poderíamos pensar com a obra de Weber, Fin
de siècle France? Nada é menos seguro. Sem dúvida, os dois primeiros capítulos
“Decadência” e “Transgressão” estão bem em conexão com os ares dos tempos fin de
siècle dos estereótipos dos dois últimos decênios do século XIX, mas quase todos
os outros, salvo o capítulo político (“A crise permanente”) ensaiam relativizar o que
somente concernia na realidade a uma pequena fração de franceses. Os capítulo 6
a 11 do livro e a conclusão “Um mundo (um pouco) melhor?” olhavam mais do lado
do quadro de uma belle époque e de um avanço do progresso – o capítulo sobre
a bicicleta e o automóvel (10) ou aquele sobre os esportes e as atividades físicas
(11) – que de uma França do declínio e da depressão. Mesmo nos capítulos mais
centrados sobre o fin de siècle e sua coloração negativa específica, Eugen Weber
não cessa de utilizar exemplos situados fora do período (antes ou depois) e de
relativizar a validade ou pertinência demonstrativa das citações contemporâneas,
de médicos, de escritores ou de variedades para nuançar o pessimismo da época:

O que me impressiona é a decalagem entre o progresso material e a abandono


espiritual que evoca com força nossa própria época. Tantas coisas iam bem,
mesmo na França, ao fim do século XIX, enquanto que se dizia tantas coisas
deixando entender que tudo ia mal. (Weber, 1986, p. 9)

A alusão a “nossa época” é sem dúvida a mais importante e explicativa da


fortuna póstuma do termo depois de cem anos. No momento onde se dissipa a
euforia relativa dos anos 1960-1970 fundados sobre a prosperidade geral e ao
surgimento da sociedade de consumo nos países ocidentais, as múltiplas trans-
formações nos decênios terminais do século XX entram em ressonância com
aquelas do século XIX27. Especialistas das vanguardas literárias e comparatistas,
historiadores da cultura e da arte, ensaístas sobre os ares dos tempos, amadores
de comemorações encontram matéria ampla às suas análises retrospectivas para
reabilitar os anos 1880-1890. A multiplicação de exposições (notadamente Vienne
naissance d’um siècle, L’apocalypse joyeuse no Centre Pompidou em 1986), novos
museus (o museu d’Orsay abre suas portas no mesmo ano), as reedições de obras
de época na coleção fin de siècle na 10/18 dirigida por Hubert Juin a partir de

27 Eu mesmo esbocei essa comparação no epílogo de Paris fin de siècle, Culture et politique, Paris,
Seuil, 1998, p. 275-285.

2018
264 Christophe Charle

1975, a multiplicação de teses sobre autores dos mais marginais (Félix Fénéon28,
Alfred Jarry29, Rachilde30) alargam ao público cultivado essa nostalgia seletiva
que transpõe mesmo fronteiras de países onde a noção jamais entrou em curso
e circulação31.
Um cronônimo erudito novo nasceu que renega em grande parte suas origens,
mas por quanto tempo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bloy, Léon. Propos d’un entrepreneur de démolitions. Paris: Tresse, 1884.
. Le Désespéré. Paris: A Soirat, 1886.
Colin, René-Pierre. Schopenhauer en France: un mythe naturaliste. Lyon: PUL, 1979.
Drumont, Edouard. La Fin d’un monde. Paris: Savine 1889.
L aforest, Jean-Louis Dubut de. Tête à l’envers. Paris: Charpentier, 1882.
. Une Livre de sang. Paris: Dentu 1884.
Montlaur, Eugène de. De l’Italie et de l’Espagne, études historiques et critiques. Paris:
Garnier, 1852.
Mortier, Arnold. Les Soirées parisiennes. Paris: Dentu, 1882.
Nordau, Max. Dégénérescence. reed. Lausanne: L’Age d’homme, 2010.
R ichard, Noël. À l’aube du symbolisme. Paris: Nizet, 1961.
Schorske, Carl Emil. Fin de Siécle Viena. Londres: Weidenfeld e Nicholson e Cambridge
(Mass) Harvard University Press, 1979.
Voguë, Eugène Melchior de. Le roman russe. Paris, Plon, 1886.
Voltaire, “Le siècle de Louis XIV (1751)”, édition René Pomeau, In: OEuvres historiques.
Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2000.
Weber, Eugen. Fin de siècle, la France à la fin du xixe siècle. Paris, Fayard, 1986.

28 Halperin, Joan Ungersma; Fénéon, Félix. Aesthete & Anarchist in Fin de Siècle Paris. New Haven:
Yale University Press, 1986.
29 Bordillon, Henri [org.], Alfred Jarry, Centre culturel international de Cerisy-la-Salle (27 agos-
to-6 setembro 1981). Paris: P. Belfond, 1985.
30 Finn, Michael R.. Hysteria, Hypnotism, the Spirits, and Pornography: Fin-de-Siècle Cultural
Discourses in the Decadent Rachilde. Newark: University of Delaware Press, 2009.
31 Ver a última tentativa de conciliar “história global” e fin de siècle no trabalho coletivo: Salter,
Michael (ed.). Fin de siècle World. Londres: Routledge, 2015.

Plural 25.1
Resenha

A teoria crítica na ordem do dia: Horkheimer hoje

Critical Theory on the agenda: Horkheimer today

Bruna Della Torre de Carvalho Limaa e Eduardo Altheman Camargo Santosb

Horkheimer, Max. Eclipse da Razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora
Unesp, 2015.

ocorre que esse eclipse da razão e esse abatimento da vontade se apossam do


homem como uma doença (Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo, 1866)

Embora seja conhecido como a versão “para americanos” da Dialética do


Esclarecimento – obra mais conhecida de Horkheimer e publicada pela primeira
vez em 1945 em coautoria com Theodor W. Adorno – o Eclipse da Razão saiu
nos EUA em 1947 e teve pouca repercussão entre os estadunidenses. Composto
por uma série de cinco palestras públicas em torno do tema “sociedade e razão”
proferidas por Horkheimer na Universidade de Columbia entre fevereiro e março
de 1944, o livro está sendo relançado no Brasil, com nova tradução, inaugurando
a publicação da série de obras completas do autor pela Editora Unesp.
A fama que o livro carrega teria sido legada pelo próprio Horkheimer, quando
este se referiu ao conjunto das palestras como uma versão popular da Dialética
do Esclarecimento, obra que entrou para história como marco principal da Escola
de Frankfurt, conforme atesta uma carta adereçada a Friedrich Pollock em
novembro de 1943: “Talvez eu prepare a palestra junto com Teddie. Eu pretendo
fazer dela uma versão mais ou menos popular da filosofia do esclarecimento tal
qual ela tomou forma nos capítulos do livro que escrevemos até agora” (Horkheimer
apud Wiggershaus, 1994, p. 345). Ao fim e ao cabo, embora o livro marque um
período de colaboração tão intensa entre Adorno e Horkheimer a tal ponto de
ambos afirmarem não saber mais onde começa a filosofia de um e termina a do
outro, Horkheimer acabou por assinar o livro sozinho, mesmo que ainda tivesse
ressalvas quanto ao conteúdo de suas palestras, quando comparadas ao seu livro
com Adorno ou a outras obras suas.
Segundo o próprio Horkheimer, ainda encontrando dificuldades com a língua
inglesa, ele teria escrito a maioria das palestras nos intervalos semanais entre uma

a Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo.


b Doutorando no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

PLURAL, Revista do Programa de Pós­‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.25.1, 2018, p.265-271
266 Bruna Della Torre de Carvalho Lima e Eduardo Altheman Camargo Santos

palestra e outra, adaptando o conteúdo das mesmas de acordo com as questões


levantadas pelo público presente. As cinco conferências que acabaram por dar
origem ao livro três anos depois foram organizadas de acordo com os seguintes
temas: razão como o conceito teórico básico da civilização ocidental; civilização
como uma tentativa de controlar a natureza humana e extra-humana; a rebelião
da natureza oprimida e suas manifestações filosóficas; a ascensão e declínio do
indivíduo; a atual crise da razão.
Tendo saído de Nova Iorque e se estabelecido na Califórnia, Horkheimer se
viu liberado de suas atribuladas funções administrativas no Instituto de Pesquisas
Sociais e pôde se dedicar a desenvolver, compilar e publicar trabalhos, que, ainda
assim, teriam sido arduamente escritos e revisados, segundo suas cartas escritas
à época. Eclipse da Razão acabou tendo seus capítulos organizados de maneira
sensivelmente distinta das palestras em Nova Iorque, recebendo inclusive novos
títulos: “Meios e fins”; “Panaceias conflitantes”; “A revolta da natureza”; “Ascensão
e declínio do indivíduo”; “Sobre o conceito de filosofia”.
O livro foi um fracasso tanto de crítica (apenas três resenhas foram escritas
sobre o livro na época de seu lançamento, uma claramente favorável, uma inter-
mediária e outra devastadora) quanto de vendas (algo relatado pelo próprio
companheiro de Instituto de Horkheimer, Leo Lowenthal e pelo fato de que, em
1952, era possível comprar o livro nos EUA em uma loja de departamentos – que
em sua propaganda anunciava seu estoque contendo nada menos do que 49 tone-
ladas de livros – pela singela quantia de dois dólares e 75 centavos, em meio a
outros livros na seção de “religião e filosofia”). Na época de sua escrita e preparo,
havia grande expectativa quanto ao livro que finalmente tornaria compreensível
para o mundo anglófono a teoria crítica de Frankfurt (relatos de Lowenthal, que
supervisionou o preparo do manuscrito, mostram que Robert Merton e Paul
Lazarsfeld estariam estudando o livro com grande entusiasmo), mas foi apenas
nos anos de 1960 que, catapultado pelo sucesso da Dialética do Esclarecimento
como sucesso underground, e traduzido para o alemão, o livro recebeu a devida
atenção. Somente em 1967 foi lançada sua versão em língua alemã sob o título
Zur Kritik der instrumentellen Vernunft (“Para a crítica da razão instrumental”).
No Brasil, a obra foi lançada pela primeira vez em 1976 pela editora carioca
“Labor do Brasil” e foi republicada em 2002, na mesma e até agora única tradução
do pernambucano Sebastião Uchoa Leite, pela editora paulista Centauro. A Editora
Unesp inicia por esta o lançamento das obras completas de Horkheimer, em nova
tradução, realizada por Carlos Henrique Pissardo.

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A teoria crítica na ordem do dia: Horkheimer hoje 267

Eclipse da razão está fazendo 70 anos, mas continua extremamente atual


em seu projeto de investigação do conceito de racionalidade subjacente à cultura
industrial contemporânea. A obra procura compreender a constituição, bem
como os caminhos da razão até o momento crítico de sua manifestação como
irracionalidade racionalizada no nazismo, em que as mais elevadas tecnologias
foram utilizadas para “otimizar” – para usar uma expressão da última hora – o
extermínio nos campos de concentração e na guerra. No tempo presente, no qual
assistimos passivos à guerra “impessoal” executada por drones e promovida pela
conjunção de Estados imperialistas e corporações armamentistas, a pergunta
pelas razões da razão permanece dolorosamente viva. Crítico do capitalismo, no
entanto, Horkheimer não se detém na análise do Terceiro Reich e procura compre-
ender como o fascismo pode ser considerado um filho legítimo do liberalismo e,
nesse sentido, a crítica se estende ao pragmatismo e ao darwinismo presente na
sociedade e na filosofia americana do período.
Um dos motes do livro, desenvolvido de modo mais acurado no capítulo final,
“Sobre o conceito de filosofia”, consiste em perscrutar a consciência do papel que
a filosofia pode assumir numa sociedade que considera inútil tudo aquilo que
não dá resultados práticos imediatos e que expulsou a utopia de seu horizonte de
expectativas. Para isso, Horkheimer precisou mostrar como, na nossa sociedade,
a filosofia foi substituída pela ciência e, por causa disso, a ideia de verdade, preo-
cupação primeira do pensamento filosófico, foi completamente abandonada. A
renúncia de perguntas filosóficas clássicas, como “o que é o bom, o belo e o justo?”,
levou a um relativismo conformista que trouxe tanto para a filosofia, quanto para
a ciência, a seguinte consequência: se eu não posso determinar como a vida deve
ser vivida, o único critério de medida passa a ser a realidade existente. A má
consciência da frase de Hegel de que todo o real seria racional, reaparece sob a
forma do conhecimento na sociedade contemporânea, isto é, o que existe, já está
justificado. O que não existe não pode mais ser inventado, só lhe resta conformar-
-se ao que está posto.
Não é fortuito que o engenheiro é apontado por Horkheimer como símbolo
de nossa época; para ele, o entendimento das coisas nunca é um objetivo em si
mesmo, mas está sempre ligado ao ajuste das mesmas a um esquema qualquer,
mesmo que esse esquema nada tenha a ver com a estrutura interna das coisas que
visa organizar, sejam elas objetos inanimados ou pessoas. É indiferente para esse
tipo de pensamento se transportamos pessoas ou mercadorias num determinado
trem, desde que isso seja feito de maneira eficiente e rápida, quer seu destino seja
Auschwitz ou um hipermercado qualquer.

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268 Bruna Della Torre de Carvalho Lima e Eduardo Altheman Camargo Santos

Essa razão instrumentalizada, em que os meios tomam o lugar dos fins, é


justamente o que está na mira da crítica de Horkheimer. Numa era em que a razão
parece um conceito autoexplicativo e muitas vezes parece sinônimo de “ser uma
pessoa razoável” ou “estar certo”, o autor defende a necessidade de investigar a
natureza e os usos da razão desde seu nascimento. No primeiro capítulo do livro,
intitulado “Meios e fins”, o conceito de razão é apresentado sob uma dupla consti-
tuição objetiva e subjetiva. A ideia exposta nele é a de que a razão objetiva, que viria
de Sócrates, Platão até o a filosofia idealista alemã, estaria sofrendo um processo
de formalização que a estaria transformando no que Horkheimer nomeia razão
subjetiva, encarnada no pragmatismo e no positivismo, dos quais ele se ocupa
mais detidamente no segundo capítulo a respeito das “Panaceias conflitantes”.
A razão objetiva é a razão par excellence, que visa explicar e determinar a
realidade em todas as suas esferas. Esta razão tem um conteúdo concreto e pode ser
o fundamento de princípios como justiça, igualdade e democracia que, por sua vez,
estão na origem da constituição política. Ou seja, a razão objetiva é composta de
valores que justificam a si mesmos, que são fins em si, é aquela que existe para além
dos sujeitos. O processo de reificação da razão foi, para Horkheimer, um processo
de renúncia a esta razão objetiva, aos fins justificados por si mesmos e ao conceito
de verdade. A razão subjetiva não foi, segundo Horkheimer, historicamente oposta
à razão objetiva, na verdade, elas teriam surgido conjuntamente até que a segunda
se sobrepôs a primeira como tendência. A segunda concepção é a de que a razão é
uma faculdade subjetiva da mente humana, de modo que só os homens poderiam
ter razão e esta não poderia existir como algo universal, que supera o individual.
Não é difícil perceber como essa segunda tendência aproxima-se do relativismo.
A predominância da razão subjetiva acabou por negar a objetividade da razão,
alegando que nada pode ser em si racional. Este processo é de certa forma uma
abstração da razão de seus conteúdos concretos, que tem como consequência a
criação de uma razão que é autonomizada. Num mundo onde esta razão é predo-
minante, nem um fim é justificável por si mesmo, e ao mesmo tempo, nem um fim
é injustificável por si mesmo. Em termos weberianos, há uma perda de um quadro
referencial que forneceria aos indivíduos valores que poderiam guiar suas ações.
Nesse cenário, resta à filosofia apenas a reflexão sobre a metodologia científica e
não mais sobre a verdade.
Não é por outro motivo que a razão subjetiva pode ser associada à busca por
meios para atingir um fim, e por isso se assemelha bastante ao que Horkheimer
e Adorno chamaram de razão instrumental em sua obra conjunta. Nesse quadro,
noções como felicidade e justiça perdem sua raiz intelectual:

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A teoria crítica na ordem do dia: Horkheimer hoje 269

De acordo com essas teorias o pensamento serve a qualquer esforço particular,


bom ou mal. Ele é uma ferramenta de todas as ações da sociedade, mas não deve
tentar estabelecer padrões para a vida social e individual, que, supõe-se, são
estabelecidos por outras forças. Tanto na discussão leiga quanto na científica,
a razão passou a ser encarada como uma faculdade intelectual de coordenação,
cuja eficiência pode ser aumentada pelo uso metódico e pela remoção de quais-
quer fatores não intelectuais, tais como as emoções conscientes ou inconscientes.
(Horkheimer, 2015, p. 17)

Essa identificação entre razão e dominação, decorrente desse expurgo das


emoções, encontra sua confirmação na psicanálise freudiana, uma influência
fundamental não só deste livro, mas de grande parte da obra de Horkheimer.
A constituição da civilização, conforme mostrou Freud, envolve a repressão de
tudo aquilo que ameace sua existência e o mesmo vale para o “ego” – ou, numa
tradução mais adequada, o “eu”. Em “A Revolta da natureza”, terceiro capítulo do
livro, Horkheimer expõe o argumento de que, para constituírem-se, a civilização e
o indivíduo erigiram como valor último a própria sobrevivência, a autoconservação.
Para se ater a esse princípio, foi preciso dominar a natureza externa, manejar o
fogo, utilizar-se da natureza como alimento e abrigo. Mas a natureza estende-se ao
indivíduo e este, como a civilização, dominou a natureza dentro de si, seus impulsos
primários e o predomínio da lógica do prazer, para se autoconservar. Assim, de
modo dialético, razão e dominação identificaram-se; quanto mais se reconhece a
racionalidade, mais cresce nas pessoas de maneira consciente ou inconsciente o
ressentimento contra a civilização e seu agente dentro do indivíduo, o eu.
A personalidade forma-se, nessa chave, a partir de uma estrutura dual: de
um lado os valores como igualdade, justiça e etc., que sobrevivem de resquícios
da razão objetiva e são ensinados aos jovens, principalmente pela figura do pai;
de outro o princípio de realidade que funciona através da mecânica da sobrevi-
vência e autopreservação, e que é opressor. O indivíduo enxerga uma identidade
entre razão, eu, dominação e natureza. A crise da razão que já foi descrita pode
expressar, também, a crise do indivíduo, porque outrora a razão era entendida
como instrumento do eu. Contudo, a razão se tornou enrijecida e irracional. A
noção de “eu” passa a ser marcada pelo sacrifício voluntário em nome da segurança
e da manutenção material e espiritual da própria existência, ou seja, em nome
da autoconservação, aniquila-se aquilo que poderia de fato vir a ser o individual.
Consonante com a míngua da filosofia, o entendimento dos processos de aniqui-
lamento do indivíduo que um dia ensaiou resistir à conformação é outro ponto

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270 Bruna Della Torre de Carvalho Lima e Eduardo Altheman Camargo Santos

fundamental do livro. Em “Ascensão e Declínio do indivíduo”, quarto capítulo da


obra, Horkheimer discute a formação individual desde o período clássico, passando
pelo liberalismo do século XIX, até a sua derrocada no capitalismo monopolista. Se
um dia o indivíduo foi agente da razão e esta dependeu dele para ser realizada, agora
a razão instrumentalizada, essa máquina que teve seu funcionamento autonomizado,
ejetou o seu próprio piloto. O fim da espontaneidade, tão caro à teoria socialista e,
poderíamos dizer sobre hoje, aos movimentos sociais, é uma das decorrências catas-
tróficas desse declínio. Não há lugar para aquilo que é individual ou particular numa
sociedade altamente administrada. O fim da concorrência liberal realiza o germe
autoritário da sociedade capitalista e, nesse quesito, o diagnóstico de Horkheimer
parece escrito sob medida para a era neoliberal:

Hoje, os indivíduos ou grupos inteiros podem ainda ser arruinados por forças
econômicas cegas; mas estas são representadas por elites mais bem organizadas
e poderosas. Embora as inter-relações entre esses grupos dominantes estejam
sujeitas a vicissitudes, eles se entendem bem em vários aspectos. Quando a con-
centração e a centralização de forças industriais [hoje diríamos, financeiras ou
coorporativas] extinguem, por sua vez, o liberalismo político, as vítimas são
condenadas em sua totalidade. (Horkheimer, 2015, p. 172)

O capitalismo, como demonstra Horkheimer, produz coletivização sem


produzir igualdade, aniquila a individualidade ao invés de realizá-la, coloca à
disposição das pessoas escolhas que parecem múltiplas e virtualmente – espe-
cialmente na era da explosão dos gadgets e das redes sociais – infinitas, mas que
não se transformam em liberdade. A individualidade burguesa que surgiu no
final do século XVIII e XIX e que era fruto do liberalismo envolvia, sobretudo um
indivíduo que fosse ativo no mercado concorrencial, mas teve sua base econômica
solapada pelas exigências de um capitalismo que abriu mão de seus valores liberais
em nome de maiores taxas de lucro.
Uma leitura precipitada de Horkheimer, assim como de outros autores da teoria
crítica, pode levar à conclusão de que se trata se uma análise saudosista ou catas-
trofista e extremamente pessimista da realidade contemporânea, mas um exame
mais detido comprova exatamente o contrário, isto é, o objetivo é compreender o
que ainda é possível ao pensamento crítico nesse contexto de tamanha barbárie.
Nem Horkheimer, nem nenhum outro autor da teoria crítica considerava a filosofia
como uma fórmula ou ainda um meio de fornecer respostas práticas imediatas
para os problemas do presente. Ao contrário, a “negação” ocupa um lugar central

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em suas análises; é com essa atitude perante tanto à ideologia dominante quanto
à realidade imperiosa que a filosofia pode ser de alguma serventia nos tempos
atuais. Conforme Horkheimer,

Se quisermos falar de uma doença afetando a razão, essa doença deveria ser
entendida não como algo que assolou a razão em algum momento histórico espe-
cífico, mas como inseparável da natureza da razão na civilização como até agora
a conhecemos. A doença da razão é que a razão nasceu da ânsia do homem para
dominar a natureza, e sua “recuperação” depende da compreensão da natureza
da doença original, não de uma cura dos seus sintomas tardios. (Horkheimer,
2015, p. 193)

Mas, ao contrário do que poderia parecer e na contramão da aposta feita por


muitos à esquerda, Horkheimer não cai em um elogio romântico da desrazão. Pois,
teoriza ele, o único caminho para corrigir os descalabros da razão é a própria razão,
desvinculada de sua necessidade de dominação irracional da natureza e do indi-
víduo, da exploração dos seres humanos sobre si mesmos, da hipóstase da razão
instrumental. Eis porque o título, que alude, transformado na última contribuição
de Horkheimer para a revista Studies in Philosophy and Social Science intitulada
“The end of reason”, assim como a sua coleção de aforismos Dämmerung do início
dos anos de 1930, fala em um eclipse da razão, sem postular seu fim ou crepúsculo.
Embora os títulos “A agonia da razão”, “Razão objetiva e subjetiva” e “Crepúsculo
da Razão” tenham sido aventados por Horkheimer, o autor os considerava, espe-
cialmente o último, demasiadamente pessimistas, e, por sugestão de Philip Vaudrin
(um dos editores da Editora Oxford), acabou por optar pelo eclipse da razão. A
aposta na razão como aquela capaz ainda de negatividade e capacidade de crítica
move o livro, e justifica inclusive sua própria escrita.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Horkheimer, Max. Eclipse da Razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora
Unesp, 2015.
Jay, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de
Pesquisas Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
Schmidt, James. The Eclipse of Reason and the End of the Frankfurt School in America.
New German Critique, nº. 100, Winter 2007, pp. 47-76.
Wiggershaus, Rolf. The Frankfurt School: Its History, Theories and Political Significance.
Trans. Michael Robertson. Cambridge: Mit Press, 1994.

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