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revista

movimento
crítica, teoria e ação
ano 7. nº29-30. ago./set. 2022.
revista
movimento
crítica, teoria e ação
ano 7. n.29-30. ago./set. 2022.

Editora
Movimento
Editores Etevaldo Teixeira
Roberto Robaina

Responsável Movimento Esquerda Socialista

Equipe editorial Bruno Magalhães, Israel Dutra, Pedro


Micussi e Thiago Aguiar

Projeto gráfico Adria Meira


Diagramação Vittorio Audi Poletto
Arte de Capa Thiago Boecan

Periodicidade Mensal | 29ª e 30ª edições. Ano 2022.

Autores que contribuem nesta edição: Bruno Magalhães, Israel Dutra,


Jeremy Gong, John Barzman, Mariana Conti, Nick French, Peter Lucas,
Pierre Rousset, Rohini Hensman, Sean Estelle, Taras Bilous e Thiago Aguiar.

Movimento : crítica, teoria e ação / Movimento Esquerda


Socialista. ano 7, v.1, n.29-30 (ago.2022 - set.2022).
Porto Alegre : Movimento, 2021.

Trimestral.

ISSN 2448-1491

1. Marxismo Brasil. 2. Marxismo Mundo.


3. Socialismo. 4. Política Brasil. 5. Política
Internacional.

CDD 335.4

Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Melchionna e Silva


CRB10/1813

Editora Movimento
Rua Bananal, 1679, Bairro Arquipélago
90090-010 - Porto Alegre-Rio Grande do Sul - Brasil

Impresso no Brasil
2022
Índice

Apresentação

Uma edição em meio ao calor das eleições brasileiras 6


Bruno Magalhães

Homenagem

Alain Krivine (1941-2022): mais de 60 anos de ativismo 9


pelo socialismo
John Barzman

Internacional

A tragédia da Europa Oriental: como as esferas da política 19


de influência amplificam a reação
Taras Bilous

Os Estados Unidos e a Eurásia: algumas reflexões 29


geopolíticas em um momento de crise global
Pierre Rousset

Para vencer uma revolução política, precisamos de uma 41


nova organização de massa
Jeremy Gong e Nick French

Uma organização socialista de massas para se encontrar 51


com o momento
Peter Lucas e Sean Estelle

“Nosso objetivo principal é colocar de novo a Guiana 59


Francesa na lista dos países a serem descolonizados” –
Entrevista com Fabien Canavy
Revista Movimento

A revolução democrática do Sri Lanka: os últimos 67


episódios em um drama de décadas
Rohini Hensman
Violência

Por uma ofensiva antifascista nas ruas e nos parlamentos 79


Mariana Conti

“A derrubada eleitoral do Bolsonaro não significa um cenário 83


tranquilo para a Amazônia” – Entrevista com Gilberto Marques
Revista Movimento

Brasil

O comício reacionário de Bolsonaro em 7 de setembro 92


Israel Dutra e Thiago Aguiar
Apresentação 6

Uma edição em meio ao calor das eleições


brasileiras
Bruno Magalhães1

Apresentamos esta nova edição da Revista Movimento em


meio ao processo que pode significar a derrota eleitoral da ex-
trema direita na presidência do país. Em meio a este grande mo-
vimento democrático e à disputa acirrada nas ruas pelo voto po-
pular, reunimos aqui novamente reflexões nacionais que buscam
contruir dialogar com este momento, assim como artigos relacio-
nados aos importantes temas dos últimos meses.
Começamos esta edição com uma homenagem ao revolu-
cionário francês Alain Krivine, falecido recentemente, escrita
por John Barzman. Sobre a atualidade da pauta internacional,
trazemos o companheiro Taras Bilous – editor da Revista Com-
mons e militante da organização ucraniana Movimento Social
– com seu mais recente artigo “A Tragédia da Europa Oriental.
Como as Esferas da Política de Influência Amplificam a Reação”
sobre a política de esferas de influência na região ao longo do
século XX. Em seguida, o histórico militante trotskista Pierre
Rousset analisa as novas dinâmicas geopolíticas no artigo “Os
Estados Unidos e a Eurásia: algumas reflexões geopolíticas em
um momento de crise global”.
Dos Estado Unidos, trazemos uma polêmica expressa em dois
textos escritos por camaradas do caucus Bread & Roses, tendên-
cia interna do DSA (Democratic Socialists of America, a maior
organização socialista do país). Jeremy Gong e Nick French es-
crevem “Para vencer uma revolução política, precisamos de uma
nova organização de massa”, sendo respondidos por Peter Lucas
e Sean Estelle com o texto “Uma organização socialista de mas-
sas para se encontrar com o momento”, sendo respondidos, em

1 Historiador, dirigente do MES/PSOL e editor da Revista Movimento.


Apresentação 7

um debate que ainda se encontra aberto.


Por fim, entrevistamos o dirigente de esquerda da Guiana
Francesa Fabien Canavy em “Nosso objetivo principal é colocar
de novo a Guiana Francesa na lista dos países a serem descolo-
nizados” e finalizamos esta seção com o artigo de Rohini Hens-
man “A revolução democrática do Sri Lanka: os últimos episódi-
os em um drama de décadas”, sobre a recente revolta popular
cingalesa.
Sobre a violência no cenário político brasileiro, recebemos a
contribuição da vereadora do PSOL de Campinas Mariana Conti
em “Por uma ofensiva antifascista nas ruas e nos parlamentos”
e a entrevista “A derrubada eleitoral do Bolsonaro não signifi-
ca um cenário tranquilo para a Amazônia”, com o professor da
Universidade Federal do Pará (UFPA) Gilberto Marques. Ao fim,
republicamos o editorial desta Revista “O comício reacionário de
Bolsonaro em 7 de setembro”, escrito por Israel Dutra e Thiago
Aguiar acerca das movimentações bolsonaristas no Dia da Inde-
pendência brasileira.
Homenagem
Homenagem 9

Alain Krivine (1941-2022): mais de 60


anos de ativismo pelo socialismo1
John Barzman2

Eu estava entre as 2 mil pessoas que marcharam em 21 de


março, da Place de la Nation para seu funeral no cemitério de
Père Lachaise em Paris, atrás de uma bandeira “Merci Alain”.
Homenagens de uma grande variedade de figuras, muitas das
quais haviam se separado dele mas queriam saudar sua memó-
ria, foram recolhidas em uma reunião memorial organizada pelo
Novo Partido Anticapitalista (NPA) em 30 de abril.
Entre eles, o socialista britânico Tariq Ali explicou como ele
identificou Krivine e a “Ligue”: “Era para nós, aqueles de nós em
organizações menores da Quarta Internacional, a melhor orga-
nização da Quarta Internacional”. A Tendência Socialista Inter-
nacional (IST) escreveu: “acima de tudo estamos em dívida com
Alain e seus camaradas da JCR - o ponto de partida da LCR e
agora da NPA - por liderar o caminho para reavivar o socialis-
mo revolucionário como uma força viva na Europa. Eles abriram
uma trilha que devemos continuar a seguir”.
Alex Calinicos (SWP britânico) declarou: “Para mim, ele
sempre representou o espírito indomável da grande revolta dos
trabalhadores e estudantes franceses em maio de 1968”.

Os primeiros anos
Krivine e seu irmão gêmeo Hubert nasceram em Paris, em 10
de julho de 1941. Três de seus quatro avós haviam imigrado da
Ucrânia e da Romênia para escapar de pogroms antissemitas no
final do século XIX. Os gêmeos tinham três irmãos mais velhos
e uma irmã.

1 Publicado originalmente em https://internationalviewpoint.org/spip.php?article7803.


2 Professor emérito na Universidade de Le Havre, na Normandia, onde ele ensina História
Contemporânea e Civilização Americana. É membro de Ensemble! e da IV Internacional.
Homenagem 10

No final do ano, seu pai, um dentista, conseguiu que sua es-


posa e seus filhos mais novos se mudassem para uma pequena
cidade no norte da França; com a libertação de Paris, a família
se reunia.
Interessado em política desde a infância - e crescendo em
uma casa que valorizava a educação - ele, em 1960, foi matri-
culado na Universidade de Sorbonne, estudando história. Dois
anos depois ele se casou com sua esposa Michèle, que se tor-
nou professora de história, geografia e ciências sociais. Eles
tiveram duas filhas, Nathalie (nascida em 1968) e Florence
(nascida em 1974).
Alain Krivine juntou-se à Juventude Comunista da França em
1957. Sua atividade em apoio à independência da Argélia o levou
a se opor à linha do Partido Comunista Francês (PCF), então a
força dominante na esquerda francesa e no movimento operário
(cerca do dobro do tamanho e da influência do Partido Socialis-
ta). Isto o colocou em contato com membros da seção francesa
da Quarta Internacional, o PCI (Parti Communiste Internationa-
liste), ao qual ele aderiu, mas sem anunciá-lo publicamente para
evitar a expulsão.
Ele se tornou um líder da União dos Estudantes Comunis-
tas, sua corrente conhecida como “Guevarista” por sua solida-
riedade com a revolução cubana. Finalmente, em 1965, grupos
locais inteiros da União foram expulsos por atacado, incluindo
Krivine. Ele então recorreu à solidariedade com o Vietnã contra
a agressão imperialista americana, ajudando a fundar o Comitê
Nacional do Vietnã.

Maio de 1968 e mais além


A celebridade de Krivine vem principalmente de seu papel
nos eventos de maio de 68. Uma maré crescente, mas relativa-
mente contida de lutas dos trabalhadores, vinha se desenvolven-
do desde 1963. Em 1968 um protesto estudantil maciço contra
Homenagem 11

a repressão policial forçou os sindicatos e partidos de esquerda a


convocarem uma manifestação nacional e uma greve geral de um
dia. Mas em uma fábrica após a outra, os trabalhadores votaram
para continuar a greve indefinidamente, levando à greve traba-
lhista mais maciça da história francesa.
Devido a seu peso no desencadeamento do evento, o movi-
mento estudantil desempenhou um papel muito maior do que
seu tamanho sugeriria (300 mil em comparação com 10 milhões
de trabalhadores em greve). E, dentro deste movimento estudan-
til, o JCR (Jeunesse Communiste Révolutionnaire) da Krivine
desempenhou um papel fundamental devido a seu trabalho an-
terior no Vietnã e suas tentativas de criar uma aliança trabalha-
dores-estudantes, apesar das tentativas do PCF de separar os
dois movimentos.
A sociedade francesa e o governo conservador de De Gaulle
foram abalados. Por cerca de 15 anos depois, as greves se multi-
plicaram, a filiação a sindicatos e partidos de esquerda cresceu,
os cidadãos votaram cada vez mais à esquerda, e novos movi-
mentos sociais surgiram.
A JCR tornou-se a LC (Ligue Communiste), renomeada LCR
(Ligue Communiste Révolutionnaire) após ter sido banida: Cres-
ceu de 300 para mais de 3000, adquirindo influência nos sindi-
catos (CGT, CFDT, FEN) e em novos movimentos sociais, bem
como no debate público onde foi vista como a alternativa à social-
-democracia e ao estalinismo.
Depois que François Mitterand, um social-democrata, tor-
nou-se presidente da França em 1981, a Ligue cresceu mais len-
tamente, enquanto aprofundava suas raízes no movimento dos
trabalhadores. Krivine permaneceu entre seus líderes, atento a
qualquer abertura que pudesse anunciar um novo impulso revo-
lucionário, ou um possível reagrupamento de forças revolucioná-
rias, anticapitalistas ou simplesmente classistas ou neo-keyne-
sianas.
Homenagem 12

Mas uma contraofensiva capitalista havia começado sob o


disfarce do neoliberalismo. Retrospectivamente, sabemos que
nenhuma revolução social foi bem sucedida mesmo temporaria-
mente após a Nicarágua (1979). Nestes tempos mais difíceis para
os revolucionários, Krivine tornou-se amplamente conhecido por
permanecer fiel aos ideais de sua juventude.
É claro que muitos de sua geração fizeram o mesmo e dis-
cretamente geraram os novos movimentos sociais dos anos 90 e
mais além, mas ele estava no centro das atenções e foi contrapos-
to pela mídia a vira-casacas óbvias como Daniel Cohn Bendit e
Bernard-Henri Lévy. Ele se descreveu como um popularizador e
não como um teórico (“je suis un vulgarisateur”).
Nas homenagens, muitos o descrevem também como um
construtor de partidos, atento aos detalhes organizacionais, pró-
ximo à fileira, presente em manifestações, eventos no portão da
fábrica, pequenas reuniões locais e recebendo visitantes na sede
nacional em Montreuil.

Novas lutas
A onda de greve de 1995, a emergência do movimento de jus-
tiça social global (“altermondialisme”) e o “não” ao referendo
de 2005 que emenda a constituição da União Europeia, pare-
cia anunciar um novo ciclo de lutas crescentes. O candidato pre-
sidencial da LCR Olivier Besancenot recebeu 4% dos votos em
2007, derrotando os candidatos do PCF e Lutte Ouvriere (outro
grupo trotskista - ed.).
Krivine então apoiou o lançamento de um amplo NPA (Nou-
veau Parti Anticapitalista) em vez de buscar a unidade com a
esquerda antineoliberal (Collectifs unitaires anti-libéraux). Esta
última foi posteriormente aumentada por divisões de esquerda
do PS, tornou-se a Frente de Gauche (PCF/far esquerda/Parti de
Gauche) e ressurgiu hoje como a Nouvelle Union Populaire Eco-
logiste et Sociale (NUPES).
Homenagem 13

Por um tempo, o NPA foi mais amplo que a LCR, incorporan-


do coletivos anarquistas e de justiça social. Mas estas correntes
logo foram atraídas pela ampla Frente de Esquerda e seus suces-
sores, ou deixaram o NPA por outras razões. Krivine seguiu a
política até o final, mas não viveu para ver a fundação do NU-
PES, em abril de 2022.

Construtor e organizador
Estas são as linhas gerais do papel de Krivine na esquerda
francesa. Mas seu papel na cena mundial, como propagador de
ideias socialistas, organizador de redes de solidariedade e cons-
trutor de grupos revolucionários em muitos países além da Fran-
ça, também deve ser abordado.
A trajetória de Krivine está profundamente enraizada nos
eventos internacionais. Sua primeira atividade militante, aos 16
anos, foi como delegado da Juventude Comunista Francesa no
Festival Mundial da Juventude Democrática, realizado em Mos-
cou em 1957, para promover a Paz e a Amizade.
Foi aqui que ele encontrou delegados argelinos que o con-
venceram de que o PCF francês não estava fazendo tanto quanto
deveria para apoiar sua luta pela independência. O encontro foi
fundamental: Krivine se via como parte do movimento histórico
comunista, articulando os interesses do proletariado mundial, e
se comprometia a agir contra sua própria pátria imperialista, a
França3.
Sua recusa em ver a França, apesar de sua dissidência gaullis-
ta do imperialismo ocidental liderado pelos EUA, como não-ali-
nhada ou apegada aos valores republicanos universais da Revo-
lução Francesa na cena mundial, permaneceu com ele durante
toda sua vida.
Esta foi obviamente a base de seu apoio à autodeterminação
argelina em geral, sua solidariedade específica com o movimento
3 O testemunho de Krivine, traduzido de Les Porteurs d’Espoir de Jacques Charby (La Découverte,
Paris, 2004) explica este momento.
Homenagem 14

que realmente conduziam a luta, a FLN (Front de Libération Na-


tionale), quaisquer que sejam as diferenças que ele possa ter com
sua liderança, e sua criação da Frente Universitária Antifascista
para combater as forças de extrema direita que defendiam o im-
pério colonial francês (a OEA, Organisation de l’Armée Secrète).
A solidariedade com Cuba e Vietnã nas décadas de 1960 e
1970 também poderia ser vista como apoio à autodeterminação
das nações que lutam para se libertar do domínio de um mestre
imperialista, embora nestes casos seu inimigo não fosse o impe-
rialismo francês, mas o imperialismo americano.
Ao contrário da Argélia, os movimentos que realmente lide-
ravam estas lutas pareciam prometer medidas claramente anti-
capitalistas, desafiando o desejo de Moscou de preservar o status
quo e evitar desafios descontrolados ao capitalismo. A reputação
do movimento francês de Krivine como “Guevarista” foi baseada
nesta percepção do Vietnã e de Cuba como relativamente inde-
pendentes da linha de coexistência pacífica soviética.
O ativismo de Krivine sobre o Vietnã o levou a manifestações
de rua em Berlim, Bruxelas e Londres e encorajou contatos nos
Estados Unidos e em muitos outros países.
Nos Estados Unidos, o Partido Socialista dos Trabalhadores
e a Aliança Jovem Socialista estavam desempenhando um pa-
pel importante na organização do movimento antiguerra. Isto
foi registrado junto aos EUA (SWP) e organizações francesas da
Quarta Internacional, que viram a possibilidade de escalar as re-
lações fraternas formais estabelecidas pela reunificação da IV de
1963 para uma colaboração mais ativa em iniciativas comuns em
torno do Vietnã e do trabalho estudantil e juvenil.

Recordações pessoais
Naquela época, por acaso eu me juntei à JCR na França e me
preparava para ir para a faculdade nos Estados Unidos no outono
de 1965. Krivine e outros rapidamente me disseram que eu não
Homenagem 15

era simplesmente um marxista revolucionário e um comunista


crítico, mas um trotskista (uma descoberta contada por outros),
e me enviaram para ver Pierre Frank, o líder do PCI na época,
que me deu uma carta para levar para Nova York e me apresentar
a Mary-Alice Waters e Jack Barnes da YSA e do SWP.
Maio de 68 teve um grande impacto no movimento antiguer-
ra e estudantil dos Estados Unidos. Os eventos demonstraram
o potencial da classe trabalhadora dos países capitalistas avan-
çados para despertar e se mobilizar. Mary Alice Waters e Joseph
Hansen, uma antiga líder do SWP, estiveram em Paris, encon-
trando-se ocasionalmente com Krivine e cobrindo eventos.
Desses encontros, surgiu a Revolta amplamente difundida na
França de maio a junho de 1968. A YSA criou um distintivo de
solidariedade com a JCR e, um de seus líderes, Peter Camejo, se
engajou na “batalha da Avenida Telegraph” em Berkeley (junho-
-julho de 1968).
Como a homenagem de Tariq Ali acima enfatizou, a Ligue de
Krivine tornou-se o modelo para grupos e indivíduos em todo o
mundo atraídos pelo socialismo revolucionário. Krivine e outros
líderes da seção francesa passaram tempo em outros países para
desenvolver laços mais estreitos (Bélgica, Espanha, Portugal, Itá-
lia, Grã-Bretanha, Suécia, Canadá, Suíça, Alemanha, Holanda).
Em alguns países com uma tradição trotskista fraca, pura-
mente intelectual ou inexistente, a imitação ou adaptação do mo-
delo da Ligue tornou-se a norma. Em países como os Estados
Unidos, com uma tradição trotskista mais forte, as lições da ex-
periência francesa suscitaram discussões.
Alain Krivine, então usando o pseudônimo de Delfin, estava
intrincadamente envolvido nesses debates em torno de questões
políticas como a natureza da nova radicalização da juventude,
o papel das universidades nos surtos revolucionários, a neces-
sidade de uma volta gradual das organizações baseadas nos es-
tudantes para o movimento trabalhista e a classe trabalhadora.
Homenagem 16

Mas eles também envolveram diferenças organizacionais sobre


democracia partidária e representação de tendências.
Aqui meu caminho novamente cruzou o de Alain Krivine.
Estive envolvido em dois debates no SWP dos EUA, o primeiro
em 1971 em torno de um documento chamado “Por uma Orien-
tação Proletária”, o segundo em 1973 em torno do apoio crítico
a uma resolução sobre Perspectivas Europeias que incluía uma
volta à classe trabalhadora.
Na minha opinião, o debate de 1973 sobre a estratégia de
guerrilha, supostamente adotada pela IV em 1969, foi um des-
vio das principais questões e opções práticas que se centravam
nos países capitalistas avançados. Em ambos os casos, o ponto
de vista da minoria não estava representado como tal no Comitê
Nacional do SWP.
Em 1974, os apoiadores da minoria (Tendência Internacio-
nalista) foram expulsos sem julgamento. Krivine, como líder da
maior organização da IV, que se orgulhava de seu regime demo-
crático interno e do respeito aos direitos das minorias, apoiou a
desaprovação oficial da IV sobre a expulsão. Eu fui eleito para o
Comitê Executivo Internacional da IV e vi Krivine regularmente
em reuniões.
De 1981 a 1989, trabalhei em tempo parcial no centro inter-
nacional da IV como tradutor e editor, e continuei a testemunhar
o envolvimento de Krivine nas tentativas de construir a IV. Hou-
ve visitas ou intercâmbios com o Brasil e o México, dois países
onde a IV tinha grandes seções.
Ele foi um observador internacional das eleições de 1984 e
1990 na Nicarágua. Em 1999, Krivine foi eleito para o Parlamen-
to Europeu, o que lhe permitiu desempenhar um papel interna-
cional com mais autoridade, como durante sua viagem a Caracas,
Venezuela, em 2003, para celebrar a derrota da tentativa de golpe
contra Hugo Chávez. E quando os Estados Unidos levantaram
sua recusa de longa data de entregar um visto em março de 2003,
Homenagem 17

para uma visita a Kofi Annan, da ONU, juntamente com uma de-
legação do Parlamento Europeu protestando contra a ocupação
dos EUA no Iraque.
Ele continuou a ajudar a IV construir organizações revolucio-
nárias até o fim: em Moscou em 2006, para discutir com ativis-
tas do novo grupo socialista Vperiod; em Madri em 2010 para
homenagear Daniel Bensaid, em Atenas para ajudar a organizar
a resistência aos diktats da Tróika (instituições europeias que im-
puseram uma austeridade paralisante à Grécia - ed.), e em Kiev
em 2015 a convite do movimento Sotsyalni Rukh.
O legado de Alain Krivine: mais de 60 anos de ativismo pelo
socialismo em escala global.
Internacional
Internacional 19

A tragédia da Europa Oriental: como


as esferas da política de influência
amplificam a reação1
Taras Bilous2

A esquerda deve apoiar a divisão do mundo em esferas de influência


imperialista? Há um ano, a própria postura de tal pergunta teria me
surpreendido, pois a resposta parece óbvia: claro que não. Infelizmente,
a aparente simpatia com a agressão russa contra a Ucrânia por parte de
muitos da esquerda ocidental mostrou que isso não é tão óbvio.
Depois que a invasão russa da Ucrânia começou, Susan Watkins
realmente endossou o desejo de Putin de dividir a Europa em esferas
de influência entre a Rússia e os Estados Unidos em um editorial da
New Left Review3. Logo após minha resposta a Watkins, a política das
esferas de influência foi apoiada por Branko Marcetic em um artigo
para Current Affairs4. Nele, ele comparou a resposta americana à
invasão russa da Ucrânia com a cautela da administração Eisenhower
em responder à repressão da União Soviética à revolução de 1956
na Hungria. Marcetic reclamou: “Washington e os aliados, durante
o conflito, se mostraram sensíveis ao delicado equilíbrio de poder
europeu, e sua preocupação com a ótica de parecerem se intrometer
abertamente na esfera de influência de um adversário, é hoje lançada
como reacionária”.
Talvez vivendo em estados imperialistas ricos, não é fácil entender
por que a divisão em esferas de influência é uma coisa ruim. No
entanto, mesmo que ele mesmo não tenha percebido, Marcetic levantou
uma questão importante: a conexão entre a política soviética de esferas
de influência na Europa e a direita nas sociedades pós-socialistas,
culminando com a agressão russa contra a Ucrânia.

1 Publicado originalmente em https://commons.com.ua/en/tragediya-shidnoyi-yevropi-i-sfery-vplyvu/.


2 Historiador, editor da publicação Commons e ativista do Sotsialnyi Rukh.
3 https://newleftreview.org/issues/ii133/articles/susan-watkins-an-avoidable-war
4 https://www.currentaffairs.org/2022/06/u-s-deliberation-during-hungarys-1956-uprising-offers-lessons-on-restraint
Internacional 20

Dois status quos


Não é o propósito deste texto discutir as muitas falhas do
artigo de Marcetic. Mas antes de voltar ao tema principal, vale
a pena apontar algumas de suas falhas. Seu autor ignora a prin-
cipal diferença entre os conflitos que ele compara: enquanto a
Hungria estava de fato na esfera de influência soviética, a Ucrâ-
nia pós-soviética não está e nunca esteve na esfera de influência
russa. É claro que o Kremlin acredita que a Ucrânia deveria ser
um feudo controlado, mas na realidade, mesmo o mais pró-russo
dos presidentes ucranianos, Viktor Yanukovych, algumas vezes
se chocou com a Rússia e negociou o Acordo de Associação com
a UE.
A Guerra Fria terminou com acordos que reverteram a divi-
são anterior da Europa em esferas de influência. Alguns leitores
podem argumentar que houve uma promessa informal de não
expandir a OTAN para o leste. Mas isto não foi um acordo em
relação às esferas de influência. Além disso, esta promessa não
se referia à cooperação militar entre os Estados da Europa Orien-
tal e a Ucrânia dos EUA, também tem desenvolvido cooperação
militar com os EUA quase desde a independência, como fez a
Rússia entre 1991 e 2008. Afinal, a promessa de não expandir a
OTAN foi feita à liderança não da Rússia, mas de um Estado há
muito extinto, a União Soviética, que incluía não apenas a Rússia
atual, mas também a Ucrânia.
Isto revela uma semelhança importante, mas não óbvia, entre
as abordagens de Eisenhower e Biden: nenhum deles se atreveu
a violar o status quo. Mas se em um caso significava contar com
a União Soviética, no outro caso significava o oposto: abandonar
as esferas de influência. Quando, em dezembro de 2021, o Mi-
nistério das Relações Exteriores russo publicou projetos de trata-
dos com os EUA e a OTAN, os EUA responderam apresentando
contrapropostas sobre o controle de armas que satisfaziam os
interesses de segurança russos; mas sobre a principal exigência
Internacional 21

russa de uma divisão em esferas de influência na Europa, eles


recusaram.
Isto mostra como a comparação de Marcetic está fora da base.
Cada caso é único, e para uma comparação produtiva, precisa-
mos analisar tanto as semelhanças quanto as diferenças. Ao
mesmo tempo, podemos desconsiderar muitas diferenças que
não são importantes para o problema que estamos analisando.
Mas o fato de que a Ucrânia não pertencia - e não pertence - à
esfera de influência russa é uma distinção central que não pode
ser negligenciada. Ela tem um impacto direto sobre o comporta-
mento dos governos e sobre os desenvolvimentos que se seguem.
Marcetic ignora quão cautelosa foi e permanece a abordagem
da administração Biden. Como Eisenhower, mesmo antes da in-
vasão russa, Biden rejeitou a ideia de enviar tropas americanas à
Ucrânia e reiterou constantemente que os Estados Unidos não
entrariam em guerra com a Rússia. A diferença na política entre
Biden e Eisenhower, entretanto, deve-se em grande parte às di-
ferentes circunstâncias e comportamento dos governos húngaro
e ucraniano. Enquanto Imre Nagy rejeitou a intervenção mili-
tar ocidental e pediu à ONU que reconhecesse a neutralidade
da Hungria, Volodymyr Zelensky rejeitou a ideia da neutralidade
ucraniana antes da invasão. Após o início da guerra em grande
escala, Zelensky não apenas exigiu novas armas regularmente,
mas também pediu à OTAN que fechasse os céus sobre a Ucrâ-
nia.
Portanto, no caso da Ucrânia atual, a questão correta é esta:
Os Estados Unidos fizeram a coisa certa ao rejeitar a proposta de
dividir a Europa em esferas de influência? A resposta a esta per-
gunta deve levar em conta não apenas as consequências diretas
da guerra, mas também as consequências a longo prazo de tais
arranjos. E para isso, não é descabido considerar as consequên-
cias da última divisão em esferas de influência na Europa após a
Segunda Guerra Mundial.
Internacional 22

A comparação húngara
A peculiaridade da reação dos países ocidentais à Revolução
Húngara em 1956 foi que eles não só recusaram a assistência
militar, mas também tiveram medo de dar aos revolucionários
um apoio político substancial. Poderia a Revolução Húngara
ter sido salva desta forma? Talvez saibamos a resposta a esta
pergunta quando os arquivos russos forem tornados públicos.
No entanto, muito mais confiantes podemos responder a ou-
tras perguntas cruciais. A política da URSS em relação aos
seus satélites do Leste Europeu teria sido mais cautelosa se a
comunidade internacional tivesse reagido mais duramente à
supressão da Revolução Húngara? Teria sido capaz de salvar a
Primavera de Praga? As respostas a estas perguntas são mui-
to mais prováveis de serem afirmativas do que as respostas à
primeira.
No caso da atual Ucrânia, a pergunta correta é esta: os Esta-
dos Unidos fizeram a coisa certa ao rejeitar a proposta de dividir
a Europa em esferas de influência?
A vitória ou a supressão de uma revolução afeta mais do que
apenas os países nos quais ela ocorreu. A Revolução Cubana
estimulou movimentos revolucionários na América Latina e no
mundo inteiro. Se os Estados Unidos a tivessem suprimido, os
“turbulentos anos sessenta” poderiam ter sido muito diferentes.
Talvez isto não tenha acontecido devido ao fato de que a URSS
não reconheceu a América Latina como uma esfera de influência
dos Estados Unidos. Ao contrário de Eisenhower, Khrushchev
defendeu a Revolução Cubana e colocou o mundo em risco de
guerra nuclear, mas ele pode ter salvo a Revolução Cubana. Se a
Revolução Húngara não tivesse sido reprimida, os anos sessenta
poderiam ter sido muito mais turbulentos na Europa Oriental.
Infelizmente, isto não aconteceu, e após a supressão da Prima-
vera de Praga, uma volta gradual à direita (reforçada pela volta
neoliberal no mundo capitalista) começou no chamado “Segun-
Internacional 23

do Mundo”. Os círculos dissidentes na URSS e seus satélites


passaram cada vez mais de posições socialistas para posições
liberais e conservadoras, e os sentimentos nacionalistas se forta-
leceram nestas sociedades. A estratégia de Henry Kissinger para
fortalecer a soberania dos estados comunistas do Leste Euro-
peu durante o desanuviamento, que ele promoveu na esperança
de que isso levasse à “Finlandização” desses países (embora ele
estivesse errado), também contribuiu em certa medida para a
virada conservadora.
O resultado da repressão das revoltas na Europa Oriental
foi que quando a necessidade de renovar o “socialismo real”
tornou-se evidente até mesmo para o Comitê Central do Parti-
do Comunista da União Soviética, já era tarde demais. As no-
vas revoluções provocadas pela perestroika não mais levaram
ao “socialismo com rosto humano”, mas ao neoliberalismo. A
subsequente “terapia de choque” de iniciativa ocidental, por
sua vez, implicou em tendências ainda mais reacionárias nas
sociedades pós-socialistas. O ápice deste processo foi a trans-
formação do regime de Putin, que não só se transformou em
uma expansão territorial agressiva, mas, nas palavras de Vo-
lodymyr Artyukh5, começou a formar uma “Aliança Sagrada”
anti-revolucionária - muito como a Rússia czarista fez no sé-
culo 19.
A divisão do mundo em esferas de influência procuradas
pelo Kremlin consolida a dominação das grandes potências.
Ela também mina a capacidade dos movimentos revolucioná-
rios e dos pequenos países de explorar as contradições entre
eles. Em muitos aspectos, foi esta política que tornou impos-
sível a democratização e a renovação do “socialismo real”, com
o resultado de que o neoliberalismo, o conservadorismo e o
nacionalismo passaram a dominar o espaço pós-socialista.

5 https://commons.com.ua/en/political-logic-russias-imperialism/
Internacional 24

A ONU e as esferas de influência


A divisão da Europa em esferas de influência após a Segun-
da Guerra Mundial teve consequências negativas - e não apenas
para aqueles países que se encontravam na esfera soviética. Do ou-
tro lado da Cortina de Ferro, a principal vítima foi a Grécia, onde
tropas anglo-americanas, juntamente com antigos colaboradores,
começaram a exterminar os anti-fascistas pró-comunistas e par-
tidários. Além disso, a URSS não só concordou em permitir que
a Grécia ficasse sob a esfera de influência britânica, mas também
usou ativamente este acordo para fortalecer seu domínio na Eu-
ropa Oriental. Como escreveu o historiador Geoffrey Roberts,
“Stalin e Molotov nunca se cansaram de desviar as queixas anglo-
-americanas sobre a exclusão da influência ocidental da Europa
Oriental, apontando a indulgência soviética em relação à Grécia”.
Mas havia uma alternativa melhor para uma política de esferas
de influência após a Segunda Guerra Mundial? O mais paradoxal
da história da formação da ordem internacional do pós-guerra é
que foram os representantes da URSS que mais insistiram na di-
visão das esferas de influência. Este foi o caso apesar do próprio
surgimento da URSS estar intimamente ligado às esperanças de
uma revolução mundial, e seus líderes se proclamaram seguidores
de Lênin, que criticou duramente todos os aspectos da diplomacia
encoberta, incluindo a própria ideia de esferas de influência. Além
disso, para a URSS, as tentativas de dividir a Europa em esferas
de influência com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos foram uma
continuação lógica dos acordos preliminares com o Terceiro Reich
que tanto Moscou quanto as democracias ocidentais tinham antes
da guerra.
Ao contrário de Stalin, a administração Roosevelt se opôs às
esferas de influência. Isto foi em grande parte graças a alguns fun-
cionários do Departamento de Estado, como Leo Pasvolsky, que
promoveu uma visão universalista da ONU como uma organiza-
ção internacional centralizada, uma organização que eliminaria
Internacional 25

as esferas de influência. Além disso, como observa Peter Gowan,


“Pasvolsky - após cometer a gafe de lembrar a seu chefe que os ja-
poneses haviam descrito sua Esfera de Co-Prosperidade como uma
Doutrina Monroe para a Ásia - chegou ao ponto de observar que
“se pedirmos o privilégio, todos os outros o farão”, o que “empur-
raria os soviéticos para uma combinação” própria, uma perspec-
tiva a ser frustrada. Roosevelt foi simpático a tais considerações”.
Após a morte de Roosevelt e a derrota da Alemanha, a política
americana sobre esta questão mudou. Mas é possível que a posi-
ção de Roosevelt nas esferas de influência tenha salvo um país da
ocupação soviética: a Finlândia. Milovan Djilas escreveu em suas
memórias que Stalin chamou de um erro não ocupar a Finlândia
porque “olhamos para trás demais para os americanos, e eles não
teriam levantado um dedo”.
O projeto de Roosevelt (ou melhor, de Pasvolsky) fracassou, e
em vez disso o confronto entre os antigos aliados se intensificou,
e a Guerra Fria começou. Mas vale a pena prestar atenção a quem,
do lado americano, foi o mais culpado. Primeiro, havia o setor re-
acionário do Departamento de Estado, que tratava dos assuntos
da América Latina sob o comando de Nelson Rockefeller. Ele ten-
tou manter a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina
e, para isso, impulsionou mudanças na Carta das Nações Unidas.
Como Peter Gowan apontou, John Foster Dulles disse mais tarde
a Rockerfeller: “Se vocês não o tivessem feito, talvez nunca tivés-
semos tido a OTAN”.
O resultado a longo prazo de tal divisão em esferas de influên-
cia seria um aumento na reação.
Em segundo lugar, um papel substancial foi desempenhado
pelo fato de que, após a morte de Roosevelt, ele foi sucedido por
Truman, que, apesar de sua imagem e política mais anticomunista,
estava muito mais disposto a aceitar uma esfera de influência sovi-
ética na Europa. Mais uma vez, citando Peter Gowan6:

6 https://newleftreview.org/issues/ii24/articles/peter-gowan-us-un
Internacional 26

Para cortar o nó górdio sobre o âmbito dos poderes de veto, ele


enviou Harry Hopkins a Moscou com instruções para deixar claro
que “a Polônia, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia, Áustria (sic),
Iugoslávia, Letônia, Lituânia, Estônia, et al (re-sic), não fazem dife-
rença para os interesses dos EUA” - adicionando, com um cinismo
que superou qualquer aparte de Roosevelt, que uma eleição na Po-
lônia poderia ser tão livre quanto a de Tom Pendergast em Kansas
City ou a de Boss Hague em Chicago.

Isto significou o sucesso da estratégia de Stalin. Como os Es-


tados Unidos eram contra as esferas de influência, a União Sovié-
tica inicialmente estabeleceu o domínio na Europa Oriental ocu-
pada e depois forçou os Aliados a concordar com o estado atual
das coisas. E para isso Stalin utilizou não apenas o exemplo da
Grécia, mas também a política dos aliados na Itália. Os Estados
Unidos e a Grã-Bretanha haviam apenas dado uma função con-
sultiva e consultiva ao Conselho Consultivo Tripartite e à Comis-
são de Controle, estabelecida por iniciativa soviética. Assim, eles
foram os primeiros a dar um exemplo de política nos territórios
ocupados: quem quer que ocupasse tomava decisões. Stalin rapi-
damente concordou com a afiliação de fato da Itália à esfera de
influência anglo-britânica e lhes deu carta branca para reiniciar o
governo de Ivanoe Bonomi, se assim o desejassem.
Ao mesmo tempo, foi bastante indicativo que um curto perío-
do de competição entre aliados para influenciar a Itália melhorou
a situação daquele país. Os passos diplomáticos da URSS, incluin-
do o reconhecimento oficial do primeiro governo pós-fascista de
Pietro Badoglio, forçaram a Grã-Bretanha a mudar suas políticas
na Itália. Diante da perspectiva da crescente influência soviética e
do sentimento comunista na Itália, Churchill recusou um plano
para fazer da Itália do pós-guerra um país fraco sob a hegemonia
britânica. Ele foi forçado a concordar com Roosevelt sobre a ne-
cessidade de assistência econômica à Itália e sua restauração como
um Estado independente. Algo semelhante poderia acontecer na
Internacional 27

Europa Oriental, especialmente na Polônia, cuja independência os


Estados Unidos e a Grã-Bretanha tentaram proteger. Mas os pró-
prios EUA minaram sua oposição às esferas de política de influ-
ência ao retirar a URSS da tomada de decisões em relação à Itália.
O projeto de Roosevelt na ONU estava longe de ser demo-
crático. Ele previa um papel menor para a Assembleia Geral da
ONU, com alguns “policiais mundiais” decidindo a maioria das
questões. No entanto, era mais progressista do que o defendido
por Stalin e Churchill. Mas graças à política reacionária do gover-
no Roosevelt, após a morte deste último, a abordagem das esfe-
ras de influência prevaleceu nos EUA - uma abordagem bastante
favorável aos interesses imperialistas americanos.
Vimos algo semelhante antes da invasão russa, e continua-
mos a ver isso agora: a seção mais reacionária da classe dominan-
te americana, exemplificada por Donald Trump e Tucker Carl-
son, está pronta para concordar com Putin sobre uma divisão de
esferas de influência. Antes da invasão, Branko Marcetic escre-
veu que Tucker Carlson estava “completamente certo” “em ques-
tionar o valor estratégico da Ucrânia para os Estados Unidos”.

Ucrânia
O que teria acontecido se os Estados Unidos tivessem reco-
nhecido a Ucrânia na esfera de influência russa na época da in-
vasão de 2022? Talvez se os governos ocidentais tivessem dei-
xado claro aos ucranianos que não deveriam esperar um apoio
ocidental significativo, isso teria forçado Zelensky a adotar uma
política mais cautelosa e potencialmente comprometida. Afinal,
a percepção de que o Ocidente não os protegeria de uma possível
ocupação soviética foi um dos fatores-chave que levou os finlan-
deses, após duas sangrentas guerras, a concordarem em subme-
ter sua política externa à União Soviética.
Primeiro, vale notar que mesmo que a Ucrânia tivesse con-
cordado com a “Finlandização”, suas consequências teriam sido
Internacional 28

bem diferentes das da Finlândia - sobretudo, porque a Rússia


moderna é um Estado capitalista com um regime autocrático re-
acionário, não a União Soviética. Em segundo lugar, na minha
opinião, os EUA concordando com uma divisão em esferas de
influência com a Rússia não teria trazido a paz. Dada a com-
petição política e o sentimento público, a maioria dos quais, de
uma forma ou de outra, se opunha às exigências da Rússia, é
improvável que Zelensky tivesse concordado com concessões sé-
rias. E mesmo que ele tivesse concordado, o Parlamento não teria
aprovado essas concessões; na melhor das hipóteses, isso teria
levado a novas eleições que teriam sido decisivamente vencidas
por forças mais nacionalistas. A fim de evitar a guerra em curso,
mudanças nas relações políticas da Ucrânia e do Ocidente teriam
que ter ocorrido muito mais cedo - não nos meses que antecede-
ram a invasão.
Se os EUA concordaram oficialmente que a Ucrânia fazia par-
te da esfera de influência russa, isso pode ter encorajado a classe
dominante russa a agir de forma mais decisiva. Putin ousou inva-
dir a Ucrânia apesar da pressão dos Estados Unidos. O que pode-
ria impedi-lo de tentar repetir as ações soviéticas na Hungria se
os Estados Unidos prometeram não fornecer assistência militar à
Ucrânia? Como durante a Guerra Fria, o resultado a longo prazo
de tal divisão em esferas de influência seria um aumento na rea-
ção. Isto inclui o fortalecimento do regime de Putin na Rússia e a
resistência à ocupação russa, na qual a extrema-direita provavel-
mente ganharia hegemonia na Ucrânia.
A guerra russo-ucraniana pôs um fim ao período pós-soviéti-
co. A natureza do período emergente, incluindo nosso momento
atual, será decidida no campo de batalha. Se a Ucrânia vencer,
teremos finalmente uma chance de mudanças progressivas não
apenas na Ucrânia, mas também no maior espaço pós-soviético.
Se a Rússia vencer, a Europa Oriental mergulhará em um inferno
de reação cada vez maior nas próximas décadas.
Internacional 29

Os Estados Unidos e a Eurásia: algumas


reflexões geopolíticas em um momento
de crise global1
Pierre Rousset2

Da Ucrânia a Taiwan, a Eurásia tornou-se mais uma vez o


epicentro de um grande confronto entre grandes potências (Es-
tados Unidos, China e Rússia). Para analisar isto, devemos nos
libertar da programação mental herdada da Guerra Fria, pensar
de novo e levar plenamente em conta o contexto planetário - o de
uma crise global e multidimensional. Esta contribuição não pre-
tende ser exaustiva, mas sim um convite à discussão.
A situação política internacional é dominada pelo conflito en-
tre uma nova potência em ascensão, a China, e a potência estabe-
lecida, os Estados Unidos. Este enfrentamento é analisado aqui
como um conflito inter-imperialista. A estrutura social da China
é certamente muito específica (isto não é um detalhe), mas a
extensão da ruptura de continuidade entre o regime maoísta e
o de Xi Jinping está bem documentada3. Há obviamente contro-
vérsia nesta área e o próprio conceito de imperialismo tem várias
interpretações legítimas (como quando falamos do imperialismo
da Rússia czarista). É perfeitamente possível estudar os confli-
tos geopolíticos em curso, mantendo reservas sobre o estágio de
desenvolvimento da sociedade chinesa (ou russa), sem que isso
perturbe a análise - a menos que se pense que os regimes de Xi
Jinping e Putin, resultantes de contrarrevoluções, permanecem
“progressistas”.
O conflito entre um poder em ascensão e o poder estabeleci-
do é um cenário clássico. Mas ele deve imperativamente ser ana-

1 Publicado originalmente em https://fourth.international/en/460.


2 Dirigente da IV Internacional.
3 Ver Pierre Rousset, “From whence did the new Chinese capitalism arise? ‘Bourgeoisification’ of the
bureaucracy and globalization”.
Internacional 30

lisado em seu contexto histórico. O contexto atual é o da crise


global em que a globalização capitalista nos mergulhou, portan-
to, um contexto sem precedentes em suas implicações. Voltare-
mos a isto, mas antes disso, vamos enfatizar o lugar singular que
a Eurásia ocupa na geopolítica global.

Eurásia e grandes conflitos de poder


O grande jogo entre o poder crescente e o poder estabelecido
é jogado em todo o mundo, mas por razões históricas e geoestra-
tégicas é particularmente agudo na Eurásia. Uma zona econômi-
ca da maior importância (com a China em seu coração), o conti-
nente faz fronteira com o Atlântico Norte a oeste e, a leste, com
a zona Indo-Pacífico de onde a China – mais uma vez! – pode se
projetar até o Pacífico Sul. Foi o epicentro das revoluções revo-
lucionárias e contrarrevolucionárias do século XX envolvendo a
Europa, Rússia, China, Vietnã e muitos outros países da região.
Experimentou, mais profundamente que em qualquer outro lu-
gar, o nazismo, o estalinismo, a divisão em blocos, as guerras.
O continente carrega as cicatrizes dessa época. A ameaça
nuclear é global, mas a Eurásia tem o monopólio dos “pontos
quentes”, onde os detentores de armas nucleares compartilham
a mesma fronteira - Rússia e membros da OTAN no oeste, Índia
e Paquistão no centro, Taiwan no sul (China-EUA), a península
coreana no leste.
Esse passado, no entanto, acabou. A derrota internacional de
minha geração ativista nos anos 1980 preparou o caminho para
a expansão da contrarrevolução neoliberal e da globalização capi-
talista. O vocabulário e os reflexos da chamada Guerra Fria (em
chamas na Ásia) reapareceram em reação à invasão da Ucrânia,
e este quadro de análise não é menos obsoleto. A Rússia e a Chi-
na estão integradas no mesmo mercado global que os Estados
Unidos e a Europa. Uma das principais questões atualmente diz
respeito às contradições causadas pelos conflitos entre Estados
Internacional 31

em um mundo interdependente governado pela livre circulação


de mercadorias e capitais.
Devemos nos libertar da programação analítica mais ou me-
nos inconsciente da Guerra Fria para pensar de novo numa época
em que a Eurásia se tornou novamente o cenário de um confron-
to agudo das grandes potências, seja no Leste ao redor de Taiwan
desde que Xi Jinping chegou ao poder ou no Oeste desde a inva-
são da Ucrânia.
Os Estados Unidos permanecem, de longe, a principal potên-
cia militar do mundo, mas isso não significa que esteja sempre
em uma posição de superioridade em todos os lugares. Esta su-
perioridade depende da natureza do teatro de operações, da con-
fiabilidade dos aliados, da situação política interna, da logística e
assim por diante. De fato, podemos dizer que em todas as “fren-
tes” eurasiáticas, eles têm estado em uma situação de fraqueza.
O presidente Obama teria gostado de inclinar o “pivô” do
aparato político-militar dos EUA em direção à Ásia. Ele não po-
deria, mergulhado na crise do Oriente Médio. Pequim aprovei-
tou a oportunidade para estabelecer seu domínio sobre todo o
Mar do Sul da China sobre o qual proclamou sua soberania sem
levar em conta os direitos marítimos de outros países costeiros.
Ela explora sua riqueza econômica e construiu um conjunto de
ilhas artificiais que abrigam uma densa rede de bases militares
sobre recifes. Donald Trump foi incapaz de seguir uma política
chinesa coerente. Joe Biden conseguiu reorientar os EUA para a
frente Ásia-Pacífico, mas ele está enfrentando uma situação de
fato consumado.
A guerra não é apenas um assunto militar, longe disso, mas
o resultado das batalhas não é desprovido de significado. No en-
tanto, um conflito no Mar do Sul da China, à primeira impressão,
provavelmente se voltaria para a vantagem de Pequim, que pode-
ria usar suas armas mais modernas, o poder de fogo combinado
de uma zona marítima militarizada e uma linha costeira mili-
Internacional 32

tarizada, a proximidade de bases continentais (mísseis, aviação,


etc.), bem como as facilidades logísticas proporcionadas por uma
moderna rede rodoviária e ferroviária (velocidade de transporte
e movimentação na frente das tropas, munições, etc.). A guerra
na Ucrânia é duradoura e vemos o quanto ela está consumindo
cartuchos! O constante rearmamento das frentes é uma grande
limitação, muito mais simples de resolver para Pequim do que
para Washington. O Pentágono está diante de uma complicada
equação a ser resolvida.
Entretanto, esta análise pode ser questionada4. A China não
tem experiência de guerra moderna. A estratégia maoísta foi de-
fensiva, tendo o exército e a mobilização popular como seu pilar.
Xi Jinping está construindo à força os atributos de uma grande
potência, tendo a Marinha como seu pilar. Entretanto, suas tropas,
seus equipamentos, a confiabilidade e precisão de suas armas, sua
cadeia de comando, sua organização logística, seu sistema de in-
formação (domínio do espaço) e inteligência artificial nunca foram
testados em situações reais - enquanto sua frota de submarinos
estratégicos sempre representa um calcanhar de Aquiles.
Na época da invasão da Ucrânia, Washington também se en-
contrava em uma posição fraca na Europa. A Rússia vinha se
preparando há pelo menos dois anos para uma ofensiva na frente
europeia, tanto econômica quanto militarmente. Embora Putin
esperasse uma vitória relâmpago na Ucrânia (um erro que lhe
custou caro) e a consequente paralisia da OTAN (ele estava cien-
te de seu estado de crise), ele tinha outros objetivos em mente e
sabia que a tensão em suas fronteiras seria duradoura. Por outro
lado, a falta de preparação de Washington era óbvia.
Após o fracasso afegão, a OTAN estava em estado de crise e
suas forças na Europa não estavam em massa em grande núme-
ro nas fronteiras da Rússia. Donald Trump tinha dinamizado os
quadros de cooperação multilateral do campo ocidental. A impo-

4 Ver Pierre-Antoine Donnet, “Taïwan: comment comprendre les déclarations de Joe Biden?”.
Internacional 33

tência da União Europeia era óbvia, incapaz de qualquer diplo-


macia coerente em relação à China e à Rússia.
Com o Brexit, a cooperação entre os dois países com exércitos
de intervenção, França e Grã-Bretanha, estava paralisada e seus
meios continuam muito limitados. O moral não é alto (a suces-
são de fracassos sofridos por Paris na África não é por acaso). As
forças francesas não têm autonomia estratégica, são dependentes
de Washington para a inteligência e... russos e ucranianos para o
destacamento. Ironicamente, Paris alugou por muito tempo avi-
ões de fuselagem larga pertencentes a empresas russas e ucra-
nianas para transportar suas tropas. Imagino que não seja mais
esse o caso (embora, sendo o capitalismo e o comércio o que eles
são, é possível).

A Ucrânia no contexto
A OTAN não foi a única nem a principal razão para a inva-
são. Nas próprias palavras de Putin, o objetivo era eliminar a
Ucrânia do mapa - um estado que aos seus olhos nunca deveria
ter existido5. É impossível saber o que teria acontecido se uma
blitzkrieg tivesse permitido à Rússia conquistar o país, balcani-
zá-lo e estabelecer um governo fantoche em Kiev. Este não foi o
caso, pois a ofensiva russa foi frustrada pela resistência nacional
maciça envolvendo o exército, as forças territoriais e o povo. É
nestas condições que a guerra na Ucrânia se tornou um grande
fato geopolítico que causa realinhamentos geoestratégicos muito
mais complexos do que se poderia imaginar.

Pequim e o cenário que não se deu


Até que ponto a liderança do Partido Comunista Chinês
(PCC) foi advertida sobre os planos russos? Na véspera da in-
vasão, Xi Jinping e Putin anunciaram com fanfarra um acordo
sobre cooperação estratégica ilimitada. Entretanto, Pequim não
5 Ver citações de seus discursos em in Yorgos Mitralias, “Putin: ‘Lenin is the author of today’s
Ukraine’ or how all this is the fault of ... Lenin and the Bolsheviks!”.
Internacional 34

atacou Taiwan, abrindo uma segunda frente, embora a oportuni-


dade pudesse parecer favorável e Xi tivesse feito da “reconquis-
ta” deste território um marcador de seu reinado. Na verdade, a
China começou tomando uma posição cautelosa na ONU, não se
dissociando explicitamente de Moscou, mas não vetando a pri-
meira condenação da invasão e até mesmo alegando que as fron-
teiras internacionais devem ser respeitadas. Lembre-se de que
para a liderança do PCC (e da ONU), Taiwan é uma província
chinesa e não um estado estrangeiro.
Por que esta restrição? Vamos considerar várias razões. A pri-
meira é militar. Taiwan é um enorme abscesso fixado no coração
do Mar do Sul da China que Pequim gostaria de derrubar, mas
atravessar o estreito, com 120 quilômetros de largura, torna uma
invasão muito arriscada. Os taiwaneses provavelmente têm os
meios para resistir durante o tempo que as forças dos EUA che-
gariam para cobrir. Qualquer que seja o progresso feito, a for-
ça aérea naval chinesa não está em condições de enfrentar. Xi
Jinping certamente não esqueceu as falhas do passado, quando
Mao, no final da guerra civil, tentou por três vezes atacar as for-
ças Kuomintang (Guomindang) de Chiang Kai-check na ilha. A
reciprocidade também é verdadeira: uma invasão americana da
China parece impensável.
Em segundo lugar, os interesses russos e chineses nem sem-
pre coincidem, longe disso. Sua aliança faz sentido num contexto
defensivo e a Rússia tem experiência que a China tem procura-
do aproveitar, por exemplo, participando de exercícios militares
conjuntos na Sibéria. Entretanto, a disputa histórica entre Mos-
cou e Pequim no contexto da ruptura sino-soviética de 1969 é
muito pesada (levou na época à luta pelo controle da fronteira
do rio Amur). Com a grande iniciativa de Xi Jinping nas Novas
Rotas da Seda, a influência chinesa se fortaleceu significativa-
mente na Ásia Central, em uma região que Putin considera sua.
A invasão da Ucrânia colocou em questão os interesses chineses
Internacional 35

na Europa Oriental (incluindo a Ucrânia) e na Europa Ociden-


tal. Abandonar suas próprias ambições europeias em nome das
ambições imperiais de Moscou não é óbvio. No entanto, o pior
cenário possível para Pequim seria se encontrar sozinho contra
Washington.
Em terceiro lugar, a posição de Xi Jinping no PCC não está
consolidada. Sua gestão da pandemia de Covid-19 é criticada. O
Estado-Maior Geral do Exército não digeriu as depurações a que
foi submetido. As facções dos órgãos de poder que foram elimi-
nadas sem cerimônias estão esperando seu momento de vingan-
ça. Xi impôs uma reforma constitucional que lhe permite presi-
dir pelo tempo que quiser - mas será que ele pode? Um partido
de 90 milhões de membros em um país-continente não pode ser
liderado pelo nariz e sua situação é provavelmente mais frágil do
que parecia.

Uma crise generalizada de governança


A situação de Joe Biden nos Estados Unidos já era crítica na
época da invasão da Ucrânia, sem uma maioria funcional no
Congresso, sob a ameaça de um retorno com uma vingança do
Trumpismo. Desde então, as coisas pioraram, com o rastejante
golpe judicial conduzido pelos seis membros ultra-conservadores
(contra os três membros sensatos) da Suprema Corte.
Sabemos agora como a extrema direita (especialmente seu
componente evangélico) preparou durante décadas seu estran-
gulamento sobre as instituições, treinando e colocando advoga-
dos e juízes em posições-chave6. Sabemos a extensão da tra-
ma Trumpiana que levou ao assalto ao Capitólio7. E ainda
não consigo entender como nos Estados Unidos seis pessoas
(seis!) podem impor sua ditadura rompendo com o funcio-
namento tradicional da Suprema Corte, atacando os direitos

6 Katherine Stewart, “United States: How the Christian right took over the judiciary and changed
America”.
7 Neil Faulkner, “Where is America going? - One year after the storming of the Capitol”.
Internacional 36

reprodutivos, bloqueando o programa (ainda assim tão mo-


derado) na luta contra o aquecimento global e anunciando
que isto é apenas o começo e que sua ofensiva obscurantista
continuará em outras áreas, inclusive a das eleições8.
Há verificações e equilíbrios significativos nos Estados Uni-
dos, tais como o papel dos estados. Não é o caso na França, um
país de hiperpresidencialismo onde Macron está tentando impor
uma “transcendência” autoritária da democracia burguesa, um
projeto felizmente frustrado (por enquanto) pelas recentes elei-
ções parlamentares. A situação não é menos desastrosa do ou-
tro lado do Atlântico, como na Europa (a farsa burlesca de Boris
Johnson, por exemplo). Estamos passando por uma crise demo-
crática agonizante.

A globalização em crise crítica


A globalização do mercado está agora paralisada, mesmo que
isso não seja necessariamente o caso da globalização financeira.
A geopolítica estuda em princípio a correlação entre muitos fa-
tores, que só pode ser um trabalho coletivo9. Está fora do meu
assunto aqui. Entretanto, a Eurásia proporcionou um novo fator
geopolítico de importância primordial: a pandemia da Covid-19.
Nascida na China, ela se espalhou pela Europa, que serviu de
trampolim para alcançar o mundo inteiro.
A velocidade com que a epidemia se tornou pandêmica é
explicada pela negligência dos governos que foram lentos em
agir (também na Europa), a densidade do comércio do capi-
talismo globalizado e as características do vírus Sars-Cov-2,
incluindo sua capacidade de fabricar novas linhas de varian-
tes e de atacar quase todos os sistemas pulmonares, sangue,
nervosismo, digestivo e assim por diante (portanto, nada a
ver com a gripe). O único precedente poderia ser a mal deno-

8 Against the Current, “Abortion rights in USA: The Right wing’s Supreme Court Coup”.
9 Um trabalho iniciado no âmbito da Quarta Internacional. Os documentos para discussão podem ser
encontrados em seu site: //https://fourth.international/.
Internacional 37

minada gripe espanhola (era originária dos Estados Unidos),


na época da Primeira Guerra Mundial, mas não sabíamos
então como analisar as variantes e, portanto, não podemos
comparar.
Entramos na era das epidemias, além da crise climática e eco-
lógica. A Covid-19 explodiu as contradições de uma economia
global baseada na produção just-in-time e no crescimento ilimi-
tado do comércio. Não haverá caminho de volta.

As novas placas tectônicas geopolíticas


Quase cinco meses após a invasão da Ucrânia, a situação
mundial pode parecer simples de se caracterizar: a Eurásia e o
Indo-Pacífico continuam sendo o epicentro dos conflitos geopo-
líticos, a liderança dos EUA foi restaurada no campo ocidental,
a OTAN foi refundada com novas ambições, a Rússia e a Chi-
na se mantêm unidas apesar de suas disputas que discutimos,
uma “desglobalização da guerra” está em andamento em todas
as frentes, a crise climática, ecológica e sanitária está acelerando
em conformidade, o sofrimento dos povos está aumentando de
acordo com as catástrofes em andamento.

A refundação da OTAN
A invasão da Ucrânia permitiu, como era de se esperar, que a
OTAN superasse sua crise pós-Afeganistão, dando-lhe uma nova
razão de ser e legitimidade - um golpe muito duro na luta contra
a Organização e as alianças militares. A Cúpula de Madri, no
final de junho de 2022, foi uma oportunidade de adquirir um
mandato ilimitado, autorizando-a a intervir mundialmente con-
tra qualquer “ameaça”, seja ela qual for10. A Rússia é apresenta-
da como “a ameaça mais significativa” no momento e a Chi-
na, a longo prazo, como o principal “concorrente estratégico”
em todas as áreas.
10 Ver Jaime Pastor, “Towards a new permanent global war? NATO’s ‘new strategic concept” e
Anuradha Chenoy, “NATO’s New Security Architecture”.
Internacional 38

O “novo conceito estratégico” da OTAN não é de forma al-


guma ambíguo. A pergunta permanece: a Organização tem os
meios para sua política? Não há nada de óbvio nisso. Enquan-
to a maioria dos países nas Nações Unidas condenou a inva-
são, apenas uma pequena minoria enveredou pelo caminho
das sanções. Hoje, Joe Biden e a OTAN estão exigindo que
os países da Eurásia e do Pacífico se unam contra a Rússia e
a China. O que eles conseguiram? A adesão de novos países
europeus à Organização com, e isto é o que é importante, o
apoio popular, o acordo da grande maioria dos membros da
União Europeia para cair sob o guarda-chuva militar ameri-
cano, o alinhamento entusiástico do Japão.
Quanto ao Japão, a Constituição do país contém uma cláu-
sula pacifista (artigo 9) que proíbe o país de reconstituir um
exército (“o povo japonês renuncia para sempre à guerra como
um direito soberano da nação”) e a ameaça ou uso da força
como meio de resolver disputas internacionais. Esta cláusula
foi contornada (“reinterpretada”) a partir de 1954 pelo Parti-
do Liberal Democrático (nacionalista de direita) que desen-
volveu as “forças de autodefesa” em contradição com o Arti-
go 9 que especifica que “para atingir o objetivo do parágrafo
anterior, forças terrestres, marítimas e aéreas, assim como
outros potenciais de guerra, nunca serão mantidas”.
Assim, o Japão tem o quinto maior exército do mundo,
atrás dos Estados Unidos, Rússia, China e Índia. Tem 1450
aeronaves (só os EUA têm mais) e uma Marinha com 36 con-
tratorpedeiros. Os destroyers são os navios de guerra mais
poderosos, depois dos porta-aviões. Tóquio não tem armas
nucleares, mas poderia adquiri-las muito rapidamente. O go-
verno acredita que, ao participar de operações multilaterais,
poderá criar um fato consumado e enviar suas forças para os
teatros externos de operações. Tóquio jogará seu próprio jogo
e não será um aliado subordinado de Washington.
Internacional 39

Quanto à Índia, Joe Biden promoveu o conceito de uma zona


Indo-Pacífico para integrar Nova Deli em uma frente comum
contra a China. Ele agora não tem nenhuma chance de conseguir
que o governo Modi concorde com Washington contra a Rússia.
Por razões óbvias de conveniência, a Índia manifesta ostensiva-
mente um princípio de neutralidade diplomática. Ela tem manti-
do laços contínuos com Moscou desde os anos 60 e cerca de 60%
de suas necessidades militares são cobertas pela Rússia. Ela até
concordaria em considerar o comércio em rublos (a moeda russa)
e não em dólares11.

Os novos não-alinhados
O não-alinhamento tornou-se novamente um tema recorren-
te. O termo é sedutor, reavivando a memória da Conferência de
Bandung em 1955. Esta conferência foi realizada sob os auspícios
do líder indonésio Sukarno, com Zhou Enlai pela China, Nehru
pela Índia, Nasser pelo Egito, Sihanouk pelo Camboja, Tito pela
Iugoslávia, bem como o Japão (o único país industrializado) e
Hocine Aït Ahmed pela FLN argelina. O Movimento dos Não-A-
linhados (NAM) foi parte de uma vasta luta pela descolonização
e um questionamento da ordem dominante.
Nada a ver com os países não-alinhados de hoje, geralmente
compostos de regimes que não têm nada de progressivo sobre
eles. Assim, a Índia de Modi é considerada por muitas correntes
de esquerda como fascista12. No entanto, a referência ao não-a-
linhamento significa que os negócios continuarão como antes e
que a Rússia não está isolada internacionalmente, especialmente
porque sua denúncia das perfídias do Ocidente repercute na me-
mória popular da colonização ou da invasão do Iraque.
Nas fronteiras europeias da Rússia, sendo tudo relativo, a
OTAN e a União Europeia certamente parecem mais demo-

11 Anuradha Chenoy, “War in Ukraine — Why India Won’t Take Sides”.


12 Kunal Chattopadhyay, “India after the BJP-NDA electoral victory: Understanding the Catastrophic
Victory of the Fascists and the Long Term Consequences”.
Internacional 40

cráticas do que o regime de Putin, mesmo que o programa de


reconstrução da Ucrânia discutido em Lugano, na perspectiva
do pós-guerra, procure impor à população os cânones da or-
dem neoliberal13.

Solidariedade
O futuro permanece muito incerto. Não sabemos como crises
de decomposição democrática nacional podem afetar a situação
internacional, se uma crise paroxística se abrirá amanhã no Me-
diterrâneo em torno da Turquia ou no Oriente Médio, como a
“guerra total” (incluindo sanções e contramedidas econômicas)
continuará, se a brutalidade dos efeitos da crise climática cau-
sará ondas de migração e um novo endurecimento da Fortaleza
Europa.
A crise ucraniana, entretanto, foi uma oportunidade para a
esquerda da Europa Ocidental compreender a importância da
própria experiência da esquerda da Europa Oriental, para inte-
grar seu “ponto de vista”. Não podemos pensar em geopolítica
sem nos elevar acima de nossos horizontes nacionais e aprender
a ver o mundo de outro lugar. Não basta apoiar nossos camara-
das que estão lutando em ambos os lados da fronteira russa, es-
pecialmente Sotsialniy Rukh, o “Movimento Social” ucraniano,
devemos também ouvi-los e aprender.
Da mesma forma, a Ucrânia não deve nos fazer esquecer a
terrível guerra que assola a Birmânia (Myanmar), ou a natureza
perigosa da luta contínua nas Filipinas após o retorno ao poder
do clã Marcos. A esquerda radical será internacionalista em ação,
ou não o será.

13 Vitaly Dudin, “The reconstruction of Ukraine must benefit the population. But the West has other
ideas”.
Internacional 41

Para vencer uma revolução política,


precisamos de uma nova organização de
massa1
Jeremy Gong2 e Nick French3

É difícil para a esquerda nos Estados Unidos encontrar muito


para comemorar nestes dias. Após a emoção das vitórias de Ber-
nie Sanders nas primárias democráticas do início de 2020, nos-
sas esperanças foram frustradas quando o centro se consolidou
em torno de Joe Biden e lhe entregou a indicação à presidência. A
onda de revoltas inspiradoras contra a brutalidade policial mais
tarde naquele verão foi seguida de decepção também, já que as
exigências de reformas sérias para atacar a injustiça racial e eco-
nômica foram cooptadas ou marginalizadas. A esquerda, como
alguns disseram, se encontra no purgatório.
Enquanto isso, a administração de Joe Biden se revelou o que
seus críticos mais astutos previram: uma presidência que, ape-
sar de alguns pontos iniciais positivos, não conseguiu combater
significativamente a desigualdade econômica, a crise climática,
ou o que quer que seja. Os índices de aprovação de Biden estão
agora em níveis recordes de baixa, já que a inflação combate a
economia. (Não está claro se um acordo de última hora com o se-
nador da Virgínia Ocidental Joe Manchin sobre o clima, a saúde
e os impostos irá salvar a popularidade da administração). Além
disso, a Suprema Corte está diminuindo os direitos ao aborto e
ameaçando nossa democracia, e os líderes de Biden e do Partido
Democrata estão adiando qualquer tipo de resposta. O cada vez
mais reacionário Partido Republicano parece estar agora pronto
para a vitória nas eleições de meio de mandato.

1 Publicado originalmente em https://jacobin.com/2022/08/left-mass-political-party-organization-


sanders-aoc-dsa/.
2 Membro do Democratic Socialists of America (DSA) em East Bay, Califórnia.
3 Editor assistente da Jacobin.
Internacional 42

Há alguns sinais positivos: As ideias da esquerda são mais


generalizadas do que foram em décadas, em parte graças às
campanhas presidenciais de Sanders. Junto com outros políticos
insurgentes como os membros do “Squad” Alexandria Ocasio-
-Cortez e Rashida Tlaib, Sanders colocou políticas como o Medi-
care for All, o Green New Deal e a universidade pública gratuita
no mainstream. Os Socialistas Democráticos da América (DSA)
tem quase cem mil membros pagadores de cotas, quatro mem-
bros no Congresso e dezenas de funcionários eleitos em nível es-
tadual e local. O movimento operário está se agitando novamen-
te, com o bem-sucedido esforço de sindicalização dos armazéns
da Amazon em Staten Island, a onda contínua de organização da
Starbucks e a eleição de uma liderança pronta para a greve para
a forte Irmandade Internacional de Caminhoneiros, com 1,3 mi-
lhões de filiados.
Ainda assim, a esquerda não tem sido capaz de coordenar in-
tervenções políticas eficazes em nível federal, muito menos exer-
cer o poder. Com a esquerda ainda é uma minoria minúscula
no Congresso, prioridades progressistas como Medicare for All e
um Green New Deal estão fora da agenda, e reformas ainda me-
nos ambiciosas são consistentemente entravadas por democratas
conservadores como Joe Manchin. E apesar do crescimento de
sua presença legislativa, os socialistas e seus aliados falharam em
expandir-se para além dos “distritos azul-escuro”.
As campanhas presidenciais de Sanders trouxeram dezenas
de milhares de voluntários, milhões de eleitores e um enorme
número de contribuições de campanha de pequeno valor (mui-
tas provenientes de doadores da classe trabalhadora). Mas não
foi o suficiente para vencer, e a teoria subjacente às campanhas
- aquela retórica de luta de classe e uma plataforma popular de
redistribuição de riqueza poderia resultar em massas de não-vo-
tantes da classe trabalhadora para levar Sanders à indicação - não
se concretizou. Apesar da popularidade da política do estilo de
Internacional 43

Sanders e do descontentamento das massas com o status quo, o


socialismo continua a ser em grande parte preservado por jovens
profissionais com formação universitária em distritos solidamen-
te Democratas - isolados do círculo eleitoral mais amplo da clas-
se trabalhadora que se propõe a representar.
Em uma frase, a “revolução política” de Sanders simplesmen-
te nunca veio.
Há muitas teorias sobre o porquê de Sanders não ter vencido.
Parte da explicação, porém, deve envolver a falta de organiza-
ção da classe trabalhadora (incluindo sindicatos) e instituições
de esquerda. A derrota e desorganização da esquerda e do traba-
lho desde os anos 1970 privou a classe trabalhadora das lutas e
organizações que os sustentam - o que Friedrich Engels chamou
de “escolas de guerra de classes”. Nunca tendo sentido o poder
da luta coletiva, muitos eleitores estavam compreensivelmente
céticos de que a campanha de Sanders iria produzir resultados. E
com a maioria dos eleitores democratas tomando suas sugestões
da mídia corporativa e das elites partidárias, Sanders simples-
mente não tinha um contrapeso suficientemente forte na mídia.
Hoje, a ausência de uma organização da classe trabalhadora
de massas continua a assombrar a esquerda dos EUA. Com a di-
reita colocando liberdades fundamentais como a liberdade repro-
dutiva no bloco de corte e os Democratas dormindo ao volante,
o momento é propício para construir uma organização de massa
que possa fazer intervenções políticas desesperadamente neces-
sárias. E pensamos que Sanders e o Squad precisam assumir a
liderança na construção de tal organização.

Os movimentos precisam de organizações


As recentes derrotas da esquerda - agravadas pela COVID-19,
que tornou a organização presencial muito mais difícil - promo-
veram a desmoralização e a desmobilização. Mas grande parte
do mal-estar pós-2020 também pode ser atribuído à incapacida-
Internacional 44

de dos ativistas - muito menos de milhões de pessoas comuns


- de continuar participando de um movimento que tem o poder
de mudar o mundo, especialmente em nível nacional, onde as
chances são maiores. Embora os ativistas tenham apoiado cam-
panhas impressionantes e protestos justos, milhões de ex-apoia-
dores de Bernie se sentem compreensivelmente desamparados
em meio a crises políticas e ecológicas.
Ainda assim, há exemplos inspiradores para a esquerda conti-
nuar. Em Richmond, Califórnia, a Richmond Progressive Allian-
ce (RPA) tem vencido os proprietários e a Chevron para ganhar
a maioria do conselho da cidade após mais de uma década. O
Partido Progressivo de Vermont continua a ser uma força signi-
ficativa na política do estado, mesmo ocupando o cargo de go-
vernador-tenente de 2017 a 2021. Na cidade de Nova York e em
Chicago, representantes eleitos apoiados pelo DSA formaram co-
missões socialistas.
Estes esforços são empolgantes porque elevam o processo po-
lítico acima de candidaturas individuais e campanhas eleitorais
fugazes, fundem lutas legislativas com organizações de membros
permanentes, e criam identidades políticas claras e oposicionis-
tas distintas do Partido Democrata. Como o ativista trabalhista e
líder da RPA Mike Parker escreveu no início deste ano, construir
uma organização política mais ampla é a “tarefa principal quan-
do se trata de ação política”, e não uma “questão secundária”.
Organização é como fazemos do “Não eu, nós” de Bernie mais
do que um slogan.
Sem organização, é difícil construir, muito menos sustentar,
o tipo de mobilização necessária para a revolução política de Ber-
nie. Os protestos massivos se enfraquecem sem exigências cla-
ras, muito menos uma estratégia convincente de como vencer.
Milhares de progressistas ou não sabem como começar a cons-
truir campanhas ou não têm os recursos necessários para fazê-
-lo. Movimentos em torno de questões importantes são coopta-
Internacional 45

dos pelas campanhas de reeleição de Democratas corporativos,


organizações sem fins lucrativos e personalidades proeminentes
da mídia social que não são democraticamente responsáveis pe-
rante nenhuma base. A organização contínua também é essen-
cial para treinar manifestantes que já participaram de protestos
em quadros de movimento hábeis, politicamente sofisticados e
permanentes.
Na política eleitoral, os candidatos progressistas enfrentam
uma enorme pressão para evitar criticar os Democratas do esta-
blishment. Uma vez eleitos, os progressistas solitários têm pou-
cos recursos para pressionar contra o senso comum empresarial
em todos os níveis de governo: os candidatos corporativos po-
dem contar com lobistas bem financiados para ajudar a escrever
legislação, educar o público e até mesmo mobilizar apoiadores;
os candidatos anti-corporativos devem fazer tudo isso por conta
própria. Sem uma organização mais ampla às suas costas, não é
de se admirar que os políticos progressistas que apoiamos não
sejam capazes de lutar constantemente em todas as frentes ao
mesmo tempo.
Somente uma organização de massa pode reunir os recursos
e o povo do movimento pró-Sanders em uma base permanente.
A ideia de tal organização partidária tem sido popular na esquer-
da desde o final da campanha de Sanders de 2016, popularizada
por Seth Ackerman em um artigo na Jacobin e ampliada recente-
mente por muitos outros.
Se a esquerda tivesse uma organização partidária de massa
em 2020, o fim da segunda corrida presidencial da Sanders não
teria significado perder a sensação de que, juntos, poderíamos
mudar o mundo. Embora os partidários de Sanders e do Squad
possam doar para campanhas eleitorais individuais quando so-
licitados, não há maneira de aderir permanentemente e ajudar a
construir o movimento que esses representantes eleitos parecem
liderar. Muitos de nós pedimos que Sanders convertesse sua in-
Internacional 46

fra-estrutura da campanha de 2020 em uma organização perma-


nente após a campanha, sem sucesso.
Tal organização similar a um partido poderia ter ajudado os
progressistas no Congresso e seus muitos apoiadores a ganhar
mais pontos progressistas nas negociações sobre o Build Back
Better desde 2021. Como Ben Beckett argumentou em Jacobin
no outono passado, Sanders e o Squad poderiam ter construído
um poderoso movimento para pressionar Manchin e o senador
do Arizona Kyrsten Sinema, mobilizando-se com ativistas, in-
cluindo membros do DSA, sindicalistas de professores - que li-
deraram greves históricas em massa na Virgínia Ocidental e no
Arizona em 2018 - e outros progressistas. Tal movimento tam-
bém poderia ter pressionado a administração Biden a usar seu
palanque ou o poder da ação executiva para decretar mudanças
radicais (como o cancelamento da dívida estudantil). O movi-
mento de defesa dos direitos ao aborto precisa desesperadamen-
te deste tipo de mobilização hoje.
Em uma linha semelhante, Neal Meyer escreve que “as mo-
bilizações de massa exigem uma organização de massa. Temos
que deixar os dias dos políticos lobos solitários agindo por conta
própria... atrás de nós”. Uma organização semelhante a um parti-
do liderada por Sanders com seções locais permanentes em todo
o país poderia ter coordenado este movimento através dos desa-
fios eleitorais progressistas na Virgínia Ocidental e no Arizona e
nas campanhas de pressão contra líderes democratas como Nan-
cy Pelosi na Califórnia e Chuck Schumer em Nova York. Uma
organização de massa poderia, por sua vez, reforçar Sanders e
o Squad para lutar por um melhor acordo no Congresso, bem
como apoiar candidatos locais e estaduais em todo o país - inclu-
sive em distritos “roxos” ou “vermelhos”, onde a esquerda ainda
não tem uma base de apoio.
Em última análise, precisamos de algo como a organização
aqui descrita para ajudar a convencer milhões de trabalhado-
Internacional 47

res que estão desligados da política de que um mundo melhor é


possível através da ação coletiva, e para sustentar a atividade de
massa quando ela estiver em movimento. É assim que podemos
construir a base que elegerá às centenas os progressistas e so-
cialistas democráticos ao estilo de Lander em todo o país e fazer
crescer um movimento que possa exercer pressão de baixo para
cima através da ruptura de massa.

Reconstruir Bernie
É prematuro escrever um plano preciso para o que esta orga-
nização parecida com uma partido deve parecer. Mas há alguns
princípios que devem nos guiar.
Primeiro, os socialistas e progressistas devem convocar Ber-
nie e o Squad para participar da construção e da liderança desta
nova organização. Para o bem ou para o mal, somente estas fi-
guras políticas nacionais têm os recursos e a legitimidade para
reunir milhões de apoiadores e muitos fios díspares de ativismo
progressista em uma única organização. Sua liderança tornaria o
projeto muito mais propício ao sucesso, e mais cedo.
Em segundo lugar, tal organização deveria ser democrática
e baseada em membros. Os líderes locais e nacionais deveriam
ser eleitos pelos membros, e os membros deveriam ser capazes
de influenciar as plataformas políticas de representantes eleitos,
como Sanders, através de convenções e debates internos. Como
Mike Parker e Martha Gruelle escrevem em um contexto dife-
rente, democracia é poder: somente organizações democráticas
podem dar a seus membros um senso de propriedade sobre es-
tratégias e campanhas, aumentar a sofisticação e o tamanho de
sua base ativista, refinar sua abordagem com base na experiência
do mundo real e lidar com ideias concorrentes sem alienar a mi-
noria de ativistas que não conseguem seu caminho.
Em terceiro lugar, o grupo deve apoiar campanhas eleitorais
progressivas, mas também a organização durante todo o ano fora
Internacional 48

dos salões da política oficial. A história dos movimentos progres-


sistas mostra que a disrupção em massa, fora do processo po-
lítico normal, é fundamental para garantir vitórias legislativas.
Nenhum projeto político anti-corporativo será bem-sucedido se
a esquerda também não estiver ajudando a construir sindicatos e
movimentos sociais de luta.
Em quarto lugar, uma organização progressista semelhan-
te a um partido deveria ser financiada pelas classes trabalha-
doras, principalmente através das contribuições dos membros.
Isso significa rejeitar todas as doações corporativas e bilionárias,
grandes doações não relatadas de fontes anônimas e doações de
PACs, fundações ou outros grupos que lavam dinheiro capitalis-
ta. Os estatutos de financiamento de campanha complicam os
esforços para coordenar os gastos eleitorais, mas David Duhalde
e Seth Ackerman explicaram ambos como uma organização po-
lítica não-partidária como essa poderia navegar na lei.
Finalmente, esta organização deve ser efetivamente aparti-
dária, o que significa que apoiará os candidatos que concorrem
como Democratas e como independentes, dependendo do que
faz sentido em um determinado contexto local. O próprio San-
ders se candidatou como independente para o Congresso, mas se
uniu aos Democratas e causou seu maior impacto ao concorrer
às primárias presidenciais Democratas. Esta flexibilidade será
necessária tanto para construir uma marca política independen-
te que seja razoável tanto para os eleitores fartos de ambos os
partidos corporativos quanto para manter juntos esquerdistas e
progressistas que atualmente podem discordar sobre o futuro a
longo prazo do Partido Democrata. No entanto, no curto prazo, a
organização pode apelar para os eleitores que ainda são leais aos
Democratas ou que estão preocupados com o “efeito spoiler” nos
distritos onde isso é uma preocupação.
Junto com a mobilização para defender o aborto e outros di-
reitos, ativistas e grupos que acreditam nesta visão organizacio-
Internacional 49

nal deveriam planejar reuniões locais e nacionais para discutir


como torná-la realidade. Somos membros do DSA e acreditamos
que o DSA tem um papel importante a desempenhar no apoio
a este esforço. Mas também acreditamos que uma organização
semelhante a um partido liderado por Sanders deve ter uma base
ideológica mais ampla do que o DSA, já que as lutas de hoje são
por reformas de curto prazo, não por derrubar o capitalismo.
Como em nossas campanhas eleitorais, sindicatos e protestos,
nossas organizações políticas de massa devem estar abertas às
milhões de pessoas que querem defender a democracia e apoiar
a agenda de Sanders, mas não estão prontas para aderir a uma
organização explicitamente anti-capitalista.
Outras organizações associativas e sem fins lucrativos como
o Movimento Sunrise e os Justice Democratas, formações políti-
cas locais ou estaduais como a RPA e o Partido Progressista de
Vermont, grupos populares que lutam por justiça econômica e
social, e sindicatos progressistas como o National Nurses Uni-
ted, que sediou a Cúpula do Povo após a primeira campanha da
Sanders em 2016, também deveriam assinar este projeto.

Um novo momento político


Sanders já havia tentado iniciar uma organização de mem-
bros em massa: Our Revolution, que surgiu na esteira de sua
corrida presidencial de 2016. No entanto, por todas as suas faça-
nhas, Our Revolution não é adequada para desempenhar o papel
de uma organização semelhante a um partido de massa neste
momento.
Primeiro, embora pelo menos alguns setores tivessem meca-
nismos democráticos, os membros não tinham poder para deter-
minar democraticamente a estratégia da organização nacional.
Segundo, o próprio Sanders não estava envolvido na organização,
o que provavelmente impedia a atratividade e a eficácia política
do grupo. Terceiro, como Duhalde observou em 2020, a maior
Internacional 50

parte do pessoal de Our Revolution deixou a organização para


trabalhar na campanha da Sanders para 2020, e alguns de seus
principais líderes iniciais não estão mais envolvidos.
Isso aponta para outro problema com Our Revolution: ela foi
formada em um momento particular (pós-2016), com muitos
ativistas sem dúvida esperando outra campanha presidencial da
Sanders, e com uma estratégia particular de tentar reformar o
Partido Democrata a partir de dentro. Mas esse momento políti-
co acabou: Sanders perdeu as primárias de 2020, os progressis-
tas se viram em grande parte marginalizados pelo establishment
Democrata, e precisamos que todos que foram mobilizados pela
campanha de Bernie e mais - incluindo o próprio Sanders e o
Squad - se unam para elaborar uma nova estratégia. Devemos
reconsiderar a estratégia de Our Revolution de concorrer a posi-
ções internas do Partido Democrata, por exemplo, e pensar em
estabelecer uma identidade política mais independente dos De-
mocratas.
A nova esquerda tem muito do que se orgulhar desde 2016,
mas as organizações e táticas que nos levaram até aqui não são
suficientes para avançar. Se quisermos lutar pela democracia e
justiça, e construir o poder de fazer mudanças mais ambiciosas
no futuro, precisamos levar a sério nossa estratégia. Protestos
isolados, greves e campanhas eleitorais trouxeram muitos de nós
para a política. Mas precisamos que estes somem mais do que a
soma de suas partes para que possamos travar a luta que o esta-
blishment Democrata não pode ou não quer travar.
Sabemos que a criação do tipo de grupo que estamos pedin-
do é um tiro no escuro. Mas vimos a capacidade da Sanders e do
Squad de inspirar milhões, e acreditamos que eles têm o poder
de começar a construir a organização de esquerda eficaz e ampla
que este momento exige.
Internacional 51

Uma organização socialista de massas


para se encontrar com o momento1
Peter Lucas e Sean Estelle2

Em seu recente artigo “Para vencer uma revolução política,


precisamos de uma nova organização de massa”, Nick French e
Jeremy Gong escrevem, “a esquerda não tem sido capaz de co-
ordenar intervenções políticas eficazes em nível federal, muito
menos exercer o poder. Com a esquerda ainda é uma minoria
minúscula no Congresso, prioridades progressistas como Me-
dicare for All e um Green New Deal estão fora da agenda, e
reformas ainda menos ambiciosas são consistentemente entra-
vadas por democratas conservadores como Joe Manchin”.
Embora possamos ser um pouco mais otimistas em nossa
análise, dado o sucesso eleitoral contínuo para a esquerda, as
vitórias históricas no trabalho, principalmente na Starbucks e
na Amazon, e as grandes mobilizações em resposta ao ataque
da Suprema Corte aos direitos do aborto, French e Gong dão
uma análise razoavelmente sóbria do momento. A COVID-19
ainda está devastando as comunidades e há uma ausência fla-
grante de liderança política no Partido Democrata; a infra-es-
trutura está em constante estado de degradação; a mudança
climática está acelerando, como pode ser visto tanto em casos
extremos de catástrofe quanto nas condições diárias de traba-
lho e de vida.
Com a assinatura da Lei de Redução da Inflação esta sema-
na, o Partido Democrata realizou com sucesso parte da agenda
que Joe Biden propôs em 2020, mesmo que uma versão seve-
ramente reduzida. O projeto de lei se torna lei, sem ser mo-

1 Publicado originalmente em https://socialistcall.com/2022/08/22/dsa-socialist-organization-


strategy/.
2 Peter Lucas é militante do Democratic Socialists of America (DSA) em Nova York. Sean Estelle é
uma antiga membra do Comitê Político Nacional do DSA e é atualmente coordenadora de campanhas
do DSA em Chicago. Ambos são membros do cáucus Bread & Roses do DSA.
Internacional 52

lestado pelo punhado de emendas que Bernie Sanders propôs


para expandir suas proteções. A maioria foi rejeitada por 99-1,
mostrando as limitações que os socialistas com mandatos en-
frentam sem uma coalizão de organizações ideologicamente
sólidas para pressionar os políticos corporativos de ambos os
partidos.
Os socialistas não deveriam ser tão ingênuos a ponto de acre-
ditar que somente nós podemos ganhar o que é necessário. Mas
os Socialistas Democratas da América (DSA) - ao lado de sindi-
catos, grupos trabalhistas de esquerda como a Labour Notes, e
organizações do movimento que lutam por questões ou campa-
nhas específicas - podem desempenhar um papel importante nas
lutas que estão por vir.
O que não podemos nos dar ao luxo de fazer neste momento
é perder essa oportunidade, virando nossos esforços para outro
lugar. Tentar coexistir com uma organização inteiramente nova
diminuiria nossa capacidade e habilidade de trabalhar como um
bloco político significativo. As campanhas de 2016 e 2020 do
Bernie mostraram quão populares são as exigências universais
e uma plataforma a favor dos trabalhadores, mas para realizar
nossas metas de curto e longo prazo, precisamos também de
uma organização socialista de massa. A pergunta agora é: como
fazemos do DSA a organização para atender a este momento po-
lítico?

Por que não algo novo?


Em seu artigo, French e Gong estabelecem uma série de prin-
cípios que eles acreditam que devem orientar o trabalho para
criar uma nova organização de massa. É revelador que o primei-
ro princípio é chamar Bernie, o Squad e outros líderes políticos
individuais para “construir e liderar esta nova organização”. Em-
bora seria potencialmente um desenvolvimento bem-vindo ver
Sanders e o Squad abraçarem a organização da classe trabalha-
Internacional 53

dora em todo o país, é improvável por uma miríade de razões,


e age como um atalho para resolver a desorganização da classe
trabalhadora que atormenta a esquerda moderna.
A maioria do pessoal sênior da campanha de Bernie já ten-
tou construir uma organização política de massa e não socialista
após as eleições de 2016 com Our Revolution, e se deparou com
muitos dos problemas que frequentemente surgem ao construir
novas estruturas organizacionais - questões de financiamento,
democracia interna, coesão entre as diferenças geográficas e de-
mográficas. Os autores apontam isto, mas sua explicação para o
porquê desta nova organização levar a um resultado diferente é
insuficiente.
French e Gong fazem referência a um argumento apresentado
por Ben Beckett no último outono em Jacobin. Beckett argumen-
tou, French e Gong dizem, que “Sanders e o Squad poderiam ter
construído um poderoso movimento para pressionar Manchin e
o senador do Arizona Kyrsten Sinema, mobilizando-se com ati-
vistas, incluindo membros do DSA, sindicalistas de professores
- que lideraram greves históricas em massa na Virgínia Ociden-
tal e no Arizona em 2018”. Mas eles não o fizeram. Não temos
motivos para acreditar que eles estejam dispostos a fazê-lo agora.
Além disso, o sucesso de sua proposta repousa principalmen-
te sobre 1) Bernie e o Squad que a lidera - algo pelo qual os hipo-
téticos líderes desta hipotética organização não demonstraram
apetite - e 2) ser democrática, algo que os autores dão poucas
indicações de ter um plano a ser alcançado. Mesmo que Bernie
e o Squad estivessem abertos a esta possibilidade, não está claro
como esta organização alcançaria um nível de democracia similar
ao do DSA, por exemplo, que é único no financiamento de seus
membros. É uma aposta insensata colocar tanta esperança nos
eleitos individuais, não importa o quão progressistas eles sejam.
A convocação de Bernie e do Squad para criar uma organiza-
ção de massa é um atalho que salta as pré-condições necessárias
Internacional 54

para a construção de poder da classe trabalhadora. Não está claro


como poderíamos coexistir ativistas para seguir um líder político
em uma organização baseada em uma campanha que está quase
três anos aposentada. Os autores se concentram em intervenções
discursivas e táticas isoladas, em vez do “trabalho de pá” de cons-
truir redes de mentores, identificando os papéis necessários para
a orientação e integração de novos membros, como facilitar as
conversas necessárias para solidificar as camadas de tomada de
decisão rápida necessárias para solidificar a infra-estrutura local,
estadual e nacional, e assim por diante.
É verdade que não podemos, nem devemos, criar um plano
preciso, mas parte do motivo pelo qual discordamos da ideia de
criar uma nova organização de massa é que o DSA - assim como
outras organizações progressistas, baseadas em pautas - já existe
e tem aperfeiçoado essas táticas e treinado ativistas recém politi-
zados para usar essas habilidades para o trabalho de longo prazo
de construir uma organização de massa. Faz mais sentido, en-
tão, que o DSA trabalhe em coalizão com organizações baseadas
em questões e sindicatos para alcançar uma base mais ampla e
não socialista para lutar em torno de certas questões do que para
criar uma nova organização.
Finalmente, os autores levantam corretamente a questão da
falta de organização socialista em distritos “roxos” e “verme-
lhos”, entre outras deficiências de nosso movimento. Mas, nova-
mente, este problema não será resolvido com a criação de uma
nova organização de massa, que teria a capacidade limitada de
uma esquerda já pouco distendida. Para os socialistas democrá-
ticos que se comprometeram a construir o poder da classe tra-
balhadora por toda a vida, nossa principal tarefa coletiva deveria
ser a de construir a organização cuja política já abrange a nossa,
mesmo que procuremos participar de outras instituições da clas-
se trabalhadora.
Internacional 55

Uma organização socialista de massa


Antes de Sanders anunciar sua candidatura presidencial de
2016 e o subsequente “Trump Bump”, o DSA tinha menos de
10.000 membros. Nossa organização agora conta com quase
100.000 membros. Já faz várias décadas que não vemos uma or-
ganização socialista nos EUA de tamanho comparável e, o que
é mais importante, tem vínculos orgânicos com representantes
eleitos e sindicatos. Qualquer número de organizações no “ecos-
sistema da esquerda” poderia ter brotado em 2016, mas o DSA,
mais notadamente, o fez. Não podemos tomar como certa a pre-
sença de uma organização socialista quase de massa no coração
do império.
O crescimento inesperado do DSA foi o produto de muitas
coisas como seu nome e sua natureza de “guarda-chuva”, mas
também foi em parte resultado de sua infra-estrutura de déca-
das - incluindo uma pequena mas determinada coleção de indiví-
duos e seções que desempenharam um papel fundamental para
manter viva a chama socialista. Isto permitiu que a organização
de cerca de oito mil membros absorvesse a onda da esquerda
americana uma vez que as comportas foram abertas por Bernie,
e ajudou a solidificar um novo horizonte político para milhões de
pessoas. Nos anos que se seguiram, reagimos de forma equilibra-
da aos solavancos de membros catalisados por eventos políticos
maiores (como a eleição de Donald Trump ou o exemplo mais
recente de mais de 1.000 pessoas que se juntaram na sequência
da decisão da Suprema Corte de derrubar Roe x Wade) com tá-
ticas e estratégias intencionais para aumentar nosso número de
membros (como receber chamadas semanais de orientação de
perguntas e respostas do DSA após a saída de Bernie, a fim de
trazer o maior número possível de pessoas que sentiram que não
tinham um lar político após a conclusão da campanha de Bernie).
O DSA não é perfeito, mas nenhuma organização é perfei-
ta. Numa época em que segmentos de nossa organização estão
Internacional 56

frustrados por nossos esforços não estarem cedendo muito, de-


veríamos criar espaço para nos engajarmos em um debate aberto
e produtivo sobre estratégia, estrutura organizacional e priori-
dades políticas, mas não podemos permitir que nos tornemos
sobrecarregados e tentar construir múltiplas organizações ao
mesmo tempo. Especialmente porque são grandes as chances de
que a organização que French e Gong estão propondo não seja
muito provavelmente financiada por contribuições, de caráter em
massa, ou genuinamente democrática. A solução para enfrentar
a desorganização da classe trabalhadora não é uma nova ONG
(claro que isso também não é o que French e Gong querem, mas
acreditamos que seja o resultado mais provável da estratégia para
a construção de uma organização que eles propõem). A solução
é trabalhar em coalizão com outras organizações e sindicatos de
trabalhadores para construir um bloco político engajado.

O caminho a seguir
Para assegurar a contínua ascensão do DSA à proeminência
política, a questão se torna: o que precisa ser feito para construir
nossa organização na força de luta que ela precisa ser para en-
frentar a classe capitalista? Nossas tarefas básicas ainda continu-
am as mesmas. Precisamos reconstruir o movimento operário e
construir um braço eleitoral de luta de classes capaz e disposto a
desafiar o establishment, com a esperança de fundir os dois no
futuro em um partido de trabalhadores - e tecer educação polí-
tica e participação em movimentos de massa através de todo o
nosso trabalho.
A nossa tarefa fundamental como organizadores é encon-
trar pessoas onde elas se encontram e trazê-las até nós, não
encontrar pessoas onde elas se encontram e institucionalizar as
nossas diferenças criando uma organização que não seja socia-
lista. Podemos e devemos concentrar-nos no aprofundamento
das nossas raízes nos segmentos da classe trabalhadora ainda
Internacional 57

não bem representados no DSA através da construção de coli-


gações e do recrutamento intencional. Também não devemos
exagerar a questão de o DSA ser formado principalmente pela
classe média ou por profissionais, algo que tem estado historica-
mente presente no passado nas organizações socialistas. Afinal
de contas, este estrato de classe com formação universitária é
constituído por trabalhadores. Continuando a apresentar cam-
panhas políticas inspiradoras, aumentadas por projectos como
o DSA Recruitment Drive em 2020, que trouxe 15.000 pessoas
para a organização durante um período de seis semanas, con-
centrando-se no compromisso entre membros, na integração
e no acompanhamento, podemos continuar a engrandecer as
nossas fileiras. Aprendendo com os erros e falhas cometidos no
contexto de tácticas de construção de organização como essa
campanha de recrutamento (com uma maior necessidade de
nos concentrarmos na educação política e campanha concreta
pede para ligar esses novos membros), podemos fazer avançar
o projecto socialista.
A esquerda americana pré-Bernie é algo a que não podemos
dar-nos ao luxo de voltar. Chris Maisano lembra-nos na aber-
tura do seu artigo “Uma esquerda que importa” como eram os
dias de outrora: “Todo o núcleo ativista da organização estava
lá, mas a assistência total, incluindo pessoal, delegados oficiais,
e observadores, não podia ser mais de duzentos. Os temas mais
controversos foram uma votação em plenário sobre a filiação
do DSA na Internacional Socialista e relatos de que alguém na
convenção estava a importunar o local, um centro de freiras,
sobre o ateísmo. A cobertura mediática era quase inexistente”.
Mas se quisermos evitar regressar à esquerda anterior a
2016, não podemos arriscar o que já construímos, tentando
criar uma nova organização. Em vez disso, devemos dar priori-
dade ao desenvolvimento e coesão dos quase 100.000 membros
que temos neste momento.
Internacional 58

Os socialistas precisam se encontrar com pessoas onde elas


estão, o que significa participar nas eleições, na atividade comer-
cial no local de trabalho, e, sim, nos movimentos sociais. Por
vezes, estas coisas terão um carácter de massa e, idealmente, isto
vai traduzir-se num DSA maior e mais forte. Há inúmeros exem-
plos de seções do DSA realizando campanhas e crescendo a or-
ganização, ao mesmo tempo que se pretende estar em movimen-
to com as amplas exigências, necessidades e interesses da classe
trabalhadora - não apenas recrutando para números inflados de
membros, mas traçando um caminho que constrói o poder de
massa e uma visão para um novo sistema econóômico e político
para muitos, e não para poucos. Vamos levar a sério o apelo a
“[construir] um movimento operário lutador e democrático ao
lado de um movimento político abertamente socialista e de con-
fronto, [para que] o DSA possa ajudar a lançar as bases para um
novo partido de massas de e para a classe trabalhadora”. Vamos
construir o DSA para ganhar o mundo que merecemos.
Internacional 59

“Nosso objetivo principal é colocar


de novo a Guiana Francesa na lista
dos países a serem descolonizados” –
Entrevista com Fabien Canavy
Revista Movimento

Passando o Oiapoque, chega-se à Guiana Francesa, que divide


mais de 700 km de fronteira com o estado brasileiro do Amapá.
Com mais de 80 000 km2 e quase 300 mil habitantes, a Guiana
Francesa é a última reminiscência continental do império colonial
francês. Hoje com estatuto de departamento, vive a situação pa-
radoxal de um território da América do Sul submetida às leis e
normas francesas e europeias, e assolado pela miséria.
O MDES (Movimento para a Descolonização e Emancipação
Social) alia reivindicação de independência à luta social. Ele ele-
geu em junho Jean Victor Castor como um dos dois deputados
que vão representar a Guiana na Assembleia Legislativa francesa.
Na ocasião do Fórum Social Pan-Amazônico de Belém, a re-
vista Movimento realizou esta entrevista com Fabien Canavy, se-
cretário geral do MDES, que integrava a delegação da Guiana (17
pessoas sendo 4 do MDES).
Luc Mineto

Revista Movimento – A eleição de um deputado indepen-


dentista, Jean Victor Castor, na Guiana Francesa em junho
passado foi uma grata notícia. Mas afinal pouco sabemos da
situação na nossa vizinha do norte. Poderia falar um pouco
sobre a Guiana e a história do MDES e de seus militantes?
Fabien Canavy – O MDES tem 30 anos de existência. A cria-
ção do MDES foi em 1991, antes havia, desde 1990, um jornal
chamado Ròt Kosé (Outra Palavra, em crioulo guianense). Os
Internacional 60

fundadores do MDES são oriundos do sindicato UTG (União dos


Trabalhadores Guianenses). Quando você está na luta sindical,
chega um momento em que você sente a necessidade de passar
a um outro nível, um nível político. Essas pessoas, que foram
estudar na França, encontrarem lá estudantes vindos da África
ou de outras nações que ainda estavam sob o poder capitalista,
sob o poder colonial. Esses encontros foram muito importantes.
Quando esses estudantes voltaram para a Guiana Francesa, a rei-
vindicação deles era “liberdade para a Guiana francesa”.
O MDES não é o primeiro partido a reivindicar a indepen-
dência, antes já tinha tido outros que reivindicavam a indepen-
dência. A diferença é sobre o modelo. Para o MDES, tem que
ter um período de transição entre a situação colonial e a sobera-
nia. Este período de transição é para formar e educar uma classe
política, mas sobretudo os trabalhadores que tenham formação,
consciência e condição de desenvolver o nosso país. O nosso país
faz parte da França, da Europa, mas vive uma situação de grande
pobreza. Diferentemente dos partidos que queriam uma inde-
pendência imediata e sem condição, o MDES quer um estatuto
de transição do colonialismo até a soberania.
Participamos das eleições e temos vários eleitos: temos ve-
readores, eu mesmo fui membro do Conselho Geral e do Con-
selho Regional... Foi também o caso de Jean Victor Castor e do
primeiro secretário geral do MDES Maurice Pindard. Nossa or-
ganização tem um secretário e dois vice-secretários, Jean Victor
Castor e Samantha Cyriaque. Samantha Cyriaque, desde junho
de 2021, e Karine Cresson foram eleitas no CTG, Conselho Ter-
ritorial Guianense, assembleia que desde 2015 substitui o Conse-
lho Geral e do Conselho Regional. O conselho Geral era um or-
ganismo do departamento, e em 1946 a Guiana, que era colônia,
passou a ser um departamento francês sob a lei de assimilação.
Quer dizer que todas as leis aprovadas para França também se
aplicam a Guiana.
Internacional 61

Conferir à Guiana o estatuto de departamento foi para a


França uma forma de contornar a obrigação de descolonizar.
Tem uma resolução da ONU de 1945 que estabelece a obrigação
de descolonizar. E tinha uma lista de países a serem descoloni-
zados, e nele haviam países africanos, mas também Martinica,
Guadalupe e Guiana, Reunião. Então a França tornou Martini-
ca, Guadalupe, Reunião e Guiana departamentos franceses, se
livrando assim da obrigação de descolonizar. E em 1980 passa-
mos a fazer parte da Europa. Somos uma região ultra periférica
da Europa. Então somos agora submetidos às leis francesas, e às
normas da Europa. Isso é um grande problema, porque nós so-
mos um país da América do Sul, não um país do continente euro-
peu. Isso traz muitos problemas econômicos, culturais e societai,
porque nossa maneira de viver, nossa cultura, nossa economia,
nossa geografia não são da Europa. Nós não somos europeus.
A organização administrativa é a seguinte: em cima, tem o
Estado francês, representado aqui não mais por um governador
como nos tempos da colônia, agora se chama “Prefet” (o emissário
do governo central no departamento) que dirige todas as adminis-
trações da França. Abaixo dele tem a CTG (Comunidade Territo-
rial da Guiana). Os membros da CTG são eleitos, e o presidente
é Gabriel Serville, eleito em aliança com a nossa lista. Neste CTG
temos, enquanto MDES, duas eleitas: Samantha Cyriaque e Ka-
rine Cresson. Depois, vêm os municípios com prefeitura, prefei-
to e conselho municipal. Temos vereadores eleitos do MDES em
Matoury [segunda cidade do país, na periferia da capital Cayen-
ne], em Maripasula, ribeirinha do rio Maroni na fronteira com o
Suriname. E agora Jean Victor Castor foi eleito no 18 de junho no
primeiro distrito da Guiana, e também no segundo foi eleito Davy
Rimane, com quem temos bastante proximidade. Então são duas
pessoas que estar na Assembleia Legislativa francesa e vão falar
dos verdadeiros problemas da Guiana Francesa, com olhar e meto-
dologia diferentes da qual estamos acostumados até então.
Internacional 62

M – Qual é a situação do Guiana após o governo Macron


e a pandemia? Qual é a força da direita, da esquerda, dos
independentistas?
FC – É um pouco complicado, contraditório... Fomos sub-
metidas a mais de 400 anos de colonização. E esses 400 anos
deixaram marcas na mente das pessoas, querendo ou não. Por-
que a colonização é muito poderosa. Quando você tem a força
da televisão, o controle da educação, a força financeira, a força
da administração pública, é difícil de sair deste casulo da colo-
nização. Mas são 30 anos que o MDES tem uma posição firme
e constante e até quem não concorda conosco reconhece isto.
A situação econômica vai se degradando. Há 5 anos atrás, 30%
da população estava em situação de pobreza. Agora, são mais
de 50%. Há dez mil crianças que não frequentam a escola. E
uma situação econômica e social muito degradada. Em 2017, o
país inteiro foi bloqueado, parou com manifestações. Todas as
empresas com assalariados pararam o país, para exigir uma mu-
dança, para transformar a administração do país. Foi uma forma
de revolução, uma revolução pacífica. Mas o governo francês tem
muita habilidade em enganar o povo. Ele fez na hora mil promes-
sas, e nenhuma foi respeitada quando a calma chegou. E depois
veio o Macron e aplicou na Guiana, que já estava enfraquecida, a
mesma política que aplicou na França (e que originou a crise dos
Coletes Amarelos): capitalista, financista e antissocial.
Com isso, a consciência da população cresceu. Podemos ver
isso nos resultados das eleições presidências: no 1º turno o líder
da esquerda na França, Melenchon alcançou 52%. No segundo
turno, Marine Le Pen da extrema direita fez mais 60%. O recado
é claro: qualquer coisa a não ser Macron, “Fora Macron”, do mes-
mo jeito que dizem “Fora Bolsonaro”.
Cresceu a consciência de que as coisas não vão bem, e que é
necessário se mobilizar. Nas eleições legislativas havia, no pri-
meiro turno, 18 candidatos. E Jean Victor ganhou com 53% dos
Internacional 63

votos no segundo turno, à frente de uma candidata populista.


Então não foi uma vitória populista, foi uma vitória do reconhe-
cimento de trabalho de 30 anos MDES e de sua visão estratégica.
Não é uma posição populista, é uma visão política e organizada
de quem sabe o que quer para a população e o país. Ganhamos,
mas não foi fácil. Os militantes do MDES e outros que se soma-
ram a essa luta tiveram que se mobilizar. A vitória e boa, não
somente pelo MDES, mas para o país. Jean Victor e Davy Rima-
ne vão fazer um bom trabalho. Aliás, já começaram a denunciar
situação da Guiana frente à Assembleia Legislativa francesa.

M – Qual é o sentido da participação do MDES neste


Fórum Social Pan Amazônico?
FC – O MDES acha muito importante essas iniciativas. Pes-
soalmente, eu participei como representante do MDES em 2001
do primeiro Fórum Social em Porto Alegre. Participamos tam-
bém do Fórum de 2003, já em Belém. Em todos os Fóruns So-
ciais ou Pan-Amazônicos estamos presentes porque somos da
América do Sul. Isso nos permite encontrar outros movimentos
que estão na luta, ter informações de primeira mão, sem passar
pelas mídias, das pessoas de Bolívia, Colômbia, Suriname, Guia-
na, do Brasil... Essas informações são muito importantes e nos
servem na nossa luta, e também podemos informar os partici-
pantes do que está acontecendo na Guiana Francesa, diretamen-
te, sem os filtros da mídia.

M – O movimento Black Lives Matter teve grande reper-


cussão no Brasil. Como o racismo se manifesta na Guiana?
Somos uma região da Europa e da França, e lá tem muito
racismo. Na França, sobretudo, a palavra racista corre solta. Mas
aqui não, fica bem contido, porque eles sabem que o assunto é
muito sensível. Porque se tiver um caso de racismo, vai ter uma
verdadeira explosão social. Isso não quer dizer que não haja racis-
Internacional 64

mo, porque aqui também tem racismo, a administração é branca,


mas os eleitos são negros. Então o racismo está contido (e não
quero dizer que não tem racismo, longe disso) porque os negros
são a maioria e se tiver um caso de racismo teria uma explosão
social, que poderia ir muito longe.

M – Há muitos brasileiros que migram para a Guiana,


às vezes para participar de atividades ligadas ao garimpo
clandestino e à pesca ilegal. Qual é o sentimento do MDES?
FC – Primeiro temos que explicar a situação. A migração bra-
sileira aqui é particular. Os brasileiros aqui têm um pé na Guiana
Francesa e outro lá no Brasil. Você vê, por exemplo, nas festas de
fim de ano, os brasileiros voltam para o Amapá, Pará, Maranhão,
Ceará, Piauí, todos os estados brasileiros perto daqui. A situação
é complexa. A relação é histórica. Meu avô é brasileiro. A relação
é histórica porque o Rio Oiapoque nunca foi verdadeiramente
uma fronteira. Tenho primos que vivem de cada lado da frontei-
ra. Tinha uma harmonia na população da Guiana Francesa e este
intercâmbio era percebido como normal.
Mas há 30 anos começou o garimpo clandestino, e também
a pesca ilegal. Temos que pensar: o que leva uma pessoa a traba-
lhar num garimpo clandestino? Numa situação perto da escra-
vidão? No garimpo você trabalha os sete dias da semana, doze
horas por dia, mal pago. Na pesca ilegal é a mesma coisa, é muito
difícil. Porque as pessoas estão fugindo da miséria, do Brasil ou
de outro país. A migração é provocada pelas nações ricas. No
colonialismo, uma consequência lógica do capitalismo, você não
procura desenvolver o país, você pratica uma política de captação
dos recursos dos países, acentuando a pobreza. E uma pessoa
pobre, com fome, vai fugir do seu país para procurar um futuro
melhor. Para nós do MDES a questão da migração e uma ques-
tão de diálogo. A Guiana Francesa é um grande país, e necessita
acentuar o desenvolvimento, precisa de mão de obra.
Internacional 65

A Guiana sempre foi terra de imigração. Não há muitos


guianeses que podem dizer não ter parentes de outros paí-
ses. Todos e todas têm um ancestral seja do Suriname, da Ve-
nezuela, do Brasil. O Jean Victor tem um ancestral que veio
da Índia. Outros vieram da China. É um país diverso, mas a
harmonia está rompida pelos problemas econômicos. E es-
ses problemas econômicos têm consequências societais.
Temos aqui o grave problema das “mulas” que transportam cocaí-
na no corpo, mais de um quilo nos intestinos, na vagina, no ânus,
e pegam o avião para ir à Europa. E são muito jovens. Recente-
mente foi interceptado um jovem de 15 anos. Há dois meses,
quando as autoridades avisaram que iria realizar controles, 50
pessoas não se apresentaram para embarcar. Esta semana, um
novo aviso e, de novo, 50 não embarcaram. E mesmo assim teve
interpelações! As autoridades estimam que em cada voo (e tem 2
voos diários de Cayenne para Paris) tem dez pessoas com cocaí-
na ingerida! Vinte quilos por dia e não fazem nada. O que fazer
quando com 15 anos você já está envolvido no tráfico? É a nossa
juventude que está morrendo. E nosso futuro que está acabando
assim. Confio que a nova classe política vai trabalhar para acabar
com este fenômeno. Não podemos contar nem com a França,
nem com a Europa para nos ajudar neste problema...

M – Quais tema gostaria de discutir com a esquerda anti-


capitalista brasileira? Como os militantes internacionalistas
no Brasil podem ajudar?
FC – Nosso objetivo principal é colocar de novo a Guiana
Francesa na lista dos países a serem descolonizados. O segundo
é que a França restitua a terra aos guianeses. Hoje, a França é
dona de 95% das terras da Guiana. 95% das terras e tem muita
especulação! Essas terras devem ser devolvidas aos guianenses.
Foi assim que foi feito na Nova Caledônia onde a França devolveu
as terras. Esses são os nossos dois objetivos, e por isso precisa-
Internacional 66

mos do apoio internacional sobre essas grandes questões maio-


res. Se você não tem a terra, você não pode fazer nada. Vocês
bem sabem disto com o Movimento Sem Terra do Brasil.
Vamos começar com a apresentação neste Fórum de uma
moção exigindo a descolonização da Guiana e a devolução das
terras. A cooperação internacional é fundamental para nós. Nos-
so primeiro secretário, Maurice Pindard, agora encarregado das
relações internacionais do MDES, trabalha com outros países so-
bre este assunto da volta da Guiana Francesa nas listas dos países
a serem desconolizados.

M – Qual seria o papel da uma Guiana Francesa indepen-


dente na América Latina?
FC – Nenhum país nunca é totalmente independente. Temos
que trabalhar sobre o desenvolvimento, a emancipação. Porque
lembramos dos dez mil jovens que não estão escolarizados. Se
você não tem uma população educada, formada, o que vai acon-
tecer? Corre o perigo de qualquer líder como Bolsonaro chegar
com dinheiro e comprar. E você vai substituir a ditadura da Fran-
ça por outra ditadura. Por isso que educação, formação são muito
importantes. E o papel das mulheres é muito importante. No
contexto do Fórum, estávamos no Amapá esta semana antes de
viajarmos juntos para Belém e vimos o papel das mulheres. É a
mulher que dá vida, como diz a coordenadora do Fórum Social
Guianês, Nora Stephenson, e o papel da mulher é fundamental.
E uma Guiana independente vai tecer relações de amizades, de
cooperação, de trabalho comum com os outros países da Améri-
ca Latina, porque juntos temos mais força.
Internacional 67

A revolução democrática do Sri Lanka:


os últimos episódios em um drama de
décadas1
Rohini Hensman2

Em 14 de julho de 2022, presidente da Câmara dos Depu-


tados do Sri Lanka anunciou que havia aceitado a renúncia do
presidente Gotabaya Rajapaksa, enviada por e-mail desde Cin-
gapura, para onde havia fugido pelas Maldivas. O fato de esse
ex-comandante militar – conhecido como “o exterminador” de-
vido à sua propensão a assassinar críticos – ter sido forçado a
renunciar por um movimento de massa esmagadoramente não-
-violento marca isso como um episódio importante na prolon-
gada revolução democrática do Sri Lanka .
O termo “revolução democrático-burguesa” é confuso por-
que sugere que a democracia é uma dádiva da burguesia, é in-
separável do capitalismo e não tem nada a ver com o socia-
lismo, quando na verdade a maioria dos setores da burguesia
não tem interesse nela e o O Manifesto Comunista afirma que “o
primeiro passo na revolução da classe trabalhadora é… vencer
a batalha da democracia”. A democracia – liberdade contra as-
sassinatos, tortura e desaparecimentos forçados, liberdade de
expressão, associação e reunião pacífica, igualdade de direitos
e oportunidades e o direito das pessoas de participar das deci-
sões que as afetam – só é conquistada e defendida por lutas de
trabalho pessoas solidárias umas com as outras. Além disso,
enquanto uma revolução burguesa pode ser realizada rapida-
mente, uma revolução democrática pode levar décadas e en-
contrar sérios reveses.

1 Artigo originalmente publicado em: https://www.tempestmag.org/2022/08/sri-lankas-democratic-


revolution/.
2 Escritora, acadêmica independente e ativista que atua em pautas coo os direitos das mulheres,
feminismo, direitos das minorias e globalização.
Internacional 68

A revolta no Sri Lanka, que começou com algumas pequenas


vigílias à luz de velas no início de março de 2022 e se transformou
em uma revolução em grande escala com manifestantes assu-
mindo o palácio presidencial e o gabinete do primeiro-ministro,
foi desencadeada por escassez crítica de alimentos, combustí-
vel, gás de cozinha, e medicamentos, acompanhados por longos
cortes de energia e preços exorbitantes. Como explica Niman-
thi Rajasingham, os manifestantes culparam o presidente Go-
tabaya Rajapaksa e seus familiares, incluindo o então primeiro-
-ministro Mahinda Rajapaksa, pela catástrofe. As manifestações
se espalharam por todo o país, sendo o local mais emblemático
“GotaGoGama” na Galle Face Green em Colombo, em frente à
Secretaria Presidencial. Ela também destaca que, embora a má
gestão criminosa do regime de Gotabaya Rajapaksa tenha dado
o golpe final na economia, a montanha da dívida externa vinha
crescendo há mais de quatro décadas depois que JR Jayawardene
do Partido Nacional Unido (UNP) venceu as eleições de 1977 e
introduziu o neoliberalismo.
No entanto, é significativo que, embora esta seja obviamen-
te uma crise econômica, a demanda que unificou o aragalaya —
luta— foi “GotaGoHome”. Os manifestantes não exigiam que
Gotabaya lhes fornecesse o que precisavam; em vez disso, eles
queriam que ele e seu governo fossem embora, apelando para
uma forma mais elevada de democracia que inclui o direito de
destituir os representantes que não cumprem seu mandato. Esta
é a indicação mais clara de que na raiz do colapso econômico está
um desastre político.

Um estado ultra-autoritário de um lado, um eleitorado di-


vidido de outro
Como os governos sucessivos e especialmente o último to-
maram decisões políticas tão desastrosas sem serem impedidos
de fazê-lo pelo público? A resposta curta é que o Estado assumiu
Internacional 69

o poder virtualmente absoluto enquanto o público estava tão di-


vidido que qualquer seção que se opusesse a uma determinada
política poderia ser isolada e esmagada. Dividir o eleitorado em
linhas etno-religiosas tem sido a política da classe dominante
desde que o Ceilão (como era então) obteve a independência dos
britânicos em 1948, e isso, por sua vez, permitiu ao executivo
centralizar um enorme poder em suas mãos.
Em 1948 e 1949, o governo do UNP promulgou uma legisla-
ção privando cerca de um milhão de tâmeis de origem indiana
mais recente (a maioria deles trabalhadores de plantações supe-
rexplorados na região central de Hill) de sua cidadania e fran-
quia. Isso deu início à política de isolar uma parte dos trabalha-
dores e submetê-los à discriminação, violência e privação de seus
direitos humanos. A política já foi usada contra os tâmeis do Sri
Lanka (que são habitantes da ilha há tanto tempo quanto os cin-
galeses), muçulmanos e, ocasionalmente, até cristãos cingaleses.
Em cada caso, alguns membros da comunidade majoritária – bu-
distas cingaleses – orquestraram os ataques, outros montaram
uma forte defesa das vítimas e muitos permaneceram passivos.
A Lei da Língua Oficial introduzida pelo governo do Parti-
do da Liberdade do Sri Lanka (SLFP) de SWRD Bandaranaike,
que chegou ao poder em 1956, acelerou esse processo. Tornou o
cingalês a única língua oficial, discriminando assim os falantes
de tâmil, especialmente em empregos governamentais. Protestos
pacíficos contra isso levaram aos pogroms anti-tâmil de 1958. Os
tâmeis do Sri Lanka sendo uma minoria muito maior do que os
tâmeis do país montanhoso, o sentimento de injustiça resultante
aumentou quando o SLFP liderado pela viúva de Bandaranaike,
Sirimavo, introduziu uma política discriminatória contra os es-
tudantes tâmeis na entrada da universidade – contribuiu para o
deslizamento para a guerra civil.
Em 1978, JR Jayawardene introduziu uma nova constituição
que centralizou o poder quase absoluto nas mãos do Presidente
Internacional 70

Executivo, cargo que passou a ocupar. Não apenas o parlamento


foi destituído de poder, mas as instituições que deveriam ser in-
dependentes do partido político executivo e governante – como a
Comissão Eleitoral, a Suprema Corte e o Judiciário, a Comissão
Nacional de Polícia, Comissão para Investigar Alegações de Su-
borno e Corrupção, Comissão de Direitos Humanos e Comissão
de Serviço – também ficou sob o controle do executivo, com con-
sequências previsíveis.
Dado seu papel óbvio como um ataque à democracia, houve
um cabo-de-guerra sobre a Presidência Executiva desde então.
A campanha para aboli-la foi prejudicada por uma opinião da
Suprema Corte de que isso precisaria do apoio de uma maio-
ria de dois terços no parlamento e de uma maioria simples em
um referendo, o que tem sido difícil de alcançar. Em vez disso,
sob a presidência de Chandrika Kumaratunga (1994-2005), a 17ª
Emenda reduziu drasticamente os poderes do presidente; então,
sob a presidência de Mahinda Rajapaksa, a 18ª Emenda (2010)
revogou a 17ª e descartou o limite de dois mandatos na presidên-
cia. Quando o rebelde do SLFP Maithripala Sirisena se tornou
presidente e Ranil Wickremesinghe primeiro-ministro na crista
de um movimento popular “Yahapalanaya” (Boa Governança)
em 2015, a 19ª Emenda novamente reduziu os poderes do presi-
dente, mas foi prontamente revertida após Gotabaya Rajapaksa,
agora em o Sri Lanka Podujana Peramuna (SLPP), uma divisão
de direita do SLFP, chegou ao poder em 2019 e a 20ª Emenda foi
aprovada em 2020. Uma Presidência Executiva mais autoritária
está associada a ataques mais letais aos direitos humanos e à
democracia. Não é de surpreender que um número crescente de
vozes do aragalaya esteja exigindo sua abolição.
Essas divisões perniciosas entre os trabalhadores comuns de
um lado e a centralização do poder do outro permitiram que o
Estado violasse os direitos humanos e democráticos de todos,
incluindo os budistas cingaleses. Há muitos exemplos disso, in-
Internacional 71

cluindo o assassinato de críticos cingaleses e a demissão de deze-


nas de milhares de trabalhadores em 1980, mas o exemplo mais
espetacular é a repressão do UNP ao segundo levante de Janatha
Vimukthi Peramuna (JVP) de 1987-1989. Isso incluiu a maioria
das mesmas medidas usadas contra os tâmeis, como submeter
civis cingaleses a prisões arbitrárias, encarceramento prolonga-
do sem julgamento ou mesmo acusação, tortura (muitas vezes
resultando em morte) e desaparecimentos forçados. A principal
diferença era que o assassinato em massa era sofrido não por
bombardeios, mas por ser esquartejado até a morte, queimado
em piras de pneus, enterrado em valas comuns ou desmembra-
do e jogado à beira da estrada ou em rios. Estima-se que 60.000
cingaleses foram mortos neste conflito, incluindo cerca de 6.000
pelo JVP; alguns dos mortos pelas forças de segurança do Estado
eram combatentes JVP, mas a grande maioria eram não-comba-
tentes.

Contra o autoritarismo estatal e a supremacia étnica


Os Tigres de Libertação do Tamil Eelam (LTTE) e o JVP luta-
ram contra o estado do Sri Lanka, mas as alternativas que ofere-
ceram não foram menos autoritárias e supremacistas étnicas. O
LTTE consolidou sua posição dominante exterminando membros
de outros grupos militantes tâmeis, e seu objetivo era um estado
de supremacia tâmil. Começou matando e expulsando cingaleses
das províncias do norte e do leste, que reivindicou como seu terri-
tório, e depois fez o mesmo com os muçulmanos de língua tâmil.
Seu líder supremo, V. Prabhakaran, aspirava ao controle totalitário
sobre o Tamil Eelam e exterminava impiedosamente os dissiden-
tes tâmeis. Havia dezenas de milhares dessas vítimas, algumas
das quais foram torturadas antes de serem mortas. Um dos mais
conhecidos é Rajani Thiranagama , socialista, feminista, médica,
conferencista, escritora e defensora dos direitos humanos, que de-
safiou o nacionalismo, o militarismo e o autoritarismo machista
Internacional 72

dos LTTE e seu recrutamento forçado de crianças-soldados. Ou-


tros dissidentes foram forçados ao exílio.
Da mesma forma, o JVP liderado por Rohana Wijeweera, que
se autodenominava “marxista-leninista” e “bolchevique moder-
no”, tinha uma forte tendência cingalesa-supremacista. Suas cin-
co classes de educação incluíam uma caracterizando os trabalha-
dores das plantações de Hill-Country Tamil como ferramentas
do expansionismo indiano: uma falha abismal de análise de clas-
se, além de expressar preconceito racista. Opôs-se ao acordo In-
do-Lanka de 1987, que incluía o reconhecimento do Sri Lanka
como um país multiétnico, a igualdade para a língua tâmil e a
devolução do poder às províncias, todos os quais ofereciam um
mínimo de reparação às queixas dos tâmeis.
Também era extremamente autoritário. Ameaçar matar pes-
soas se elas não entrassem em greve ou boicotassem as eleições
não era exatamente a promoção da democracia necessária para
avançar para o socialismo. A JVP moderna renunciou à violência
e abandonou seu racismo anti-tâmil, mas sem uma crítica ade-
quada de sua política anterior.
Isso nos leva ao papel dos ativistas da democracia, partidá-
rios e não-partidários, na revolução democrática. Eles estavam
na vanguarda da luta contra o colonialismo britânico. Ponnam-
balam Arunachalam defendeu a franquia universal (que inclui-
ria os trabalhadores das plantações) e um estado de bem-estar
social com educação gratuita. Na reunião de fundação da Fe-
deração dos Trabalhadores do Ceilão em 1920, ele convocou o
trabalho sindicalizado para proteger os interesses dos trabalha-
dores. Depois que Arunachalam morreu em 1924, sua visão foi
perseguida pelo Partido Lanka Sama Samaja (LSSP, formado em
1935) e pelo Partido Comunista do Sri Lanka (CPSL), que lutou
pela independência e contra a legislação que privava os tâmeis de
Hill-Country de sua cidadania e franquia, organizou um bem-su-
cedido hartal nacional (desobediência civil e greve geral) contra
Internacional 73

a retirada da ração de arroz altamente subsidiada em 1953, e se


opôs ao Sinhala Only Bill apresentado pelo SLFP.
No entanto, esses partidos se aliaram ao SLFP em 1964, e em
1968 formaram uma Frente Única com ele que chegou ao poder
em 1970. Em 1972, Colvin R. de Silva do LSSP presidiu a elabo-
ração de uma constituição republicana que consagrou cingalês
como a única língua oficial e deu um lugar especial ao budismo
. Membros de princípios se separaram e, em muitos casos, se se-
pararam novamente. O que os levou a dar um passo tão suicida?
A opinião do teórico do LSSP Hector Abhayawardhana de que
a vitória do SLFP em 1956 representou a “libertação nacional
tardia” do Sri Lanka nos dá uma pista. O UNP, casado com o
Ocidente, era visto como prolongando o colonialismo, enquan-
to as políticas de nacionalização, substituição de importações e
hostilidade do SLFP ao Ocidente eram vistas como “anti-impe-
rialistas” e “anticapitalistas”, apesar de seu ataque simultâneo
à igualdade e democracia. A mesma política pseudo-anti-impe-
rialista e pseudo-socialista dos líderes do LSSP, CPSL e Frente
de Esquerda Democrática (DLF, formada a partir de sucessivas
divisões do LSSP) garantiu que eles continuassem a apoiar os
Rajapaksas, compartilhando assim a responsabilidade pelo ca-
tástrofe em curso.
A ironia é que, com a renúncia de Gotabaya Rajapaksa, o
SLPP ungiu o líder do UNP Wickremesinghe – que não conse-
guiu conquistar seu próprio assento e cujo partido foi eliminado
nas eleições parlamentares de 2020 – como seu novo presiden-
te. Suas primeiras ações ao chegar ao poder foram declarar uma
emergência e desencadear a polícia, o exército e os paramilita-
res da Força-Tarefa Especial em um “ataque vergonhoso e bru-
tal contra manifestantes pacíficos”, como a Anistia Internacional
descreveu . Isso não é surpreendente. Wickremesinghe e Gota-
baya foram parceiros em crimes contra a humanidade durante o
período pré-1994 da guerra civil e da contra-insurgência anti-J-
Internacional 74

VP, quando como membro do governo e comandante do exérci-


to, respectivamente, foram responsáveis por massacres de tâmeis
e cingaleses. Ambos também foram responsáveis pela perda de
dezenas de milhões de dólares do Sri Lanka. Além disso, surgi-
ram evidências chocantes de que um grupo islâmico financiado
e protegido por Gotabaya por meio do estado profundo realizou
os devastadores ataques terroristas da Páscoa em 2019, permi-
tindo que ele vencesse as eleições presidenciais como candidato
à segurança nacional. Sirisena e Wickremesinghe, presidente e
primeiro-ministro na época, ignoraram vários avisos de muçul-
manos de que o grupo havia se radicalizado, tornando-se cúm-
plice do massacre.
Dada a falência dos antigos partidos de esquerda, com apenas
pequenos grupos como a Frente de Esquerda Unida aderindo à
agenda de realizar uma revolução democrática, o papel dos ati-
vistas e grupos não partidários de direitos humanos e democra-
cia é ainda mais importante. A partir da década de 1970, eles
trabalharam com coragem exemplar em circunstâncias extrema-
mente repressivas.

Seguindo em frente
Sanar as divisões entre os trabalhadores de diferentes comu-
nidades e combater o autoritarismo são pré-condições para resol-
ver a crise econômica. A celebração do Ano Novo cingalês e tâmil
juntos, outras comunidades participando da quebra do jejum do
Ramadã junto com os muçulmanos e a primeira comemoração
no sul dos tâmeis mortos na guerra são desenvolvimentos positi-
vos, mas os ativistas da democracia precisam empurrá-los muito
mais. O perfil excepcionalmente alto de mulheres e jovens nos
protestos também é um sinal de esperança.
Quando o movimento forçou o presidente Gotabaya Rajapak-
sa a renunciar no mês passado, Ranil Wickremesinghe entrou
em seu lugar. “Suas primeiras ações ao chegar ao poder foram
Internacional 75

declarar uma emergência e desencadear a polícia, o exército e


os paramilitares da Força-Tarefa Especial em um ‘ataque vergo-
nhoso e brutal contra manifestantes pacíficos’”, como a Anistia
Internacional descreveu.
Como um meio-tâmil de língua cingalesa cuja família em um
subúrbio de Colombo foi deslocada pelos pogroms anti-tâmil de
1958, minha leitura do chamado “conflito étnico”, que investi-
guei em minha história oral Journey Without a Destination: Is there
a solution for Sri Lankan refugees?e explorado mais adiante em meu
romance Playing Lions and Tigers, é mais complexo do que a maio-
ria das visões. Minha própria experiência e entrevistas testemu-
nharam fortes laços de amizade e solidariedade entre pessoas de
diferentes comunidades étnicas, com inúmeras histórias de cin-
galeses salvando a vida de amigos tâmeis, vizinhos e até mesmo
estranhos durante pogroms anti-tâmil.
Certamente houve supremacistas cingaleses, incluindo gru-
pos de monges budistas, organizando ataques violentos contra
tâmeis e muçulmanos com a cumplicidade do estado, mas atri-
buo muito do apoio que eles receberam à divisão linguística cria-
da por Sinhala Only. O declínio do inglês como língua de ligação
e a incapacidade de se comunicar entre as comunidades linguísti-
cas, combinados com a censura rígida e a propaganda implacável
através da mídia e das escolas cingalesas, resultaram na ignorân-
cia entre grande parte do público cingalês sobre a discriminação,
violação dos direitos civis, deslocamento, encarceramento, tortu-
ra e assassinatos em massa sofridos pelos tâmeis. Era fácil culpar
inteiramente os LTTE pela guerra civil de 1983-2009 sem reco-
nhecer as terríveis injustiças sofridas pelos tâmeis. No entanto,
quando sua própria experiência colidiu com o que lhes foi dito
– como ocorreu durante a contra-insurgência anti-JVP – muitos
cingaleses estavam dispostos a reexaminar suas crenças.
Este momento, quando as forças de segurança do Estado es-
tão novamente infligindo violência a ativistas cingaleses, é uma
Internacional 76

boa oportunidade para levantar essas questões. Muitos tâmeis se


sentem desconfortáveis em um movimento que ignora suas pre-
ocupações; mas também para seu próprio bem, os cingaleses que
votaram nos Rajapaksas apesar de saberem que eles haviam sa-
queado o país quando estavam no poder, que votaram no assas-
sino em massa Gotabaya como uma reação instintiva aos atenta-
dos da Páscoa, precisam entender que votar pois o autoritarismo
supremacista cingalês pode levar ao desastre para eles mesmos.
Por outro lado, os tâmeis que dizem que esse movimento não
lhes diz respeito também precisam olhar para dentro. Uma vez
que é evidentemente absurdo argumentar que os tâmeis não so-
frem com a escassez, cortes de energia e inflação prevalecentes,
o subtexto de tal afirmação é que os tâmeis não pertencem ao
Sri Lanka, mas a um estado separado. Esta posição nacionalista
tâmil é defendida precisamente por aqueles que reprimem as crí-
ticas aos ataques terroristas do LTTE contra civis cingaleses, in-
cluindo crianças, seus massacres de muçulmanos no Leste e lim-
peza étnica de muçulmanos do Norte, sua tortura e assassinato
de dissidentes tâmeis e os bárbaros crueldade de arrancar crian-
ças tâmeis de seus pais e mandá-las para a morte no campo de
batalha. A posição mais sutil de Rajan Hoole e Kopalasingham
Sritharan, da University Teachers for Human Rights (Jaffna), ar-
gumenta que os tâmeis devem se envolver positivamente com o
aragalaya , combatendo “tanto o chauvinismo cingalês quanto o
estreito nacionalismo tâmil”.
A nomeação de Ranil Wickremesinghe como presidente de-
monstra a impossibilidade de reforma política no atual parla-
mento. Novas eleições terão de ser realizadas e uma nova cons-
tituição promulgada. Houve sugestões para a formação de um
Conselho Popular, ou vários Conselhos Populares que elegem
delegados para uma federação de ponta, com a dupla responsa-
bilidade de aliviar os sofrimentos de seus eleitores e forjar uma
nova constituição. Tal órgão, apoiado por uma greve geral para
Internacional 77

derrubar o governo existente, poderia organizar a eleição de um


novo parlamento, fazer campanha contra o SLPP e seus aliados
, incluindo partidos tâmeis, muçulmanos e de esquerda, e apre-
sentar suas propostas para uma nova constituição para ser de-
fendido por outros candidatos. Estes devem incluir a abolição da
presidência executiva e a devolução do poder aos níveis provin-
cial e local.
Resolver a crise econômica é o maior desafio para o aragalaya
e qualquer novo governo. Apenas algumas vozes pediram a sus-
pensão do pagamento da dívida externa, uma auditoria da dívida
externa e o cancelamento da dívida ilegítima, mas isso é absolu-
tamente necessário. É necessária transparência sobre os titulares
de valores mobiliários; quando um banqueiro de investimento
disse que estava “espantado” com a “incrível disposição” dos Ra-
japaksas de pagar seus credores apesar de estarem “falidos”, vale
a pena perguntar: eles estão entre os detentores offshore de tí-
tulos soberanos do Sri Lanka? Outros sugeriram que um novo
governo não deveria concordar com a austeridade como condi-
ção para empréstimos futuros, dada a evidência esmagadora de
seus efeitos negativos ; deve impor um imposto sobre a riqueza
, restringir as importações de bens de consumo essenciais e in-
sumos de produção, instalar um sistema de distribuição pública,
defender a propriedade estatal de serviços públicos e incentivar
as cooperativas de produtores.
Os atores principais deste drama são os trabalhadores do Sri
Lanka, mas eles não podem resolver todos os seus problemas so-
zinhos. A solidariedade internacionalista é necessária para apoiar
o aragalaya contra a repressão brutal que enfrenta, estender a as-
sistência humanitária sem restrições e resolver a crise da dívida
externa. Isso também ajudaria vários outros países que enfren-
tam crises semelhantes.
Violência
Violência 79

Por uma ofensiva antifascista nas ruas e


nos parlamentos
Mariana Conti1

A ascensão da ultradireita no mundo é um fenômeno indis-


sociável da crise capitalista. Com a agudização das contradições
na sociedade, do desequilíbrio - ainda maior - nas relações entre
o capital e trabalho, conjugado à desorganização e/ou capitulação
das organizações de esquerda, setores autoritários encontram
terreno fértil para apresentar alternativas falaciosas à justa indig-
nação da classe trabalhadora contra o desemprego, a carestia e a
falta de perspectivas. Como efeito, o fascismo, subproduto mais
nocivo da degeneração do capital, tem a habilidade de desviar a
revolta das massas contra a elite burguesa e direcioná-la a grupos
marginalizados e/ou historicamente vulneráveis. Nós socialis-
tas, que entendemos a dinâmica deste processo a partir de uma
compreensão materialista dialética da sociedade, temos a tarefa
de fazer oposição ao avanço reacionário e disputar a insatisfação
popular a partir de um projeto anticapitalista.
No Brasil, a ultradireita chegou ao poder com a eleição de Jair
Bolsonaro em 2018. Alinhado a Donald Trump (EUA), Viktor
Orbán (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia), Bolsonaro situou o
Brasil dentre os países impulsionadores da agenda conservado-
ra e como um foco da ultradireita mundial. As relações de seu
governo com grupos extremistas de caráter supremacista e na-
zifascista da Europa e da América do Norte são de conhecimen-
to público, inserindo o Brasil em uma perigosa rota do ódio e
estimulando grupos e pessoas que partilham destas ideologias
em nosso território. Seus discursos intolerantes contra indíge-
nas, negros, mulheres, a comunidade LGBTQIA+, imigrantes e
outros grupos sociais se somam a ataques ao sistema eleitoral e
1 Vereadora em Campinas (SP) pelo PSOL, dirigente do MES e presidente da CPI Antifascista na
Câmara Municipal de Campinas.
Violência 80

às já combalidas instituições democráticas, impulsionando sua


base de apoiadores à uma crescente radicalização. Este contexto
nos impôs a responsabilidade de nos somar a frentes amplas para
deter o avanço golpista e reacionário de Bolsonaro, em defesa da
mesma ordem constitucional que no campo estratégico busca-
mos superar.
Em Campinas, como resultado, o empoderamento e norma-
lização da intolerância propagada pelo presidente tem incentiva-
do a proliferação de crimes de ódio em um nível alarmante. Se é
fato que a atuação de grupos declaradamente fascistas na cidade
é uma realidade desde antes da ascensão do bolsonarismo - o
que pode ser atribuído à forte segregação e violência política que
marcam a história de Campinas -, com Bolsonaro no poder é
explícito o crescimento exponencial de ameaças, atentados, atos
de apologia e demais fatos relacionados. Sem exagero, temos que
Campinas é hoje um epicentro de disseminação de ódio e violên-
cia nazifascista no Brasil, o que exige atenção das forças políticas
democráticas e priorização dos setores da esquerda,
Em 2022, em especial, tais episódios têm crescido em nú-
mero e gravidade. Ao longo dos últimos meses, incidentes como
as pichações de símbolos nazistas na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), a agressão armada de neonazistas con-
tra clientes e imigrantes haitianos em um bar próximo à mora-
dia estudantil da universidade e, mais recentemente, a série de
ameaças de massacre em colégios da cidade, tem alarmado a po-
pulação e gerado apreensão entre os grupos políticos dominantes
que, até então, pouco se preocuparam com a escalada de violên-
cia política estimulada pelo presidente da república.
Esta apreensão, mesmo que tardia, criou as condições para
que aprovássemos na Câmara Municipal uma proposta de CPI
para investigar a atuação de grupos neonazistas e fascistas em
Campinas. A CPI Antifascista, a qual presido, é inédita no Brasil
e aponta para a necessidade urgente de levarmos adiante, nas
Violência 81

ruas e nos espaços de poder, uma ofensiva contra a barbárie da


ultradireita. Tê-la em funcionamento no calor do atual contexto,
marcado pela violência e por ameaças golpistas de um presidente
abertamente fascista, estabelece não apenas um pólo de resistên-
cia institucional como, principalmente, nos proporciona um eixo
para intervenção na conjuntura.
Os desafios, claro, não são poucos: além da morosidade dos
grupos hegemônicos contra a intimidação autoritária, enfren-
tamos a reação de vereadores bolsonaristas, uma crise política
municipal e também ameaças contra minha integridade física.
Um dos agressores, inclusive, tem vínculos comprovados com
gabinetes da direita, e contra ele já registrei um boletim de ocor-
rência com solicitação de medida protetiva. Por consequência, o
reforço de nossa segurança é uma necessidade imperativa que
tem sido demandada ao poder público local, e do mesmo modo
o cuidado individual tem sido uma precaução permanente de
toda a militância.
A principal resposta às intimidações, no entanto, é política: na
primeira audiência pública da CPI foram chamados os movimen-
tos sociais para acompanharem e se apropriarem dos trabalhos,
tendo sido dado espaço e voz aos grupos que são historicamente
alvos preferenciais da violência fascista. É com a cabeça erguida,
organização coletiva e mobilização permanente que enfrentare-
mos os provocadores, demandaremos a responsabilização dos
envolvidos e pressionaremos por ações efetivas contra a difusão
do ódio na sociedade, em especial entre a juventude.
Para isso, um dos eixos que priorizamos nos trabalhos da
CPI é o que trata da entrada da cultura do ódio nas escolas. Em
maio desde ano, em ao menos 3 escolas foram registradas picha-
ções com apologia nazista e ameaças de massacre contra alunos
e funcionários, com destaque para a Escola Técnica de Campi-
nas - ETECAP. Na semana passada, mais uma escola foi alvo de
ameaças por mensagens enviadas em grupos de WhatsApp. São
Violência 82

casos gravíssimos que remetem a tragédias como a ocorrida em


2019 na Escola Estadual Raul Brasil, no município de Suzano, e
que reforçam a importância de uma atuação ágil e efetiva dos or-
ganismos do Estado contra o recrutamento de jovens por grupos
de ódio organizados em fóruns misóginos da Deep Web.
A partir do trabalho da CPI pretendemos esclarecer como
os órgãos e instituições têm lidado com estes fenômenos e, com
isso, indicarmos medidas, recomendações e políticas de combate
integrado ao discurso e violência nazifascista em Campinas e no
Brasil. São diversas as informações que queremos que venham a
público. Afinal, as forças de segurança realizam monitoramento
sobre a atuação destes grupos? Como as secretarias de educação
têm lidado com ameaças nas escolas? Qual o papel das platafor-
mas digitais na contenção de discursos de ódio nas redes? Qual
a relação destes grupos com figuras da política nacional e local?
Estas e outras questões pretendemos esclarecer, oferecendo um
diagnóstico detalhado acerca da atuação do poder público e de
particulares na repressão a estes grupos criminosos ou, quem
sabe, na sua proliferação.
Tão ou mais relevante que as políticas e saldos institucionais,
como já apontamos, é o encorajamento político contra a ultradi-
reita que esperamos impulsionar com este trabalho. Se é o mo-
mento de derrotar Bolsonaro nas urnas, também o é de acumu-
lar forças para esmagar o bolsonarismo e seu rastro de confusão
e desagregação na classe trabalhadora, onde persistirá como for-
ça política. Para isso, a partir de nossa candidatura a deputada
estadual, também nos esforçamos para levar à Assembleia Le-
gislativa de São Paulo a luta antifascista e anticapitalista. Afinal,
se o fascismo é um dos resultados nefastos da crise do capital, é
a partir de um programa socialista que daremos uma resposta
consequente à sua propagação.
Violência 83

“A derrubada eleitoral do Bolsonaro não


significa um cenário tranquilo para a
Amazônia” – Entrevista com Gilberto
Marques
Revista Movimento

Professor da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em


Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA), o economis-
ta Gilberto de Souza Marques é natural do Amapá, mas atual-
mente reside em Belém. Toda a sua atividade acadêmica se as-
socia aos movimentos sociais junto com a também pesquisadora
Indira Rocha Marques, com quem escreveu e publicou “Luta
Camponesa e Reforma Agrária no Brasil”, em 2015, e mais re-
centemente, em 2019, o livro “Amazônia - Riqueza, degradação
e saque”.
Com um olhar apurado na própria vivência cotidiana das lu-
tas da Amazônia, Gilberto Marques mostra, nesta entrevista,
que mesmo um governo Lula não é capaz de dar conta dos de-
safios impostos pela região amazônica, pois poderá ser o mais
conservador dos três governos do ex-presidente. Mas ele destaca
que, na atualidade, a tarefa imediata dos povos da Amazônia
é derrubar o Bolsonaro. “Queríamos que fosse nas ruas, mas
que seja nas urnas. Nós temos que derrubar e temos que estar
preparados porque o bolsonarismo vai continuar existindo.
E principalmente ter um olhar para o que está ocorrendo na
Amazônia”, afirma o economista.

Revista Movimento – Estamos em um ano eleitoral, na sua


avaliação, que lugar a pauta da Amazônia terá nessa disputa?
Gilberto Marques – Eu acho que o debate vai ser pautado
principalmente pela questão do desmatamento. Mas o desmata-
Violência 84

mento é uma expressão de um conjunto de violências, agora se


você ficar preso só à questão do desmatamento em si, você perde
a complexidade da coisa, que é o conjunto das agressões que es-
tão que estão ocorrendo na Amazônia e que extrapolam muito a
retirada da cobertura florestal da Região Amazônica. Temos um
conjunto de agressões representada pela apropriação da natureza
de diversas formas: solo, rios, floresta, o ar, os minérios.
A Vale do Rio Doce tem exportado todos os anos do Pará,
saindo de Carajás, algo em torno de duzentas milhões de tone-
ladas de ferro. Isso significa dizer que, a cada 5 anos, ela extrai
e exporta um bilhão de toneladas de ferro do Pará. Para efeito
de comparação, a Vale do Rio Doce levou aproximadamente 23
anos para chegar ao seu primeiro bilhão de toneladas de ferro. E
desde então ela vem acelerando isso, principalmente pós-privati-
zação e mais ainda nesses governos das décadas do século XXI,
incluindo o governo Lula, Dilma e esse agora. Então ela tem ace-
lerado muito o ritmo de extração, o que significa um processo de
esgotamento da maior província mineral do planeta que é Cara-
jás. E essa também é uma expressão da violência.
Outro caso é a pecuária, literalmente se alimentando da flo-
resta e do trabalho escravo, porque a derrubada da floresta, de
um modo geral, acontece acompanhada de um processo de gri-
lagem que por muita das vezes também vem acompanhado do
trabalho escravo. E eu estou citando apenas algumas expressões.
Há muito mais.
Então, eu acho que o debate vai ser vai ser pautado, no caso
do Bolsonaro, como uma discussão de que “a Amazônia é nos-
sa”, que nós temos que explorar para desenvolver, que é uma
expressão bem clara do governo dele: dizer que não se trata de
desmatar a Amazônia, mas aproveitar os recursos naturais para
matar a fome da população, para desenvolver o país. O que não
é verdade, evidentemente. O agronegócio no Brasil teve um su-
perávit nas suas relações no mercado internacional, agora entre
Violência 85

janeiro e abril deste ano, de aproximadamente 47,5 bilhões de


dólares, enquanto nós temos entre 120, 130 milhões de pessoas
em situação de insegurança alimentar e em torno de 33 milhões
passando fome.
No caso do Lula, eu acho que o debate vai ser pautado muito
no sentido de que é preciso retomar o combate ao desmatamen-
to. Durante o governo Lula, o ritmo do desmatamento diminuiu,
mas não deixou de existir e muito menos os crimes deixaram de
ser cometidos na região.

M – Qual o legado que o governo Bolsonaro deixará para


a Amazônia?
GM – O desmatamento foi muito grande, continua sendo
muito grande e vai continuar acentuado, ainda que o Bolsonaro
não se reeleja. Porque historicamente no Brasil, se você for pegar
os picos de devastação, os anos com maior índice de desmata-
mento no Brasil foram 85, 88, 94 para 95, 2003 e agora, depois de
2013, vem numa linha ascendente, com exceção de 2014. O que
esses anos tem a ver? Em 1985, tivemos o anúncio de um plano
de reforma agrária, em 1988 tivemos a Constituição, em 1994 foi
a posse de Fernando Henrique Cardoso, 2003 foi o primeiro ano
do governo Lula, em 2013, nós tivemos as mobilizações de rua
e depois de 2014, as crises que levaram à derrubada do governo
Dilma até a posse do Bolsonaro. Então o que isso demonstra?
Demonstra que o desmatamento é claramente um processo es-
peculativo e que se alimenta dos períodos de instabilidade políti-
ca, econômica e de transição no Brasil.
Mas não foi só o desmatamento. Bolsonaro estimulou uma
série de outros setores na região amazônica, como é o caso dos
garimpeiros, e quando eu estou falando de garimpeiro eu não
estou falando do desesperado que está ali na ponta, lavrando pra
alguém. Eu estou falando de quem de fato está alimentando essa
estrutura, que são os grandes empresários vinculados aos garim-
Violência 86

pos, que são os donos das dragas, do capital que movimenta isso
e se vincula a outros circuitos do capital. Em 2021, o município
de São Paulo, que é o município que mais exporta em todo o
estado de São Paulo, apresentou como principal produto de ex-
portação o ouro. 27% de tudo que o município de São Paulo ex-
portou foi ouro. E de onde é que vai esse ouro? Não tem garimpo
no município de São Paulo.
O capital, no caso da Amazônia, se alimenta de uma rede que
conecta o legal e o ilegal ao mesmo tempo. No caso dos garim-
pos, eles não se escondem mais hoje. A gente fala de garimpo
clandestino, mas não é clandestino, porque a ideia do clandesti-
no é daquele negócio escondido. Na Amazônia, o garimpo não é
escondido. Qualquer imagem de satélite consegue detectar onde
é que está o garimpo e você não esconde uma draga com propor-
ções gigantescas com facilidade de forma nenhuma.
Bolsonaro alimentou uma série de setores sociais que vali-
dam esse tipo de atividade e consegue ganhar até uma parte da
opinião pública, ao dizer que “olha, se tem minério em terra in-
dígena, tem que explorar mesmo, se tem madeira, tem que tirar a
madeira”. Então nós tivemos vários processos que vão ser difíceis
de se recuperar.
Um trabalho que tem que ser feito é limpar esse conjunto
de militares de outras figuras que empurraram para dentro da
máquina do Estado. O Ibama está todo loteado por militares. As
chefias do Ibama estaduais e nacionais são controladas por mili-
tares, inclusive vinculados às Polícias Militares. ICMBio e Funai
também foram loteadas.

M – Sabemos que muitos dos ataques antecedem o go-


verno Bolsonaro. Qual a relação que você faz do avanço do
capital com o aumento de violação de direitos na Amazônia?
GM – A produção capitalista é uma produção que gira toda
em torno do lucro. Só existe produção no capitalismo se tiver
Violência 87

como perspectiva o lucro. Pode até ser que ele não se realize,
mas nenhum capitalista entra no processo de produção se ele
não estiver almejando lucro. E ele tem que satisfazer a necessi-
dade de alguém pra poder vender a sua mercadoria. Ninguém
vai comprar uma mercadoria se essa mercadoria não servir pra
alguma coisa.
Para o capital o que interessa é o lucro. O que interessa é a
sua reprodução ampliada, que é quando o capital se reproduz
acrescido de algo a mais do que era no início do processo. Esse
é o objetivo da produção capitalista. Neste modelo econômico
ditado pela lógica do lucro, ele se acentua cada vez mais. Hoje
você tem no ano agrícola da soja, três colheitas. Você tem a pri-
meira colheita, tem a safrinha e tem a segunda colheita. A soja
não segue nenhum ciclo do seu tempo natural. Ela é plantada e
uma série de produtos químicos são utilizados para acelerar o
crescimento O tempo econômico se acelera numa velocidade tão
grande que a apropriação da natureza acompanha esse ritmo do
tempo econômico.
O capitalismo é um modo de produção que não tem sustenta-
bilidade. Primeiro porque ele é todo marcado por crises, cada vez
mais constantes e mais profundas. Segundo que, por conta da
sua lógica, ele tem que se apropriar de uma quantidade cada vez
maior da natureza. Não existe possibilidade de desenvolvimento
sustentável mantida a contradição central do capitalismo que é o
capital versus trabalho.
Enquanto for sustentada na propriedade privada dos meios de
produção e na busca do lucro, essa sociedade vai estar marcada
pela insustentabilidade. Insustentabilidade nas diversas expres-
sões. E isso reflete diretamente sobre as violações de direitos hu-
manos que se aprofundam na Amazônia.

M – Embora grande parte dos movimentos sociais este-


ja apoiando a candidatura de Lula, há também muita críti-
Violência 88

ca à política adotada pelos governos petistas na Amazônia.


Qual sua expectativa em relação a um novo governo Lula na
Amazônia?
GM – Independente do governo que for eleito nós temos que
estar em movimento e temos que estar aprofundando os diver-
sos processos de organização para luta. Se for Bolsonaro nem se
fala, se for o governo Lula também, porque o governo Lula tem
proximidade com o agronegócio cada vez mais gritante. Posso
estar enganado, mas o terceiro governo Lula tende a ser o mais
conservador dos três.
Entre outras coisas porque ele vai ter que governar com uma
parte do bolsonarismo que está no Congresso Nacional e vai re-
correr a isso, vai negociar, vai barganhar com esses setores, entre
outras coisas para ter estabilidade na gestão e não reproduzir o
cenário do governo Dilma. Inclusive o pessoal que conduziu o
processo de derrubada da Dilma está dentro da estrutura do go-
verno do Lula, que já está sendo negociada desde agora. A der-
rubada eleitoral do Bolsonaro não significa um cenário tranquilo
para a Amazônia.

M – E qual deve ser o papel das organizações da esquerda


e dos movimentos sociais neste debate?
GM – Nossa tarefa imediata é derrubar o Bolsonaro. Quería-
mos que fosse nas ruas, mas que seja nas urnas. Nós temos que
derrubar e temos que estar preparados porque o bolsonarismo
vai continuar existindo. E principalmente ter um olhar para o
que está ocorrendo na Amazônia.
Se a gente for comparar o penúltimo e o último censo demo-
gráfico no Brasil, nós tivemos um crescimento muito expressivo
das pessoas que se autodeclaram indígenas. E isso não se explica
simplesmente por um crescimento vegetativo dessa população,
mas pelo fato de que muita gente que tinha vergonha, às vezes
tinha medo, passa a se declarar indígena.
Violência 89

Hoje você tem populações indígenas que tem orgulho de se


apresentar como indígena. Esse sentimento de pertencimento à
Amazônia é muito importante. Se nós sabemos quem somos, se
nós sabemos a nossa história e se reconhecemos essa história
como história importante, nós entramos num outro patamar da
luta.
Eu acho que a gente tem muita coisa boa acontecendo na re-
gião, muita coisa importante que deve servir de referência inclu-
sive pro movimento social brasileiro. Estamos presenciando nos
últimos anos a ascensão de lideranças femininas dentro das re-
presentações indígenas e eu acho isso algo espetacular.
Também temos o processo de retomada de territórios quilom-
bola que ocorre com muita força no Maranhão, mas que ocorre
aqui no Pará também em Capanema e em Barcarena. Eu penso
que os movimentos têm o papel de trabalhar para conectar e dar
visibilidade a esses vários atores. Fazer o intercâmbio entre esses
movimentos.
Trazer os ribeirinhos pra uma luta conjunta contra o garimpo,
em defesa do território, em defesa da floresta. O pessoal do Mo-
vimento dos Atingidos por Barragens fala sobre a necessidade de
tecer as redes. E redes se tecem estabelecendo nós, que são as co-
nexões. Porque, como eles bem dizem, rede lisa não pega peixe.
Então acho que o nosso desafio é exatamente esse: os movi-
mentos sociais da cidade tem que estar conectados com o movi-
mento do campo, nós temos que ajudar a fazer com que todas
essas experiências floresçam e se desenvolvam.

M –Quais as contribuições do Fórum Social Pan-Amazô-


nico na articulação dessas lutas?
GM – Eu gostei muito do Fórum Social Pan-Amazônico e
acho que a principal contribuição foi colocar no mesmo espaço
toda essa diversidade, essa complexidade de experiências de po-
vos e de culturas. A principal fragilidade desses grandes fóruns
Violência 90

é que às vezes corremos o risco de fazer um fórum, esperar o


próximo fórum, o outro fórum, o outro fórum e a gente vai vi-
vendo como se fosse um grande ciclo onde a gente se encontra
periodicamente de dois em dois anos, três ou mais anos, para so-
cializar as nossas lamentações. A gente precisa dar passos mais
largos em termos de organização sólida. Como a gente vai fazer
isso é o desafio, mas eu acho que a gente não pode simplesmen-
te ficar num grande ciclo. Qual é a experiência organizativa que
fica num outro patamar a partir de um fórum desses? Essa é a
pergunta. Esse é o nosso desafio. Nós precisamos para além dos
grandes fóruns, materializar essas redes e transformar esses nós
em solidariedade ativa no cotidiano. Então, se tem um povo que
está sendo agredido ali, os outros tem que se fazer presentes lá
porque como dizem muitos povos indígenas, “nós não queremos
só parceiros, nós queremos antes de tudo aliados”, porque eles
dizem que os parceiro vem e vão, são passageiros e os aliados
não, se nós vencermos eles vencem com a gente, se nós formos
derrotados eles vão chorar junto conosco na derrota.
Nós precisamos transformar nossos encontros em ações con-
cretas de solidariedade e de luta.
Brasil
Brasil 92

O comício reacionário de Bolsonaro em 7


de setembro
Israel Dutra1 e Thiago Aguiar2

Na celebração de 200 anos da independência do Brasil, o pre-


sidente Jair Bolsonaro fez uso indiscriminado da máquina públi-
ca para seus interesses eleitorais a menos de um mês do pleito.
Convocado há meses, desde a convenção partidária do PL que
lançou sua candidatura à reeleição, as manifestações de 7 de se-
tembro foram alardeadas como ponto central de mobilização da
campanha de Bolsonaro e da extrema-direita.
Apesar do tom elevado contra o STF, defendendo o golpe de
1964, o esforço concentrado da ação foi para angariar votos, o que
conferiu um caráter eleitoral e de megacomício nacional, reunin-
do centenas de milhares no país, com destaque para o cortejo
de Copacabana, no Rio de Janeiro. A conjuntura eleitoral afuni-
lou-se: é preciso parar a ofensiva da extrema-direita, derrotando
Bolsonaro, suas ideias e seus organizadores nas urnas e nas ruas.

As manifestações e seu significado


As manifestações tiveram seu peso, mas foram menores
do que as de 2021 e tampouco demonstraram o mesmo vigor:
ano passado, após arrastar multidões em Brasília e em São
Paulo, o bolsonarismo utilizou métodos como o “trancaço”
de estradas com caminhões por dois ou três dias. Em 2022,
Bolsonaro buscou atrair a energia de seus apoiadores para o
cenário da campanha eleitoral, colocando em seu palanque
figuras como Luciano Hang e Silas Malafaia, num apelo mais
geral ao público evangélico e com discursos mais eleitorais.
Em Brasília, os ataques ao STF foram mais contidos que em

1 Secretário-geral do PSOL, sociólogo, membro da Direção Nacional do partido e do Movimento


Esquerda Socialista (MES).
2 Doutor em Sociologia (USP).
Brasil 93

outras ocasiões; em São Paulo, também por conta da chuva,


a manifestação foi menor, restando para a praia de Copaca-
bana, no Rio, a principal ação centralizada do governo e de
seu aparato.
Bolsonaro consolidou sua estratégia de curto prazo, sem per-
der o horizonte golpista: lutar para chegar ao segundo turno, ga-
rantindo a eleição de parlamentares e governadores alinhados
com seu projeto. Para tanto, fideliza seus apoiadores mais dire-
tos, joga pesado com a cúpula das igrejas evangélicas e organiza
seu programa, com a tríade “Deus, Pátria e Família”. Seu obje-
tivo mais prático foi ganhar fôlego na corrida eleitoral e registar
imagens que demonstrem que as pesquisas estão mentindo, para
alimentar as redes sociais.
O cenário eleitoral é complexo, pois a batalha pelo voto se-
gue, com as grandes cidades indicando vitória de Lula, mas, em
importantes regiões, Bolsonaro segue disputando palmo-a-pal-
mo, como no interior de São Paulo, onde pesa mais o conserva-
dorismo.

O discurso bolsonarista: machista, reacionário e antipopular


O discurso de Bolsonaro em Brasília, uma vez mais, colocou
no centro a agressão machista contra as mulheres. O ápice de seu
discurso foram os gritos vulgares de “imbrochável” e a exposição
humilhante que faz da esposa Michelle, como quando sugeriu
uma “comparação entre esposas”.
Ao mesmo tempo, apesar de recuar nas investidas abertas
contra o Judiciário, Bolsonaro afirmou que pretende estabelecer
uma tutela no STF e na esquerda após a reeleição, forçando-os a
“jogar dentro das quatro linhas”, em sua repetida metáfora pri-
mária.
Apesar do tom eleitoral, faixas e gritos de guerra golpistas
e de inspiração fascista fizeram-se presente em todas as mani-
festações. A violência política estimulada pelo bolsonarismo se-
Brasil 94

gue: nesta semana, um deputado bolsonarista do Ceará afirmou


que resolveria a eleição na “bala” em caso de derrota, e hoje um
apoiador de Lula foi assassinado a facadas no Mato Grosso por
um bolsonarista que, não contente em matar, tentou degolar o
cadáver.

É preciso parar a mão da extrema-direita nas ruas e nas


urnas
Para derrotar o bolsonarismo, é preciso lutar e construir uma
campanha eleitoral que responda às necessidades do povo. O me-
lhor seria uma vitória de Lula ainda no primeiro turno para evitar
um segundo turno com aventuras golpistas e esmagar eleitoral-
mente a extrema-direita. Um segundo turno é uma nova eleição.
Conta contra Bolsonaro sua alta rejeição, mas sua ação no dia 7
mostra que sua capacidade golpista se mantém. Sua mão tem
sido segurada pela decisão da maioria da burguesia de não aceitar
uma estratégia de contrarrevolução preventiva. O domínio bur-
guês tem sido garantido pelo próprio mecanismo eleitoral e a
maioria dos setores burgueses mais fortes não querem delegar
poder para um candidato a ditador. Menos ainda para um des-
preparado, como deixou claro a pandemia
Por isso, seguimos trabalhando pela hipótese de vencer Bol-
sonaro no primeiro turno: é hora de disputar o voto dos eleitores
que estão indecisos e dos que votam em Ciro Gomes. Aliás, Ciro
deve ser responsabilizado pelo papel regressivo que está cum-
prindo nesse momento, igualando Lula e Bolsonaro e evitando
que o repúdio massivo ao governo do genocida se expresse numa
vitória de Lula no primeiro turno.
Por outro lado, a direção petista e Lula não estimulam as mo-
bilizações. A convocação para as manifestações de amanhã (10)
foi muito débil e aquém do necessário para dar uma resposta
contundente ao bolsonarismo. Este é o momento de engajamen-
to com amplitude na campanha, com a prioridade de derrotar
Brasil 95

eleitoralmente Bolsonaro por meio do voto em Lula. Também é


preciso pressionar nas ruas, desmontar os esquemas do bolsona-
rismo e exigir a prisão do “mito”. Ao mesmo tempo, entendemos
que o PSOL deve defender seu programa e apresentar bandeiras
próprias, estimulando a unidade e a ação antifascista.

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