O Que É Golpe de Estado - Alvaro Bianchi
O Que É Golpe de Estado - Alvaro Bianchi
O Que É Golpe de Estado - Alvaro Bianchi
Alvaro Bianchi
Militares e burocratas
Uma pesquisa com o aplicativo Ngram Viewer do Google Books permite
vislumbrar a evolução do uso da expressão coup d‘etat. O aplicativo busca e quantifica
palavras ou expressões indicando a fração percentual delas no total do corpus de livros.
Não é um mecanismo muito preciso porque o corpus apresenta lacunas. Quando feita a
pesquisa em livros em francês, por exemplo, a expressão não aparece nenhuma vez entre
1850 e 1876, quando uma simples busca de livros por título na Biblioteca Nacional
Francesa já indica mais de 150 obras com a expressão. Mas quando se faz a busca no
corpus em inglês o resultado é muito interessante, como se pode ver no gráfico abaixo:
Repensando o conceito
A maior parte dos golpes de estado inventariados por Luttwak tiveram por
protagonistas facções do exército e seu livro considera o golpe predominantemente como
uma operação militar tática. O golpe militar é, sem dúvida, a forma predominante durante
o século XX. Isso fez com que muitas vezes o copu d’état fosse identificado
exclusivamente com sua variante militar. É o que ocorre na definição que David
Robertson oferece em The Routdlege Dictionary of Politics: “Coup d’état descreve a
derrubada repentina e violenta de um governo, quase invariavelmente por militares ou
com a ajuda de militares” (ROBERTSON, 2004, p. 125).
Mas a uma definição tão limitada não permite considerar a hipótese de golpes
promovidos por grupos do poder Legislativo ou Judiciário ou por uma combinação de
vários grupos e facções. Esse parece ser o caso brasileiro em 1964, quando a mobilização
militar encontrou o respaldo no Senado, que declarou “vaga a presidência da República”
e no Supremo Tribunal Federal, que realizou uma sessão na madrugada do dia 3 de abril
para empossar Ranieri Mazzili na presidência. Recentemente, os golpes que derrubaram
Manuel Zelaya em Honduras, no ano de 2009, e Fernando Lugo no Paraguai, em 2012,
tiveram por protagonistas facções do poder Legislativo. O conceito precisa, portanto, ser
alargado. Aquela ideia inicial de Naudè pode ser retomada com esse propósito, mas como
um ponto de partida. O conceito deve deixar claro quem é o protagonista daquilo que se
chama coup d’état, os meios que caracterizam a ação e os fins desejados.
O sujeito do golpe de estado moderno é, como Luttwak destacou, uma fração da
burocracia estatal. O golpe de estado não é um golpe no Estado ou contra o Estado. Seu
protagonista se encontra no interior do próprio Estado, podendo ser, inclusive, o próprio
governante. Os meios são excepcionais, ou seja, não são característicos do funcionamento
regular das instituições políticas. Tais meios se caracterizam pela excepcionalidade dos
procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a mudança institucional, uma
alteração radical na distribuição de poder entre as instituições políticas, podendo ou não
haver a troca dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança
institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza
para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do
jogo político.
Também aqui o espírito de Machiavelli se faz presente. Compreender o que é um
golpe de estado é o primeiro passo para poder enfrenta-lo. Substituir o conceito por
slogans pode ter efeitos positivos para a mobilização das pessoas. Mas não é um recurso
que permita compreender a realidade presente. A própria mobilização obtida é, por essa
razão, incapaz de uma ação política eficaz. Frequentemente ela aponta para a direção
errada. Um componente importante da atual crise da esquerda está em sua recusa a
compreender a realidade. Prefere sempre a comodidade das antigas fórmulas. A análise
torna-se, assim, serva da política. Mas sem o controle do pessimismo do intelecto, o
otimismo da vontade transforma-se em ativismo verbal. E às vésperas de um coup d’état
no Brasil, o que não tem faltado é esse inócuo ativismo verbal.
Referências bibliográficas
AUGERAUD, W. Le coup d’état du 18 brumaire et ses conséquences. Bruxelles: J.-H.
Briard. 1853.
FAILLY, Jules. Jugement du coup d’état et de la Révolution de 1830. Paris: Delaunay,
1830.
GABRIEL, Alexandre. Le coup d’Etat de décembre 1851 dans le Var. Draguignan: imp.
de Gimbert fils, Giraud ,1878
HUGO, Victor. Napoléon le Petit. Bruxelles: A Mertens, 1852.
HUNTINGTON, Samuel P. The third wave: democratization in the late twentieth century.
Norman: University of Oklahoma, 1991.
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual pratico. Rio de Janeiro, RJ: Paz e
Terra, 1991 [1969].
MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de estado. Lisboa: Europa-América, 1983.
MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Prólogo de Herbert Marcuse. São Paulo,
SP: Boitempo, 2011 [1952].
MESNARD, Jean-Baptiste. Le Coup d’état et la Révolution. Paris: de Selligue. 1830
NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’Estat. Paris: s.e., 1679.
PROUDHON, Pierre-Joseph. La Révolution sociale démontrée par le coup d’état du 2
décembre. 2 ed. Paris: Garnier frères 1852.
ROBERTSON, David. The Routledge Dictionary of Politics. 3 ed. London: Routledge,
2004.
SANTO-DOMINGO, Joseph-Hippolyte de. Les Prêtres instigateurs du coup d’état, ce
qu’ils ont fait, ce qu’ils auraient fait, ce qu’ils peuvent faire. Paris: A.-J.,1830.
TÉNOT, Eugène. Paris en décembre 1851: étude historique sur le coup d’état (5e
édition). Paris: Le Chevalier, 1868
Nota
[1] Poderíamos acrescentar que, de acordo com o conceito de Luttwak, os levantes
militares de 1922 e 1924 e até mesmo o putsch comunista de 1935 no Brasil seriam golpes
de estado fracassados promovidos por “facções esquerdistas do exército”, enquanto a
chamada Revolução de 1930 seria um golpe bem sucedido promovido pela mesma fração.