Literatura e Politica No Estado Novo Ebook PDF
Literatura e Politica No Estado Novo Ebook PDF
Literatura e Politica No Estado Novo Ebook PDF
ESTADO NOVO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor
Ubaldo Cesar Balthazar
Vice-Reitora
Alacoque Lorenzini Erdmann
EDITORA DA UFSC
Diretora Executiva
Gleisy Regina Bóries Fachin
Conselho Editorial
Gleisy Regina Bóries Fachin (Presidente)
Adriano Luiz Duarte
Aguinaldo Roberto Pinto
Carlos Luiz Cardoso
Eliete Cibele Cipriano Vaz
Ione Ribeiro Valle
Gestine Cássia Trindade
José Paulo Speck Pereira
Josimari Telino de Lacerda
Katia Jakovljevic Pudla Wagner
Luana Renostro Heinen
Luis Alberto Gómez
Mauri Furlan
Editora da UFSC
Campus Universitário – Trindade
Caixa Postal 476
88040-900 – Florianópolis-SC
Fone: (48) 3721-9408
[email protected]
www.editora.ufsc.br
Adriano Luiz Duarte
organização
LITERATURA E POLÍTICA NO
ESTADO NOVO
Os concursos literários promovidos pelo
Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio em 1942 e 1944
2019
© 2018 Editora da UFSC
Coordenação editorial:
Flavia Vicenzi
Capa:
Alicia da Costa Edwirges
Editoração:
Laís Tomaselli Krause
Alicia da Costa Edwirges
Revisão:
José Renato de Faria
L776
Literatura e política no Estado Novo [recurso eletrônico] : os concursos literários
promovidos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1942 e 1944 /
Adriano Luiz Duarte, organização. – Dados eletrônicos. – Florianópolis : Editora
da UFSC, 2019.
463 p.
Contém as seguintes obras: Pedro Maneta (1942) de Paulo Lício Rizzo,
Julho,10! (1942) de Leda Maria de Albuquerque e Maria Luisa Castelo Branco,
Fundição (1944) de Leão Machado.
ISBN 978-85-328-0837-0
Inclui bibliografia
E-book (PDF)
br.creativecommons.org
SUMÁRIO
6 Chafurdando na ideologia
13 Nota do organizador
267 JULHO,10!
Leda Maria de Albuquerque
e Maria Luisa Castelo Branco
310 FUNDIÇÃO
Leão Machado
OS CONCURSOS
Em 12 de fevereiro de 1942, a portaria no 794, assinada pelo então
ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes
Filho, instituiu o “Concurso Nacional de Romance e Comédia para
Operários”. Ao que tudo indica, essa foi a primeira vez que o MTIC
promoveu um concurso literário, que se repetiria apenas em 1944.2
A portaria definia:
1
Williams, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht. London: Hogarth Press, 1987. p. 18.
Tradução minha.
2
Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 91, p. 74-77, mar. 1942.
16 Literatura e política no Estado Novo
3
Uma excelente descrição do funcionamento do SRO está em Bretas, Ângela. Nem só de
pão vive o homem: criação e funcionamento do Serviço de Recreação Operária, 1943-1945.
Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
4
Gomes, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice; Rio de Janeiro:
Iuperj, 1988.
18 Literatura e política no Estado Novo
5
Essa informação encontra-se na contracapa de todos os exemplares postos em circulação.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 19
6
Todas as referências ao concurso promovido pelo MTIC estão no processo no 5.302
MTIC de 1942. Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 91, p. 74-77, mar. 1942.
7
Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 97, p. 80-81, set. 1942. Osvaldo Orico, aos 36 anos,
ingressou na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 10, na sucessão de
Laudelino Freire. Viriato Correia foi jornalista, contista, teatrólogo e autor de histórias
e livros infantis. Ocupou a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras. Mário Nunes
dedicou a vida jornalística ao teatro, foi colunista do Jornal do Brasil, sendo por décadas
o principal crítico teatral do jornal. Rafael Barbosa, ao que tudo indica, era funcionário
de carreira ligado à Academia Brasileira de Letras. Benjamin Lima foi teatrólogo,
crítico literário, advogado, professor e jornalista. Foi um dos fundadores da Academia
Amazonense de Letras. José Lins do Rego Cavalcanti ingressou no Ministério Público
como promotor em Manhuaçu. Em Maceió, tornou-se colaborador do Jornal de Alagoas e
passou a fazer parte do grupo de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque
de Holanda, Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti, Aloísio Branco e outros. Ali publicou o
20 Literatura e política no Estado Novo
seu primeiro livro, Menino de engenho (1932), que mereceu o Prêmio da Fundação Graça
Aranha. Em 1933 publicou Doidinho, o segundo livro do “Ciclo da Cana-de-Açúcar”.
Luiz Carlos Peixoto de Castro foi teatrólogo, poeta, pintor, caricaturista e escultor. Teve
várias atividades paralelas ao teatro, trabalhando em jornais e revistas, como redator e
caricaturista. Henrique Pongetti, jornalista e dramaturgo. Escreveu para grandes atores
como Procópio Ferreira, Manuel Pêra, Raul Roulien e Jaime Costa, nas décadas de
1940 e 1950. Foi também responsável pelos roteiros dos filmes Grito da mocidade e Favela
dos meus amores, este último dirigido por Humberto Mauro. Assinou por trinta anos uma
coluna com crônica diária no jornal O Globo, e dirigiu a revista Radiolândia. A. G. de
Oliveira Neto e Brígida Peixoto, possivelmente funcionárias de carreira do MTIC,
tiveram o papel de secretariar as duas comissões.
8
Sobre o concurso de 1942, ver: Duarte, Adriano. “Julho, 10! As artes da política e a
política das artes nos anos 1940”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, p. 544-570, jul./dez.
2015. E também: Duarte, Adriano. “Pedro Maneta e o concurso literário promovido pelo
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1942”. Revista Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 29, n. 59, p. 687-706, set./dez. 2016.
9
Sobre o concurso de 1944, ver: Duarte, Adriano. “Fundição: o concurso literário para
operários promovido pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1944”.
História e Perspectivas, Uberlândia, v. 29, n. 55, p. 51-77, jul./dez. 2016.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 21
PEDRO MANETA
Paulo Lício Rizzo nasceu em Campinas, São Paulo, em 23 de
outubro de 1922, filho do pastor presbiteriano Miguel Rizzo e de
Maria Lício Rizzo. Pedro Maneta foi escrito quando Paulo Rizzo tinha
dezenove anos e ajudava seu pai na escola dominical da igreja em que
era ministro, no bairro paulistano da Mooca. A família Rizzo morava
do outro lado da cidade, no elegante bairro de Higienópolis, e talvez
essa distância – geográfica e social – tenha dado ao seu olhar um
sentido aguçado para as características do bairro, que nem os próprios
moradores, na maioria das vezes, pareciam perceber. Entre 1942 e 1946,
Rizzo cursou a faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana do Brasil,
em Campinas, sendo ordenado ministro em janeiro 1946. Quatro
meses depois, seguiu para o Seminário Presbiteriano de Princeton, para
aprimorar sua formação. Antes de seguir para os EUA, casou-se com
Cecília Borges Rizzo. Terminado o curso em Princeton, atuou como
jornalista, editando o periódico bimestral Aurora Evangélica, dirigido
à comunidade de língua portuguesa da cidade de New Bedford, onde
também foi pastor na Christ Presbyterian Church. Em 1948, recebeu uma
proposta de trabalho na Escola de Línguas do Exército Estadunidense,
em Monterrey, na Califórnia. No início de 1950, a família Rizzo retornou
ao Brasil, instalando-se em São Caetano do Sul, no ABC paulista, onde
Paulo Rizzo permaneceu como pastor da Igreja Presbiteriana Filadélfia
até sua morte prematura em 1957, aos 34 anos de idade.10
Pedro Maneta tem um enredo simples, centrado na vida da família
Martinez, de 1910, quando deixa a Espanha, pelo porto de Barcelona,
ao início dos anos 1940, quando, finalmente, tem seus direitos sociais
reconhecidos pelo Estado Novo. A narrativa tem início em julho, quando
a família Martinez se instala no bairro paulistano da Mooca: os irmãos
João e Augusto Martinez, D. Encarnação, mulher de João, e o pequeno
Pedro Martinez, filho do casal. A família Martinez havia feito, na
10
Todas as informações foram obtidas na entrevista com Cecília Borges Rizzo. Esta seção
foi inspirada em Duarte, Adriano. “O enigma Paulo Lício Rizzo nos arquivos do FBI,
1949-1950: de estudante premiado a ‘pastor comunista’”. In: Fortes, Alexandre et al.
Cruzando fronteiras: novos olhares sobre a história do trabalho. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2013.
22 Literatura e política no Estado Novo
11
Os espanhóis responderam por 22% dos cerca de 5 milhões de imigrantes entrados no
país entre 1820 e 1930. Do total de emigrantes espanhóis para as Américas, o Brasil
recebeu “apenas” 15% do total, tendo o maior fluxo se dirigido à Argentina, cerca de
36%, e Cuba, cerca de 25% do total. A origem dos espanhóis entrados no Brasil variou
ao longo do tempo. Antes de 1910, a maioria provinha das regiões costeiras do norte e
leste do país: galegos, bascos, navarrenses. O segundo maior grupo provinha de postos
mediterrânicos: Barcelona, Valência e Málaga. Em 1910, esse fluxo se altera com a
proibição, pelo governo espanhol, dos contratos subsidiados. Uma característica singular
da imigração espanhola, presente na família Martinez, é que, entre os anos de 1910 e
1920, 23% dos espanhóis entrados no porto de Santos provinham ou da Argentina ou do
Uruguai. Ao mesmo tempo, 47% dos espanhóis que deixaram o Brasil se dirigiram para
os mesmos países, número igual aos que retornavam à Espanha. Isso pode sugerir que,
mais do que outros grupos de imigrantes, os espanhóis circularam intensamente pelas
Américas. Para mais informações, ver Klein, Herbert. A imigração espanhola no Brasil.
São Paulo: Sumaré/Fapesp, 1994. p. 35-64.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 23
12
“O que parece ocorrer não é a proletarização de indivíduos, mas a proletarização de toda
a família, através do assalariamento de todos os seus membros válidos. Compelidos ao
mercado de trabalho, os membros da família trabalhadora parecem ter adaptado suas
formas referenciais de organização familiar às características do mercado de trabalho
comandado pela indústria, e isso se deu de forma diferenciada, segundo as características
de cada mercado de trabalho regional” (p. 21). Paoli, Maria Célia. “A família operária:
notas sobre sua formação histórica no Brasil”. Tempo Social – Revista de Sociologia
da USP, São Paulo, v. 4, n. 1/2, p. 17-41, 1992.
24 Literatura e política no Estado Novo
13
O Dr. Juca Brito será a segunda pessoa a visitar Pedro Martinez na Santa Casa de
Misericórdia depois que ele sofre o acidente em que perde o braço direito; a primeira
fora seu pai. Também D. Joana, a dona da Pensão Madrid (onde se instalam João e
Pedro depois da viuvez), o ajudará, sendo extremamente maternal e responsável pela
recuperação física de Pedro depois do acidente, embora, por outro lado, ela seja uma
espécie de antítese dos espanhóis honestos, discretos e trabalhadores. D. Joana escuta
atrás das portas as conversas de todos os hóspedes, é uma fofoqueira contumaz, avarenta,
mentirosa e matreira.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 25
14
Ventura, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-
1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. Schwarcz, Lilia. O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993. Alonso, Ângela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-
Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002.
15
Para uma abordagem cujo foco é o ensaio histórico e sociológico, ver: Mota, Carlos
Guilherme. Ideologia da cultura brasileira, 1933/1974: pontos de partida para uma revisão
histórica. São Paulo: Ática, 1978. Para o foco centrado na literatura ver: Sussekind, Flora.
Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história. Rio de Janeiro: Achiamé,
1984.
16
Obviamente, esse deslocamento para uma sociedade multirracial não foi aceito
sem problemas. “O resultado não foi a formação de uma consciência coletiva, mas a
emergência [...] de uma ambivalência psicossocial em que identidade cultural é percebida
como um problema. Ambivalência que revela a tensão entre a integração à civilização e
a gênese da nação.” Ventura, Roberto. Op. cit., p. 67-68.
17
Sobre o movimento da cultura e suas transformações numa complexa interação entre
forças residuais, emergentes e dominantes, ver: Williams, Raymond. “Dominant, residual
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 27
and emergent”. In: Marxism e literature. New York: Oxford University Press, 1977.
p. 121-127.
18
Ventura, Roberto. Op. cit., p. 42.
19
Ventura, Roberto. Op. cit., p. 41.
28 Literatura e política no Estado Novo
20
Ventura, Roberto. Op. cit., p. 43.
21
Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2005.
p. 37-38.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 29
22
Ventura, Roberto. Op. cit., p. 62.
23
Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
24
Needell, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na
virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
25
Lepenies, Wolf. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996.
30 Literatura e política no Estado Novo
26
Roberto Ventura sugere que, mais do que a continuidade de ideias, o vínculo dessas duas
gerações se dá na pessoa de Graça Aranha, que, como se sabe, foi figura de destaque
na semana a convite dos próprios modernistas que o tomaram como uma espécie de
precursor. Ver Ventura, Roberto. Op. cit., p. 130.
27
Lahuerte, Milton. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização”.
In: Lorenzo, Helena; Costa, Wilma (Org.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno.
São Paulo: Unesp, 1997. p. 93.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 31
28
Hobsbawm, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
29
Andrade, Mário de. “Luís Aranha ou a poesia preparatoriana”. In: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Martins, 1974. p. 49.
30
Ibidem, p. 49.
32 Literatura e política no Estado Novo
31
Ortiz, Renato. Op. cit., p. 138.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 33
32
Weil, Simone. “Experiência da vida de fábrica”. In: A condição operária e outros estudos
sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1979. p. 129.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 35
buracos nas paredes etc. “Quase cento e oitenta operários às suas ordens
[...] como era bom dirigir um servição daqueles!” (p. 136).
Por semanas os operários estiveram envolvidos na remoção do
entulho, que era empilhado no pátio e depois removido pelas carroças de
lixo. Encontrava-se de tudo: cartuchos detonados e virgens, baionetas,
fuzis, estilhaços de granadas. Numa tarde de agosto, um dos operários
começou a desencavar o que parecia ser uma das máquinas da fábrica
e encontrou um pedaço de tira de aço azul, “encaixada num pequeno
talho de ferro fundido” (p. 140), o que parecia uma laranja com uma
pequena argola. Decidido a desenterrar a “máquina”, tentou puxá-la
pela argola, mas não surtiu efeito, continuou cavando e “notou uns
gomos quadrados na parte de ferro” (p. 140). Embora fosse um operário
experiente, não conseguia identificar aquela máquina. Apoiou a chave
inglesa entre as gretas dos gomos e forçou, “a laranja” cedeu um pouco
e ele continuou cavando. Para facilitar seus movimentos, ajoelhou-se
e com a mão direita segurou a peça enquanto a esquerda escavava o
entulho à sua volta. De repente, alguém gritou: “é uma granada, vai
explodir!”. O operário que cavava ficou estático, os outros correram.
Sem pestanejar, Pedro pegou o artefato com sua mão direita e a jogou
sobre a pilha de entulhos. Um forte estrondo sacudiu a fábrica e uma
espessa nuvem de caliça cheirando a pólvora obscureceu tudo. Quando
a caligem baixou, os operários viram uma poça de sangue que tingia os
monturos imundos junto à parede e o corpo de Pedro Martinez sem o
braço direito.
O acidente representa uma clivagem no romance. A perda do braço
foi o momento de inflexão que colocou em cena a dimensão do desamparo
e da desesperança à qual estavam submetidos os operários fabris de São
Paulo e, por extensão, do Brasil. O acidente catalisou o mundo privado
das relações familiares e dos afetos e o mundo público da experiência
fabril. A terceira visita recebida por Pedro na Santa Casa de Misericórdia
foi de sua noiva Julieta (as anteriores haviam sido do seu pai e do Dr. Juca
Brito), que sem delongas terminou o noivado, tornando ainda mais penosa
a sua recuperação. Sem amparo social, a perda do braço jogou Pedro na
condição da mais acentuada precariedade; sem recursos materiais e sem
sua noiva ele cogitou, por diversas vezes, o suicídio.
36 Literatura e política no Estado Novo
pai, João, em paralelo com seu dia de trabalho (outra forma de morte)
e a marcação do tempo no relógio anunciando o fim do expediente:
33
“O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito
à proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir
mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo,
constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis
e meios de defesa.” Brasil. Constituição (1937). Artigo no 136.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 39
34
Telles, Vera da Silva. A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza, um estudo sobre
trabalho e família na Grande São Paulo. Tese de doutorado – Universidade de São Paulo,
1992. Mimeo.
35
Andrade, Almir de. “A evolução política do Brasil”. Cultura Política: Revista Mensal de
Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano I, n. 01, mar. 1941.
36
Santos, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campos, 1979. p. 75.
37
É grande a bibliografia sobre o tema da identidade nacional. Menciono apenas alguns
trabalhos recentes a título de exemplo: Nagle, Jorge. Educação e sociedade na primeira
república. São Paulo: EPU, 1976; Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional.
São Paulo: Brasiliense, 1985; Lauerhass Jr., Ludwig. Getúlio Vargas e o triunfo do
nacionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1986; Lorenzo,
Helena; Costa, Wilma (Org.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo:
Unesp, 1997; Miceli, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,
2001; Capelato, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no
peronismo. Campinas: Papirus, 1998.
40 Literatura e política no Estado Novo
38
“A síntese político-literária operada pelo Estado Novo incorpora pensamentos e
pensadores oriundos de diferentes vertentes. Não há escolha de um tipo de romance
como sendo ‘oficial’. Não há o realismo estadonovista. Há espaço para todas as ‘literaturas’,
embora o romance social do Nordeste ocupe um lugar de grande proeminência. Não há,
igualmente, a escolha de um dos modelos regionais para compor a brasilidade. Todos,
cada um de forma especial, passam a integrar o todo. Há uma divisão de trabalho e
uma distribuição de espaços na qual intelectuais de diferentes correntes, representantes
e divulgadores de matrizes regionais distintas, podem cooperar, a exemplo dos
instrumentos musicais em uma orquestra e das vozes no canto orfeônico, como na
proposta de Mário de Andrade de compor a brasilidade.” Oliveira, Lúcia Lippi. A questão
nacional na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 197.
39
Clark, Timothy. A pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
p. 278.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 41
40
“[...] ocorrendo necessidade imperiosa, poderá a duração do trabalho exceder do
limite fixado nesta lei, seja para fazer face a motivo de força maior, seja para atender à
realização ou conclusão de serviços inadiáveis. Nas empresas de serviços públicos, ou
que interessem à produção e à defesa nacional, mediante prévia autorização do MTIC,
poderá ser facultado o trabalho contínuo.” Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 98, p. 12,
out. 1942. (Grifos meus.) Como definir exatamente o que seria “necessidade imperiosa”
ou “motivo de força maior”, a não ser a partir das próprias alegações e exigências da
direção das empresas?
42 Literatura e política no Estado Novo
41
Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 96, p. 27, ago. 1942. Esta curiosa medida pode
sugerir que os canais oficiais instituídos pela justiça do trabalho podiam levar a ganhos
efetivos, mesmo que limitados, por parte dos trabalhadores, mesmo num regime de
exceção. Para um esclarecimento dessa questão ver: Pacheco, Jairo Queiroz. Guerra na
fábrica: cotidiano operário fabril durante a segunda guerra – o caso de Juiz de Fora –
MG. Dissertação de mestrado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 1996.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 43
42
Alem, Sílvio. Os trabalhadores e a ‘redemocratização’: 1942/1948. Dissertação de mestrado
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
1981. p. 6.
43
Decretos no 5.977, no 5.978 e no 5.979, respectivamente. Boletim do MTIC, Rio de Janeiro,
n. 112, dez. 1943. Segundo Sílvio Alem, somente com este reajuste se alcançou alguma
recomposição salarial, até então corroída pelo desrespeito aos tabelamentos e pelo
crescente câmbio negro. As médias do salário compensação variaram entre Cr$ 50,00 e
Cr$ 60,00. Alem, Sílvio. Op. cit., p. 10.
44 Literatura e política no Estado Novo
44
Boletim do MTIC, n. 110, out. 1943; Boletim do MTIC, n. 102, fev. 1943; Boletim do MTIC,
n. 106, maio 1943, respectivamente.
45
Stein, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil 1850/1950. Trad. Jaime
Larry Benchimol. Rio de Janeiro: Campus, 1979. p. 167.
46
Decreto-lei no 6.688. Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 120, ago. 1944.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 45
47
Stein, Stanley. Op. cit., p. 168.
48
O Observador Econômico Financeiro, Rio de Janeiro, n. 113, p. 6, jun. 1945. Apesar dos
ganhos astronômicos, não havia a preocupação com o reequipamento e a modernização
46 Literatura e política no Estado Novo
II
49
Lenharo, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.
50
Dada a formação presbiteriana de Paulo Rizzo, me ocuparei aqui apenas dessa vertente.
Cf. Gasda, Helio Estanislau. El sentido del trabajo. Los impactos de la reconfiguración del
capitalismo contemporáneo sobre los trabajadores: por una nueva comprensión del trabajo
en la Teologia Moral. Tese de doutorado – Universidad Pontifícia Comillas, Madri, 2010.
48 Literatura e política no Estado Novo
51
Gasda, Helio. Op. cit., p. 356.
52
Gasda, Helio. Op. cit., p. 122-124.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 49
53
Gasda, Helio. Op. cit., p. 116.
54
“Um dos componentes fundamentais do espírito do moderno capitalismo, e não apenas
deste, mas de toda a cultura moderna: a conduta racional baseada na ideia de vocação
nasceu [...] do espírito da ascese cristã. [...] os elementos fundamentais do que [...] se
denominou espírito do capitalismo são justamente os que ora apresentamos como
conteúdo da ascese vocacional do puritanismo, apenas sem a fundamentação religiosa,
já desaparecida...” Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Livraria Fronteira, 1967. p. 130.
50 Literatura e política no Estado Novo
55
Telles, Vera da Silva. Op. cit.
56
A percepção de que o liberalismo não resolveria esses problemas coloca a necessidade
da intervenção estatal no mercado de trabalho para: 1o Controlar as ameaças de greve
e conter os movimentos de trabalhadores; 2o Erradicar a pobreza e levar o país ao
progresso. Gomes, Ângela de Castro. Op. cit., p. 152.
57
Ibidem, p. 153.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 51
III
Foi o sempre generoso Dr. Juca Brito que apresentou sua paciente,
Manoela, para Pedro: “Ela era mulher, mas mulher do trabalho”
(p. 184). Manoela, como as moças da Mooca, busca sua independência e
autonomia. Na sua primeira aparição ela deixa claro seu posicionamento:
58
Weber, Max. Op. cit., p. 114.
52 Literatura e política no Estado Novo
59
Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000
[1945]. p. 29-37.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 53
60
Denis, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo: Edusc, 2002.
p. 31.
54 Literatura e política no Estado Novo
61
Por essas “pílulas de sabedoria” Pedro admirava incondicionalmente o Dr. Juca Brito, mas
nem por isso deixava de observar, com certa dose de ironia e superioridade: “Há tempos
eu me julgava possuidor da fleugma de Juca Brito. Agora via que isso era impossível.
Nossas veias eram diferentes. Nas minhas corria o sangue de Dom Quixote. Nas dele o
de Pai João” (p. 197).
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 55
Ali estava Manoela, uma dona de casa diferente das outras. Parece
que o mesmo halo diáfano daquela janela da fábrica continuava a
contorná-la [...] Moça de ideias (e que ideias!) deixar todos seus
sonhos de independência para se casar comigo, um maneta...
Comecei a sentir necessidade de crer em milagres. (p. 207).
62
Elias, Norbert; Scotson, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
58 Literatura e política no Estado Novo
IV
personagem reflete sobre essa liderança, levanta uma séria dúvida sobre
as razões pelas quais agia:
Fazia tudo isso com prazer, não sei bem ao certo se por uma
vaidadezinha muito humana, se arrastado pelo exemplo de Juca Brito
ou se impulsionado realmente pelo princípio do Bem, que luta em
todos os corações contra as forças do Maligno (p. 210).
Em 1935 foi a vaidade, ele reconheceu, que o levou a se envolver
“numa aventura que por pouco não se tornou desastrosa” (p. 210). Certa
noite, a convite de Felipe, Pedro compareceu, sem saber bem ao certo do
que se tratava, a uma reunião na venda do Gimenez. Logo percebeu que
se tratava de uma reunião do diretório da Aliança Nacional Libertadora
(ANL) do bairro da Mooca. “Vi a sala cheia de fumo e cerca de vinte
homens sentados...” (p. 211). Nenhum dos presentes lhe era estranho,
conhecia todos das fábricas e ruas do bairro. Alguns, ele não via desde a
década de 1920: o Garciez, representando a gráfica paulista; Sumaquero,
representante da Cia. Wilson. Um a um foram apresentando relatórios
das suas respectivas fábricas. Concluída a exposição, discutiram o
encadeamento para o levante. Ao recém-chegado, Pedro, caberia uma
tarefa simples: neutralizar o “seu” Assunção – com o uso da força, caso
necessário – e, com seu prestígio, sublevar a fábrica. O futuro governo
revolucionário seria dividido em três comissariados – alimentação e
saúde, divertimento e esportes, e moral e instrução – presididos pelo
“camarada Martinez”.
Obviamente, a adesão de Pedro ao “levante” não resultou de
uma conversão política consciente, ou da deliberação de construir
um caminho alternativo para as difíceis condições de vida de seus
companheiros de trabalho. Por um lado, sua adesão ao levante se dá
pela vaidade de ser reconhecido como uma figura proeminente, e de
forma um tanto autoritária pelo secreto desejo de mando, revelado pelo
narrador. A distância de Pedro do comunismo é dada, por exemplo, nas
avaliações irônicas e mordazes que lhe passam pela cabeça quando lhe
são apresentados os futuros comissários. O camarada Gimenez cuidará
da alimentação e saúde: “o maldito dono da venda – comentei comigo.
Quando a revolução vencer vamos passar a feijão carunchado e arroz
com areia!”. O inepto camarada Felipe, nocauteado por ele, cuidará
dos divertimentos e esportes. O bígamo Garciez cuidará de moral e
60 Literatura e política no Estado Novo
63
Quando terminam os arranjos para o levante no bairro da Mooca, os camaradas
“Começaram a abrir garrafas e mais garrafas de vinhos relativamente caros e até
‘Champagne’ [...] Mais tarde vim a saber que tudo aquilo era roubado pelos ‘camaradas’,
empregados em fábricas de bebidas ou em casas importadoras de vinhos finos” (p. 214).
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 61
64
Em entrevista, Cecília Borges Rizzo relatou que, de fato, Paulo Rizzo nunca fora membro
do PCB, mas simpatizante; e que, durante o período de legalidade do partido, de 1945
a 1947, contribuiu financeiramente com sua organização. Segundo ela, Rizzo sempre
foi um homem de esquerda, preocupado com as desigualdades e injustiças sociais.
Entrevista concedida ao autor em 20 de janeiro de 2005.
65
“[...] um elemento deve ser aqui situado e desenvolvido. Malgrado suas análises
estratégicas e táticas, suas palavras de ordem e todo o oportunismo, o PCB conseguiu
concretizar fórmulas organizatórias, demonstrando, ao menos, durante algum tempo,
extrema competência mobilizadora.” Alem, Sílvio. Op. cit., p. 187.
62 Literatura e política no Estado Novo
66
Miceli, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 216.
67
Candido, Antonio. Prefácio. In: Miceli, Sérgio. Op. cit., p. 74.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 63
68
“Uma pequena fração dos escritores de esquerda era membro do Partido Comunista.
Uma parte considerável poderia ser melhor designada como ‘companheiros de viagem’.
Eu aplico essa expressão escorregadia e inexata àqueles que estavam no ‘movimento’,
que simpatizavam com os objetivos do partido, escreviam para a imprensa do partido
ou eram notoriamente ligados a associações patrocinadas pelo partido.” Aaron, Daniel.
Writers on the left: episodes in American literary communism. New York: Harcourt, Brace
& World, Inc., 1961. p. 9. Tradução minha.
69
Löwy, Michel. Le marxisme en Amérique Latine de 1909 à nos jours. Paris: Maspéro,
1980. Tradução minha. p. 127. Ver também: Pinheiro, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão:
a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 291.
70
Vianna, Marly de Almeida Gomes. “PCB: 1929-1943”. In: Ferreira, Jorge; Reis, Daniel
Aarão (Org.). A formação das tradições, 1989-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007. p. 352-353.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 65
71
Karepovs, Dainis. Luta subterrânea: o PCB em 1937-1938. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp,
2003. p. 25.
72
Dulles, John W. F. O comunismo no Brasil: repressão em meio ao cataclismo mundial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 202.
73
Vianna, Marly. Op. cit., p. 355.
74
Lahuerta, Milton. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização”.
In: Lorenzo, Helena; Costa, Wilma (Org.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno.
São Paulo: Unesp, 1997.
75
Estrutura de sentimento “seria uma qualidade particular da experiência social e das
relações sociais, historicamente diferente de outras qualidades particulares, que dá o
senso de uma geração ou de um período”. Williams, Raymond. Marxismo e literatura.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 133.
66 Literatura e política no Estado Novo
76
Os demais premiados foram: Faina, sob o pseudônimo de Ícaro Martins; Rosa dos Ventos,
sob o pseudônimo de Marcus; e Algodoal em flor, sob o pseudônimo de Zumar de Alencar.
Respectivamente, os autores eram: Paulo Lício Rizzo, residente à rua Irmã Serafina, 187,
Campinas; José Teles da Silva, avenida José Rufino, 276, Areas, Recife; Vinícius Meyer,
Pouso Alegre, Minas Gerais; João Francisco de Lima, rua Rodrigo Monteiro e Barros,
159, casa 4, São Paulo. A Noite, p. 2, 4 nov. 1942.
77
Laffitte, Michel. “The Vélodrome d’hiver Round-up: July 16 and 17, 1942.” Online
Encyclopedia of Mass Violence, p. 1-12. Disponível em: http://www.massviolence.org/
IMG/article_PDF/The-Vel-d-Hiv-round-up.pdf. Acesso em: dez. 2014.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 67
JULHO, 10!
78
Essa busca de legitimidade por regimes fortes parece ter se repetido. Ver Pinto, Rui
Pedro. Prémios do espírito: um estudo sobre prêmios literários da Secretaria de Propaganda
Nacional do Estado Novo. Lisboa: ICS, 2008.
68 Literatura e política no Estado Novo
79
Gramsci, Antonio. Literatura e vida nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978. p. 7.
70 Literatura e política no Estado Novo
greves, eu teria meu pai até hoje. Ele morreu, porque naquele tempo
não se tinha ainda bem compreendido o espírito de solidariedade
que deve, que tem que existir no trabalho. (p. 307).
II
Leonardo – Sei que não quer. Nenhum de nós quer. Mas, nesse
nosso ofício, é uma das poucas coisas certas... É como a morte: não
sabemos quando vem, só temos certeza de que vem um dia.
Rodolfo (Assustado) – Nunca pensei que fosse tão perigoso. (Mais
assustado) Você me enganou.
Leonardo – O que importa isto, agora? Ninguém o acreditará. Aqui
está o seu dinheiro. (Coloca sobre a mesa um maço de notas). [...]
Rodolfo – Você sempre fez pouco de mim, Leonardo. Eu sei que você
é um agitador que já trabalhou em muitos países – e para muitos
partidos, enquanto eu não passo de um pobre emigrante que vocês
utilizam, por acaso, e aceitou por ambição. (p. 300-301).
III
80
O segundo lugar, prêmio Agamenon Magalhães, foi para a peça O rei dos tecidos, de
autoria de Mário Magalhães e Mário Domingues. O terceiro lugar, prêmio Waldemar
Falcão, ficou com Novos rumos, de autoria de J. Carlos Lisboa, residente à rua Bernardo
Guimarães, no 1827, em Cristiano Diniz. Para o quarto lugar, prêmio Instituto de Pensão
e Aposentadoria dos Comerciários, foi escolhida a peça Os dois Batistas, de Aníbal de
Mello Couto, residente à travessa Vital Brasil Filho, no 5. E o quinto e último classificado,
prêmio Instituto de Pensão e Aposentadoria da Estiva, foi para a peça Operários a postos!,
de Regina Viana Borges, moradora da rua Senador Nabuco, no 12, Niterói. A Noite, p. 2,
4 nov. 1942.
81
No almoço também se fizeram presentes os jornalistas e teatrólogos Mário Magalhães
e Mário Domingues, premiados com o segundo lugar no mesmo concurso com a peça
O rei dos tecidos e também homenageados na SBAT. Todavia, nos seus arquivos só é
possível localizar a ficha de inscrição de Leda Maria de Albuquerque, na qual se encontra
apenas a data de seu nascimento em 19/08/1919.
78 Literatura e política no Estado Novo
promovido pelo MTIC. O crítico teatral Mário Nunes, que fora membro
da comissão julgadora, destacou:
82
Jornal do Brasil, p. 6, 25 dez. 1942.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 79
83
A Noite, p. 2, 4 nov. 1942. Grifos meus. Agradeço a Caroline Alamino a localização
dessa informação. A pesquisadora Kátia Rodrigues Paranhos sugeriu que Leda Maria
de Albuquerque e Maria Luisa Castelo Branco fossem operárias, mas as informações
do jornal A Noite deixam claro que se tratava de estudantes de Direito e solteiras, dado
o pronome de tratamento usado pelo entrevistador. Ver Paranhos, Kátia. “Engajamento
às avessas: textos e representações do mundo do trabalho no ‘Estado Novo’”. ArtCultura,
v. 11, n. 19, p. 107-115, 2009. Em outra matéria, na noite de estreia da peça, no Teatro
Serrador, em 23 de dezembro de 1942, a mesma informação é confirmada. A Noite, p. 8,
23 dez. 1942.
80 Literatura e política no Estado Novo
IV
84
A Noite, p. 6, 26 dez. 1942. A peça ficou em cartaz até 2 de janeiro de 1943. Reis, Ângela
de Castro. A tradição viva em cena: Eva Todor na companhia Eva e seus Artistas, 1940-
1963. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2013. p. 194. Infelizmente, não foi possível saber se
a peça foi montada em outros estados, como prometia o edital, nem o número total
de assistentes. Ver também Khoury, Simon. Bastidores: Paulo Autran, Eva Todor, Milton
Moraes, Vanda Lacerda. Rio de Janeiro: Letras & Expressões, 2001. p. 218. Agradeço à
professora Ângela de Castro Reis as informações sobre o grupo de Eva Todor.
85
Conforme anúncio no Correio da Manhã de 24 de dezembro de 1942, p. 10.
86
Huppes, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial,
2000. p. 34.
87
Ibidem, p. 10.
82 Literatura e política no Estado Novo
88
Ibidem, p. 136.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 83
89
Thomasseau, Jean-Marie. O melodrama. Trad. Claudia Braga e Jaqueline Penjon. São
Paulo: Perspectiva, 2005. (Debates, 303, p. 7).
90
Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 238-239.
84 Literatura e política no Estado Novo
91
Oroz, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas na América Latina. Rio de Janeiro:
Funarte, 1999. p. 54.
92
Braga, Cláudia. Em busca da brasilidade: teatro brasileiro na primeira república. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 85
93
Mayer, Arno J. Dinâmica da contra-revolução na Europa 1870-1950: uma estrutura
analítica. Trad. M. Gonçalves. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977.
86 Literatura e política no Estado Novo
94
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24637-
10-julho-1934-505781-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 5 nov. 2014.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 87
95
Disponível em: http://www.apasfa.org/leis/decreto_34.shtml. Acesso em: 5 nov. 2014.
96
Pinto, Sobral. Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte: Comunicação, 1979. p. 74.
88 Literatura e política no Estado Novo
de que foi vítima.97 É nesse quadro de total ausência do que Maria Teresa
chamava de “simpatia humana” que a carta de Sobral Pinto continua:
97
Moraes, Fernando. Olga: a vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler
pelo governo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
98
Pinto, Sobral. Op. cit., p. 75. Grifos no original.
99
Pinto, Sobral. Op. cit., p. 76.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 89
100
Por exemplo: Hernández, G. E. La satira chicana. México: Siglo Ventiuno, 1993; Hodgart,
M. La sátira. Madrid: Guadarrama, 1969; Hansen, J. A. Anatomia da sátira. Conferência
apresentada na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 1991.
101
Propp, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. p. 151.
102
Rocha, Rejane Cristina. Da utopia ao ceticismo: a sátira na literatura brasileira
contemporânea. Tese de doutorado – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2006.
90 Literatura e política no Estado Novo
VI
Por conta desse registro, Leda Maria teve indeferido seu pedido
de “certidão negativa de ideologias”. O pedido, na verdade, fora feito em
fins de 1948 e, ao que parece, ela desistiu da viagem, entre o pedido e a
recusa do órgão de segurança, por motivos de saúde. Em 31 de agosto
de 1950, numa das folhas do seu prontuário, há um carimbo do Serviço
de Informação sugerindo a possibilidade de haver “elemento de nome
idêntico”, mas não há mais nenhuma indicação de que pudéssemos
estar diante de homonímia. Tudo indica que Leda Maria apenas soube
103
Departamento de Ordem Política e Social, prontuário no 43.302 (Serviço de Investigação,
Setor de Controle).
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 91
104
Carlos Alberto Lúcio Bittencourt nasceu em Juiz de Fora (MG) no dia 19 de julho de
1911. Formou-se em Direito, no Rio de Janeiro, em 1932. Foi um dos fundadores do
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Elegeu-se deputado federal por Minas Gerais em
1950 e senador com o apoio da aliança PTB-PSD em 1954. Disponível em: http://www.
fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx. Acesso em: 9 abr. 2014.
92 Literatura e política no Estado Novo
VII
105
Schumaher, Schuma; Vital Brazil, Erico (Org.). Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até
a atualidade – biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 31.
106
Ribeiro, Jayme. “Os ‘combatentes da paz’: a participação dos comunistas brasileiros
na Campanha pela Proibição das Armas Atômicas (1950)”. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 21, n. 42, p. 261-283, jul./dez. 2008.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 93
107
Adorno, Sérgio. Aprendizes do poder: bacharelismo liberal na política brasileira. São
Paulo: Paz & Terra, 1988. Também Mattos, Marco Aurélio Vannucchi de. Os cruzados
da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil, 1945-1964. São Paulo:
Alameda, 2013.
108
Coelho, Edmundo Campos. As profissões imperiais. Medicina, engenharia e advocacia no
Rio de Janeiro: 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 28-29.
94 Literatura e política no Estado Novo
FUNDIÇÃO
Fundição foi escrito por Leão de Sales Machado, nascido em
Itápolis, São Paulo, em 7 de maio de 1904, filho de Venâncio Antônio
Machado e Rita Amélia Machado. Estudou sociologia rural na
universidade da Califórnia, nos EUA. Em 1929, fundou o Jornal de
Itápolis. Estreou na literatura em 1928, com o conto Cecília, na feira
literária de Herculano Vieira. Foi diretor administrativo do Instituto
Agronômico de Campinas, na gestão Teodureto de Camargo, tornando-
se seu chefe de gabinete quando ele foi alçado a ministro da Agricultura
em 1945/1946. Foi também chefe de gabinete do governador Laudo
Natel, em São Paulo, em 1966. Ocupou a cadeira no 38 da Academia
Paulista de Letras.111
109
“Se supomos que o direito não passa de um meio pomposo e mistificador através do
qual se registra e se executa o poder de classe, então não precisamos desperdiçar nosso
trabalho estudando sua história e formas. Uma Lei seria muito semelhante a qualquer
outra, e todas, do ponto de vista dos dominados, seriam Negras.” Thompson, Edward
Palmer. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Trad. Denise Bottmann. Rio de
Janeiro: Paz & Terra, 1987. p. 359.
110
Castels, Manuel. Cidade, democracia e socialismo: a experiência das associações de
vizinhança em Madrid. Trad. Glória Rodriguez. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1980. p. 81.
111
Leão Machado publicou várias obras, entre as quais as seguintes: Espigão da samambaia,
1939, romance pelo qual recebeu prêmio da Academia Paulista de Letras em 1940;
Fundição, 1944; Iperoig, 1945; Capa preta, 1960; Tempo, gente e ação, 1971. Melo, Luís
Correia. Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade
de São Paulo, 1954. p. 561. Também Menezes, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 1969. p. 746.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 95
das receitas totais de uma família operária; outros 15,33% eram gastos
na habitação; 10,56% no vestuário; e a educação consumia 0,52% da
receita familiar. Os 5,99%, restantes correspondiam a “despesas diversas”,
aí incluídos os gastos com recreação. A pesquisa mostrava que as
reclamações expostas em Fundição não eram exageradas. O aumento
médio com alimentação, nesse quinquênio, foi da ordem de 100%; com
vestuário, foi de 111%; com artigos de limpeza doméstica, 133%; e com
combustível – basicamente querosene para a iluminação das casas e carvão
para a preparação dos alimentos, para aquecer a água do banho e para
passar roupa – foi de 210%. A conclusão da pesquisa não podia ser outra:
“Podemos afirmar que o nível de vida da classe operária de São Paulo,
ao que se assemelha de motoristas, operários, contínuos e serventes da
prefeitura, é baixo e que o seu custo duplicou nestes últimos anos”.112 Uma
apresentação mais completa das condições gerais de vida dos trabalhadores
na cidade de São Paulo pode ser observada na tabela abaixo:
Relação das despesas entre operários e contínuos da prefeitura de São Paulo tendo
os meses de junho de cada ano como referência e a base média dos preços de
1939 = 100113
Ano
Itens de despesa 1939 1940 1941 1942 1943 1944
Alimentação 101,5% 106,8% 127,2% 135,9% 146,4% 199,6%
Habitação 100,0% 100,0% 100,9% 101,2% 103,6% 103,6%
Vestuário 100,1% 106,3% 121,7% 142,8% 177,3% 210,7%
Combustível 97,7% 11,2% 107,1% 172,1% 196,6% 109,6%
Assistência médico- 99,9% 106,3% 117,1% 134,0% 137,3% 182,6%
dentária
Fumo 100,0% 100,0% 119,0% 119,0% 100,0% 160,0%
Artigos de limpeza 101,7% 96,8% 105,1% 128,0% 208,2% 232,7%
Móveis 100,0% 111,0% 118,0% 124,0% 160,0% 246,0%
Transporte 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 104,2%
Despesas diversas 99,2% 104,6% 105,0% 117,6% 117,8% 117,8%
Total 100,8% 105,4% 117,6% 131,2% 146,6% 187,8%
112
Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, ano VII, v. 82, p. 12, 1944.
113
Araújo, Oscar Egídio de. “Pesquisa entre motoristas, operários e contínuos da prefeitura
de São Paulo”. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, ano VIII, v. 82, p. 7 et seq.,
maio/jun. 1947.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 99
114
Portaria no 36, de 8 de janeiro de 1942. Boletim do MTIC, Rio de Janeiro, n. 102, fev. 1943.
115
Alem, Sílvio. Op. cit., p. 237. Há uma longa controvérsia sobre o significado do decreto-lei
no 2.162, que estabeleceu o salário mínimo. Verificar: Oliveira, Francisco. “A economia
brasileira: crítica à razão dualista”. Estudos Cebrap, n. 2, out. 1972; Vianna, Luiz Werneck.
Liberalismo e sindicato no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978. p. 239; Almeida,
Maria Hermínia de. Estado da classe trabalhadora no Brasil 1930/1945. Tese de doutorado
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 1978. p. 163.
100 Literatura e política no Estado Novo
II
III
116
Bonduki, Nabil. “Crise na habitação e a luta pela moradia no pós-guerra”. In: Kowarick,
Lúcio. (Org.). As lutas sociais e a cidade. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1988. p. 111-112.
Essa discussão sobre moradia está desenvolvida no capítulo I, “Moradia: os signos da
exclusão, uma cidade para poucos”, em Duarte, Adriano Luiz. Cidadania e exclusão:
Brasil, 1937/1945. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999.
117
Além de angariar apoio popular, o congelamento dos aluguéis talvez fizesse parte de
uma medida mais ampla com o objetivo de dirigir os capitais investidos na construção
de moradias populares para o setor industrial. Embora pareça que realmente tenha
havido esse deslocamento, nada demostra que tenha sido ele o objetivo primordial do
congelamento e, sim, uma consequência.
118
A população da capital em 1940 era estimada em 1.337.844 habitantes. Portanto,
aproximadamente 1.003.383 pessoas viviam em casas alugadas. Cf. Berlinck, Manuel.
Marginalidadde social e relações de classe em São Paulo. Rio de Janeiro: Vozes, 1975. p. 50.
119
Blay, Eva Altermam. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São
Paulo: Nobel, 1985. p. 104.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 105
Para se ter uma ideia do drama que envolvia a luta pelo teto, em
1941, sociólogos da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo
realizaram um longo estudo sobre as condições de moradia na cidade.120
A pesquisa comparava cem moradias de bairros pobres (Mooca,
Canindé, Bexiga) com cem moradias dos bairros ricos (Higienópolis,
Jardim América, Pacaembu). Para cada uma das casas foram feitas 118
questões, e as conclusões ilustram tristemente as condições de habitação
da população pobre da cidade.121 Das cem moradias pobres, 91 eram
alugadas, sete eram próprias e duas cedidas por empréstimo de parentes
e amigos. O número de cômodos, incluindo cozinhas particulares, era
2,5 por moradia. Foram encontrados seis casos com quatro moradores
dividindo um único cômodo; outros três casos com cinco moradores
por cômodo; cinco casos com seis pessoas ocupando um cômodo;
três casos com oito habitantes; outros três casos com nove moradores
dividindo um único cômodo; e, por fim, um caso onde onze pessoas
dividiam o mesmo cômodo. Nesses “cômodos” estavam incluídas salas e
cozinhas. Em 55 destas cem moradias, as famílias cozinhavam em fogão
de tijolos, usavam carvão, lenha, gasolina, álcool ou querosene. Dessas
famílias, 24 não tinham cozinha própria, muitas outras cozinhavam
em seus próprios quartos de dormir, nos pátios internos e embaixo
das escadas. Essas cem moradias contavam com um total de apenas 18
tanques. Na Mooca, 32 famílias diferentes dividiam o mesmo banheiro;
no Bexiga, 27; no Canindé, 20. Em apenas três dessas cem “habitações”
o papel higiênico era de uso corrente.
Em 1944, foi realizado outro inquérito, agora pelo Serviço de
Saúde, no distrito de Santa Efigênia, abrangendo 116 cortiços, a forma
de moradia mais comum entre os trabalhadores, com um total de 706
quartos. Concluiu-se que
120
Pierson, Donald. “Habitações de São Paulo: estudo comparativo”. Revista do Arquivo
Municipal, São Paulo, ano VII, v. 82, 1942.
121
As cem moradias dos bairros pobres estavam divididas em 50 na Mooca; 25 no Canindé
e 25 no Bexiga. Embora o estudo não revele o número total de moradores, é possível
imaginar cada moradia sendo habitada, em média, por cinco pessoas, o que abrangeria
um total de quinhentas pessoas, pelo menos.
106 Literatura e política no Estado Novo
a área de cada quarto era inferior a 10 m2; 654 dos quartos não
tinham janelas; cada quarto abrigava em média 4 a 10 pessoas; em
225 moradias havia apenas seis leitos; em outras 370 as cozinhas
localizavam-se nos dormitórios. Nesses 116 cortiços havia 2.129
pessoas dividindo apenas nove banheiros, o que perfazia uma média
de 236,5 pessoas para cada banheiro.122
IV
122
Castro, Maria Antônia de. “Lares e casas”. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, ano
VII, v. 82, p. 121, 1944.
123
Marques, Xavier. “A lei do estilo”. In: A arte de escrever. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1913. p. 200-207.
124
Andrade, Mário de. “O Ateneu”. In: Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo:
Martins, 1974. p. 182.
Os concursos literários promovidos pelo MTIC, 1942 e 1944 107
algo, que digam alguma coisa à trama. Não é o caso em Fundição, pois
aqui as descrições vão e vêm sem qualquer acréscimo ao narrado. Assim
sendo, elas parecem mais floreios retóricos:
125
Para um contexto muito diferente, ver Lukács, Georg. “Narrar ou descrever”. In: Ensaios
sobre literatura. Trad. Giseh Vianna Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
108 Literatura e política no Estado Novo
BRAZ X MOOCA
MANETA
COMEÇOU ASSIM...
Cerca de 1910 (e isso não foi nenhuma surpresa), mais uma carroça
de mudança entrou, desequilibrando-se toda, na barrenta rua Xingu.
O carroceiro, negro de beiços volumosos, desceu da boleia,
agarrou a rédea junto ao freio, e dando valentes puxões gritava ao animal:
– Vamos, Princesa!
A Princesa refugou, arregalou os olhos, levantou as orelhas,
encolheu as pernas traseiras e empinou.
O carroceiro, com ar sonolento, judiou do queixo da besta, deu-
lhe com o cabo do relho, e a carroça não andou sequer meio centímetro.
“Seu” João Martinez, que se conservava pacientemente na boleia,
gritou ao carroceiro: – Ei ! Homem ! Não judie da coitada. Eu desço e
ajudo a empurrar o carro.
O carroceiro consentiu prontamente e o imigrante juntou o
ombro à grade traseira.
– Ôôôô – gemeu em solfejo baixo-profundo. O carro balançou,
os varais chacoalharam a coalheira, fazendo a gamarilha afrouxar,
enquanto a retranca, comprimindo a traseira do animal, fez com que ele
se acocorasse no barro.
– Para, para! Se empurras mais um pouco fazes o varal quebrar.
Com efeito, o solavanco dado pelo cachaço musculoso de João
Martinez fizera a carroça inclinar, e o varal enterrado no barro arcava
com todo o peso que a Princesa repudiara.
– Vem cá!...
O imigrante, meio barreado, não estranhou o ar autoritário do
carroceiro e foi executando as ordens.
– Vamos ver se levantamos os varais sem quebrá-los.
Pedro Maneta 119
Pegaram cada qual numa das pontas e, ao som de outro ôôô baixo-
profundo, já realizavam o intento, quando a correia do dorso conteve o
impulso. A Princesa havia deitado e para erguer os varais era necessário
que ela se levantasse primeiro. Foi o que Martinez tentou, dando-lhe
forte pontapé na ilharga. A mula bufou e abaixou completamente a
cabeça junto às patas dianteiras.
O carroceiro olhou desanimado, enquanto João Martinez
aplicava outro pontapé, agora no peito da besta. Estranho esse espanhol,
a princípio com tanto dó, e agora nesse frenesi incontido de bater!
– “Velho assanhado” – pensou o carroceiro, e gritou: – Para com
isso que não adianta.
– Não adianta como? – inquiriu o imigrante.
– A Princesa é assim mesmo. Quando abaixa a cabeça, não há
quem a faça levantar. O melhor é tratar de levar a carga até sua casa,
porque a roda não desatola mais. Veja como afundou...
Com efeito, o eixo de ferro já estava quase tocando o chão.
Martinez não quis esperar e afundando os pés nas poças barrosas
foi pondo nas costas os badulaques mais acessíveis.
Seriam quatro horas da tarde. A rua estava quase deserta de gente
grande. Apenas alguns moleques brincavam na enxurrada. A carroça
atolara uns cento e cinquenta metros aquém da casa que João alugara.
Ninguém poderia ajudá-lo; “Melhor!”, pensou o espanhol decidido,
“ninguém também para atrapalhar”.
Como o carroceiro estava vendo se dava jeito na besta, João foi
continuando o transporte, na expectativa de um breve auxílio.
Sua surpresa foi bem grande quando, voltando pela terceira
vez de sua casa para o local do desastre, viu a Princesa em pé e o
carroceiro sentado na sarjeta, suarento, encostado a um poste, a
descansar indiferente.
– Quem sabe poderemos chegar agora até mais adiante?
– “Num dianta” – resmungou o negro. – A carroça só sai para trás.
João que, durante o trajeto na boleia, notara o cinismo e a moleza
do carroceiro, desistiu de pedir-lhe qualquer auxílio e continuou
seu trabalho.
120 Literatura e política no Estado Novo
tílburi até a rua Nova de São José. Ali procurou ele antigos conhecidos,
que não se interessaram pelo negócio.
Felizmente, quase às 18 horas, um deles lhe indicou a casa do
Manuel da Paiva, negociante por conta própria e que não fazia muita
questão de entrar em negócios duvidosos.
Depois de muita conversa, Manual da Paiva disse que ficaria com
toda a carga, após exame a ser feito na manhã seguinte.
Enquanto Augusto negociava, D. Encarnação mostrara a Pedro as
variadas vitrines da cidade.
– Não era justo, “hermano”, que comemorássemos o fato? Além
do mais Pedro tinha fome. Fomos ao “Cavalo de Ouro” e jantamos. Aqui
nos tens “fuertes e bien comidos”.
João fê-los entrar e mandou que D. Encarnação arranjasse algum
comestível. Sugestionado pela descrição que Pedro com entusiasmo lhe
fizera do cardápio do Restaurante, sentia o estômago faminto.
Enquanto D. Encarnação encontrava um pedaço de pão e queijo,
João e Augusto conversavam sobre o golpe do dia. João, porém, ainda
um tanto incrédulo, resolveu deixar parte dos comentários para a manhã
seguinte, quando visse o dinheiro.
Pedro já se acomodara, quando a espanhola trouxe o queijo,
o pão e o vinho. Augusto e ela só quiseram o último. João comeu a valer e
quando esvaziou o quinto copo do Málaga achou que deveriam deitar-se.
Augusto estendeu-se sobre as peles de lã ao pé da cama do casal,
que nesta noite serviu para os outros três.
Não queria dizer nada. Com o frio era até muito gostoso dormirem
assim amontoados. Daí a pouco Augusto soprou a agonizante chama de
querosene e trevas quase completas encheram o quarto silencioso.
Pela bandeira da porta entrava a claridade branca da lua hibernal.
A cena anterior foi muitas vezes narrada por João e Pedro por
uma outra causa. Apesar do êxito de Augusto e do fato do negócio
com Manuel da Paiva ter sido fechado na manhã seguinte, João achava
qualquer coisa de esquisito, de errado, nas atividades do irmão. Tinha
medo de dizer-lhe, e ele julgá-lo invejoso. Por isso, calara-se. Mas mesmo
Pedro Maneta 123
nessa primeira noite que passou em São Paulo, quase não sossegou, com
medo daquela aventura.
Certo dia chamou Augusto e perguntou quando iriam arranjar
emprego.
– Que arranjar emprego, que nada! Nós vamos ganhar dinheiro,
comerciando. Hoje você sairá comigo. Vamos mandar pagar seu
empréstimo e depois venderemos algumas sementes.
João não reagiu. Apenas lamentou que há muito tempo não tecia.
– Ora tecer! Com os ordenados que dão por aí... E depois, além
de ser difícil um lugar, aqui não há fábricas de casimiras. Você precisa
aprender a lidar com algodão e juta. Coisas baixas! Não. Deixe de
histórias e ouça o meu plano:
– Quanto nós ganhamos neste meio mês de vida? 250$000... São
500$000 em um mês... Quando ganharemos isso na fábrica? Nosso
serviço de hoje em diante vai ser mais interessante. Nós vamos dar de
visitar os parentes na Argentina. Ao menos isso a morte de Aurélia
me ensinou!
– Que é isso, Augusto!
Este, porém, sublimemente possesso continuou eloquente:
– Você irá em junho e dezembro. Eu em setembro e março. E, cada
volta, já se sabe. Sementes, muitas sementes. 500$000 em sementes de
cebolas! E casimira para uso pessoal, além de outras miudezas.
João desta vez protestou: – Se você quiser, vá fazer isso; eu vou
aprender a tecer fio de juta e de algodão. Qualquer dia você cai nas mãos
da Polícia e adeus sementes com lucros de 200%.
– Medroso – foi a resposta desdenhosa.
João ferveu. Era o mal dos Martinez de Catalunha. Ferviam,
chegavam logo à ebulição. Não esquentavam apenas.
– Saia já desta casa! Irmão desnaturado. Sórdido! Crápula infame.
Pegue o que é seu e desapareça! Eu pagarei minhas dívidas, suando.
Crescerei com dinheiro limpo. Seu indecente! Rua!
– Deixa de bobagem, João; olha que eu estou querendo dar-lhe
um auxílio.
– Não preciso de auxílio dessa maneira! Rua!
– Bem – e então Augusto assumiu um ar sério, meio ameaçador.
– Mas lembre-se de que eu só lhe quis fazer bem. Se alguém tem a perder
com nossa separação é você. Insensato!
124 Literatura e política no Estado Novo
Não foi esta a única frase que João dissera em espanhol. A discus-
são toda fora feita num misto castelhano-português. Pedro, amedrontado
e excitado, ante o olhar cintilante do pai, guardou, retinindo ao ouvido,
aquelas frases marteladas:
– Usted quiere é denero de qualquiera forma! Has traído tu
profissión! En el comercio serás siempre un gatuno! Usted no nasció
para esso!
– Afinal de contas, quem começou a vida foi Pedro, com dez anos,
e não o tecelão com quarenta, exclamará o leitor.
De fato, João ficou esse dia na tentativa de começar. Para ele,
porém, desde que se estivesse fazendo esforço no sentido de realizar
alguma coisa, estar-se-ia na realidade iniciando essa obra. Isso aprendera
numa conferência que certo moralista fizera aos operários de sua fábrica,
em Buenos Aires. Sua vida confirmou e ilustrou essa verdade. Uma vez
parou o tear onde trabalhava. Enquanto ia comprar a peça, a mando
do mecânico, sua imaginação levava o tear consigo. Estudou parte por
parte no caminho. Quando voltou já havia descoberto o defeito, com
surpresa para o mecânico, que há duas horas lutava com a máquina.
– Nem era preciso esta peça – disse com autoridade.
128 Literatura e política no Estado Novo
...
FILHINHO DA MAMÃE
O “TECELÃO” MARTINEZ
Pedro chegou suando à fabrica. Apesar disso, estava tão lindo que
o porteiro comentou.
– Esses meninos bonitos logo começam a chegar tarde!
Leu o cartão de Pedro, 12,08. Doze horas e oito minutos, repetiu.
Pela primeira vez atrasado, hein, “seu” Pedro? Andaste “costurando” um
pouquinho? Essas notícias correm logo. Não precisa admirar-se, não!
O Mendonça o esperava na entrada cheia de trens e material de
pedreiro: – É assim que o senhor vai dar conta disto?
Pedro corou, ao mesmo tempo que matracava internamente:
intolerantes, esses danados em questão de horário. Afinal de contas
estamos num período irregular!
No íntimo a voz da consciência lhe dizia: não tinha nada que ir
almoçar com Julieta. Agora é isso...
– Schúa!... – Pedro escorregou num amontoado de pedras e
sentou-se de pernas abertas sobre elas.
O Mendonça ainda o viu levantar-se com o terno azul-marinho
todo manchado e entrar no lavatório espanando a roupa com a mão.
Pedro já estava no seu posto, de macacão cinzento, a dar ordens.
Como havia entulho! Só chamando a carroça de lixo. Procurou “seu”
Mendonça. Havia saído. – Por que não saiu antes de minha chegada?
Aposto que ficou esperando só para notar o atraso! Velho ranzinza!
Bem... Vamos pôr essa caliça no pátio. Talvez ainda se venda alguma
coisa...
140 Literatura e política no Estado Novo
– Bem... Não era nada. “O Dr. Almeida bem que me receitou uma
porção de remédios e ordenou que eu nem me movesse! Isso, porém,
deve permanecer oculto...” – pensou ela querendo fazer-se de forte.
– E esses pés inchados? Você os mostrou ao médico?
– Sim, ele disse que é passageiro. É dos rins. Mentira; aquilo era
do coração. O ar contrafeito do Dr. Almeida ao resmungar: “a senhora
está se matando” avivou-se-lhe na memória.
– Ainda que bem... – disse o filho desconfiado.
D. Encarnação ia saindo para a cozinha. Então ela haveria de
atrapalhar a atividade dos dois só por causa do susto passado pelo
Dr. Almeida?! Isso nunca!
Sentiu uma pontada do lado esquerdo. “Já senti outras ontem...”
Nada de fraquezas! – ordenou-lhe a vontade corajosa. A tal falta de ar
veio mais forte. Parou tonta, a mão esquerda à testa e a direita apoiada
ao batente.
João segurou-a.
– Tu não me enganas, mulher.
Carregou-a para a cama.
Pedro foi chamar o médico. Era uma noite de agosto. O frio
atravessava suas calças compridas, fustigando-lhe as pernas. Lembrou-
se daquela primeira noite de volta da fábrica... Sentiu-se pequenino.
Parece que voltava aos seus dez anos. Um temor súbito arrepiou-o todo.
Quando voltou com o médico, D. Encarnação agonizava.
Na manhã seguinte correu à fabrica para avisar que não iria e na
volta passou no serviço do pai. Falou ao porteiro.
– O mestre João Martinez não vem hoje.
– Mestre nada! O João Martinez é simplesmente ajudante de
tecelão, e por sinal que muito mole... – riu, mal-humorado e desdenhoso.
Pedro quis estourar. Suas mãos fecharam-se firmes.
Não! O porteiro não tinha ar de quem estivesse mentindo!
Raciocinou um pouco e completou: – A senhora dele morreu hoje. Era
minha mãe...
– Oh!... Eu vou avisar ao mestre... Esteja sossegado.
O porteiro tornara-se carinhoso. Pôs a mão nas costas do jovem.
– De que morreu ela?
Pedro apressou-se: – Então está avisado. Não? Até logo...
Pedro Maneta 143
Era Augusto.
Deveria cumprimentá-lo? Tinha certa curiosidade, mas essa
cortesia parecia-lhe humilhante.
“Mas é teu irmão!” Era como se D. Encarnação lhe estivesse à
frente qual um fantasma que não cansasse de repetir, como em 1910:
“Mas é teu irmão!”
“Um crápula!” – retrucava outra voz.
Olharam-se. Augusto sorriu suplicante.
João passou firme com um breve cumprimento. Depois lembrou-se:
– Ei! O que você vem fazer aqui? – temia que fosse ver o sobrinho...
Augusto – seria ele mesmo? – mostrou-lhe uns olhos grandes
muito vítreos. Falava fracamente. O nariz muito fino parecia algo de
porcelana.
– Vou tomar uma injeção.
– Você sabia que o Pedro está aí?
– Não. O que aconteceu com ele? (Como mudara a voz de Augusto!
Estava cavernosa e rouca...) Vamos sentar, tenho ainda algum tempo.
João relutou, para logo ceder, vendo o irmão imensamente pálido
e cansado. Teve uma cisma: tub... Isso mesmo; tuberculose! Quase
perguntava. Antes deveria, porém, contar a história do filho. Quando
acabou Augusto bocejou:
– Uma desgraça... uma desgraça... E você sabe? Minha vida tem
sido outra grande desgraça... Eu estou muito doente...
Pedro Maneta 145
– Do peito?
– Sim, do peito e da laringe... Foi em Buenos Aires. Logo na
terceira vez que viajei para lá. Você é quem deveria ir em junho, segundo
o meu plano. Lembra-se? Eu não podia desistir da viagem senão perderia
os vendedores. Parti com medo, lamentando que não houvesse você
para me substituir. Fui de terceira classe, como sempre. Ao desembarcar,
um oficial do porto comentou: “É a terceira vez que esse homem vem a
Buenos Aires, para visitar os parentes...” Fiquei estarrecido. Ao tomar o
automóvel senti falta de alguém para me auxiliar. Hospedei-me na casa
do Diez. Ele como sempre perguntou de você. Menti inventando notícias.
Quis contar-lhe minhas dificuldades. Ele, porém, pouco poderia
me ajudar. Confiei-as mais tarde a um dos meus vendedores. Ele
devia ter interesse em que eu passasse de volta na Alfândega, pois me
escrevera para São Paulo insistindo na minha vinda. “Arranje-se” – foi a
resposta do bandido. Pensei que poderia vir por terra. Informaram-me
que demoraria muito e as fronteiras eram bem controladas. Só se eu
quisesse chegar até o Paraguai e daí entrar em Mato Grosso. Onde iria
parar isso?! Enquanto eu hesitava, sem saber que rumo tomar, o frio ia
chegando. Meu medo começou a aumentar. Lembrei dos horrores da
asma no ano anterior. Eu precisava sair de Buenos Aires! Estava disposto
a embarcar sem contrabando nenhum. Nas horas de crise asmática,
o remorso fazia que eu tomasse dessas resoluções. Tinha temor da
morte. Comprei passagem pelo primeiro navio. O consulado visou meu
passaporte. Animei-me e arrependi de sair sem nada. Nas vésperas de
embarcar fiz um fantástico sortimento de sementes e tecidos. No porto,
o mesmo oficial da chegada olhou-me de maus bofes: “Abra a mala!”
Obedeci. Revolveu-a toda.
– Esse frasco de perfume?
– Um presente para minha mãe...
– Isso não é presente de gentinha da terceira classe! E esse corte de
seda? Quem sabe o senhor vai fazer ceroulas dele?...
– Um presente também...
O oficial bateu no fundo da mala. Chacoalhou-a. Ouviu-se um
pequeno ruído de papel. Havia descoberto tudo!... Fui parar numa
cadeia gélida e molhada. Ali passei todo o inverno, com acessos terríveis.
Não havia ninguém por mim. Só saí na primavera. Tratei de arranjar
146 Literatura e política no Estado Novo
dinheiro. Corria o dia todo até que uma tarde, ao amparar uma tossida,
meu lenço se borrou de vermelho.
Pedi abrigo na Santa Casa. Fui examinado. Minha bronquite
asmática provocara a tuberculose. Desde então tenho lutado. Treze anos
de desespero! Se não fosse meu organismo – disse-me um médico – não
viveria há muito tempo. Ainda tive forças para ganhar uns cobres e vir
até São Paulo... Ah! É bom que lhe diga. A injeção que vou tomar não é
propriamente injeção. Chama-se: pneumotórax...
– Pneu, o quê? – João estava comovido.
– Pneumotórax. É injeção de ar nos pulmões. Tratamento de
tuberculose.
– E essa capa bonita? – perguntou bondosamente.
– Ia-me esquecendo. Foi o único objeto que sobrou naquela revista
da Alfândega Argentina. Eu estava vestido com ela. Não puderam provar
que não fosse de uso pessoal. Foi-me muito útil... Hoje pode abrigar dois
de mim... Estou tão magro!...
– Mas ainda parece nova!...
– Mandei virar o pano. É casimira inglesa. Contrabando do
Uruguai... Bem, deixa-me ir tomar a “injeção”...
Levantaram-se.
– Até à vista...
– Eu te espero.
– Não é preciso...
– É, sim senhor. Deixa por minha conta...
João sentou-se desolado esperando o irmão. Uma dor profunda
subiu-lhe à garganta. Esquecera-se completamente do meio dia de
serviço que perdera.
...
...
Ora, pensar essas bobagens!... Ela não era mais criança. Em todo
caso quem lhe garantiria coragem para aquele transe difícil?
– Entre, Julieta...
Ela conheceu a voz. Não mudara muito. Isso lhe deu certo
conforto.
– Boa tarde, Pedro.
– Sente-se.
Era isso que ela estava querendo. A brancura da sala já começava
a tonteá-la.
– Melhor?
– Bastante – respondeu o doente.
“Como deveria ter estado então?!” O moço era irreconhecível
com sua cara repugnantemente despelada!
Julieta sentiu náuseas. Levou a mão em concha contra as
sobrancelhas. Fechou os olhos. Trejeitou-se.
– Não esperava sua visita. Você é muito boa...
– Ora, Pedro... – esse “Ora, Pedro”... não tinha mais aquele
gosto apimentado da mesa do Viareggio. Havia algo de contrariado na
expressão da moça.
– Você ainda me ama? – a pergunta subiu com ar suplicante, de
um sorriso feio e sem graça de Pedro.
– Ora, Pedro... – agora ela criou coragem, diante da humildade do
rapaz. – Nós nunca nos amamos!
Pedro mexeu-se na cama. Só então, Julieta percebeu uma falha
no ombro direito do moço. Que esquisito! Sim! Que horrível! Lá não
havia braço!
Pedro notou uma contração de horror no rosto da namorada.
Olhou-a sério: – Nunca?
– Nunca! E desista de gostar de mim...
Era melhor acabar tudo de uma vez! O que poderia valer um
homem, deformado no rosto, fraco, afundado numa cama e além de
tudo maneta? Não! Ela possuía um rumo a seguir! Não podia deixar-se
prender a um inválido!
Outra voz lhe martelava: “Você tem é medo! Bem que gosta
dele!...”
– Que é isso, Julieta. Você mudou tanto. Eu logo vou sair daqui e
trabalhar.
150 Literatura e política no Estado Novo
A PROMOÇÃO
outras ocasiões pelas suas próprias mãos. João não tinha medo disso.
Gostaria mesmo de trabalhar num tear armado inteiramente por ele.
E enquanto não pudesse construir um, iria reconstruindo aquele em
que o Vasquez trabalhara com tanta má vontade nos últimos anos.
Quando João começou seu trabalho naquela manhã, foi bastante
o matracar dos teares e o buliço dos auxiliares apressados para apagar-
lhe na mente uma série tenebrosa de pensamentos calamitosos. Não
dormira essa madrugada no vagão de segunda da Central. Fora horrível
a viagem em que deixava ao partir o irmão tuberculoso para encontrar,
na chegada, o filho aleijado.
A noite parecia querer esmagar todas suas esperanças de vitória.
O peso era enorme! Só a pensão de Augusto ficaria em cento e cinquenta
mil réis por mês. Informaram-lhe que os tratamentos seriam caríssimos.
Ainda se Pedro pudesse trabalhar! Mas qual! O filho ficaria
imprestável para o resto da vida. Tecer sem um braço?! Só mesmo um
milagre... Essa palavra fê-lo pensar no sobrenatural. Sim! – Será que,
além da escuridão impenetrável, haverá um Deus? Aprendera isso em
criança. Mas...
O trem sibilava serpeando sobre os trilhos. O gemido esquisito
de ferro contra ferro o acordou quando ia começando a dormir. Ficou
com dor de cabeça para o resto da viagem. Terrível começo de semana...
Desceu na estação do Norte às seis e trinta. Chovia
melancolicamente. A cabeça pesava. Não podia movê-la, sem que um
estalo profundo o fizesse fechar os olhos e caretear dolorosamente.
...
praia. “Se pudesse eliminar Augusto!... Não! Era seu irmão...” “Mas é seu
irmão!” A cena de 1910 voltou-lhe mais forte à memória.
Era preferível lutar. Conversou com Pedro. Este andava numa
apatia desoladora. Através da palidez morena de suas faces apontavam
dois malares salientes. E naquelas maçãs de rosto, chupadas sobre o
maxilar, se estampava o desânimo do operário.
– Nada de Campos do Jordão! Chega um, lá! Eu vou ficando por
aqui. Se não posso fazer nada, pelo menos não lhe vou pesar muito...
E isso não vai ser por muito tempo.
João segurou de leve o pescoço do filho entre as mãos. Fixou os
olhos semicerrados sobre o moço, que abaixara a cabeça...
– Por Deus, menino! Cria coragem! Para tudo há esperanças...
Não vá fazer alguma loucura!...
– Não sei, meu pai... É muito duro...
...
– Vá almoçar...
O pai saiu deixando-os a sós.
– Então... Vá contando aqui para o negro velho a razão dessa tristeza.
Pedro não achou muito simpática essa entrada.
– Eu também preciso almoçar. Deixe isso para outra hora.
– Por favor, menino. Eu sou seu amigo. Desabafe!
– Já desabafei bastante com meu pai... Em todo caso, como o
senhor quer se intrometer muito... – o moço exaltava-se com lágrimas
nos olhos e gesticulação apressada... – Fique sabendo que eu quero me
suicidar...
Juca espantou-se. A mesma nuvem de dúvida, que Pedro notara,
aquele domingo, na Santa Casa... Depois deu uma gargalhada, puxando
os braços para trás...
– Ora... Ora... Essas crianças me arranjam cada uma! Você já
devia ter se suicidado há muito tempo!...
– Há muito tempo?! “Negro besta” – completou no pensamento.
– Sim... – a seriedade apossou-se do dentista. – Você deveria
ter tomado veneno na Santa Casa, naqueles dias em que esteve meio
lá meio cá. Agora, que os médicos conseguiram cicatrizar-lhe a ferida.
Agora, que seu pai já sofreu tanto na incerteza de suas melhoras. Agora,
que Deus (ele frisou esse Deus) o reconduziu a esta adorável pensão
(o “adorável” foi dito com chiste). Agora, “seu” Pedro inventa de querer
morrer! Não, meu moço! Você agora está condenado ao mundo dos
vivos... É melhor desistir desse suicídio e tratar de encarar a vida na sua
realidade.
– Eu sei o que ela é – retrucou Pedro. – Um inferno.
– Que há demais em viver nesse inferno? Muitos têm vivido. Você
ainda se dê por contente. É solteiro. Inferno é a gente aturar mulher
e filharada: “Você nunca chega cedo em casa!” “Onde andou até estas
horas?” “Me dá um tostão, pai êê...” Ora bolas! Quer saber duma coisa?
Você me envergonha. Nem parece o Pedrinho que não temia arrancar
os dentes...
– Dente não é braço.
– Pinhões! Isso não é novidade. “Dente não é braço”... Ora, “seu”
Pedro! Vamos que eu tenho mais a fazer do que ouvir sua choradeira...
Tome lá e trate de ir para o almoço, sem esse ar de nenê chorão...
156 Literatura e política no Estado Novo
Juca bateu a porta deixando Pedro meio atônito, com uma nota
de 50$000 na mão.
Os senhores foram sempre tão bons hóspedes! Quem sabe se foi seu
Francisco, o copeiro?
Este, que acompanhava a discussão do alto da escada, fez menção
de protestar. D. Joana obrigou-o, porém, a desistir intimidando-o com
um olhar leonino.
– Sim – pensou o tecelão. – Bem que a cara dele era meio
denunciadora. Entretanto essa espanhola costuma mentir por todos os
poros!
Sentiu-se subitamente fraco.
Faltavam vinte minutos para uma hora.
Aquela corrida escada abaixo, a revolta que o bilhete lhe causara,
a incerteza de saber qual o autor do mesmo, tudo lhe começou a girar
caleidoscopicamente, cada vez com maior velocidade, em torno da
cabeça...
D. Joana livrou-o da queda e gritou para “seu” Francisco:
– Anda palermão! Parece que só sabes mentir e ficar parado...
Enquanto carregavam o rapaz para o quarto, a espanhola olhou aquele
rosto abatido e sentiu-se confrangida.
“Há dois meses atrás era outra coisa! E tudo isso por causa daquela
maldita granada. Podia bem ter deixado a bomba estourar nas mãos
do Soto, um velho que não faria falta a ninguém. Esse Pedro era assim
mesmo... Gostava sempre de se arriscar. Um dia tomou o dele. É a vida...”
De repente parou sua filosofia espinhosa.
– O que você está fazendo nessa porta, “seu” Francisco? Vá à
venda e me traga um pacote de maisena.
Pedro voltara a si após valentes solavancos aplicados por D. Joana.
Antes do desmaio ela fizera um treino involuntário para os músculos do
braço esfregando roupas na beira inclinada do tanque... Agora aplicava
a energia exercitada momentos antes. Suas mãos frias descansavam
sobre a cabeça do Maneta.
– Cheire um pouco disto...
O moço aspirou e desmaiou.
A mulher tampou o vidro e colocou-o no parapeito da janela,
longe de qualquer novo perigo. No rótulo lia-se em letras vermelhas:
Éter. Sacudiu o moço novamente. Esfregou-lhe o pulso. Daí a pouco ele
voltava outra vez a si. Agora não cheirou nada e continuou acordado.
160 Literatura e política no Estado Novo
...
– Entre, mas não demore muito. E tire o chapéu que isso aqui não
é mercado.
O velho passou minúsculo, em direção ao corredor da esquerda.
– Posso entrar?
– Quem é?
– Ora, o Soto...
Pedro resmungou qualquer coisa. Estava achando um tanto
atrasada aquela visita. O velho entrou com o chapéu à frente na mão.
– Meu grande Pedro. Peço desculpas de só ter vindo hoje.
– Muito ocupado? Foi a pergunta mal-humorada.
– Muito. Estive organizando uma coisa que você nunca realizou
na vida... Uma greve... Uma greve com cento e oitenta paredistas.
– Por quê?
– Por sua causa, menino. Primeiro fizemos uma lista pedindo que
a Silva Salles lhe desse uma indenização. Eles começaram a demorar e
eu então organizei a greve. Foi difícil! Muitos não queriam se arriscar.
Outros achavam melhor que esperássemos. Mas aqui o velho amigo
disse: “Não”. O Pedrinho está sofrendo e é por causa de todos nós. Então
eu haveria de esquecer o chefe?! A fábrica estava funcionando há uns
quinze dias. O Mendonça ordenara mais duas horas de serviço por dia
para poder dar conta de encomendas atrasadas. Eu expliquei aos colegas
que era do interesse deles, pois no momento a firma precisava de nós.
Nessa manhã todos haviam aderido. Resolvemos não entrar para o
segundo período, que agora vai do meio-dia às oito da noite, revezando-
se as turmas para o jantar.
O Mendonça chegou no “Fordeco” ali pela meia hora. Nós
combinamos de não dizer nada. Ele fez outra arenga ameaçadora. Suas
palavras parece que não ecoavam.
Começou a ficar nervoso ante o nosso silêncio. “O que vocês
querem? É aumento de salário? Mas a fábrica está quase estourando.”
Não obteve resposta alguma. Nós o olhávamos com certo dó. O coitado
fazia uma força para falar que só vendo! Seus olhos mexiam de um lado
para outro.
– “Mas o que é que vocês querem afinal?”
Nós respondemos a uma só voz, pois eu ensaiara bem o coro: –
Uma indenização para Pedro Martinez, que salvou a tua vida e a nossa.
162 Literatura e política no Estado Novo
...
JOÃO X JOANA
não se casa comigo? Os senhores terão roupa lavada e uma parte nos
lucros da pensão. Se o senhor quiser dirigi-la, poderá ampliá-la muito
e ganhar dinheiro. Se não, seu ordenado na fábrica e o pagamento dos
pensionistas dá muito para manter o Augusto e nós três. Que tal, hein,
meu anjo?
Do outro lado João temia que a porta se arrombasse sob o
arfar apaixonado da mulher. Uma tentação muito grande subiu-lhe
à consciência. Afinal, ele já morava ali há tanto tempo!... Sua índole
conservadora impelia-o a aceitar a proposta. Teve, porém, uma
escapatória:
– Só posso resolver depois de conversar com Pedro – disse em
voz baixa.
– Ora! (A porta voltou à posição natural...) O senhor precisa
consultar o filho para isso!
Tornou-se meiga: – João... Até nossos nomes são iguais: João
e Joana. Parece que fomos feitos um para outro. Decida agora. Sim,
Joãozinho?
– Não. Já disse que só quando o Pedro chegar...
...
Até hoje não sei o que seria de mim, se houvesse entrado para
o serviço na fábrica do Assunção, sem primeiro fazer uma visita
de agradecimento a Juca Brito. Devo dizer que o meu grande amigo
enviuvara há dois meses e a doença da esposa fizera-o contrair dívidas
pesadas. Mesmo assim, pusera na minha mão, várias vezes, uma nota.
Eu nem reparava de quanto eram, pois nunca as aceitei. Recolocava-as
no seu bolso dizendo:
– É inútil insistir...
...
Ah, aquela tarde em que mal disposto subi a velha escada de
degraus tão gastos do seu consultório! Eu não sabia o que era, mas
tudo me oprimia. Tinha certeza que não voltaria jamais a ser o Pedro
172 Literatura e política no Estado Novo
A TORNEIRA POLIDA
...
UM ACONTECIMENTO SOCIAL
Percebi então que o meu triunfo sobre aquela deficiência física e moral
ainda não se realizara completamente.
Felizmente, hoje cedo, um acontecimento extraordinário veio
distrair-me um pouco. Começo a compreender que a vida tem de tudo e,
se a gente não aproveita os seus pequeninos gozos legítimos, o tremedal
horrível de negros insucessos e dissabores sorverá nossa felicidade.
D. Joana desistira, após várias tentativas infrutíferas, do casamento
com papai.
Preparou, porém, uma vingança ainda mais “fidalga” que a do
ano passado.
Todos nós notávamos há já algum tempo maneiras diferentes na
patroa. Ela parece que vivia rindo de qualquer coisa inexistente, ou pelo
menos invisível.
No fim do mês passado, porém, tudo se esclareceu. Era hora do
jantar. Havia sobre cada prato um pequeno envelope. Ao abrir nem
acreditamos no conteúdo. “Joana Fuertes Heredia, proprietária da
Pensão Madrid – Familiar, e Francisco Sanchez Del Cano, convidam
V. Excia. e Exma. Família para seu enlace matrimonial, a realizar-se no
dia 18 p.f. às dez horas, na Matriz da Mooca.”
Embaixo um traço de lápis inutilizava a clássica hora impressa:
“Os noivos despedem-se na Igreja”.
Alguns dos hóspedes, e meu pai foi o primeiro deles, apressaram-
se em cumprimentar D. Joana, invadindo a cozinha. Eu fiquei na sala
a olhar o Francisco, miúdo e tímido, limpando com uma faca o farelo
sobre a toalha.
Ele me olhou suplicante como quem diz: “O que o senhor quer?
Ela me obrigou...”
Nisto as saudações dos pensionistas cobriram-no à minha frente.
Fui abraçar D. Joana.
– Está contente, mãezinha? Vai ter um belo esposo...
– Sim – respondeu ela com ingenuidade. – É tão meigo... Mas eu
não deixarei de te considerar meu filho. Ouviste, Pedrinho?
Os proclamas já estavam prontos quando ela convidou meu pai
e “seu” Juca Brito para padrinhos. “Seu” Francisco pediu permissão à
futura consorte para escolher outro pensionista e eu.
No quarto, papai esbravejava:
180 Literatura e política no Estado Novo
...
A MUDANÇA DE HORÁRIO
Ps. CXX
A um alto monte elevo os olhos meus
Em busca de socorro e de alegria,
E além do monte eu olho para Deus,
Pois Ele me protege noite e dia.
E ainda além meus olhos levantando,
Abrindo do Infinito novos véus,
Do Deus Excelso eu vou me aproximando,
Do Deus que fez a terra, o mar e os céus,
Do Deus que guarda a rola no seu ninho,
Que é forte e que vigia a criatura,
E determina todo o seu caminho.
À sombra desse Deus, eu, confortado,
Por Ele olhado sempre com ternura,
Jamais me sentirei desamparado.
182 Literatura e política no Estado Novo
Não sei se o leitor percebeu que, com nosso pulo para a primavera,
estamos em outubro de 1926.
Tio Augusto regressou das montanhas, contando maravilhas dos
pessegueiros de Campos do Jordão.
Afirmou-nos estar curado. Iria nos ajudar, custasse o que custasse.
– Mas não com negocinhos... – atalhou papai.
– Você quer dizer negociatas, João!
– Mais ou menos.
– Ora, mano! Minhas próximas transações serão muito sérias.
Ainda iremos ter muito dinheiro.
– Mas se você nada entende de comércio?!
– Ora, não entendo. Então vocês pensam que eu fiquei parado
lá em cima? Conversei com gente de todo canto. Pessoal sabido e
experimentado. Tenho planos bem feitos. Eu não sou mais criança.
– Olha que arquitetar planos na atmosfera leve da serra e executá-
los nas ruas abafantes desta cidade são duas coisas muito diferentes.
É melhor você arranjar um emprego, qualquer coisa mais modesta. Você
não quer mais tecer?
– Não quero e nem posso. Já perdi o gosto por isso e a posição
exigida para o serviço não convém à minha saúde. Além do mais você
não precisa temer o abafamento das ruas desta cidade porque não vou
trabalhar nelas. Meus planos levar-me-ão ao interior do Estado para
comprar café...
Lembro-me de que papai não respondeu. Vi rodear-Ihe os olhos
uma expressão de cansaço e tristeza. Pareceu-me que se sentia vítima de
grande ingratidão.
Eu não entrei na conversa dos dois. Fui para o quarto e enquanto
me aprontava ia apalpando minha musculatura. Sentia-me pleno
de poder. Minha coxa era abaulada e bem feita. Os gêmeos na perna
podiam com toda a razão ter esse nome: eram iguaizinhos em tamanho
e na forma.
Olhei-me ao espelho. Meu peito saliente e denteado pelos
músculos apresentava uma uniformidade surpreendente. No tempo
em que eu usava o braço direito, esse lado se desenvolvera muito mais
Pedro Maneta 191
– Até hoje ainda não resolveu esse negócio? O que mais você quer
que eu faça?
– Um sermão – confessei-lhe. – Um sermão sobre o casamento...
– Bem, Agora não é hora disso. Ainda nem almocei... Escute,
entretanto, uma coisa. Eu creio que você não compreende Manoela.
Aliás essas mulheres de hoje ninguém compreende mesmo! Mas ia
dizendo...
Ele falava com pose, talvez satisfeito pela oportunidade de
discursar.
– Manoela é pessoa de muito valor. Que moça ganha mais do que
ela nessas fábricas por aí?
– Nenhuma...
– Pois é. Você compreende que cento e cinquenta mil réis não
é ordenado desprezível. Eu em seu lugar abandonaria essa história de
querer sustentar tudo sozinho. É espanholada dos Martinez... Olhe
seu pai. Não o segurou ano e tanto fora do trabalho sem necessidade?
Manoela por enquanto não tem, também, precisão de abandonar o
serviço. Você se case com ela e pode ter a certeza de que o primeiro
bebê fará a moça mudar de opinião. Um filho, mesmo feio como os
meus, encanta de tal modo o coração feminino que todas essas teorias
de vida independente rolam por terra na mente da mulher. Pense bem.
A Manoela até já fez muito mostrando desejo de se casar com você.
– Eu também acho. Até hoje nem descobri o porquê dessa
preferência.
– É que ela conhece sua vida...
– O senhor andou lhe contando?
– Alguns pedaços. A história de Julieta, por exemplo.
– Logo isso... O que adiantou?
– Ela ficou revolta. Disse que sempre ouvira falar das baixezas dos
homens no terreno do amor. Nunca pensara, porém, que o belo sexo
pudesse agir de maneira até inferior à nossa. Desconfio que ela também
sofreu desilusões. Vocês têm um ponto de contato: desconfiam do sexo
oposto. Se dessa desconfiança nós conseguirmos fazer surgir confiança
entre vocês dois, será uma grande coisa.
– Nós?
– Sim nós. Eu e você. Estou disposto a ajudá-lo, se não me
considerar um intruso.
196 Literatura e política no Estado Novo
A GRANDE VITÓRIA
...
...
...
...
...
CAMINHOS DIVERGENTES
Contrastei no pensamento:
O “BAR” DO GIMENEZ
dois longos fios de arame qual trapézio de circo; mesas de ferro pintadas
de marrom e poucas coisas mais.
Venda sem higiene como as outras, na qual Manoela pouco
comprava, temendo os preços variáveis e o péssimo estado dos produtos.
Naquela noite de 1935, não parei na venda humilde do homem.
Ele me olhou com certa admiração pouco amável, quando seguindo a
Felipe passei a porta de vidro remendada com pedaços de madeira, que
me conduziu a um corredor mal iluminado, muito úmido.
Descemos alguns degraus e subitamente brilhou aos meus olhos
uma lâmpada dez vezes mais forte que a da venda.
Felipe escancarara a porta no fim do corredor de modo que a
claridade nos enfrentou subitamente.
Alguém anunciou com voz forte:
– Camarada Felipe!
Aquele “camarada” me fez entender tudo. Quis recuar, mas duas
coisas me detiveram: curiosidade e medo.
Vi a sala cheia de fumo e cerca de vinte homens sentados em
cadeiras junto às três paredes. Na quarta, atrás de uma mesa, dois
indivíduos debruçavam-se sobre a mesma, sentados em poltronas de
madeira preta entalhada.
Havia um lugar vazio no meio dos assistentes. Felipe dirigiu-se
para lá e sentou-se.
Quando passei a soleira todos se levantaram e juntos fizeram uma
espécie de “hurrah”, que me intimidou bastante.
Um dos que estavam à mesa falou em tom firme:
– O Diretório da Aliança Nacional Libertadora na Mooca convida
Pedro Martinez, cidadão espanhol, a tomar assento conosco na direção
desta assembleia.
Estranhei duas coisas: primeira, o português correto daquele
desconhecido e segundo aquele “cidadão espanhol” com que me
adjetivara. Há anos que me julgava brasileiro para todos os efeitos...
Só então notei que a poltrona do seu lado direito estava vaga.
Sentei-me, admirando minha falta de cerimônia. A casa toda me imitou,
exceto o tal desconhecido.
Percorri os presentes com o olhar.
Nenhum me era estranho.
212 Literatura e política no Estado Novo
A TERCEIRA CRUZETA
...
– É por isso mesmo que não vim. Nunca tive dúvidas de que o
senhor reprovaria minha conduta...
– E o Assunção deu uma lição em vocês... Pois é, meu Pedro. Às
vezes estou lendo minha Bíblia (Esse homem não pode ficar sério sem
falar em Bíblia!) e fico pensando que ela não é um livro muito inútil.
Olhe esses industriais apertados com o problema de operários e o
Assunção produzindo para um mercado de preços excelentes. Dizem
que tem ganho um colosso!... Ele aprendeu a vencer o mal com o bem.
É o único jeito de se acabar com revoltas e greves. Isso está na Bíblia.
“Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem...”
– Ora, seu Juca. O Assunção nunca leu a Bíblia!...
– Isso lá é. Nem você. Quem sabe você gostaria de ler um pouco.
– Eu não. Nem tenho tempo...
– Bem – disse ele, notando ironicamente o meu susto. – Mudemos
de assunto. Como vai o Augusto?
– Agora em 36 vai começar o grupo. Já tem sete anos. A
Encarnação está cada vez mais comilona. Briguenta como o pai. Bate em
moleques muito maiores do que ela. Agora deram os dois para comer
“pizza” toda tarde. Mal o “seu” Domênico aparece com a lata às costas,
eles se agarram ao avental da mãe: “Duzentão, só... Vá, mãe...”
Manoela teme que assim demais faça mal, mas tem dó de recusar.
– Qual! Criança pode comer até parafuso...
– É mesmo. E os seus?
– Olhe, Pedro. Nem quero falar! Norma e eu temos andado num
aborrecimento doloroso. Os três filhos dela nasceram mulatos e deram
para se julgarem superiores aos três da falecida Maria, que são retintos
como eu. Nunca imaginei uma coisa dessas em meu lar. Parece que são
duas famílias secularmente inimigas. Xingam-se mutuamente:
– Pretinho!
– Bode!
– Negra beiçuda!
– Mulata pernóstica!
– Ih! Meu moço... Dá vontade da gente chorar. Nem queira ver. Às
vezes tenho medo de que Norma fuja de casa...
– E ela?
220 Literatura e política no Estado Novo
– É muito boa, a coitada. Diz que tem culpa tanto como eu... Que
deve aguentar até o fim... Estou dando um jeito de mandar Antônio,
o mais velho, estudar fora. Ele, porém, é o que menos briga!
– Se eu puder ajudar em alguma coisa.
– Não adianta. Desta vez quem precisa dar um jeito sou eu...
Tive que sair para o almoço. Ao descer a escada perguntei
subjetivamente:
– Será que D. Norma normalizou de fato a vida de Juca Brito?
Uma voz muito íntima me repreendeu como se falando em nome
da experiência.
– Então você não sabe que para Juca Brito tudo é normal?
Na esquina da rua da Mooca com Ana Nery encontrei papai
voltando do serviço.
– O senhor veio a pé?
– Não. Vim de automóvel – disse brincando. – Está me achando
com jeito de tio Augusto, menino?... Há vinte anos que faço esse trajeto
e não me canso.
Já era noite e eu me sentia fraco de fome. Comecei a imaginar
como não deveria estar meu velho pai que nem almoçava na Pensão.
D. Joana, com carinho maternal, mandava-lhe todo santo dia,
na marmita de alumínio, a comida gelada, que ele devorava com banana,
pão e muito apetite.
– O senhor deve estar com fome...
– Fome, não! Posso ter apetite. Isso, todo sujeito de saúde tem.
– Papai, o senhor não é mais criança. Quem sabe nós poderíamos
arranjar-lhe um lugar na portaria da fábrica... O senhor deixaria a
Milanesa. Aquilo deve cansar muito. “Eu sei como ficar debruçado o dia
inteiro sobre um tear acaba com a gente!”
– Quem não é mais criança e por isso deveria medir melhor o que
fala é você. Então eu vou largar um serviço para o qual nasci, do qual
gosto a ponto de não poder viver sem ele, para ir trabalhar em portaria?
Ora, Pedro!... Você desista porque ninguém me desgruda mais do tear.
Chegávamos à porta da Pensão.
– Quer jantar comigo?...
– Não.
Ele passou a mão nos meus cabelos e riu com bondade. Seus
dentes apareceram quase perfeitos.
Pedro Maneta 221
meu caro!... O senhor sozinho poderia comprar muito ferro. Mas onde
guardá-lo?! Guardar! Esperar! Aí é que está o segredo. Esta guerra vai
longe e o preço do material muito mais. O pequeno comprador não pode
esperar porque precisa de seus vinte mil réis para comer amanhã. Mas
nós que temos algum dinheiro acumulado podemos gastá-lo, enquanto
acumulamos ferro que não se gasta! Que tal?
– Um plano muito bem feito para o qual o senhor não deve contar
comigo – respondi.
– Por que não, “seu” Martinez?!
– Porque eu não sirvo para negócios. Não nasci para isso.
“Usted no nasció para esso.” Com que força singular essa frase de
trinta anos repercutiu no meu coração!
– Não nasceu para isso! É. Não nasceu mesmo. O senhor veio
ao mundo para ser eternamente um operário com quinhentos mil réis
por mês e nenhum tostão no banco! Para viver naquele fundo de casa
sem a menor comodidade! Para fazer a esposa se esgotar trabalhando
na cozinha e na fábrica! (Manoela voltara a tecer numa turma que
trabalhava até as quatorze horas.) Para no fim de tudo deixar o filho
no trabalho e a filha casada com algum pobretão! Foi para isso que o
senhor veio ao mundo, “seu” Martinez?! Pense bem...
Sumaquero falava convincente e entusiasmado:
– Eu nem estou lhe pedindo que abandone o emprego. Restrinja
o tempo de trabalho apenas. O senhor fará as compras à tarde. Dou-lhe
dez por cento sobre o material que conseguir colocar no meu depósito.
Quinhentos mil réis, um conto de réis por dia, aparecem com pouco
esforço! Veja quanto o senhor irá lucrar! Pelo menos dois contos por
mês! Faça-me o favor, “seu” Pedro! Eu não estou exigindo demais em
vista do que lhe ofereço!
Confesso ter me enchido de súbito entusiasmo com a história dos
dez por cento à vista. Fiz-me, porém, de rogado.
– Quem sabe o senhor poderia arranjar outra pessoa para efetuar
essas compras?
– Não. Não existe outro Pedro Martinez neste São Paulo inteiro.
É preciso alguém que possua a simpatia e a confiança dos “ferro-velhos”.
– Terei eu tantas qualidades?
Pedro Maneta 223
...
Desde essa noite uma dúvida insidiosa começou a trabalhar em
minha mente.
Afinal de contas há trinta anos eu entrara para o serviço de
tecelagem e até então o que fizera de grande, de permanente?
Meus filhos eram vivos e sadios. Mereciam, por isso mesmo,
melhores oportunidades para seu desenvolvimento.
De repente pensava em tio Augusto. Parecia-me um aviso
aterrador. – Mas o coitado sempre se metera em transações ilícitas! Eu
iria ganhar porcentagem justa, negociando ao lado daquele homem
bem conceituado na praça – aconselhava o interesse.
Foi com esses pensamentos latejando na cabeça que entrei em
nossa cozinha para o jantar. Seriam sete horas da noite e a comida ainda
não estava pronta. Tive ímpetos de gritar e mesmo de bater em Manoela.
Lá estava minha esposa encostada ao fogão. Sorriu, como se me
cumprimentasse. Fechei o rosto. Será que ela não percebia o atraso no
horário?!
– Manoela. Devo sair logo. O Sumaquero me espera às sete e meia.
– Uhn. Espere um pouquinho enquanto eu frito estes ovos. São de
quintal. Quem sabe você queria aproveitar para tomá-los cru?
Não respondi. Achei antipático o cuidado de Manoela.
– Os meninos foram visitar o avô no hospital. Estão demorando...
Comecei a me impacientar enquanto minha mão, tremendo, fazia
a colher tocar uma desafinada melodia de encontro ao prato.
Avancei o braço até a panela de ferro e a coloquei sobre a mesa.
– Pedro. Por que você não deixa o arroz para misturar com o ovo?
Exasperei-me.
– E por que a senhora não apronta esse jantar na hora?! Onde
passou a tarde toda?!
– Estive com seu pai no hospital. Ele não está nada bem.
Olhei Manoela junto àquele fogo agonizante e triste do fogareiro
a carvão. Ventre caído, vestido largo sobre os ombros magros, parecia
224 Literatura e política no Estado Novo
muito e mostrar assim a Manoela que não eram necessários choros nem
temores pelo fato de eu me embrenhar no ramo comercial. Ingênua a
minha esposa! Se for me amarrar às suas ideias acabaremos os dois na
pobreza. Nem parece a avançada feminista de 1925...
Sumaquero entregou-me uma nota de vinte mil réis.
– Sua comissão. O senhor sempre se esquece de ficar com ela.
– Oh! Obrigado. Eu preferia receber tudo no fim do mês. O senhor
vai ficando com o dinheiro.
– Não. Nosso trato foi de eu lhe pagar à vista. Nunca deixo de
cumprir a palavra empenhada.
Aquela demonstração de seriedade pareceu-me algo ensaiada.
Apesar disso continuei a ouvi-lo com simpatia.
– Meu caro Martinez. O senhor parece que já viu a facilidade e
a seriedade do nosso negócio. Creio que não seria pedir demais se o
convidasse para o seguinte: o senhor abandonará as seis horas que ainda
lhe restam de serviço na Fábrica e dará todo seu tempo para a compra do
ferro-velho. A experiência de duas semanas feita pelo senhor autoriza-
me a repetir que com um pouco mais de esforço e tempo essas compras
poderão lhe garantir não só a subsistência como também a riqueza.
Estou verdadeiramente empolgado com sua capacidade de trabalho!
O senhor tem “bossa” para o comércio e isso é quase tudo!...
Raciocinei antes de responder: vinte mil réis vezes vinte e cinco
dias são quinhentos mil réis. Para ganhar isso eu preciso trabalhar oito
horas diárias a dois mil réis. Se eu concentrasse todas as minhas energias
no negócio, poderia na pior das hipóteses tirar uns quarenta mil réis
por dia, ou um conto por mês. Ia dando o “sim”, quando o Sumaquero
ansioso pela minha demora prosseguiu:
– Talvez minha proposta não o agrade plenamente. Vou fazer-
lhe outra melhor. Que tal mandarmos pintar na placa do depósito, em
vez de Francisco Sumaquero, esta outra firma: Martinez & Sumaquero?
O senhor, além dos dez por cento nas compras que fizer, terá uma
participação nas nossas vendas. Não fica melhor assim?
– Ótimo – afirmei. – Está feito... Amanhã mesmo vou-me despedir
do Assunção.
226 Literatura e política no Estado Novo
...
A MONOTONIA DA ROTINA
...
...
Pedro Maneta 235
...
...
...
250 Literatura e política no Estado Novo
A ORQUESTRA DESAFINOU...
...
...
...
procurar esse benefício oficial. Pagando menos de trezentos mil réis por
mês, estou morando em casa própria otimamente construída.
Manoela voltou a trabalhar meio dia no Assunção. Não seria pecar
contra a modéstia dizer que nós dois ocupamos nas respectivas salas de
serviço posições destacadas. Ela continua tecendo com superioridade e
graça. Eu comandando a valente máquina ultramoderna, que ninguém
conseguiu manejar perfeitamente.
Minha esposa cumpre todos os deveres domésticos e ainda me
ajuda grandemente na execução do orçamento financeiro.
Augusto entrou para o Curso Preliminar da Escola Profissional
Masculina. Esse curso tem o nome de Vocacional, porque nele se procura
descobrir a tendência inata de cada aluno. Tudo indica ter Augusto
nascido para a mecânica, tal o entusiasmo com que se dedica aos trabalhos
escolares. O educador da escola nos procurou há poucas semanas e dele
nos falou. Ficamos extasiados vendo que o homem conhecia o rapaz
quase melhor do que nós. Augusto não estava em casa essa noite. Fora
ao Clube de Menores Operários, mantido pelo Departamento de Cultura
do governo de nossa cidade, no Parque Pedro II. O técnico de profissões
pôde assim tirar todos os dados necessários sem que o maior beneficiado
com esse trabalho o soubesse. Ele mesmo nos preveniu:
– Não contem nada ao menimo. Se percebe que há alguém
procurando auxiliá-lo na escolha da carreira profissional, revolta-se e a
obra se torna muito difícil. O Augusto é desses tipos que gostam de fazer
tudo sozinho.
– Como esse aí... – comentou Manoela apontando-me.
– Como eu, é? – protestei. – O rapaz tem mais do seu sangue que
do meu, D. Manoela!
Quando o educador se retirava assaltou-me esta ideia:
– Estamos agora com bons rendimentos. Poderíamos mandar
Augusto para um ginásio e depois fazê-lo médico, advogado ou
engenheiro.
Logo raciocinei melhor:
– Meu filho não parece ter nascido para isso. A frase de papai –
“Usted no nasció para eso” – dita ao falecido Augusto parecia adaptar-se
perfeitamente ao Augusto que começava a viver.
Não. Não valeria a pena colocar nosso filho em posição que lhe
não fora destinada.
264 Literatura e política no Estado Novo
FIM
JULHO,10!
Leda Maria de Albuquerque
Maria Luisa Castelo Branco
268 Literatura e política no Estado Novo
PERSONAGENS
(pela ordem da entrada em cena)
PRIMEIRO ATO
que não tem medo e que no momento do perigo sabe agir melhor do que
qualquer um. Não gosto de andar elogiando meu marido, mas que ele é
decidido lá isso é. Hoje, quando começou o incêndio, ninguém sabia o
que fazer. Ficou todo mundo desnorteado. Ele pegou as nossas crianças,
tirou umas coisinhas melhores, mandou o Tião chamar o Dr. Sérgio
e correu para salvar os meninos na casa de “seu” Rodolfo. (Olhando
ansiosa para Maria Teresa) Que será que está acontecendo agora?
MARIA TERESA – Eu vou ver. (Caminha até a janela, abre-a e olha
para fora) Parece que o incêndio está sendo dominado. Diminuíram as
labaredas. Se não fosse a fumaça, eu poderia ver melhor. Mas está tudo
tão escuro... Só vejo vultos que passam correndo de um lado para outro.
ADÉLIA (Chorando outra vez) – Consegue ver o meu Cera?
MARIA TERESA – Não fique nervosa, Adélia. (Olhando para
fora outra vez) Não, não consigo vê-lo. Mas alguém está vindo para cá!
ADÉLIA (Ansiosa) – Quem é?
MARIA TERESA – Espere. Ainda está um pouco longe. Vem
correndo... Agora vejo melhor: é o Tião (Sai da janela e caminha para o
meio do palco. Tião entra ofegante, pela direita).
TIÃO – Pronto. Acabou o perigo. Apagaram o fogo e os sobrinhos
de “seu” Rodolfo já estão todos no ambulatório.
ADÉLlA – E o João? Está bem?
TIÃO (Falando muito depressa) – Aquilo está um berreiro de
criança que ninguém se entende lá dentro. O Dr. Sérgio mandou chamar
a senhora, D. Maria Teresa.
ADÉLIA (Levantando-se, segurando a beira da mesa com as mãos
crispadas e olhando fixamente para Tião) – E o meu João, ele está bem?
TIÃO (Sem olhar para Adélia) – Eu achava bom a senhora ir de
uma vez, D. Maria Teresa. Dr. Sérgio disse que havia urgência (Maria
Teresa caminha para a porta, acompanhada por Tião. Mas antes que
possam sair, Adélia pergunta outra vez).
ADÉLIA – O que aconteceu ao João? (Gritando) Diga de uma vez:
o que foi?
TIÃO (Atrapalhado) – Nada não, D. Adélia. Ele só se queimou
um pouquinho. Quando ia saindo com o sobrinho de seu Rodolfo nos
braços... (Rápido) Mas não foi nada de grave.
ADÉLIA – Eu quero ir vê-lo.
Julho, 10! 281
SEGUNDO ATO
PRIMEIRO QUADRO
ADÉLIA – Que foi que o médico achou, Dr. Sérgio? Meu marido
vai ficar curado?
SÉRGIO – Vá sossegada. Ficará completamente bom dentro de
dois ou três meses.
ADÉLIA – Obrigada, Dr., muito obrigada. (Sai rapidamente).
MARIA TERESA – Isso que você disse é verdade?
SÉRGIO – A verdade pura. Dr. Pereira garantiu que o restabe-
lecimento é certo. Como você vê, este episódio desagradável encerrou-
se da melhor maneira possível.
MARIA TERESA – Parece que não. (Apanha sobre a mesa a carta
que Adélia lhe entregou) Veja isso.
SÉRGIO (Lendo) – “Prezada senhora – Tendo chegado ao nosso
conhecimento o acidente sofrido por seu marido sentimos ter de lhe
comunicar que, visto não ter ele ocorrido durante as horas de serviço, não
lhe ficamos devendo nenhuma indenização. E como, segundo informes
de nosso médico, sabemos que ele, na melhor das hipóteses, não poderá
voltar ao trabalho durante meses, a casa n. 26 da Vila Operária não mais
ficará à sua disposição, devendo as chaves ser entregues até o dia 30, nos
escritórios da fábrica. Sem mais...” (Revoltado) Mas é impossível! Deve
haver algum engano.
MARIA TERESA – Infelizmente, não há nenhum engano. É ver-
dade que você fez esta comunicação?
SÉRGIO – Fiz. Mas esperava justamente o resultado contrário.
Pensava em obter para o João meios de subsistência, até que ficasse
completamente curado. E agora acontece isso! E você ainda quer que
eu não me revolte! (Agitado) Enquanto nós discutimos aqui onde alojar
três crianças e um homem doente, o Dr. Guilherme está se divertindo
em Buenos Aires.
MARIA TERESA – Pois para mim é justamente esta circunstância
que o inocenta. Com certeza ele não sabe o que está acontecendo aqui.
Vou escrever-lhe detalhando o caso e ele certamente me atenderá.
SÉRGIO (Mais calmo) – Quisera ter a sua confiança.
MARIA TERESA (Sorrindo) – Mas se isto faz parte de minhas
teorias... Não pode haver ódio entre duas pessoas que realmente se
conheçam, porque não existe ninguém absolutamente mau. O que
pensamos que é maldade, não passa geralmente de indiferença. Acredito
284 Literatura e política no Estado Novo
que o Dr. Guilherme não queira saber o que aconteceu ao João, mas não
acredito que, uma vez sabendo, deixe de ajudá-lo. E eu vou gritar tão
alto que ele não poderá deixar de me ouvir. (Sorrindo outra vez) Quem
sabe se a situação que nos parece tão horrível não acabará nos trazendo
benefícios? Talvez faça com que o Dr. Guilherme se interesse por nós.
SÉRGIO – Se você quer escrever-lhe, escreva. Mas eu não acredito
que essa medida vá surtir efeito.
MARIA TERESA – Também, tentar não faz mal a ninguém.
SÉRGIO – Você acha? Eu estou quase fazendo uma tentativa.
MARIA TERESA – Vai escrever também ao Dr. Guilherme?
SÉRGIO – Não se faça de desentendida. Você sabe o que eu estou
querendo tentar.
MARIA TERESA – Eu, Sérgio? Se soubesse, não disfarçava.
A sinceridade é um de meus princípios mais arraigados.
SÉRGIO – Olhe que eu tomei bem nota do que você disse. Daqui
por diante não poderá negar que (intencional, aproximando-se dela) a
sinceridade é um de seus princípios mais arraigados. Agora vai entrar
em confissão.
MARIA TERESA – Confissão? Mas se eu não tenho segredos,
nem pecados...
SÉRGIO – Não acredito. Por exemplo, você não tem nem um
amor em sua vida?
MARIA TERESA – Eu? Nem tenho tempo para pensar nisso.
Trabalho tanto que, quando me deito, meu sono é pesado demais até
para sonhar.
SÉRGIO – Mas você não tem nem vontade de ter um amor?
MARIA TERESA – Nãããão.
SÉRGIO – Sinceramente, não?
MARIA TERESA – Sinceramente, não.
SERGIO – Neste caso, desisto. Mas não vou ficar aborrecido.
Como você mesma disse, tentar não faz mal a ninguém. (Caminha para
a mesa e senta-se) Tenho de verificar algumas fichas. Você me poderia
trazer a segunda gaveta do fichário, já que está de pé e perto dele?
MARIA TERESA (Num ar exageradamente profissional) – Pois
não, doutor, pois não. (Rindo) Mas você desiste depressa. Ou será que
não fazia muita questão?
Julho, 10! 285
TIÃO – O senhor acha? Pois para tomar conta bem que sirvo.
D. Maria Teresa me deixou aqui até que “seu” Artaxerxes venha.
RODOLFO – Ele vai demorar? Eu estou precisando de uma
injeção contra gripe.
TIÃO – Qual o quê! Daqui a um pouquinho ele deve estar
chegando. Creio que o pobre não veio antes com medo de encontrar
D. Estefânia.
RODOLFO – Então eu vou esperar. (Senta-se com o pacote nos
joelhos) Você pode ir me comprar um maço de cigarros. Quando eu sair
daqui, é capaz da cantina já estar fechada.
TIÃO – Posso, sim. Não convém mesmo o senhor apanhar muito
sereno. Dr. Sérgio diz que é o pior para gripe. Mas tem de ficar tomando
conta até eu voltar.
RODOLFO – Pode ir sossegado. Aqui está o dinheiro. (Dá-lhe
o dinheiro. Tião sai assobiando pelo fundo. Rodolfo fica ainda um
momento sentado, depois vai à janela e fecha-a, olhando suspeitoso
para todos os lados. Fecha também a porta da esquerda, depois caminha
para o fichário. Abre a primeira gaveta, torna a fechá-la, faz o mesmo
com a segunda. Finalmente, a terceira parece satisfazê-lo, porque ele
a abre toda, e coloca dentro o maço de papéis. Torna a fechar a gaveta,
olha outra vez cuidadosamente em volta, abre as portas e dirige-se para
a janela. Vai abri-la quando Tião entra).
TIÃO – Pronto, “seu” Rodolfo, os cigarros.
RODOLFO – Obrigado, Tião. Sabe de uma coisa: acho que não
vou esperar pelo Artaxerxes. Estou me sentindo um pouco melhor e
prefiro não tomar nenhuma injeção.
TIÃO – Como o senhor preferir. Não veio ninguém, nem
aconteceu nada, enquanto eu estive fora?
RODOLFO – Não, não veio ninguém. Nem aconteceu nada. (Dirige-
se para a porta, mas para, antes de sair). Isto é, não aconteceu quasi nada...
Tião fica olhando admirado, sem entender, enquanto cai o pano).
SEGUNDO QUADRO
TERCEIRO ATO
PRIMEIRO QUADRO
CENÁRIO – O mesmo do primeiro ato. Ao levantar-se o pano, Maria
Teresa está escrevendo ativamente, sentada à mesa. Adélia coloca os livros
na estante.
SEGUNDO QUADRO
TERCEIRO QUADRO
D. ESTEFÂNIA – Im-por-tan-tíssimo.
ARTAXERXES – O senhor sabe que nós vamos nos casar?
DR. GUILHERME – Não, não sabia, mas já que me participam
dou-lhes meus parabéns.
D. ESTEFÂNIA – Mas a quem o senhor está dando os parabéns:
a mim ou a ele?
DR. GUILHERME – Mas aos dois, naturalmente.
D. ESTEFÂNIA – Não, porque quem merece os parabéns sou eu.
Nunca se viu noivo tão bonzinho... O meu Artaxerxes é um anjo de
ternura, de docilidade, de obediência... Resumindo: é o marido ideal.
ARTAXERXES – Nada, quem merece os parabéns sou eu. Não
há mulher mais enérgica, mais decidida, mais desembaraçada do que
minha noivinha.
D. ESTEFÂNIA – Ora, também não é tanto, queridinho. (Pausa)
Bem, mas não vamos mais tomar o tempo do Dr. Guilherme, vamos
logo ao assunto. Nós viemos aqui para tratar da demissão.
DR. GUILHERME – Bem, se a senhora vai se casar é muito
natural que queira deixar o trabalho.
D. ESTEFÂNIA – Eu? Deixar o trabalho? O senhor não entendeu.
Quem vai se demitir é o Artaxerxes. Não quero que o pobrezinho se
mate. Ele está tão magrinho...
AETAXERXES (Encabulado) – Mais tarde talvez eu volte, mas
por enquanto a Estefânia insiste em que eu repouse uns meses.
D. ESTEFÂNIA – Pois é. Mais tarde, quando você estiver mais
forte, talvez eu deixe você trabalhar um pouco, dar umas injeções de
vez em quando. Mas nada de inventar de trabalhar fora de casa, hein?
(Ameaçadora) Já preveni que não deixo.
SÉRGIO (Que vem se aproximando de mãos dadas com Maria
Teresa) – O que é que a senhora não deixa, D. Estefânia?
DR. GUILHERME – Ela não quer que o marido trabalhe. Disse
que homem, só dentro de casa... Pois está muito bem, senhor Artaxerxes,
a demissão está concedida. Se o senhor escolheu assim...
D. ESTEFÂNIA – Ele não escolheu nada. Eu é quem resolvi.
E está muito bem resolvido, não está Artaxerxes?
ARTAXERXES (Resignado) – Está. Está sim.
D. ESTEFÂNIA – Está mesmo. Não tome estes ares de vítima.
Tudo que eu resolvo dá certinho. Você lembra, Maria Teresa, quando
Julho, 10! 309
FIM
FUNDIÇÃO
Leão Machado
Fundição 311
...
...
dos que amam o trabalho, têm consciência de que estão fazendo alguma
coisa neste mundo e se comprazem com as obras que esse trabalho
realiza; outras ainda com o semblante sombrio dos que se revoltam com
o trabalho, com o dever, com a pobreza, com a vida...
A alguns Francisco somente conhecia de vista, tão distantes da sua
andavam as vidas deles. Outros ainda conhecia de perto, como Felipe,
um filho de italiano, que trabalhava no torno, o Manuel, seu futuro
cunhado, o João Sombra, alemão, que tomava conta do Almoxarifado
de ferramentas, preso do lado de dentro de uma parede de grades
metálicas, como se fosse uma gaiola, na qual ele vivia misturado com
tesouras, chaves, martelos, serras e limas.
O chefe da seção se aproximou trazendo uma peça de bronze e
um desenho.
– Esta é a peça de que falei. É de uma máquina de fabricar gelo.
Desbaste e acerte, mas repare nas medidas, porque têm de ser muito
exatas. Passe para a fresa do fundo.
Francisco atentamente considerou os riscos roxos do desenho.
Depois, olhou à roda. E fez um gesto de quem achava a coisa difícil.
Ítalo entendeu a cara e o gesto do operário.
– Eu falei para o Doutor que a coisa é difícil. Mas ele disse que
precisa experimentar.
Francisco não disse mais nada. Aquilo era uma ordem e as ordens
devem ser cumpridas. Pegou a régua, o calibre e o graminho que estavam
sobre a plaina e se encaminhou para a fresa, onde ia começar o trabalho
de desbastar e acertar aquela complicada peça de bronze.
Um velho de macacão azul, cheio de remendos, servindo na Seção
de Carregamento e Transporte, veio com um carrinho de ferro, cheio de
rodas recentemente saídas da rebarbação e descarregou-as diante de um
torno, onde outro operário já desbastava mais rodas iguais, da mesma
produção e série.
Pelo chão cimentado e cheio de buracos feitos pela queda de pesadas
peças de metal, se viam rodas, eixos, polias, chapas, peças diferentes
e estranhas que ninguém poderia dizer para que serviriam. É que o
trabalho de produção em série é uma articulação de operações diversas,
realizadas em pontos diferentes, afinal coordenadas e sintetizadas na
Seção de Montagem, de onde saem as máquinas montadas e funcionando.
314 Literatura e política no Estado Novo
...
...
...
II
Francisco chegou em casa com o tio Vicente. Viviam na rua
Campos Sales, a poucos metros da rua Piratininga, encravada mesmo
no centro do Braz.
Francisco e Bernardo, seu pai, moravam em casa do irmão
deste, o tio Vicente. Bernardo e Vicente haviam começado sua vida
em Pirassununga, quando foi instalada na cidade a fábrica de tecidos.
Vicente entendia de máquinas e, desde o primeiro dia, trabalhou como
mecânico. Bernardo se orientou para o lado da tecelagem e lá viviam
pacatamente sua vida parada de operários numa cidadezinha sossegada
do interior.
Com o decorrer do tempo, Vicente veio aperfeiçoando os
conhecimentos técnicos e, quando se sentiu capaz de enfrentar um meio
maior, mudou-se para São Paulo, onde a Guerra Europeia de 1914-1918
iniciara a organização do grande parque industrial paulistano. Todos os
anos se abriam novas fábricas e havia trabalho em quantidade sempre
crescente para todos quantos entendessem de mecânica, serralheria,
fiação, eletricidade.
Fundição 319
pouco mais. Porém, bom filho que era, aceitou alegremente o fardo, e a
vida de novo se ajustou em suas novas formas.
Bernardo passou um ano inteiro quase sempre de cama. Quando
não estava na cama, ia de uma cadeira para outra. Foi aquele um
ano bem pesado! Mas a doença cedeu um pouco e no ano seguinte o
tecelão começou de novo a andar. Não era de forma nenhuma o andar
antigo, elástico e vigoroso de homem que tem vitalidade e coragem
para enfrentar a vida. Contudo, era sempre um andar que lhe tornava
possível vender alguns bilhetes de loteria ou fazer cobranças para um
médico do centro da cidade, percebendo nisso pequenas comissões.
Tudo isso dava para pouco, mas o que dava sempre era lucro e
aliviava o esforço que fazia o filho, com vinte e poucos anos e condenado
a sustentar duas pessoas, por isso mesmo impedido de casar, como é o
legítimo desejo dos moços dessa idade.
...
...
– Casadas, também?
– Essas são as melhores, porque têm experiência.
– Pode ser – disse o rapaz, acendendo um cigarro – mas é perigoso.
– Perigoso, nada! Numa cidade grande como São Paulo, um
marido nunca fica sabendo de coisa alguma; bom, é lógico que a gente
precisa ter cuidado. Mas isso eu tenho...
O empregado veio do laboratório com o vidrinho de água-
de-colônia, que acabara de preparar. Seu Osvaldo pegou o vidro,
embrulhou-o no papel-manilha verde da bobina que havia no balcão de
mármore e entregou-o a Francisco, que se aproximara.
– Este rapaz – disse seu Osvaldo falando com o moço e mostrando
Francisco – conhece uma pequena que é uma lindeza.
E sorriu com ar malicioso. Francisco não se importou de ser
apontado diante do moço desconhecido. E perguntou:
– Quem é?
– A mulher do Diego, chefe das oficinas da Fundição Jaraguá,
onde você trabalha.
– Ah, sim, Dona Mercedes. É mesmo muito bonita...
– Mas que mulher! É clara como leite. A pele dela não tem uma
manchinha sequer. Tem os cabelos pretos, pretos, como carvão. E que
olhos! E que pernas! E os pés? Eu nunca vi pés assim tão pequenos e tão
bem feitos, o calcanhar cor-de-rosa, os tornozelos torneados, a barriga
da perna... É um colosso!
Francisco achou graça naquele deslumbramento. Sabia ele, toda
a gente do bairro sabia, que seu Osvaldo tinha um fraco decidido
pelas mulheres. O farmacêutico estava casado havia uns cinco anos
com D. Marta, filha do Ângelo, mestre fundidor da Fundição Jaraguá
e pai, também, da Cristina, a menina dos abacates. D. Marta fora uma
das mais lindas moças do Braz, no seu tempo de solteira, dessas que
fazem os homens se voltarem na rua. Seu Osvaldo estava estabelecido
com a Farmácia Avenida, na avenida Rangel Pestana, e se enamorara
da mocinha, que trabalhava numa fábrica de caixas de papelão. Ele já
tinha fama de conquistador, mas era bom partido, pois a farmácia tinha
grande movimento. Além disso, Ângelo supunha que, depois de casado,
o rapaz, como tantos outros, sossegasse. Mas seu Osvaldo, depois de
casado, não sossegou. Não sossegaria jamais. Ficou até pior. Era mesmo
um conquistador legítimo.
Fundição 325
Francisco, apesar de conhecer bem seu Osvaldo e ter com ele certa
liberdade, ficou ligeiramente desconcertado diante da sem-cerimônia
com que o outro se referira a D. Mercedes, pessoa sua conhecida. E por
isso, defendeu-a:
– D. Mercedes é uma mulher direita...
– Pois são as mulheres direitas as que mais me interessam...
E seu Osvaldo riu gostosamente. Francisco também riu, pagou a
água-de-colônia e saiu para a avenida, rumando em direção às porteiras
da São Paulo Railway.
Os bondes rodavam cheios para cima e para baixo. Os automóveis
passavam quase voando no asfalto liso da avenida. E os caminhões,
pesados e cobertos com grandes lonas, seguiam para o Rio de Janeiro
ou se dirigiam para o centro da cidade.
Na esquina da rua Domingos Paiva, Francisco parou e esperou.
E, enquanto esperava, se distraía, olhando o movimento.
...
...
Fundição 329
III
...
...
...
– Não tem nada, filho, isto está por pouco. Espero que você poderá
logo casar.
– Eu não tenho pressa, nem me queixo.
– Todo moço tem pressa de casar, principalmente quando alguém
está estorvando.
– Que conversa, papai!
Ouviram-se passos. Era Ângelo que entrava, com familiaridade.
– Oh, ainda jantando?
– Gente rica é assim – disse Vicente gracejando. – Sente-se. Quer
jantar?
– Já comi. Mas bebo um café.
D. Margarida trouxe a xícara e o açucareiro, e foi servindo o
hóspede.
– Chega de açúcar?
– Mais um pouquinho.
– Como vai o nosso negócio? – indagou Vicente.
– Vai bem. Já tenho os desenhos e amanhã vamos começar a fazer
o molde em madeira. O gerente da Fundição gostou muito e mandou
dizer que vale uns duzentos mil réis.
– Isso é o fogareiro, Vicente?
– É, sim, Margarida. Acho que vou ganhar os duzentos mil réis.
– Que bom! Então este ano poderei comprar um capote novo.
O meu já tem cinco anos e eu sou tão friorenta...
Vicente indagou:
– Você falou com o Diego do negócio da máquina?
– Falei. Ele quer conversar com a gente hoje, à noite.
– Onde? Aqui?
– Não, no Bilhar Universo. Ele espera lá às oito e meia. gostou
muito do modelo que eu mostrei.
Vicente sorriu envaidecido. Diego, o chefe geral da Fundição
Jaraguá, era um espanhol competentíssimo em tudo quanto dizia
respeito à metalurgia. A opinião dele, pois, valia bem um elogio.
– Está vendo, Francisco? – perguntou Vicente. – Você disse que o
Diego não ia gostar do modelo.
– Eu pensava mesmo. É um espanhol muito orgulhoso e para
elogiar um operário é duro.
334 Literatura e política no Estado Novo
...
Francisco não resistiu. Sua zanga não era ódio; sua zanga era
amor. Como poderia resistir ao demônio daquela lourinha tão bonita
e tão picante? E depois a esquina estava completamente deserta àquela
hora da noite...
...
...
...
340 Literatura e política no Estado Novo
2
Os operários chamam de retífica a máquina de retificação.
342 Literatura e política no Estado Novo
...
IV
– Meu pai não diz nada. Ele sabe que a filha de motorneiro de
bonde tem que tratar de seu futuro e estou cuidando do meu.
– Você não tem medo?
– Medo de quê?
Francisco não disse de quê. Estendeu o olhar para os anúncios
grudados no pano de boca que escondia a tela do cinema e não falou
mais nada.
– Olha, Francisco, a vida para uma moça bonita está para lá do
Tamanduateí.
– Para lá?
– É, na cidade, nos bairros de dinheiro. Lá é que a gente vive. Você
é homem e não repara em certas coisas. Mas mulher repara.
– Repara em quê?
– Em muita coisa. Um homem rico vale mais do que um homem
pobre. Mas com mulher a coisa é diferente. Uma mulher pobre e bonita
vale tanto como uma mulher rica e bonita. Homem gosta de mulher
bonita, seja pobre, seja rica.
– Você é bonita.
– Eu sei que sou. Também sou elegante e não sou besta. Não tenho
roupas bonitas, porque sou pobre, mas você sabe quem é que faz as
roupas finas para as mulheres ricas do lado de lá vestirem?
– Quem?
– Nós, as operárias do Braz.
Francisco pensou consigo que também eram eles os operários do
Braz que fabricavam as máquinas com que os industriais de São Paulo
ganhavam dinheiro e ficavam milionários. Pensou também que era
com o suor e o trabalho deles, todos os dias, dez horas em pé, diante
dos tornos, das fresas, dos motores, das bancas, que se construía e se
engrandecia, ano após ano, o famoso parque industrial do Estado,
o maior da América do Sul, com a sua fecunda fonte de produção, de
energia e de riqueza.
Mas Francisco não disse nada. Naquele momento suas próprias
ideias eram aborrecidas para ele, porque apoiavam os pensamentos de
Teresinha, que ele queria combater.
Não disse mais nada. Teresinha também não prosseguiu. De resto,
o intervalo terminara e a projeção ia recomeçar.
346 Literatura e política no Estado Novo
...
...
...
...
A lua, que saíra logo ao pôr do sol, estava velada pela perpétua
bruma do céu de São Paulo, essa bruma que é um pouco de mar,
misturado com outro pouco de serra e outro pouco de vento, compondo
o peculiaríssimo clima de Piratininga.
fumando. Era assim todas as noites e parecia que eles esperavam alguma
coisa, que nunca chegava a acontecer.
Cansados de ir e vir, pela rua Direita, São Bento e Viaduto do
Chá, pensaram em voltar. E foram esperar um bonde defronte à Caixa
Econômica.
O primeiro bonde que veio era da Penha e tinha como motorneiro
seu Antônio, pai de Teresinha.
– Vamos neste.
– E sentaram-se no banco da frente, ao lado do motorneiro.
O condutor puxou a cordinha ensebada. A campainha bateu duas vezes,
secamente, como quem pinga dois pontos – pim, pim. Seu Antônio
acionou o manípulo do motor e o bonde arrancou com um barulho
pesado de ferragens. E seguiram conversando.
Quando cruzaram a ponte do Tamanduateí, lá embaixo, um
ônibus amarelo alcançou o elétrico. Seu Antônio percebeu aquela
aproximação e imprimiu maior velocidade ao bonde. O condutor do
ônibus tomou a coisa como desaforo e também acelerou a marcha de seu
carro. E então começou uma porfia de velocidade. Teresinha dava gritos
de entusiasmo, estimulando o pai a correr mais. E a corrida prosseguia
sem vantagens para nenhum dos dois veículos, porque, verdade seja,
o ônibus era um ordinaríssimo calhambeque.
Seu Antônio ria de satisfação. Teresinha gritava. Mas os
passageiros do bonde e do ônibus começavam a sobressaltar-se com
aquela inexplicável correria.
Mas uma simples batida na campainha, uma breve pancada seca
de um passageiro, finalizou a corrida. Seu Antônio, contrariado, teve de
diminuir a marcha, para deter seu veículo na primeira esquina, que era
a da rua Piratininga.
Francisco pensava lá consigo que uma corrida daquelas, mesmo
às dez horas da noite, num lugar como a avenida Rangel Pestana, era
uma besteira completa. Seu Antônio, como motorneiro de bonde,
era um anônimo empregado da Light, apenas conhecido pelo número
da chapa, e o condutor do ônibus também era empregado anônimo de
uma empresa de viação, igualmente só conhecido pelo número da chapa
no boné. Que lucro teria qualquer deles em chegar primeiro, se para
os dois veículos havia horários certos? Uma competição de velocidade
entre bonde e ônibus não aproveitava a nenhum deles, nem mesmo às
352 Literatura e política no Estado Novo
...
o que ele sempre sonhara. Mas a necessidade era bem maior do que
suas preferências. Aceitou o emprego. E então a vida, o azar, o destino,
quem sabe lá o quê, começou a enrolar no Caldas uma teia terrível de
dificuldades, umas sobre outras, e ele, planejando largar a tinturaria na
próxima semana, foi ficando, ficando, e quando viu tinha aprendido o
ofício e estava sem ânimo de buscar trabalho em outra parte.
Deixou-se ficar, vencido, como tantos jovens que vêm do interior
cheios de sonhos para triunfar na Capital e na Capital se apagam
irremediavelmente em empregos anônimos, modestos e de parca
remuneração. Foi ficando, foi ficando e acabou abrindo uma tinturaria
própria, pois que a tinturaria é um estabelecimento que não exige
nenhum capital, a não ser o dinheiro para o aluguel da casa e impostos.
Falante, alegre e competente em seu ofício, acabou conquistando
certa popularidade no meio operário das imediações da rua Piratininga
e ia defendendo como podia a vidinha de homem casado e sem filhos.
Contudo, o desejo de aparecer, de ser qualquer coisa, ao menos para
mostrar-se aos conterrâneos de Itatiba, permaneceu secretamente no
fundo de seu coração, que se recusava terminantemente a aceitar a profissão
de tintureiro como solução definitiva para o problema de sua vida.
Enquanto tomavam café, o Caldas, muito falante, ia proseando
quase sozinho.
– Você soube do resultado do jogo de domingo no Parque São
Jorge?
– Ouvi dizer.
– Pois o Manuel, irmão da sua namorada, fez um bonito jogo.
O rapaz joga bem e tem futuro. Jogar futebol hoje é negócio. Pagam
muito para os bons jogadores.
– É uma profissão esquisita essa de jogar futebol, não é?
– Que nada! Trabalho é para os “trouxas”, como nós, que não
sabemos fazer outra coisa. Mas eu estou treinando a minha voz. Um dia
ainda hei de cantar no rádio.
– Deve ser difícil, não?
– Fácil não é. Você ficou torneiro numa semana?
– Bom, quando comecei nem sabia o que era uma escala.
– Então? No outro domingo eu fui cantar na Hora dos Calouros
do Elixir da Vida, na Rádio Mundial. A gente se inscreve na véspera, e
pode cantar o que quiser.
354 Literatura e política no Estado Novo
...
VI
O bonde rodava cheio para as fábricas. Em cada parada, havia
mais operários esperando condução. Todos eles vestindo roupas
velhas e coçadas, com chapéus sujos, de semblantes ainda sonolentos,
carregando sob o braço as bolsas de couro barato, onde levavam o
almoço magro e pobre.
Eram seis e meia da manhã, mas estava escuro naquele fim de
outono. Uma densa neblina cobria compactamente a cidade ainda
adormecida. A avenida Rangel Pestana estava quase deserta. Somente
trafegavam os bondes, conduzindo operários para as fábricas. As lojas
tinham as portas de ferro descidas e as casas de residência estavam
fechadas. Nenhuma luz havia mais nas ruas, além das luzes móveis dos
bondes, correndo e fendendo o nevoeiro.
Francisco ia sentado junto ao tio Vicente, que fumava com
pachorra um cigarro. O bonde não soltava passageiros. Parava somente
para recolher outros, que iam espremer os de dentro, já apertados em
desconfortável superlotação. Mas ninguém reclama, porque aquele
aperto era de todos os dias, assim uma coisa inevitável que fazia parte
do ritmo normal da existência.
– O Diego me disse que o plano da modificação do descaroçador
é bom. A Seção Técnica já está estudando os modelos e fazendo os
desenhos.
Francisco acendeu um cigarro. Atirou o palito apagado no soalho
e perguntou:
– E que disse o gerente da fábrica?
– Disse, também, que o negócio é bom. O Diego acha que vale um
dinheirão.
– Será que eles pagam?
– Isso é o que vamos ver.
Ângelo se aproximou deles, andando dificilmente dentro do
bonde que jogava com vigor. Chegou e pediu fogo.
– Hoje é dia de fundição. Acho que o seu fogareiro sai hoje. Ontem
não ficou pronta a fôrma porque tivemos que acabar uma peça grande,
que vai levar uns dois mil quilos de ferro.
356 Literatura e política no Estado Novo
...
Seu Osvaldo estava falando no telefone, quando Bernardo entrou.
Um rapazinho veio do laboratório atendê-lo.
– Eu espero. Quero falar com o seu patrão mesmo.
E sentou-se no banco. O rapaz voltou ao laboratório. E Bernardo,
sem interesse de olhar para o movimento tumultuoso da avenida, nem
para os anúncios de remédios que enchiam as paredes da farmácia, sem
querer, se pôs a ouvir a conversa telefônica. Era assunto particular, mas
o telefone estava perto, seu Osvaldo falava alto e Bernardo não podia
deixar de ouvir. O farmacêutico dizia, com os lábios perto do bocal:
– Não, ontem, não. Não pôde ser... Ah, mas você deve compreender
que é assim mesmo... Então, o que que você quer?... A Fany? Não, quem
disse isso? Não, nunca! Ora, tinha graça a Fany dizer uma coisa dessas!...
Ah, bom, naquela noite, sim. Mas isso é outra coisa. A Fany disse, apenas,
que o seu vestido era de seda artificial... Para mim era seda natural. Eu
até discuti com ela por isso. Mas você sabe que ela é teimosa... Hoje? A
358 Literatura e política no Estado Novo
que horas?... Sei, vou sim. No lugar de costume... Olhe, você traga aquela
bolsa bege. É muito distinta!... Então, combinado. Gudibai!
E seu Osvaldo desligou o aparelho e voltou-se com ar radiante
para Bernardo. Estava mesmo inteiramente feliz.
O farmacêutico era um sujeito simpático, de muito boa presença
e vestido com alguma afetação. Estava de paletó de casimira xadrez e
calças cor de havana. Uma gravata vermelha sobressaía na camisa de
seda cor de palha. Tinha as unhas polidas e brilhantes. Orçava por uns
trinta e cinco anos.
– Então, seu Bernardo!
– Bom dia. Vim aqui fazer uma consultinha.
– O que está doendo?
– Eu tive reumatismo. Agora ando sem fome, quase sem sono, com
a boca amargando e azia. Às vezes me dói a bexiga quando vou urinar...
E começou a desfiar um rosário estirado de sofrimentos. Seu
Osvaldo, com o mesmo ar radiante, ouviu pacientemente as queixas,
escreveu uma fórmula num pedaço de papel manilha, que rasgou da
bobina do balcão, mandou aviar no laboratório e cobrou seis mil réis
pelo remedinho.
– Olhe, seu Bernardo, esta fórmula é muito boa. Mas por que que
o senhor não consulta um médico?
– Médico hoje é coisa cara! Gente pobre nem pode mais ficar
doente!
– Por que o senhor não vai à Policlínica? Lá é tudo gratuito.
Tenho um amigo, o Dr. Penteado, que dá consultas às quintas-feiras.
É um médico ótimo, consciencioso e trata os operários como se fossem
clientes que pagassem.
– Vou pensar nisso. Em todo caso, quero beber o remedinho do
senhor.
E Bernardo saiu levando a mezinha de seu Osvaldo, o bicarbonato
para D. Maria e pensando na Policlínica.
...
Quando Vicente chegou com Francisco, D. Margarida, ao pôr o
jantar na mesa, lhes deu a notícia:
– A moça da rua Caetano Pinto morreu.
Fundição 359
– Coitada!
– Descansou – murmurou Bernardo, com certa melancolia.
– E agora o menino?
– O menino, não sei. Lá no cortiço estavam falando em levar ele
para um orfanato do Ipiranga.
– Orfanato! Hum!...
Francisco entrou para se lavar. Vicente ficou absorto, olhando
para a parede caiada de branco da cozinha, onde havia dependurada
uma réstia com algumas cabeças de cebola, uma frigideira e um coador
negríssimo de pó de café. Bernardo permaneceu sentado no seu lugar,
sem falar nada. E D. Margarida ia pondo os pratos.
– Coitadinho do menino! – repetia ela de tempos em tempos.
Começaram a comer, em silêncio. Vicente, servindo o arroz,
perguntou:
– Não apareceu ninguém para ficar com essa criança?
– O que é que você quer? Esse pessoal aí dos cortiços é pobre
mesmo de verdade.
– Mas que despesa pode dar uma criança de cinco anos?
– Sempre é uma boca para comer... E, depois, ele precisa de
tratamento, se não também morre.
Vicente parou de comer e ficou olhando para a réstia de cebolas,
cismando com o olhar parado.
– Se eu fosse rica – disse D. Margarida –, bem que gostaria de
trazer esse menino para nossa casa.
Vicente baixou o olhar para a esposa. Contemplou-a longamente
e disse:
– Acho que podemos criar esse menino... A gente ganha pouco,
mas há de dar para mais um...
D. Margarida ergueu os olhos extasiados para o marido. Brilhava
neles uma luz estranha e era uma luz de ternura. Ela não se conteve:
– Se você quiser, eu gostava... Não tivemos mesmo filhos, não faz
mal criar o filho dos outros...
Bernardo entrou no assunto:
– Mas, Vicente, você já tem idade! Não será besteira pegar uma
criança agora?
– Bom, não sou menino. Mas ainda posso trabalhar uns dez
anos. Depois, tenho fé em melhorar de ordenado. Daqui a dez anos o
360 Literatura e política no Estado Novo
Às dez e meia, os dois saíram. A noite estava cada vez mais fria e
cada vez o vento era mais cortante.
– Noite dura para motorneiro! – falou Francisco, pensando em
seu Antônio, que dirigia seu bonde pelos descampados do Tatuapé, em
caminho da Penha. Abriu a porta e entrou em casa.
VII
Era dia de fundição de ferro. Logo na primeira hora de trabalho
fora aceso o forno Coubilot e em seguida ligados os dois grandes
ventiladores que atiravam no seu interior uma poderosa corrente de
ar. Ali pelas nove horas, fora lançada na boca já afogueada do forno a
primeira carga de trezentos quilos de ferro-gusa em lingotes quebrados
e sucata de ferro. A essa carga seguiu-se uma quantidade de carvão de
pedra e duas pás de pedra calcárea em briquetes. E o forno, com esses
materiais e o ar violentamente soprado pelos ventiladores, começou a
assobiar estridentemente, enquanto labaredas alaranjadas saíam pelo
cimo da chaminé.
Ângelo, desde a véspera, tinha já preparadas no chão as
fôrmas armadas em terra. Mas os formeiros completavam as que não
estavam acabadas ou iniciavam outras para peças pequenas e simples.
Os modelos de madeira, sobre os quais as fôrmas eram armadas, já
haviam sido retirados e recolhidos ao depósito.
A galga rodava, moendo terra. Um operário, ao seu lado, peneirava
terra e areia. E os homens, agachados no chão, iam alisando o interior
das fôrmas com pauzinhos polidos e colheres de ferro.
Os ajudantes da fundição preparavam as panelas para transportar
o metal fundido. Outros, que trabalhavam no forno, iam tratando de
retirar da parte de trás a primeira borra de ferro, que começava a sair com
as impurezas apuradas no metal em fusão. De tempo em tempo, abriam
a porta com uma longa vara e jorrava por ali um jato barulhento, com
milhares de fagulhas, como estrelas de uma peça pirotécnica. Depois
dessa descarga, um operário, de grossos óculos pretos protegendo-lhe
toda a órbita ocular, manobrava procurando facilitar a saída da escória
pela bica. E a escória ia saindo lentamente e pingando no solo um pingo
que se alongava, como uma baba de fogo, caindo quebradiça como vidro.
Fundição 363
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366 Literatura e política no Estado Novo
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Fundição 367
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VIII
No domingo de setembro, cheio de fumaça que caía pesadamente
sobre a cidade, Bernardo se sentara para tomar sol, na curta nesga que
havia no quintalzinho da casa. D. Margarida fora à missa, levando
Joãozinho. E Vicente aproveitava a folga domingueira para trabalhar na
gaiola que estava fabricando com suas próprias mãos para o menino.
A gaiola era de arame grosso, montada em sarrafos de madeira.
Vicente, com sua habilidade manual de mecânico, ia assentando as
varetas, retorcendo as pontas de arame, com um alicate, acertando
as extremidades nos sarrafos.
Bernardo, com um jornal nas mãos, às vezes deixava a leitura para
acompanhar com os olhos o paciente trabalho do irmão.
– Está adiantada...
– Podia estar mais, se eu quisesse fazer uma coisa matada. Mas
vai indo bem.
O silêncio recaiu sobre os dois. Pombas alvas voavam no céu
enfumaçado, às vezes sumindo-se atrás das casas, às vezes reaparecendo
no fundo do firmamento. Um vento leve mexia com as folhas de um
limoeiro no quintal vizinho. E o limoeiro estava salpicado de flores, que
exalavam um aroma delicioso.
– Os tempos andam ruins! Há muitos dias que não faço nada.
372 Literatura e política no Estado Novo
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IX
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Fundição 381
– É mesmo! O que o meu pai não tem eu hei de ter quando for velho...
Teresinha não entendeu:
– O que que você disse?
– Disse que o meu pai não tem aposentadoria porque quando
veio a lei ele já não estava mais trabalhando. O homem está dizendo
que os operários de hoje, quando ficarem velhos, não precisarão ser
sustentados pelos filhos, como são sustentados os operários velhos de
antigamente. Isso é uma verdade. Esse homem é um colosso!
O orador prosseguia:
– “A grandeza moral desta lei tão justa e tão humana é que ela
estabelece um elevado princípio objetivo de solidariedade, tão necessário
aos homens, porque, pelo mecanismo dos Institutos de Aposentadoria
que o Brasil possui, cada um contribui para todos e todos contribuem
para cada um. Eu pago hoje para todos os aposentados de agora e todos
pagarão para mim quando eu já não puder mais produzir nenhum
trabalho com as minhas mãos ou com a minha inteligência. É grande
esta lei porque veio mostrar que era uma injustiça dolorosa deixar à
margem da vida, esquecidos e abandonados, os velhos já incapazes de
trabalhar, desprezando-se totalmente a circunstância de que tais velhos,
em seu tempo de moços e de atividade, haviam trabalhado e produzido.
Era doloroso a um homem saber que, no seu tempo, o seu esforço de
trabalho fizera o mundo caminhar, para diante e, uma vez velho, verificar
que tudo fora perdido, porque tudo então lhe era negado. O trabalho,
na sociedade, acaba sendo um patrimônio comum, porque é de todos
e deve também produzir benefícios que alcancem a todos. Quem vive o
dia de hoje deve se lembrar de que foram os homens que já morreram
que construíram as suas casas. As estradas de ferro, que hoje nos servem,
foram abertas por homens que já morreram. As máquinas, com que
ganhamos hoje o nosso pão, foram fundidas por homens que já não
trabalham mais. E nós, que recebemos do passado o que ele pôde fazer e
acumular, temos o dever de construir para o futuro. Nós hoje trabalhamos
para o conforto e a riqueza dos nossos filhos e dos nossos netos.
Bem haja o nome daqueles homens que, não sendo operários e
não sofrendo junto conosco nossas canseiras e incertezas, mas sentindo
com humanidade a justiça das nossas aspirações, criaram estas grandes
leis, que outros países, mais velhos, mais ricos e que se orgulham de ser
mais adiantados, ainda não possuem...”
Fundição 383
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384 Literatura e política no Estado Novo
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Mas sabia muito bem que era verdade tudo quanto o homem
dissera. Antigamente, os operários não possuíam nenhum direito,
nenhuma regalia, nenhuma certeza de nada. Passavam a vida trabalhando
e na velhice eram simplesmente jogados à miséria, porque o ordenado
de operário nunca chegava para acumular economias. Francisco tinha
em casa, como exemplo, seu pai, que trabalhara a vida inteira, como um
mouro, e agora se via sem nenhum recurso, porque ao vir a nova lei já
estava afastado do trabalho.
Sabia Francisco que sua ignorância não era única. Todos os
operários que ele conhecia, a começar pelo tio Vicente, tinham até certa
desconfiança do Instituto, pois não podiam entender claramente seus
fins. Também, tinham razão! Nunca haviam ouvido falar em tais coisas e
agora, quando elas aconteciam, não podiam compreendê-las claramente.
Todavia, a verdade era que, esquecidos que haviam sido sempre, e
resignados com esse esquecimento, o Governo finalmente se lembrara
deles; sem que fosse preciso, como na Europa, fazer revoluções, matar
gente, destruir fábricas, para conseguir o reconhecimento daqueles
direitos. Haviam obtido uma melhoria sensível e essa conquista não lhes
custara nada. A melhoria viera sozinha, espontaneamente, e tinha agora
um caráter definitivo, pois ninguém mais no Brasil poderá desmanchar
o que ficou feito.
Francisco terminou o acabamento da peça. Deteve o torno,
desprendeu a peça do cabeçote e da espera e jogou o ferro no chão.
Apanhou outra peça igual, que estava do outro lado do torno, atarraxou-a
entre as pontas do cabeçote e da espera, avançou o contraponto, acionou
a alavanca de comando, pondo o torno novamente em movimento.
E manejando a ferramenta cortante, que começou a desbastar o ferro,
recomeçou o trabalho, aquele trabalho sempre igual e monótono do torno.
O barulho das correias e o resfolegar da forja se misturavam ao
zumbir confuso dos motores elétricos. E da Seção de Montagem vinham
repetidas e sonoras as batidas de martelos em chapas de ferro.
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390 Literatura e política no Estado Novo
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Fundição 391
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Vicente entrou em férias. Embora não sentisse fadiga, e não tivesse
recursos para sair da cidade, desejava ficar quinze dias em casa com o
propósito de mais sossegadamente trabalhar no invento, uma vez que a ele
poderia dedicar a totalidade do tempo. E também aproveitaria a ocasião
para passar uns dias perto do Joãozinho, que ainda continuava doente.
No quintal havia um velho banco de funileiro, que Vicente
aproveitava para o trabalho. Tinha ferramentas e, quando precisasse de
qualquer coisa, poderia ir à fábrica, em busca de maiores recursos.
Pela manhã já estava ele trabalhando no banco, limando uma
engrenagem. Bernardo viera sentar-se na pequenina área cimentada
que constituía o quintalzinho da casa. E, olhando o trabalho do irmão,
o enfermo observou com certa amargura:
– No meu tempo de trabalho nunca tive férias... E para mim em
Pirassununga umas férias fariam fartura, porque eu poderia pescar
bastante. Se você visse como o Mogi tem piracanjubas!...
– Ah, eu também antigamente não tinha férias. Isso não se usava
ainda nem em São Paulo. Agora estes quinze dias por ano são sagrados,
e os patrões têm que dar.
– Bem diz o ditado, que hora a hora Deus melhora... Mas eu queria
ter nascido quando o Francisco nasceu. Quando eu tinha a idade dele,
nem sonhava com as coisas de agora. Quando ele tiver a minha idade,
o mundo ainda há de ser bem melhor do que hoje para quem trabalha.
Pela tarde, seu Osvaldo vinha vindo pela rua Piratininga em
companhia de Mercedes, a esposa do Diego, chefe das oficinas da
Fundição Jaraguá.
Seu Osvaldo ia banhado em alegria, ao lado daquela formosís-
sima dona. Mercedes dava mesmo orgulho a qualquer homem que a
acompanhasse, pois era uma mulher maravilhosa. Era alta de corpo
esbelto, pele alvíssima, cabelos negros e crespos, boca sensual e uns
Fundição 395
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Fundição 397
Cristina não fora à fábrica naquele dia. Sua mãe mandara-a à cidade
comprar agulhas de certo tipo que não encontrara no Braz. Quando
voltava para casa, eram cinco horas. Os bondes já iam tão cheios que a
moça desistiu, como às vezes fazia, de ir de bonde. Da Praça da Sé à rua
Campos Sales era pequena distância. Demais, a tarde estava agradável
para passear, e ela gostava de ir olhando as árvores do Parque D. Pedro.
Cristina foi andando, sem pressa. Logo depois da ponte do
Tamanduateí, viu um automóvel que se encostava à guia do passeio,
ao seu lado. O carro seguia com marcha reduzida, acompanhando o
andar da moça. Era uma barata cor de chocolate, cintilando de tão nova
e bonita. Nela ia um rapaz, guiando. E o rapaz, com o carro devagar,
olhava para Cristina e lhe sorria.
Cristina estava bonita mesmo. Vestia um vestido de seda ramada,
justo na cintura, mais acentuando a opulência de formas. Ia sem meias,
como se usa no verão, e mostrava as pernas bem feitas.
Quando a moça percebeu que o automóvel a acompanhava,
estugou o passo. A barata aumentou também a velocidade para
acompanhar Cristina e o moço abriu a portinhola da barata, mesmo em
marcha, e convidou:
– Vamos dar um passeio, lindeza?
Cristina nem olhou e continuou andando, cada vez mais
depressa. O rapaz insistiu em acompanhá-la. Mas ao chegar à rua da
Figueira percebeu que era inútil prosseguir. Fez uma careta de mau
humor, fechou com estrondo a portinhola do carro, acelerou a marcha,
procurou o centro da avenida e se afastou rapidamente.
Cristina acompanhou com os olhos a barata que corria e comentou
em voz baixa, consigo:
– Sujeitinho sem-vergonha!
XI
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Fundição 399
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Vicente, que não tinha aonde ir, foi ficar à porta, esperando o
remédio e contemplando o movimento da rua Direita. Era dia vinte e
três de dezembro. Corria então a loteria do Natal.
Apesar da chuvinha fina que caía, havia uma enorme multidão
estacionada diante da Preferida e do Fasanelo, aguardando o resultado
do sorteio do bicho. Era gente de todas as categorias, porém em maior
proporção gente pobre e mal vestida. Toda aquela gente estava perdendo
o seu dia de trabalho, ali de pé, à chuva, com a alma nos olhos, fitando o
quadro negro dependurado à porta dos chalés para ver se neles seriam
escritos os números de seus bilhetes.
Eram duas e meia da tarde e o sorteio já começara. Um homem
veio de dentro da Preferida e encostou à parede da casa uma escada e
começou a pintar números brancos num quadro negro.
Vicente olhava as pessoas. Estavam todas silenciosas e suspensas
de emoção. Ninguém falava. Um silêncio sensacional caíra sobre aquele
trecho da rua Direita. Percebia-se que a emoção de toda gente era
intensa, pois quase todos tinham as orelhas rubras. O guarda-civil de
serviço naquele trecho de rua também estava parado, de boca aberta,
respiração opressa, contemplando o quadro negro e acompanhando
os algarismos que o homem pintava. A massa de gente que cuidava de
seus negócios continuava passando e era obrigada a se desviar daquelas
pessoas imobilizadas no meio da rua e nos passeios. Pessoas passavam
incessantemente. Algumas paravam e também erguiam os olhos para o
quadro. Às vezes passava um mais apressado e seguia indiferente, sem se
importar nem com as pessoas, nem com o emocionante quadro-negro,
muito menos com os algarismos brancos que iam sendo ali pintados,
diante da numeração dos prêmios.
Vicente sentiu atrás de si uma respiração forte. Voltou-se. Era o
homenzinho moreno, de nariz adunco, que saíra de dentro do balcão e
também, com a boca meio aberta, as narinas palpitando ligeiramente e os
óculos levantados na testa, olhava fixamente para o quadro-negro. E, ao ver
acabarem de escrever um número, não se conteve e comentou para Vicente:
– Que coisa caprichosa! Eu joguei num número que tem os
mesmos algarismos...
Vicente não jogava. Sorriu e não achou o que responder ao
homenzinho amável da drogaria, que logo depois se afastou e foi atender
com grande cordialidade a uma freguesa no balcão. O quadro-negro já
404 Literatura e política no Estado Novo
XII
Quem tem doença não tem Natal. Mas mesmo assim Ângelo
veio à casa de Vicente para comer umas castanhas e Vicente foi à casa
de Ângelo beber um copo de vinho. A doença de Joãozinho, criando
despesas extraordinárias com remédios caríssimos, para quem ganhava
pouco, trouxe um Natal desconsolado para a família.
Fundição 407
Bernardo, esse nem teve festas. Estava fazendo dieta e não podia
comer quase nada. Ainda assim, celebrou o seu Natal, comendo umas
uvas, que Cristina lhe levou à noite.
...
Francisco foi passar o Natal com Teresinha. Seu Antônio ainda não
chegara, pois somente largaria o serviço às dez horas da noite, quando
então outro motorneiro entraria e trabalhando passaria a melhor hora
do Natal. Enquanto, pois, esperavam pelo dono da casa, Francisco e a
namorada ficaram conversando na saleta.
D. Augusta, mãe de Teresinha, veio da cozinha, trazendo pratos,
copos e talheres, que ia pondo sobre a mesa, para a consoada. Era uma
portuguesa de olhos apagados, num semblante de humildade e tristeza.
Teria uns cinquenta anos, mas a vida a envelhecera prematuramente,
com os trabalhos, canseiras e desilusões.
– Como vai passando o Joãozinho? – perguntou D. Augusta.
– Vai indo mal. Ontem começou a tomar uns remédios
estrangeiros, muito caros. Mas ainda não teve nenhum resultado.
– Que doença é?
– O médico da Policlínica disse que ele sara, mas precisa muito
cuidado. Também, a mãe dele morreu tuberculosa...
– É uma obra de caridade que os seus tios estão fazendo, criando
esse menino.
– É sim, D. Augusta. Mãe é sempre mãe, mas eu acho que o
menino não seria tratado melhor com a mãe do que com minha tia.
– Além do trabalho, de criar alguém, que não há dinheiro que pague,
ainda tem a despesa... E hoje com a vida cara como está, é sempre sacri-
fício ter uma pessoa a mais. Eu vejo aqui em casa, como a gente gasta...
Manuel entrou com um embrulho:
– Mãe, olhe aqui as avelãs. Já cozinhou as castanhas?
– Já, mas rendeu pouco. Este ano as castanhas estão quase todas
podres. Decerto é por causa do ano que foi de muita chuva.
Teresinha, que até então se conservava calada, interveio:
– Ano de chuva, nada. As castanhas estão podres porque são
baratas. Isso é exploração do comércio, porque na cidade tem muita
408 Literatura e política no Estado Novo
Teresinha ofereceu-se:
– Quer que ajude, mãe?
– Não; já está quase tudo pronto.
Quando seu Antônio chegou do trabalho, trazendo umas garrafas
de vinho, foram todos para a mesa.
Acabada a ceia, Teresinha resolveu ir dançar. E os três jovens
saíram e foram terminar alegremente a noite de Natal dançando no
Salão Lira, que estava atulhadíssimo de gente.
Algumas casas de residência permaneciam abertas e iluminadas
e pelas janelas se viam lindas árvores de Natal, cintilando de luzes e
vergadas ao peso de uma safra maravilhosa de bolas coloridas de
aljofre, brinquedos, enfeites e fantasias. Pelas ruas da cidade, durante
a noite inteira, perambulavam grupos alegres de rapazes e de moças,
rindo e, às vezes, cantando. Em todos os cantos havia bailes e de todos
os bailes saíam para a noite quente e festiva sons agudos de pistão e
notas graves de saxofone.
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XIII
eles estavam fazendo, sem nenhuma outra máquina igual para modelo.
Tudo tinha que ser primeiramente imaginado, desenhado, modelado,
fundido, montado e experimentado. E nem sempre os resultados eram
satisfatórios. Às vezes uma peça não dava o que esperavam e era preciso
pacientemente começar de novo. Mas Vicente tinha gosto pelo trabalho
e coragem para recomeçar quantas vezes fossem necessárias.
Francisco, já então excelente torneiro, se revelara também hábil
montador. Além disso, demonstrava possuir bons conhecimentos de
mecânica, indispensáveis para o desenvolvimento daquele trabalho. Era
um gosto vê-lo trabalhar atentamente numa peça, medi-la, acertá-la, até
que ela saísse lisa, polida, rebrilhando de suas mãos experimentadas.
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XIV
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daquela família devia ser muito grande. Todos estavam fartos de saber
que seu Osvaldo era um conquistador. Porém, tudo podia passar
despercebido, apenas com o sofrimento silencioso dos parentes. Mas
agora a coisa tomava aspecto público e irrecusável. O nome de seu
Osvaldo apareceria nos jornais e talvez até o seu retrato.
E nem a mulher de Osvaldo, nem Ângelo, nem ninguém da
família merecia um desgosto daqueles.
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428 Literatura e política no Estado Novo
XV
Era abril. O sol, vagando num céu azul e puro, descia por detrás
da colina que Anchieta escolhera há quatrocentos anos para edificar
uma igreja e fundar uma escola. Nesse mesmo lugar em que há quatro
séculos havia somente os campos de Piratininga, no outeiro que se
ergue aos pés do Tamanduateí, agora se levantam ciclópicos arranha-
céus de apartamentos e escritórios. Nuvens tênues ainda vadiavam pelos
altos silenciosos do espaço, cortados pelo ronronar dos aeroplanos de
Fundição 429
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436 Literatura e política no Estado Novo
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XVI
Sim, decerto que ela era livre. Uma moça solteira, mesmo que
seja noiva, não tem de obedecer a ninguém... Também, o mundo está
tão esquisito que hoje não são todas as casadas que dão satisfação aos
maridos!...
E agora Francisco se lembrava de fatos acontecidos em épocas
diferentes e aos quais ele então não dera nenhuma importância. Por
mais de uma vez Teresinha lhe dissera que achava Osvaldo muito
simpático. Outra vez, diante do Babilônia, Francisco lhe perguntara
qualquer coisa e ela não respondera, pois estava distraidamente olhando
alguém do outro lado da rua. Disse que era uma moça que ela procurava
reconhecer. Agora, ele se lembrava de que, olhando, também, vira seu
Osvaldo, parado diante de uma vitrina, também olhando para Teresinha.
E quem sabe se outras vezes que ele não percebera, longe do Braz, na
cidade, ou quem sabe onde, e quando, e de que modo?
E se havia qualquer coisa com Osvaldo, também podia haver
com outros. Teresinha era jovem, bonita e tinha um belo corpo. Não
faltariam homens, e homens ricos, que olhassem para ela e por ela
sentissem veementes desejos.
Os homens são todos sempre conquistadores. A questão é acharem
mulher disposta a se entregar. E Teresinha já uma vez lhe dissera que um
corpo de mulher pobre ou rica é a mesma coisa, desde que seja bonito.
Não, não é a mesma coisa; a mulher pobre pode ser mais fácil, porque,
às vezes, ela é tentada pelo dinheiro, por joias, vestidos e perfumes.
E por falar em vestidos, ele se lembrou também de que, um dia diante
de uma vitrina, Teresinha ficara extasiada contemplando umas calças
e combinações de jersey cor-de-rosa e dissera que para ter aquilo
precisaria não ser operária... Também, as vitrinas das lojas estão cheias
de roupas tão lindas, tão macias, que são mesmo uma tentação para a
cabecinha fraca das mulheres de pouco juízo!...
No Braz, Teresinha estaria mais longe do perigo, porque ali todos
eram pobres e todos tinham que trabalhar o dia inteiro, sem tempo
para pensar no amor. Mas, no centro da cidade, cheio de homens com
dinheiro e sem ocupações, prontos para oferecer um vestido de presente,
ou um chá numa confeitaria chique, sempre a dois passos de um hotel,
desses que recebem casais, o perigo era mesmo terrível.
A pobreza, decerto, tinha culpa de muita coisa, mas não de tudo.
Muitas vezes a pobreza é uma desculpa. Não estava ali a dois passos
Fundição 441
comer. Achei que a minha filha, moça, bonita e esperta, merecia mais do
que ser operária de fábrica de tecidos e deixei-a ir para a cidade... Agora,
não há mais remédio.
O silêncio de novo caiu sobre os dois. Ouviu-se de longe o rumor
confuso da avenida, ainda naquela hora, cheia do seu grande movimento
de rodas. Trens da Inglesa passavam ali perto e cada comboio fazia
estremecer a casa com a sua passagem e abalava os vidros com o apito
agudo das locomotivas.
– Não sei o que Teresinha pensava de ti...
– Creio que ela gostava de mim.
– Eu pensava que tu serias um bom marido. Tu não bebes, não
jogas, não perdes dia de trabalho. E tens futuro na fábrica, que eu sei.
Pois ela não quis nada disso...
– É que decerto não gostava de mim, como eu pensava.
– Olhe, Francisco, o mundo de hoje está difícil para os pobres. Não
pela vida cara, porque a vida foi sempre cara e difícil para quem ganha
pouco. Mas é que a indústria fabrica hoje tanta coisa bonita!... Mulher
moça gosta de coisas bonitas e os homens de dinheiro bem sabem disso.
E pelo luxo, pelo gosto de vestir bem, elas vão trocando sua vida...
Francisco não disse nada. E seu Antônio continuou:
– Eu não sei se isto está certo ou errado. Mas parece-me que o
Governo devia proibir o luxo, porque assim as raparigas pobres não
teriam pelo que cair. Porque se isto continuar assim, daqui a uns tempos
os ricos, só com bobagens vistosas, nos tomarão todas as mulheres, as
melhores e as mais formosas...
Francisco voltou a pensar em Cristina pela segunda vez naquele dia.
Aquela era das boas, era das melhores e das mais formosas. E ninguém a
tinha seduzido ainda. Não seria a coisa, talvez, um sinal de fraqueza de
algumas? Não seria que essas que se entregavam por calcinhas de jersey,
por perfumes e sedas, também se entregariam por nada?
Seu Antônio continuava se queixando:
– Com o rapaz, foi a mesma coisa. Ele ia indo tão bem na Fundição!
Já estava ganhando oitocentos réis por hora... Para a idade dele, servia.
É assim que se começa. Depois estava numa boa fábrica e com muito
futuro. Poderia fazer carreira, por que é inteligente. Entretanto, esses
vagabundos do futebol o tiraram de lá... Eu compreendo que o futebol é
mais bonito e atraente do que trabalhar numa oficina, sujo de pó de ferro,
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XVII
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XVIII
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458 Literatura e política no Estado Novo
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Fundição 459
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460 Literatura e política no Estado Novo
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FIM
SOBRE O ORGANIZADOR