(SCHWARCZ) - O Nascimento Dos Museus No Brasil PDF

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produtividade, os efeitos da presen~a de cientistas sociais entre 0 o NASCIMENTO DOS MUSEUS BRASILEIROS·

pessoal dirigente dessas agendas, a competi~ao entre as Ciencias


1870-1910
Sociais e os cientistas sociais e as demais areas de produ~ao cien-
tifica e seus respectivos quadros profissionais.

Antes de se iniciar a analise de institui~oes especificas -


como 0 foram os museus no Brasil em fins do seculo XIX - faz-se
necessario esc1arecer alguns aspectos do texto. .
No periodo a que se refere - basicamente os anos que vao
de 1870 a 1930 - os museus etnograficos nacionais conheceram
tres momentos distintos(nascimento, apogeu institucional e deca-
dencia), que conformam como que trajetorias comuns a estabeleci-
mentos locais: 0 Museu Paulista (M.P.), 0 Museu Nacional (M.N.)
e 0 Museu Paraense de Historia Natural (futuro Museu Paraense
E. Goeldi - M.P.G.).
Nesse sentido, as analises, pautadas sobretudo naS revis-
tas e publica~oes desses museus, deram relevo nao so as trajetorias
especificas de cada institui~ao, mas tambem ao contexto mais am-
plo, onde .se inseriu esse tipo de pratica e organiza~ao.
Por fim, cum pre informar que a cita~ao dos divers os do-
cumentos selecionados manteve a grafia da epoca. As palavras em
maiuscula indicam os destaques efetuados pelo proprio autor; as
palavras ou expressoes grifadas marcam as nossas ressalvas.
tuidas, aos poucos, pela instalac;ao de gran des colec;6es em ediffcios
especiais: 0 Louvre (1773) eo Museu do Prado (1783) sao.apenas
Nos~o projeto e de um museu enciclopidico que alguns exemplos do infcio da era de museus publicos e nacionais.
reuna mostras de todo conhecimento humano. Essas institui<;6es do seculo XVIII, mais conhecidas como
H. VON IHERING, 1895 Cabinet de Curiosite, eram formadas como 0 termo parece indicar,
mais para expor objetos a admira<;ao publica do olhar - cujo crite-
. A formac;ao e a instaurac;ao de museus no Brasil devem rio era antes e sobretudo estetico - do que formulados e pensados
ser sltuadas no interior de urn movimento maior, ao qual Sturtevart enquanto espa<;os para 0 en sino e 0 "rigor da ciencia" .
(~985) deu 0 nome de "A era dos museus". A partir de fins do Exemplar nesse sentido e 0 Museu do Louvre, fundado
seculo XIX (e ate meados da decada de 1920), inicia-se 0 peri~do durante a Revolu<;ao Francesa, para guardar os tesouros confisca-
de apogeu d~ urn tipo de institui<;ao que passara a cumprir papel dos da Coroa (e ampliado por Napoleao com os bens que advieram
c,a?a vez,mals relevante enquanto local de ensino e produc;ao cien- com as conquistas). 0 Louvre foi 0 depositario privilegiado de uma
tIftca. E e dessa perspectiva que se analisara a instala<;ao de museus estrategia que visava retirar "a arte francesa" da exclusiva proprie-
no Brasil.
dade da realeza e da aristocracia e expo-Ia ao interesse e admira<;ao
Os museus devem seu nome aos antigos templos das publicos. Outras revolu<;6es europeias fizeram 0 mesmo, buscando
musas. No en tanto, 0 perfil das institui<;6es se prende a outro con- "democratizar" 0 aces so a tesouros culturais ate entao inacessiveis.
texto e de1imita<;ao.
Assim a opressao real transformava-se em "Tesouro Nacional" - a
A Se~und~ Le Goff (1984, pp. 37-9), os museus contempo- mais preciosa posse dos povos - muitas vezes dando mostras de
raneos estanam hgados ao progresso da memoria escrita e figura- que (como inumeros exemplos de objetos coloniais parecem indi-
a
. d~ ?,a Renascen<;a e logica de uma nova "civiliza<;ao da inscri- car) 0 patrimonio de urn representava a heranc;a, em exflio, de outros
~ao, ~sendo possivel datar 0 seculo XIX como 0 da "explosao do (Stocking]r.,1985,p.193).1
espmto comemorativo", como 0 momento de uma nova seduc;ao Desde meados do seculo XIX, porem, 0 movimento tende
da memoria.
Q se acelerar. Na Fran<;a, Luiz Felipe funda em 1833 0 Museu de
. A partir do momento em que 0 proprio movimento cienti- Versailles; 0 Museu de Cluny e 0 Museu de Saint-Germain foram
fICOpassa a se orientar no senti do de recuperar a memoria coletiva criado's por Napoleao II em 1862. Na Alemanha, se constituem 0
das na<;6e~,os ~onumen~os de lembran<;a se aceleram. Na Fran<;a, Museu de Antigiiidades Nacionais.de Berlim em 1830 e 0 Museu
a Revol~c;ao cna os ArqUlVOSNacionais (7 de setembro de 1790) e, Germani de Nuremberg, em 1852. Na Italia, a Casa de Savoia, ao
a 25 ~e.Julho .de 1974, dec1ara 0 seu carater publico e disponivel a mesmo tempo em que empreende a centraliza<;ao, ergue, em 1859,
n:emona naclOnai. Movimento semelhante ocorre em outras na- o Museu Nacional de BargelIo, em Floren<;a. Nos paises
<;~es,o~de SaDc~iado! depositos centrais de arquivos. Os exemplos escandinavos abrem-se museus de cultura popular, como 0 da Di.,
saD ~UltOS: Tunm, Sao Petersburgo, Veneza, Florenc;a. Ate mesmo namarca, em 1807; 0 de Bergen, na Noruega, em 1828; 0 de Hel-
o_Vatlcano, em 1881, abre seus arquivos secretos, por determina- sinque, na Finlandia, em 1849; e oSkanser, em Estocolmo, em 1891.
<;aodo papa Leao XIII (Le Goff, 1984, pp. 33-9).
o fenomeno ensejou ainda 0 nascimento de diversos mu- 1. E necessario esclarecer que parte dos bens retirados por Napoleao foram, ap6s
Waterloo, devolvidos. Pode-se, ainda, questionar a no~ao de "patrim6nio nacio-
seus, s~rgidos neste momento com urn caniter explicitamente come- nal" que este tipo de museu parece sugerirj no entanto, esse debate nos levaria a
moratlVO. As primeiras timidas tentativas de exposi<;ao SaDsubsti- quest6es muito afastadas dos objetivos aqui perseguidos.
Os exemplos poderiam continuar, mas marcam em seu conjunto 0 mentavam, por exemplo, que seus materiais nao tinham nada de
momento especffico de UIp.ahistoria comemorativa, onde a "me- belo, servindo apenas para iluminar e instruir. Williams (in Stocking
moria das na<;6es", representada e disposta nos museus, parece Jr., 1985, p. 156) conta que, em 1880, pe~as americanas foram
constituir-se em elemento essencial ao que se costuma chamar de transferidas do Louvre (da se<;aode American Antiquities) para a
identidade individual ou coletiva das na<;oes.2 BibIioteca Nacional, seguindo depois para 0 Museu Guimet, para
No entanto, em fins do seculo esses estabelecimentos, ate o Museu da Marinha e finalmente, em 1878, para 0 Trocadero
entao denominados genericamente "museus", ganham especifici- (reformulado, em 1930, com <> nome de Musee de I;Homme).
dade e subdivisoes internas. Somente a partir desse momento, se- Portanto, a virada do seculo viu constitufrem-se claramente
gundo Elizabeth Williams (Stocking Jr., 1985, pp. 4 e 174), as mos- institui~oes diferenciadas classific:iveis em duas categorias: os mu-
tras passaram a refletir uma clara e nova racionalidade: os museus seus que Iidariam com "artefatos culturais cientfficos" e os 'que
de historia natural apresentariam exposi<;oes instrutivas, ao passo guardariam "trabalhos de arte estetica".3 .
que os de arte exporiam things of beauty, objetos para admira<;ao Os museus etnograficos tomam forma e fun<;ao nesse
estetica. A museologia do seculo XIX trazia, portanto, urn legado momento, organizando-se enquanto institui<;6es consagradas a co-
que de certa forma permanece ate nossos dias: a separa~ao entre le<;ao, preserva~ao, exibi<;ao, estudo e interpreta<;ao de objetos
beleza e instru<;ao, entre exposi<;oes esteticas e funcionais. materiais. Como "museus etnologicos", eles se transformarao nos
A despeito das caracterfsticas particulares dos estabeleci- arquivos do que os antropologos chamavam de cultura material:
mentos destacados, pode-se afirmar que, apesar de os objetos ex- os objetos "dos outros", a vida humana, cuja similaridade ou dife-
postos serem ou poderem ser antigos, os museus de historia natural e
ren<;a constantemente coletada, classificada, comparada e obser-
tern uma historia recente. Surgiram nos ultimos an os do seculo XIX, vada (Stocking Jr., 1985, p. 4).
num momenta em que, segundo P. Nora, os museus conquistaram A curiosidade renascentista, que marcou os anas de desco-
maior relevo e urn novo modus operandi, enquanto espa~os onde a . brimento e explora<;ao, e outras "excentricidades" do nosso mundo
na~ao se faz ao mesmo tempo "sujeito" e "objeto" da reflexao e do Oriente encontravam agora lugar nesses museus, que se firma-
(Enciclopedia Einaudi, 1984, p. 38). yam enquanto "lares institucionais" de uma antropologia nascente.
Urn local distinto para as exposi~oes etnograficas come- o primeiro grande estabelecimento desse tipo de cad-ter
<;aria a ser tema de debatese redefini<;oes. Alguns etnografos argu- ainda nao estritamente antropologico foi 0 British Museum, fun-
dado em 1753. Com urn acervo bastante ampliado pelas expedi-
2. Nesse novo tipo de instituic;ao, 0 denominador comum a caracteriza-la era distin- <;oesdo Capitao Cook, organizava-se, basicamente, em tres depar-
tivamente e antes de tudo material. Os objetos de colec;aodefinem-se, no entanto, tamentos: Livros Impressos, Mapas, Globos e Desenhos (Printed
por estarem fora do circuito de atividade econ6mica, privados tanto de utilidade
Books, Maps, Globes and Drawings); Manuscritos, Medalhas e
(ao menos na origem) quanto do valor de uso, cujo valor de troca se traduz na
existencia de urn mercado em que sac comprados e vendidos. Esse valor de troca
depende, por sua vez, dos diversos significados atribufdos aos objetos de exposi- 3. A esse respeito, diz-nos J. Clifford (in Stocking Jr., 1985, p. 242): "(...) em urn
c;ao.Suporte da memoria coletiva e das fontes da historia dos homens, sac objetos museu ernografico, uma escultura, por exemplo, e colocada junto a objetos com
semi6foros, cujo valor sera dado pelos significados a ele aco·plados e investidos. func;ao similar ou no dominio de urn grupo etnico, sendo os nomes dos esculto-
Cumpre destacar ainda que, no caso dos museus, eo significado que funda 0 valor res desconhecidos ou suprimidos. Ja nos museus de arte, a escultura se remetera
de troca das pec;asde colec;ao.Sao semi6foros mantidos fora do circuito das ativi- diretamente a uma criac;ao individual. Enquanto no museu etnografico 0 objeti-
dades econ6micas porque e apenas desse modo que se pode revelar plenamente 0 vo e cultural ou humanamente interessante, no de arte ele e, antes de tudo, belo
seu significado (Enciclopedia Enaudi, 1984, p. 86). e original".
Moedas (Manuscripts, Medals and Coins); e Produ~oes Naturais e rios.S Mas, a despeito da maior ou menor politica de financiamento
Artificiais (Natural and Artificial Productions). (esse foi urn problema comum a quase todos os estabelecimentos dessa
No e~tanto, vale refor~ar que 0 movirilento realmente se am- natureza), em finais do seculo XIX e infcios do XX, os museus destaca-
plia a partir do seculo XIX, com a £Unda~aode urna serie de museus e vam-se enquanto institui~Oesprivilegiadas gra~s aos avan~os da cien-
sociedades antropol6gicas (em 1816, por exemplo, com 0 National cia da epoca e como "resposta" as inumeras inquieta~oes e indaga~Oes
Museum, na Dinamarca; em 1836, com 0 Museu Etnografico da Aca- que mobilizavam parte da "inteleetualidade cientifica" europ€ia.
demia de Ciencias de S. Petersburgo; em 1837, com 0 National Portanto, se os museus san uma cria~ao cia epoca da ilus-
Museum of Ethnology, em Leiden; em 1866, com o Peabody Museum tra~ao, os estabelecimentos mais propriamente etnogrMicos remon-
of Archaelogy and Ethnology), aIem de varias sociedades etnol6gicas tam a urn perfodo de refluxo do .imperialismo. E 0 momenta mes-
criadas em Paris (1839), Nova York (1842) e Londres (1843). mo da perda das colonias que favorece a reposi~ao dos objetos e a
Internacionalmente, a £Unda~ao de museus se estendera· "recria~ao" desses museus, que acabam por expor e fetichizar todo
peIo resto do seculo XIX, seguindo modelos dlversos: alguns se o mundo extra-europeu.
basearao nos padroes do Peabody, focalizando preferencialmente a Resta agora pensar na adequa~ao e instala~ao de museus
pre-hist6ria, a arqueologia e a etnologia; outros, principal mente os no Brasil, na~ao que se nao participa do movimento de expansao,
da Europa Continental, se constituirao em museus de cultura na- representa em si exemplo da pr6pria expansao. Aqui, se bem que
cional e popular (Stocking Jr., 1985, p. 8). contemporaneos, eIes cumprirao papeis diversos: sendo c6pias do
Esses museus demorarao nao obstante a alcan~ar maturi- modelo europeu original, de urn lado estabelecerao uma pratica
dade enquanto "institui~oes antropoI6gicas", dotadas de perspec- antes de tudo isolada, no sentido de dialogar exclusivamente com
tiva mais claramente profissional. Nesse sentido, 0 perfodo de apo- os centros europeus e americanos. De outro, atraves da Antropolo-
geu se segue a 1890, quando se estabeleeerao normas e caracteristicas gia, ao adotar urn paradigma racista e evolutivo, acabarao por in-
rfgidas de funcionamento e se rede£inirao perspectivas de promo- serir-se de forma espedfica no debate pessimista e contradit6rio
~ao de empregos.e pesquisas. que aqui se instalava acerca das perspectivas dessa "jovem na~ao".
Aos p'oucos, os museus transformam-se em "dep6sitos
ordenados" de uma cultura material fetichizada e submetida a 16-
gica evolutiva. Comparar, classificar e concluir se tornam entao as
metas de cientistas que, verdadeiros "fil6sofos viajantes"4 financia-
dos por museus ou outras institui~oes europeias, dirigem-se as ter- A gerafao dos anos 70: urn banda de idiias novas. SILVIO ROMERO
ras distantes e ex6ticas. como 0 Brasil, em busca de cole~oes que Urn periodo de ebulifao intelectual. FERNANDO DE AZEVEDO
representem variedades da flora, da fauna e da especie humana - .
materiais considerados basicos para os estudos antropol6gicos. Mesmo antes da instala~ao de museus cientificos, a "na-"
As verbas para esses estudos eram sem duvida dificeis, ja ~ao dos Botocudos", "0 pais da grande flora", fora palco de inu-
que a disciplina nao· oferecia, em primeira instincia, fins utilita-
5. Seria longa a discussao sabre a correla"ao entre antropologia e irnperialismo. Sem
4. Expressao utilizada par Stocking Jr. (1971), refere-se ao fenomeno de viajantes querer negar as claras liga"oes e envolvirnentos que a disciplina teve em seus rno-
naturalistas americanos e sobretudo europeus que, em finais do seculo rumavam a mentos de surgimento com as praticas colonialistas, reafirma-se apenas 0 pequeno
paises distantes a firn de obter cole"oes relevantes que confirmassem teorias locais interesse dos govemos pelo carater pragrnatico desses estudos. Nesse sentido, ver
anteriormente formuladas. Kuper, 1978, pp. 121-146.
meras excursoes, via gens e pesquisas de naturalistas estrangeiros. Por outro lado, mas com esse mesmo tom, Fernando de
Italianos, espanhois e antes de tudo franceses e alemaes por aqui Azevedo inicia 0 capitulo sobre as ciencias no Brasil, nos ultimos
estiveram, principalmente desde inicios do seculo XIX, em busca anos do seculo XIX: "Em urn perfodo em que as ciencias mate-
da solu<;ao de varias questoes e da constitui<;ao de inumeras cole- maticas tomam novo impulso com Oto Alencar, entra em ativi-
<;oes. A palavra de ordem, como nos diz Egon Schaden, era "sal- dade 0 Museu Paraense fundado por Emilio Goeldi, em 1885.
var" 0 que mais se pudesse, reunindo cole<;oesbastante complexas, Hermann von Ihering e chamado a dirigir 0 Museu Paulista em
tanto de botanica ou zoologia (disciplinas privilegiadas), como de 1893, que the da alto cunho cientf£ico; Barbosa Rodrigues reor-
arqueologia, antropologia e etnologia no que se refere a coleta de ganiza 0 jardim Bottinico e Nina Rodrigues empreende na Bahia
objetos de cultura material (AZevedo, F., s.d., p. 367). pela primeira vez urn estudo rigorosamente cientifico de parte
Para esses naturalistas, a grande preocupa<;ao centrava-se consideravel de nossa popula~ao, constitufda pelo elemento afro-
na classifica<;ao correta dos objetos e nao na questao da preserva- americano. Alem do Museu Nacional que passa por grandes trans-
~ao do conjunto de pe~as, uma vez que a ideia imperante era que forma~oes sob aimpulsao de Batista Lacerda (1895-1915)" (Azevedo,
essas culturas se extinguiriam ate por urn prindpio de sele~ao, es- F., s.d., p. 166).7
tando os "vestfgios", segundo a visao desses cientistas, mais bem De maneira absolutamente concisa, 0 autor resumia 0 gran-
preservados em museus metropolitanos.6 de movimento intelectual que se desenvolveu no final do seculo
No Brasil, ate mead os do seculo XIX, toda sciencia era XIX. Tendo como base a teoria da evolu~ao, em suas diferentes
feita por viajantes estrangeiros, vindos exclusivamente para cole- vertentes e desdobramentos, e os model os retirados da Historia
tar. Segundo Fernando AZevedo, da parte do governo e das institui- Natural, varios centros se somaram no Brasil reelaborando as teo-
~oes nacionais, nao havia interesse cientffico nem recursos necessa- rias europeias em termos do contexto espedfico e pensando sua
rios para 0 financiamento de expedi~oes caras e penosas. Estava-se, aplica~ao local.
nas palavras desse autor, "em urn perfodo de improvisa~ao e Alem dos ja destacados por Fernando de AZevedo, outros
diletantismo" (Azevedo, F., s.d., p. 37). autores e institui~oes poderiam ser acrescentados. As faculdades de
No entanto, a partir da decada de 1870, esse panorama direito de Sao Paulo e Recife - centros intelectuais da epoca, por
intelectual nacional tende a alterar-se. "Urn bando de ideias novas", ex,:elencia, aplicavam as teorias da evolu<;ao a partir de interpreta-
diz-nos Sflvio Romero - referindo-se as teorias filosoficas e poHticas ~oes diversas: enquanto em Sao Paulo se consumiam e se aplica-
que come<;am a circular no Brasil- altera costumes, padroes e visoes yam as maximas do positivismo de Comte, em Recife (e no Nor-
e introduz uma perspectiva pessimista na analise da situa~ao nacio- deste como urn todo) predominava 0 monismo evolucionista de
nal. Paradigmas de pensamento, tais como 0 evolucionismo, 0 posi- Haeckel e Spencer (Neto, 1969; Haeckel, 1908). No campo da
tivismo e 0 naturalismo, come~am a penetrar a partir dos anos 70, Medicina, 0 Instituto Manguinhos, liderado por Oswaldo Cruz,
tendo como horizonte de referencia 0 debate romantico sobre os tornava-se aos poucos import ante centro de pesquisas, principal- it

fl1ndamentos de "uma cultura nacional" em oposi~ao aos legados mente no que se refere ao problema da febre amarela e da
a
metropolitanos e origem colonial (Ventura, 1988). sanitariza~ao da cidade (Stepan, 1981). Resta destacar a atua~ao
dos institutos historicos, que, congregando a elite pensarite nos seus
6. A no ••ao e a discussao sobre a descontextualiza ••ao arbitraria dos objetos so seria
levada adiante na decada de 30 (Comissao de Fiscaliza ••ao de 1933), quando se
prolbe a exposi ••ao de cole••oes cientificas; recentemente (1970), esse tema foi ob- 7. E necessario destacar que 0 autor comete urn pequeno erro de datas, ja que 0 M. P.
jeto de debates na Unesco. G. s6 foi reinaugurado, com a presen ••a de E. Goeldi, em 1893.
difeJ;entes estados, pareciam cumprir relevante papel no debate e ~oes internacionais. E relevante notar que se por urn lado osperfo-
divulga~ao de autores e ideias da epoca.8 dos de fundac;ao formal dos museus no Brasil variam (Museu Na-
Participam de maneira significativa desse vivo processo os cional, em 1818; Museu Goeldi, em 1866; e Museu Paulista, em
tres museus analisados a seguir. No entanto, alem de tomarem par- 1894), os momentos de genese e de apogeu no panorama nacional
te de urn movimento propriamente local, esses estabelecimentos coincidem absolutamente.
trazem consigo questoes, formas e especificidades que se remetem Alem disso, as datas de entrada e atuac;ao dos "pais fun-
a logica propria desse tipo sui generis de institui~ao. dadores" - ou melhor, dos diretores e cientistas que realmente im-
Primeiramente, 0 Brasil parecia ser 0 local privilegiado primiram urn papel e urn campo aos museus - sao em si muito
para a obten~ao de cole~oes e materia-prima necessari~ aos moder- reveladoras. Vejamos:Joao Batista Lacerda (1825-1915); Hermann
nos museus europeus. Portanto, antes mesmo de iniciar-se aqui a von Ihering (1894-1916); e Emilio Goeldi (1893 e 1907).
reflexao e a instala~ao concomitante de institui~oes proprias, ja A coincidencia, no entanto, nao esta so nas datas mas prin-
eramos palco de inumeras representa~oes, cole~oes e expedi~oes.9 cipalmente nos modelos e formulac;oes que marcam a especificida:
Quando finalmente sao montados, os estabelecimentos de das instituic;oes, em sua perspectiva enciclopedica, evolutiva,
locais se constituem em especies de home lands para viajantes fi- comparativa e c1assificatoria.
nanciados por institui~oes estrangeiras, e principal mente para a Em sua nova fase os museus demarcam regras, distin-
Antropologia que se iniciava enquanto disciplina no Brasil. No di- guem colec;oes edestacam 0 profissionalismo. Nesse sentido,
zer de Schwartzman (1979, p. 59), os museus se transformaram, sera interessante retomar 0 projeto personalista que cada mu-
no decorrer do seculo, "em centros de ciencia", para onde conver- seu desenvolveu na figura de seus diretores gerais. A analise
giram diversos naturalistas europeus. Os exemplos sao inumeros: espedfica oferece as relac;oes de similaridade no que se refere
de Riedell a Sillow ou E Muller, ou mesmo H. von Ihering, ou ao momenta de formac;ao, mas mantem os vinculos e as formas
Goeldi, os quais num primeiro momento assumem cargos como de organizac;ao que os distinguem enquanto espac;os espedficos
naturalistas viajantes do M.N.I0 de ciencia.
Os anos 90 da "era nacional dos museus" coincidem, por
sua vez, com 0 perfodo demarcado por Stocking Jr. paTa as institui-

8. Temos certeza de que cada centro ou tema destacado mereceria, por si, reflexOes e Cada seculo tem a sua missiio a cumprir como cada individuo .
pesquisas mais detalhadas. Essa perspeetiva se apresenta aos nossos objetivos futuros, o seu papel a representar no theatro da vida ou na comunhiio social,
mas nao cabe no interior da analise que no momento nos propomos a desenvolver. a do seculo actual e universalizar a ciencia e confraternizar os povos.
9. Muitos teoricos vinham ao Brasil armados de modelos prontos, a espera de com-
J. BATISTA LACERDA (DIRETOR DO MUSEU NAOONAL), 1876
prova~6es empiricas. Para esses "filosofos viajantes", 0 Brasil representou tam-
bem (e sem negar 0 destaque e a relevancia dados ao estudo da flora e (fauna) urn "
"laboratorio de ra~as mistas e degeneradas". Ver, nesse sentido, entre outros: Segundo Azevedo (s.d., p. 140),0 "desenvolvimento cien-
Stocking Jr., 1971. tifico, no Br;1sil, comec;a a processar..:se somente no seculo XIX,
10. E irnportante destacar que a Antropologia possuia, na epoca, contornos bem espe- quase adstrito ao mundo das ciencias naturais e com extrema lenti-
cificos. Entendia no interior desses museus como urn ramo de Ciencias Naturais,
separava-se da Etnografia por sua perspectiva teorica. Os estudos em antropologia
dao". Com efeito, ate a segunda meta de do seculo, a educac;ao ins-
dedicavam-se, sobretudo, a analise e medi~ao de cranios (craniometria), material titucional estava muito aquem, por exemplo, da existente na Ame-
considerado privilegiado para a analise dos povos e suas contribui~6es. rica espanhola. Com a instala~ao da corte portuguesa no Brasil,
inicia-se propriamente a historia de uma cultura produzida no lo- s6 em 1821 a institui<;ao e aberta ao publico e mesmo assim com
reservas.
cal ja que come<;am a se estabelecer, pela primeira vez no pals, ins-
titui<;6es de cunho cientffico. .' Pelo museu passaram varios diretores: loao da Silva Cal-
D. Joao VI, disposto a transformar a colonia em uma es- deira, Frei Custodio Alves Serrao (1828-1847), Frei Alemao (1866-
pede de sede da monarquia, busca alterar-Ihe a imagem, entre outras 1874). No entanto, so a partir.das administra<;6es de Ladislau Neto
medidas, com a instala<;ao das primeiras institui<;6es de carater cul- (1874-1893) e Batista Lacerda (1895-1915), tomara mol des simi-
tural. Data desse perfodo a cria<;ao da Imprensa Regia, da Bibliote- lares aos dos grandes exemplos europeus. Em 1876, 0 museu e
ca, do Real Horto, das primeiras escolas superiores destinadas a organizado e sao criados os Archivos do Museu Nacional, revista
forma<;ao de cirurgi6es e engenheiros e do Museu Real, criado por de publica<;ao trimestral que daria a
institui<;ao carioca urn novo
decreto de 6 de julho de 1808, com 0 objetivo de estimular os estu- estatuto ante os demais estabelecimentos que tinham nas revistas,
dos de botanica e zoologia. ao que tudo indica, urn grande fndice de estabilidade e mesmo a
Em seu conjunto, esses estabelecimentos guardam clara forma.privilegiada de permuta.ll
fun<;ao pragmatica. 0 M.N., ja em seu decreto de cria<;ao, contava . Embora criado em 1818, 0 perfodo de apogeu do Museu
com a seguinte especifica<;ao: "querendo propagar os conhecimen- Nacional, no que se refere a maior produ<;ao, se da a partir dos
tos e os estudos de ciencias naturais do Reino do Brasil... e que anos 70, quando nao so passa a circular a nova revista como se
podem ser empregados em beneflcio do comercio, das industrias e montam curs os e se empreendem pesquisas.
das artes" (Lacerda, 1914).
Os ARCHIVoS DO MUSEU NACIONAL
Instalado no predio hoje ocupado pelo Arquivo Nacional, 0
museu contava com material oferecido pelo proprio D. loao VI, que se Material privilegiado para se entender as caracterfsticas e
constitula em pe<;asde arte, cole<;6esde quadros, objetos de mineralo- configura<;6es internas do M.N. a partir desse perfodo, a revista do
gia, artefatos indfgenas, animais empalhados e produtos naturais. museu foi pensada. enquanto "sfmbolo" de cientificidade, contri-
Durante a primeira metade do seculo, 0 museu recebeu buindo para a divulga<;ao do museu aqui e no exterior.
outras cole<;6es (sobretudo mineral6gicas, zool6gicas e botanicas). o primeiro numero dos Archivos, datado de 1876, lista
Apesar de toda a imagem de brilho que parecia comportar, padecia os membros correspondentes do Museu Nacional, pretendendo com
de urn mal semelhante ao das outras institui<;6es criadas por D. isso destacar 0 pertencimento a comunidade intelectual internacio-
loao; considerados "efeitos de civiliza<;ao", ou estabelecimentos sem nal mais do que indicar autores e colaboradores efetivos.
rafzes profundas, os museus conservavam-se longe dos "padr6es E interessante notar alguns aspectos dessa rela<;ao de no-
cientfficos" das institui<;6es europeias. 0 MN parecia cumprir, na- ~es. ~rimeiramente,. os regulamentos do museu especificam 'que
quele momento, papel antes de tudo comemorativo: especie de mclUlr 0 nome na ltsta de correspondente e sinal q.e distin<;ao".
depositario de cole<;6es e curiosidades, expostas sem qualquer clas-
11. Os planas de Custodio Serrao de fazer da institui~ao urn centro de ensino de e;tu-
sifica<;ao ou delimita<;ao cientffica.
dos tecnicos s6 come\am a dar resultados a partir da reforma ernpreendida, em
Em seus primeiros momentos, 0 desenvolvimento da ins- 1876, por Ladislau Netto. A reforma pretendia dar ao M.N. a mesma "forma e
titui<;ao carioca foi lento, pois, segundo Lacerda, nao contava moIde dos mais acreditados museus do mundo". Vide nesse sentido, Lacerda, 1914,
com dois elementos fundamentais: as conquistas que viabilizaram p. 8 e Schwartzman, 1979, p. 59. Ainda como sinal de reformula~ao, pode-se citar
os museus europeus e recursos financeiros. Por outro lado, a in- a rnudan\a de sede em 1892, quando 0 museu se instal a mais conforravelmente na
Quinta da Boa Vista, antigo palacio imperial.
ten<;ao de expor cole<;6es tambem demorou a ser alcan<;ada, pois
Nesse sentido, chama a aten~ao 0 fato de que das 44 personalida- Seguem-se as duas paginas de abertura os "Regulamen-
des citadas apenas tres saD brasileiras (Visconde de Born Retiro, tos do Museu". Em tres paginas densamente ocupadas, regras
Thomas Coelho de Almeida, D. S. Ferreira Penna). Por outro lado, sobre administra<;iio, organiza<;ao, cursos, publica<;6es, folhas de
entre os outros 41 nomes (todos mencionados em fun~ao dos servi- pagamento etc., fornecem-nos bons fndices para que se possa entender
<;os "prestados as sciencias") constam figuras de renome interna- o funcionamento interno da institui<;ao. 0 artigo 1 por exem- 0,

cional, entre elas: Paul Broca (famoso craniologista frances), Charles plo, faz uma sumula dos fins a que se prop6e 0 museu: "0 M.N.
Darwin, Quatrefages (te6rico frances difusor de teorias do e destinado ao estudo de hist6ria natural particularmente do Brasil
monogenismo), e L. R. Turlaine, entre outros. e ao ensino das sciencias physicas e naturaes sobretudo em suas
Por fim, e importante tambem destacar que a revista ren-: aplica<;6es a agricultura, industria e arte". Esse primeiro texto
de em sua pagina de abertura homenagem a naturalistas estrangei- fornece dois dados relevantes. A·saber, a definic;ao do museu como
ros, revelando uma caracteristica bastante comum nas publica<;6es institui<;iio vinculaqa as Ciencias Naturais e a preocupa~ao em
desses museus, qual seja, a do debate e contato privilegiado antes ocupar uma posi<;ao de "agencia" no interior do Ministerio da
de tudo com 0 exterior. Agricultura Imperial, indicando certa aten<;ao para com 0 cara-
A pagina seguinte e ocupada com os nomes dos tres mem- ter aplicado que se destinava ao M.N., ao menos nos pIanos po-
bros da comissao de reda~ao. Sao eles: Ladislau Netto (diretor ge- Ifticos da epoca.12
ral do museu e chefe da segunda se<;ao de botanic a geral), J. J. Outros aspectos saD dignos de nota. 0 museu descreve
Pizarro (secretario do museu e diretor da primeira se~ao de antro- com orgulho seus novos "cart6es de apresentac;ao": os "curs os
pologia e zoologia geral e aplicada) e J. Batista de Lacerda Filho publicos" gratuitos, a serem ministrados a noite (de lOde mar<;o
(nesta epoca, subdiretor da primeira se~ao, mas que contara com a 31 de outubro), e sua nova revista de publica<;ao trimestral,
uma ascensao vertiginosa na hierarquia intern a do museu, t.ornan- dedicada "as investigac;6es de estabelecimentos que interessam
do-se diretor geral em 1895). . as sciencias".
Seguem 0 quadro do pessoal do museu e 0 decreto de Chama a atenc;ao ainda a perspectiva mais nacionalista
1876 dispondo sobre a reorganiza<;ao do museu, conforme orien- do museu. Alem do predomfnio de autores nacionais nos artigos
ta<;ao de Thomaz Jose Coelho de Almeida, ministro e secretario das revistas, a analise do quadro de pessoal e, principalmente, das
de Estado dos Neg6cios da Agricultura, Comercio e Obras Pu- regras concernentes as nomea<;6es, refor<;a ainda mais essa afirma-
blicas. A divisao interna em tres se<;6es destaca-se no quadro <;ao.Tomemos, por exemplo, os criterios de selec;ao para cargos de
geral do estabelecimento: "1) Anthropologia, zoologia geral e Diretor de se<;aoe de subsec;ao: "(1) qualidade de cidadao brasilei-
applicada e paleontologia animal; 2) Botanica geral e applicada, ro; 2) maioridade legal; 3) moralidade; 4) capacidade profissio-
paleontologia vegetal; 3) Sciencias Phisicas: mineralogia, geo- nar'. Se levarmos em conta a hierarquia dos itens destacados, veri-
logia, paleontologia geral". fica-se a existencia de urn quesito diferente no interior desse "muncto
A analise desses quadros induz ainda a duas outras conside- dos museus". Ou seja, diversamente das demais institui<;6es desse
ra<;oes: 0 pequeno espa<;o dedicado a Antropologia (caraeteristica,
como se vera, tambem presente na composi<;ao da revista), em con-
12. Segundo Lima (1985), aos museus pareciam corresponder, nesse periodo, dois ob-
trapartida ao predomfnio absoluto das chamadas sciencias naturais a
jetivos diversos. De urn lado 0 fomento pesquisa teorica e vinculada as Ciencias
(zoologia, botanica e geologia); e 0 grande numero de cientistasna- Naturais; de outro, a preocupa~ao com 0 carater pragmatico e aplicado de tais
cionais que participam das diferentes se<;6es,em fun<;6esvariadas. pesquisas, como se afirmou anteriormente.
tipo instaladas no Brasil, e que tern a frente e no coman do cientis- se constitufam em modelos teoricos por excelencia. Modelos
tas estrangeiros, 0 M.N. marca ja em seus regulamentos a presen<;a que segundo J. Paulo Paes (1986, p. 10), "os naturalistas, que
obrigatoria de elementos ilacionais. orgulhosamente denominaram 0 seu seculo como seculo da Ciencia ,
nao hesitaram em extrapolar para 0 campo da filosofia" .14
UM Novo MUSEU ABRE SUAS PORTAS Em segundo lugar os textos de botanica (19,2%) e geolo-
"Feliz a instituic;ao a quem for dado 0 preciso alento para gia (13 %) comporiam, conjuntamente com os artigos de zoologia,
affrontar-se com 0 mal, e destruf-Io ... assim vingara de novo essa o que na epoca se denominava de "estudos naturalistas". A rele-
organizac;ao colletiva ... 0 seu largo e lastimavel desalento ... Obrei- vancia desse tipo de trabalho pode ser comprovada pela sua fre-
ros da sciencia canc;ados do largo esperar, adormeceram, murmu- qiiencia, representando 78,4% do total de artigos.
rando phrases de desconsolo e descrenc;a ... 0 M.N. em sua nova e Restariam por fim os artigos de antropologia (11 %) e
auspiciosa constituic;ao, se prepara a vincular-se d'ora por. diante arqueologia (10%), os quais, alem de ocuparem espac;o reduzi-
aos gremios scientificos e aos congress os da civilizafao ... resolutos do, pareciam referir-se a debates bastante delimitados. Ou seja,
em cumprir 0 dever que nos impusemos, regras ethereas e pur{ssimas em oposic;ao a riqueza e variedade de assuntos que apareciam
da sciencia aonde nao cabem ... as discussoes acres e desoladoras sob a mesma rubrica de "estudos naturalistas", os estudos an-
do individualismo ... " (28 de marc;o de 1876. Ladislau Neto, in tropologicos remetiam-se exclusivamente a analise de ossos e em
Archivos do Museu Nacional, 1, pp. 13-15). especial de cranios (antropometria), e os de arqueologia, a des-
Com esse discurso pomposo, barroco e solene, Ladislau cric;ao dos vestfgios naturais mais afastados no tempo (objetos,
Netto, 0 entao diretor do M.N., dava abertura a "nova era" do urnas mortuarias etc.).
museu, destacando valores que se remetiam antes de tudo a "sciencia o Quadro 2 destaca outros aspectos. Entre eles, a pre-
civilizada europeia".n Vma ciencia "imparcial", pura, classificato- ponderancia de artigos elaborados por cientistas nacionais (71,5%)
ria, fndice em si de progresso e distinC;ao. e, em especial, de estudos de autoria de naturalistas que se
Nesse novo momento, a revista buscava a entrada no "gre- encontravam em postos de destaque na hierarquia interna do
mio scientffico", urn "mundo" bastante cosmopolita que, como museu. E.o caso dos artigos de J. Batista Lacerda, de Ladislau
veremos, dialogava muito entre si e principalmente atraves de suas Netto ou, a partir de 1907, a freqiiencia de textos de Alfpio
publicac;oes especfficas. Miranda. .
A analise dos 23 primeiros numeros dos Archivos do Os naturalistas estrangeiros que re<;ligiram artigos para
Museu Nacional atenta para a especificidade do seu desenvolvi- a revista eram todos viajantes contratados pelo museu, como e 0
mento e preferencias tematicas. caso de C. Frederico Hartt (diretor da terceira sec;ao), Orville
Algumas caracterfsticas cham am logo a atenc;ao na analise Derby (diretor da Comissao Geologica e colaborador do M.N.),
do Quadro 1. Em primeiro lugar, 0 predomfnio de artigos de ou meSillO F. Muller (cientista do museu, especializado no estud<5
zoologia (45,3%), comum aos tres museus, po de ser entendido de borboletas)Y
em vista que, para a epoca, a Biologia e em especial a Zoologia
14.0 desenvolvimento dos animais era entao entendido como uma "recapitula~ao de
sua hist6ria evolutiva" (Archivos do M.N., 22).
13. Ladislau Netto foi diretor do M.N. de 1874 a 1893. Bot:inico e interessado ern 15. 0 zo6logo alemao F. Muller tornou-se famoso ao publicar, em 1864, 0 livro Fur
estudos de ·etnologia, teve papel de destaque no museu ao empreender a reforma Darwin, onde elaborou a sfntese e a funda~ao da lei da ontogenese. Darwin 0
de 1876. Faleceu ern 1894. denominou 0 "Prfncipe dos Naturalistas".
:I:
QUADRO 1 iii·
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REV. ARCHIVOS DO NACIONAL - DISTRlBUI\:AO DOS ARTIGOS POR TEMAS E ANO DE PUBLICA\:AO (1876/1926) 0-
:>l.
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ARQuEOLOGIA
CULT. M~TERIAL
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1876 (vol.1) z
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1877 (vol. 2) ~
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1878 (vol. 3) »
iii
1879 (vol. 4) z
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III
1880 (vol. 5)
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C/l
1885 (vol. 6) ;=

1887 (vol. 7)
1892 (vol. 8)

1895 (vol. 9)

1897 (vol. 10)

1901 (vol. 11)

1903 (vol. 12)

1905 (vol. 13)

1907 (vol. 14)

1909 (vol. 15)

ANO BOTANICA ZOOLOGIA GEOLOGIA ANrROPOLOGIA ARQUEOLOGIA TOTAL OBS.


CULT. MATERIAL
1911 (vol. 16)
1
1915 (vol. 17) 1
1916 (vol. 18) 5
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1916 (vol. 19) 2
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1917/18
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(vo1.20/21)
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1919/20 3 5 3 2 (")

(vol. 21) 14 3:
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1923/25 1 11 2:l CJ
(vol. 22) 2 16 OJ 0 0
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1926 (vol. 23) 1 4
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TOTAL 25 59 18 15 0
13 130 C/l

Fonte: Revista Archivos do Museu NacionaJ, 1876-1926, v. 1-23. ..•


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QUADRO 2
REV. ARCHIVOS DO MUSEU NACIONAL - DISTRIBUI<;:AO DOS ARTI-
as temas dos varios artigos, muito mais pr6ximos das
GOS POR AUTOR E ANO DE PUBLICA<;:Ao (1876/1926) . Ciencias Naturais do que das Sociais, discutem longamente desde a
ANo LADISLAU J. BATISTA E E ORVIllE CARLOS ALlplO ROQUETE CHIIDE
"evolu~ao morfol6gica dos tecidos nos caules sarmentosos", ate a
NETTO LACERDA HARTT MULLER DERBY MOREIRA MiRANDA PINTO evolu~ao de urn pequeno animal chamado Batraclychtis (vulgo sapo-
peixe), ou mesmo a a~ao do veneno da jararaca.
1876 2 3 2
Nesse sentido, os poucos textos que tematizam a questao
1877 1 3 3 1
e a situa~ao do homem nacional saD aqueles redigidos por J. B.
1878 1 1 Lacerda ou por Ladislau Netto e que se referem ao "estudo
.
1879 2 3 2 anthropol6gico das ra~as indfgenas no Brasil".
1880 Lacerda, por exemplo, ja no primeiro numero da revista,
1885 1 1 1 se propoe a estudar os Botocudos, tendo como material exclusivo
1887 os onze cerebros de "especimes desta tribo" existentes no museu.
Para tanto, e com 0 intuito de inserir a produ~ao do museu ao lado
1892 3
da dos gran des te6ricos evolucionistas em sua vertente racista, faz
1895 1
uma longa .digressao sobre a "anthropologia mundial" e suas con-
1897 tribui~oes. Vejamos trechos desse texto: "haved por quanto muito
1901 1 1 urn seculo que a anthropologia, a mais nova de todas as sciencias,
1903 1 2 come~ou a offerecer urn campo as investiga~oes dos sabios. Ja en-
1905 1 4
tao Blumenbach tinha acumulado grande material, tirado a
1907 1
crani.ologia para estabelecer a distin~ao das ra~as humanas e Buffon
4
lan~ado as bases da sciertcia natural do homem, havia selado a
1909 4 1
ethnographia ou descrip~ao dos povos. Seguin do 0 caminho ...
1911 1
Retzius, Pritchard, Wagner concorreram ... para aumentar domf-
1915 1 nios naanthropologia ... Todo esse material... veio a servir aos
1916 1 modernfssimos estudos de Broca, Pruner-Bey, Quatrefages,
1917 Wirchow, Topinard e outros ... que deram nova face a sciencia an-
1918 tropoI6gica" (Archivos do M.N., 1, p. 47).
1919 Lacerda, dessa maneira, arrola toda "a nata" da nova an-
2 2
tropologia ffsica, que se debatia com as questoes do "poligenismo
1920
versus monogenismo" e com "0 problema do elo perdido", tendO't
1923 2 3 como base, em boa parte, 0 estudo e a medi~ao de criinios.16 Mas 0
1925 autor nao se detem apenas na produ~ao europeia. Depois de Iasti-
1926 1
16. A questao central de varios cientistas da epoca era a delimita~ao e a compara~ao
TOTAL 4 I 17 3 10 4 4
I 13 4 5 das ra~as, tendo como supostos de base os estudos da evolu~ao e a Craniologia. A
Frenologia (ou ciencia da medi~ao dos cni~ios) serviu como base para varias esco-
las, sobretudo a francesa (com P. Broca) e a americana (com L. Agassiz), para
mar a inexistencia de estudos locais, passa a descrever autores ame- Mas nao s6 em artigos antropologicos havia referencias
rican<?scomo" Mortonna Philadelfia" ou "Moreno na Patagonia", ao que se podia chamar de escela "evolucionista racista". Essa pre-
cujos estudos, com base em caracteres fisicos, "ocupam lugar pro- rnissa tambern estava presente em textos de zoologia. Em urn arti-
eminentemente nas questoes ethnol6gicas" (Lacerda, 1914, p. 48). go sobre "urn pequeno animal extremamente curioso denominado
Dtilizando os recursos craniometricos da escola fraI.1cesa Batrachychthis", Pizarro, antes de falar sobre a especie em ques-
de Broca e apos uma serie de analises de cdnios (com a explica~ao tao, faz urn longo introito sobre "as contribui~oes de Darwin,
detalhada do que se deve ou nao medir e a descri~ao das dificulda- Lamarck e Haeckel, para 0 desenvolvimento do movimento
des encontradas, ja que "e preciso lutar com as idiias supersticio- scientifico ... e para despertar a atten~ao dos povos do continente
sas de indios de urn lado, e com os escrupulos dos missionarios ... sul-americano cujos filhos pareciam dormir 0 somno da indiferen-
para se obter urn cranio da ra~a indfgena"), Lacerda conclui que: ~a sobre 0 mundo das preciosidades que se enthesouram nas suas
"pela sua capacidade os Botocudos devem ser colocados par dos :t terras" (Archivos do M.N., 1,p. 32).19
Neo-Caleddonios e Australianos entre as ra~as notdveis pelo seu Em suma, algumas caracterfsticas do M.N. devern ser
grau de inferioridade intelectual. As suas aptidoes san co~ effeito relevadas. E necessario destacar que a Antropologia, para 0 mu-
muito limitadas e difficil i faze-los entrar no caminho da civiliza- seu, se constitufa enquanto ramo das Ciencias Naturais, deten-
~ao" (Archivos do M.N., 7, p. 53). do-se talvez com mais vagar no sistema nervoso e na medi~ao
Dessa maneira, e com essas conclusoes, Lacerda parecia dos cranios.20 Batista Lacerda, em seu curso sobre antfopologia
posicionar-se em rela~ao a urn amplo debate. Formulava a sua ministrado em 1877, afirma: "Os conhecimentos anatomo
contribui~ao local aos embates da "grande confedera~ao scientific a physycologicos constituem a base da anthropologia" (Archivos
mundial" ao aceitar as teses poligenistas de Agassiz e ao ten tar M.N., 2, p. 110).
"comprovar" que "a America fora realmente urn dos centros de Em segundo lugar, e importante relembrar 0 modelo de
cria~ao" (Archivos do M.N., vol. 7, p. 75)Y Essa perspectiva, museu que 0 recern-reinaugurado M.N. tentava seguir: urn modelo
presente nao so nesse como em muitos outros text os de Lacerda
(nos volumes III, IV, VI e XII), reitera sua posi~ao de que "occupamos Academia Nacional de Medicina do R. J.; membro da Sociedade de Antropologia
de Bedim, Paris e Lisboa; vice-presidente do Congresso Medico Pan-americano de
urn nfvel muito baixo na escala humana e que pode ser equipara-
Washington (1893); entre outros (outras informa<;:oesencontram-se em Seyferth,
do aos povos selva gens que hoje conhecemos" (Archivos do M.N., 1984). Quanto a polemica lan~ada por L. Agassiz, deve-se salientar que esse cien-
6, p. 185).18 tista (defensor da ideia da existencia de varios centros de cria<;:ao,0 poligenismo,
por oposi<;ao ao monogenismo biblico que determinava a exisfencia de um Unico
quem 0 tamanho e 0 volume dos cerebros fomeciam dados suficientes para a deli- nucleo inicial), estava justamente interessado em descobrir na America a compro-
mita<;:aoda capacidade dos povos. Sobre essa questao, vide tambem Gould, 1981. va<;:aoda existencia de urn dos varios centros de cria<;:aohurnana.
17. Voltaremos a discutir a aplica<;:aoe a reela bora<;:aodas teorias raciais no Brasil. 19. E interessante notar a constancia com que esses autores eram citados e inseridos
18. Cumpre destacar que Lacerda se tomou famoso por ser urn dos mais ardorosos em analises locals. Fausto Cardoso, por exemplo, elabora toda uma obra em cim'!!
defensores das teses de branqueamento e depura~ao das caracteristicas fndias e do que chamou de "harckelianismo", remetendo-se sempre a questoes e temas
negras que compunham nossa p()pula~ao. Foi 0 prirneiro cientista a dar um curso locais. Por outro lado, essa parece ser a "versao indfgena e naturalista" do pedido
de antropologia no Brasil (em 1877):cuja sUmula se encontra no vol. II dosArchivos contemporaneo de Silvio Romero, para que tirassemos 0 "negro" de nossas co-
do M.N.; foi tambem 0 linico representante brasileiro a participar, em 1911, do 1° zinhas e 0 transformassemos em "objeto de estudo", antes que outros 0 fizessem
Congresso Universal das Ra~s, defendendo a tese do branqueamento em urn se- (Nina Rodrigues, 1945).
culo para o Brasil. Batista Lacerda, alem de ter sido diretor do M.N. e do Labora- 20. 0 prirneiro curso de antropologia no Brasil, ministrado por Batista Filho, foi ex-
torio de Biologia, ocupou outros cargos de destaque na epoca: foi presidente da clusivamente sobre anatomia.
profissional, cujas regras se remetiam todas as especificidades e edifica~ao do monumento e aqueles que lutavam pela ampla distri-
delibera~oes europeias e americanas. bui<;ao de verbas e recolhimento ao Tesouro.
Por fim, e necessario refor~ar a "marca nacional" que 0 Finalmente, em marCTode 1885,0 presidente de provincia
M.N. buscava imprimir, imagem essa no minimo estranha ao hori- Jose Lua d'Almeida Couto orden a 0 infcio do projeto do italiano
zonte do fenomeno denominado "era dos museus". Tommaso Gaudenzio Bezzi, aprovado por D. Pedro II, como ho-
menagem a Independencia. Ate entao, a elite politica local, nao
a MUSEU PAULISTA: percebendo urn sentido pratico nesse centro de esru"dos, retardava
«ENFIM UM MUSEU VERDADElRAMENTE SCIENT/FICO" as suas contribui~oes e a entrada de verbas.
Com 0 desenvolvimento do cafe na regiao paulista e a
Niio temos ate hoje universidade a/guma no pais, nem ao construc;ao de uma·"metropole local", 0 projeto de Bezzi foi final-
menos uma academia ou eschola de sciencias naturais. Nestas mente aprovado e colocado em pratica. Urn museu em Sao Paulo
condi~oes niio e difficil explicar 0 estado de atrazo em que ate hoje parecia constituir, portanto, urn suporte para outras significac;oes,
acha-se 0 estudo das sciencias naturais no Brasil
ou mesmo representar a ascensao de uma nova provincia no cena-
H. VON IHERING (DIRETOR DO M.P.), 1895
rio nacional. 22
Contratados 0 arquiteto Luiz Pucci eo engenheiro Stevaux
Segundo a historia oficial, a cria<;ao de urn museu em Sao
(que, entre outros, deveriam construir uma estrada que ligasse a
Paulo esteve a principio ligada a ideia de se erguer urn momimento
capital ao monumento do Ypiranga), as obras, a despeito de imi-
"escultural e grandioso em homenagem a Independencia Nacio-
meros contratempos, estavam conclufdas em 1890. 0 ediffcio, po-
nal".21 Logo apos as comemorac;oes de 7 de setembro em 1824,
rem, permaneceu desocupado, uma vez que 0 Palacio, construido
Lucas Antonio Monteiro de Barros (mais tarde Visconde de Con-
em pomposo estilo classico da RenascenCTa,nao oferecia condic;oes
gonhas qo Campo), na qualidade de presidente de provincia, pede
para 0 funcionamento normal de uma escola.
contribuic;oes voluntarias com 0 aceite do Imperador D. Pedro I.
Cumpria assim 0 M.P., ate esse momento, apenas 0 papel
o projeto do monumento a ser erigido no proprio sitio do de monumel)to historico, ligado a memoria da Independencia e ao
Ypiranga nao segue em frente, permanecendo apenas como preo-
marco do Ypiranga, sem qualquer vinculac;ao mais pragmatica ou
cupaCTaomenor, em meio a tantas crises polfticas e problemas de
perspectiva cientffica delimitada.
falta de recursos.
Em agosto de 1893, 0 museu do Yp~ranga adquiriu as
Somente por volta de 1870, gestao do Visconde de Born
coleCToespertencentes a Joaquim Sertorio, localizadas no Museu
Retiro como presidente de provincia, comeCTama intensificar-se os
esfor<;os. E a epoca das grandes "loterias do Ypiranga", fadadas ao
insucesso uma vez que a renda obtida era toda alocada pela Assem- 22. Sao Paulo, segundo Emani da Silva Bruno, transformava-se em fmais do seculo
bleia Provincial para "fins sociais de necessidade mais imediata" XIX de pacata aldeia de estilo colonial em uma "metropole do cafe". Em 182~,
fundava-se a Faculdade de Direito de Sao Paulo, e 0 movimento estudantil surgia
(Gomes apud Paiva, 1984, p. 10). Pouco tendo sido feito entao, alterando os costumes locais. Tambem nessa epoca, principalmente a partir de
permaneceu sem solu<;ao 0 debate entre os que defendiam a 1870, com 0 apogeu das planta~oes de cafe no Oeste Paulista Sao Paulo transfor-
ma-se no "centro" do comercio cafeeiro. Com 0 cafe chegaram os "grandes casa-
21. 0 historico do M.P. foi elaborado a partir de dados existentes no livro organizado roes", as estradas de ferro, 0 "embelezamento" da cidade (que se fazia, e claro, a
por Paiva (1984) e das declara~oes encontradas nas Revistas do Museu Paulista, despeito das pessimas condi~oes estruturais em que vivia a popula~ao negra e imi-
1985/1987, 1 e 2. grante) (Morse, 1970; Bruno, 1954).
do Estado (antigo Museu da Sociedade Auxiliadora). Do acervo fica<;ao, que imprimisse ordem a esse universo caotico. Segun-
desse rico paulistano faziam parte cole<;6es de especimes de his- do E. Hobsbawm (197'n, enquanto colonialistas ingleses - como
toria natural (sem qualquer classifica<;ao), bem como pe<;as de Cecil Rhodes - pretendiam tudo dominar (a terra e os plane- .
diferentes generos, de objetos indfgenas e jornais, a quadros ou tas), teoricos evolucionistas - como Frazer e Tylor - buscavam
pe<;as de mobiliario. tudo classificar.
Com esse material que possufa mais 0 carater de "cu- Tendo como base esse saber evolutivo, classificatorio e
riosidades gerais", como urn "gabinete de objetos exoticos", pautado nas Ciencias Naturais, von Ihering imprimini ao M.P. toda
foi inaugurado oficialmente 0 Museu Paulista atraves da Lei uma "marca profissional", adaptada e conforme aos grandes mo-
n. 200, Decreto n. 249, de 26 de julho de 1894. No mesmo delos europeus.
ana e contratado, por i1'l.dica<;aode Orville Derby (diretor·da Ainda no interior dessa perspectiva, publicou-se em 1895
Comissao Geogrcifica e Geologica do Estado), 0 zoologo Hermann o primeiro numero da Revista do Museu Paulista, marcada por urn
von Ihering: que permaneceria no cargo de diretor do museu projeto bastante personalista de seu diretor. Logo na capa, alem da
ate 1915.23 imagem da fachada do museu, consta urn breve currfculo de von
Abria-se entao urn novo museu cujo objeto era, segundo Ihering. Vejamos: "D. H. von Ihering. Dr. medico et. ph., Diretor
von Ihering, "estudar a historia natural da America do SuI e em do Museu Paulista; socio honorario da Sociedade Anthropologica
particular do Brasil, por meios scientfficos" . Na dire<;ao da institui- Italiana; da Academia de Sciencias em Cordoba, da Sociedade
<;ao encontrava-se, dessa feita, nao cientista local mas urn zoologo Geographica de Bremen, da Sociedade Antropologica de Berlim,
alemao, acostumado aos debates e perspectivas de seu continente da Academia de Sciencias em Philadelphia, da Sociedade dos Natu-
de origem, e que imprimini ao M.P urn caniter predominantemente ralistas em Moscou, da Sociedade Etnologica de Bedim, do Museu
ligado as Ciencias Naturais e, em especial, ao estudo da Mineralo- Etnologico em Leipzig e da Sociedade Scientifica do Chile". Are:
gia, Botanica e Zoologia. vista revel ava, logo de infcio, nao so a figura de seu mentor,24 mas
tambem toda uma postura internacionalista na referencia expHcita
a outros centros de produ<;ao.

Seja-me permitido congratular-me com sua exceIencia par ter criado um 24. H. yon Ihering, filho do Jurista Rudolph yon Ihering, viveu de 1850 a 1930.
museu sabre bases cientificas como ate agora no Brasil nao existiu. . Graduou-se em medicina e ciencias naturais na Alemanha, tendo sido aluno
H. VON IHERING, 1895 de Virchow e Lenhart, dentre outros. Seus estudos iniciais estiveram ligados
a Antropologia Fisica (Craniologia, em especial); passou mais tarde a Zoolo-
gia, notadamente 0 estudo de moluscos, tema de sua tese de doutorado de-
Montava-se a partir de 1895, em Sao Paulo, urn projeto fendia em 1876 na Universidade de Erlarger (Significados do aparelho diges-
de "museu enciclopedico" "que buscaria reunir exemplares de tivo dos moluscos) e de catedra na mesma universidade (Anatomia comparaJa
to do 0 conhecimento humano" (Elias apud Paiva, 1984, p. 13). do systema nervoso dos moluscos). Em viagem de nupcias em 1880, chegou
A institui~ao seguia as linhas de uma preocupa<;ao central na ao Brasil e acabou fixando residencia no Rio Grande do. SuI, dedicando-se ao
estudo da fauna, da flora' e dos povos indigenas da regiao. Trabalhou durante
epoca, que dava re1evancia aoconhecimento passfvel de classi-
esse periodo como viajante do M.N .. Em 1893, vem para Sao Paulo como
chefe de se\ao (Zoologia) da Comissao geografica do Estado de Sao Paulo.
23. 0 Museu, ao ser inaugurado, subordinava-se a Secretaria de Neg6cios do Interior Assume 0 M.P. em 1894, tendo sido responsive! por toda a organiza\ao do
(posteriormente Secretaria da Educa\ao) (Azevedo,s.d;, pp. 166 e 176). museu inaugurado em 7 de setembro de 1895 (Lima, 1985, p. 245).
o numero inicial da publica~ao doM.P. e, em si, 'bastante scientificas" .25 I>arecia estar em questao a forma~ao de urn novo
revelador: se os dois primeiros artigos elaboram uma especie de tipo de museu. Ambas as institui~6es nacionais, tanto 0 M.P. como
"historia mftica do museu", caracterizando-o enquanto urn "'mo- o M.N., tinham 0 desejo de setransformar e de se auto-representar
numento de gloria paulista", 0 artigo de H. yon Ihering revel a a por meio dessa representa~ao. .
nova faceta que 0 estabelecimento deveria possuir. A resposta do M.N. nao se fez esperar, loao Batista Lacerda
Nesse artigo, lido na solenidade de inaugura~ao do mu- (entao diretor da institui~ao) interrompe a edi~ao do volume 9 dos
seu, Ihering deixa daro as novas perspectivas que pareeem nortear Archivos e, de maneira irada, assim se refere ao discurso inaugural
o recem-fundado museu. Eis algumas passagens de seu discurso: de yon Ihering: "Urn ponto de mira teve 0 Dr. yon Ihering quando
"A maior parte dos museus do mundo tern a sua origem em collefoes para alterar 0 nfvelscientifieo do museu procurou iludir a opiniao
particulares que crescendo alem das localidades e dos reeursos ... dos ignorantes sobre 0 vallor do Museu do Rio de Janeiro que elle
san transferidas aos governos ... Examinando a historia deste nosso julga indigno de equiparar-se ao M.P. e ao do Para... 0 Dr. Ihering
museu, logo verifieamos que 0 seu desenvolvimento corresponde pretende certamente te(realizado urn. milagre com os escassos re-
bem aode estabelecimentos analogos ... Seja-me permitido por- cursos do Estado, com urn pequeno nudeo de colle~6es compradas
tanto congratular-me com sua excelencia por ter criado urn mu- a urn particular".
seu sobre bases scientificas como ate agora no Brasil ntio exis- o em bate entre os diretores foi longo e de cada uma das
tiu ... 0 fim de nossas colle~6es e demonstrar, dar boa e instrutiva partes envolvidas provinham imagens diversas. Do lado do M.N. a
ideia da rica, interessante natureza da America do SuI, do Brasil ironia ante "a tacanha situa~ao material" em que vivia 0 M.P. em
e em especial do homem suI americano ... 0 que nos precisamos seus momentos iniciais, em contraposi~ao a grandiosidade do pro-
fazer san classificafoes scientificas ... Nesse sentido, muito para jeto teorico. Como dizia Lacerda: "0 Dr. von Ihering tern natural-
nao dizer tudo esta por fazer ainda ... Nao posso deixar de mente em vista insuflar os animos proprios dos paulistas e reco-
mencionar alem do Estado de Sao Paulo, um outro prospero mendaraos poderosos do Estado ~s' seus incomparaveis servi~os.
do pais, criou um museu com pessoal scientifico e sobre bases Procedeu bern, trabalho pro domo sua".
ma~s amplas do que este, refiro-me ao Museu do Para ... confi- De outro lado, a partir da perspectiva do M.P., e nas pala-
ado a dire~ao competente do meu amigo Dr. Goeldi" (Revista vras de seu diretor, abria-se como que uma nova fase aos museus
do M.P., 1, pp. 19-24). nacionais, na qual estava em jogo a eonstitui~ao de urn campo di-
Desse discurso inaugural algut:ls elementos podem ser des- verso de atua~ao e postura cientffica.
tacados: a preocupa~ao com padr6es de "scientificidade", apenas o M.P. constitufa-se, portanto, enquanto modelo mimetico
capazes de serem conseguidos a partir de regras de dassifica~ao de museus europeus e american os. Von Ihering, nesse sentido, du-
corretas e de metodos pautados em modelos estrangeiros; e a alu- rante toda a sua administra~ao,nao so viajou eonstantemente visi-
san a uma especie de "missao dos museus", enquanto orgaos com tando os grandes museus, como muitas vezes publicou regras e tex- Jt

papeis de destaque, em fun~ao, no caso, da carencia de universida-


des no pafs. 25. H. yon Ihering nao s6 nao se referia ao M.N., como destacava exclusivamente as
Porem, 0 trecho que mais polemicas eriou, ao menos na atua~6es do M. Goeldi e da "Comissao Geographica e Geologica e do Instituto
epoca, foi aquele em que yon Ihering, mesmo sem citar diretamen- Agron6mico de Campinas", enquanto linicas "institui~6es cientificas" do pais.
Nesse sentido, Castro Faria tece algumas considera~oes sobre os "mitos doM.N. ",
te, acabou desqualificando a produ~ao e a posi~ao do M.N., ao dizendo que realmente "grande parte do acen.o Imperial era insignificante e des-
afirmar que seria 0 M.P. "0 primeiro museu criado em bases provido de informa~ao" (Faria, 1982).
tos elaborados a esse respeito no exterior. A revista de 1897 traz (portanto ate 1914), dentre os 110 artigos listados, 45 (ou seja,
urn artigo do diretor do Museu Nacional dos E.U.A.., Dr. Brown 40%) foram redigidos por Ihering (s'em contar relat6rios e biblio-
Goode, intitulado "The principles of museum administration" (N.Y., grafias, sempre assinados pelo diretor).26
1895). Desse texto, Ihering retira uma serie de maximas, dentre as Quanto aos temas, podemos notar, com especial clareza,
quais destacamos: "Alguns dos cham ados Museus sao pouco mais o predomfnio das Ciencias Naturais. Dos 254 artigos catalogados,
do que armazens cheios de materiais com que os Museus se organi- 180 (70%) tern como temas centrais questoes de zoologia (area de
zam ... Os servi<;os effectivos que urn museu podera prestar como atua<;ao de von Ihering), discutidas sempre atraves da compara<;ao
meio de educa~ao e de progresso das sciencias dependem da orga- e classifica<;ao (com grande utiliza<;ao de estampas). Sao objetos de
niza<;ao de uma colle<;ao de estudo. 0 MUSEU p(muco E UMA NE- analise, por exemplo: "os piolhos vegetais; os moluscos do terciario,
CESSIDADE EM QUALQUER COMUNIDADE DE CIVIUZA<;:Ao PROGRE- conchas e colora<;oes; ou 0 sistema nervoso dos moluscos".
DIDA" (Revista do M.P., 3, pp. 5-6). o predomfnio e tal que resta pouco espa<;o para os de-
A esse tipo de posi<;ao, von Ihering com freqliencia acres- mais temas: antropologia (9,8%), botanica (4,7%), biografias (4%),
centava as suas, marcando a especificidade desses novos museus do geologia e arqueologia (3,5%).
final do seculo: "os museus do seculo presente nao podem ser os Corn a mudan<;a de dire<;ao e a entrada de Affonso
simples continuadores dos do seculo pass ado; os seus fins sao outros, D'Escragnolle Taunay, ern 1916, houve inclusive uma tentativa de
nao s6 com referencia as colle<;oes expostas, mas tambem quanto verbalizar essa especializa<;ao. Ou seja, Taunay (nessa epoca, tam-
ao seu carater scientffico" (Revista do M.P., 7, p. 448). bem professor da Escola Politecnica de Sao Paulo) buscou marcar a
o "padrao cosmopolita" do M.P. poderia ainda ser re- sua dire<;ao atraves de varias mudan<;as, dentre elas 0 ataque a atua-
marcado atraves do grande numero de revistas com as quais 0 esta- <;aoanterior. Afirmava, por exemplo, sua inten<;ao de corn a revista
belecimento mantinha rela<;oes de permuta. Aparecem -ao todo, nos atingir varios ramos das Ciencias Naturais, pois "ate agora a pu-
diversos volumes de revista, 38 referencias a diferentes publica<;oes blica<;ap foi exclusivamente uma revista de zoologia", em uma cla-
com as quais 0 M.P. mantem contato, provenientes de varios paf- ra alusao a orienta<;ao e as preferencias do antigo diretor (Revista
ses. ]apao, Australia, E.U.A., Argentina, Chile, Nova Zelandia, do M.P., 10, p. 8).
Alemanha, Inglaterra, Fran<;a, Italia e Uruguai sao exemplos de Outra altera<;ao imposta pela nova dire<;ao, facilmente
uma grande lista. constatada a partir da analise do Quadro 4, refere-se ao perfil
Com reIa<;ao aos artigos que compoem a Revista do Mu- dos autores que participam, des de entao, da revista. Se ate 1918
seu Paulista, algumas especificidades devem ser marcadas. Quanto o peri6dico era antes de tudo marcado pela presen<;a de artigos
ao perfil dos autores que se responsabilizam pelos textos publica- assinados por cientistas estrangeiros, a partir dessa data pode-se
dos, chama a aten<;ao 0 elevado numero de naturalistas estrangei- perceber a maior participa<;ao e mesmo urn ligeiro predomfni<J
ros, principalmente se comparado a quantidade de cientistas nacio- de cientistas nacionais.
nais. Durante a dire<;ao de Ihering, dos 110 textos escritos somente No entanto, pelo m~nos ate os anos 30, e apesar das de-
10 foram assinados por pesquisadores nacionais. Tal predomfnio clara<;oes de Taunay, 0 M.P. se man tern enquanto local de estudos e
pode ser referenda do se se atentar para 0 grande numero de artigos
26. 0 personalismo que marca os diretores dos museus nacionais pode ser caraeteriza-
transcritos em ingles, frances ou alemao presentes na revista. do ainda por outro tipo de pratica, pela qual se denominam as diferentes especies
Outro fato digno de nota refere-se ao personalismo pre- encontradas com 0 nome do cientista que .as cataloga. Por exemplo, Ibbula Dalli,
sente na revista, na figura de seu diretor. Durante a "era Ihering" Ihering Marginella, Quemandeneu Ihering, Ficulla carolinense d'Orbigny ...
QUADRO 3
REV. DO MUSEU PAULISTA - DISTRIBUI<;:Ao DOS ARTIGOS POR TEMA E AN0.I?E PUBLICA<;:Ao 1895/1929
ANO BOTANICA ZOOLOGIA GEOLOGIA ANTROP. ARQuEOLOGIA
..
BIOGRAFIA DlVERSOS TOTAL OBSERVA<;:OES
MINERALOGIA (MUSEUS)

1895 5 1 4 10
(vol. 1)

1897 7 1 1 9 DIRE<;AO DE H. V.
(vol. 2) IHERING

Botan. 3
1898 2 7 1 1 11
(vol. 3) Zoolog. 75
Geolog. 3
1900 11 1 1 13 Antrop. 11
(vol. 4) Arqueol. 5
Biograf. 8
1902 6 1 7 Diversos 5
(vol. V)
TOTAL 110
1904 6 4 2 12
(vol. VI)
(45 DE H. YON IHERING)
1907 4 1 3 1 9
(vol. VII)

1911 14 1 2 1 2 20
(vol. VIII)

ANO BOTANICA ZOOLOGIA GEOLOGIA ANTROP. ARQUEOLOGIA BIOGRAFIA DIVERSOS TOTAL OBSERVA<;:OES
MINERALOGIA (MUSEUS)

1914 1 17 3 21
(vol. IX) .

1918 5 16 1 4 . 2 3 31
(vol. X)

1919 10 2 12
(vol. XI) DIRE<;:}"ODE T AUNAY

'1
Batan. 9
1920 16 3 20
Zoolog. 103
(vol. XII)
Geolog. 6
1922 1 15 3 1 1 21 Antrop. 14
(vol. XIII) Arqueol 5
Biograf. 3
1926 1 15 1 1 2 20 Diversos 4
(vol. XIV) TOTAL 144
1927 20 2 1 23
(vol. XV)

1929 2 11 4 17
(vol. XVI)

TOTAL 12 180 9 25 9 11 9 256


pesquisas em ciencias naturais (em sua revista, continuou claro 0 QUADRO 4
predominio da Zoologia). REV. DO MUSEU PAULISTA - DISTRI~UI<::AO DE ARTIGOS PELO PERFIL
A analise da Revista do Museu Paulista nos leva a DOS AUTORES

outras considerac;6es a respeito da instituic;ao. E possivel no- Autores Ate 1918 Depois de 1918 Total
tar, em seu projeto, urn fato ate entao singular: a entrada, na Pessoal Nacional 6 53 59
hist6ria, da figura do etn6grafo profissional. Profissional no
Pessoal Internacional 100 47 147
sentido da certeza do metodo, na aplicac;ao das normas, na
montagem das colec;6es, na elaborac;ao das revistas, no conta-
to continuo com 0 "mundo scientifico" com 0 qual preferen-
cialmente dialoga. .
A seguir,e necessario destacar a singularidade de urn o MUSEU GOELDI:
museu que nasce regido por "criterios scientificos", formaliza- "A LUZ DA SCIENCIA BEM NO MEIO DA SELVAGERIA AMAZ6NlCA"
dos em institui~6es internacionais de prestigio. No interior desse
local, pouco espac;o havia, ao menos nos primeiros tempos, para Durante todo 0 seculo XIX, a regiao Norte e em espe-
o debate interno. A produc;ao, preferencialmente realizada por cial a Amazonia foi palco privilegiado de uma serie de expedi-
viajantes estrangeiros, dirigia-se a urn debate que se travava em c;6es cientfficas. Em 1866, varios intelectuais da regiao, interes-
esferas longinquas. Como "scientista profissional", Ihering de- sados em formar urn museu nacional de hist6ria natural, buscaram
batia antes de tudo com aqueles que considerava seus pares, por em aerao essa ideia congregando-se em torno da figura de
distanciando-se de maneira por vezes agressiva de seus colegas Domingos Soares Ferreira Penna, secretario do governo do ParaY
de profissao e, em especial, do modelo representado pelo Mu- A ideia em si e 0 modelo de mecenato nao eram originais. No
seu Nacional. entanto, nesse caso tratava-se de formar uma institui~ao cientifi-
Resta pensar no papel que a Antropologia cumpre no a
ca em meio "jungle amazonica", 0 que trazia com certeza difi-
interior do M.P. Apesar de estar classificada na quarta se~ao, culdades e desafios pr6prios.
juntamente com a Zoologia (assim como na disposic;ao constan- Em 6 de outubro de 1866, fundava-se a Associaerao
te do M.N.), enquanto disciplina a Antropologia pode set pensa- Filom.atica do Para, com a participac;ao de Domingos Soares Ferreira
da como uma especie de derivac;ao 16gica dos estudos de zoolo- Penna (ge6grafo, etn6grafo, alem de polftico e jornalista), Jonas
gia e botanica. Nesse sentido, poucos artigos versam exclusivamente Montenegro e Ladislau de Souza Mello (ambos sem formac;ao cien-
sobre 0 homem americana, sendo que as referencias aparecem tifica). A associac;ao transforma-se em museu, tendo a frente Ferreira
em meio a artigos que se remetem a outras especies da fauna e Penna e, como diretores, representantes da sociedade local. Urn
sobretudo da flora. museu em Belem, segundo seu mentor inicial, cumpriria as atribu"i.-
A partir da produc;ao do M.P., e possivel notar com maior c;6es de uma academia ja que a cidade nao possuia escolas superio-
clareza 0 nascimento de uma disciplina antropol6gica umbilical- res ou demais entidades de cunho cientifico.
mente ligada aos parametros e model os das Ciencias Naturais. Uma
antropologia ffsica vinculada a Frenologia, e para a qual, no dizer 27.0 historico do M. Goeldi foi elaborado, em boa parte, a partir de dados retirados
de Ihering, "estudar a flora e a fauna era tambem estudar 0 homem do livro de Cunha (1966), e dos fatos relatados no proprio Boletim do Museu
primitivo" . Goeldi (1 e 2).
o principal objetivo do recem-fundado museu seria 0 es- Schonnann (taxidermista), Curt Nimuendaju (etn610go), Ernest
tudo da natureza amazonica, de sua flora e fauna, da cOhstitui<;.ao Lonse (desenhista lii:6grafo) - e elabora duas revistas, nos mol des
geol6gica, rochas e minerais, da geografia da imensa regiao, bem de publica<;6es internacionais: 0 Boletim do Museu Paraense e
como assuntos correlatos com a historia do Para e da Amazonia Memoria do Museu Paraense.
(Cunha, 1966, p. 8). omuseu ganha certa notoriedade
. em fins do seculo XIX ,
Varios contratempos, porem, fazem com que 0 museu pas- nao apenas devido as suas publica<;oes, mas tambem por causa da
se em 25 de mart;o de 1871 para a 6rbita administrativa do governo ihterVent;ao de Goeldi no litfgio com a Frant;a na questao da Guiana
da provincia. Nesse meio tempo, apesar do empenho de Ferreira Francesa, atual Territ6rio Federal do Amapa.28
Penna em trazer pesquisadores de renome, como 0 geologo ameri- A analise dos dez primeiros numeros da revista do M.P. G.
cano Charles Frederick Hartt (que participava como naturalista do - Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Etnographia-
M.N.), varios estudiosos se demitem em fun<;ao da falta de verbas e .
revela 0 papel da publicat;ao como "cartao de visitas" do museu ,
recursos. Durante os ultimos anos do Imperio, 0 museu acaba se ante as demais institui<;6es do mesmo genero.
transformando em simples e rotineira repartit;ao publica, e os deputa-
dos da Assembleia Legislativa resolvem extingiii-io (1888) conside- UMA PUBLICA<;AO CIENTfFICA EM MEIO A "PARIS DO SOL"

rando-o inutiI. 0 museu, reinaugurado em 1891, deve 0 seu ressurgi- Quem folhear a publica<;ao doM.P.G. ficara impressiona-
mento em parte ao pr6prio "boom da borracha" na regiao e as do com seu numero reduzido de paginas (ao menos se comparado
pretensoes de transformar Belem em uma especie de "Paris do Sol" . as demais revistas desse tipo, da epoca) e a constante declarat;ao de
A institui<;ao, montada neste contexto com 0 incentivo de "humildade" ante os outros peri6dicos.
dois paraenses ilustres - 0 Dr. Justo Leite Chermont (Governador) Essa caracterfstica, no entanto, corppartilha espat;os com
e Jose Verfssimo de Mattos (diretor da Instru<;ao Publica) - sofre outra iIlten<;ao, a 4e fazer do Boletim urn vefculo para entrada: "na
ainda das mesmas carencias: faha de verbas, de objetivos e de pes- porta do recinto, onde se opera 0 movimento scientffico e litterario
soal capacitado. internacional" (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 2).
Em 1893,0 Governador Lauro Sodre fica sabendo que 0 A publica<;ao do M.P.G. deixa claro, logo de inicio, sua
zo6logo suft;o Dr. Emilio E. Goeldi, que vivia em Teres6polis, tinha dupla perspectiva: a "humildade" de quem come<;a com poucos
sido demitido anos antes do posto de naturalista do Museu Nacional. recurs os (e nao garante periodicidade de publica<;ao) e a "digni-
Emilio Goeldi assume a diret;ao do museu.em 9 de julho de 1893 (com dade" de quem conhece 0 movimento internacional e pretende
35 anos) e, em 1894, elabora uma nova estrutura para a instituit;ao. estar a par dele.
Organiza as diferentes se<;6es(zoologia, botiinica, etnologia, arqueo- A primeira pagina da revista e curiosa. Abre 0 Boletim urn
logia, geologia e mineralogia) e uma biblioteca especializada em as- pequeno artigo escrito em ingles, pedindo por "exchange of publi-
suntos concernentes as Ciencias Naturais e Antropologia, bem como cations". A redat;ao, alem de especificar os temas de interesse, rea- ~
os jardins zoologico e botanico, contiguos ao museu.
a entao diretor busca fazer de seu museu uma reprodu- 28. Nos anos de 1897/99, E. Goeldi ajudou 0 Bariio do Rio Branco a Iidar na questiio
. diplomatica que envolvia a demarca<;:iiode Iimites entre a Guiana Francesa e 0
<;aofiel das institui<;6es europeias. Assim, traz (ou faz passar pelo
Amapa. Por conta, inclusive, do esfor<;:ode E. Goeldi junto a Rio Branco, 0 nome
museu) uma serie de especialistas e colaboradores estrangeiros - do museu passa para Museu Paraense E. Goeldi, em 3 de novembro de 1931. E.
Jacques Huber (botanico), Frederico Katzer (ge610go), Godofredo Goeldi fica no museu ate 22 de mar~o de 1907, quando retorna a Suf<;:a,onde
Hagman (zoologo), Adolpho Ducke (zo6logo botanico), Joseph falece em 5 de julho de 1917, com 58 anos.
firma 0 desejo de permuta; 0 pequeno texto termina insistindo na Castelvaw,o celebre Wallace e Crandless e Keller e Agassiz para
mesma ideia, em.linguas diversas: "Priere d'echange de publica- nao citar senao os mais notaveis ... impoe-se como urn dever de
tions; Bitte urn Schriftenaustausch" (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 1). sua civiliza~ao ... que recolha, guarde e imponha a atten<;ao ... porem
Essa nota nos chama a aten<;ao porque referenda a ideia outros atractivos que a cada passo estao chamando mais atten<;ao
de que as revistas e os museus, tendo como interlocutores diretos dos scientistas do mundo inteiro. Nesta parte da America pas-
as institui<;oes cientificas internacionais, se preocupavam em tor- sou-se senhores, um desses dramas obsconditos e equivocos as
nar-se legiveis ou ao menos interessantes aos olhos desses estabele- investiga<;oes dos mais sagazes estudiosos que vem se passando
cimentos.29 Em seguida, destaca-se, a partir desse artigo, a fun<;ao no seio da Humanidade desde que ela surgiu de seus principios
das revistas na perspectiva dos museus: instrumento privilegiado obscuros. Nesta regiao, ra<;as cuja origem se ignora e filia<;ao se
de troca, bilhete de entrada para 0 mundo cientffico da epoca. desconhece, cuja historia nao se sabe, existiram, viveram, luta-
o Boletim, logo em seu inicio, declara seus objetivos: "Tra- ram, deixando vestigios ... Quem sabe, senhores, si aqui nao esta
balhar no desenvolvimento das sciencias naturais e da etnologia do a chave de urn dos enigmas mais excitantes da curiosidade scientifica
Para e da Amazonia em particular, do Brasil e do continente em destes tempos: A Origem do Homem Americano" (Boletim do
ger~l. Publicaremos trabalhos originais, realizados por nos e MPG, 1 (1), pp. 6-7).
collegas ... em contacto. Estudaremos igualmente 0 que tern sido Ja a partir desse primeiro trecho do discurso inaugural
feito de born antes de nos ... fiscalizando 0 que se vai fazer fora, podemos destacar algumas ideias interessantes. Em primeiro lugar,
longe daqui ... por naturalistas" (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 2). os aspectos comuns: a correla<;ao entre no<;oes como ciencia e civi-
A revista do M.P.G. abria, portanto, uma perspectiva se- liza<;ao, e 0 destaque e a considera<;ao para com 0 "olhar que vem
melhante a das demais publica<;oes. Urn projeto bastante centrado de fora", dos naturalistas estrangeiros que aqui estiveram.30
nas Ciencias Naturais e tendo como base estudos locais, vincula- Mas 0 que mais chama a aten<;ao nesse primeiro segmen-
dos por sua vez a produ<;ao de naturalistas estrangeiros. e
to 0 destaque e a explica<;ao que 0 diretor da sobre 0 local de
o Boletim, como as outras revistas analisadas, trazia implanta<;ao do museu. A resposta mais imediata e aquela que se
no primeiro numero urn discurso de seu diretor geral, Dr. Emilio detem nas considera<;oes acerca desse "paraiso dos naturalistas" .31
Goeldi: "Manter dignamente urn Museu e uma consequencia, e A Amazonia representava para a epoca urn local precioso para a
quase urn dever na nossa civiliza~ao ... A capital dessa regiao, pesquisa e retirada de cole<;oes sobre a flora, a fauna e a geologia.
que 0 notavel scientista ingles Bates chamou de paraiso dos na- Goeldi chama a aten<;ao ainda para outro "enigma da epo-
turalistas, que desde Lacordomine ate Hartt foi perlustrada pe- ca". Apesar do "ponto final" grandiose dado por Darwin com a
los sabios e viajantes do mais alto valor como Rodrigues Ferreira, publica<;ao de A origem das especies, ainda permanecia a polemica
o nosso comprovinciano Lacerda, 0 glorioso Humboldt, Martins, que dividia poligenistas, comO L. Agassiz (adeptos da ideia da exis-
tencia de varios centros de cria<;ao) e monogenistas, comb
29. Nesse sentido, na segunda pagina do Boletirn, E. Goeldi faz uma longa digressiio Quatrefages (que acreditavam, assim como as escrituras biblicas,
acerca da lingua que deveria ser adotada na revista, t; acaba concluindo que: "como
producto brasileiro deve sahir com a sua roupa nacional. Nos dirao, 0 ]apiio tiio 30. :E interessante
notar que E. Goe!di cita os viajantes pe!o segundo nome, denotando
progressista publica em Frances e Ingles; mas nos apontamos, do nosso lado para certa intimidade em rela~iio a essas personalidades.
os Russos, os Hungaros, os Dinamarqueses e os Sui(:os e os Alemiies que cada vez . 31. A Amazonia parecia cumprir para os naturalistas, naque!e momento, pape! se-
mais mostram a tendencia moderna de publicar obras de sciencia no seu idioma me!hante ao que a Bahia cumprira para os africanistas, vindos ao Brasil a partir da
naeional". decada de 30 (Peixoto, 1988).
ter havido uma unica origem para a humanidade). Sem nos alon- querela com 0 M.N. (em especial com 0 seu entao diretor, Joao Ba-
gan~os sobre esse debate, a cita~ao revel a que a futura produ~ao tista Lacerda), torna-se clara ja no primeiro numero da revista ao
do museu visaria, entre outros fins, contribuir para 0 debate, pro- referir-se as "preciosas cole<;oes que se espalham por museus",
vando talvez a "origem do homem americano" e refor~andoas Goeldi afirma: "Nao menos sabido e 0 modo pelo qual oM.N. enri-
teses de L. Agassiz (Lacerda, 1914). queceu-se, ainda nao ha muitos annos, as expensas incontestes do
o tom extremamente queixoso com que Goeldi constan- M.P. G. com avultado numero de objetos preciosos oriundos de
temente se refere ao estado anterior do museu e digno de nota: "0 Maraj6 e de outros pontos da Amazonia, levando a directoria, a
Museu deve deixar de ser urn depositcirio de curiosidades ... e sim titulo de "emprestimo" e com 0 pretexto de dar maiores dimensoes
uma colle~ao e um reposit6rio systematicamente disposto e a uma tal "Exposi~ao anthropologica" realizada na Capital brasi-
scientifieamente classifieado ... Uns caeos de igaftlbas aqui, uns frag- 'leira, 0 quinhao maior do que havia aqui no Para. Nada voltou,
mentos de erJnios aeolci, por assim dizer nada de inteiro, de com- nada foidado em troca ... a recorda<;ao d'aquella divida de ... hoje ja
pleto ... qu~ desse 0 direito de empregar 0 termo de eolle~iio" (Bole- e tao pallida, que amanha talvez seja extinta. Ficamos decididamen-
tim do M.P.G., 1 (1), pp. 7 e 15). Com a nova orienta~ao, a te s6 com aquele "recibo", como .valor de "ac~ao a fonds perdu?"
institui~ao paraense deveria perder 0 seu aspecto de arquivo de (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 16).0 artigo parece demonstrar que a
curiosidades e ganhar 0 can iter de estabelecimento cientifico, com "nova era" que se abria, com a instala~ao do M.P. e do M.P.G., en-
normas e cole<;oes organizadas. gendrava tambem a exclusao ou diferencia<;ao em rela<;ao ao M.N.
Goeldi parecia dessa maneira aproximar seu museu do A organiza<;ao do museu obedecia a mesma ordem dos
modelo profissional desenvolvido pelo M.P. E com essa perspectiva demais, com a ressalva de que a Antropologia aparecia nesse caso
que nos regulamentos, por exemplo, ele pretende "ver-se livre de separada da Zoologia: "l.a Seefiio: Zoologia e sciencias annexas;
certas colle<;5es e mobiliarios que mais cabem em urn Gabinete 2.a secfiio: Botanica e ramos annexos; 3.a seefiio: Geologia,
Hist6rieo" (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 17). Ou que se queixa do Paleontologia, Mineralogia; 4.a secfiio: Etnologia, Archeologia,
pessoal existente: "E preciso que haja menos administradores e mais Anthropologia". No entanto, essa separa<;ao nao indica, como po-
trabalho. E preciso que 0 museu cesse de ser uma reparti~ao publi- deria parecer, 0 predominio cia quarta se<;ao. Ao contrario, e tam-
ca propria mente dita e se torne uma officina scientifiea - Venia Sit bem nesse caso, predominam na revista os artigos ligados as l,a,2.a
Verbo" (p. 18). Ou que reclama regulamentos ate entao vigentes: e 3 .• se<;oes. .
"na sua reda<;ao deixa perceber completa inexperiencia da organi- Existem diferen<;as relevantes se tomarmos 0 item refereu-
zafiio de Museus em outras partes do mundo, e que ella nos causa te a "nomea<;oes". Nele nao consta qualquer especifica<;ao ou limi-
uma impressao que se sente no folhear urn e6digo legislativo me- ta<;ao a entrada, em postos de chefia, de elementos de origem es-
dieval" (p. 19). trangeira: "Para cargos scientificos as condi<;oes san: 1) ter cursado
Nesse sentido, sua postura e tao "cosmopolita" quanto a academia ou ensino de sciencias naturais que ocupe urn lugar noto-"
dos demais diretores: "Desejo ver 0 Museu Paraense grande e dig- riamente proeminente; 2) ter estudo aprofundado sobre sua espe-
no de seu nome, representado nos cireulos scientifieos e com 0 pes- cialidade e trabalho se possivel original; 3) ter probidade scientifica
soal que the compete no eertamen internaeional em prol dos bens (Boletim do M.P.G., 1(1), p. 24).32
intellectuais da humanidade" .
A aproxima<;ao entre Goeldi e von Ihering (bem como das 32. E importante destacar que esse regulamento foi elaborado em 1894, portando, na
respectivas institui<;5es das quais san diretores) e a concomitante "era Goeldi".
Com rela~ao a "parte scientffica", ou seja, aos artigos que
comp6em 0 Boletim do Museu Paraense, alguns aspectos comuns
podem ser destacados, como 0 predominio de "estudos naturalis-
tas" (95%). Encontraram-se, nesse sentido, altas percentagens de
textos de zoologia (48%), de botinica (36%) e geologia (10,2%).
Chama a aten~ao a inexistencia de artigos de arqueologia
e os poucos estudos de antropologia (0,4%), que se remetem antes
ao debate sobre linguas e vocabuhirios indigenas.
A presen~a marc ante dos diretores nas revistas, caracte-
ristica comum aos museus nacionais, e particularmente significati-
va no caso ora analisado. Por exemplo, dos 61 artigos de zoologia,
40 (65%) foram redigidos por Goeldi (alem das referencias a esse
zoologo constantes em outros artigos). Por outro lado, dos 45 tex-
tos de biologia, 36 (80%) foram assinados por J. Huber (diretor da
se~ao de biologia).
Esse tipo de constata~ao, mais do que exclusivamente in-
dicar "0 personalismo", parece comprovar a falta de pessoal capa-
citado a produzir e colaborar nesse tipo de revista. Praticamente so
participam da publica~ao 0 pessoal estrangeiro e os doutores de
se~ao do M.P.G., e que portanto moram no local. No caso do
M.P.G., temos 0 caso mais extremado de supremacia de participa-
~ao de cientistas europeus, ja que, ate 1949, todos os artigos ti-
nham sido escritos por pessoal de fora. So a partir do volume 10 da
revista, publicado com alguns anos de atraso, pode-se no tar a pe-
netra~ao de cientistas nacionais.
As autoridades residentes em Belem so apareciam na re-
vista quando Goeldi reproduzia a lista de doa~6es (que iam de cris-
tais a moveis ou anima is), distinguindo-se dessa forma, claramen-
te, dois espa~os: 0 local das curiosidades (ofertadas pela sociedade
paraense e prontamente arquivadas) e 0 local dos objetos passiveis"
de classifica~ao e analise, providos por naturalistas estrangeiros.
A fragilidade interna do museu parece ser contornada gra-
c;as ao papel que 0 museu cumpria para a ~ociedade local, sedenta
de fazer de Belem urn centro de poder correspondente a pujan~a
que a borracha trazia consigo. Afinal, afirmava 0 proprio Goeldi:
"Esperem, tenham paciencia, se Roma niio se fez num dia, quanto
mais um museu de Historia Natural e Etnographia nafoz do Ama- tencia de tres institui~oes do mesmo genero? Vivlamos em finais do
zonas" (Boletim do M.P.G., 1(2), p. 17). seculo, segundo Schwartzman (1979a: 81) num momenta de extre-
Ao que tudo indica, sua grande "missao" estava antes vin- ma precariedade, em que a ciencia: de viajantes e naturalistas euro-
culada ao debate que vinha de fora. As necessidades estrangeiras peus nao possula apoio politico ou base social, embora a educa~ao
ordenavam estudos e pesquisas locais. As requisi~oes e pedidos fei- despertasse algum interesse ..
tos por museus europeus e americanos eram constantes; e com cer- No interior desse panorama, os museus de etnografia 10-
to cansa~o que, por vezes, Goeldi se refere a elas: "De urn lado, nos cais, longe de cumprirem uma trajetoria fixa e previarnente estabe-
pedem inforrna~oes sobre este animal, de outro querem matterial lecida, passaram por momentos diversos em sua constitui~ao. Se se
sobre aquella planta, urn etnografo deseja informac;:oes sobre esta desdobrassem as caracterizac;:oesanteriores, encontrar-se-iam tres
tribo indlgena, e logo chega-nos uma carta de urn anthropologista perfodos diversos: nascimento, apogeu e decadencia.
implorando 0 nosso auxllio para obter cranios de certos fndios" Em seus momentos de nascimento, os estabelecimentos
(Boletim do M.P.G., 1(2), p. 17). locais so contariam com urn aspecto \.mificador:o proprio nome,
o M.P.G. debatia-se no interior da me sma contradi~ao "museu", que encobria projetos absolutamente diversos. A moldu-
que parecia envolver os museus nacionais. De urn lado, a for~a da ra institucional fixava classes de similaridade, enquanto a pratica
produ~ao que vinha de fora; de outro, a realidade local diminuta e concreta parecia revelar a diversidade dos empreendimentos.
tacanha, no que se refere as perspectivas de pes qui sa e produc;:ao. oM.N., por urn lado, tern seu momenta de origem vincu-
lado a poHtica de urn monarca portugues no Brasil, que lidava com
as vicissitudes de urn Imperio que se transferia para a colOnia. Alem
disso, em seu desenvolvimento, ate 0 ultimo quartel do seculo XIX,
o estabelecimento carioca se sustentava enquantq projeto bastante
OS MUSEUS NACIONAIS, nacionalista, vincula do (e dependente) ao Estado Nacional e, em
"DE GABINETES DE CURIOSIDADES A CASAS DE FACHADA» especial. a figura do Imperador.33
Por outro lado, 0 M.P., em seus primeiros anos, talvez
Se ate 0 mOl.pento pretendeu-se ter trac;:ado 0 perfil ins- forne~a 0 exemplo mais extremado de urn "gabinete de quinquilha-
titucional de tres museus nacionais, faz-se agora necessario nuanc;:ar rias" a servic;:ode e em homenagem a elite local. Basta verificar a
essas caracteriza~oes, buscando inseri-Ias no contexto do qual cole~ao inicial do museu, composta de porcelanas, cristais e mo-
fazem parte. veis, para que se apreenda 0 modelo que a institui~ao paulista cum-
o primeiro aspecto que chama a atenc;:aoe 0 contraste en- pria em seu perfodo de nascimento.
tre os "objetivos grandiosos" e as "praticas miudas" empreendidas, o proprio monumento erigido parecia pouco se assemelhar :f
uma vez que havia grande distancia entre 0 "projeto enciclopedico" a urn museu (tanto que nao era possfvel nem ao menos instalar
enunciado e a produ~ao materiallimitada desses estabelecimentos. uma escola no Iugar), mas antes marcar 0 local de uma representa-
Outra questao nao respondida refere-se ao problema da ~ao. A ideia de construir urn "monumento grandioso" parecia as-
viabiliza~ao pratica dos museus. Em urn pafs com uma atividade 33. :E famosa a vinculac;:aodo Imperador it produc;:ao cientffica do pais. 0 Imperador
cientffica tao restrita, limitada a iniciativas realizadas pelo favor costumava afirmar, em uma associac;:iiodireta com a famosa frase do monarca
imperial, ou a parca produ~ao de escolas profissionais e utilitarias frances Luiz XlV, que: "A ciencia sou eu". Sobre a participac;:ao de D. Pedro II,
em seus objetivos, como se poderia entender a existencia e coexis- vide Raiders (1944).
semelhar-se ao movimento de arquitetura empreendido con tempo- jetos e curiosidades pouco adaptaveis ou llteis ao manejo cientffi-
raneamente na Austria, onde em urn bairro espedfico (a Ringstrasse) co. A arquitetura do museu tambem e reveladora, pois parece tra-
a burguesia liberal, ao assumir 0 podet; passa a remodelar ediffcios zer a Amazonia para a civilizac;iio, a natureza para a classificac;ao,
e casas tal qual a sua imagem (Schorske, 1988, pp. 43-44). Guar- atraves de seus jardins e animais se mistur~mdo ao museu.
dadas as perspectivas e proporc;6es, quer-se destacar a clara Faltava, portanto, nesse primeiro momento, urn projeto e
vinculac;ao da ideia de construc;ao de "uma grande e imponente urn modelo que instituissem uma pratica comum. Somente a partir
obra" e os desejos da elite paulista, de se fazer finalmente represen- de finais do seculo, esses "momentos comemorativos", "marcos
tar nao apenas no campo da politica e da participac;ao, mas tam- locais", ganham urn novo sentido e condi~ao.
bem atraves de "simbolos culturais" partilhados. Fazer do "sitio". A partir dos anos 80 do seculo XIX, os museus nacionais.
do Ypiranga uma pequena Ringstrasse significava, de urn lado, pre- entram em urn momenta distinto de apogeu, quando nao s6 se con-
sentear a provincia com urn monumento a altura de sua condic;ao tratam novos cientistas mas se aparelham os estabeledmentos com
e, de outro, dilatar 0 centro da capital paulista. Longe da floresta, e vistas a cumprir seus fins cientfficos. Essa nova era marca talvez 0
as margens do Ypiranga, 0 museu sofreria com a distiincia e os momenta de maior homogeneidade dos tres museus, que se revel a
problemas de comunicac;ao que 0 local selecionado impunha; no na figura forte de seus diretores, preenchendo todos os espac;os va-
entanto, ganharia nos pIanos da epoca e em termos de projec;ao.34 zios das estruturas desses estabelecimentos. Eles organizam cole-
Por fim, semelhante e 0 perfil original do M.P.G. "Porta c;6es,classificam objetos, elaboram as revistas (produzindo a maior
de entrada para a floresta", em seus primordios, pareceu antes re- parte de seus artigos) e contratam 0 pessoal. Como diz Schwartzman
presentar urn exemplar "siames" ao M.P. Simbolo da pujanc;a da (1979a, p. 139), tanto nesses, como em outros estabelecimentos
borracha, por urn lade, "deposito de objetos variados de outro". contemporiineos (como 0 Instituto Agronomico de Campinas e 0
Fato interessante, nesse sentido, e a ordenac;ao e limpeza que Goeldi Inst.ituto Manguinhos), "prevalecia a forte dependencia de uma li-
teve de empreender "desobstruindo" 0 local, tao estulhado de ob- deran~a pessoal carismatica", que condicionava a situa~ao presen-
te e futura.
34. Os problemas de comunica~ao entre a cidade e 0 museu constantemente enumera- Outro aspecto comum ao segundo momenta e 0 debate
dos por von Ihering (que se queixava da falta de bondes) e podem ser verificados
privilegiado com 0 exterior. As cole~6es e os estabelecimentos
na compara~ao da freqiiencia ao M.P. e ao M.P.G. Apesar do tamanho da provin-
<;iapaulista, era bem menor do que a constatada no M.P.G. pertencem a uma realidade local, mas a aten~ao se volta total-
ANOS M.P. M.P.G. mente para fora. "Voltados para a Europa mas de olho no Bra-
1897 32.315 75.671 sil", talvez essa a grande marca desses museus nacionais (Pontes,
1898 32.965 84.372
1899 32.063 79.167 1988). 0 M.N., apesar de sua origem mais remota, passa por
1900 28A84 91A34 uma reorganizac;iio nesse perfodo, ria tentativa de incorporar ~
1901 26.672 88.008 acompanhar ditames dos novos museus cientfficos. Dessa manei-
1902 21.536
1907 40.680 124.670 ra, apesar de corporificar 0 unico exemplo de museu com 0 pro-
1908 40.374 155.799 jeto mais nacional, de forma~ao de quadros locais, niio escapou
1909 63.000 179.852 (ano de redu~aona passagemde bonde em SP) a perspectiva mais geral.
1910 67.000 164.686
Obs. Os dad os foram retirados das perspectivas revistas de ambos os museus. A partir
o M.P.G., por seu lado, representa talvez 0 exemplo mais
dessa data, a publica~ao d M.P.G. toma-se inconstante e nao fornece mais dados claro de estabelecimento "estrategico" no interior da 16gica dos
para compara~ao. museus internacionais. Porta de entrada aos misterios da floresta,
apresentava..,se como 0 "porto seguro" diante das dificuldades que progresso". Contra esse tipo de posic;ao foram in urn eras as rea-
urn ambiente in6spito como a Amazonia impunha aos estrangei- c;oes, de representantes tanto do M.N. como de outras instituic;oes
ros.35 Assim,se oM.P.G. nao se localizava na capital dos naturalis- cientfficas que, in loco, se articularam contra as posic;oes do entao
tas do seculo XIX, "posto mais avanc;ado", local privilegiado para diretor do M.P'36
o debate que se dirigia a outros centros de produc;ao. Essas e outras querelas nos mostram, sem nos determos
Longe da floresta e longe do brilho da capital, situava-se, sobre cada uma delas em especial, como se formulava todo urn
por fim, 0 M.P. Viabilizado por uma aristocracia paulista finance i- campo especffico de saber. Enquanto a debate extern a pode ser
ramente potente, mas "carente de cultura e ciencia", e dirigido por caracterizado como intelectual e de ideias, internamente a que se
urn cientista alemao isolado no interior desse contexto, 0 museu destacam sao disputas institucionais e de prestfgio. De urn lado, H.
mais se parecia a urn esqueleto sem carne: uma "Casa de Facha- yon Ihering, exemplo de cientista apenas rcidicado no pafs, mas
da". Modelo mimetico de entidades bem sucedidas em outras plagas, sem qualquer vinculo mais explfcito; de outro, uma perspectiva
o M.P. preenchia todos os requisitos formais e exteriores que seus realmente vinculada a urn projeto nacional.
mestres the impunham, sem a mfnima condic;ao de viabiliza-Ios. No entanto, os museus parecem remeter-nos a questoes
Projeto grandioso, empreendido por urn diretor nao menos grandi- que nao se esgotam na mer a verificac;ao da disputa interna, consti-
oso, 0 museu revelava mesmo contemporaneamente"suas fragilida- tuindo-se enquanto solu<;:oesinstitucionais no interior de uma ila-
des. Vma revista dependente de seu diretor e urn grande edificio c;ao carente de universidades. Nesse sentido, surgem como novos
sem nada para preenche-Io - 0 local pronto para uma produc;ao espac;os de produc;3.o cientffica, ao lado de outras instituic;oes de
inexistente. prestfgio na epoca, como a Escola de Direito de Recife, a Escola de
Mas a fragilidade estrutural do M.P. nao impediu a sua Direito de Sao Paulo, os diferentes Institutos Hist6ricos e Geografi-
projec;ao ou mesmo a montagerp de embates internos as organiza- cos, ou mesmo a Escola de Medicina do Rio de Janeiro au 0 Insti-
c;oes, que acabaram revelando as vicissitudes e diferenc;as presentes tuto Manguinhos (citando apenas alguns exemplos).
nas instituic;oes. E 0 caso da querela entre 0 M.N. (na figura de Por sua vez, no interior do panorama intelectual da epo-.
Batista Lacerda), de urn lado, e 0 M.P. e 0 M.P.G., de outro. ca, se a princfpio as muse us parecem estar vinculados antes a uma
As disputas VaG perpetuar-se, tomando outros temas e hist6ria comemorativa e ritual, a seu desenyolvimento os destaca
contornos, principalmente nos primeiros anos do seculo XX. Nes- en quanta estabelecimentos voltados para a estudo das Ciencias
sa epoca, 0 diretor do M.P. ja poderia ser considerado urn cientista Naturais e para a produ<;:ao de uma antropologia ffsica.
renomado, bem como a instituic;ao que dirigia (Lima, 1985, p. 285). A partir desse tipo de produc;ao, a primeira vista tao dis-
Com a ascensao pessoal, vinham tambem as disputas. Em 1911, tante do debate que se trava no local, os museus buscam, e de for-
inicia-se urn acirrado debate a partir das declarac;oes que yon Ihering . ma espedfica, tematizar 0 homem brasileiro. Partindo da flora e da
fez ao jornal 0 Estado de S. Paulo, vindo a publico pedir 0 exter-
mfnio de fndios como os Kaingang que por estarem no caminho da 36. Em 1908, por exemplo, 0 M.P. recebeu urn premio pela "melhor exposi~ao de
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil impediam 0 "desenrolar do Antropologia». No entanto, no caso especffico, as afirma~6es de H. yon Ihering
levaram a uma shie de rea~6es. Segundo Stauffer (1960), essas declara~6es gera-
35. Nas revistas do museum, sao varias as referencias aos rigores do clirna e da situa- ram um debate acirrado que cuIminou na cria~ao do S.P.I.L.T.N., como 6rgao
~ao. A se~ao de geologia viu-se prejudicada pela morte repentina de dois cientistas, especializado em lidar com quest6es indigenas. Alem disso, segundo alguns auto-
vindos para implantar e desenvolver essa area no museu (Boletim do M.P.G., 1, res, esse conflito teria levado, inclusive, a futura saida de H. yon Ihering do M.P.
pp. 1e 2). Nessesentido, vide Stauffer (1960); Lima (1985); Gagliardi (1985); e Ribeiro (1982).
fauna para chegar ao homem, ao recolher, analisar, classificar, correr tambem acerca do que Foucault descreveu como urn certo
hierarquizar e expo!; os museus parecem' oferecer urn pouco de "cien- "projeto de uma ciencia geral da ordem", que tern como perspecti-
cia e ordem", em meio a uma sociedade carente de "classificacs:oes". va nao igualar, mas sim hierarquizar e aproximar, para comparar e
Ao colocar em "clorof6rmio a realidade nacional", ou isolar (Foucault, 1970, p. 103).
constituindo-se como espacs:oseminentemente isolados, os museus Mas se 0 homem e urn ser classificador por excelencia,
na epoca cumprem papel relevante, "pois eram 0 unico ambiente sendo a exigencia de organizacs:ao uma necessidade comum (Levi-
em que se praticava a ciencia pela ciencia, sem a simbiose com a Strauss, 1976), a pratica desses museus nos remete, no entanto, a
ciencia aplicada, que marca a atividade dos demais institutos" urn tipo especifico de classifica~ao.
(Schwartzman, 1979a, p. 84). Segundo R. da Matta (1983, p. 8): "0 colecionador do
Palco da producs:ao de pesquisas, homeland do debate que museu, como 0 administrador colonial e 0 nosso antrop610go vito-
se travava fora de nossos limites, os museus acabaram por ajudar a riano evolucionista, tern uma verdadeira mania classificat6ria. De
transformar em senso comum de epoca, entre outros, teorias ra- fato, concebem a ciencia do homem como uma especie de arte clas-
ciais que denegriam e tornavam "obscuras" as perspectivas futuras sificat6ria, sendo sua tarefa obter exemplos tipicos de etapas pelas
dessa jovem nacs:aO.37 quais tern caminhado a humanidade no seu avan~o ate 0 nosso
tempo e sobretudo a nossa sociedade". No interior dos museus,
SOBRE UM CERTO TIPO CLASSIFICA<;Ao E ORDEM: "essas casas de classificacs:ao de objetos expressivos de perfodos
RA<;A, UMA QUESTAO LOCAL culturais diferenciados", era possive! aos antrop610gos e especia-
listas "a demonstra~ao empiric a da evolu~ao human a na face do
Em uma certa enciclopedia chinesa vem escrito que os animais se planeta" .38
dividem em: a) pertencentes ao imperado1; b) embalsamados, Tratava-se, sem duvida, de uma forma especifica de clas-
c) domesticados, d) leitoes, e) sereias, f) fabulosos, g) c2iesem liberdade, sifica~ao, ja que a teoria da evolu~ao social popularizada entre 1860
h) incluidos na presente classificafao, i) que Se agitam como loucos,
e 1890 pressupunha uma analogia biol6gica, substituindo organis-
j) inumeraveis, k) desenhados com um pince/ muito
mos vivos por grupos sociais.
fino de pelo de came/a, m) que acabam de quebrar a bilha,
n) que de Longeparecem moscas. Em seu uso mais restrito, e da perspectiva darwiniana, 0
JORGE Luls BORGES termo implicava a ideia de evolu~ao organica, isto e, a intera~ao de
urn organismo vivo a seu ambiente fisico.39 Com Spencer (1866), 0
Um museu deve observar, collecionar, classificar,
e tornar conhecidos todos as objetos de natureza. 38. Nao fazemos com essa afirma"ao qualquer refereneia a situa"ao atual dos museus,
E. GOELDI, 1894 que pouco tern a ver com 0 seu contexto de forma"ao.
39. Embora a ideia de evolu"ao tenha raizes na antigiiidade classica, sua hipotese"
fundamental esteve associada ao nome de Darwin. Assim, em On the origin of
species (1859), apesar de 0 proprio Darwin nao usar 0 termo evolu"ao, referin-
do-se a origem das especies pormeio de sele"ao natural, algumas maximas do
37. E interessanteverificar como essa "imagem degradante" do homem naeional, re- evolucionismo foram assim estabelecidas: diferentes formas de vida tiveram uma
presentada de forma recorrente no exterior, era aceita e veiculada por intelectuais, ascendencia comum, da qual evoluiram gradativamente; os sobreviventes de luta
jomalistas e politicos brasileiros. Essa imagem foi esbo"ada tanto nas analises de pela existencia foram os que melhor se adaptaram a tarefa de obter alimento e de
povos indigenas como nos textos que refletiam sobre a miscigena"ao, ou mesmo evitar ataques por parte dos rivais. Sobre a evolu"ao na perspectiva darwiniana,
sobre 0 negro entre nos. vide Gould (1987).
termo se generaIiza, ja que se estabelecem correla~oes claras entre Outro, no entanto, era 0 procedimento de cientistas que,
os desenvolvimentos constatados na Biologia e os da propria socie- tomando como parametro a Biologia, teciam considera~oes e para-
dade humana.40 lelos entre desenvolvimento cultural eracial. Esses "pensadores da
Para os primeiros evolucionistas sociais, 0 foco central ra~a", com suasnormas fundamentadas na Biologia craniometrica
de interesse era 0 desenvolvimento cultural da humanidade como e na Frenologia, encontravam no Brasil 0 solo fertil para a compa-
urn todo, e niio de uma sociedade espeeffica. Com isso, almeja- rac;ao e comprovac;ao de teorias previamente esboc;adasY No caso
yam captar 0 ritmo de crescimento sociocultural do homem e, brasileiro, portanto, a noc;ao de evoluc;ao se viu diretamente asso-
atraves da compara~iio e das similaridades apresentadas, formu- ciada ao problema da rac;a e suas possfveis impIicac;oes.
lar esquemas de ampla aplicabilidade, que explicassem 0 desen- A questiio da rac;a no Brasilesteve vinculada a uma certa
rolar da historia humana: "perspectiva pessimista", no que se refere a nossa situac;ao social.
Civiliza~iio e progresso, os termos privilegiados da epoca, Segundo Candido (1978, p. 29), existiri,a urn grande esforc;o que
eram entendidos niio enquanto conceitos especificos de uma deter- "correspondia a uma posic;ao existencial 4ramatica da intelectuali-
minada sociedade ocidental, mas enquanto modelos universais: a dade brasileira, que num contexto dominado pela obsessao biologi-
civilizac;iio representava a grande meta a ser a1can~ada, enquanto 0 ca do seculo, perguntava ansiosamente a quantas ficaria, ele, fruto
progresso era entendido como unico e obrigatorio.41 de urn pOVQmisturado, marcado pelo medo da alegada inferiorida-
No entanto, e importante destacar que a ideia de evolu- de racial, que no entanto aceitava como postulado cientffico. Seria
~iio, enquanto paradigma da epoca, se prestava a utiliza~oes e des-
dobramentos diversos. Urn desses desdobramentos era 0 tratamen- 42. Muito ainda poderia ser dito sobre a teoria da evolu"ao, bem como acerca de seus
to dado por antropologos culturais, como Morgan (1984) e Tylor desdobramentos, seja atraves do darwinismo social, do evolucionismo cultural, do
monismo, ou mesmo das teorias raciais, cujas bases estavam no conceito de evolu-
(1958), que buscavam aplicar a no~iio de evoluc;iio ao fenomeno da "ao. as crfticas a esse paradigm a foram severas, principalmente se.pensarmos nas
cultura, hierarquizando as culturas a partir da maior simplicidade obras de contesta"ao de F. Boas e sua escola, no infcio do seculo xx. A maior parte
ou complexidade de suas instituic;oes. delas podem ser sintetizadas como segue. l)Ao isolar as institui"oes sociais de seu
contexto cultural mais ample de compara"ao, os evolucionistas atomizaram a rea-
lidade, divorciando os fatos daquilo que em carater definitivo permite compreende-
40. E interessantedestacar que apesar do impaeto das ideias de Darwin, 0 evolucionis- los. 2) A falta de rigor te6rico com que 0 metodo comparativo foi utilizado fez
mo nao pode ser considerado como conseqiiencia direta de suas ideias.]a na anti- com que as conclusoes por ele propostas pecassem pela falta de fundamento empf-
giiidade classica, era 0 centro de debates por exemplo com Heraclito, assim como rico que as legitimasse. 3) Questionava-se tamb6n a falta de rigor dessa escola na
no iluminismo, na Fran"a, com Turgot e Condorcet. Sobre 0 conceito de evolu"ao, determina"ao da ausencia ou presen"a de determinado tra"o cultural, 0 que levava
vide, entre outros, Silva (1986, pp. 443-445). Por outro lado, nao ha em Darwin e a fetichiza"ao dos objetos e a procedimentos considerados, ja na epoca, arbitra-
Lammarck qualquer correla"ao entre evolu"ao e valora"ao. Coube a Spencer a rios. 4) Suscitou crfticas a ideia de que a evolu"ao estaria ligada a no"ao da inevi-
populariza"ao e associa"ao entre evolu"ao e uma suposta hierarquia cumulativa tabilidade do progresso ou aperfei<;oarnento continuo. Essa concep<;ao deixavj
da humanidade. transparecer urn claro etnocentrismo, ja que a hierarquiza"ao da sociedade huma-
41. Segundo alguns antropologos culturais evolucionistas, como Frazer, Tylor ou na em estagios mais ou menos evolufdos nao fazia mais do que refletir a "confian-
McLeman, a cultura ter-se-ia desenvolvido em todas as partes do mundo em esta- <;a" do horn em. europeu do seculo XIX que acreditava ser a sociedade de entao a
dos sucessivos, caracterizados por organiza"oes economicas e sociais especificas. fase fmal do progresso humano. 5) Por fim, os crfticos mais radicais argumenta-
Esses estagios, entendidos como obrigat6rios e Unicos, ja que toda a humanidade yam que 0 evolucionismo, apesar da teoria dos estagios, acabava por desconhecer
deveria passar por eles (alguns mais rapidamente, outros mais lentamente), se- a hist6ria, ao transformar toda a humanidade em urna, e os diferentes estagios em
guiam uma linica e determinada dire"ao, que ia do mais simples ao mais complexo replicas mais ou menos atrasadasda sociedade ocidental. Sobre 0 tema, ver Kidd
e diferenciado. (1884): Harris (1968): e Banton (1977).
capaz de produzir com os seus model os, pertencentes as 'ra<;as supe- condenava a rniscigenac;ao antes como urn erro, ja que a heredi-
riores'? Poderia disfar<;ar a realidade e fingir de 'ra<;a superior'?" tariedade constituia-se enquanto fator de transmissao de estfg-
De toda forma, atraves do medo ou da apreensao, ou mas.44 Euclides da Cunha, discipulo da escola de Nina Rodrigues,
mesmo devido a necessidade de respostas aos rumos da na<;ao, uma tambem nao via com bons olhos a nossa situa<;ao racial. Interes-
coisa era certa: boa parte da elite intelectual da epoca consumia sado em entender a resistencia do homern do sertao, acabou con-
desde a produ<;ao que se detinha especificamente sobre 0 caso bra- cluindo que 0 mesti<;o era antes de tudo urn desequilibrado, inca-
sileiro, ate teoricos relevantes da epoca, que poderiam trazer novas paz de conviver com a civiliza<;ao.4s
"luzes" sobre a nossa perspectiva nacional. Talvez por esse motivo, Os exemplos poderiam envolver desde Tobias Barreto, com
toda produ<;ao especifica europeia, trabalhando com 0 paradigma a ado<;ao irrestrita aos teoricos alernaes, Araripe Junior com a acei-
evolucionista e 0 determinismo biologico, teve aqui no Brasil urn ta<;ao e adapta<;ao imediata das id€ias de Buckle, passando ate mes-
publico constante e dedicado. mo por J. Batista Lacerda, e sua teoria do branqueamento e sele-
Sobre a polemica questao da influencia da ra<;a no po- <;~o,ate Oliveira Viana em seu apego as ideias de arianiza<;ao. Em
tencial civilizatorio de uma na<;ao, as opinioes variavam. Al- todos, no entanto, caracteristicas comuns: de urn lado, a adesao as
guns teoricos estrangeiros, por exemplo, nao viam com bons ideias e ao paradigrna da evolu<;ao enquanto urn suposto de epoca.
olhos nossa "situa<;ao racial". E 0 caso de H. T. Buckle (1821/ Como as desigualdades e diferen<;as nao eram mais discutidas, a
62) que, em sua History of the english civilization, tendo como questao era como lidar com elas. Por outro, 0 problema de como
suposto 0 determinismo elimatico, coneluia que "com a vegeta- conviver com 0 paradoxa de uma teoria que, em si e atraves de sua
<;ao abundante nao restava lugar ao homem", ja que "a mente aceita<;ao incondicional, levava ao proprio descredito e a aceita<;ao
acovardada por essa luta desigual nao era capaz de avan<;ar". da inviabilidade do pais enquanto na<;ao.
Essa e tambem a posi<;ao do conde Arthur de Gobineau, que Hayia na epoca, portanto, uma especie de "consciencia
esteve no Brasil durante 15 meses (1869/70), deixando trans- do atraso", r~ferendado de forma rfgida ora por teorias que fala-
parecer umaimagem absolutamente desfavor<lvel. 0 argumen- yam de nos sa ma situa<;ao climatica (e seus condicionamentos so-
to central era que, malgrado 0 clima e os recursos naturais, a bre a popula<;ao), ora por teorias que classificavam e denegriam a
popula<;ao estava fadada ao desaparecimento (Readers, 1988). miscigena<;ao racial existente.
Como esses, outros exemplos poderiam ser citados, como os de No interior de sse contexto, os museus locais buscavarn
Ingenieros oli Agassiz (que esteve no Brasil em 1865, em expe- refletir sobre 0 homem nacional, de maneira talvez mais tranqiiila
di<;ao cientlfica), e se nem todos sap consensuais quanto a ques- e mesmo camuflada. Ao "domesticar", classificar e hierarquizar a
tao da ra<;a, deixam em seu conjunto uma amostra bastante
significativa nesse sentido. 44. Com rela~ao it posir;:ao pessimista ernitida por Nina Rodrigues, vide Rodrigut:,t
Por outro lado, junto a intelectualidade local da epoca, (1945 e 1957). Em As ra(ils humanas, 0 autor chega a proper a elaborar;:ao de dois
a questao nao era menos polernica. Sumariarnente citando Sflvio codigos civis - urn para os brancos e outro para os negros - ambos adaptados as
Romero, 0 "fator rac;a moldava a na<;ao", 0 rnesti<;o cumprirido condir;:5esmentais de cada urn desses povos.
45. A propria divisao intern a de Os Sertoes ja revelava as perspectivas que
urn papel, segundo 0 autor, essencial para a na<;ao.43Nina Rodrigues condicionavam a opiniao do autor. Entre a visao determinista geografica, que ca-
racteriza 0 capitulo sobre "a terra", e a visao evolucionista e racista, que rnarca
43. Para Romero (1949, p. 118), "0 mesti~o e a condi~ao de vitoria do branco, forti- sua analise sobre "0 homem", Euclides da Cunha oscila, 'ora condenando 0 serta-
ficando-lhe 0 sangue para habitua-lo aos rigores de nosso clima». nejo, ora considerando-o urn forte.
"materia-prima" local, a
partir da flora e da fauna ate chegar a Apesar do espa~o restrito que cabia a Antropologia no
especie humana, esses estabelecimentos abriram novas portas de interior da divisao tematica dos museus, foi a partir deJa que se
entrada a questao racial. enriqueceu esse tipo de discussao.
Definidos e pens ados enquanto "locais de ciencias", os Tratava-se de urn novo "redescobrimento da America",
museus ofereciam respostas a procedimentos considerados cientifi- que aliava agora conceitos como os de ra~a e na~ao. Falar em evo-
cos, em contrapartida a outro tipo de produ~ao que, lidando com 0 lucionismo no Brasil e na sua deriva~ao em termos de teorias ra-
problema da ra~a, partia de metodos diversos. Se 0 tema perpassa ciais, nao significou a tradu~ao de uma teoria ou seu deslocamento
outros debates - como a area legislativa46 - e espa~os - como a de forma inerte. Tratou-se, na realidade, de urn trabalho de
literatura47 -, tambem atraves dos museus e possfvel perceber a reordenamento e remontagem, pensando em como lidar com no-
penetra~ao desse tipo de questao. Assim, se em boa parte essas tres ~5es que se, por urn lado, denegriam nossa imagem enquanto na-
institui~5es visavam urn debate exterior e restrito, e a partir da ~ao, ppr outro ofereciam legitimidade, agora cientffica, a setores
questiio racial que essa produ~a9 "vaza", encontrando respaldo no dominantes brancos em busca de urn sentido para essa "jovem re-
interior do panorama intelectuallocal. publica", em seus primeiros momentos, tao carente de dire~ao.
Esse e 0 caso, por exemplo, da velha controversia surgida Abria-se, segundo Jose Murilo de Carvalho, "ao lado do governo,
ainda no seculo dos descobrimentos acerca do "homem america- o caminho para urn autoritarismo ilustrado, baseado na competen-
no". Tema carD aos museus da epoca que se interessavam por inda- cia real ou presumida dos tecnicos" .49
gar acerca do "elo perdido", talvez presente aqui na America. Lon- Cumpre ressaltar ainda, ao mesmo tempo em que come~am a
ge do bon sauvage de Rousseau, 0 que se procurava entao era uma entrar em declfnio na Europa, as teorias raciaischegam aqui no Brasil
popula~ao decafda. Eram essas "popula~5es asselvajadas" (mais ao seu momento de apogeu. Segundo Ortiz, 0 que se da entao e menos
do que selvagens) que alguns viajantes vinham buscar, ou que Ihering a copia da ultima moda, mas a elabora~ao vinculada as especificidades
e Joao Batista Lacerda tratavam de analisa~.48 locais. "A questao da ra~a e a linguagem atraves da qual se apreende a
realidade social, refletindo inclusive os impasses da constru~ao de urn
46. Referimo-nos aqui, por exemplo, as Faculdades de Direito do Recife e de Sao Estado Nacional ainda nao consolidado" (Ortiz, 1985, p. 30).
Paulo que compartilhando das ideias de evolu~ao partiram de autores e No interior do caos polftico que se instaura nos primordi-
metodologias diversas. Ern Sao Paulo e na regiao SuI, foi 0 positivismo de A. Comte
que teve particular influencia, em Recife (e no NE), a maior influencia foi do
os da Republica, algumas respostas dos museus pareciam estar vin-
monismo evolucionista de Haeckel, para quem as diferen~as raciais eram conside- culadas a esse debate. Ajudando a delimitar 0 atraso e reafirmando
radas fundamentais, estando as ra~as inferiores mais proximas da cria~ao animal.
47. A literatura realista e, em especial, sua critica ao romantismo acabam tambem por toes se delineavam de forma insistente. Uma era indagar acerca da questao do "do
tornar-se cada vez mais permeaveis ao pensamento europeu da epoca. Segundo perdido", ou seja, buscar atraves da compara~ao estabelecer pontes ou esquemas
Bosi (1972, p. 19) "enquanto 0 escritor romantico eleva as alturas a beleza, 0 evolutivos que marcassem a passagem do homem primitivo (por exemplo, austra- .?

naturalista julga "interessante 0 patologico porque prova a dependencia do ho- liano, sobre quem incidia boa parte das pesquisas da epoca) ao homem civilizado
mem em rela~ao a fatalidades das leis naturais». Os exemplos desse tipo de adesao europeu. Outra fonte de interesse era 0 "homem americano". Parecia ser necessa-
sa9 muitos. Podemos citar desde A esfmge (de Afraruo Peixoto) ate as obras de rio delirnitar, com precisao, 0 grau de civiliza~ao dessa popula~ao, a fim inclusive
Adolfo Carninha, Jtilio Ribeiro ou Aluisio de Azevedo. 0 livro talvez mais revelador de melhor situa-Ia no interior dessa corrente iinica de eta pas evolutivas.
eO Chromo, de Horacio de Carvalho (1988), onde 0 autor concebe seus dois perso- 49. Muito poderia ser dito sobre a Republica em seus primeiros anos. No entanto 0
nagens principais tendo como fio condutor premissas deterministas da epoca. que gostariamos de destacar e 0 carater conservador das dites que assumem a
48. Varios "enigmas» pareciam tomar parte do pensamento cientffico de finais do dire~ao da na~ao, ern sua associa~ao corn 0 cafe e a exporta~ao. Vide, entre outros,
seculo. Com rela~o ao perti'. especifico dos cientistas estudados, algumas ques- Carvalho. J. M. (1987. p. 35).
a inferiaridade da miscigena~ao, acabaram por encampar, de for- dialidade" (Revista do M.P., 10, p. 8). Com 0 fim do prestfgio,
ma especifica, 0 debate da intelectualidade da epoca interessada parecia nao haver mais motivos para uma disputa acirrada, vincu-
em dar novos rumos a essa jovem na~ao. lada a questoes de predomfnio e lideran~a. E inclusive com urn tom
de humildade que a nova dire~ao relata a situa~ao do M.P., afir-
mando que hi "ha 0 que se fazer e se procura trabalhar cole~oes
algumas preciosas, algumas modestas, outras ainda incipientes"
A chegada dos an os 20 marca 0 final dessa "era dos mu- (Archivos do M.N., 17 - discurso proferido par ocasiao do cente-
seus" nacionais. Se nao se pode falar em "colapso institucional", nario do M.P.).
pode-se dizer que os estabelecimentos locais per~eram 0 seu "mo- o M.P.G., marcado pela crise da borracha na regiao, e
delo enciclopedico" , mudando seus projetos grandiosos e transfor- pela saida de Goeldi, come~a urn declfnio bastante sensfvel. Com
mando-se, mais claramente, em museus exclusivamente de die ados as dire~oes de Jacques Huber e da Dra. Emflia Snethlage, ambos
as Ciencias Naturais. colaboradores de Goeldi, 0 museu ainda se mantem tendo em vista.
Varios sac os fatores que podem ter condicionado essa a participa~ao de cientistas estrangeiros, como A. Ducke, Humann
guinada. Em primeiro lugar, rapidamente se revelou a fragilidade Maccwath e G. Hargmann. Ap6s essa fase, inicia-se urn perfodo de
das institui~oes e sua dependencia a seus diretores. Os percursos longo declfnio e silencio em sua revista, so interrompido com a
sac semelhantes: por conta do decreto de 1890, que exigia dedica- publica~ao do Nono Boletim e mais tarde, ja em 1949, com 0 lan-
~ao exclusiva, 0 M.N. perdeu varios de seus cientistas, como O. ~amento do decimo, rico em artigos dezoologia, mas com materias
Derby, Schwacke e 0 proprio Batista Lacerda, que acaba optando de autoria estranha a institui~ao, a qual, naquele momento, encon-
por ficar na dire~ao do laborat6rio de Fisiologia (1915). In dice de trava-se praticamente destitufda de corpo tecnico.
desestrutura~ao desse modelo inicial e 0 espa~amento a que se viu , Por outro lado, 0 declfnio dessas institui~oes poderia estar
sujeita sua revista, assim como 0 carater cada vez mais scientifico vincula do tambem a uma perspectiva mais nacional. Ou seja, se-
desvinculado de urn debate mais amplo e local. Lacerda, desapon- gundo Schwartzman, vivia-se 0 momento do sucesso da ciencia
tado com 0 novo ambiente, desabafa: "Os homens de sciencia, afas- aplicada - como a que se fazia, por exemplo, em institutos como 0
tados do tumulto da poHtica, s6 querem agora para trabalhar que Agronomico de Campinas e 0 de Manguinhos.50 Ou seja, nesse pe-
se lhes de paz e socego" (Archivos do M.N., 11). riodo buscava-se de maneira mais direta uma educa~ao tecnica e de
o M.P, com 0 seu nome estritamente associado a figura aplica~ao pratica, quer ria area de saneamento publico, quer nas
de seu diretor, passa com a sua safda em 1916 por urn processo de questoes de incentivo a agricultura. "Na experiencia da educa~ao
profunda reestrutura~ao. Sob a dire~ao de d'Escragnolle Taunay, 0 tecnica, nos sucessos a1can~ados na cultura de saude publica por
museu continuara como importante centro de pesquisas em histo- alguns feitos expressivos na area da agricultura e pecuaria, a cien-
. " ,
ria natural, e em particular zoologia, mas perdera em sua perspec- cia aplicada brasileira parece ter atingido seu auge nas pnmelfas
tiva mais globalizante. A partir de Taunay, buscar-se-a apagar "as decadas do seculo" (Schwartzman, 1979, p. 143). Num momenta
dissoniincias que foram pr6prias dos momentos de apogeu do M.P.",
50. Outros instituros elaboram cada vez mais pesquisas de carater c1aramente aplica-
e do pedantismo de seu antigo diretor. "Outrora separados por do. Eo caso das pesquisas sobre "pragas nos cafezais", empreendidas com sucesso
uma questao oriundas de rancores pessoais e nascidos infelizmente no Instituto Agronomico de Campinas, ou dos trabalhos sobre a febre amarela
no Ypiranga, alheios se mantiveram durante an os 0 M.N. e 0 Pau- realizados no Instituto Manguinhos (Carmo, s.d.; e Stepan, 1981). Eo caso tam-
lista, quando tudo aconselhava a naturalidade ou pelo menos cor- hem do M.P.G., que volta a se fortalecer posteriormente.
em que a imagem do cientista sevinculava a representa~ao do "ho- Embora seja simplista demais afirmar que a derrocada
mem que tudo resolve e por isso merece apoio", parecia haver pou- ~xterior de urn paradigma teorico implica a decadencia imediata de
co espa~o para 0 tipo de produ~ao advinda dos museus. institui~oes nacionais, 0 fato toma outro relevo quando inserido
Espa~o de debate que privilegiava 0 contato com 0 exte- em urn panorama local. A "queda" do modelo original, associada
rior, naquele momento essas institui~oes revelavam antes sua pro- a uma perspectiva cientifica pragmatica, implicou senao 0 final
du~ao tacanha, sua pequena possibilidade de forma~ao de quadros material das institui~oes, ao menos uma redefini~ao de seus proje-
e a diffcil aplicabilidade imediata. No interior desse contexto, os tos e perspectivas iniciais.
museus sofrem tambem a perda de seu "mecenas" por excelencia. . 0 M.P.G., depois de perder boa parte de seu grupo tecni-
OU seja, com 0 afastamento de d. Pedro II, conhecido cultor dessa co, e incorporado ao Instituto de Pesquisas da Amazonia. 0 M.P.,
. perspectiva "ilustrada" de incentiv<J as ciencias, principalmente 0 por seu lado, ve sua se~ao de biologia ser transferida em 1927 para
M.N. perde 0 seu mais antigo e grande protetor.51 o recem-criado Instituto Biologico e finalmente infegrado USP, a
A despeito da controversa participa~ao do Imperador, os como institui~ao complementar, em 1935. A se~ao'de zoologia e
museus na decada de 20 acumulavam razoes que indicavam seu transformada, em 1939, em Departamento de Zool~gia da Secre-
declinio. Nas palavras de Lacerda: "faltavam recursos, faltava for- taria de Agricultura do Estado, passando' mais recentemente a se
ma~ao tcknica experimental, faltava voca~ao empirica dos jovens, e chamar Museu de Zoologia da Universidade de Sao Paulo. De cer-
sobrava avareza da parte do governo que 'remunerava' mal os tra- to modo, as perspectivas do M.N. sac semelhantes. Ao perder boa
balhos em ciencias, reduzindo 0 cientista a uma condi~ao pior da que parte de seu corpo tecnico original, padeceu com a falta de recursos
urn caixeiro viajante de segunda categoria" (Lacerda, 1914, p. 73). e de pessoal capacitado.53
A chegada dos anos 20 marcara 0 fim da "era dos mu- o novo momenta impunha aos museus a dura condi~ao
seus" enquanto fenomeno mundial, a partir da critica radical ao de desmembramento e perda da autonomia, com a concomitante
paradigma de evolu~ao que, ate 0 momento, dava sustenta~ao a vincula~ao a outros institutos e, no caso paulista, a recem-cria'da
esse tipo de institui~ao. As criticas foram severas, principalmente universidade.
se pensarmos nas obras elabOFadas pel a escola culturalista de Franz Os impasses gerados pelo novo momenta implicaram, se-
Boas, que basicamente se articula atraves dos questionamentos ao gundo Schwartzman, a busca de duas alternativas: uma mais insti-
conceito de evolu~ao. . tucional, e outra que priorizava urn projeto de universidade. A pri-
A decadencia dos museus nos remete, portanto, nao so·a meira significava dar continuidade as linhas de trabalho que ja
outro contexto institucional, mas tambc~m a critica teorica a urn
especie de t<ibua rasa dessa produ~ao do seculo XIX, como se nao passasse de uma
paradigma ate entao bast ante consensual: 0 evolucionismo positi-
cole~ao de homogeneidade que so serviriam a urn futuro debate. Seria importante,
vista em sua vertente racial.52 a despeito da corre~ao das criticas que recairam sobre 0 paradigma, restitui-lo eI:9
51. Segundo Readers (1888),0 papel de D. Pedro II, longe de ser decorativo, foi 0 de urn . sua logica intema, distinguindo 0 paradigm a de seus desdobramentos e mesmo de
verdadeiro "mecenas das ciencias", com seu interesse e apoio financeiro. :E claro que sua aplicac;ao pragmatica e polftica.
poderiamos nuan~ar tal afirma~ao, verificando 0 carater pouco sistematico do inte- 53. Sobre 0 futuro desenvolvimeJCltodo M.N., revistas e docurnentos parecem mostrar
resse do Imperador, mas tal analise extrapolaria os nossos interesses imediatos. urna posterior vincula~ao a questao do patrimonio historico nacional. 0 Instituto
52. :E relevante destacar que, apos a critica, restou 0 obscurecimento que pesa em carioca parece ser 0 proprio "camaleiio", no sentido de adaptar-se a diferentes
torno do paradigma evolueionista. Ora considerado urn tipo de produ~ao menor, contextos e perspectivas teoricas. No entanto, 0 desenvolvimento dessas quest6es
ora anulado em fun~ao de urna critica tenaz, essa teoria tern restado, ao menos na implica outro tipo de analise e aprofundamentos, 0 que extrapolaria os limites
historia das ciencias, como urn tipo de "pre-ciencia". Faz-se nesse sentido, urna tematicos e temporais deste trabalho.
contassem com urn minimo de critica e reconhecimento, atraves de CONDICIONANTES DO DESENVOLVIMENTO
arranjos institu~ionais capazes de proteger os centros de pesquisas
DAS CIENCIAS SOCIAlS
do ambiente desfavoravel mais amplo, a partir de recursos finai1-
ceiros particulares. "0 outro caminho era insistir nos projetos de
criac;ao de urn novo tipo de universidade. Aqui, 0 fracas so do Rio
de Janeiro precisava ser contrastado com 0 sucesso de Sao Paulo,
invertendo a lideranc;a cultural e cientifica que a capital do pais
gozava ate entao" (Schwartzman, 1979a, p. 190).54
Considerados como locais de uma "pre-ciencia", resta-
ta aos museus nacionais 0 espac;o delimitado de lima produc;ao
voltada exclusivamente as Ciencias Naturais, cabendo em con-
trapartida as universidades a representac;ao de urn projeto enci-
clopedico e globalizante.55

Entre 1930 e 1964,0 desenvolvimento institucional e inte-


lectual das Ciencias Sociais no Brasil esteve estreitamente associa-
do, de urn lade, ao impulso alcanc;ado pela organizac;ao universita-
ria e, de outro, a concessao de recurs os governamentais para a
montagem de centros de debate e investigac;ao que nao estavam su-
54. A questao do predomfnio da universidade paulista em oposi~ao ao declinio da
jeitos a chancela do ensino superior. Esses dois padroes de consoli-
carioca, mereceria aten~ao maior, 0 que excederia aos objetivos deste trabalho,
que se detem nos anos 30. E importante destacar a existencia de trabalhos que vem dac;ao institucional acabaram subsistindo ate hoje porque atendem
criticando a ideia da existencia de urn projeto claro e bem-sucedido desde as ori- a demandas diferenciadas de grupos socia is emergentes e aos proje-
gens da universidade paulista. Vide, nesse sentido, Limongi (1988a). tos formulados ou encampados pelos setorespoHticos dirigentes.
55. Local privilegiado da classifica~ao evolutiva e cujos pressupostos se pautam nas
Os projetos de reform a e expansao do en sino superior
Ciencias Naturais, os museus emologicos brasileiros curnpriram, sem duvida, pa-
pel relevante na "pre-historia" do pensamento cientffico brasileiro. Resta garantir
condicionaram 0 espac;o coIicedido a pes qui sa academica em cien-
que 0 espa~o da critica a urn paradigma nao nos leve a "desconsidera~ao de qual- cias sociais ao desempenho de encargos docentes no contexto de
quer produ~ao anterior". Wanderley Guilherme dos Santos tece considera~oes re- uma poHtica mais ampla de profissionalizac;ao cujos primeiros fru-
levantes nesse sentido, ao questionar a periodiza~o tradicional, que estabelece a tos foram os professores secundarios. as think tanks no periodo
institucionaliza~ao das atividades cientificas socia is como 0 divisor de aguas entre
em questao tiveram seus momentos de ascensao, apogeu e decHnio,
urn periodo dito "pre-cientifico e urn periodo cientifico". Segundo 0 autor, esse
tipo de historiografia ordenaria 0 passado em fun~ao do presente, estando portan- definidos de perto pelo cacife e interesses das lideranc;as govern a-
to "desarmada para entender as exatas articula~oes do desenvolvimento intelec- mentais que os protegiam das vicissitudes da conjuntura poHtica.
tual" (Santos, 1978, pp. 26-27). De qualquer maneira, nao houve qualquer iniciativa institucional

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