Museu Contemporâneo e Os Gabinetes de Curiosidades
Museu Contemporâneo e Os Gabinetes de Curiosidades
Museu Contemporâneo e Os Gabinetes de Curiosidades
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RAFFATNI, P. T. Museu Contemporáneo e os Gabinetes de Curiosidades. Rev. doM u seu de A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ía ,
S. Paulo, 3: 159-164, 1993.
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RAFFAINI, P. T. Museu Contemporâneo e os Gabinetes de Curiosidades. Rev. do M useu de A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia ,
S. Paulo, 3: 159-164, 1993.
últimos. Para a autora, a totalidade que essas determinada cultura, mas um único elemento que
coleções “(•••) permitiu alcançar é problemática, pois contivesse todos os traços representativos, um
consiste na reunião de fragmentos selecionados ou “exempla” . Buscava-se, assim, o raro, não o
possíveis de se obter (...)” (Guilhotti, 1991/92:33). comum. Esses objetos etnográficos provenientes
Todavia, mesmo possuindo coleções que hoje da América podiam ser encontrados em gabinetes
realmente nos parecem tão diversas e fragmentadas, de Viena, Bolonha, Praga, Copenhague, Uppsala,
o gabinete de curiosidades representa todo um Holanda, e também da Inglaterra.
universo, constitui um microcosmos reunido em Ana Cristina Guilhotti, ainda no mesmo
uma única sala, possui, assim, a totalidade, a uni artigo, descreve as peças etnográficas encontradas
versalidade almejada na época, segundo a visão de no inventário do gabinete de Antônio Gigante
mundo específica do contexto europeu dos séculos (1535-1598), localizado em Bolonha, observando
XVI e XVÜ. Deste modo, os objetos etnográficos, a disparidade de objetos que o compunham, o que
assim como outros dentro do gabinete, são seria freqüente em outros gabinetes. Os objetos
representantes do universo que se deseja conhecer, das “índias Ocidentais”encontrados nesta coleção,
possuir, apresentam o que não se pode ver, o que são “um mapa pré-colombiano, consistindo em
está distante. duas partes de um Codex, dois cocares de penas
No entanto, na busca da totalidade, as da Flórida, nove ídolos de pedra do Novo Mundo,
coleções etnográficas não procuravam abranger um machado de pedra, uma faca de pedra com o
toda uma série de elementos representativos de cabo de madeira, com a qual eles sacrificavam,
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Fig. 2-M useu de Ferrante Imperato, 1672 (Negei,J986). F. Imperato, Historia Naturale, Napoli,
1672.
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uma série de arcos, flechas e pedras (utilizadas do século XV e são banidas novamente, desta vez
como instrumentos cortantes) , um mosaico de não pela Igreja mas pelas instituições da ciência.
penas e um a m itra m ex ican o s” (Im pey & Quanto aos gabinetes de curiosidades, com sua
MacGregor, 1985:18 qpzft/Guilhotti, 1991/92:33). aspiração de tomar visível todo o ser, eles se
As gravuras de época que retratam os transformam em gabinetes de história natural,
gabinetes ilustram a mesma diversidade nas subordinados a perguntas científicas” (Pomian,
coleções. A figuração do “Museo Wormiani” (1655) 1982:358).5
contém várias peças etnográficas como flechas e Esses gabinetes e m useus são, assim ,
arcos, remos, elementos de vestuário, instrumentos adquiridos ou doados às universidades, passando
musicais, misturados a uma grande diversidade definitivamente para o poder das instituições
de objetos de história natural: animais empalhados, científicas, que os organizam com prerrogativas e
peixes, conchas, pedras, como também peças da propósitos científicos.
antiguidade e muitos outros objetos .4 Em três Mas será realmente findo o tempo da curio
outras g rav u ras, a do “M useo di Ferrante sidade? Hoje não acreditamos mais na idéia de
Imperato” (1672), em Nápoles, do “Museo di microcosmos, na idéia de que reunindo peças
Francesco Calceolari” (1622), em Verona, e da representativas de todo o mundo em uma única
W underkammer do doutor Domenico Tessari sala, se isso é possível, estaremos representando
(1667), em Pádua, não encontramos uma presença todo o universo. Entretanto, basta essa postura
marcante de peças etnográficas, sendo que nos dois intelectual para que o curioso, o raro, o fantástico
primeiros existem predominantemente coleções de deixem de exercer seu fascínio sobre nós e o
história natural e antiguidades, e no terceiro a público que visita atualmente nossos museus?
tônica da coleção são as raridades (ver ilustrações). Quanto ainda existe dos traços culurais rema
Mesmo não sendo o ponto forte dos gabinetes de nescentes do “tempo dos gabinetes”?
curiosidades, os objetos de cultura material,
provenientes do mundo recém-descoberto, aparecem
em muitos deles, como objetos curiosos de um A curiosidade no Museu Contemporâneo
mundo ainda deconhecido, remoto. Bruno Bettelheim nos fala, em seu ensaio “As
A Renascença, com seu culto à antiguidade crianças e os museus”, da fascinação que objetos
clássica, a Queda de Constantinopla, colocando valiosos, raros, maravilhosos, exercem sobre as
os europeus em contato direto com o Império crianças e sobre o público em geral. Citando
Otomano, e as Grandes Navegações, que trazem Francis Bacon, “do assombro nasce o conhecimento”,
à Europa um novo mundo, distante, com uma ele discorre sobre a importância deste assombro
natureza e povos até então desconhecidos, no processo de aquisição do conhecim ento,
transformam a Europa. A cultura da curiosidade, criticando, assim, os m useus modernos que
em suas m últiplas formas, se tom a um dos procuram transmitir um conhecimento racional
componentes básicos da cultura erudita dos acabado para as crianças. “Um número excessivo
séculos XVI e XVII. de museus modernos procura transmitir às crianças
Tendo ingressado na cultura oficial no final conhecimentos que não despertarão o menor
do século XV, a cultura da curiosidade é banida assombro. Acho que o melhor seria instilar na
no final do século XVII. O nascimento do saber criança o respeito, o assombro, únicos sentimentos
científico coloca a necessidade de adestramento capazes de gerar um conhecimento sugestivo. Tal
do conhecer, a necessid ad e do m étodo. A conhecimento realmente enriquece nossas vidas,
curiosidade se toma, então, um vício capaz de pois permite transcender os limites do cotidiano,
perverter o conhecimento, na medida em que ela uma experiência muito necessária se quisermos
não traça limites, não tem regras nem um método,
como o que é proposto no século XVIII. “(...) as
ciências curiosas entram na cultura oficial no fim
(5) Ainda que Pomian refira-se a esta atuação da Igreja no
período m edieval, devem os lembrar que ela própria
mantinha em seu poder coleções de curiosidades. Esses
(4) Esta coleção do “Museo Wormiani” foi posteriormente objetos, alguns existentes até hoje, tinham, por vezes, um
comprada pelo rei Frederico III, da Dinamarca. papel apotropaico.
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RAFFAINI, P. T. Museu Contemporâneo e os Gabinetes de Curiosidades. Rev. doM u seu de A rq u eo lo g ía e E tn o lo g ía ,
S. Paulo, 3: 159-164, 1993.
RAFFAINI, R T. The Contemporary Museum and the Cabinets o f Curiosities. Rev. doM u seu
de A rqueologia eE tn ologia, S. Paulo, 3:159-164, 1993.
R eferências bibliográficas
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