O Colecionismo de Objetos Africanos
O Colecionismo de Objetos Africanos
O Colecionismo de Objetos Africanos
INTRODUÇÃO
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Bolsista da CAPES PEC-PG, doutorando em História na Faculdade Ciências Sociais e Humanas, “Julio de
Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Franca. Mail: [email protected]
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Os conceitos Cultura material, itens africanos, objetos culturais, objetos africanos, neste trabalho, devem ser
entendidos como sinônimos.
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Uma transcrição parcelar do Decreto-Lei 35, de 1937, que criou o SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) que Meneses pontuou no seu texto citado supra.
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experiência histórica dos atores sociopolíticos, dos objetos coligidos e conservados nos museus,
bem com a valorização e subvalorização dessas heranças.
Em que consiste essa valorização/desvalorização dos elementos da cultura material
desenraizados em novos contextos? Partindo do pressuposto que as duas sociedades sempre
tiveram dificuldades na aceitação do outro4 e que essas diferenças estruturais e conjunturais
favoreceram formas especificas de valorização do item africano.
A experiência histórica de Portugal, devido ao pioneirismo das conquistas, bem como
as influências das sociedades europeias mais desenvolvidas, favoreceu o desenvolvimento de
uma cultura de colecionismo. Processo esse, intrinsicamente associado à estrutura favorecedora
de novas visões e divisões do mundo5. A preocupação com a integração de recursos das colônias
na estrutura da metrópole contribuiu na incorporação de objetos para instituições museológicas
e particulares. Cabe ainda realçar a integração de coleções no discurso do império, favorecendo
estratégia de imposição ideológica e de afirmação identitária.
No caso brasileiro o colecionismo (existia incursões dos naturalistas nos séculos XVIII
e XIX), se constitui num processo tardio, iniciado com a transferência administrativa da coroa.
As realizações museológicas decorrentes do processo de modernização da sociedade, e o papel
dos intelectuais brasileiros no arranjo de um discurso nacional (SCHWARCZ, 1993) constituem
aspetos reflexivos sobre a seletividade do item africano nas coleções museológicas.
Este trabalho trilha em seguintes objetivos:
1. Analisar os processos de colecionismo da cultura material africana na
sociedade portuguesa
2. Deslocar as mesmas preocupações para a sociedade brasileira, enquadrando-
as nas ações reivindicativas do movimento negro e nas preocupações científicas de integração
do africano e afrodescendentes depois do escravismo.
3. Identificar homologias de colecionismo nessas duas realidades históricas.
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O outro (africano e remanescentes) que é negado o papel de sujeito histórico.
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Sobre este aspecto, é importante frisar as condições científicas e filosóficas favorecedoras de uma nova forma de
ver e apreender o mundo. Um colecionismo que apropriou e ajudou a desenvolver outras ciências.
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coleções privadas. Ainda mais quando se questiona esta prática numa perspectiva da história
do atlântico. Contudo, é importante realçar os contributos da museologia histórica (BRIGOLA,
2003), história de ciência (LOPES, 1997; CAMARGO, s\d), antropologia histórica
(GOUVEIA, 1981, 1997; CANTINHO, s/d), no caso português, que numa visão panorâmica
trazem para o conhecimento público as coleções extra europeia, com algum enfoque para a
cultura material africana. Por outro lado, não se pode descurar outros trabalhos, igualmente
importantes, produzidos pela Universidade de Coimbra (MUSEU ANTROPOLÓGICO DA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 1989), Sociedade de Geografia de Lisboa (SOCIEDADE
DE GEOGRAFIA DE LISBOA, 1896), e catálogos produzidos por antropólogos, no caso de
Bastin (BASTIN, 2010), sobre a cultura material dos Cokwe, etc. Estes trabalhos, cada um à
sua maneira, apresentam referências às fontes textuais, e outros com referências à cultura
material africana. No caso da sociedade brasileira, esta preocupação com a integração do item
africano nas coleções brasileiras é um fato recente, ainda que os cientistas sociais sobre as
questões africana só acontece no princípio do século XX e décadas seguintes. Nina Rodrigues
(RODRIGUES, 1933) e seus seguidores (RAMOS, 1935, 1979; CARNEIRO, 1964))
contribuíram, cada um à sua maneira, para a estruturação do conhecimento dos africanos na
formação da sociedade brasileira.
O colecionismo enquanto apropriação de registros materializados das práticas
cotidianas dos povos, pode-se constituir num importante elemento de compreensão histórica,
das relações hegemônicas de um país sobre outro, e de um grupo social sobre outro. Sendo
objeto do poder, a cultura material, incorporada nas coleções museológicas e privadas, foi
instrumentalmente utilizada pelos Estados e colecionadores particulares com propósitos de
imposição ideológica, e de afirmação e reprodução de identidades.
Entende-se por coleção “objetos naturais ou artificiais mantidos temporária ou
definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial
num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público” (POMIAN, 1984,
p.53). Existe dois tipos de coleções: particular e do museu. A relação destes dois não é estanque,
uma vez que historicamente muitas coleções privadas foram incorporadas no museu. Um ponto
importante que é necessário distinguir, é a diferença entre coleção e acumulação de objetos,
embora este último esteja na origem do primeiro (POMIAN, 1984; BAUDRILLARD, 1968).
Alguns textos por nós coligidos referem coleção na perspectiva de circulação dos
objetos no cotidiano, sem determinarem fronteiras entre objetos utilitários e objetos
musealizados. Nas nossas inquirições notamos que os objetos que vieram da África
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desempenhavam funções comerciais e industriais, e eram postos a circular em mostras
nacionais (comerciais) antes de serem incorporados pelos museus e coleções privadas.
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Neste período apelidado de joanino (dom João IV) se notabilizou a figura do colecionador Conde da Ericeira
como figura notável do espírito de curiosidade científica da época.
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anteriormente referidas, favoreceram o colecionismo institucional7. Neste contexto, as práticas
colecionistas tornaram-se numa atividade especializada, institucionalizada, resultado de
mapeamento de recursos nas colônias.
É possível afirmar, com propriedade, que todo o esforço para a institucionalização de
colecionismo, desde do seu primórdio, tem sido orientado no sentido de possibilitar apropriação
mais ampla dos objetos e recursos. No caso da cultura material africana, esse esforço fica
agregado com a vigência do regime liberal e com a reformulação da política colonial para a
África. Acresce, ainda, as variáveis estruturais e conjunturais que impulsionaram mudanças de
rumos que o ambiente político e económico portuguesa tanto carecia. A invasão das tropas
napoleónicas, para além de fomentar clima de dificuldades na sociedade portuguesa, contribuiu,
diretamente, na criação de climas de incerteza. A mudança administrativa para o Brasil, ao criar
bases para a modernização, deixava a metrópole em segundo plano em termos políticos.
A virada para África começou a impor-se naturalmente, como empresa, no momento
em que o regime liberal em Portugal começava a se implementar. O projeto colonial para a
África ganhava um quadro estrutural mais consistente com reformas legislativa e
administrativa8. Foi com o governo de Sá da Bandeira (1795-1876) é que a visão estratégica
para a África ficou mais esclarecida, centrado no domínio africano, até então subvalorizada
como simples fornecedores de mão-de-obra escrava para as plantações no Brasil.
A vigência do regime liberal, em Portugal, conheceu mudanças importante no
ambiente sociocultural portuguesa. As iniciativas privadas nos domínios culturais9,
económicas, floresciam, preenchendo vagas importante na formação de mentalidades que se
queria equiparar com as nações europeias mais avançadas. Começou-se a operacionalizar
medidas com fito de garantir uma ocupação efetiva do continente africano, mas também planos
de fomento para o desenvolvimento industrial. Este processo está bem patente nas expedições
científicas e comerciais ao continente africano, e na criação de condições locais para suprir
produtos naturais e artefatos para as instituições museológicas criadas para o efeito.
Os jardins botânicos, os gabinetes e museus de história natural, sob a responsabilidade
da coroa e das instituições universitárias, contaram com um quadro legislativo promovido pela
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As instituições que surgiram no contexto são Museu de História Natural de Coimbra, Museu Maynense, Real
Museu da Ajuda; com a extinção dos museus Maynense e Real da Ajuda, os seus acervos foram incorporados pelo
Museu de Ciência de Lisboa.
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Ver sobre este assunto o Decreto de 29 de Dezembro de 1868 que estrutura a Secretaria de Estado dos Negócios
da Marinha e Ultramar e atribui as competências na 2ª Secção as explorações científicas, as colecções e a exposição
dos produtos coloniais.
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A criação do museu privado de João Allen e outras instituições favoreceram, no plano de inovação e de
competitividade, um ambiente cultural importante na época.
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Secretaria de Estado responsável pelo ultramar que exigia o envolvimento de estruturas
administrativas das colónias nas coletas e envio de produtos e espécimes para as instituições
museológicas sedeadas na metrópole (ANTUNES, s/d). Isto demonstra o envolvimento do
Estado nas políticas de incorporação nos museus, realçando, igualmente, a preocupação com o
discurso integrador das questões coloniais.
Margaret Lopes cunha este processo de apropriação de recursos, e consequente estudos
na metrópole de “estatismos da produção científica” (LOPES, 1997). Este processo de
deslocamento de recursos, de produção e vulgarização dos conhecimentos, contribuiu para o
subdesenvolvimento das colônias, uma vez que os “catedrais” do ensino e de conhecimentos
situavam-se na metrópole. Processo esse que vai mudar com o autoexílio da coroa para o Brasil,
e de uma tímida mudança de rumo impulsionado pelos governos liberais.
A criação do Museu Colonial, em 1870, demonstra o comprometimento do estado
português com os assuntos coloniais, fazendo desta instituição um instrumento de propaganda
do projeto colonial. Convém realçar que os objetos que compunham acervos do Museu Colonial
faziam parte de produtos remetidos para a Exposição Universal de Paris (ANTUNES, s/d). As
coleções do Museu Colonial encontravam-se salvaguardadas na lógica desenvolvimentista
comerciais e industrias das colônias10. A nomenclatura dos objetos aponta para industrias
coloniais, artefatos, etc.
Os grandes eventos nacionais e internacionais, neste caso, as exposições nacionais e
universais, ajudaram na construção do imaginário coletivo representado pelo Estado português,
mas também serviram de mecanismos para a entrada de muitos objetos coloniais nos museus.
A criação da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1875, juntamente com outras
instituições vigentes na época11, desempenhou um papel central na mudança de percepção sobre
a África.12 Esta instituição se notabilizou nos programas de apropriação científica do continente
africano, fazendo trabalho de exploração e de prática científica sobre vários aspectos das
possessões portuguesas em África, num contexto de grande agitação imperialistas para o
domínio do continente africano (SANTOS, 1998). Através das expedições ao continente
africano, foram recolhidos objetos culturais para enriquecer coleções do museu desta
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Refere-se as primeiras tentativas de criação de acervos coloniais dependente dos interesses comerciais, e será
sob esta perspectiva que se julga poder ver surgir as primeiras doações no seio da Associação Marítima Colonial
(AMC) criada em 1839
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A partir da segunda metade do século XIX surgiu inúmeras instituições com finalidades comerciais e industriais.
A Sociedade Comercial do Porto é umas dessas instituições.
12
As instituições que estiveram na linha da frente na política colonial podem ser consideradas de apêndice do
estado português. Entre elas podemos listar Universidade de Coimbra (Museu Natural, depois Museu
Antropológico), Museus Colonial, Sociedade de Geografia de Lisboa.
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instituição. A coleção do Henrique de Carvalho constitui, entre muitas, testemunhos da virada
e ocupação do continente africano (CARVALHO, 1890).
A institucionalização universitária da Antropologia contribuiu para a especialização
de coleções nos museus, contribuindo na autonomização de uma corrente de pensamento
voltado para antropologia das colônias. Na Universidade de Coimbra foi institucionalizado o
ensino da Antropologia, em 1885, e no mesmo âmbito se deslocou para outras áreas
disciplinares coleções que pertenciam ao Museu de História Natural.
Manuela Cantinho refere que no século XIX, condicionado por aspetos conjunturais
da época, houve uma desaceleração da política de recolha e de incorporação dos objetos
africanos. Na verdade se compararmos as movimentações de recolha nos finais do século XIX
com algumas décadas do século XX, o saldo dessas recolhas é menor. Só na Universidade de
Coimbra entrou para coleção do Museu, de segunda metade do século XIX ao final do século
1234 objetos maioritariamente de Angola e de Moçambique13.
Outro aspecto de realçar tem a ver como evento de guerras mundiais e com a
diversidade de atores isolados que recolheram muitos objetos africanos. Não se trata de corpos
institucionalizados, casos das universidades, mas de pessoas que se tornaram colecionadores e
comerciantes de artefatos africanos.
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Segundo os dados do Museu e Laboratório Antropológico de Coimbra, os objetos incorporados foram por
compras (Alberto Correia vendeu 517 objetos de Angola) e doações. Ver GOUVEIA, 1985, PP.517-520)
7
Emilio Goeldi (1866/1891)14, representam esforços institucionais numa altura em que o Brasil
estava a tecer a sua identidade.
Os museus criados eram especializados na História Natural, ainda que no primeiro
momento, o Museu Nacional era de cunho histórico. Enriquecido através de coleções do Rei
dom João VI e de doações particulares, o Museu Histórico testemunhavam os processos
históricos de grandes civilizações clássica cujos objetos heteróclitos remetiam para o mito de
origem. Forjar a identidade brasileira através do mito de origem, a seleção da memória remetia
para sociedades europeias e comunidades indígenas. Associado a narrativa do mito de origem,
os arranjos e o discurso do Museu eram para uma sociedade edílica do território brasileiro, onde
o lugar do índio era de mera curiosidade e de subalternidade.
A presença da cultura material africana no Museu era velada, malgrado as ofertas do
rei de Dahomé ao Dom João VI, em 1808, poucas referencias existem da presença africana nos
museus do século XIX.
Em resposta as lacunas historiográficas que desvaloriza a problemática de presença da
cultura material africana nos museus brasileiros, nos períodos pré e pós abolição, este projeto
questiona essa ausência no projeto da construção da nacionalidade, viabilizada através de
discursos museológicos e intelectuais da época.
Por causa do passado de escravismo, a sociedade brasileira reprimiu a cultura africana.
Na esteira de Rita Amaral que passamos a transcrever:
Tendo sido a cultura negra, durante muito tempo, uma cultura dominada, suas
manifestações religiosas foram duramente perseguidas pelo poder político e sua
polícia e também pelo catolicismo, hegemônico durante longos anos. A memória
religiosa só se manteve às custas da tradição oral, de pais para filhos. Do ponto de
vista oficial, a história dos negros é uma história de escravos, que muitas vezes
escamoteia significados e interpreta mais do que explica. Nos museus, à parte acervos
de peças referentes ao processo escravista, como grilhões, mordaças, pelourinhos, não
há registros materiais de sua cultura em liberdade, colocando-se novamente a cultura
afro-brasileira em situação de inferioridade diante da cultura de origem europeias, que
erigiu imensos acervos para preservar os elementos significativos de sua história .
(AMARAL, 2001, p.2)
A morte social dos africanos deslocados do seu lugar de origem encontra, na nova
sociedade de acolhimento, formas de reinventar a sua identidade. A ressignificação identitária
se manifesta no corpo, através de mesclas étnicas, mas também nos seus aportes culturais. A
recriação ritualista nas danças, nas práticas religiosas, na culinária, era feita através de
conhecimento acumulado desde lugar origem. As culturas africanas testemunham padrões de
resistência face a imposição ideológica do grupo dominante. Apesar de se encontrarem em
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Os museus referidos funcionaram em momentos descontínuos. Essas paragens e retomas fazia parte das
condições internas de um país que começava a dar os primeiros passos no domínio museológico.
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posições subalternas, os africanos souberam trilhar estratégias de contra memória e de contra
legitimação.
No século XIX, os intelectuais forjaram a identidade brasileira numa perspectiva de
não reconhecimento do valor social do negro africano e afro-brasileiro. Os museus, enquanto
espaços de representação cultural de uma nação, jogaram para a invisibilidade aportes de outros
grupos que participaram na estruturação da sociedade brasileira.
É evidente que não se pode descurar as forças do atlântico deslocados através de
correntes de ideias em voga na época. As ideologias rácicas permeavam espaços transoceânicos
e faziam escolas nas “catedrais” de ensino e de conhecimento. Brasil, que passou de uma
situação colonial internalizado da metrópole (DIAS, 1972) para o sujeito da própria história,
encontrou nos intelectuais locais soluções teóricas para resolver os problemas internos. As
instituições universitárias e os institutos foram determinantes na institucionalização dos saberes
locais, e na criação de condições para mitigar certos males do cotidiano.
No início do século XX e décadas seguintes, surgiu a figura de cientistas sociais da
problemática negra que debruçaram sobre a inserção do negro na sociedade brasileira. Nina
Rodrigues e discípulos, cunhado escola Nina Rodrigues, refletiram sobre as condições dos
africanos e afrodescendentes depois da abolição da escravatura, bem como a procura de origem
dos grupos étnicos na formação do Brasil. Apesar de ser médico, como os seus seguidores, Nina
Rodrigues incorpora a figura de cientistas de múltiplas valências do contexto regional, Bahia,
contribuindo com objeto de estudo das comunidades negras, favorecendo outras leitura e
sensibilidades. O posicionamento teórico do Nina Rodrigues encontrava-se permeado de visão
cientifica da época, as teorias rácicas de evolucionismo social.
Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues, coligiu e publicou postumamente alguns
escritos de Nina. Forjado num contexto diferente do seu mestre, Ramos teve contatos com
outras teorias antropológicas de posicionamentos despidas de preconceitos raciais.
Nota-se que Brasil foi palco, entre as duas guerras, de várias expedições de
antropólogos europeus, numa época de afirmação do campo da antropologia. Roger Bastide,
Lévi-Strauss, Pierre Verger, entre outros, constituem a nata de cientista sociais europeus que
fizeram trabalhos notáveis em prol de institucionalização da antropologia no Brasil, mas
também de sistematização dos estudos da cultura afro-brasileira. Quase todos eles coligiram
objetos afro-brasileiros, servindo-se de testemunhos histórico e antropológico da nação
brasileira.
Via de regra o colecionismo é uma prática que do ponto de vista de topografia social está bem
assinalada. Esta prática resguardada por uma elite culta, experimentada com as lides das suas disciplinas
9
e dos seus mundos, não é homogênea. Dependendo da estrutura e da conjuntura, a prática de
colecionismo dos elementos da cultura material africana é complexa, diferenciando-se na sua natureza
e instituição. No caso da sociedade brasileira, essa prática acontece no contexto de abolição da
escravidão e do enquadramento sociopolítico e cultural dos africanos e afrodescendentes. Ou melhor,
fala-se de um colecionismo da cultura material de afrodescendentes. Um tipo de colecionismo de
artefatos religiosos e não só que envolve a reconfiguração identitária em novo contexto, a sociedade
brasileira.
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este estudo. A justificativa de escolha dessas instituições, para além de apresentar
denominadores comuns de um processo histórico, tem a ver com o comprometimento do estado
português nos assuntos coloniais. Os museus da Universidade de Coimbra, Colonial, depois a
Sociedade de Geografia de Lisboa representam o comprometimento do Estado português nas
políticas de incorporação da cultura material africana.
No caso de João Allen, um dos casos paradigmáticos de colecionadores enciclopédicos
universalista cuja visão se enquadrava com a mentalidade da época; um burguês abastado que
na topografia da sociedade portuguesa se destacava nas redes nacionais e internacionais de
colecionismo que com o seu espírito empreendedor criou um museu privado, um dos pioneiros
do país.
No Brasil, as instituições museológicas criadas no quadro de modernização do país,
no século XIX, foram enriquecidas com objetos indígenas e outros objetos europeus. Faz parte
deste estudo pesquisar nos catálogos e inventários, a existência ou não de itens africanos.
Contudo, numa tentativa científica de estudo do componente negro na sociedade
brasileira, alguns cientistas engajados com a problemática negra na sociedade brasileira
coligiram artefatos produzidos no Brasil. Esses objetos dos afrodescendentes representam um
universo diferente da realidade portuguesa. Enquanto que na sociedade portuguesa temos um
colecionismo ligado ao patrimônio do império, no Brasil temos um colecionismo ligado à
problemática de inserção da comunidade africana e afrodescendentes na sociedade brasileira15.
Acresce ainda testemunhos de objetos religiosos que foram apreendidos durante a perseguição
religiosa (NASCIMENTO, 1981).
Para melhor apreensão da problemática, resolvemos categorizar o colecionismo de
acordo com a variável estrutural, natureza de coleções e intervenientes.
Coleções da cultura material africana - institucional de base estatal
Coleções da cultura material africana – privada de universo enciclopédico
Coleções dos exploradores no âmbito de partilha da África
Coleções da cultura material afrodescendentes – privada dos cientistas
sociais
Coleções de intolerância religiosa – sedeada nos museus da polícia e do
crime
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Uma nota de interesse para esta questão tem a ver com as coleções do Nina Rodrigues atualmente sedeada na
Bahia, Museu Estácio Lima do Instituto Nina Rodrigues, coleção de Artur Ramos sedeado na Casa da Cultura e
Museu professor Arthur Ramos, e coleções de Pierre Verger alguns adquirida pelo Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP.
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Esta proposta temática constitui elemento para reflexão, sendo que as propostas
reflexivas e o processo investigativo poderão sofrer reformulações.
Para finalizar, permita-nos afirmar a complexidade do colecionismo e as suas
variantes. Na sociedade portuguesa, os itens africanos presentes nos museus e coleções
particulares testemunham a herança imperialista. Muitos desses objetos foram celebrados nos
eventos nacionais e internacionais. No caso da sociedade brasileira, o contributo negro ficou
confinado a história de servidão, servindo de elementos de ocultação da identidade nacional,
resgatada com Nina Rodrigues e seus seguidores.
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