380 148 PB
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.ap.p.1.12
Qual é a potência dos trabalhos que se comprometem com a história oral e a história
pública? Por que, nos últimos anos, ambas têm se tornado tão presentes nas pesquisas
historiográficas? Como afirmou Linda Shopes2, esses campos ou práticas nem sempre se
apresentaram de forma convergente e não devem ser entendidas como sinônimos. No
entanto, quando parceiras, tornam-se práticas reflexivas, ou reflexões com consequências
práticas, em que ao historiador é colocado o desafio de contribuir para a construção de
uma ciência em meio a um processo dialógico e inclusivo com o público, aqui entendido
como mais do que massa ou audiência. Esse público é compreendido como a sociedade
plural, conflituosa e dinâmica que antecede a Universidade e a ultrapassa, cobrando dela
a sua reinvenção no trabalho com o conhecimento, o que significa abrir-se a demandas de
grupos que tiveram suas histórias, memórias e identidades invisibilizadas.
Vivemos, no decorrer dos séculos XX e XXI, ditaduras, discriminações sociais e
catástrofes que tiveram efeitos sociais devastadores e colocaram os historiadores em
posição de atenção ao seu próprio tempo, de forma a colaborar na criação de comunidades
de contadores/testemunhos e de ouvintes; sujeitos diversos que exigiram e continuam a
exigir o direito à memória a fim de cobrar reparações, pertencimentos e reconhecimentos.
A história oral, como abertura à escuta ética, e a história pública, como atitude aberta a
negociações na produção, na divulgação e no acesso ao conhecimento, tornaram-se
1
Instituições responsáveis pelo trabalho: Universidade Federal do Amazonas e Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
*
Professora de História da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Doutora em História pela
Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Brasileira de História Pública.
**
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Amazonas (PPGH-UFAM). Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista
do Programa PPP-004/2017 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
2
SHOPES, Linda. A evolução do relacionamento entre história oral e história pública. In: MAUD, A.M.;
ALMEIDA, J.R.; SANTHIAGO, R. História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e
Voz, 2016.
3
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
3
HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.
4
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.
4
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
5
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2011, p. 148.
6
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória?: para um mapeamento da memória no
campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, Nº 34, p. 9-24, 1992.
7
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
5
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
8
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória?: para um mapeamento da memória no
campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, Nº 34, p. 9-24, 1992,
p. 11.
9
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018, p.176.
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A história oral e a história pública, que não estão necessariamente atreladas, quando
parceiras têm investido esforços na compreensão das subjetividades que fazem parte das
elaborações presentes nas memórias narrativas. Os conhecimentos teóricos produzidos no
âmbito da história oral examinam a lógica costurada pelas narrativas de vida,
questionando não somente as coerências, como também as rupturas, os silêncios e
interditos. A coesão construída pelos narradores, seja em autobiografias ou em histórias
orais de vida, revela o quanto essas fontes são ricos mananciais que permitem examinar
a maneira como o trabalho de memória estabelece relações no tempo histórico. A
experiência de uma vida em sua forma narrativa interessa, nesse sentido, enquanto chave
para uma avaliação preocupada com as intersecções entre o individual e o coletivo, as
disputas por memória e a história.
10
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018, p.176.
11
MAUAD, A.M. Entrevista concedida a Ligia Conceição Santana e Hamilton Rodrigues dos Santos.
Revista Perspectiva Histórica, jan/jun de 2016, n.7, p.151-155.
7
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
12
FRISH, Michael. A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and Public History. New
York: State University of New York Press, 1999.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
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pessoas cujas vozes, gentilmente, nos fazem lembrar sobre a importância de nosso
trabalho na valorização de uma história do tempo presente repleta de vida.
Os textos aqui reunidos enfrentam a percepção hegemônica de um presente
onipresente e convidam os leitores a refletirem sobre o tempo e as possíveis relações
costuradas pelos sujeitos históricos entre presente, passado e futuro. Ao problematizarem
os intrincados diálogos entre história e memória, as diferentes contribuições apresentadas
reafirmam o compromisso da história oral e da história pública com a construção de uma
ciência em franco diálogo com a sociedade e em defesa de uma democracia cada vez mais
radicalizada.
Uma excelente leitura a todas e todos!
Referências Bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras,
1994.
FRISH, Michael. A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and
Public History. New York: State University of New York Press, 1999.
SHOPES, Linda. A evolução do relacionamento entre história oral e história pública In:
MAUD, A.M.; ALMEIDA, J.R.; SANTHIAGO, R. História Pública no Brasil: sentidos
e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d1.p.13.38
Resumo
O presente artigo problematiza o métier do historiador a partir da história pública e da
história do tempo presente. Parte-se do pressuposto de que todo conhecimento histórico
é produzido em diálogo com os problemas e questões do presente, mas que a noção de
demanda social instiga a pensar mais diretamente sobre a relação entre a sociedade e os
temas, posicionamentos e formas de atuação da comunidade de historiadores. Analisam-
se alguns casos recentes em que historiadores problematizaram questões latentes da
atualidade e enfrentaram o desafio de adaptar sua formação em construção de narrativas
em linguagens e suportes não usuais.
Palavras-chave: História Pública; História do Tempo Presente; Demanda social.
Abstract
This article discusses the historian’s craft from the perspectives of public history and
history of the present. It assumes that all historical knowledge is produced in dialogue
with the problems and issues of the present, but that the notion of social demand urges a
more intense discussion about the relationship between the society and, on the other
side, the themes, stances, and forms of action adopted by historians. The article analyzes
a few recent cases in which historians felt compelled to problematize latent issues of the
present time and faced the challenge of adapting their training in the construction of
narratives about the past through unusual means.
1
Historiador e comunicólogo, é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduado em
Jornalismo (PUC-SP, 2004), com especialização em Jornalismo Científico (Unicamp, 2006); mestre e
doutor em História Social (USP, 2009/2013), com pós-doutorado em História (UFF, 2015). Seu trabalho
interdisciplinar concentra-se nas áreas de história pública e história oral, comunicações e artes, teoria e
metodologia de pesquisa. E-mail: [email protected]
2
Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do
Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). E-mail: [email protected]
3
Doutor em História. Professor de Teoria e Metodologia da História da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), Professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em História e no Mestrado
Profissional em Ensino de História da UDESC. E-mail: [email protected]
13
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
4
BELAVICQUA, Piero (org.) A che serve la storia? I saperi umanistici alla prova della modernità.
Roma: Donzelli Editore, 2011.
5
TYRRELL, Ian. Historians in Public: The Practice of American History, 1890-1970. Chicago /
London: The University of Chicago Press, 2005.
6
TOSH, John. Why History Matters. New York: Palgrave Macmillan, 2008.
7
GULDI, Jo; ARMITAGE, David. The History Manifesto. Cambridge: Cambridge University Press,
2014.
8
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.
14
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
9
DUMOULIN, Olivier. O papel social do historiador. Da cátedra ao tribunal. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.
10
DUMOULIN, Olivier. O papel social do historiador. Da cátedra ao tribunal. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.
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13
Uma das chaves, entre outras possíveis, para a leitura das diferentes linguagens e formatos explorados
pelos historiadores que se dirigem ao grande público é a “divulgação de história”. Para mais informações,
ver: Carvalho & Teixeira, 2019.
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14
O blog está disponível em: https://conversadehistoriadoras.com. Acesso em: 23 mai. 2019.
15
O texto completo pode ser acessado em: https://conversadehistoriadoras.com/2016/03/25/desfacatez-
de-classe-sidney-chalhoub/ . Acesso em: 23 mai. 2019.
16
Todas as citações de Desfaçatez de classe foram retiradas do texto publicado no blog e disponível em:
https://conversadehistoriadoras.com/2016/03/25/desfacatez-de-classe-sidney-chalhoub/ Acesso em: 25
mai. 2019.
18
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
17
Disponível em: https://conversadehistoriadoras.com/2016/03/25/desfacatez-de-classe-sidney-chalhoub/.
Acesso em: 27 mai. 2019.
18
Disponível em: https://conversadehistoriadoras.com/2016/03/25/desfacatez-de-classe-sidney-chalhoub/
Acesso em: 27 mai. 2019.
19
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/filha-de-giovanna-ewbank-bruno-gagliasso-vitima-de-
racismo-22117146. Acesso em 23 ago. 2019.
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está parecendo rodoviária”, se ressentiu por ter dividido o voo com um “cara (...) de
bermuda e chinelo”, indo do Rio de Janeiro para São Paulo.20 O portal para o século
XIX foi aberto e a desfaçatez de classe não é mais pronunciada por um defunto autor,
mas por sujeitos defuntos, espécies de reencarnações de Brás Cubas.
Nesse texto, Sidney Chalhoub mobiliza todo o aporte profissional alcançado por
ele como professor e pesquisador de história: erudição, pesquisa documental,
preocupação com categorias históricas, organização argumentativa. Esses predicados já
seriam suficientes para reconhecer esta crônica como uma montagem feita por um
historiador profissional. Mas o autor acrescenta outras habilidades para além das que
comumente definem esse ofício: domínio da narrativa, brincadeira com o anacronismo,
posicionamento ético-político, uso da história para pensar o tempo presente. Das
fronteiras da sua especialização em história da escravidão brasileira no século XIX,
Chalhoub salta para o século XXI e produz um texto capaz de atingir não somente os
novos historiadores, como uma nova geração de leitores, dentro e fora do ofício que nos
toca. Para além disso, o texto tem implicações na própria operação historiográfica, visto
que faz uso de procedimentos caros ao trabalho do pesquisador, mas inova na
linguagem e no estilo.
O autor abriu o presente às múltiplas temporalidades, fazendo uma análise que é
ao mesmo tempo conjuntural e estrutural. Sua análise foi capaz de penetrar nas
singularidades econômicas e políticas do Brasil, mas também de revelar como a crise
política e econômica interna se situava nos jogos bio-econômicos internacionais. Sua
análise não tem nada de imparcial. Ele se posiciona claramente sobre o caso em questão,
escancarando as contradições políticas e até morais daqueles que acusavam a então
presidenta. Dessa forma, também revela seu posicionamento cidadão. O historiador se
apresenta como profissional e como testemunho de um tempo. Testemunho que não se
abriga trincheira de uma suposta imparcialidade política ou profissional, mas que se
lança no campo de batalhas narrativas sobre nosso tempo, levando consigo equipamento
próprio de sua formação como historiador.
20
Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/esposa-de-renato-aragao-reclama-de-
aeroporto-parece-rodoviaria/. Acesso em 20 set. 2019.
20
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O Fado da Ursal
21
Ver, a esse respeito: Moraes & Lima, 2007.
22
Alguns dos espetáculos apresentados por Hermeto são a aula show “meia oito” e “Na carreira”
(concebidas por ela e Ricardo Frei). Ver, a respeito: Hermeto & Lima, 2008.
23
A esse respeito, ver o podcast “Folk Music as Oral History”, produzido pelo Centro de História Oral da
Columbia University: https://podcasts.apple.com/us/podcast/michael-frisch-198-string-band-folk-music-
as-oral-history/id505159853?i=1000122211968.
21
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Considero esse projeto uma experiência que tem possibilitado perceber como
as pessoas reagem a determinada interpretação de fatos, personagens e seu
contexto. É sua leitura do contexto em que vivemos, considerando que a
alegoria possui um poder ambíguo, pode mistificar ou revelar aspectos da
realidade que não enxergamos envolvidos no turbilhão dos acontecimentos. É
uma forma de narrar a história do tempo presente. 24
Instigados pelo trabalho de Hagemeyer e por sua forma de enunciá-lo,
entendemos a relevância de refletir sobre a seguinte questão-problema: a formação
como historiador, para além de seu posicionamento ideológico, é articulada em suas
composições paródicas? Para responder essa questão propomos uma análise de uma de
suas paródias mais acessadas nas redes sociais: o Fado da Ursal.
FADO DA URSAL
Oh, musa de Bolívar
Oh, minha grande URSAL
Que surge num debate
Presidencial
Esquece a esquerda ingrata
Que já se corrompeu
E que só faz deboche
Do sonho que perdeu
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai juntar-se numa grande Ursal!
Sabes, no fundo eu sou um comunista...
Todos nós bolivarianos queremos toda América Unida
(Sem os Estados Unidos, é claro!)
Mesmo quando meu partido só está preocupado
Em conciliar, se aliar, reformar
Meu coração revolucionário fecha os olhos
E sinceramente arde..
Com Salvador Allende
Sandino e Che Guevara
Fidel e Marighela
24
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/parodiadasemana/about/?ref=page_internal. Acesso em:
23 ago. 2019.
22
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A força de Zapata
Abolindo as fronteiras
Numa só grande pátria
O imperialismo ianque
Finalmente se acaba!25
A chamada “União Revolucionária Socialista da América Latina” ganhou
popularidade após ser apresentada em debate eleitoral para a presidência da república
promovido pela TV Bandeirantes e veiculado pela mesma emissora no dia 9 de agosto
de 2018.26 O candidato Cabo Daciolo foi quem trouxe a Ursal a público ao atribuir a
outro candidato, Ciro Gomes, uma possível relação com a suposta entidade.27
Posteriormente, a existência fictícia da Ursal foi reelaborada criativa e ludicamente em
objetos de consumo (como camisetas e canetas), inúmeros memes, testes online (como
“Qual seu nome na Ursal?”, “Que país da Ursal é você?”, “Quantos % de Ursal existe
em você?”) – e, no caso em análise, em uma paródia.
Recurso populares, e ao mesmo tempo sofisticado, da literatura, a paródia
consiste na apropriação de determinada estrutura narrativa, repetida, mas em nova
roupagem. No caso da composição musical, mantém-se a melodia e a harmonia da
música, mas altera-se a letra. Conforme definição dada pelo próprio Hagemeyer,
Paródia é um tipo de palimpsesto, composição criada a partir da obra de outra
pessoa. Pode se inspirar num gênero ou num tipo de interpretação, que serve
como referência ou citação. Nem sempre é caricata, às vezes pode ser uma
sincera homenagem. Na canção, normalmente toma a melodia de uma
música, e às vezes o mesmo modo de cantar e o arranjo, sobrepondo uma
outra letra que estabelece uma nova relação de sentido.28
O autor buscou no repertório de Chico Buarque de Hollanda a composição que
serviu de base para sua paródia: o Fado Tropical foi transformado em Fado da URSAL.
Neste, a Ursal entra em cena como musa comunista, deixando de lado a caricatura
fantasmagórica que assombra o imaginário de certa comunidade (política, evangélica,
conservadora) ao qual o candidato que a mencionou evoca.
Se em Fado Tropical o destino do Brasil é apresentado, de forma irônica, como
o de ser tão somente “uma imenso Portugal”, na paródia o destino do país é promover o
sonho bolivariano de fazer da América Latina uma “grande Ursal!”. Sonho esse
cultivado por um narrador que se identifica como pertencente a um partido político que
25
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eVNS_or1uJQ. Acesso em: 23 ago. 2019.
26
Para mais informações sobre o debate e leituras sobre a chamada Ursal, ver: Rosa, Rezende & Martins,
2018; Chagas, Modesto & Magalhães, 2019.
27
Disponível em: https://youtu.be/7ANqSdWvTlo. Acesso em: 23 ago. 2019.
28
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/parodiadasemana/about/?ref=page_internal. Acesso em:
23 ago. 2019.
23
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só estaria “preocupado em conciliar, se aliar, reformar”, mas que “no fundo” é
comunista.
Uma pequena pausa na apresentação da composição para uma reflexão sobre o
eu-lírico: trata-se de um comunista que na verdade se diz filiado a um partido
reformista; logo, alguém que não assume sua identidade comunista se não pelo que
guarda – ou seria melhor dizer, pelo que esconde “no fundo”? A deixa para essa
interpretação não está apenas na escolha da imagem literária de um comunista
escondido no armário, mas também no ter seu coração ardido quando fecha os olhos e
vê o quanto a esquerda tem maltratado a musa bolivariana que é quem realmente
importa. Seria o caso de um comunista em crise de identidade?
Deixando o desvio especulativo do eu-lírico comunista de lado, voltemos à
composição. Ainda se dirigindo à musa bolivariana chamada Ursal, são convocadas a
seu favor nomes importantes da esquerda latino-americana: Allende, Sandino, Che,
Fidel, Marighella e Zapata. A escolha dos heróis que ajudarão a musa a cumprir o ideal
bolivariano não é aleatória: estão listados todos que, guardados seus respectivos
posicionamentos políticos, se filiaram a propostas socialistas/comunistas, seja no ideal,
seja na implementação de ações políticas efetivas.
No Fado da Ursal o tempo histórico é suspenso para trazer para o contexto
eleitoral brasileiro não o fantasma da unidade latino-americana, mas a realização de
todos os projetos revolucionários tentados desde Simon Bolivar. Seria a eleição
presidencial brasileira o momento de cumprimento da promessa messiânica de uma
grande Ursal?
Unificar tempo e espaço, usar e abusar do anacronismo deliberado e reflexivo,
reivindicar personagens históricos da experiência de esquerda latino-americana e
transformar a paranoia da direita religiosa e conservadora em algo que não apenas é
risível – mas que por meio do riso recupera sua potencialidade utópica – é algo que
revela não apenas a criatividade artística do historiador, como também a boa articulação
que fez da sua formação como professor e pesquisador especializado em história da
América Latina na composição e interpretação de Fado da Ursal. Se todo sujeito que
gosta de música é capaz de fazer paródias, há um um diferencial em paródias de cunho
histórico, tal como as feitas por Hagemeyer. Elas são mais que uma resposta imediata a
uma situação do presente, pois, tal como vemos na composição aqui destacada, há
referências a personagens históricos que requerem determinada familiaridade com a
disciplina. Nesse sentido, é o próprio autor quem menciona esse vínculo:
24
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
29
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/parodiadasemana/about/?ref=page_internal. Acesso em
25 ago. 2019.
30
Em 12 de agosto de 2018 a página contava 7.373 visualizações. Disponível em:
https://www.facebook.com/search/top/?q=fado%20ursal&epa=SEARCH_BOX. Acesso em: 23 ago.
2019.
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história que por muito tempo se dedicou apenas aos grandes vultos da nação. Conforme
um dos compositores do samba-enredo, Luiz Carlos Máximo, afirmo: “Esse é o grande
trunfo do enredo. A gente aprende na escola os heróis que na verdade não são os nossos
heróis. Nossos heróis são os heróis da resistência, quem lutou pela liberdade e por todas
as demandas sociais que a gente sempre está brigando”31.
Acionada na fala do compositor, a noção de demanda social é uma chave de
reconhecimento da força política do samba-enredo. O tema elaborado pela escola
procura historicizar o passado recente, questionando a maneira como este tem sido
transmitido e buscando responder, assim, às demandas sociais por reconhecimento e por
justiça. Tais anseios podem ser entendidos também como “reivindicações memoriais” e
se referem a
passados traumáticos difíceis de assumir por parte das comunidades
nacionais e que emanam de pessoas ou de grupos que não pertencem ao meio
dos historiadores profissionais. O reconhecimento de uma dívida a saldar em
relação ao passado parece, portanto, comum a essas reivindicações
memoriais.32
O samba-enredo – de autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama,
Marcio Bola, Ronie Oliveira, Manuela Oiticica e Danilo Firmino – faz uma crítica aos
perigos de uma história que apaga, negligencia ou torna superficiais determinadas
experiências e narrativas. A invisibilização de indígenas, o embranquecimento de
personalidades negras (como Aleijadinho), a exaltação acrítica aos bandeirantes, os
desaparecidos e torturados durante a ditadura militar (um dos carros alegóricos trazia a
frase “Ditadura assassina”), o assassinato ainda impune de Marielle Franco33, e uma
bandeira do Brasil estilizada, onde no lugar de “ordem e progresso” lia-se “índios,
negros e pobres” são, entre outras, as questões levantadas pelo desfile. A Mangueira
buscou alertar o grande público sobre a importância das muitas histórias, um equilíbrio
que permite o reconhecimento de grupos invisibilizados, apontando os perigos de uma
história única, como bem alertou Chimamanda Adichie34, permitindo o conhecimento
do outro e de outros lugares.
31
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2019/03/07/compositores-do-samba-
enredo-campeao-dedicam-vitoria-ao-povo-da-mangueira.ghtml. Acesso em: 19 mar. 2019.
32
DELACROIX, Christian. “L’histoire du temps présent, une histoire (vraiment) comme les autres?”
Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 05 ‐ 38, jan./mar. 2018.
33
Socióloga, eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016, crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro
e da Polícia Militar, foi responsável por denúncias aos abusos de autoridade por parte de policiais contra
moradores de comunidades carentes. Foi assassinada a tiros em 14 de março de 2018, junto de seu
motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes, no Rio de Janeiro.
34
A escritora nigeriana Chimamanda Adichie usou o termo "história única" para criticar a construção
distorcida de estereótipos de pessoas e/ou lugares, em sua palestra no evento Tecnology, Entertainment
26
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and Design (TED), posteriormente disponibilizado em vídeo no site Youtube e amplamente divulgado nas
redes sociais. Disponível em:
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt.
Acesso em: 12 set. 2019.
35
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/exercito-exalta-duque-de-caxias-no-twitter-apos-critica-
da-mangueira-ao-personagem-historico-23505253. Acesso em: 15 set. 2019.
36
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/exercito-exalta-duque-de-caxias-no-twitter-apos-critica-
da-mangueira-ao-personagem-historico-23505253. Acesso em: 15 set. 2019.
37
BAUER, Leticia. BORGES, Viviane. O patrimônio cultural e a história pública: observações sobre os
embates contemporâneos. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 11, n. 23, p. 48-58, maio/ago. 2019
27
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
poder”38 que institui o que deve ser rememorado. Na leitura da Mangueira, os danos à
obra foram apresentados como marcas do sangue derramado por heróis populares”39.
A crítica social alinhada às demandas sociais e a visibilização de personagens
marginalizados não é novidade no carnaval brasileiro. Já nos anos 1960 a Salgueiro
apresentou personagens pouco (ou nada) conhecidos, como Chica da Silva, Chico Rei e
Zumbi dos Palmares. Em 2018, apenas para citar o exemplo do carnaval anterior, a
Paraíso do Tuiuti, levou para avenida o enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está extinta a
Escravidão?”. A escola, que foi vice-campeã, mobilizou a atenção do público ao propor
um samba-protesto que apontava o racismo e as reverberações da escravidão no
presente. Uma das alas ironizava o caráter manipulador da mídia e das redes sociais e
seu papel na formação dos manifestantes, chamados de “manifestoches”. A respeito do
desfile, Ana Maria Mauad, que o considerou um fenômeno de história pública do tempo
presente, escreveu tratar-se de um exemplo do que ela chama de “atitude historiadora: a
tomada de posse do passado comum para dar sentido ao presente e situar-se no fluxo do
tempo futuro”40.
Esse diálogo entre o passado, o presente e o futuro também aparecem no enredo
da Mangueira, que relaciona, por exemplo, as demandas por intervenção militar por
parte de alguns grupos ao fato de terem aprendido a história de forma enviesada41.
Chama a atenção o destaque dado, em reportagens que repercutiram o desfile, a consulta
de “historiadores, livros e teses”42 para tecer o polêmico enredo. “Para desenvolvimento
do enredo, Leandro consultou historiadores como Luiz Antonio Simas. E tem passado
horas debruçado sobre uma infinidade de teses e livros”, destacou uma delas, de certa
forma ratificando a autoridade profissional do historiador como intérprete legítimo do
passado. Para Simas, historiador e co-autor do Dicionário de História Social do Samba,
entre outros trabalhos, “o enredo da Mangueira ‘é da maior relevância’ por lançar um
olhar crítico sobre a ideia do protagonismo histórico e destacar personagens do povo –
38
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
39
Disponível em: https://veja.abril.com.br/entretenimento/mangueira-faz-desfile-povoado-de-criticas-a-
historia-oficial-do-brasil/. Acesso em: 15 set. 2019.
40
MAUAD, Ana Maria. “O Carnaval da História Pública”. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo; MENESES,
Sonia (org.). História Pública em Debate: patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo:
Letra e Voz, 2018.
41
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/enredo-da-mangueira-contara-lado-da-historia-do-brasil-
na-sapucai-22811315. Acesso em: 16 set. 2019.
42
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/enredo-da-mangueira-contara-lado-da-historia-do-brasil-
na-sapucai-22811315. Acesso em: 16 set. 2019.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
43
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47409435?ocid=socialflow_facebook%20.
Acesso em 20 set. 2019.
44
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47409435?ocid=socialflow_facebook%20
Acesso em 20 set. 2019.
45
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47409435?ocid=socialflow_facebook%20
Acesso em 20 set. 2019.
46
Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/anpuh-
responde/item/5105-estacao-primeira-de-mangueira. Acesso em: 25 mai. 2019.
29
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47
Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/anpuh-
responde/item/5105-estacao-primeira-de-mangueira. Acesso em: 25 mai. 2019.
48
Entre eles Cunhambebe, líder dos tamoios na resistência à ocupação portuguesa no litoral do sudeste no
século XVI; Luiza Mahin, ex-escrava que teria se tornado uma liderança nas lutas contra a escravidão na
Bahia no início do século XIX; e Chico da Matilde, um jangadeiro negro no Ceará que ficou conhecido
como o Dragão do Mar, após liderar uma paralisação de jangadeiros, negando-se a fazer o transporte dos
navios negreiros que chegavam no porto, no século XIX.
49
"Candidato à vice-presidência da República na chapa de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições 2018, o
general da reserva Hamilton Mourão disse nesta segunda-feira, 6, que o Brasil "herdou a cultura de
privilégios dos ibéricos, a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos". A declaração foi
feita em um evento em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, quando Mourão falava sobre as condições
de subdesenvolvimento do País e da América Latina". Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mourao-liga-indio-a-indolencia-e-negro-a-
malandragem,70002434689. Acesso em: 26 abr. 2019.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
bem conhecida dos historiadores: a história oral, que é o método que orienta o quarto
caso em análise.
O pendor interventivo da história oral (que convive com outros entendimentos,
como o da simples técnica de documentação) aviva a referência a trabalhos como o da
socióloga francesa Elisabeth Burgos em colaboração com a ativista guatemalteca
Rigoberta Menchú, que rendeu a esta um livro – hoje controverso – de popularidade
mundial50 e um prêmio Nobel da Paz. Ou então à tradição engajada da história oral
acadêmica que a mexicana Eugenia Meyer ajudou a introduzir no Brasil, em suas aulas
ministradas no país ainda na década de 197051. Ou, ainda, a produtos editoriais que
desejaram, antes de fornecer uma análise aprofundada de fenômenos contemporâneos,
espargir as vozes de quem os protagonizava e assistia, como no caso da primeira marcha
do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra52.
Mais recentemente, a aliança entre a história pública e a história oral têm não
somente reforçado trabalhos socialmente comprometidos, mas possibilitado um avanço
formal e conceitual no tratamento e no entendimento da narrativa como um meio de, a
um tempo, promover intervenções e construir conhecimento crítico no tempo presente.
Valoriza-se, particularmente, a capacidade de a história oral ser um meio privilegiado
para oferecer respostas rápidas a demandas sociais pelo registro e pela análise histórica
de acontecimentos contemporâneos, sobretudo aqueles imprevisíveis, como conflitos
sociais e desastres naturais; um meio privilegiado de reconhecer e preservar as
narrativas de pessoas e grupos em situações de sofrimento e de vulnerabilidade de
várias ordens, situações que passam a ser constitutivas de suas identidades pessoais e
sociais. Aproxima-se portanto de uma ação historiadora que, como Jean-Pierre Rioux
dizia ainda no início dos anos 1990, aprendeu com o que de melhor a ação jornalística
podia ensinar: “na escolha de seus temas, impelida pela atualidade e submetida à
pressão das testemunhas e dos atores que desejam que sua experiência seja rememorada
numa produção ou numa co-produção históricas”53.
50
BURGOS, Elisabeth. Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993.
51
FERREIRA, Marieta de Moraes. Eugenia Meyer - Entrevista. Revista Brasileira de História, v. 33, n.
65, p. 413-431, 2013.
52
SANTOS, Andrea Paula dos; RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado; MEIHY, José Carlos Sebe. Vozes da
marcha pela terra. São Paulo: Editora Loyola, 1998.
53
RIOUX, Jean-Pierre. “Entre história e jornalismo”. In: CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (org.)
Questões para a história do presente. Bauru, SC: Edusc, 1999. p. 119-26.
31
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54
“Emerging Crises Oral History Research Fund”. Disponível em:
https://www.oralhistory.org/award/emerging-crisis-research-fund/. Acesso em: 07 ago. 2019.
55
Este projeto, especificamente, teve como base narrativas de mulheres com doenças ocupacionais de
uma fábrica de baterias. Resultou em um curta-metragem intitulado Red Dust. Disponível em:
https://www.cultureunplugged.com/storyteller/Karin_Mak#/myFilms. Acesso: 07 ago. 2019.
56
Não estão disponíveis os resumos ou os projetos completos; tampouco se localizaram os resultados de
todos os projetos. Por essa razão, mencionamos apenas uma seleção aleatória dos mesmos.
57
CAVE, Mark; SLOAN, Stephen M. Listening on the Edge: Oral History in the Aftermath of Crisis.
Oxford: Oxford University Press, 2014.
32
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Identificou algumas das preocupações ativadas por esse tipo de trabalho (o impacto
psicológico da entrevista sobre os entrevistados, sobretudo), mas valorizou o papel da
metodologia e de seus pesquisadores em contribuir para que as comunidades afetadas
reconstituam seu sentido identitário a partir dos restos deixados após crises e tragédias.
O cenário de ataque aos direitos sociais e individuais e o desmonte dos sistemas de
proteção ao cidadão e à vida em sociedade, em galopante agravamento no Brasil desde
o golpe de 2016, tem incitado historiadores a entrever na narrativa pessoal, instanciada a
partir de experiências coletivas de conflito e violência, um lugar de resistência.
Conjuntos de narrativas sobre o presente e o passado recente refazem-se, e renovam sua
função, enquanto espécies de construtos simbólicos nos quais os sentidos do
democrático, do público e do comum podem ser preservados; que constituem tanto um
modo incisivo de oposição a tais ataques e desmontes quanto um tipo de reserva de
memória cultural capaz de garantir a persistência de valores desafiados e por vezes
diretamente torpedeados por medidas governamentais agressivas e antidemocráticas.
Tomemos o caso de um projeto recente, baseado em entrevistas, que parece - entre
outras finalidades – induzir a criação de reservatórios de memórias e de representações
sociais em risco. Narrativas em movimento - Do “Escola Sem Partido” à “Educação
Democrática”: História pública e trajetórias docentes é o título da dissertação de
mestrado em História de Renan Rubim Caldas, defendida em 2018 na Universidade
Federal Fluminense, para a qual o autor se mobilizou a partir do candente debate
público sobre a profissão docente - debate persistente no tocante às condições de
trabalho do professor, que ganhou novos contornos, em um contexto de ascensão
conservadora no qual o movimento “Escola sem Partido” (compreendido por Caldas
como um “antimovimento social”) se gestou.
Lidando com o imediato como sua dimensão temporal por excelência, Caldas
analisou as narrativas públicas construídas em torno do “Escola sem Partido” e do
movimento social “Professores Contra o Escola Sem Partido” – assim chamado pelo
autor, que deslinda o papel do movimento na defesa da educação democrática. Aos
professores de História do ensino básico, Caldas atribui um duplo compromisso com a
história pública: eles seriam agentes da disseminação e da construção crítica de saberes
históricos, na sala de aula, mas também seriam “sujeitos históricos intervindo na
realidade social, política e cultural em que vivem, ou seja, em que atuam como
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Esses casos, por diversos que sejam, tangenciam as relações entre demandas
sociais, história do tempo presente e história pública, articuladas com avanços
epistemológicos e ontológicos da História. As formas tradicionais de manifestação da
comunidade de historiadores sobre questões polêmicas pautadas pelo seu tempo
costumavam, no passado, se dar por meio de petições, cartas de adesão, artigos de
jornais, em suma, por formatos que mantinham vínculo com a tradição escrita e com o
domínio que tinha sobre as etapas da produção.
Treinado para construir uma monografia, uma tese ou uma dissertação, para além
de discursar e apresentar oralmente os resultados de sua pesquisa, com as novas
tecnologias o historiador se vê na iminência de ter que produzir narrativas mediado por
outras linguagens que não a escrita. Ao fazer isso, não apenas leva sua expertise para a
58
CALDAS, Renan Rubim. Narrativas em movimento - do “Escola sem Partido” à “Educação
Democrática”: História Pública e trajetórias docentes. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 2018
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
nova plataforma que escolheu, como também é moldado pelos limites e potencialidades
que o meio utilizado impõe – seja ele o cinema, a música ou a crônica literária. Isso não
apenas amplia o raio de ação e repercussão do trabalho do historiador como traz novos
desafios técnicos e epistemológicos para a comunidade científica.
A incorporação da arte, da história oral, da música, do filme e da fotografia na
oficina do historiador ajudou a ampliar, refinar e fortalecer a história enquanto ciência.
Seria diferente se incorporássemos os memes, as redes sociais, os blogs, os stories? O
texto do historiador já passou pelas narrativas monográficas, pelos ensaios, pelas
páginas de jornais. Perderia seu rigor enquanto erudição, posicionamento crítico e
responsável se formatado em paródias, crônicas, exposição, organização de acervo,
documentários ou games educativos?
Não é o caso de abrir mão da crítica rigorosa, de uma história fundamentada em
fontes, arquivos e métodos, mas de reavaliar os limites desse tipo de narrativa no mundo
contemporâneo e propor, junto a eles, novas formas e estilos de apresentação do
trabalho do historiador. Tampouco se trata de trocar a avaliação dos pares pelo número
de likes nas redes sociais ou a popularidade da manifestação dos historiadores, mas de
colocar as regras e métodos apreendidos na formação em formatos capazes de chegar a
públicos com pouco – se não nenhum – conhecimento acerca de como funciona o
trabalho do pesquisador da área de história. Dar a esse público ampliado a possibilidade
de conhecer parte da nossa labuta, se posicionar sobre ela e, no limite, desejar conhecer
as outras modalidades de narrativa e de reflexão da comunidade historiográfica.
A enunciação pública da relação entre os homens e o tempo não implica colocar a
história a serviço dos movimentos sociais, construindo uma história hagiográfica da luta
operária, feminista, ambiental, e assim por diante – mas abrir a história para refletir
criticamente com e sobre os movimentos sociais e as diferentes formas de organização
da sociedade civil. Trazer para a universidade suas demandas e devolvê-las a partir da
análise rigorosa – de forma a estimular os sujeitos e grupos à reflexão sobre as
dinâmicas temporais de suas reivindicações, assim como o historiador a ampliar e
refinar seu repertório crítico, temático e analítico – é possível, dentro de um esforço que
prime pela horizontalização da produção do conhecimento histórico.
A sobrevivência da história, como área de conhecimento legítima e reconhecida
científica e socialmente, só estará em perigo se, diante dos desafios de se arriscar
quando questões candentes do presente exigem posicionamento e análise, for preferível
ficar no silêncio esperando que historiadores do futuro ofereçam explicações para o que
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Referências Bibliográficas
BELAVICQUA, Piero (org.) A che serve la storia? I saperi umanistici alla prova
della modernità. Roma: Donzelli Editore, 2011.
CAVE, Mark; SLOAN, Stephen M. Listening on the Edge: Oral History in the
Aftermath of Crisis. Oxford: Oxford University Press, 2014.
37
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
MAUAD, Ana Maria. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e
cotidiano em regimes de exceção (1960-1980)”. Estudos Ibero-Americanos, v. 43, p.
397-413, 2017.
MORAES, José Geraldo Vinci; LIMA, Giuliana Souza de. “Entrevista com professor
Arnaldo Daraya Contier”. Revista de História, n. 157, p. 173-192, 2007.
SANTOS, Andrea Paula dos; RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado; MEIHY, José Carlos
Sebe. Vozes da marcha pela terra. São Paulo: Editora Loyola, 1998.
SAUVAGE, Pierre. “Uma historia del tempo presente”. Historia Critica, n. 17, p. 59-
70, 1998.
TOSH, John. Why History Matters. New York: Palgrave Macmillan, 2008.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d2.p.39.65
CONHECIMENTO HISTÓRICO DO
HISTORIADOR E OUTROS CONHECIMENTOS
HISTÓRICOS
Resumo
O presente artigo trata dos conhecimentos históricos não-profissionais socialmente disseminados que
concorrem com o conhecimento histórico do historiador profissional. A premissa de que se parte é
reconhecer a legitimidade destes outros conhecimentos, abordando-os por meio de autores diversos, sem
deixar de lado aqueles que falam numa perspectiva inglesa e americana, esta, em especial, com alguns
aspectos com que boa parte da historiografia da história pública brasileira pouco dialoga – como o
aspecto da empregabilidade (pensando, talvez, que tudo que se faz nos Estados Unidos seja com fins
mercantis, exclusivamente) e a convivência profícua entre cursos de formação em história acadêmica
com outros de formação em história pública. Objetivo, aqui, sopesar o conhecimento treinado num curso
que cria o historiador profissional no Brasil segundo uma pretensão de fazer conhecimento para o
público, ponderando se esta perspectiva não retém um componente que contém uma premissa da
superioridade da história metodológica e cientificamente orientada ante a história não-profissional do
conhecimento comum. Minha indagação aqui é se, em alguma medida, as premissas de parte da História
Pública discutida e praticada no país não são informadas por um postulado cujo objetivo é o de levar o
conhecimento sábio profissional a públicos insipientes, postulado a meu ver perigoso, porque
hierarquizante, em que o conhecimento do historiador ainda é visto como superior a outros demais
conhecimentos não produzidos na academia - mesmo em se levando em conta as múltiplas definições e
objetos de análise da História Pública brasileira que a tornam tão diversificada e rica.
Palavras-chave: Ciência do historiador; Insciência histórica comum; Hierarquia de saberes.
Abstract
This article deals with the socially scattered historical knowledge that adresses the competitor’s issue with
the professional’s historical knowledges. The starting premise is to recognize the legimacy of this other
knowledge, approaching it through different authors, without leiving aside those who speak in an English
and American perspective, this, in particular, with some aspects with which much of the historiography of
Brazilian public history has little dialogue – as the aspect of employability (thinking, perhaps, that
everything that is done in the United States is for commercial purpose, exclusively) and the fruitful
coexistence between training courses in academic history with other training courses in public history.
The objective here is to weigh the knowledge trained in a course that creates the professional historian in
Brazil according to a claim to make knowledge for the public, pondering whether this perspective does
not retain a component that contains a premise of the superiority of methodological and scientifically
oriented history over the non-professional history of common knowledge. My question here is whether, to
some extent, the premises of part of public history discussed and practiced in the country are not informed
by a postulate whose objective is to take wise professional knowledge to incipient audiences, postulate
dangerous, in my view, because hierarchical in which the historians knowledge is still seen as superior to
other knowledge not produced in academia – even so, taking into account the multiple definitions and
object of analysis of Brazilian Public History that become so diverse and rich.
Keywords: Historian science; Common historical awareness; Knowledge hierarchy.
1
Professor efetivo da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus de Campo Mourão.
Professor vinculado ao PPG em História Pública e ao Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTORIA), ambos da UNESPAR. E-mail: [email protected]
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Considerações iniciais
Em entrevista concedida a Francesco Maiello, em 1982, intitulada “A história, o
historiador e os Mass Media” (grifo do autor), Jacques Le Goff responde à pergunta
sobre “o lugar dos historiadores nas sociedades ocidentais”. Inserindo em seu
raciocínio, como não poderia deixar de ser, as mutações promovidas pelas mídias no
fazer historiador e mesmo no estatuto de autoridade do historiador, mesclado a
comparações entre a Nova História e o Positivismo, Le Goff corrige seu entrevistador.
Este indagava se o desprestígio naquele momento do historiador “aos olhos de quem
governa”, só lhe deixava o grande público, situação considerada “desesperante”. Le
Goff imediatamente conserta o que pode ter sido entendido das suas considerações:
“(...) quando falei de êxito e de triunfo [da história junto ao grande público], falei da
história e não do historiador”2. História e não historiador, eis aí distinção fundamental.
As discussões travadas no universo historiográfico francês nos anos 1970 e
início dos anos 1980 parecem-me bastante sugestivas para se pensar a questão das
mutações do papel do historiador, sua função social, relativamente a um contexto onde
o grande público se interessa por e consome história.
Por ocasião de uma mesa-redonda promovida pela revista Magazine Littéraire
na segunda metade dos anos 1970 – cujos debates foram publicados pelo mesmo
periódico em abril de 1977 – Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie, Georges
Duby, Paul Veyne, Michel de Certeau, Philippe Ariés, Pierre Nora e outros [sic] –
foram discutidos vários temas, entre eles, que mais nos interessa aqui, a explosão
midiática da história – da qual alguns destes historiadores assumiam participar – , e as
mutações da história provocadas pela Nova História, mas, e acima de tudo, os
desdobramentos sobre o papel e o lugar social do historiador, tendo que “justificar a
necessidade e a urgência de seu trabalho”3. Sem entrar no mérito de que a discussão em
curso – na realidade, as discussões em curso na historiografia mundial sobre o problema
da função social da História – já contivessem um princípio da discussão sobre a História
Pública – na realidade sobre o que importava, e como, a história a outros públicos – sem
entrar neste mérito, então, em meio àquela discussão a qual mencionava a força da
história produzida pelas mídias por não-profissionais de História (embora alguns
assumissem que participavam daquelas mídias!), em meio à discussão o entrevistador
2
LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
3
ARIÉS, Philippe et al. A história – uma paixão nova. In: LE GOFF; LADURIE; DUBY.et al. A Nova
História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
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indaga sobre como ficavam eles, historiadores, com o “fato de serdes apanhados por
este fenômeno de expansão” [da história nas mídias]4. Michel de Certeau, que
participava da entrevista,5 alega que o fenômeno deveria ser pensado na perspectiva de a
autoridade histórica se tornar uma “vedete”, embora seu principal argumento fosse
“deter-me num problema que o êxito da História nos mass-media introduz na
profissão”6.
4
ARIÉS, Philippe et al. A história – uma paixão nova. In: LE GOFF; LADURIE; DUBY.et al.A Nova
História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
5
Participavam da entrevista Michel de Certeau, Philippe Ariés, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy
Ladurie e Paul Veyne.
6
ARIÉS, Philippe et al. A história – uma paixão nova. In: LE GOFF; LADURIE; DUBY.et al.A Nova
História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
7
ARIÉS, Philippe et al. A história – uma paixão nova. In: LE GOFF; LADURIE; DUBY.et al.A Nova
História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
8
ARIÉS, Philippe et al. A história – uma paixão nova. In: LE GOFF; LADURIE; DUBY.et al.A Nova
História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009
41
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9
LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009.
10
LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009.
11
FRISCH, Michael. A história pública não é uma via de mão única o de a Shared Authority à cozinha
digital, e vice-versa. In: MAUAD, Ana M; ALMEIDA, Juniele R de.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.)
História Pública no Brasil. Sentidos e Itinerários. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2016.
42
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básicos sobre o qual assenta-se a História Pública em seu processo de valorizar outros
públicos e de lhes conferir uma necessária autoridade.
12
O historiador americano Theodore Hamerow associa o isolamento dos historiadores na “torre de
marfim” ao processo de profissionalização e de “burocratização” da história, refazendo a trajetória
deste isolamento desde o século XIX que cientificizou a história, trajetória agudizada após a Segunda
Grande Guerra. “Estas são as preocupações de uma disciplina que retirou-se dos perigos da literatura e
profetiza para tornar-se parte do currículo de faculdade”. [Such are the concerns of a discipline thas has
withdrawn from the hazards of literature and prophesy to become part of the college curriculum]
(HAMEROW, 1989, p.659). Todas as traduções dos trechos em inglês foram feitas por mim.
13
CAUVIN, Thomas. Uma ascensão da história pública: uma perspectiva internacional. Revista
NUPEM, v.11, n.23, p. 8-28, 2019.
14
HERMETO, Miriam & FERREIRA, Rodrigo de A. Apresentação de dossiê. Revista História Hoje,
v.8, n.15, p.5-16, 2019.
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História Pública é essa ideia de que todo mundo pode fazer história (...) Acho que tem
uma dose de risco quando você acha que qualquer pessoa, qualquer cidadão está
habilitado e legitimado para escrever um trabalho, digamos, científico sobre história”15.
A afirmação de Ferreira indica a adesão a uma realidade capciosa do processo de
comunicar história a audiências de não-pares, assim como uma defesa de área
acadêmica.
Já Marta Rovai alerta para os perigos de uma história sem o crivo da área: “é
preciso considerar que sem o conhecimento histórico, acumulado e sistematizado sobre
os processos humanos, corre-se o risco de simplificações históricas, preconceitos e
indiferenças”16.
Estas afirmações, adequadas e cuidadosas, de Rovai e Ferreira precisam ser
nuançadas por colocações que admitam certa forma de as próprias audiências
produzirem suas histórias – sem precisar esperá-las pela divulgação -, mesmo sem a
benção dos profissionais acadêmicos, como Stephen Bann já desenvolveu sobre os
inícios da história disciplinarizada inglesa. Carlyle e Macaulay (...) “talvez as mais duas
célebres figuras da historiografia britânica do século XIX (...) mantiveram a distância da
cada vez maior comunidade de historiadores profissionais e deliberadamente
abstiveram-se de aderir às instituições [universitárias] recém-fundadas”17. Ao
trabalharem com memes como forma de difusão de história “para um público amplo”
como práticas de Ensino, Costa & Mendes apontam para o “aspecto mítico” das
formulações sobre história. “O que se propõe aqui é que o educador deve levar em
consideração o aspecto mítico, presente no imaginário do aluno sobre um personagem
histórico” ou – em outras palavras – levar em conta formulações sobre história que o
horizonte de expectativa de análise de historiadores disciplinarizados normalmente não
visam, uma vez que não só leem história segundo critérios de um conhecimento
especializado, como nem sempre consideram fatores de um outro tipo de escrita
histórica das audiências, que a fazem segundo a projeção de mitos sobre a relação
passado e presente.
15
FERREIRA, Marieta de Moraes. Uma trajetória em (o que chamamos hoje) História Pública. Revista
História Hoje, v.8, n.15, p.223-238, 2019. Entrevista concedida a Miriam Hermeto e Rodrigo de
Almeida Ferreira.
16
ROVAI, Marta G. de O. Publicizar sem simplificar: o historiador como mediador ético. In: ALMEIDA,
Juniele R de; MENESES, Sônia (Orgs.). História Pública em debate: patrimônio, educação e mediações
do passado. São Paulo, SP; Editora Letra e Voz, 2018.
17
BANN, Stephen. As invenções da história: ensaios sobre a representação do passado. Ed. UNESP,
1994.
44
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
45
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divulgação dos mais diferentes saberes, de forma que possa abranger e contar com a
participação e o diálogo com comunidades diversas, para além das universidades e das
escolas”21sob a alegação de que a “academia tem sido omissa em considerar seriamente
este tipo de historiografia produzida para o público, à margem do que se faz stricto
sensu nas escolas de formação superior (...)”22.
A boa história divulgada que visasse a públicos não aconteceria, também, por
questão de linguagem difícil dos historiadores. Embora não possa ser confundida com
reducionismos ou saber banal, o “uso de uma linguagem mais acessível”23é um objetivo
a ser alcançado. Ouve-se muito da parte de públicos interessados, mas não formados
que “o historiador precisa aprender a escrever mais fácil, numa linguagem mais
acessível”, que os historiadores são herméticos, escrevem difícil. Se entendida como
divulgação, a História Pública para o público teria aí um empecilho, mesmo que a
História Pública reconheça que “nós, historiadores, não somos os únicos capazes de
produzir um conhecimento histórico legítimo”24.
Como se, um, a história pública se reduzisse a isso – o que não é irrazoável, uma
vez que nem os historiadores sabem exatamente o que seja História Pública; e, dois,
como se a recepção de textos fosse motivada apenas por um processo comunicacional,
em que o outro recebesse de um aquilo que quer escutar, ler ou ouvir, mas que aquele
que comunica não conseguisse fazer bem, por causa de sua linguagem hermética, pouco
adequada e desagradável, quando não inatingível. Não é inquestionável que o processo
de produção de conhecimento histórico orientado, científica e academicamente, exija
algum fechamento e hermetismo, mas perguntas e abordagens feitas ao passado por
grupos de especialistas sobre certos passados de interesse mais geral não são as mesmas
perguntas e abordagens que o público em geral faz aos mesmos passados.
Tratado muitas vezes como textos publicados em veículos e meios de massa de
grande circulação, o que faltaria à divulgação é o bom redator, como o jornalista, que
21
ROVAI, Marta G. de O. Publicizar sem simplificar: o historiador como mediador ético. In: ALMEIDA,
Juniele R de; MENESES, Sônia (Orgs.). História Pública em debate: patrimônio, educação e mediações
do passado. São Paulo, SP; Editora Letra e Voz, 2018.
22
ALBIERI, Sara. História pública e consciência histórica. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI,
Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
23
PENNA, Fernando de Araujo & FERREIRA, Rodrigo de Almeida. O trabalho intelectual do professor
de História e a construção da educação democrática. Prática de História Pública frente à Base Nacional
Comum Curricular e ao Escola Sem Partido. In: História Pública em debate: patrimônio, educação e
mediações do passado. São Paulo, SP; Editora Letra e Voz, 2018.
24
MAUAD, Ana M; ALMEIDA, Juniele R de.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.) História Pública no
Brasil. Sentidos e Itinerários. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2016. Resenha de: CORRÊA, Luiz Otávio. Os
vários significados da História Pública. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v.7, n.7, set.2016.
46
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
25
LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. Lisboa, PO: Edições 70, 2009.
26
SANTHIAGO, Ricardo. “A História Pública é a institucionalização de um espírito que muitos
historiadores têm tido, por milhares de anos”: Uma entrevista com David King Dunaway sobre História
Oral, História Pública e o passado nas mídias. Revista Transversos. “Dossiê: História Pública:
Escritas Contemporâneas de História”. Rio de Janeiro, Vol. 07, nº. 07, pp. 203-222, Ano 03. set. 2016.
Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/transversos>. ISSN 2179-7528. DOI:
10.12957/transversos.2016.25607.
27
ROVAI, Marta G. de O. Publicizar sem simplificar: o historiador como mediador ético. In: ALMEIDA,
Juniele R de; MENESES, Sônia (Orgs.). História Pública em debate: patrimônio, educação e mediações
do passado. São Paulo, SP; Editora Letra e Voz, 2018. p.185-196.
28
ALBIERI, Sara. História pública e consciência histórica. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI,
Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011
47
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salvo engano, requer modificações durante todo o processo de pesquisa e não apenas no
momento de seu escoamento”. Suplementando sua reflexão que recusa as opiniões
favoráveis a que uma “boa história” a ser divulgada é simples questão de linguagem
acessível, palatável, ou coisas assim, ele reafirma:
Mais uma vez, me parece que este campo, entendido como um lugar de
debate, é o que tem permitido superar a visão da história pública como
“questão de linguagem”, embora ela continue à espreita – e deva ser vista
com muita prudência, porque pode ser facilmente empregada para a
deslegitimação desse lugar29.
29
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: alguns comentários sobre a história
pública no Brasil. In: MAUAD, ALMEIDA, Juniele Rabelo de; SANTHIAGO, Ricardo (Orgs.). História
Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. SP: Editora Letra e Voz, 2016. p.23-36.
30
ALBIERI, Sara. História pública e consciência histórica. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI,
Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
31
ALBIERI, Sara. História pública e consciência histórica. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI,
Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
48
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É por essas e outras que para a história pública para o público não basta apenas
uma história que tenha passado pelo crivo da academia transmitida de modo agradável.
Numa formulação a fim de sugerir o que não deveria faltar a uma definição de
história pública, a historiadora Ludmila Jordanova ressalta que os vínculos os quais
sujeitos estabelecem com o passado são sempre pessoais, mediados por suas emoções e
sentimentos, por meio dos quais o passado vem a cada um de nós, e que só poderiam ser
contados, e aceitos, se garantissem aos sujeitos a história como parte de suas histórias
de vida pessoal, narrativas que pudessem ser ditas por meio de histórias que viveram e
que, de algum modo, os enlaçaram e/ou lhes tocaram. Não existiria história que não
fosse vivida nesta perspectiva, digamos, personalista.
32
SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. São Paulo (SP): Cia das
Letras; Belo Horizonte (MG): Editora UFMG, 2007.
49
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Por que pessoas sem motivação direta profissional, poriam atenção particular
às complexidades da história? Aqui eu entendo história num sentido forte –
uma disciplina formal que demanda habilidades especializadas, expertise e
conhecimento, incluindo um entendimento crítico de fontes materiais e uma
familiaridade com uma variedade ampla de maneiras com as quais evidências
podem ser interpretadas.33
33
Why would people without either direct personal or professional motivation pay close attention to the
complexities of history? Here I mean history in a strong sense - a formal discipline, demanding
specialised skills, expertise and knowledge, including a critical understanding of source material and a
familiarity with a wide range of ways in which evidence can be interpreted. Ver: JORDANOVA,
Ludmila. Como a história importa hoje? Disponível em: .http://www.historyandpolicy.org/policy-
papers/papers/how-history-matters-now. Publicado em novembro de 2008. Acesso em janeiro 2019.
34
based on the form and nature of transmission of historical knowledge to wider audiences .... is seeking
to promote cogent reflection on the relationship between the academic historian and the public. Ver:
KEAN, Hilda. Pensando sobre pessoas e história pública. Disponível em
http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-Working-Papers-Journal-by-
Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
35
the free access of the public to the findings of historical scholarship. Ver: KEAN, Hilda. Pensando
sobre pessoas e história pública. Disponível em
http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-Working-Papers-Journal-by-
Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
36
an option to be pursued by a handful of publicity-seeking academics. Ver: KEAN, Hilda. Pensando
sobre pessoas e história pública. Disponível em
http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-Working-Papers-Journal-by-
Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
37
is both upon ‘the injection of historical perspective into crucial public issues’ and of academics ‘sharing
with the public their own scholarly expertise. Ver: KEAN, Hilda. Pensando sobre pessoas e história
pública. Disponível em http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-
Working-Papers-Journal-by-Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
50
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38
It is our job to tell the historical truth, and it is just as important that we call out historical lies. In the
end, as I ask you all to consider yourselves public historians, I am asking us all to re-assert our
expertise. It is not simply that we know more about the past—although we do—but we know how to
think about the past in ways that most others do not. That is what we have to offer to the public debate
and I urge you all to find new ways to do it. Ver: KEAN, Hilda. Pensando sobre pessoas e história
pública. Disponível em http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-
Working-Papers-Journal-by-Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
51
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
39
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: alguns comentários sobre a história
pública no Brasil. In: MAUAD, ALMEIDA, Juniele Rabelo de; SANTHIAGO, Ricardo (Orgs.). História
Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. SP: Editora Letra e Voz, 2016. p.23-36.
40
where those who know something engage with those who know something else. Ver: DUCLOS-
ORSELO, Elizabeth. Autoridade compartilhada: a chave para educação museal como mudança social.
Journal of Museum Education, v.38, n.2, July 2013, p.121–128.
52
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53
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43
FRISCH, Michael. A história pública não é uma via de mão única o de a Shared Authority à cozinha
digital, e vice-versa. In: MAUAD, Ana M; ALMEIDA, Juniele R de.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.)
História Pública no Brasil. Sentidos e Itinerários. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2016. p.57-69.
44
There may, of course, be a gap in historical understandings between those trained as historians and the
audiences for their work but this gap will not be shortened by ‘historians’ merely reaching out to ‘the
public’. Rather, as David Glassberg has suggested, new ways of thinking about the past may be grasped
by ‘reaching in to discover the humanity they share’. The recognition of the historian’s – as much as the
public’s – personal need for the past is key to different understandings of the past. 9 If History does
embrace an acknowledgement of people’s role in making history – and includes historians within this
idea of people – this presents challenges.10 It can be an unsettling but perhaps a good place to start in
opening up historiographical practice.11 Exploring our engagement with our own and others’ pasts may
help us develop different ways of thinking about Public History and of sharing ideas or validating – or
scrutinising – experience.Ver: KEAN, Hilda. Pensando sobre pessoas e história pública. Disponível
em http://arts.brighton.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/68270/Chapter-1-Working-Papers-Journal-by-
Hilda-Kean-ISSN-20458304-.pdf. S.d. Acesso em janeiro 2019.
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Kalela o ensinou, em especial como deveria agir para abordar o passado nestas
situações. O historiador conta-nos do momento em que ocorreu uma virada na relação
dos operários para com seu passado.
Uma vez que aceitaram a ideia de que eles tinham o mesmo direito de definir
o conteúdo de história como um historiador profissional, os círculos
proliferaram. Este alvoroço era a maneira dura na qual eu descobri que o
conceito acadêmico tradicional de história que eu trazia como garantido era,
por sua natureza, paternalista. Eles tinham o direito de estudar o que em sua
visão era sua própria história, mais do que tomar como certo um conceito
pronto disto.45
O consultor Jorma Kalela havia criado quarenta círculos de pesquisa entre seu
público de trabalhadores e deixou a eles a definição dos parâmetros para fazerem sua
história.
Em recente texto, Publicizar sem simplificar. O historiador como mediador
ético, Marta Rovai segue a mesma direção. “Pensar a publicização de fatos que
envolvem coletividades é pensar nos usos que diferentes setores sociais fazem do
passado”. Ao relatar sua experiência com comunidades populares, que sabem sua
história de um modo que não é o modo de conhecer com que o historiador conhece o
passado, a autora assinala que aquelas comunidades “[buscam] defender, preservar e
registrar suas histórias e memórias a partir de suas próprias demandas”. Diz a autora:
Porque parece certo que a maneira com que historiadores analisam o passado e
seu objeto seja condicionada pelas perguntas de método, metodologia, abordagem
teórica, relevância do tema, função da história, análise de fontes que marcaram sua
formação de historiador com conhecimento cientificamente orientado. Se admitimos
45
Once they had accepted the idea that they had the same right to define the substance of history as a
professional historian, the circles proliferated. This agitation was the hard way in which I discovered
that the traditional academic concept of history that I had taken for granted was, by its nature,
patronizing… They had to have the right to study what in their view was their own history, rather than
take for granted a ready-made concept of it. Ver: KALELA, Jorma. Fazer História: o historiador como
consultor. Public History Review. v.20, 2013, p.24-41.
46
ROVAI, Marta G. de O. Publicizar sem simplificar: o historiador como mediador ético. In: ALMEIDA,
Juniele R de; MENESES, Sônia (Orgs.). História Pública em debate: patrimônio, educação e mediações
do passado. São Paulo, SP; Editora Letra e Voz, 2018. p.185-196.
55
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que a história pública é a apresentação da história para públicos mais amplos do que os
pares acadêmicos, temos de supor que qualquer apresentação de história para públicos
seja divulgação - filmes, minisséries, história digital, rádio etc, que apresentam a
história? Numa acepção diversa da que pondero aqui, o que Rovai e Kalela fazem aqui
não é exatamente divulgação de alguém que sabe para outro que não sabe, mas um
processo de relatar resultados que foram deliberadamente construídos a partir de duas
expertises: a do profissional historiador e a dos que sabem sua história! – gostemos ou
não. Se sabem ou se não sabem, de um ponto de vista do historiador formado, não
importa para este debate. O que importa é garantir a legitimidade destas comunidades
em saber que eles podem contar suas histórias sem o crivo do historiador profissional -
com sua colaboração, talvez - e que nem por isso suas histórias serão menos
consistentes.
Seria de se perguntar: como escrever história sem se desdenhar dos critérios do
público que olha para o passado? A opção será a de advogar mais a defesa de uma
História pelo público, mas com a participação do historiador, entendendo como o
passado é transformado em história, e considerar como o historiador pode se compor, ou
colaborar com outros públicos para que façam suas histórias.47
Há experiências com história pública que entendem a história comum do público
como tão valorosa quanto a do historiador formado especialista, inclusive admitindo
que sua história deve ser estudada e compreendido seu processo de construção – sob que
balizas, valores, ideias, ideologias, influências etc. foram elaboradas. O historiador
elabora o passado de modo disciplinarizado, o que envolve uma especialização que
dirige ao passado perguntas e abordagens que derivam de uma sistemática de
abordagem científica que requer um olhar treinado metodologicamente para o passado.
O que não é o olhar que outros públicos não-disciplinarizados têm. Deve-se tentar evitar
reproduzir, implicitamente, a ideia de que haja, no fim de tudo, uma elaboração do
historiador mais adequada do que a de outros públicos, ratificado pelo que disse Albieri,
já citada: como se o acesso do historiador “a documentos fosse tudo o que falta para que
a revelação iluminadora da verdade histórica finalmente ocorra”. A divulgação que
mobiliza o material do historiador não pode incorrer neste risco profissional de se
47
O historiador holandês Paul Knievel, nos anos 1990, quando da apro’ximação das histórias públicas
europeias e americana, registra que a história pública seria, então, redefinida como ‘história para o
público, sobre o público e feita pelo público, se aproximando da tipificação que depois Santhiago vai
firmar na literatura nacional brasileira. A qualificação de história feita pelo público abre margem para
uma história do público, história da própria lavra do público, feita por ele.
56
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imaginar aquele que, tendo o acesso aos documentos, têm o condão de fazer com que a
verdade histórica apareça?
A divulgação de História deve se assemelhar mais a um trabalho colaborativo,
onde o historiador colabora com outros públicos a fim de tomarem o passado com
balizas de interpretação de suas realidades individuais e sociais capazes de favorecer a
outros públicos a olhar seu passado, dando sentido a ações no presente e a projeções de
futuro. E mesmo fornecendo balizas as quais, mesmo se próprias de um especialista
treinado, podem favorecer o olhar dos que se voltam para o passado e não têm formação
científica para tal.
A nosso ver, por hipótese, talvez a divulgação da história que se quer levada
para “amplas audiências” - como sendo este seu motivo principal – precisaria, acima de
tudo, uma audiência disponível para a História, ou para a palavra do historiador. Sem
desprezar o fato de que audiências não necessariamente estejam lá, esperando histórias,
mas que elas criam suas histórias próprias e se satisfazem com elas. Sem se precisar
exatamente quem sejam estas audiências, sem se localizar onde elas estão e podem ser
encontradas, pergunta-se se a histórica pública profissional brasileira estaria disposta a
considerar ir além, se estaria disposta a discutir não só sobre seu lugar de fala, mas o
que tem deteriorado a autoridade que, supostamente, garantiu a historiadores durante
muito tempo esta autoridade legitimada e reconhecida. Hoje, vivemos um estado da arte
em que a autoridade do historiador está questionada e deslegitimada por “fazedores de
história” que, muito embora façam usos do passado sem os critérios que garantem –
interna corporis – a autoridade historiadora, têm-na esvaziado dos historiadores,
ocupando seus lugares. É contra qualquer intenção dos historiadores profissionais de
menosprezarem, e de evitarem enfrentar, a corrosão de sua autoridade por não-
historiadores midiáticos que escrevem histórias muitas vezes metodologicamente
questionáveis, que motiva Jurandir Malerba firmar que é “imperiosa a necessidade de os
historiadores acadêmicos entrarem nesse debate, inclusive por cuidado para com o
ensino e as práticas didáticas”48.
48
MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História?: uma reflexão
sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre Public
History. Revista História da Historiografia, Ouro Preto, n.15, p. 27-50, agosto de 2014.
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história é parte integrante de suas vidas, mas sempre a história entendida como valor
individual, importante porque a inscrição da história de coletivos é realizada em suas
vidas individuais, e nelas se bastam. Arriscamo-nos a dizer, uma história despolitizada.
Mas tenhamos cuidado, porque é história despolitizada em termos.
Despolitizada em termos, uma vez que as políticas que são consideradas são as
políticas públicas e tudo aquilo que diz respeito ao ser individual, tomado como lócus
de emoção e passado nostálgico, ou resultado de condicionantes passados chegados pelo
tempo até o presente. A história na cultura pública histórica que os ingleses reconhecem
– similar ao que pecebem os americanos brancos em geral - é a de suas próprias vidas
individuais entendidas como “históricas” – sem interligações com grandes questões e
dramas coletivamente vividos e partilhados. Se perigoso – e em dissenso como uma
história que nos ensina nossa localização social como parte de um todo coletivo
relacional - é benfazejo que os ingleses não pensem assim, uma vez que, não tendo
ninguém o monopólio da história, fazem do passado o que querem: entretenimento,
diversão, lugares de passeio e lembranças, relíquias e antiguidades, curiosidades. Muito
parecido com a realidade americana. A história não tem uma função política pública,
mas apenas uma função social, e assim mesmo à medida que ajuda a soldar
solidariedades mínimas, entendidas estas como solidariedades de família, de lugares e
pequenas cidades, e mais ainda como solidariedade nacional. Stevens registra, da parte
do historiador francês, uma indignação com a perda de uma “autoridade de
reconhecimento”, fato que parece não abalar o historiador inglês, e mesmo o americano.
Enquanto na França e na Alemanha, a reação contra a “mitologização romântica” da
história – por exemplo com Michelet - tomou forma na criação de uma disciplina
histórica nacional, enquadrando a função da história a ser divulgada pelo professor
como depositária do nacionalismo, a mesma sorte não se passou na Inglaterra, “onde a
ideia nacional desenvolveu-se independentemente e grandemente antes do nacionalismo
romântico”50 com o que a história não se desenvolveu como um “secular sacerdócio”.
50
where the national ideal developed both independently and largely in advance of Romantic nationalism.
Ver: STEVENS, Mary. Política pública e o historiador público: os diferentes lugares de historiador na
vida pública na França e no Reino Unido. The Public Historian, v.32, n.3, 2010 p.120-135.
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51
In France, as in the Germanic world, the backlash against Romantic mythologization took the form of
the emergence of historiography as a distinct scholarly discipline. This can be contrasted with the
situation in Britain, where the national ideal developed both independently and largely in advance of
Romantic nationalism (…) in general, historians have not in Britain constituted a secular priesthood in
quite the same way. Ver: STEVENS, Mary. Política pública e o historiador público: os diferentes
lugares de historiador na vida pública na França e no Reino Unido. The Public Historian, v.32, n.3,
2010 p.120-135.
52
David Thelen e Roy Rosenweig publicaram pela primeira vez, em 1998, The presence of the past:
popular uses of History in American Life (A presença do passado: usos populares da história na vida
americana). Pesquisa feita por telefone com uma amostra nacional de 808 entrevistados e três amostras
separadas, de mais ou menos 200 cada, de afro-americanos, mexico-americanos e índio-americanos.
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A meu ver, é por meio de uma investigação profunda sobre o que fez o
esvaziamento da autoridade acadêmica do historiador, e sua deslegitimação para dizer o
passado,53 que deve começar um plano de divulgação da História. É preciso, não
sabemos como, reconquistar – se é que um dia tivemos – um lugar de fala, revesti-lo ao
ponto de as “amplas audiências”, antes mesmo de nos ouvirem, aceitarem que temos de
ser ouvidos. Que sabemos também o passado, a nossa maneira, mas que sabemos um
conhecimento que não é melhor nem pior que outros, mas diferente, produzido por
critérios que não são aqueles critérios e parâmetros com que muitos que escrevem a
história não profissionalmente o fazem. Antes do desafio, há um desafio antes: como
contar com a confiança das audiências? “O historiador não detém e nunca deterá o
monopólio desta fala [da história] (e isso é saudável)”54.
Entre disputas por narrativas históricas, há um outro aspecto a ponderar: como
sermos ouvidos, escutados, sem que nos ouçam com preconceitos que levam a fala do
historiador para o plano daquilo de que não se precisa, ou não deve ser escutado, porque
é um “doutrinador” que fala, item da agenda investigativa nos diversos trabalhos que
apontam o projeto da Escola Sem Partido como projeto que qualifica o professor de
História como “doutrinador”. Este é um desafio muito grande antes, a meu ver, de
discutirmos os termos com que falamos e de que lado estamos quando falamos. É
preciso, primeiro, firmar o respeito de sermos legitimamente ouvidos: “(...) a questão da
legitimidade dos trabalhos acadêmicos continua a ser importante (...) o que se coloca em
questão é certa postura arrogante que tratava a produção vinda da academia como a
única capaz de ter um certificado, um lastro”55. A questão da legitimidade parece estar
sendo enfrentada se tivermos em mente o conjunto já grande de textos elaborados sob a
rubrica genérica da “função do historiador intelectual público” que participa de debates
e da esfera pública com seus posicionamentos.
Fazendo assim, presumo, estaremos mais prontos para divulgar nosso
conhecimento, e ouvir as críticas que tiverem de ser perpetradas, uma vez que nosso
conhecimento será legitimado como um dos conhecimentos possíveis de serem
53
Aqui, neste ponto, Jurandir Malerba reclama do espaço perdido por historiadores profissionais para
historiadores leigos e sem formação metódica, a partir de uma bibliografia basicamente americana
sobre o assunto. Em suma, “qualquer um pode escrever história, o que não significa que toda história
tenha o mesmo valor e qualidade”, segundo o autor.
54
TEIXEIRA, Ana Paula T; CARVALHO, Bruno Leal P de. Introdução: os lugares do historiador-
divulgador. In: História Pública e divulgação da História. São Paulo (SP): Letra e Voz, 2019. p.9-24.
55
MAUAD, Ana M; ALMEIDA, Juniele R de.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.) História Pública no
Brasil. Sentidos e Itinerários. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2016. Resenha de: CORRÊA, Luiz Otávio. Os
vários significados da História Pública. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v.7, n.7, set.2016.
61
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d3.p.66.90
Abstract
This paper presents part of the discussions developed during our doctoral thesis, which analyzed the
dialogical relations present between the camps of the Campaign “Standing on the floor, you can also learn
to read” and the residents of the communities that received them. The educational campaign was
developed in Natal / RN, between 1961 and 1964, and ended due to the military coup that considered it
subversive. Its leaders were indicted and imprisoned, which created an imaginary of fear. Many of its
members, lay teachers, principals and students and even residents of the communities that received the
camps spent years in silence, avoiding to speak publicly about the initiative. Their memories were kept,
silenced, buried together with possible documents, and only shared in small groups, with family, or
friends. Over the years, these memories emerged, and in the democratic scenario they were able to surface
again. In this paper, our goal is to present the path we followed to resume some of these memories present
in the narratives of subjects who lived the Campaign's daily life and agreed to share with us, and some
had even done it with other researchers, the reminiscences and resignifications of those distant years . For
that, it was necessary to develop an attentive, sensitive listening, understanding Oral History in the
perspective of Alessandro Portelli, as “art of listening”, as a two-way street, in which we observe and are
observed. Several methodological procedures were also developed, based on different authors, but, above
all, based on the considerations of José Carlos Sebe Bom Meihy and Fabíola Holanda. Other procedures,
in turn, were designed by ourselves, adjusting them to the demands and particularities of our research, in
order to make public what needed to be silenced and remained underground for decades.
Keywords: Memories; silencing; Oral History; Education; Campaign “De pé no chão também se aprende
a ler”.
1
Doutora em Educação (PPGED/UFRN). Mestra em História (PPGH/UFRN). Professora do
Departamento de Práticas Educacionais, na área de Didática e Ensino de História da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (DPEC/UFRN), Campus Natal. E-mail: [email protected]
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Introdução
Para nós, muitos são os sentidos de viver, pensar e sentir o cotidiano imerso em
um contexto opressor. No decorrer de anos de pesquisas, ouvimos diversos tipos de
relatos, desde os que envolviam a busca pelo esquecimento, até aqueles mais
fervorosos, que viam no falar uma forma de resistir. Na pesquisa que originou nossa
tese de doutorado, buscamos entender as relações dialógicas presentes entre os
acampamentos da Campanha educacional intitulada “De pé no chão também se aprende
a ler” e a comunidade que a recebeu. Nenhum de nossos entrevistados foi preso, ou
indiciado, durante o Regime Militar, mesmo assim, precisaram calar, silenciar, pois
tinham vivido, e por vezes trabalhado, em uma iniciativa taxada de subversiva.
A Campanha “De pé no chão também se aprende a ler” foi uma iniciativa
educacional de combate ao analfabetismo, desenvolvida em Natal/RN, durante os anos
de 1961 e 1964. O objetivo central era levar educação formal às áreas mais pobres e
periféricas da cidade. Seu surgimento estava ligado à própria eleição do prefeito que a
promoveu, Djalma Maranhão, pois durante a campanha eleitoral, ele e sua equipe
criaram comitês de bairro para discutir os problemas da comunidade. Na ocasião, foram
mais de 200 comitês e em todos a pauta considerada mais urgente era a educação.
Tendo em vista tal demanda, o prefeito e seu secretário de educação, Moacyr de
Góes, buscaram sanar o problema, mesmo com o baixo orçamento da Prefeitura. Não
encontrando solução imediata, o problema foi levado de volta a um dos comitês, situado
no bairro das Rocas2, e um de seus moradores teria sugerido a construção de barracões
de palha, nos moldes das casas de pescadores que eles habitavam 3. Aquela solução, um
tanto incomum e inusitada, foi posta em prática em um projeto-piloto naquele mesmo
bairro. Considerado o sucesso da iniciativa, ela foi expandida por toda a periferia da
cidade.
No entanto, em 1964, no contexto do golpe militar e de disputas políticas locais,
a Campanha foi considerada subversiva, suas atividades encerradas e seus principais
líderes indiciados e presos. Alguns foram soltos após dias, ou meses, e outros, a
exemplo do prefeito, foram exilados. Não houve relatos de prisões das professoras
leigas, funcionários, ou demais pessoas ligadas à Campanha.
2 O bairro das Rocas fica na região da cidade de Natal, em uma área de praia e nos anos 1960 era habitado
majoritariamente por pescadores, pequenos comerciantes e artesãos.
3
GERMANO, José Willington. Lendo e aprendendo: a campanha De pé no chão. São Paulo: Cortez,
1982.
67
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4
RÓSA, Ivoneide. Entrevista concedida à autora. Natal, 2017.
5
POLLAK, Michel. Memória. esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3,
1989.
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repressão que este gerava. No entanto, ainda que todas as fontes escritas sobre a
Campanha “De pé no chão também se aprende a ler” tivessem sido preservadas intactas,
se faria necessário voltar às comunidades, pois nenhum daqueles registros escritos,
oficiais ou não, poderiam trazer as impressões particulares daqueles que a viveram
enquanto alunos, professoras, ou pessoas dos bairros. Nenhum daqueles registros seria
capaz de apresentar o olhar que as pessoas têm hoje sobre seu próprio passado. Não
seríamos capazes de captar as emoções, impressões, dúvidas, medos, anseios, nem
tampouco, a autoanálise que permeia as entrevistas gravadas décadas após o ocorrido.
Não nos interessam apenas os fatos, mas também, e sobretudo, como eles são narrados e
rememorados.
Voltar às comunidades que tiveram acampamentos e escolinhas da Campanha
além de permitir a publicização de uma memória, garante que o sujeito, em um ato
político, narre e se autoafirme durante essa narração, tendo clareza de que, “Justificar a
própria sobrevivência não é fácil [...] No entanto, para outros a única razão de viver é
não permitir que a testemunha morra”11. A narração é, pois, uma experiência com a
comunidade, que envolve a tentativa de narrar, muitas vezes, o inenarrável12.
Nesse sentido, não utilizamos os relatos orais, as narrativas de nossos
entrevistados enquanto testemunhos (no sentido estrito desta palavra, que remete a um
ato quase jurídico, comprobatório), visto que não são as visões dessas pessoas em 1960,
mas o que elas pensam hoje acerca daquele período e o quanto suas próprias vidas
interferem no que narram. Por esse motivo, evitamos o termo testemunho e priorizamos
a narrativa, o narrador, seguindo as percepções de Bosi, ao afirmar que: “Todas as
histórias contadas pelo narrador inscrevem-se dentro da sua história, a de seu
nascimento, vida e morte”13. Assim, nos debruçamos e ansiamos pelas perspectivas,
pelas impressões, pelo dito e pelo não dito, pela lembrança e pelo esquecimento, pela
verdade e pela construção mítica, pelas polissemias das lembranças e pela
multiplicidade de temporalidades, pela ficção e pelas versões.
Os fatos históricos são de suma importância e constantemente cruzamos o que
nos disseram os entrevistados, com o que estava registrado em livros de memória,
jornais e demais fontes. No entanto, as narrativas possibilitam que seja escrita uma
11
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J.
Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014. (Homo Sacer III).
12
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: BRECIANI, S; NAXARA, M. (Org.).
Memória e (re)sentimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
13
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
70
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história não apenas do acontecido, mas também das memórias, pois, como afirma
Portelli: “A história oral, no entanto, não diz respeito só ao evento. Diz respeito ao lugar
e ao significado do evento dentro da vida dos narradores [...]”. Esse campo de produção
historiográfica é constituído pela “[...] história dos eventos, história da memória e
história da interpretação dos eventos através da memória”14.
Nossos entrevistados são, então, narradores de suas lembranças. E estas nos
permitem aprender com eles sobre múltiplos tempos. Aprendemos sobre os
acontecimentos dos anos 1960, mas também sobre o hoje, sobre como percebem a vida
que tinham àquela época e o que sentem em relação às suas vidas na
contemporaneidade. A partir desse material, podemos compreender melhor os
mecanismos da memória, da narrativa, e sua utilização para a construção da História.
Partimos do pressuposto da entrevista seguindo as premissas de Portelli ao
considerar que esse momento com o entrevistado é notadamente organizado a partir de
relações dialógicas, pois enquanto os observamos, eles também o fazem. Eles nos
olham, observam e buscam saber o que queremos ouvir. A entrevista é, segundo
Portelli, uma via de mão dupla, “[...] uma troca de olhares”15, um momento de
aprendizado ímpar.
Através da entrevista, visamos alcançar aquelas memórias individuais, mas que
estão repletas de impressões, valores e símbolos da coletividade. Por isso, o conceito de
memória coletiva, de Halbwachs, é tão relevante, já que para ele:
14
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
15
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
16
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2017.
71
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mesclam a Campanha e seus acontecimentos às suas próprias vidas, à forma como liam
e declamavam poemas, à figura materna que trabalhava demais e mesmo assim não
conseguia suprir todas as necessidades da família, ou mesmo ao pai que mantinha casos
extraconjugais. Não há como retirar-se da narração. O eu, mesmo tratando de questões
coletivas, faz-se presente no que é narrado, por isso, adianta e recua no tempo, começa
falando do tema e divaga para outras áreas, constrói sua narrativa de modo consciente e
voluntário, mas também inconsciente e involuntário. São todas essas multiplicidades da
memória e da narrativa que enriquecem o trabalho com tais fontes.
Para Pollak, existem vários tipos de memórias coletivas e um deles seriam as
memórias subterrâneas, aquelas que se tenta sufocar por décadas, que vão de encontro à
memória coletiva nacional (também chamada memória enquadrada)17, mas que existem
no seio de grupos menores, marginalizados e para os quais o direito à voz é negado 18.
Passados períodos repressivos, essas memórias subterrâneas (às vezes compostas por
“lembranças traumatizantes”) emergem e passam a fazer contraponto à versão oficial,
embora nem todos os que são compulsoriamente calados consigam dizê-las, ou
transformá-las em narrativas. Isso se deve à toda dor e sofrimento que elas podem
representar, em virtude do medo que as circunda, ou por diversos outros motivos
inerentes à mente e à alma humana, como enfatiza Agamben, ao discutir as memórias de
sobreviventes dos campos de concentração nazistas. Para ele, nem todos conseguem
narrar a dor e a agonia dos campos, pois guardam, muitas vezes, a culpa de ter
sobrevivido e se sentem impedidos de narrar o que não viveram, a câmara de gás pela
qual não passaram, mas viram tantos serem para lá encaminhados19.
Em nosso caso, trabalhamos com pessoas que viveram uma experiência
educativa em comum. A princípio, observando ligeiramente, tais memórias poderiam
ser consideradas coletivas, mas nada teriam de traumatizantes, ou subterrâneas. No
entanto, o fato de a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler” ter sido
considerada um movimento subversivo, fez com que falar sobre ela fosse algo proibido,
ou visto como perigoso. Isso foi percebido, por exemplo, quando um de nossos
entrevistados questionou, ao final da gravação, se havia algum perigo em falar sobre
17
Portelli (2016) as nomeia memórias-monumento, pois seriam capazes de expor apenas o que é
interessante para manter, ou construir, um sentimento de identidade, de pertencimento. Ver: PORTELLI,
Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
18
POLLAK, Michel. Memória. esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3,
1989.
19
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J.
Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014. (Homo Sacer III).
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aquilo. Em seguida, o próprio entrevistado frisou que achava que não havia problema,
pois sabia que estava em uma democracia, mas, mesmo assim, ele temia. Isso nos
demonstra o que é o emudecimento proposital das vozes de uma comunidade,
demonstra o quanto esse silêncio pode ser imposto, o que pode levar a um esquecimento
proposital.
Esse longo período de silêncio, a descrença com o presente, e a vivência de
outras experiências políticas e educacionais, fez com que alguns entrevistados pouco
lembrassem daquele contexto da década de 1960, ou mesmo que misturassem diferentes
temporalidades e sujeitos, por vezes, confundindo-os. Sendo assim, analisamos as
informações coletadas, mas também refletimos sobre os conflitos e tensões presentes
entre elas e até mesmo suas construções fantasiosas, que marcaram algumas falas. Isso,
de modo algum, descredibiliza a fonte. Pelo contrário, nos instiga à sua análise, pois
concordamos com Portelli quando afirma que: “[...] as histórias que não são acuradas
factualmente, podem ser lugares de imaginação, desenho e sonho. Eles são tão
importantes quanto os fatos puros e simples”20. Nesses espaços conflituosos e mesmo de
confusão, há a possibilidade de perceber o não dito, o que se busca esconder, ou o que
simplesmente não se compreende bem.
Por vezes, notamos que nossos entrevistados desejavam falar e entender o que
queríamos e, julgando não ter alcançado isso, eram comuns falas do tipo: “Não sei se
cheguei onde você queria”, ou: “Desculpe, é tudo que eu lembro”. E isso ocorria mesmo
que nós não tivéssemos dito o que buscávamos que eles falassem. A pesquisa era
explicada, o tema a que se referia também, mas o que eles falariam não era algo
direcionado por nós. Tais impressões sobre a preocupação em falar o que se esperava, se
constituíram para nós em pistas importantes para compreender suas memórias, tanto
quanto os dados que eles nos trouxeram. Pois nosso olhar está voltado aos fatos, mas
também às interpretações lançadas sobre eles, já que:
Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os
mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas
ideias, nossos juízos de realidade e de valor21.
Cabe aqui destacar que, silenciar, nem sempre, é o mesmo que esquecer. Para
Paul Ricoeur, a memória depende do esquecimento. Não se pode lembrar tudo, nem
narrar tudo. Nesse sentido, a memória e sua narrativa são, primordialmente, seleção de
20
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
21
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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fatos que se tem o interesse em expor. Evidente que esses fatos podem ser
intencionalmente omitidos ou alterados, sobretudo quando se refere à memória de um
povo, ou nação. Nessa ocasião, teríamos uma memória manipulada, com o objetivo
claro de formar um ponto de vista geral, único e indiscutível, interferindo mesmo na
memória coletiva de um povo.
Mas, mesmo do ponto de vista individual, o esquecimento compõe a memória,
pois, segundo Ricoeur, “Narrar um drama é esquecer outro”22. Embora o esquecimento
pareça pouco relevante em uma visão superficial, ele não pode ser subestimado, visto
que aquilo que nosso entrevistado não lembra e sua preocupação em não esquecer já
sinalizam para como ele olha o passado, e como ele reconstrói o vivido. Ou ainda, o
entrevistado pode não mais se identificar com o seu eu do passado, ou com algumas
ações e atitudes tomadas em outras épocas, daí porque não as enfatiza. Lembrar e
esquecer fazem parte da memória e, a depender de cada momento da vida do indivíduo,
um fato pode ser enfatizado e outro reduzido. O que se lembra hoje pode não ter a
mesma ênfase passados dez ou vinte anos. Um exemplo disso foi uma entrevista que
realizamos em 2017 e que já havia sido concedida à outra pesquisadora (Maria Elizete
G. Carvalho) em 2000. Na entrevista que gravamos, a entrevistada rememora os
mesmos fatos narrados em 2000, no entanto, a ênfase que deu a alguns acontecimentos
foi bem maior na primeira entrevista que na segunda, como a proibição de trabalhar à
noite. Em contrapartida, em 2017, a entrevistada se referiu de modo muito mais
frequente ao quanto se orgulhava de ser professora, talvez em uma tentativa de se
autoafirmar cada vez mais, sobretudo agora que estava aposentada de suas funções
laborais em todos os seus vínculos. Outros fatos não foram detalhados, como a
participação política de seu pai e as ressalvas que este lhe fez quando do golpe militar
em 1964.
O cruzamento das referidas narrativas nos fez perceber as modificações pelas
quais a memória passou. Os fatos narrados podem até ser os mesmos, mas a forma
como foram ditos, ou não ditos, se alterou com o tempo e com as próprias mudanças
que o sujeito viveu. Nas entrevistas de História Oral, o ontem, o hoje e as expectativas
do amanhã dialogam a todo momento e constroem narrativas específicas, datadas.
Cada narrativa traz as marcas da coletividade e as singularidades do indivíduo.
Por isso mesmo, a ligação, o encontro, a conversa informal e o relato gravado são
22
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François et al.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
74
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únicos e irrepetíveis. Cada sujeito aborda a mesma época a partir de símbolos comuns,
mas com perspectivas distintas. Cada um apresenta desenvoltura própria, reage de modo
distinto às mesmas perguntas, elabora o discurso de modo particular e tenta levar a
entrevista para a zona em que sente mais confortável. Isso demonstra que as memórias
podem ser construídas, reconstruídas ou mesmo desfeitas ao longo do tempo. Nossa
tentativa é sempre de interferir minimamente nesses momentos, mas não há como entrar
nas casas e na vida dessas pessoas sem causar qualquer interferência. Isso não invalida
nossas fontes, mas é preciso estar explícito que há nossa interferência nessa construção.
É por isso que, para Portelli, entrevista é cocriada, no sentido de que o protagonismo é
do entrevistado, mas ele não está sozinho naquele momento. Ele está mediado pela
câmera, pelo roteiro e pelo entrevistador.
Daí porque a prática da coleta de entrevistas foi de suma importância. Também
utilizamos materiais produzidos por outros pesquisadores, como, por exemplo, as
entrevistas coletadas por Maria Elizete Guimarães Carvalho em sua tese sobre as
memórias da Campanha, ou as de Moacyr de Góes concedidas à Revista Educação em
Questão e ao Centro de Direitos Humanos do RN (DH-net), ou ainda as que foram
gravadas e disponibilizadas pelo Núcleo de História e Memória da EJA (NUHMEJA),
ou que se encontram guardadas em seu acervo. Mas a experiência da coleta, o contato
com o entrevistado e essa colaboração é o ponto alto do trabalho na busca pela
compreensão das memórias que permeiam as narrativas sobre a Campanha “De pé no
chão também se aprende a ler”.
Refazendo a trajetória de coleta das entrevistas
Para construirmos nossa pesquisa partimos das narrativas de seis sujeitos, duas
professoras leigas da Campanha, três ex-alunos/as e um morador e cantor do bairro das
Rocas, todos residentes em Natal/RN, ou em sua região metropolitana. Cabe salientar,
que todos os envolvidos na pesquisa assinaram cartas de autorização e permitiram ser
identificados, bem como ter suas falas transcritas e publicadas.
As entrevistas coletadas por nós abrangeram dois bairros, Rocas e Quintas. O
primeiro devido à importância e pioneirismo que teve para a Campanha, já que a ideia
dos acampamentos surgiu ali, bem como as primeiras experiências. O segundo, criado
no ano seguinte, possuía além do acampamento, outros serviços da Prefeitura que
poderiam estar vinculados às ações do acampamento, tais como: a biblioteca de bairro e
a praça de esportes. Além disso, ambos espaços foram substituídos, após o
75
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23
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo/SP,
n. 10, dez. 1993.
24
Os entrevistados serão remetidos pelos nomes que costumam ser chamados e neles se reconhecem. Por
isso, iremos nos referir sempre à Tia Neném e Dedé, usando seus sobrenomes apenas nas citações e nas
referências.
76
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25
Usaremos o nome Neide, ao invés de Ivoneide, a pedido da própria entrevistada, que é reconhecida pela
comunidade apenas como professora Neide Rósa.
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seus relatos em uma entrevista coletada por Maria Elizete Guimarães Carvalho (2000) e,
de pronto, sentimos a necessidade de encontrá-la, tirar dúvidas e poder fazer novas
questões. Tentamos localizar seu contato na Escola Municipal Ferreira Itajubá26, mas
não obtivemos sucesso. Então, buscamos o contato de D. Neide Rósa em um site de
busca na internet e localizamos que em uma lista telefônica antiga havia seu número de
telefone fixo. Tentamos contato através daquele número e, para nossa surpresa, ela
ainda o possuía. Por telefone mesmo, explicamos quem éramos e o que queríamos com
aquele contato. Então, marcamos um encontro, que não foi viável devido ao motivo já
relatado acima.
Dias depois, saindo da casa de Dedé (que fica há duas ruas), passamos por lá e
ela estava em casa. Nos atendeu muito contente, deixamos nosso contato, mas ela já
quis logo gravar a entrevista, como estávamos com todo material e roteiro prontos,
decidimos gravar.
Dona Neide Rósa tem 70 anos, é professora aposentada e contadora de histórias,
vive no bairro das Quintas e começou a trabalhar na Campanha “De pé no chão também
se aprende a ler” bem cedo, talvez sendo uma das mais jovens. Iniciou suas atividades
como professora com apenas 12 anos de idade e nela permaneceu até a aposentadoria.
Trabalhou em vários lugares, devido possuir mais de um vínculo empregatício, mas
esteve na mesma escola municipal durante toda a vida, começando como Acampamento
de Pé no chão e indo até Escola Municipal Ferreira Itajubá. Ela inicia sua narrativa
assim:
26
Local onde ela trabalhou durante toda a vida, desde a época da Campanha “De pé no chão também se
aprende a ler”, quando ainda era um acampamento.
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já que o acampamento deu lugar à Escola Municipal Ferreira Itajubá. Ficava clara ali
uma memória voluntária. A narradora tinha consciência de seu objetivo ao nos conceder
a entrevista e parecia já ter seu próprio roteiro, não sendo necessárias muitas
intervenções.
D. Neide Rósa falou de seu amor pela docência e de como é impossível separar a
história daquela escola, da história de sua própria vida. Ela demonstrou que a docência
deu significado à sua existência como um todo. Daí porque hoje, mesmo aposentada,
conta histórias em projetos e em instituições públicas, ou mesmo religiosas, porque para
ela o narrar e o ensinar dão sentido à vida.
Semanas após essa experiência, ficamos buscando contatos no bairro das Rocas
de possíveis participantes da Campanha, ou mesmo de pessoas que viviam nas
proximidades. Falamos com alguns colegas que viveram no bairro, já que pouco
conhecíamos da região, mas, inicialmente, não obtivemos sucesso. No entanto, em uma
manhã, lendo sobre a Campanha, lembramos que uma vez uma aluna nos falara, durante
uma aula da disciplina de História da Educação, que morava nas Rocas e lá vivia uma
senhora que precisava ainda ser ouvida, pois lembrava de tudo sobre a Campanha “De
pé no chão também se aprende a ler” naquele bairro. Fomos tomados por grande
entusiasmo e buscamos falar com a aluna. Sem dispor mais de seu telefone, procuramos
encontrá-la via redes sociais. Não conseguindo, falamos com seus colegas de turma e
assim localizamos seu número de telefone. Imediatamente, fizemos contato com a
aluna, Ana Karla27, que se mostrou solícita e disse que iria mediar nosso encontro com
aquela professora da Campanha.
Após algumas ligações, agendamos a data do encontro e Ana Karla nos levou à
casa de D. Nair Almeida de Oliveira, nos apresentou à ela e às suas filhas e assim
pudemos iniciar a conversa. D. Nair tem 82 anos, é professora aposentada do município
de Natal e reside desde a década de 1950 no bairro das Rocas. Ela se apresentou para
nós do seguinte modo: “Meu nome é Nair Almeida de Oliveira. Minha data de
nascimento também? Faço questão não. 19 de outubro de 1935. Sou de Ceará-Mirim.
Sou professora. Bibliotecária e professora”.
As filhas de D. Nair relataram como aquele nosso contato mexeu com ela, que
teria passado a semana inteira lendo sobre a Campanha, revirando antigos livros,
revistas e fazendo anotações. Passados alguns minutos, e com consentimento de todas,
27
Ana Karla foi nossa aluna durante o ano de 2014. Hoje, é pedagoga e continua residindo e trabalhando
no bairro das Rocas.
79
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28
POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, N. 10, p.
200-212, 1992. Disponível em:
<http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20capraro%202.pdf>. Acesso em:
6 mar. 2017.
80
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no chão também se aprender a ler”. Cotidiano esse não restrito apenas aos
acampamentos, pois D. Nair atuou também como professorinha (professora leiga) de
uma escolinha vinculada à Campanha. Ela também foi bibliotecária e trabalhou na
primeira biblioteca popular da Campanha, intitulada Biblioteca Monteiro Lobato.
Não imaginávamos que aquele momento fosse tão rico de relatos, fatos,
informações e sentimentos. Se inicialmente D. Nair parecia um tanto resguardada, em
pouco tempo ela passou a se sentir bastante à vontade, rindo o tempo todo, permeando
sua fala por intensa alegria. Após a gravação, ainda permanecemos ali por um longo
tempo. D. Nair nos mostrou cada uma de suas relíquias29. Eram livros, revistas, matérias
sobre a Campanha ou sobre Djalma Maranhão, além de fotos que ela recebeu de um
projeto da UFRN organizado pelo NUHMEJA, em comemoração aos 50 anos da
Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Suas filhas nos mostraram
imagens do desfile da escola de samba Balanço do Morro, das Rocas (da qual elas
fazem parte), organizado em 2015, que homenageava Djalma Maranhão e a Campanha
“De pé no chão”, com o samba enredo: “Vou sambar de pé no chão, no centenário de
Djalma Maranhão”.
Ambas as filhas demonstraram apego pelas memórias da mãe e revelaram o
anseio de que suas palavras fossem publicadas na íntegra, o que foi feito em nossa tese.
Todas as entrevistas estão disponíveis no volume 2 do texto final, sendo possível
acessá-lo através do repositório da UFRN. As filhas de D. Nair também nos concederam
as imagens do desfile, que são material importante para compreender a construção de
uma memória coletiva no bairro das Rocas, a partir das representações que seus
moradores fazem acerca da Campanha.
Com a câmera desligada, pudemos tecer longas conversas e sentimos o
acolhimento daquela família, parecíamos nos conhecer há muito tempo. Isso se repetiu
nos dois outros encontros que realizamos com D. Nair, para que ela recebesse os
registros audiovisuais e escritos e pudesse autorizar a publicação de sua entrevista, bem
como a identificação de seu nome. Este procedimento se repetiu também com os demais
entrevistados.
No dia seguinte, retornamos à casa de tia Neném (Edilza Medeiros da Silveira),
quase um mês após a entrevista com Dedé. Após nosso segundo contato, na ocasião da
entrega do material e da carta de autorização de seu esposo, ela aceitou marcarmos uma
29
Utilizando o conceito de relíquias abordado por Delgado e considerando esses materiais enquanto
objetos que auxiliam o entrevistado a rememorar.
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entrevista, embora afirmando não saber muito sobre o período, pois era muito pequena à
época. Anteriormente, já tínhamos conversado com ela sobre o acampamento e ela nos
narrou bastante sobre as brincadeiras, cantigas de roda e o cotidiano da vida no
acampamento. Tia Neném tem 66 anos, é dona de casa, reside no bairro das Quintas
desde criança e foi aluna do Acampamento naquele bairro.
Chegado o dia e horário da entrevista, nos encontramos e ela se surpreendeu
quando comecei a montar o material. Perguntei se havia algum problema em gravar sua
imagem, e se preferisse podíamos nos restringir ao áudio, mas ela manteve a gravação
audiovisual, pedindo apenas um pouco de tempo para se preparar. Notamos ali, algo que
está presente na maioria das entrevistas, a preocupação em como nossa imagem fica
registrada para a posteridade, como aparecemos em público e o peso que isso tem sobre
nossas entrevistas.
Logo após, iniciamos nosso diálogo, que não fora o mesmo de outro dia. A
câmera, e talvez a formalidade que, implicitamente, o momento trazia, não a deixou tão
confortável. Mesmo assim, ela nos trouxe suas memórias, organizou sua narrativa e
sempre esteve preocupada em lembrar pouco daquela época. Tia Neném e sua fala nos
impulsionaram a pensar sobre o esquecimento e sua importância para a memória. É
impossível lembrar tudo, segundo Ricoeur. E, mais ainda, nossa narrativa é seletiva.
Falamos sobre o que julgamos importante. Mas que importância teriam as memórias de
uma menina sobre uma época em que as crianças mal podiam falar? Pensamos que este
pode ter sido um de seus questionamentos. Tia Neném é uma mulher com características
fortes, não se envergonha de falar em público, mas foi educada de forma rígida, em um
ambiente onde as crianças tinham pouca liberdade, sobretudo as meninas.
Mas nossa entrevista seguiu seu curso e nela pudemos ratificar algumas visões,
refutar outras e pensar cada vez mais sobre o lembrar e o esquecer. Seu relato começa
assim:
Embora curta, com apenas 11 minutos de duração, a narrativa de tia Neném foi
importante para este trabalho. Ela ressaltou alguns aspectos da cultura escolar da
Campanha, como as práticas recreativas e o hábito de receber materiais escolares
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Desde o início da entrevista, Sr. Towar ficou muito à vontade, relatou sua vida e
sua participação cantando canções durante a Campanha eleitoral de Djalma Maranhão,
além de suas impressões sobre aquele período, enquanto morador das Rocas. Em
determinado momento, ele sinalizou que ia falar algo, mas diante da câmera era
complicado, sugerimos desligar e assim o fizemos. Feito o relato (quase em tom
confessional), retornamos à gravação autorizada. Houve mais uma pausa, pois uma
parente sua o chamou ao portão, mas depois seguimos até o final, com cerca de 1h de
entrevista. Durante esse trajeto, Sr. Towar cantou várias canções, levantou-se, dançou.
Naquele momento foi preciso erguer rapidamente a câmera. Não estávamos preparados
para tal performance. Se houvesse outra pessoa nos auxiliando e outra câmera, teríamos
registros ainda melhores. Isso nos serviu de aprendizado e nos fez perceber a
importância de garantir um bom material e equipe de suporte para gravar as entrevistas
em história oral. Mas não sendo isto possível naquela ocasião, precisamos improvisar, a
fim de não perder o momento.
30Aparentemente seguindo a regra dos 3/3, ele ocupou aproximadamente a interseção dos pontos
imaginários correspondentes ao primeiro terço da imagem, o que permite um bom enquadramento.
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Ao final da entrevista, Sr. Towar pediu para encerrar cantando o clássico Adeste
Fidelis31, o que tornou ainda mais belo o encontro e serviu como um grand finale, o
qual ele encerra apenas agradecendo e com ares de reverência. Foi um encontro tomado
por muita emoção.
No dia anterior ao encontro com Towar, tínhamos ido ouvir uma outra conhecida
nossa, D. Luzimar. Ex-aluna do Acampamento das Quintas, mãe de uma amiga nossa,
prestou serviços em nossa residência como diarista há alguns anos. Moradora do bairro
das Quintas durante longo tempo (e tendo a mãe ainda residindo naquele bairro), D.
Luzimar sempre nos narrava suas memórias sobre o bairro, o prefeito Djalma Maranhão
e sua escola, o Acampamento das Quintas. Lembrando de tais relatos, entramos em
contato com ela para saber se nos permitiria gravar um pouco daquilo que ela sempre
rememorava. Ela aceitou e nos recebeu.
D. Luzimar da Silva Alves tem 63 anos, é cuidadora, reside em Parnamirim
(região metropolitana de Natal-RN), mas nasceu e se criou no bairro das Quintas, onde
vive parte de sua família. Ela se apresentou do seguinte modo:
31
Canção em latim, de autor desconhecido, muito entoada por corais, sobretudo em igrejas e durante os
festejos natalinos. Novamente, o artista demonstra a preocupação em como seria lembrado pela
posteridade. De um lado o livro de memórias, ao lado um homem que cantava em latim, ou seja, alguém,
que apesar das poucas posses, também possuía a cultura erudita.
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épocas, angústias, sofrimentos e, sobretudo, nostalgia. Sua narrativa foi permeada por
dores, alegrias, mas também aromas e sabores. O gosto pela culinária e a fome sentida
durante a infância estavam presentes ali, principalmente quando ela descrevia o
cotidiano do acampamento a partir dos cheiros que vinham da cozinha que ficava
próxima ao galpão aberto onde estudava. Ela nos descrevia o aroma do alho assando, da
soja sendo temperada, do coentro do refogado, de tudo aquilo que ela, não raro, só tinha
acesso na escola. Foi uma memória afetiva e olfativa também. E isso nos marcou tanto
que ao recordamos daquele dia esses cheiros são novamente ativados em nosso pensar.
D. Luzimar também mesclava acontecimentos e sujeitos, por vezes de
temporalidades distintas, e os colocava juntos, do mesmo lado, atendendo assim às
expectativas que ela tinha sobre essas pessoas. Um exemplo da mescla de
acontecimentos pode ser visto quando ela aborda a prisão de Djalma Maranhão e diz
que Aluízio Alves (então governador do Rio Grande do Norte) também fora preso na
ocasião. D. Luzimar narrou repetidas vezes sua admiração por aqueles dois homens que
saíram em campanha juntos em 1960. No entanto, eles haviam rompido desde 1962, e
em 1964 Aluízio Alves foi um dos apoiadores do golpe militar, só vindo a ser cassado
anos à frente. Essa mistura de tempos e sujeitos não descredibiliza sua narrativa, do
contrário, nos faz compreender melhor a construção de um imaginário messiânico,
construído por uma população que vivia sempre à margem e à espera de uma redenção.
O cuidado que tivemos foi o de cruzar as informações, assim como nos demais relatos, e
ressalvar algumas que não puderam ser confirmadas ou refutadas.
Essa mistura e mesmo troca de nomes é comum aos relatos orais,
principalmente, quando nos remetemos às memórias que precisaram ser silenciadas por
muitas décadas, que estiveram submersas sob o peso de regimes de exceção. Situação
similar foi apresentada pela pesquisadora Maria Elizete Guimarães Carvalho, ao
trabalhar com as memórias das 40h de Angicos32. Segundo a autora, aqueles ex-alunos
confundiam Paulo Freire com João Goulart e mesclavam as impressões de hoje com
lembranças de 1963. Apesar disso, ela utilizou tais memórias e as analisou à luz dessa
realidade de décadas de silenciamento, quando falar era perigoso, à semelhança do que
identificamos aqui.
32
CARVALHO, Maria Elizete Guimarães. Quando a leitura do mundo precede a leitura da palavra. In:
PINHEIRO; CURY (Org.) Histórias da educação da Paraíba: rememorar e comemorar. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2012.
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Considerações Finais
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em temas sensíveis, remexer esse passado que provoca medo exige de nós cautela e
disposição para ouvir, pois falar é sempre uma via de mão dupla, mas “quando falar é
perigoso” essa via se torna ainda mais estreita.
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Referências Bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.
GÓES, Moacyr (Org.). 2 Livros de Djalma Maranhão no exílio. Natal: Artprint, 2000.
MEIHY, José C. S. B.; HOLANDA, Fabíola. História oral, como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2017.
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz,
2016.
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THOMPSON, Paul. A voz do passado, história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
Entrevistas coletadas
Fontes consultadas
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d4.p.91.103
Resumo
O presente artigo é resultado de uma iniciativa coletiva das pesquisadoras do Grupo de
Pesquisa em Gênero e História do Departamento de História da USP. A partir de ações
que buscavam ir além das discussões teóricas, o grupo iniciou um processo de
aproximação de mulheres militantes da luta por moradia em São Paulo. A partir deste
contato, foram realizadas entrevistas de história oral de vida, sendo que a primeira delas
foi o mote para a reflexão aqui apresentada. Busca-se valorizar, por meio da narrativa de
uma liderança do movimento, a experiência compartilhada pelas mulheres que lutam por
melhores condições de vida nas periferias das grandes cidades.
Palavras-chave: Mulheres; Moradia; História Oral.
Abstract
This article is the result of a collective initiative by researchers from the Research Group
on Gender and History of the USP Department of History. Based on actions that sought
to go beyond theoretical discussions, the group started a process of bringing women
activists closer to the struggle for housing in São Paulo. Based on this contact, oral life
history interviews were conducted, the first of which was the motto for the reflection
presented here. It seeks to enhance, through the narrative of a leadership of the movement,
the experience shared by women who struggle for better living conditions on the outskirts
of large cities.
1
Possui Graduação (2005), Mestrado (2011) e Doutorado (2017) em História pela USP. Atualmente é
coordenadora do Núcleo de Estudos de História Oral (NEHO-USP) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa
em Gênero e História da USP (GRUPEG-HIST). E-mail: [email protected]
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Fazenda velha
Cumieira arriô...
Levanta povo
Cativeiro acabou...
Muitas são as lutas empreendidas por mulheres ao longo da História. E por mais
que falemos desde o agora, há inúmeros pontos de convergência que nos levam à
indagação: por que lutam as mulheres?
De maneira muito simplificada, poderíamos dizer que pelo corpo e pela casa: seu
corpo e os corpos dos seus; a sua casa, que geralmente é também a dos seus.
É quase sempre uma luta que começa no individual, mas que resvala no coletivo.
As manifestações sobre a carestia de gêneros alimentícios, que não somente lhes proviam,
mas aos filhos, sobretudo, são exemplos de lutas lideradas por mulheres em diferentes
tempos e espaços. Segundo Michelle Perrot “Os motins por alimentos, grande forma de
motim popular ainda no século XIX, são quase sempre desencadeados e animados pelas
mulheres.3”
Os dilemas do corpo, da sexualidade e da reprodução, por sua vez, interferem
diretamente em anseios que vão além do individual. Mais uma vez, temos as mulheres
em linha de frente para lutar por direitos que lhes permitam vivenciar a liberdade sexual,
a maternidade saudável e relações de gênero menos desiguais.
A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas
estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Nas
relações entre homens e mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas
pode ser construída, e o é, com frequência4.
2
Trecho de cantiga entoada pela narradora durante a entrevista.
3
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2001.
4
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu
Abramo, 2015.
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que as mulheres das classes populares sempre estiveram “na rua” exercendo diversos
tipos de trabalhos, a dicotomia público e privado perpassa outras conjunturas.
A luta por moradia, nesse sentido, se refere à busca de um espaço privado,
teoricamente de domínio feminino. Mas o que dizer das mulheres que não o possuem?
Querem ter “um teto todo seu” ou apenas uma casa para abrigar os seus? Em contexto
marcado pela disputa por espaços e acolhimento, a casa pode ser mais que um cômodo,
um quarto... Pode ser o próprio corpo!
5
O GRUPEGH (Grupo de Pesquisa em Gênero e História) foi criado em 2015 como desdobramento da
oferta da disciplina “História das Relações de Gênero” no Departamento de História da USP. Coordenado
pela Profa. Dra. Stella Maris Franco e pela Pesquisadora Doutora Júlia Glaciela Oliveira, realiza reuniões
mensais voltadas para a discussão teórica e atividades complementares dentro e fora da Academia.
6
Entrevista realizada em 16 de junho de 2018, na ocupação Copa do Povo, em Itaquera – SP.
7
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Guia Prático de História Oral. São
Paulo: Contexto, 2011.
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Essas são ocasiões que dão os contornos de um cotidiano repleto de atividades que
vão além dos interesses individuais e ocupam os espaços da casa para refletir e agir em
função de demandas coletivas. Os filhos pequenos muitas vezes acabam fazendo parte
desse cenário, o que os conduz, no futuro, a comportamentos equivalentes, como foi o
caso de Luciana.
Lembro que tinha muita enchente! Minha mãe me colocava encima da mesa,
no lugar mais alto possível! As reuniões aconteciam no nosso barraco e não sei
exatamente do que falavam, mas possivelmente era contra a carestia, em favor
da redução dos preços dos alimentos, que naquela época era tudo muito caro!
Era difícil ter acesso às coisas. Meus pais participavam disso e eu ia junto. Até
que fomos para outro lugar, num projeto de moradia do BNH, que chamava
embrião, tinha cozinha e banheiro. Passamos o natal lá na Cidade Tiradentes,
que ainda nem esse nome tinha, só passou a chamar assim quando ampliou
tudo. Dizem que a Cidade Tiradentes tem 34 anos, mas tem mais se contar do
bairro onde fomos depositados.
Meus pais morreram, mas a casa deles continua lá até hoje com as outras
gerações. Dos sete filhos deles, eu e mais um seguimos na luta por moradia, na
verdade nunca paramos, sempre estivemos no movimento por moradia de
alguma forma. Nossa casa, que tinha só um cômodo, hoje tem onze! A família
foi se reproduzindo e a casa foi junto... Hoje mora lá uma irmã que já tem filhos
8
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2001.
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e que a filha está grávida de uma menina. Essa é a realidade de muitas famílias.
Não arrisco uma porcentagem, mas na Cidade Tiradentes é muito comum
morarem várias gerações no mesmo espaço. No nosso caso foi um pouco
diferente por conta da educação e da militância por outras pessoas.
Minha mãe tentou fazer diferente e casou com um homem pela cor. Ela achou
que meu pai tinha a cor igual e, na cabeça dela, isso não a faria sofrer tanto.
Mas foi totalmente o oposto! Meu pai fez tudo que um machista faz! Não
deixava minha mãe tomar anticoncepcional porque mulher que faz isso é quem
trai o marido. Ele era alcoólatra e teve caso com outras mulheres. A gente só
soube quando ele faleceu em 2015. Ele teve filho com outra mulher, mas minha
mãe nem sabia. Ela não tinha amigas... Nós éramos suas amigas... Na época eu
me aborrecia quando ela queria brigar, preferia até apanhar, mas hoje entendo
que ela só queria conversar. Ela não tinha ninguém e pegava a gente de
“orelhada” para falar o dia inteiro sobre as coisas...
Embora cada família tenha sua história, é possível compreender que este caso
revela muitas semelhanças com a de tantas mulheres! Relacionamentos desiguais,
abusivos, marcados pelo alcoolismo e por frustrações. Nem sempre, contudo, quem os
protagoniza assim os interpreta.
9
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu
Abramo, 2015.
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Não é fácil conviver com aquilo que não se concorda. Os espaços pequenos e
conflituosos e a vida que urge fizeram Luciana sair daquela casa da família e buscar uma
casa sua.
Com 16 anos comecei a namorar o pai das minhas filhas, com quem me casei.
Mas era um relacionamento abusivo, com traição e não deu certo. Tive que
voltar para a casa da mãe, agora com as duas filhas. Foi então que entrei para
o movimento de moradia no Barro Branco, onde moro há 18 anos! É muito
gratificante dizer que construí a minha casa! Eu e outras mulheres! Os homens
se vangloriavam de serem os técnicos que sabiam de tudo e a gente ficava com
o trabalho de encher os carrinhos, buscar água no poço, pegar ferramenta e eu
não achava isso certo. Foi por isso que briguei mesmo e falei que queria
aprender!
Tudo que eu poderia fazer seria dar-lhes minha opinião sob um ponto de vista
mais singelo: uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço
próprio, se quiser escrever ficção10.
10
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
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não tinha nada que comer, em vez de xingar, eu escrevia”. E é justamente sobre a vida
precária de catadora e moradora de favela que escrevia em seu diário.
Luciana, por sua vez, buscava tijolo a tijolo, a cada espaço edificado um
significado. E assim como antes precisou de um lugar, abriu as portas de sua casa simples,
imperfeita e incompleta para quem mais precisasse de abrigo.
Mas assim era minha casa, tipo aquela casa “muito engraçada, que não tinha
teto, não tinha nada...” Lá era muito apertado para tanta gente, que acabava
tirando a privacidade e a necessidade uns dos outros. De qualquer jeito, o
mutirão deixou muito a desejar porque sei que é errado cobrarem dinheiro da
gente e mais ainda eu ter que sair com o coordenador para não ser cortada, algo
que nem poderia comentar. Era obrigada a transar com ele e ainda ir nas
reuniões de partido me apresentando como “dama de companhia”, sei lá como
se fala. Eu tinha nojo daquilo tudo e mesmo hoje, estando no MTST, não gosto
de relação com nenhum partido político. Gosto de política, isso sim, mas de
partido, nenhum!
Mas ter espaço para construir não era algo simples e o mutirão, que logo se
conformaria em movimento organizado demandava atitudes diferenciadas. Os homens,
sempre à frente, decidiam muitas coisas, dentre as quais quem teria os melhores espaços.
Ser privilegiada naquele contexto, por sua vez, representou se submeter a situações que
não queria. A violação que, para quem está de fora é nítida, foi somente aos poucos sendo
percebida por Luciana que, sentiu na pele e no dia a dia o que precisava fazer e deixar de
ser para ascender. Ser submetida às condições de um líder de mutirão ou movimento foi
momento para compor o ser que viria a existir.
Mas quem nasceu para protagonizar não está na vida por acaso. Luciana buscou
entre desmandos e violações a força para se desorganizar. E se reorganizar. Para além do
ímpeto pessoal, sua experiência de vida familiar e pessoal foi ingrediente para elaborar
novas formas de atuação diante do movimento que se fez em sua frente.
Ainda sem saber ou mensurar o potencial de um movimento organizado, partiu
para o que, de individual, lhe gritava o coletivo. Ali sim havia a chance de ampliar o
desejo íntimo pela casa, a casa de que todos e todas precisam, mas que demandava
atitudes de luta para se fazer valer. Entrar para um movimento social organizado parecia
destino óbvio, mas faltava ainda uma luta específica. Aquela que lhe representasse e
àquelas com quem se identificava.
11
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo,
2018.
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Foi assim que construí minha casa, onde moro até hoje! E construímos a casa
de muita gente. Funcionava assim: a cada quadra, a gente fazia a alvenaria de
todas as casas; depois a parte hidráulica, que é o sistema de água e esgoto. Mas
da quadra onde eu morava não fizeram nada disso, então eu tive que fazer tudo.
Deram o material e “se vira”. Ainda bem que tive a ajuda de um amigo, que
era eletricista do mutirão, e a gente dava um troco e ele fazia um “gato” para a
gente. O que ele fez está na minha casa até hoje.
Mudei para minha casa no dia 2 de fevereiro de 2000. De lá para cá muita coisa
mudou! Já fiz duas reformas! Antes tinha dois quartos e um banheiro bem
pequeno. Eu fiz mais um quarto e dois banheiros, um verde que vou pintar de
bege e um salmão. A sala é bem grande e tem a cozinha e a garagem. Apesar
da violência que passei e que hoje luto para que não ocorra com outras
mulheres, por conta disso tive um certo privilégio porque o coordenador me
permitiu escolher onde queria morar, sem precisar de sorteio. Moro onde eu
quis porque, como tinha duas meninas, não queria morar na avenida, queria
que elas tivessem uma pracinha para brincar. Nossa casa fica em frente a uma
pracinha e parece a “Vila do Chaves”, um condomínio que teve até projeto.
Todo mundo que vai gosta e acha bonitinho. As árvores que estão lá, plantei
junto com as crianças.
Mulheres que, como ela, lutavam pela casa, por uma casa que lhes conferisse
autonomia, onde pudessem criar os filhos e ter alguma liberdade. Para isso deveria servir
o engajamento em um movimento social que, segundo o Dicionário Crítico do
Feminismo, no verbete assinado por Josette Trat:
Não era só a luta por moradia, essa encampada por mulheres e homens
desprovidos de um direito básico. Mas uma luta específica, das mulheres que, por
condições muito particulares, precisavam de sua luta e de um direito por muitos
postulado, mas por poucos levado a cabo.
Era preciso que fosse dedicado um olhar diferenciado para as mulheres e, então,
veio o feminismo que, no início, para ela nem esse nome tinha, mas que no seu âmago
possuía o sentido intrínseco de lutar pelas mulheres em sua especificidade. Mulheres-
mães, solteiras, abandonadas pelos companheiros e pela agrura da pobreza e da negritude,
pelo que hoje chamamos marcadores sociais da diferença ou, ainda, interseccionalidades.
Minha entrada para o movimento foi, adivinhem? Através de uma mulher!
Fazia dois anos que não saía de casa, a não ser para ir ao médico. Até que num
dia como esse, em junho de 2014 as coisas começaram a mudar. Com a Copa
do Mundo, por causa da construção do estádio em Itaquera, teve muito despejo
de famílias que moravam nas comunidades. O MTST veio para cá fazer essa
ocupação, na época com oito mil acampados.
12
TRAT, Josette. Movimentos Sociais. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène;
SENOTIER, Danièle (Orgs). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
100
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Veio então o cotidiano de ocupações sem fim. E em quantas delas não estavam
reproduzidas as desigualdades de gênero? Esses termos, ainda desconhecidos por
Luciana, se faziam visíveis em inúmeros casos de violência do Estado e da misoginia. O
machismo identificado e logo assim denominado fez de nossa protagonista uma militante
não somente do movimento por casas, mas por mulheres.
Sua luta, que ainda não se dizia feminista, era pelas mulheres que não tinham um
teto todo seu e nem ao menos dividido com alguém. Eram mulheres que, assim como ela,
tiveram situações mais ou mesmo favoráveis de viver com ou sem alguém, que nessas
trajetórias se tornaram mães e que precisavam, mais que desejavam, de um lugar para
cuidar dos seus. E de si.
E assim ocupações foram dando forma a algo além do universo da casa, mas que
pretenderam ser mais que isso. Lugares abandonados se transformando em espaços de
acolhimento de quem precisava não apenas de espaço, mas de afago. Não apenas de
comida, mas de conforto, de compreensão. Tereza de Benguela é o nome de uma mulher
que lutou e que teve seu nome dedicado a um espaço de reflexão e acolhimento de tantas
outras mulheres que não tinham para onde ir. Nas palavras de Luciana,
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palavras de Ecléa Bosi: “Essa ordenação obedece a uma lógica afetiva cujos motivos
ignoramos; enfim, recontar é sempre um ato de criação.”13.
Ficava claro que aquela história ainda tinha muita estrada para percorrer e que a
luta por moradia podia ser o mote, mas que não se esgotava nisso. Ali os corpos estavam
em evidência e constituíam a morada de ideias e ideais.
Considerações finais
13
BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
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Referências Bibliográficas
BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. São Paulo:
Ática, 2014.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Guia Prático de
História Oral. São Paulo: Contexto, 2011.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d5.p.104.123
Resumo
O presente artigo tem como objetivo refletir algumas peculiaridades acerca da migração
de mulheres nordestinas para a região Norte. Aponta a importância da congregação
familiar nas decisões de partir do Nordeste em direção ao Norte. A família, nesse
processo, aparece como elemento fundamental nas trajetórias dessas mulheres. Como
fenômeno social, a migração ocorre numa dinâmica de relações interpessoais, que
abrange uma variada gama de elementos que a particulariza em momentos vividos pelos
sujeitos e que exige, de certa forma, uma análise das condições que surgem ou se
processam diante da decisão de migrar. Por sua vez, a história oral aponta caminhos de
análises a partir das experiências dos sujeitos tanto no âmbito individual quanto coletivo
a partir dos sentidos registrados em suas memórias.
Palavras-chave: Migração; História Oral; Arranjo familiar.
Abstract
This article aims to reflect some peculiarities about the migration of northeastern women
to the North region. It points out the importance of the family congregation in the
decisions to leave the Northeast towards the North. In this process, the family appears as
a fundamental element in the trajectories of these women. As a social phenomenon,
migration occurs in a dynamic of interpersonal relationships, which encompasses a wide
range of elements that particularizes it in moments experienced by the subjects and that
requires, in a certain way, an analysis of the conditions that arise or are processed before
the decision to migrate. In turn, oral history points to paths of analysis based on the
experiences of the subjects, both individually and collectively, based on the meanings
recorded in their memories.
*
O presente artigo discute algumas considerações abordadas em minha Dissertação de Mestrado – Do
espaço lembrado ao espaço vivido: narrativas orais de mulheres nordestinas em Parintins – AM, na segunda
metade do século XX.
1
Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas. Mestre em História Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas. Licenciada em História pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Professora de
História da Rede Pública de Ensino – SEDUC AM. E-mail: [email protected]
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2
LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. História oral e migração: a questão do regresso. Oralidades:
Revista de História Oral, 2. 2007.
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Vale destacar que essa abordagem feita por Lacerda diz respeito aos
deslocamentos propagados e financiados via estatal durante o período áureo da borracha.
Contudo, auxilia compreendermos de que maneira o contato entre esses dois mundos
distantes e distintos entre si, vão ficando cada vez mais próximos e entrelaçados. Assim,
podemos afirmar que as causas incutidas na migração muitas vezes, são colocadas sob
aspectos gerais das condições socioeconômicas e dentro de uma perspectiva regional,
extrapola essa forma de pensar, vai além, a migração passa a ser estudada não apenas
como fenômeno meramente ligado às implicações geográficas e suas circunstâncias, ela
passa a ser eminentemente, social. E o contato entre Norte e Nordeste torna-se inevitável.
3
PEREIRA, José Carlos Alves. O lugar desmanchado, o lugar recriado? Enredos e desenredos de jovens
rurais na migração internacional. Campinas, 2012. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Sociologia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – SP.
4
LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889 – 1916).
Belém: Ed. Açaí/Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia (UFPA) / Centro de
Memória da Amazônia (UFPA), 2010.
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“Migrar é coisa para homem”, costuma-se dizer sem pensar, sem atentar para
estatísticas, fotos, depoimentos, histórias de famílias. Sim, as migrantes têm
uma história. Desde sempre elas têm migrado, frequentemente na companhia
de familiares, amigos e conhecidos em busca de melhores condições de vida e
trabalho, mas migram também sozinhas, não só à procura de emprego, mas de
independência, de casamento, ou até para fugir de discriminações e violências8.
5
REIS, Arthur Cezar Ferreira. O Seringueiro e o Seringal. Ed. do serv. de Informação Agrícola, série
Documentário da Vida Rural (5). Rio de Janeiro. Serv. Graf. Ibge, 1953.
6
Parintins, também, bastante conhecida pela disputa ocorrida entre as agremiações folclóricas dos bois-
bumbás Garantido representado nas cores vermelho e branco e Caprichoso representado nas cores azul e
branco que acontece todo último final de semana do mês junho. Em virtude da pandemia do novo
coronavírus a edição 2020 foi suspensa.
7
CHAVES, Maria de Fátima Guedes. Mulheres migrantes: senhoras de seu destino? Uma análise da
migração interna feminina no Brasil: 1981 – 1991. São Paulo, 2009, p.14. Tese (doutorado) – Universidade
Estadual de Campinas – Departamento de Demografia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Disponível na biblioteca digital da Unicamp.
8
BASSANEZI, Maria Sílvia. Mulheres que vêm, mulheres que vão. IN: PINSKY, Carla Bassanezi;
PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres no Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013.
107
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Com isso, se faz necessário discutir sobre o papel desempenhado pelas mulheres
diante de seus processos migratórios, ou seja, abordar a temática da migração pelo viés
feminino é fazer com que essa perspectiva seja vista como objeto de análise, levando em
consideração dentre tantos, os motivos que as fizeram partir.
É preciso salientar que o Nordeste brasileiro durante muitos anos foi e continua
sendo mostrado como um grande fornecedor de mão-de-obra para outras regiões do país,
especialmente o Norte. Djalma Batista em “O Complexo da Amazônia” afirma que foi “o
mais numeroso de todos” 9. Em que movidos pelos incentivos governamentais tais sujeitos
partiram em busca de novas perspectivas de vida. Com isso adentraram em novos cenários
sociais em sua maioria contrastantes entre imaginário sonhados no Nordeste e realidades
vivenciadas na Amazônia.
A historiografia tradicional brasileira aponta dois grandes momentos de migrações
nordestinas para Amazônia, ocorridas no final do século XIX e início do século XX, que
se referem às muitas políticas governamentais de incentivo à migração para esta região.
Um exemplo disso aconteceu a partir da segunda metade do século XIX no contexto da
extração da borracha, quando a mão-de-obra estava quase que totalmente envolvida na
sua vazão.
Tal política repetiu-se ao longo do século XX no esforço de guerra conhecido
como batalha da borracha (1942-1945), quando o governo brasileiro em parceria com os
Estados Unidos induz com suas políticas a vinda de muitos nordestinos para a região
amazônica. Essa política, caracterizada como projeto de modernidade para Amazônia
elaborada no governo de Getúlio Vargas (Estado Novo) tinha como meta, também fazer
com que a região “pertença” ao restante do país.
As ações intervencionistas feitas pelo governo sob o discurso de desenvolver a
Amazônia não é uma prática visível apenas nas décadas passadas, mas que permeia até
hoje. E mesmo o Estado incentivando ou desestimulando a migração para a região de
maneira oficial, ela continua acontecendo constantemente.
As experiências vividas marcaram e marcam as trajetórias de homens e mulheres
advindos do Nordeste para o interior da Amazônia. A distância do lugar de origem vai
sendo diminuída a partir das vivências que vão sendo ressignificadas pelas memórias.
Assim, novas experiências surgem e se transformam nas vidas desses sujeitos. Essas
9
BATISTA, Djalma. O complexo da Amazônia – análise do processo de desenvolvimento. 2 ed. Manaus:
Editora Valer, Edua e Inpa, 2007.
108
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novas experiências, por sua vez, ocorrem dentro de uma tensão entre o que é incorporado,
as novas apropriações que vão sendo agregadas cotidianamente, em relação ao que é
objetivado, ou seja, as disputas ocorridas dentro do novo espaço social.
O novo lugar entra em disputa a partir da migração. Uma nova relação social se
constitui, torna-se ainda mais dinâmica. Pensar na dinamicidade existente nas relações
estabelecidas entre o sujeito/cidade e cidade/sujeito e de que maneira essa atitude citadina
vai sendo apropriada pelos próprios sujeitos que cotidianamente transitam em seus
espaços, nos faz refletir em José D´Assunção Barros, em seu livro Cidade e História, ao
analisar as diferentes atribuições sobre a cidade, afirma que esta foi apontada como
artefato cultural, corpo, obra de arte, etc. Contudo, enfatiza a cidade como texto, e este
em duas dimensões, o texto que pode ser lido e o que pode ser escrito10.
A cidade como texto que pode ser lido diz respeito aos deslocamentos feitos dentro
dela, as inúmeras idas e vindas de pessoas no fluxo diário. Cada pessoa tem uma forma
de apreender cada monumento construído. O som, o cheiro, a cor, o movimento, também
são internalizados diferentemente pelo sujeito que caminha por ela, e externalizados de
maneira peculiar, possibilitando que aspectos sociais sejam estabelecidos em expressões
de cidadania.
Como texto que pode ser escrito, refere-se à capacidade que cada pessoa tem de
criar códigos específicos dentro de uma determinada área, um beco, uma rua, uma viela.
O sujeito também é capaz de decodificar tantos outros existentes na mesma. Assim, a
mulher na cidade interage, compartilha, se apropria e se transforma.
Barros elucida que:
10
BARROS, José D’Assunção Barros. Cidade e história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
11
BARROS, José D’Assunção Barros. Cidade e história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
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12
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, São Paulo:
EDUSC, 2002.
13
BRESCIANI, Maria Stella. Cidade e História. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (Org.). Cidade: história e
desafios. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2002.
14
DEL PRIORE, Mary. História do cotidiano e da vida privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
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Fátima Xavier Paulo (63 anos) e Geralda Xavier Prado (88 anos). Os processos de
relações com elas possibilitaram a construção desse estudo, em que os contatos com suas
narrativas orais, somados ao contexto de suas ações, permitiram compreender numa
palavra, através de um simples gesto como sorrir ou até mesmo chorar, detalhes que
fizeram com que a experiência trocada se tornasse única.
Nesse ínterim, a decisão de partir em busca de trabalho e/ou outras possibilidades
acontece dentro de uma teia social15. Essa por sua vez, está atrelada as redes de
solidariedades e sociabilidades que se configuram e se (re)inventam diante e durante os
deslocamentos. Dessa forma, a família, ou melhor, o arranjo familiar, tem se mostrado
como o elemento primordial que motivou e movimentou Maria de Fátima Paulo e Geralda
Xavier e tantas outras em seus percursos.
Entre às entrevistadas, percebi que a família, não só norteia a disposição de partir,
mas também aparece como parte fundamental na tomada de decisão, de tal modo age sob
a forma de um elo necessário entre os que vão embora e os que ficam. Assim, podemos
entender esse elo em duas perspectivas de ação: o elo efetivo e o elo afetivo.
Por essa perspectiva em que a família se enquadra, não podemos dissociar uma
relação da outra, não há como separar a efetividade e afetividade imbuídas na trajetória
migratória. É necessário perceber a participação familiar como elo efetivo/afetivo uma
vez que age como frente de apoio dando condições físicas e emocionais tanto na partida
quanto na chegada, ela atua como suporte necessário na minimização das dificuldades
dos contrastes impostos pelo deslocamento, isso quer dizer que ao partir, ocorre de certa
maneia, um distanciamento dos costumes e hábitos herdados em que entra em contato e
fusão com o novo lugar, o que antes era naturalmente praticado com a migração, passa a
ser ressignificado.
Arranjos familiares esses que foram preponderantes nas trajetórias das mulheres
que saíram de seus lugares de origem, sozinhas e/ou acompanhadas seguiram rumo a
outros horizontes. As experiências trazidas por elas nos levam a refletir sobre seus anseios
e angústias, suas impressões e perspectivas além dos medos e lutas que tiveram que
vencer.
15
Compreendendo uma teia social como conjunto de acontecimentos cotidianos. Sejam eles, de ordem
econômica, política e social. Dessa forma, não há como explicitar dentro de uma única área do
conhecimento um conceito fechado e definitivo, visto que, a amplitude das ações empreendidas por um ou
mais sujeitos no corpo social é de caráter tanto multi quanto interdisciplinar.
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O sentido familiar é um fator de grande peso nas decisões que envolvem cada
mulher entrevistada, de um lado há o apelo e todos os argumentos utilizados pelos pais,
na maioria delas, para que não saíssem de perto de seus cuidados, em contrapartida, a
constituição de suas próprias famílias, pelo menos para as que já haviam casado, é o
determinante de suas saídas.
Maria de Fátima Xavier Paulo, saiu do Ceará depois de seu esposo e ao narrar
sobre sua trajetória de vinda para o Norte, relembra da emoção sentida ao se despedir de
seus pais. Ela conta que:
Eu senti muita emoção porque tava deixando meus pais. Não queria deixar
meus pais. Eu me despedi dos meus pais, do meu pai da minha mãe e viajei
pra cá. No início meu pai não queria que eu viesse. Ele disse que era muito
longe o Amazonas, que andava muito, passava em muito buraco, ele não
aceitava que eu vinha pra cá, mas depois eu falava: mas meu pai deixe eu ir
que meu marido mandou me buscar, aí ele disse: não! fique minha filha que eu
lhe crio e crio seus filhos. Ele não queria que eu viesse pro Amazonas, aí eu
viajei com meus cinco filhos, graças a Deus. Aí minha cunhada falou pra ele:
compadre deixe ela ir, que o marido mandou o dinheiro pra ela viajar e é ele
que tem que criar os filhos. Mas o meu pai falou: eu criei ela e crio os filhos.
Meu pai pedia pra que eu deixasse meu filho mais velho, eu disse que não,
porque aí ia ser duas saudades16.
16
Maria de Fátima Xavier Paulo. Entrevista realizada em sua residência no dia 03 de dezembro de 2015.
113
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17
Maria de Fátima Xavier Paulo. Entrevista realizada em 03 de dezembro de 2015.
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seus filhos a qualquer tipo de julgamento. E assim, Maria de Fátima chegou ao seu
destino, ao encontro do seu esposo, conseguiu reunir novamente a família.
Geralda Xavier, que é tia de Maria de Fátima, já residia em Parintins quando sua
sobrinha chegou. Embora não tenha aparecido na narrativa de Fátima como um elo efetivo
de sua vinda, é mencionada a partir do momento que Fátima afirma que já havia alguns
parentes morando em Parintins, já tinha o conhecimento de que havia tias na cidade,
dentre elas Geralda. E sobre sua vinda elucida que:
Vim pra acompanhar meu esposo. Meu esposo veio primeiro. Aí eu fiquei com
cinco filhos, aí meu esposo mandou dizer que eu viesse de barco, aí minha
cunhada que me amava muito, falou que de barco ela não vai. Ligou pro
cunhado aqui (Ceará) que era irmão do esposo que morava em Manaus era
riquíssimo, um grande comerciante, que mandasse a passagem de avião que eu
não saía de lá com cinco filhos pra vim de barco, de navio, aí eu vim de avião,
quando cheguei em Belém, os filhos tudo provocando, tudo passando mal, aí
chegaram e disseram pra mim, o piloto disse: olhe a senhora não tem condições
de viajar, eu disse: mas também não tenho condições de ficar aqui com esses
bandinhos18, aí eu disse: ou vivendo ou morrendo eu vou pra Manaus! Eu quero
chegar em Manaus hoje, graças a Deus! Cheguei com os filhos tudo baquiado,
só a viagem que foi difícil, quando cheguei gostei do lugar, de Manaus,
agradeci muito a Deus, que tudo eu achava bom, que morava no interior! Fui
morar na capital, achei tudo bom! Mas passamos tantos problemas, mas
venci!19
18
Expressão trazida por Geralda Xavier ao se referir aos filhos.
19
Geralda Xavier Prado. Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
20
Essa fala de Geralda nos leva a pensar que o Amazonas nessa época passava por um conturbado período
de recessão, no entanto seu cunhado que sai do Nordeste estabelece moradia e comércio em Manaus
enriquece. Djalma Batista em seu livro Complexo da Amazônia (2007) discute sobre os diferentes
momentos econômicos que não só a região, sobretudo o estado do Amazonas enfrenta até a criação e
implementação da Zona Franca de Manaus que só ocorre nos anos finais da década de 1960.
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que na época de seu deslocamento era “riquíssimo”, um grande comerciante como ela
mesma menciona. Isso em Manaus, o que certamente viabilizou sua vinda e de seus filhos
de avião.
“Os filhos tudo baquiado”, o terceiro aspecto, é a compreensão que Geralda faz
sobre o mal-estar provocado pela viagem aos filhos, mesmo assim, quando indagada pelo
piloto sobre a condição de saúde deles em prosseguir viagem, não hesitou em responder
que não ficaria em Belém. Essa atitude de Geralda em querer chegar ao seu destino
demonstra sua obstinação, ou melhor, a possibilidade de ficar em Belém é sinal de
desespero, o que iria fazer em Belém? Com quem iria ficar? Ela precisava chegar em
Manaus, pois lá estava sua sustentação e referência. Queria chegar logo ao encontro de
seu esposo, pois preocupava-se com a situação de vulnerabilidade em que os filhos se
encontravam, diante disso, foi enfática ao afirmar que “vivendo ou morrendo”, a parada
final não seria Belém como propunha o piloto, e sim Manaus.
O encantamento proferido por Geralda faz menção a sua trajetória de saída do
interior do Nordeste, local onde havia morado praticamente sua vida toda. A migrante,
nunca havia estado em uma cidade grande como Manaus, o que a fez se surpreender em
estar numa capital, e mais, todo o transtorno vivido na viagem parecia quase inexistente
diante do novo momento que estava experimentando. E, afinal de contas, a família estava
mais uma vez reunida.
21
MARANDOLA Jr, E. & DAL GALLO, P.M. Ser migrante: implicações territoriais e existenciais da
migração. R. brasil. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 27, n.2, 2010.
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Em relação à fixação do migrante não ocorrer de forma aleatória destacamos que isso é
fruto de alguns fatores, dentre eles os laços afetivos que vão sendo consolidados durante todo o
processo. Assim, as redes afetivas ou de sociabilidades vão sendo alicerçadas nos locais onde um
ou mais sujeitos estão dispostos. E práticas que até então só eram comuns no lugar de origem
entram em fusão com as práticas sociais trocadas no lugar de destino. E, a partir dessas trocas, há
uma profunda transformação na vida desses sujeitos.
Nessa intenção de visibilizar a trajetória dessas mulheres nordestinas, levamos em
consideração a complexidade presente nas particularidades trazidas pelas memórias,
compreendendo com Maurice Halbwachs, que essas memórias mesmo sendo colocadas no âmbito
individual (retalhos de um todo) negociam o tempo todo com as memórias coletivas. Essa, é,
portanto, a costura da “colcha de retalhos” que compõe o tecido social22.
Em outras palavras, Alessandro Portelli chama atenção para que possamos compreender
as fontes orais como ato político23. Ainda mais que as memórias das mulheres mencionadas nesse
estudo, permitam traçar um panorama acerca de suas vivências, de suas trajetórias e de como elas
se inscrevem na dinâmica social de Parintins, desde o momento de sua saída do Nordeste.
Ao fazer uso da subjetividade do sujeito, a fonte oral contribui principalmente no
questionamento da fonte escrita, rompendo com o estabelecido e apontando outro olhar na forma
como os sujeitos percebem e interpretam seus modos de vida. Para Portelli “[...] a subjetividade
se revelará mais do que uma interferência; será a maior riqueza, a maior contribuição cognitiva
que chega a nós das memórias e das fontes orais” 24. Segundo esse mesmo autor, é através da
subjetividade que o sujeito atribui significado a sua experiência. Não é o fato ocorrido em si, mas
o significado atribuído a ele que faz toda diferença.
No bojo dessa discussão, tratamos também outro aspecto de suma relevância para que
tenhamos uma dimensão ainda maior das vivências dessas mulheres nordestinas em Parintins que
é a “experiência” trazida por Thompson. Para ele, “a experiência surge espontaneamente no ser
social, mas não surge sem pensamento. (...) Assim como o ser é pensado, também o pensamento
é vivido” 25. Isso indica que a experiência dos sujeitos no corpo social é, também, refletida por
eles.
Mesmo tendo em comum o espaço e o tempo recortado nesse estudo, percebe-se que o
tempo da memória juntamente com as experiências vividas por essas mulheres mencionadas aqui,
ocorre de maneira singular para cada uma. Assim, a construção histórica dessa temática caminha
interligada com a história, a memória e o tempo narrado por elas, já que o tempo da memória se
difere do tempo vivido.
22
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
23
PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. In: Mnemosine. Vol. 6, nº 2, p. 3 (2010). Artigos
24
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e
nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1996.
25
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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Nesse sentido, Ecléa Bosi em seu livro Memória e Sociedade de 1994, discorre que a
ativar a memória “é o momento de desempenhar a alta função da lembrança”. Sendo que a partir
das memórias orais dessas mulheres nordestinas, é possível reconstruir processos históricos, onde
“um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-
nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por
quem não os viveu e até humanizar o presente”. A essa reconstrução de um dado processo
histórico, segundo Ecléa Bosi, está diretamente relacionada com a função social da memória, e
salienta que, “a conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada
de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de
entes amados, é semelhante a uma obra de arte”26.
A lembrança dos velhos semelhante a uma obra de arte na afirmação de Ecléa Bosi faz
pensar no diálogo existente entre o presente e o passado mediante ao ato de lembrar, um diálogo
que é vivo, pois a memória não está presa ao tempo de vida de um sujeito, “ela ultrapassa esse
tempo de vida individual e encontra-se com o tempo da História”27. Nesse entendimento, História,
Memória, Tempo Vivido e Tempo Lembrado caminham juntos.
Delgado discute, entre outros pontos relevantes sobre Tempo e História, que há uma
distinção entre o tempo da memória do tempo histórico, onde a memória além de ser múltipla por
sofrer constantes alterações, ela é uma reação do vivido, pois está enquadrada em três dimensões:
a coletiva, a individual e a histórica. A história tem o papel de representar um dado fenômeno e
busca as informações contidas na memória para realizar sua tarefa.
Maurice Halbwachs, indica que a memória não está dissociada de um tempo e de um
espaço para que às lembranças de um dado evento vivido venha à tona na rememoração de uma
pessoa. Assim, mesmo que a memória coletiva contenha a memória individual, uma não existe
sem a outra. Segundo o autor mencionado acima, “nossa memória não se apoia na história, mas
na história vivida”.
Diante disso, dizemos que a memória faz menção a um período registrado nas vidas
dessas mulheres nordestinas, pois o tempo é um elemento relevante nessa constituição, uma vez
que ele ocorre dentro de um movimento dinâmico relacionado às vivências de cada ator social,
em que carrega em si as rupturas, permanências e continuidades que permeiam as experiências de
vida de cada uma das mulheres descritas nesse estudo.
26
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos: 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
27
DELGADO, Lucíola de Almeida Neves. História oral – memória, tempo, identidades. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
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Considerações Finais
A postura das mulheres aqui mencionadas contesta o papel imposto para a mulher durante
muito tempo, elas decidem, agem e rompem paradigmas estabelecidos. Defendem e lutam pelo
que acreditam. Saem do silêncio e do esquecimento histórico. As ações
engendradas por Maria de Fátima Xavier Paulo e Geralda Xavier Prado, trazidas como
representantes de um coletivo, apontam formas de resistência em busca de ajuda e consolo,
mesmo em momentos distintos. Representam ações de autonomia, liberdade e esperança em
expressar os seus anseios e angústias. Elas exercitam cada uma à sua maneira e à medida do
possível, seus espaços de poder.
Esse estudo coloca a mulher como sujeito que é ativo, social e histórico na dinâmica de
seus processos migratórios. E, que muitas das vezes mesmo dentro de seus afazeres cotidianos, a
participação no espaço público se confunde com o privado e vice e versa, suas memórias
materializadas em vivências e estas transformadas em experiências contribuem na construção de
novas histórias na Amazônia, a partir de Parintins.
A forte influência familiar nas narrativas evidencia que os motivos de sair do Nordeste,
estão atrelados diretamente as questões afetivas, sem desconsiderar as questões socioeconômicas
que as envolviam. Saíram porque já havia alguém esperando na chegada. Saíram porque os que
vieram primeiro fizeram esse percurso em busca de trabalho, em busca de novas perspectivas. Ao
conseguirem, permitiram e possibilitaram a vinda dos parentes, a vinda das mulheres sujeitos
dessa pesquisa.
Escrever a história, especialmente a do tempo presente, nos permite caminhar na trama
do vivido por essas mulheres nordestinas. Sujeitos que trazem consigo as marcas das experiências
vividas. Essas mulheres carregam na bagagem de suas vidas a construção de suas histórias, ao
relembrarem um dado acontecimento, elas revivem e, nesse ato de reviver, estão mais uma vez
“construindo sentidos”28 ou melhor, possibilitam na (re)escrita da História a partir de suas
vivências.
Temos a compreensão de que cada sujeito é capaz de dar sentido à própria existência por
meio da sua própria narrativa, por sua maneira de perceber o mundo em que vive e de que maneira
age e se percebe nele. Diante disso, é possível afirmar que cada um tem sua história, ou melhor,
a história de cada mulher nesse trabalho está relacionada a vários aspectos: econômicos, políticos,
religiosos, cultural, sobretudo, está relacionada aos aspectos sociais da realidade em que estão
inseridas.
28
SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço, construindo sentidos: vivências, trabalho e embates
na área da Manaus Moderna (Manaus/AM – 1967 – 2010). Manaus: EDUA, 2016.
120
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
29
POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,
1992.
121
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10, 1992.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d6.124.150
Resumo
Os nativos dessa comunidade caiçara ainda preservam grande parte dos costumes, modos
de vida, linguagem, atividades pesqueiras, extrativismo vegetal e agricultura familiar,
mesmo diante das adversidades às quais estão sujeitos e que são provocadas, em parte,
pelas políticas adotadas contrárias às práticas cotidianas do caiçara. Nesse contexto, a
escola pública municipal da Vila de Pincinguaba lança suas redes para mesclar os
conhecimentos curriculares aos conhecimentos da comunidade tradicional. Assim, nosso
artigo apresenta, por meio das análises das narrativas e dos desenhos confeccionados
pelas professoras, as representações sociais acerca dos seus alunos caiçaras, evidenciando
a relação simbiótica entre o homem e a natureza.
Palavras-chave: Representações Sociais; Docentes e Alunos; Saberes Caiçaras.
Abstract
The natives of this Caiçara community still preserve most of the customs, ways of life,
language, fishing activities, vegetal extraction and family farming, even in the face of the
adversities to which they are subjected and which are caused, in part, by the policies
adopted contrary to daily practices of caiçara. In this context, the municipal public school
of Vila de Pincinguaba launches its networks to merge curricular knowledge with the
knowledge of the traditional community. Thus, our article presents, through the analysis
of the narratives and drawings made by the teachers, the social representations about their
caiçaras students, showing the symbiotic relationship between man and nature.
1
Mestre em Educação pela Universidade de Taubaté-SP (Unitau). Professor da rede estadual de ensino de
São Paulo. E-mail: [email protected]
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Introdução
Propusemos aqui neste artigo, um recorte da pesquisa de mestrado que foi
realizada em uma pequena escola pública municipal, localizada à beira mar, na Vila de
Pescadores de Picinguaba, na cidade de Ubatuba, litoral norte de São Paulo, refletir, por
meio da iconografia e trechos das entrevistas coletadas, acerca das representações sociais
das professoras que lecionam na escola em referência aos seus alunos caiçaras. Entre
histórias e imagens, pudemos perceber que representar o aluno caiçara é buscar conhecer
o sujeito em seu lugar de pertencimento, sua comunidade, seu grupo social. Dessa forma,
não há como tratar do aluno caiçara sem considerar a beira da praia, os ranchos para
guardar as canoas e redes de pesca, a movimentação das marés, a chegada esperada dos
barcos e seus pescadores. Nesse contexto, rico em saberes sociais, a escola está ali,
pertinho da água do mar, com as janelas das salas de aula voltadas para a praia, recebendo
a brisa dos ventos que sopram, o som das ondas, o cheiro de mar.
Durante toda pesquisa, conhecemos nativos, observamos os modos de vida do
caiçara, acompanhamos o trabalho diário das professoras na escola. Ouvimos histórias
das mais variadas, as quais, compartilharemos um pouco aqui. Vale ressaltar que nosso
foco eram as narrativas das docentes a respeito dos seus alunos caiçaras, sendo assim,
antes de mais nada, é indispensável deixar claro que utilizamos três instrumentos na
pesquisa: a observação, a entrevista semiestruturada e a iconografia. Após a entrevista, as
professoras recebiam uma folha A3, lápis de cor, canetas, réguas, giz de cera, além é
claro, dos materiais que cada uma delas trazia para a sala. De posse de todo esse material,
receberam a instrução de desenhar seu aluno caiçara, sua escola, a praia e a si mesma.
São esses desenhos que analisamos e mostramos nesse artigo.
125
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2
MOSCOVICI, Serge. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes, 2012.
3
Participaram da pesquisa, as cinco professoras da escola, com o intuito de garantir a privadcidade delas,
substituímos seus nomes por nomes de plantas e flores nativas da Mata Atlântica.
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Para ela seu aluno partilha dos saberes do fazer e compartilha o que sabe com os demais,
sem, com isso, deixar de ser criança. Em sala de aula, ela afirma que seu aluno caiçara
“fala do pescar” com muita propriedade.
Para Moscovici objetivar a representação social pode se dar por meio de
“genótipos semânticos”, ou seja, a combinação de palavras com o intuito de explicar o
desconhecido e, assim, torná-lo real4. Com isso, para representar seu aluno caiçara,
recorrem-se a vocábulos ligados ao mar, à pesca, sua simbiose com a natureza, sinais
distintivos de outras comunidades diferentes, como pode ser observado na fala da
professora Juçara: “Meu aluno vem descalço. Não quer ficar de chinelo, não quer ficar de
tênis. Quer andar, quer falar com todo mundo que chega. Saber o que que tá fazendo aqui,
quem é, porque tá no lugar deles.”
O fato narrado pela professora Juçara a respeito de seu aluno estar descalço
remete, talvez, ao modo de vida simples do caiçara, que mesmo estando na escola, ele
permanece em sua comunidade de pertença, sentindo-se “em casa”. A escola não é um
espaço neutralizador, pelo contrário, é um lócus de conflito e convivência, onde a
resistência é observada em gestos simples, como não ficar calçado só porque está na
escola.
Partindo disso, podemos, quem sabe, propor um modelo figurativo do aluno
caiçara, conforme as narrativas das professoras, ponderando a repetição de vocábulos
ditos ao representar seu aluno caiçara, buscando, assim, naturalizar o que anteriormente
era abstrato, tornando-se evidência e compondo a realidade, de acordo com que o
tentamos mostrar na Figura 1.
Mar
Respeito
Aluno pela
Diferente Natureza
Caiçara
Pesca
4
MOSCOVICI, Serge. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes, 2012.
127
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5
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais e investigações em Psicologia Social. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2011.
6
DIEGUES, Antônio C. (Org.); ARRUDA, Rinaldo S. V.; SILVA, Viviane C. F.; FIGOLS, Francisca A.
B.; ANDRADE, Daniela. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo: NUPAUB-
USP, 2000.
128
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interessar também pelos saberes valorizados no currículo oficial, diferentes dos saberes
aprendidos com os membros de sua comunidade de pertença, demonstram que a
curiosidade é essencial para dar significado para as atividades da escola, uma vez que eles
“gostam de estudar, gostam de vir à escola, de ouvir história, desenhar, dividir, aprender
coisa nova, montar quebra-cabeça. Coisas que, às vezes, não tem em casa, né.”
A comunidade tradicional caiçara de Ubatuba sempre esteve em convivência com
o externo. A alteração no modo de vida dos nativos passou por diversas transformações
na medida que antigas atividades agrícolas, estimuladas pelas fazendas produtoras de café
e cana de açúcar entraram em decadência. O antigo nativo lavrador do sertão litorâneo foi
modificando seu modo de vida com o intuito de se adaptar à nova organização social e
econômica, descendo do sertão para a praia, diminuindo e alterando sua produção agrícola
e aumentando e desenvolvendo sua capacidade de pesca que, por sua vez, também se
modificou com a chegada do barco à motor e suas variantes 7. A construção da estrada,
que hoje liga o litoral sul ao estado do Rio de Janeiro, acelerou a comunicação e as
relações entre nativos e não-nativos, mas não pode ser vista, à princípio, como uma
ameaça aos caiçaras, visto que ainda ocupam seu território e comungam dos costumes
tradicionais. O sujeito, seja e esteja onde estiver, se encontra em constante movimento e
construção, adaptando e modificando às realidades sociais às quais está inserido. Angela
Arruda sugere que o sujeito é “ativo e criativo, e não uma tábula rasa que recebe
passivamente o que o mundo lhe oferece, como se a divisão entre ele e a realidade fosse
um corte bem traçado.”8. Pode ser esta habilidade dos seus sujeitos-alunos que instiga
esta preocupação das docentes.
A professora Bromélia evidenciou na entrevista que esta pluralidade presente nas
relações sociais da Vila de Pescadores de Picinguaba pode ser encontrada também na sala
de aula:
Tem alunos que moram no sertão da Cabeçuda, eu ainda não tive a
oportunidade de conhecer, mas quero muito. Eles têm uma vida diferente dos
alunos que estudam também nessa escola, na mesma sala e que vivem aqui na
comunidade, aqui na Vila e são vivências particulares, diferentes modos de
vida, leitura de mundo diferente e isso me encanta muito, muito.
Percebe-se nessa narrativa, que a diversidade social está presente dentro da escola,
pois os alunos vêm de “outros lugares”, além da Vila de Pescadores. Como ela mesma se
7
ADAMS, Cristina. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova
abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 43, n. 1, 2000
8
ARRUDA, Angela. Teoria das Representações Sociais e Teorias de Gênero. Cadernos de Pesquisa, Rio
de Janeiro, n. 117, p. 127-147, nov. 2002.
129
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refere, o chamado “sertão”, fora da beira da praia, apresenta outros modos de vida, mais
próximos da agricultura familiar, e, mesmo assim, são considerados caiçaras. A
identidade caiçara, embora representada no modelo figurativo como sendo o nativo
íntimo do mar, também foi representada por elas, como sendo o sujeito que respeita a
natureza e os recursos que ela oferece. Nessa ótica, os nativos caiçaras do sertão que
sobrevivem da agricultura familiar e do extrativismo vegetal como principal fonte de
subsistência e manutenção de sua cultura, também assumem a mesma identidade, embora
não morem na beira da praia ou vivam da pesca.
Assim, mesmo no discurso das entrevistadas, as características do caiçara são
elencadas como um diferenciador de outros grupos sociais, uma das professoras afirma
que não há diferenças entre os alunos da vila de pescadores e os alunos de outra
comunidade. “Eu não vejo grandes diferenças não. Porque a comunidade que eu trabalho
é uma comunidade rural, eles não são tão ligados a raiz caiçara, mas tem traços disso
também.”9. Vale indicar aqui que essa aproximação narrada pela professora se refere ao
fato de que, segundo Adams, o caiçara tem sua origem na cultura caipira. Para a autora,
o mameluco paulista engloba o caipira do interior e o caiçara, sendo a agricultura de
subsistência e seu modo simples de vida, o elo de ligação entre os dois grupos. Logo, há
sim uma aproximação do aluno da comunidade rural com o aluno da comunidade caiçara,
no entanto, a relação com o mar seria um diferenciador como grupo social10.
As formas diferentes de falar, de pensar, de agir, de trabalhar e conviver chamam
a atenção por serem desconhecidas daquilo que a fronteira preservou. Nesse caso, a
fronteira não se resume somente a geografia do território, mas também aos costumes e
saberes, bem como os atos simbólicos de grupos sociais distintos. Estas peculiaridades
do aluno caiçara apresentadas no modelo figurativo presentes no imaginário das
professoras também compõem a representação que é dada a comunidade tradicional
caiçara como um todo:
Eles entendem do tempo. Dizem que o tempo tá nublado, vai chover, ou que
tem uma coisa diferente no mar, não tá bom para pesca. Esse conhecimento
deles do vento, que o vento vem de tal posição, isso é um conhecimento acho
que muito caiçara. A gente do urbano, a gente não tem muito esse
conhecimento de ler o clima, de tempo, de perceber as temperaturas. Isso é
próprio deles e eles sabem que dia eles vão pescar tal peixe, onde tá o cardume,
porque que tem aquele cardume naquela posição.
9
Professora Helicônia.
10
ADAMS, Cristina. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova
abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 43, n. 1, 2000.
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O fato das professoras representarem seus alunos caiçaras a partir dos costumes e
saberes tradicionais pode reforçar a intenção delas de que ser caiçara é manifestar no
cotidiano as peculiaridades do grupo de pertencimento que os diferencia das outras
“sociedades” existentes. Há uma preocupação com a integração social de seus alunos
caiçaras com outros sujeitos de fora da comunidade, mesmo quando observam que a
escola e seu currículo também são diferentes, no entanto, neste caso, não são vistos como
hostis por elas, pelo contrário, assumem uma posição privilegiada no sentido de
apresentar novos caminhos e possibilidades para seus alunos caiçaras.
Antes de começarem a desenhar, houve uma pausa, talvez porque refletiam sobre
o que falaram na entrevista e, ao mesmo tempo, buscando na memória afetiva a melhor
forma de se expressar. Esta preocupação, com o produto do desenho, levou uma das
docentes, a professora Helicônia, a pedir outra folha para fazer um rascunho do que
pretendia mostrar, esta atitude pode ter sido uma maneira de garantir que sua
representação fosse trazida nos mínimos detalhes, como pode ser visto na Figura 08 de
sua autoria.
O tempo utilizado por cada docente variou bastante. Não estipulamos um prazo,
posto que gostaríamos que elas pudessem pensar, sentir e se expressar sem que fossem
interrompidas pelo tempo. Isso nos garantiria, porventura, que os desenhos retratassem
as representações com mais fidelidade.
Terminada esta coleta e com os desenhos em mãos, partimos para a análise das
imagens coletadas e a interpretação dos desenhos, tendo por base teórica no auxílio para
a análise em Gemma Penn. Assim os desenhos produzidos, aliados as narrativas obtidas
nas entrevistas e as observações realizadas do cotidiano da escola atuaram como uma
ferramenta de contribuição no sentido de anular as ambiguidades que podem ser geradas
somente pelas imagens11.
Dispomo-nos, desse modo, a ponderar sobre as objetivações que são apresentadas
nos desenhos. Vale ressaltar que a objetivação, parte do processo para a (re)elaboração
das representações sociais, busca imagens concretas para externar a realidade
11
PENN, Gemma. Análise semiótica de imagens paradas. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa
qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 319-342.
131
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Na figura acima, a professora Açucena representa, por meio das imagens, alguns
elementos que compõe o cenário caiçara. Penn nos orienta que na interpretação de
imagens podemos nos valer dos níveis de significação13. O primeiro nível de significação,
denominado de primeira ordem, ou denotativo, refere-se exatamente as imagens presentes
no desenho, bastando saber apenas seu significado. No caso do desenho da professora
Açucena, a presença do barco no mar exige de nós, em primeira ordem de significação,
somente um conhecimento do significado do que vem a ser um “barco”. Nesta ordem de
significação, o tipo de barco, sua finalidade, seu tamanho, cores, posição no desenho e
sua escala não são considerados neste tipo de leitura. Já quando vamos para o nível de
segunda ordem, isso muda, já que, ao identificamos o barco no desenho, trazemos para a
interpretação e análise, conhecimentos além daquele identificado na primeira ordem.
Esses conhecimentos são ancorados no repertório cultural e nas experiências adquiridas
por quem as interpreta, com o objetivo de buscar as representações simbólicas na
composição das imagens pelos elementos escolhidos. Por este motivo que nossas
12
SPINK, Mary Jane P.. O conceito de representação social na abordagem psicossocial. Cad. Saúde
Pública [online]. 1993, vol.9, n.3, pp.300-308. ISSN 1678-4464. https://doi.org/10.1590/S0102-
311X1993000300017.
13
PENN, Gemma. Semiotic analysis of still images. Qualitative researching with text, image and sound,
p. 227-245, 2000.
132
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Neste território caiçara, ela desenhou parte das marcas identitárias do uso do meio
pelos nativos, como o barco traineira (falaremos mais sobre este tipo de embarcação mais
a frente) utilizado para a pesca em maior quantidade.
Ao se desenhar, a professora Açucena se apresenta vestida
com calça comprida, camisa longa e sapatos na areia da praia.
Normalmente, não nos vestiríamos assim na praia, porém a
professora, talvez, buscou frisar que aquele lugar para ela, é lugar de
trabalho e não, à priori, de lazer. Suas roupas também podem
evidenciar sua identidade profissional, já que as professoras não vão
lecionar vestindo roupa comumente utilizadas na praia, mostrando
assim como gosta de ser reconhecida pelos seus alunos. Ao se
diferenciar dos seus alunos por meio das vestimentas, ela estabelece
uma relação de poder sobre o outro ao exercer sua autoridade como docente. A
vestimenta, neste caso, pode representar também a fronteira simbólica entre ela,
professora, pertencente a outra comunidade, localizada no centro urbano, e seus alunos
caiçaras da Vila de Pescadores, comunidade tradicional caiçara. Isso fortalece a
alteridade, já que, diferenciando, a professora estabelece as marcas identitárias dela e de
seus alunos. Já ao desenhar seus alunos caiçaras, os mesmos aparecem vestidos com
camisetas, bermudas, no caso dos meninos, e saia curta, para a menina. Reparamos
também que os alunos caiçaras estão descalços, com os pés no chão. Há maior
familiaridade dos alunos caiçaras com o território. Ali é o lugar deles estejam na escola
ou não. O fato de estarem sem calçados, foi narrado na entrevista pela professora Juçara,
como mostramos anteriormente.
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Para as professoras,
tanto a autora do desenho como
a da fala, o estar descalço
poderia ser uma característica
do aluno caiçara, ancorada no
sentimento de pertencer à vila
de pescadores e comungar com a natureza local e ao modo de vida simples de seu grupo
social.
Ainda no mesmo desenho, a professora mostra a escola distante dela e dos alunos.
Ao considerarmos o espaço físico em que a escola está localizada na Vila de Pescadores,
a mesma poderia estar mais próxima a ela e aos alunos, enquanto o barco
traineira poderia estar onde foi desenhada a escola. Isso porque ao chegar a
Vila de Pescadores, a escola está localizada logo na entrada. O local onde
ficam os barcos de pesca e canoas está localizado no fim da praia.
Observamos também que, embora tenha desenhado uma placa em frente ao
que seria a escola, a mesma está sem identificação. Possivelmente, a ausência do nome
da escola na placa pode nos mostrar que falta a identidade para este lugar, no caso, a
escola. Quem sabe, por isso ela e seus alunos estão na praia e não dentro ou próximo ao
prédio escolar. Sugerimos aqui uma fala da professora que chama a atenção sobre como
ela representa a escola.
ah, a gente trabalha numa vila caiçara, é tranquilo, as crianças são
disciplinadas”, mas aí a gente vê que na realidade quando você chega aqui,
você se depara com salas multisseriadas, a gente se depara com distanciamento
da Secretaria da Educação, a gente vê situações em sala de aula que fogem a
nossa competência, apesar da gente estar nesse lugar assim que é maravilhoso.
Fica mais claro, que para a professora Açucena, embora o território caiçara seja
“maravilhoso”, a escola apresenta alguns entraves para o seu exercício profissional. Ela
criticou a organização das turmas e do “distanciamento”, até aquele momento, da
Secretaria Municipal de Educação do município de Ubatuba, sendo, porventura, esses os
motivos da escola estar distante dela e dos alunos no desenho. No ponto de vista dela,
representado no desenho, a escola está distante! Se esta hipótese estiver de acordo, isso a
conduz, com seus alunos caiçaras, à areia da praia de modo que ela possa se sentir mais
próxima da comunidade caiçara e de seus saberes, afinal seus alunos e o território estão
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14
DIEGUES, Antônio C. A Pesca em Ubatuba – estudo sócio econômico. São Paulo: SUDELPA, 1974.
135
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uma relação de poder para os moradores da vila, pois aumentaria sua produção, não mais
com ênfase apenas no próprio consumo, mas sim vendendo o excedente, tendo uma
atividade econômica mais rentável e lucrativa.
Figura 3 - Desenho da professora Juçara
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15
ADAMS, Cristina. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova
abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 43, n. 1, 2000.
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Mesmo sendo uma escola pequena, eu acho que aqui tem em torno de 90
alunos, manhã e tarde, tenho vinte alunos na minha sala e a gente vê realidades
diferentes. Tem alunos que moram no sertão da Cabeçuda, eu ainda não tive a
oportunidade de conhecer, mas quero muito. Eles têm uma vida diferente dos
alunos que estudam também nessa escola, na mesma sala e que vivem aqui na
comunidade, aqui na Vila e são vivências particulares, diferentes modos de
vida, leitura de mundo diferente e isso me encanta muito, muito.
Aparentemente, tenha sido esse o motivo pelo qual as árvores estão em diferentes
posições, como acima da escola, nos mostrando a amplitude do lugar e que nem todos
vivem à beira-mar ou são pescadores. Ao desenhar as portas coloridas, ao que parece, a
professora nos remete a diversidade de costumes presentes entre este grupo social.
Arriscamos ainda supor que a ausência de rostos e traços simples para compor os corpos,
dos que considerarmos ser ela e seus alunos, seja para não impor uma única representação
dos seus alunos, deixando que suas “vivências” as identifique enquanto sujeitos.
Ainda no mesmo desenho, encontramos a presença das canoas caiçaras. A canoa
caiçara foi um dos principais meios de transporte e de
sobrevivência do pescador, já que, estando à beira-mar e
sem estradas, a canoa permitia a locomoção entre as praias
vizinhas e o centro da cidade, tal como possibilitar a pesca
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além da praia. Na narrativa da professora Bromélia sobre a identidade caiçara, ela buscou
em sua memória afetiva, uma maneira de se expressar.
Caiçara é quem vive perto do mar, é pesca, é quem aprecia, cultiva a sua a
cultura que é passada de pai para filho, é também quem trabalha na roça, que
planta, que consome. É o que gosta do mar e que vive, nasceu ali, próximo ao
mar, e que cultiva tudo isso. Meu avô é pescador.
16
SPINK, Mary Jane P.. O conceito de representação social na abordagem psicossocial. Cad. Saúde
Pública [online]. 1993, vol.9, n.3, pp.300-308. ISSN 1678-4464. https://doi.org/10.1590/S0102-
311X1993000300017.
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caiçaras, era a única forma de conservar a pesca, passava a ter um local para conserva
refrigerada, venda e distribuição do excedente. Mesmo nos dias atuais, a canoa caiçara
ainda é usada para a pesca artesanal, para se locomover entre as praias vizinhas ou para
dar acesso ao barco ancorado mais distante da praia. Durante nossas observações,
caminhando na orla da praia, nos deparamos com os ranchos construídos na areia e,
embaixo dele, claro, as redes e canoas caiçaras que guardam não só os apetrechos da
pesca, como grande parte das histórias dos caiçaras. É comum encontrar os nativos
embaixo dos ranchos conversando e se escondendo do sol ou da chuva.
Figura 05 - Rancho Caiçara
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coisas sobre a natureza, sobre o mar, que eles aprendem em casa, com os pais, com
família.”17.
...a criança que mora no centro, mesmo estando nessa idade as daqui são mais
puras, são mais, eu acho, que são mais ingênuas. Por exemplo, uma criança
esses dias chegou triste, eu fui perguntar por que que tu tá triste: “ah, pro, é
que o gavião comeu meu pintinho.”. Então achei isso de uma riqueza tão
grande que você não vê numa criança que mora no centro, né.
17
Professora Jussara.
18
DIEGUES, Antônio C. (Org.); ARRUDA, Rinaldo S. V.; SILVA, Viviane C. F.; FIGOLS, Francisca A.
B.; ANDRADE, Daniela. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo: NUPAUB-
USP, 2000.
19
Professora Açucena.
20
DIEGUES, Antônio C. (Org.); ARRUDA, Rinaldo S. V.; SILVA, Viviane C. F.; FIGOLS, Francisca A.
B.; ANDRADE, Daniela. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo: NUPAUB-
USP, 2000.
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tanto da professora como de seus alunos, possivelmente seja um sinal de satisfação pela
presença do espaço escolar na comunidade. Atentamos também que de todos os desenhos
feitos pelas docentes, esse é o único em que os alunos e alunas estão dentro da escola,
pela presença do arco, representando a porta da sala de aula. Em sua entrevista, a docente
insistiu em ponderar sobre as vantagens que a escolarização trouxe e traz às crianças
caiçaras. Para ela, seus alunos caiçaras precisam “aprender o que está inserido no meio,
conviver e aprender também outras coisas fora do meio dele, porque vai agregando outros
saberes.”. Sobre isso, Jovchelovitch21 nos ensina que os saberes comuns estão
incorporados nas ações entre os sujeitos pertencentes a mesma comunidade, “como algo
já dado, como um conjunto de sentidos e recursos já ali existente.”
Assim, a escola seria, no entendimento da professora, um espaço privilegiado para
a aquisição de novos saberes não aprendidos à beira-mar, na convivência com seus
familiares e amigos. Os saberes edificados na comunidade tradicional caiçara,
preenchidos de significados e representações, estabelecem os limites das relações sociais
no interior da comunidade e, portanto, a presença da escola na comunidade caiçara
levaria, para esse grupo social, novos saberes, dessa vez descritos em seu currículo oficial
e no fazer profissional das professoras. Este diálogo entre os saberes do fazer caiçara com
os saberes da escola, convivendo no mesmo espaço, reafirma que não há, como ressalta
Paulo Freire “saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes”22, e é na diferença
entre o que se aprende na praia e o que se aprende na escola que pontes simbólicas são
construídas entre o que acontece dentro e fora da comunidade, tornando a escola um
ambiente de reflexão e de (re)produção de novos saberes e representações. O acesso dos
alunos caiçaras as mais variadas fontes de conhecimento oportunizam que, dotados destes
saberes, possam participar ativamente dos conflitos que enfrentam com a presença da
Unidade de Conservação (U.C.) em seu território, na medida em que a U.C inibe algumas
práticas tradicionais de subsistência desse grupo. Nas observações e conversas com
moradores locais e representantes de associações como a dos pescadores, a ocupação do
território pelos caiçaras se dá por uma fiscalização excessiva por parte da Unidade de
Conservação, levando algumas famílias caiçaras a abandonarem suas casas e seu território
de pertença se mudando para o centro urbano, como pode ser visto no texto de Mauro
21
JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Trad.
Pedrinho Guareshi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
22
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.ª edição.
145
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23
Nóvoa, António. Professores - Imagens do futuro Presente. Lisboa: Educa, 2009.
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eu acho que ficar só no resgate cultural não vai ser suficiente, então ele tem
que ter esse conhecimento acumulado culturalmente, tem que abrir horizontes
para outras coisas, não sair do que eles têm, conhecer o que eles têm, valorizar
o que eles têm, porque é a nossa alma que tá ali, mas ele tem que ter abertura
para outros espaços, não se fechar nisso.
Percebe-se essa crença da professora ao analisar seu desenho. Quando ela afirma
mesclar diferentes elementos provenientes de fontes diferentes, ela torna possível a
convivência saudável do que há na Vila de Pescadores e o que vem
de fora, visto que “o estar junto não é algo que está lá a priori, ou
que emerge já pronto na vida social.”25, mas sim
construído no interior das relações sociais existentes no
contexto. No desenho da docente, identificamos a
24
DIEGUES, Antônio C. (Org.); ARRUDA, Rinaldo S. V.; SILVA, Viviane C. F.; FIGOLS, Francisca A.
B.; ANDRADE, Daniela. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo: NUPAUB-
USP, 2000
25
JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Trad.
Pedrinho Guareshi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
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presença da vassoura de cipó, a esteira de taboa, a pesca, o barco que são elementos
presentes na comunidade caiçara. Na escola da Vila de Pescadores há um projeto
chamado “Tecendo Saberes”, onde o artesanato caiçara é ensinado para as crianças pelos
caiçaras mais velhos, moradores da Fazenda da Caixa, território quilombola, próximo à
Vila de Pescadores de Picinguaba. Esse projeto foi citado em todas as entrevistas e
durante a fala da professora Helicônia. A mesma nos contou que “eles fazem artesanato
e conversam com os artesãos sobre como era o tipo de vida”, essa relação acontece dentro
da escola, durante o período de aulas e com o acompanhamento das professoras. Talvez
essa atividade permita que os saberes da comunidade ocupem os espaços das escolas e
facilitem o diálogo entre o currículo oficial e os saberes caiçaras.
No desenho também podemos encontrar as figuras do avião, do computador e da
televisão, quem sabe, ela quis nos apresentar os recursos tecnológicos que rompem
barreiras físicas e simbólicas e que já estão presentes no cotidiano dos alunos caiçaras,
conectando os “de dentro”, nativos caiçaras, e os “de fora”. Ela nos falou ainda que sua
“mãe é moradora de costeira e nasceu lá”, isso a possibilitou a conhecer “muito da cultura
caiçara, como a construção de artesanato, tipo de comida, tipo de vida que eles tinham,
bem simples. Só que já é uma modificação, já não é mais aquele do tempo da minha
mãe.”.
Possivelmente, por isso os elementos tecnológicos aparecem no desenho. Da
mesma forma, o livro e o lápis, presumivelmente, estejam relacionados à escola e seus
saberes, assumindo, mesmo que simbolicamente, a posição de vínculo, elo, ligação com
a comunidade tradicional, fortalecendo as marcas identitárias dos caiçaras e
possibilitando o diálogo com o Outro, seja este outro, quem quer que seja.
Considerações Finais
Pudemos observar que ser aluno caiçara está muito além de estar matriculado em
uma escola na praia. As narrativas e os desenhos nos possibilitaram ouvir e ver como as
docentes imprimem suas significações no que se refere ao ser caiçara, a comunidade
pesqueira, as ações pedagógicas realizadas diariamente na escola, a relação dos saberes
do currículo e dos saberes sociais e os seus alunos.
Nesse ambiente, repleto de particularidades relacionadas ao contexto social em
que a escola está inserida, as representações sociais encontram um terreno fértil para sua
proliferação. Assim, identificamos que para as professoras, o aluno caiçara é um sujeito
com atributos que o diferenciam de outros grupos sociais “de fora” da comunidade
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Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.ª edição.
PENN, Gemma. Análise semiótica de imagens paradas. In: BAUER, M. W.; GASKELL,
G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002. p. 319-342.
PENN, Gemma. Semiotic analysis of still images. Qualitative researching with text,
image and sound, p. 227-245, 2000.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d7.151.178.
Resumo
O presente artigo visa refletir acerca da ampliação e reorganização da festa do dia 16 de
Julho na cidade de Borda da Mata, sul de Minas, problematizando os diferentes
discursos e disputas da/na festa que contém duas partes: uma dedicada à padroeira do
município, Nossa Senhora do Carmo; e a outra a sua emancipação política
administrativa, isto constitui uma das práticas culturais mais esperadas pelos sujeitos
sociais que residem e/ou visitam a cidade. Metodologicamente trabalhamos com as
narrativas orais que possibilitam investigar as memórias dos sujeitos sociais que
participam das festas em seus diferentes âmbitos, cruzando com outras fontes históricas
como textos legislativos, documentos eclesiásticos, impressa local e obras
memorialísticas.
Palavras-chave: Cidade; Festa; Memórias.
Abstract
This article aims to reflect on the expansion and reorganization of the party on the 16th
of July in the city of Borda da Mata, south of Minas, problematizing the different
speeches and disputes of / at the party, which contains two parts, one dedicated to the
patron saint of municipality, Our Lady of Mount Carmel, and the other to its
administrative political emancipation, which constitutes one of the most expected
cultural practices by the social subjects who reside in or visit the city. Methodologically
we work with oral narratives, which make it possible to investigate the memories of
social subjects, who participate in the parties in their different spheres, crossing with
other historical sources such as legislative texts, ecclesiastical documents, local press
and memorial works.
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do
Sapucaí. Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected]
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Introdução
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que uma vertente da história oral se tenha constituído ligada à história dos
excluídos2.
2
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org). Usos e abusos da História Oral. 5º edição.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
3
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho - Algumas reflexões sobre a ética na
História Oral. In: Revista Projeto História. São Paulo: PUC, nº 15, Abril de 1997.
153
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Festa é um termo vago, derivado do senso comum, que pode ser aplicado a
uma gama de situações sociais concretas. Sabemos todos, aparentemente, o
que é uma festa, usamos a palavra no nosso dia-a-dia e sentimo-nos capazes
de definir se um determinado evento é, ou não, uma festa. Contudo, essa
concepção quase intuitiva de festa choca-se, frequentemente, com a
4
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral – memórias, tempo, identidades. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
5
PEREZ, Léa Freitas. Antropologia das efervências coletivas. In: PASSOS, Mauro. A festa na vida:
significados e imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002
154
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
6
GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa, trabalho e cotidiano. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris
(Orgs.). Festa: Cultura & Sociabilidade na América Portuguesa, vol. II, São Paulo: Hucitec: Ed. da USP:
Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.
7
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: História da Festa de coroação de rei
congo. Belo Horizonte: Humanitas, 2002.
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Vemos a cidade como o lugar em que os sujeitos sociais dinamizam o seu viver,
buscamos entender a cidade não apenas como algo estrito ao físico, ao bruto, ao
concreto, ao asfalto, prédios, ruas, casas. Mas sim, a interação dos sujeitos com estes
espaços que, por conseguinte, resulta nas marcas ao longo da história.
A cidade é constituída como espaço vivido de diferentes maneiras, por diferentes
sujeitos, muitas vezes de forma conflituosa. Neste espaço de vivências, valores,
sentimentos, tensões, conflitos são manifestados e reafirmadas as lembranças e
esquecimentos. Isto é observado pelo fato de a atuação dos grupos hegemônicos que
trabalham na organização e manutenção da cidade apresentarem uma dinâmica do
lembrar/esquecer, materializada nos espaços urbanos em prol de um discurso pautado
no ideário de progresso.
Diante da realização da festa, anualmente, compreendemos a formulação de
diferentes dizeres que são engendrados pelo poder público local, como a igreja, o
comércio, pelos visitantes. Assim, deparamos não com um único discurso, mas sim com
diferentes versões.
8
FENELON, Déa Ribeiro (Org.). Cidades. São Paulo: Olho D’Água, 1999.
9
GUIMARÃES, José. Borda da Mata: Notas para a sua história. Pouso Alegre: Tipografia da Escola
Profissional, 1958.
156
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10
Senhor João Bertolaccini. Em Borda da Mata, 24 de maio de 2011. Entrevista concedida a Cleyton
Antônio da Costa.
11
GUIMARÃES, José. Borda da Mata: Notas para a sua história. Pouso Alegre: Tipografia da Escola
Profissional, 1958.
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festiva junto à festa da padroeira, Nossa Senhora do Carmo, promovida pela Igreja
Católica.
João Bertolaccini afirma - em sua fala - que a emancipação do lugar se deu em
sete de setembro, pois ele se apoiou no decreto que promove Borda da Mata de distrito a
sede de município. Outro ponto indicado foi de que a “festa era da igreja”, remonta
desde meados do século XIX quando se iniciou o arraial ao redor do oratório dedicado à
Nossa Senhora do Carmo.
A mudança da data do aniversário do município consiste em ações pautadas em
interesses diversos, como manter uma atração “já acostumado pelo povo” e legitimar
outro evento festivo, junto a festa da padroeira, ligado à Prefeitura Municipal. Nisto
notamos a Câmara Municipal em sintonia com a administração política do município.
Lembramo-nos da reflexão de Fenelon ao abordar que:
Como qualquer experiência humana, a memória é também um campo minado
pelas lutas sociais, campo de luta política, de verdades que se batem, no qual
os esforços de ocultação e de clarificação estão presentes na disputa entre
sujeitos históricos diversos, produtores de diferentes versões, interpretações,
valores e práticas culturais. A memória histórica constitui uma das formas
mais poderosas e sutis de dominação e legitimação do poder. Reconhecemos
que tem sido sempre o poder estabelecido que definiu, ao longo do tempo
histórico, quais memórias e quais história deveria ser consideradas para que
fosse possível estabelecer uma “certa” memória capaz de cunhar uma
História “certa”12.
Prezado Senhor –
12
FENELON, Déa Ribeiro. Memórias profissionais. Educação em Revista. Belo Horizonte, n. 47, p.
127-134, jun. 2008.
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Então foi, foi eu acho que foi, assim, uma escorregada, dividi a data da
cidade com a festa de Nossa Senhora do Carmo, ajuntaram. [...] o projeto foi
pra Câmara Municipal que deixasse numa só. Eu fui contra,eu fui contra,
lutei para que não desmembrasse. [...] Mas infelizmente perdi, porque eu
achava que a Borda da Mata, a prefeitura tem muita condição de fazer essa
festa maravilhosa que eles fazem não misturando com a festa religiosa que
era a coisa mais linda que nóis tinha dentro de Borda da Mata. [...] Não
conciliam. Eu vou falá uma coisa aqui, deve até... deve até o povo de Borda
13
CÂMARA MUNICIPAL DE BORDA DA MATA. Projeto nº 17/89 “Dispõe sobre a data da
comemoração da cidade”. Localizado na pasta “1989” do Acervo da Câmara Municipal de Vereadores de
Borda da Mata – MG.
159
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14
Senhora Terezinha Pires Ribeiro. Em Borda da Mata, 23 de janeiro de 2014. Entrevista concedida a
Cleyton Antônio da Costa.
160
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dinâmica já estabelecida aos longos dos anos em Borda da Mata. Logo, observamos que
não ocorre uma “mistura”, ou seja, entrelaçamentos entre as práticas, visto que as
mesmas têm sentidos diferentes. Com isto, o festejar da igreja é tido como referência
pelo fato de respeitar suas “comemorações e horários.
Trazemos para este diálogo, dessa maneira, a interlocução do Padre Luis Carlos
Osti, então vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo que descreve as relações
firmadas entre a Igreja e a Prefeitura Municipal, à época.
A partir dessa exposição, percebemos que a fala dele remete à data da festa
cívica, não tendo clareza desta, pois como vigário paroquial passou a residir em Borda
da Mata no ano de 2012 e definir a união das comemorações no mesmo dia em um
acordo. Porém, esta visão foi dada “numas conversas que a gente ouve na cidade”.
Nesse ínterim, recorre aos diálogos informais estabelecidos com algumas pessoas da
cidade de Borda da Mata, as quais não quis mencionar, ou seja, sua compreensão é
determinada por diferentes memórias que foram compartilhadas e possibilitaram o
entendimento dos meandros da constituição festiva para o dia 16 de julho.
Quanto ao acordo, este foi feito entre o prefeito municipal, Francisco Melo, e o
pároco emérito Monsenhor Pedro Cintra, com intuito de “unificar” as duas festas e
delimitar as respectivas atividades, em que negociar as práticas para as duas festas
exigia estabelecer os devidos espaços. Uma religiosa, com gestos e ações ditadas pelas
invocações e orações. A outra, cívica, voltada às atrações musicais, barracas de bebidas,
comidas e variados produtos e brinquedos chamados de “parquinho”.
Como afirma Hobsbawm a respeito de cenáris como esses, “as novas tradições
podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com
15
Padre Luis Carlos Osti. Em Borda da Mata, 15 de janeiro de 2014. Entrevista concedida a Cleyton
Antônio da Costa.
161
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16
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 6ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2008.
17
CÂMARA MUNICIPAL DE BORDA DA MATA. Projeto nº 17/89 “Dispõe sobre a data da
comemoração da cidade”. Localizado na pasta “1989” do Acervo da Câmara Municipal de Vereadores de
Borda da Mata – MG.
162
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18
Idem.
163
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Aqui vemos dois festejos com dinâmicas diferentes que ocorrem no mesmo dia,
proporcionando um complexo festivo que vai da religiosidade ao divertimento e lazer.
19
CÂMARA MUNICIPAL DE BORDA DA MATA. Projeto nº 17/89 “Dispõe sobre a data da
comemoração da cidade”. Localizado na pasta “1989” do Acervo da Câmara Municipal de Vereadores de
Borda da Mata – MG.
20
Livro do Tombo, nº 2, 1990, p. 194. Acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo. Consulta
gentilmente cedida pelo pároco Monsenhor Vonilton Augusto.
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Para a manutenção das opções de lazer, que são os shows de cantores de renome
regional e nacional, que a liderança católica negou, via-se necessário um suporte legal.
Portanto, para a realização destes shows é preciso um planejamento financeiro, devido
aos custos do contrato feito com o artista/cantor desejado, montagem da estrutura do
palco, seguranças e outros elementos que são empregados nesta atividade.
Qual interesse em manter e oferecer shows em praça pública? Em uma
perspectiva financeira, qual o lucro para os cofres municipais em custear shows em que
não há venda de ingressos?
Nota-se que o primeiro intuito do poder público local junto a Câmara de
vereadores é o estabelecimento da visibilidade e notoriedade da cidade de Borda da
Mata diante das outras cidades da região. A constituição de um mecanismo que
possibilitasse o evidenciamento do trabalho do governo municipal para com os seus
munícipes, ou seja, trazendo cantores/artistas para oportunizar momentos de lazer a sua
população e, do mesmo modo, aos visitantes das cidades vizinhas.
Nesse sentido, no dia 05 de abril de 1991 é promulgado a Lei Orgânica do
Município de Borda da Mata e o seu artigo 3º afirma:
165
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
22
BERTOLACCINI, João. A Emancipação Político-Administrativa de Borda da Mata. Jornal Galeria
do Comércio, 2007, p. 01.
166
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comerciantes. O jornal foi patrocinado por vários comércios da cidade, com distribuição
gratuita, e o mês de circulação foi em agosto, ou seja, o mês após a festa, que é em
julho.
Atentos às palavras de Cruz e Peixoto entendemos a Imprensa:
23
CRUZ, Heloísa Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina de Historiador: Conversas
sobre História e Imprensa. Revista Projeto História, nº 35, São Paulo: EDUC, 2007.
24
BERTOLACCINI, João. A Emancipação Político-Administrativa de Borda da Mata. Jornal Galeria
do Comércio, 2007, p. 01.
25
Senhor João Bertolaccini. Em Borda da Mata, 24 de maio de 2011. Entrevista concedida a Cleyton
Antônio da Costa.
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De maneira irredutível, observamos que ele elenca que esta é a data certa.
Segundo tal indivíduo, compreendemos que “as pessoas são um amálgama de muitas
experiências que se constituem e se transformam na vida diária, vivendo e se
comunicando através de fronteiras e transitando entre elas”26,. Vemos em Bertolaccini
a constituição de um senhor voltado para a história oficial da cidade, tanto que compilou
uma publicação referente à história do município.
Em outras palavras apreendemos que isto se deu com olhar voltado para o
percurso histórico do município, e assim observamos que tal aspecto passou a ser
praticado nas datas que trazem significações para esta história e, com isto, percebemos
que há questionamentos e críticas quanto a realização da festa organizada pela
Prefeitura Municipal diante dos requisitos ligados à memória oficial bordamatense.
Referente à data da emancipação, deparamos com a narrativa de Claret Freitas,
que elucida: “Não gostei, não gostei disto, não gostei de mudar a festa. O dia tem que
ser respeitado, foi dia 16 de novembro que foi a criação do município. [...] Não, não
tinha nada. Não se comemorava e fizeram isto”27.
Tanto Claret quanto Bertolaccini consideram que a emancipação da cidade deve
ser comemorada na data, tida por eles como, correta. Assim, a festa da cidade não
deveria ser mudada para o dia da Padroeira. A discordância entre ambos é a data da
emancipação.
Em suma, a narradora alega o respeito que deve ser dado à data da criação do
município, ou seja, a sua devida comemoração correspondente àquela temporalidade,
tida como oficial, da criação do município. Mas, mesmo exigindo a volta para a data
citada, ela apresenta que anteriormente à constituição da Lei Orgânica não havia
comemorado tal fato.
Percebemos a manipulação do grupo político em Borda da Mata empenhado em
organizar um festejo que evidenciasse o poder público, procurando assim, de maneira
estratégica, conectar o aniversário da cidade ao dia de sua padroeira configurando um
dia com dois festejos.
A parte da festa com shows, barracas de produtos diversos como calçados,
roupas, comidas e bebidas, e também os brinquedos conhecidos como “parquinho”
26
KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: Cultura e o sujeito na história. In:
FENELON, Déa; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun (Org).
Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004.
27
Senhora Claret Delfina de Freitas Rocha. Em Borda da Mata, 29 de janeiro de 2014. Entrevista
concedida a Cleyton Antônio da Costa.
168
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28
Jornal Tribuna Popular, ano V, nº 53, 30/07/2001, p. 03.
169
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Uma estrutura específica é organizada para os dias de festas, com o palco para os
shows e tendas que proporcionam aos frequentadores certo conforto, pois este período é
marcado pelo frio e, às vezes, por chuva.
Borda da Mata tem, nos dias da festa, a produção de outro cotidiano, marcado
pela oportunidade de assistir a diferentes shows em praça pública, gratuitamente, e da
mesma forma, a opção de consumir vários produtos, sendo grande parte das barracas
dos comerciantes de diferentes lugares.
Analisando a festa por um viés econômico, comercial, pode-se notar um cenário
marcado por reivindicações, como no artigo “‘Festa da Cidade’ não é festa da cidade”
que elabora uma crítica norteada por questões dos comerciantes informais, denominados
“barraqueiros”:
Vamos analisar: O comércio reclama que vendeu pouco porque a festa saiu
da praça. Mas esquecem que os barraqueiros chegam de fora e levam o
dinheiro da cidade, deixando-os nos meses seguintes quase sem vender nada.
Outro dia, um contador da cidade me disseram: “Vamos passar por três
meses difíceis em Borda, ninguém terá dinheiro para nada”. Por quê? Será
que é só que gastou na festa do peão e nas barracas? Se nesta época não fica
dinheiro na praça então o comércio, que é da gente da terra, tem que fazer
alguma [sic] para melhorar esta situação. Se o povo gasta nas barracas,
porque não pode gastar comprando produtos daqui? Dizem que vendem com
preços melhores. É só os comerciantes praticarem um preço melhor, pelo
menos, durante a festa. Sem contar que os produtos vendidos nas barracas,
com raras exceções, são de segunda linha.29
29
EDITORIAL. “Festa da cidade” não é festa da cidade. Jornal Tribuna Popular, Ano II, nº 18,
15/08/98, p. 02.
30
Idem.
170
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Atrapalha a venda. Por exemplo, quem tem armarinho, aí, vende calça, estas
coisas. O povo corre tudo pra barraca pra comprar lá. E as vezes até por preço
até produto até muito mais ruim, né? E eles compram. Tem mais diversidade
que o próprio comércio, tinha. O comercio aqui não era grande. Mais, os
comerciantes achavam ruim, porque caía a venda deles, né?31
Bertolaccini justifica que a população recorre aos comércios informais nos dias
de festa, pois o comércio bordamatense “não era grande” e não apresenta a variedade e
diversidade que os “barraqueiros” possibilitam. O narrador pauta sua fala no passado,
isto é percebido com os verbos apontados no pretérito. Mas enfatiza que: “atrapalhava o
comércio é estas barracas, que é até hoje”.32 Por ser um comerciante de fertilizantes
para a agricultura, agrega-se aos outros comerciantes locais, quando denomina “estas
barracas”, demonstrando um tom de que as mesmas constituem um empecilho e/ou
obstáculos para a dinâmica econômica em Borda da Mata nos meses que seguem após o
mês de julho.
Os comércios informais que constituem esta parte na festa da cidade se
organizam na Avenida Wilson Megale, vendem vários produtos como roupas, calçados,
brinquedos, artigos para a cozinha e várias miudezas, como já evidenciamo
Imagem 02 – Comércio nas “barracas” no dia de festa.
31
Senhor João Bertolaccini. Em Borda da Mata, 24 de maio de 2011. Entrevista concedida a Cleyton
António da Costa.
32
Idem.
171
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
“Porque a cidade tá muito movimentada, se tem renda apesar que a renda não
fica na cidade, a renda fica pra quem monta a barraca. A festa tem tradição de ter muitas
barracas, tanto de comida, de venda de roupas, estas coisas.”33 Logo, diante da fala do
jovem Juliano dos Santos, que enfatiza a movimentação de pessoas ocorrida devido à
festa, constatamos que a renda gerada pelas festividades realizadas em julho não
permanecem na própria cidade, a renda gerada pelas vendas de produtos fica “pra quem
monta a barraca”.
E o “barraqueiro” tem que pagar pela utilização do espaço no período festivo,
sendo este capital revertido para o pagamento das atrações e estrutura da festa conforme
observação do balancete da festa de 2009: “1-Total das despesas foi de R$ 179.559, 24,
o total das receitas com a venda de espaços para utilização das barracas foi de R$
123.601,55, restando um déficit de R$ 55.957, 69, que a Prefeitura pagou com outros
recursos.”34
O que é notório é que a festa movimenta altos gastos, como no caso de ano de
2009, em que houve uma diferença de R$55.957,69. Diante dessa constatação
indagamos saber se é viável realizar uma festa que ainda terá utilização de outros
recursos para quitar as dívidas?
33
Juliano dos Santos. Em Borda da Mata, 03 de março de 2012. Entrevista concedida a Cleyton António
da Costa.
34
Jornal Tribuna Popular, Ano XIII, nº 176, 31 de julho de 2009, p. 08.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
173
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
35
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2000
36
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, cidade e trabalho. Bauru, SP:
EDUSC, 2002.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Desse modo, a relação baseia-se entre o sujeito social e o espaço que é ocupado.
O ocupar não se restringe somente a estar ali, mas em interagir diferentes modos, estes
que possibilitam atribuir significados aonde se ocupa.
O centro de Borda da Mata se modifica com a proximidade da festa. Isto
corresponde também na mudança de como interagir com tal espaço. Durante o ano ele
atua como ponto de convergência de serviços e compras, mas no período festivo
arquiteta-se como um lugar de lazer, diversão.
A questão de atribuir os significados a ele se deve pela experiência e reflexão
que é promovida diante dos dias de festa. Adolfo Cabral Júnior estabelece em sua fala
um contraponto histórico ao referir acerca das praças centrais.
É exatamente entre as duas praças, certo? Acabou-se tudo, neste lugar que é...
neste lugar que a... até hoje é feito o... é feito o palco. Então ali, quando faz o
palco ali, historicamente, falando, aquilo é a substituição, né? Se uma coisa
familiar que a gente tinha, passa uma coisa mais controlada pelo poder
público, né? E ai então isto... esta festa foi ela tomando essa coisa que eu
acho meio gigantesca.37
37
Adolfo Cabral Junior. Em Borda da Mata, 03 de março de 2012. Entrevista concedida a Cleyton
Antônio da Costa.
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Algumas Considerações
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Referências Bibliográficas
FENELON, Déa Ribeiro (Org.). Cidades. São Paulo: Olho D’Água, 1999.
GUIMARÃES, José. Borda da Mata: Notas para a sua história. Pouso Alegre:
Tipografia da Escola Profissional, 1958.
KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: Cultura e o sujeito na história.
In: FENELON, Déa; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de;
KHOURY, Yara Aun (Org). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho
D’Água, 2004.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, cidade e trabalho.
Bauru, SP: EDUSC, 2002.
PEREZ, Léa Freitas. Antropologia das efervências coletivas. In: PASSOS, Mauro. A
festa na vida: significados e imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
178
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d8.p.179.204
1
Doutorando e Mestre em História (2019) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/ASSIS). E-mail:
[email protected]
179
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Introdução
O que é escrito, ordenado, factual nunca é suficiente
para abarcar toda a verdade: a vida sempre
transborda de qualquer cálice.
Boris Pasternak
2
PAULA, Sara Espírito Santo de. MOREIRA, Benedito Dielcio. Facebook: o prolongamento do “tempo
de vida” do personagem Felix, de Amor à Vida. In: Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação. 2016, p. 4. Disponível em:
http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1377-1.pdf. Acesso em 18/02/2020.
3
Doutor em Comunicação pela UFRGS. Professor da Universidade Federal do Pampa, Campus São
Borja-RS. Pesquisador do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel).
4
Pesquisador em produção cultural na Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja.
5
O Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (OBITEL) é uma rede internacional criada em
2005 e formada por grupos de pesquisa de 12 países. Seu objetivo é traçar o diagnóstico e as perspectivas
da ficção televisiva por meio do monitoramento anual e da análise comparada, quantitativa e qualitativa,
dos vários formatos do gênero. Informações obtidas em: < https://blogdoobitel.wordpress.com/>. Acesso
em 27/04/2020.
180
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
6
GRIJÓ,Wesley Pereira; SOUZA, Kairo Vinicios Queiroz de. A Telenovela na Internet: as estratégias
do autor Aguinaldo Silva. 2014. Disponível em:
<http://www.abciber.org.br/simposio2014/anais/GTs/wesley_pereira_grijo_121.pdf>. Acesso em:
27/04/2020.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
7
Informações obtidas em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/brasil-tem-116-milhoes-de-
pessoas-conectadas-a-internet-diz-ibge.ghtml. Acesso em 25/11/2018.
8
Informações obtidas em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/cresce-percentual-de-
brasileiros-que-assistem-tv-e-navegam-na-internet-ao-mesmo-tempo-diz-pesquisa.ghtml. Acesso em 25
nov. 2018.
182
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
While Mr Wyllys has been campaigning for a Globo gay kiss for years, this
time he was joined by hundreds of thousands of Facebook and Twitter users
across Brazil, who used the hashtag “beijafelix” (“kiss Felix”) to put pressure
on the network’s editors. Armed with the second-biggest Facebook
community in the world, Brazilians have turned to social media to challenge
the country’s social and political status quo, launching mass protests last year
and threatening further demonstrations ahead of presidential elections in
October.13
9
“Tag” em inglês quer dizer etiqueta. As tags, na internet, são palavras que servem como uma etiqueta e
ajudam na hora de organizar informações, agrupando aquelas que receberam a mesma marcação,
facilitando encontrar outras relacionadas. Atualmente, na internet, as tags são relacionadas a diferentes
conteúdos, como páginas de sites, postagens de blogs, fotos, programas para download, links e
marcadores e até mesmo nas micro-mensagens do twitter e nos sistemas de busca como o Google. [Fonte:
https://www.tecmundo.com.br/navegador/2051-o-que-e-tag-.htm]. Acesso em 25/11/2018.
10
Treding Topics ou TT's são uma lista em tempo real das palavras mais postadas no Twitter em todo o
mundo. São válidos para essa lista as tagtemas e nomes próprios. A lista é exclusiva para usuários do
Twitter, ou seja, é necessário estar logado para ter acesso aos Treding Topics. [Fonte: https://twitter-
brasil.hleranafesta.com.br/o-que-sao-trending-topics.htm]. Acesso em 25/11/2018.
11
Ver mais em: PORTAL LITORAL PB. #BeijaFélix: Jean Willys faz campanha por beijo gay em
‘Amor à Vida’. Disponível em: <http://www.portaldolitoralpb.com.br/beijafelix-jean- wyllys-faz-
campanha-por-beijo-gay-em-amor-a-vida/>. Acesso em: 29/11/2018.
12
É um jornal britânico de publicação diária em língua inglesa. Fundado em Londres, em 1888, pelos
jornalistas James Sheridan e Horatio Bottoml. Atualmente, possui uma tiragem diária de 185.747 mil
exemplares. Informações obtidas no portal do Finantial Times – disponível em: <
https://aboutus.ft.com/en-gb/>. Acesso em 18/02/2019.
13
Ver mais em: FINANCIAL TIMES. Gay kiss in soap opera Amor à Vida is landmark moment for
Brazil. Disponível em: < ttps://www.ft.com/content/3e63e502-8f66-11e3-9cb0-00144feab7de>. Acesso
em: 25/11/2018.
183
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
A matéria do periódico britânico ainda salientou o fato do beijo gay ser uma
conquista num país que, embora seja transgressor com o carnaval, ainda é conservador
quando o assunto é homossexualidade:
When the two men kissed during the finale of Brazil’s hit soap opera Amor à
Vida last week, the Latin American country came to a standstill. It was the
first time Brazil’s powerful Globo television network had aired a kiss
between two male characters in its 49-year history – a turning point for a
country that is still deeply conservative in spite of a reputation for carnival
and skimpy bikinis. The controversial scene has since divided the nation.
Evangelical politicians have rallied against Globo, filing a lawsuit against the
network, while human rights campaigners have heralded the kiss as a victory
for social media – Facebook and Twitter campaigns are credited with forcing
Latin America’s biggest television monolith to air the scene.14
14
Ver mais em: FINANCIAL TIMES. Gay kiss in soap opera Amor à Vida is landmark moment for
Brazil. Disponível em: < ttps://www.ft.com/content/3e63e502-8f66-11e3-9cb0-00144feab7de>. Acesso
em: 25/11/2018.
15
Ver mais em: FINANCIAL TIMES. Gay kiss in soap opera Amor à Vida is landmark moment for
Brazil. Disponível em: < ttps://www.ft.com/content/3e63e502-8f66-11e3-9cb0-00144feab7de>. Acesso
em: 25/11/2018.
16
Podemos dizer que o conceito de recepção é criado a partir da Poética, de Aristóteles entre os anos 335
a.C. e 323 a.C. haja vista que em seu conjunto de anotações sobre a arte e a poesia da referida época. O
filósofo grego (aluno de Platão e mestre de Alexandre, o Grande) demonstrou preocupação no que tange à
qualidade de uma obra artística a partir da ótica e, por conseguinte, das experiências vivenciadas pelo
receptor, ou seja, Aristóteles tinha o cuidado de trazer o receptor como elemento integrante de sua obra.
184
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
17
PORTELLI. A. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 9.
18
Leonel Carfi é natural de Jacarezinho (PR), tem 22 anos de idade, negro, foi criado pela avó (já
falecida) e, atualmente, mora sozinho numa casa simples na comunidade Nossa Senhora das Graças, em
Jacarezinho (PR). Leonel concluiu apenas o Ensino Fundamental, mas, por sua influência, militância e
reconhecimento político alcançou um cargo comissionado na atual gestão municipal da cidade: é diretor
da Secretaria de Assistência Social de Jacarezinho. Ele não esconde o desejo de disputar, como vereador,
o próximo pleito eleitoral e, ainda, alega que muitas pessoas de seu bairro afirmam querer vê-lo no
legislativo do munícipio, ideia que muito lhe agrada, embora afirme que – por ora – não possui plena
convicção de uma futura candidatura de sua parte. A entrevista com Leonel ocorreu no dia 03 de
novembro de 2017. Ele optou por vir até mim, em minha residência. Alegou que se sentiria melhor e
muito mais à vontade. Decisão que, prontamente, respeitei e aceitei.
19
Diego Babinski é natural de Jacarezinho (PR), tem 26 anos, negro, após a morte da mãe e de se tornar
independente financeiramente, opta por ir morar sozinho e, posteriormente, com um amigo. Atualmente,
está afastado do trabalho por um problema na coluna vertebral, recebendo um auxílio-doença do INSS.
Cursa o Ensino Médio através da modalidade EJA (Educação para Jovens e Adultos). É fundador da
ONG Núbia Rafaela Nogueira, no município de Jacarezinho (PR), sendo “a única do Norte Pioneiro” do
Paraná – como ele orgulha em dizer. Conheci-o a partir de um amigo em comum. Nossa entrevista
aconteceu no dia 16 de novembro de 2017, às 19 horas, em minha residência. Assim como o entrevistado
anterior, Diego, também, optou por vir até a minha residência, alegando ser mais viável para ele. Algo
que respeitei, recebendo-o em meu escritório com muito respeito e gratidão.
20
Rodrigo Silva (nome e sobrenome fictício) é natural de Ourinhos (SP). Atualmente, reside em
Jacarezinho (PR), tem 35 anos, branco, reside com a mãe. É pós-graduado (lato sensu), formado em
Ciências Biológicas. Trabalha como professor de biologia na rede pública estadual do Paraná. Conheci o
depoente quando trabalhamos juntos numa mesma escola. Ao tomar conhecimento de sua sexualidade e
de que gostava de telenovelas, convidei-o para participar da pesquisa. A entrevista foi realizada no dia 17
de novembro de 2017, também, em meu escritório, conforme preferiu o entrevistado.
21
Ana Lúcia da Silva é natural de Jacarezinho (PR), tem 18 anos, reside com a mãe e a companheira.
Possui Ensino Fundamental Incompleto. Desempregada. A indicação de Ana Lúcia deu-se por intermédio
de sua esposa, Jaqueline. Embora tenha pouco estudo, demonstra possuir um vasto conhecimento, pois ela
fala com tamanha propriedade sobre tudo que envolve a homossexualidade, algo que, aparentemente,
conquistou com seu conhecimento de mundo, de vida, de suas leituras e militância. A entrevista foi
realizada em 30 de novembro de 2017. A pedido da depoente gravamos a entrevista no Morro das
Antenas, em Jacarezinho (PR).
22
Jaqueline Maciel é natural de Jacarezinho (PR), tem 27 anos, reside com a companheira, Ana Lúcia, e a
sogra. Possui Ensino Médio Profissionalizante. Desempregada. Conheço a depoente desde criança. Na
185
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
O contato inicial24 com Leonel Carfi se deu por intermédio de uma ex-vereadora
de Jacarezinho/PR. O que me chamou atenção ao vê-lo foi, sobretudo, o de ser um rapaz
jovem, mas com muita vontade para melhorar a qualidade de vida de sua comunidade: o
bairro periférico Nossa Senhora das Graças.
Em decorrência desse conhecimento prévio, ele foi escolhido para colaborar com
a pesquisa. Expliquei a ele no que consistia a investigação e esclareci alguns pontos no
que diz respeito à metodologia da história oral25. Exibi para o entrevistado as cenas de
representações da homossexualidade e, conseguintemente, do beijo gay nas telenovelas
América (2005), Amor à Vida (2013-2014) e Babilônia (2015), inclusive, observei que
ele se emocionou com a cena do beijo gay entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago
Fragoso) na telenovela Amor à Vida. No entanto, durante a entrevista,26 ele não quis se
aprofundar nesse assunto, dizendo apenas que acha “linda qualquer história de amor
impossível” e que por isso havia se emocionado.
O entrevistado seguinte foi Diego. Expliquei a ele no que consistia o cerne desta
pesquisa e também exibi a ele as cenas de personagens homossexuais, juntamente, com
a exibição de cenas com beijo gay nas telenovelas apontadas.
fase infantil, convivemos no mesmo espaço, fazendo as mesmas atividades numa escola infantil e,
posteriormente, numa igreja evangélica. Quando soube que ela deixou de ser evangélica, separou-se do
marido, revelou-se lésbica e que estava morando com outra mulher, pensei que seria muito proveitoso
registrar seu depoimento. A entrevista foi realizada no mesmo dia da entrevista de sua companheira, em
30 de novembro de 2017, também no Morro das Antenas, em Jacarezinho (PR).
23
Gustavo Simão (nome e sobrenome fictícios), é natural de Andirá (PR), tem 19 anos, reside sozinho. É
universitário e bolsista de Iniciação Científica. O depoente é uma pessoa da qual tinha proximidade
devido estudarmos na UENP, em Jacarezinho. Durante o período em que estudávamos na UENP,
tínhamos contato dentro e fora do Campus da Universidade, partindo daí o convite para participar da
pesquisa. A entrevista foi realizada em 19 de novembro de 2017, em meu escritório, a pedido do
depoente.
24
Durante o pleito municipal de 2014,ih tive ainda mais contato com Leonel. Na ocasião, pertencíamos
ao mesmo grupo eleitoral, a chapa Tina e Lú – Por uma Jacarezinho Vencedora (PT e PSB), porém, no
meio da campanha eleitoral, Leonel entristece com o andamento da campanha que ora apoiava e
surpreende o nosso grupo político indo para a oposição, o que desencadeou muitas críticas ao rapaz. No
entanto, continuou com sua premissa de lutar em prol de sua comunidade, exigindo do candidato da
oposição um compromisso com seus pares.
25
A história oral é um recurso moderno no campo historiográfico (embora seja, também, uma
metodologia interdisciplinar) que utilizamos quando pesquisamos assuntos que transitam nas esferas da
memória, de identidade e, por conseguinte, de sociabilidade. O historiador José Carlos Sebe B. Meihy
afirma que passou a ser utilizada com maior frequência após a Segunda Guerra Mundial, momento em
que possibilitou a criação dos gravadores. Assim, “[...] a história oral passou a ser um mecanismo para
validar as experiências que não estão quase sempre registradas em documentos escritos e/ou então quando
encontram-se registradas em documentos escritos elas têm outra mensagem, outra dimensão que quase
sempre são de valor subjetivo. A história oral passa a ser, portanto, um tipo de narrativa onde a entrevista,
particularmente, gravada ou filmada tenham um fundamento de registro em cima de um suporte material
que varia, portanto, das possibilidades da documentação escrita.”.
26
As entrevistas produzidas na presente pesquisa foram realizadas com um gravador de voz para registrar
os depoimentos proferidos por nosso grupo de depoentes/telespectadores homossexuais.
186
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Devido ao fato de Diego ser um jovem negro que vem lutando para combater a
homofobia em Jacarezinho (PR), atuando na militância gay de uma cidade de 40 mil
habitantes que, apesar de ser uma cidade considerada polo estudantil, ainda mantém
fortes traços de conservadorismo e preconceito enraizado em sua população, o
entrevistado apresenta uma visão crítica das representações homossexuais na
teledramaturgia.
Rodrigo não se agrada com as representações homossexuais televisivas que ele
considera como estereotipadas haja vista que prefere representações do homossexual
discreto, por acreditar que está mais próximo do que acontece em nossa realidade.
O último entrevistado homem foi Gustavo Simão (pseudônimo). Pensando nesse
conhecimento aliado à pouca idade, senti necessidade de entrevistá-lo para essa
pesquisa. O resultado foi algo muito surpreendente, porque ele viu as cenas de
homossexualidade e, posteriormente, de beijo gay nas telenovelas da TV Globo, sob
uma perspectiva racional e mercadológica.
Passando para as narradoras femininas, cabe esclarecer que elas formam um
casal. O contato com Ana Lúcia ocorreu por intermédio de sua esposa, Jaqueline (a
próxima depoente). Quando eu convidei Jaqueline para participar de minha pesquisa,
ela sugeriu que convidasse, também, sua esposa, posto que ela sempre foi uma
homossexual engajada em assuntos sociais. Ana Lúcia aceitou o convite, mas com uma
ressalva: a gravação deveria ocorrer no alto do Morro das Antenas, em Jacarezinho
(PR), pois lá seria “o melhor lugar” para ela refletir e falar sobre esse tema. É lá que
Ana gosta de ir quando quer se sentir em paz, quando quer estudar, quando quer tomar
seu “chá”.
Durante a entrevista, Ana falou por quase 16 minutos sobre o que é ser lésbica:
Eu me definir sexualmente ainda é uma coisa muito complicada porque há
um ano e meio eu me descobri transexual não-binário27, então se eu me
definir lésbica eu vou tá me reafirmando mulher, mas se eu não me dizer
lésbica então o que eu sou? Mas por todas as dúvidas... lésbica. [sic] 28.
27
Que não se reconhece em nenhum dos estereótipos de gênero correntes nos discursos dominantes, ou
seja, nem homem e nem mulher.
28
ANA LÚCIA, entrevistada em 30/11/2017.
187
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
[...] Com a representação eles vão conseguir mostrar o que é o amor [entre
duas pessoas do mesmo sexo]. Antes de ir lá representar essa minoria que nós
somos hoje, nós somos reduzidos a isso. Eles tão querendo mostrar o que há
de mais valioso dentro de cada um de nós, que é o amor independente de sua
etnia, sexualidade... E, eu acho isso muito plausível. [sic]29.
Através de seu depoimento, a moça passa uma lição de coragem para enfrentar
com a cabeça erguida o preconceito existente na sociedade. Não faz questão de ser
aceita pela sociedade, mas exige o seu direito em ser respeitada.
29
ANA LÚCIA, entrevistada em 30/11/2017.
30
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988.
31
ANA LÚCIA, entrevistada em 30/11/2017.
188
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A nossa última depoente é Jaqueline. A moça teve durante boa parte de sua vida
os estereótipos definidos pela sociedade: terminou o ensino médio, trabalhava, era
evangélica praticante, casou-se com um rapaz que tinha um emprego fixo. Entretanto,
ela sempre soubera que sentia atração física e sexual por outras mulheres, mas pela
criação religiosa acreditava ser pecado e que Deus a libertaria desses “desejos carnais”.
Todavia, chega um momento de sua vida em que começa a sofrer agressões físicas,
verbais e psicológicas do marido. A partir daí sua vida muda, pois ela rompe sua união
matrimonial, sai de casa, se assume bissexual (somente após conhecer a atual
companheira que se define como lésbica) se envolvendo publicamente com outras
mulheres. Sai da igreja e passa a frequentar terreiros de candomblé, promovendo uma
reviravolta em sua vida. A depoente pondera que há uma urgente necessidade de haver
nas telenovelas brasileiras uma lésbica negra e pobre sendo representada. De seu ponto
de vista, dessa maneira, haveria uma representatividade para ela: “Queria ver uma
lésbica negra [nas telenovelas] porque você não vê. Mas eu queria ver uma lésbica
negra, forte mesmo, uma mulher que mostrasse que tá ali e, é isso aí... [sic]32”.
A partir da fala da entrevistada, percebe-se não somente a queixa e falta de
representatividade de Jaqueline, mas à inexistência de uma lésbica negra, pobre e
batalhadora que tenha sido representada nas telenovelas da TV Globo.
Conforme aponta a historiadora Verena Alberti33, o uso da metodologia da
História Oral é essencial para analisarmos nossas fontes orais uma vez que é “[...] um
método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a
realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam
acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto
de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais,
categorias profissionais, movimentos, etc.”34. Importa salientar que uma fonte oral
complementa uma fonte escrita.
Outro fator que faz da história oral um mecanismo de grande utilidade nesta
pesquisa é que ela pode servir de porta-voz às minorias (ou excluídos) sociais, pois:
tais usos políticos da história oral – em que a reafirmação de histórias
anteriormente silenciadas pode permitir a afirmação de indivíduos, grupos
sociais ou sociedades inteiras – estão ligados a uma tradição significativa e
continuada em que a história oral tem se mostrado uma importante fonte para
grupos políticos e movimentos sociais: no movimento das mulheres, para os
sindicalistas e comunidades de classes trabalhadoras, para povos indígenas,
32
JAQUELINE, entrevistada em 30/11/2017.
33
ALBERTI, Verena. História Oral: A Experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 1989.
34 34
ALBERTI, Verena. História Oral: A Experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 1989. p. 52.
189
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Obviamente, uma coisa que esta história compartilha com todas as outras é
que nenhuma delas é exatamente como as outras. Nenhuma declaração
individual se ajusta perfeitamente na grade cultural à qual pertence. Na
verdade, a cultura não é uma grade (que é tão somente um recurso teórico
útil), mas um mosaico no qual cada peça se encaixa com as outras, mas é
diferente de todas elas. Uma das coisas que as ciências sociais geralmente se
esquecem é que a cultura é formada por indivíduos diferentes uns dos outros
– e é isso o que a história oral nos lembra.36
35
THOMSON, Alistair. Aos Cinquenta Anos: Uma Perspectiva Internacional da História Oral. In:
ALBERTI, Verena. FERNANDES, Tania Maria. FERREIRA, Marieta de Moraes. História Oral:
Desafios para o Século XXI. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2000. p. 60.
36
PORTELLI. Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 174.
190
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
37
JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Tel Gallimard, 1994.
38
JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Tel Gallimard, 1994. p. 47.
191
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
39
LEONEL, entrevistado em 03/11/2017.
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Acho até normal, do meu ponto de vista, que algumas pessoas não gostaram
de ver gays se beijando nas novelas, porque o não gostar de ver é um
acomodismo [sic], porque são pessoas acomodadas a verem somente homem
beijando mulher. Então, como isso nunca teve a nível nacional, uma cena
como essa [de beijo gay], é realmente de causar uma grande repercussão. E
daí vem repercussão das pessoas que tem preconceito contra as pessoas, a
comunidade de LGBT e até aquelas pessoas que não têm preconceito contra
gays, mas que ficaram surpresos porque nunca viram isso antes. Eu tenho na
minha família pessoas que acompanham novelas há mais de 30 anos e nunca
viu uma cena dessas, obviamente, quando ver a repercussão vem para gerar
todos os aspectos sentidos. [sic].41
É curioso o modo que Leonel observa o beijo gay. Ele percebe o evento como
algo inédito, nunca sequer visto antes, nem por seus antepassados e, por se tratar de algo
– em sua visão – vanguardista, é perfeitamente normal que as pessoas se incomodem
com esse tipo de representação da homossexualidade nas telenovelas.
A partir da reflexão do depoente, podemos compreender o beijo gay na
telenovela enquanto fenômeno sociomidiático42, pois é um evento que, embora esteja
40
LEONEL, entrevistado em 03/11/2017.
41
LEONEL, entrevistado em 03/11/2017.
42
Em nossa visão, o beijo gay em telenovelas pode ser visto como um fenômeno sociomidiático, haja
vista que tem um grande alcance social que suscita inúmeras reflexões e, ainda, possui uma grande
mobilização na mídia, sobretudo, no campo virtual da internet.
193
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
43
DIEGO, entrevistado em 16/11/2017.
44
DIEGO, entrevistado em 16/11/2017.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
brasileira, é uma população que se prende muito na mídia. Então você só vai começar a
mexer nos princípios de valores das pessoas quando a mídia falar sobre isso”45. Sendo
assim, a mídia tem uma grande responsabilidade.
Ainda na visão do depoente, o fanatismo religioso é o que ocasionou o repúdio –
por parte de uma parcela da sociedade – para o beijo entre Estela e Tereza, na telenovela
Babilônia: “Não a religião em si, mas as pessoas que seguem uma religião, que tem
aquele fanatismo religioso”46.
O depoente seguinte, o professor Rodrigo, também corrobora a concepção de
Babinski. Para ele, a influência religiosa faz com que telespectadores mais
conservadores reajam mal a uma cena de beijo entre pessoas do mesmo sexo nas
telenovelas. O depoente relata: “Eu acho que a maioria [das pessoas] que se incomodam
é por motivos religiosos, determinada religião não permite ou pelo fato mesmo de serem
preconceituosos”.
Rodrigo também enxerga a representação da homossexualidade nas telenovelas
de maneira unânime. Ele afirma: “Me senti representado [com as personagens gay das
telenovelas], porque é uma forma da gente. Parece que é um pedacinho de nós que está
sendo mostrado, como a gente vive, o que a gente faz...”47. Ou seja, o professor Rodrigo
consegue se ver na representação ficcional da homossexualidade nas telenovelas. Para
ele, há uma representatividade. Inclusive, ele se posiciona a favor na exibição de cenas
com beijo gay “porque as pessoas têm que começar a encarar de uma forma natural uma
pessoa gostar de uma outra pessoa do mesmo sexo. Então, a televisão, como atinge uma
grande parcela da sociedade seria interessante que isso continuasse ocorrendo pra ir
acabando um pouco com o preconceito”48. [sic]. Rodrigo vê, na telenovela, um
elemento que, devido à sua força midiática, tem potencial para alcançar um grande
número de pessoas e, assim, provocar nelas uma reflexão capaz de reduzir o preconceito
que ora possuam.
Nosso outro depoente, Gustavo, como homossexual, se sente representado ao se
deparar com a representação da homossexualidade nas telenovelas, mas não aceita esse
tipo de representação:
Me senti e não me senti representado ao ver as cenas de beijo gay. Sim,
porque as cenas eram de beijos gay e eu sou gay. Então era uma certa
45
DIEGO, entrevistado em 16/11/2017.
46
DIEGO, entrevistado em 16/11/2017.
47
RODRIGO, entrevistado em 17/11/2017.
48
RODRIGO, entrevistado em 17/11/2017.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Ah, não sei [como gostaria de ser representado numa telenovela].... Eu acho
assim que, às vezes, eles colocam alguns tipos de personagens bem
característicos como um que já é afeminado, né? Então poderia pôr mais
personagens assim: um homem natural, que seja masculino e que [ao mesmo
tempo] seja gay, sem trejeitos, também. Porque existem vários tipos, não é só
os que tem trejeitos, né? Poderia ser uma maneira [de representar os
homossexuais]. [sic].51
49
GUSTAVO, entrevistado em 19/11/2017.
50
GUSTAVO, entrevistado em 19/11/2017.
51
RODRIGO, entrevistado em 17/11/2017.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
O autor afirma que aquilo que nos é estranho, o que não nos pertence, o que vai
contra os nossos princípios, é o que nos incomoda. Posto isso, é essencial que continue
a existir tais tipos de representação homossexual. Em sua perspectiva, se elas não
ocorrem, não irão incomodar e, se não inquietar os preconceitos, continuarão
descartando a existência dessas pessoas, pois essas só:
incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar aqui; eles são
percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se torna aparente quando nós
estamos em sua presença; quando sua realidade é imposta sobre nós – é como
se nos encontrássemos face a face com um fantasma ou com um personagem
na vida real; [...] Então algo que nós pensamos como imaginação se torna
52
PORTELLI. Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 14.
53
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Tradução de
Pedrinho A. Guareshi. 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 56-57.
197
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realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver e tocar algo que
éramos proibidos54.
Por todas essas razões expostas, são essas representações que, muitas vezes, são
ignoradas e não percebidas que vão colaborar para barrar o preconceito, incluindo
aquele existente entre os próprios homossexuais.
Ainda acerca de tal problemática, Moscovici apresenta uma solução para as
representações que fabricamos serem aceitas com normalidade:
[...] Eu acho que tem muita coisa ainda que não é falado e, às vezes, eles
desfocam de uma coisa que seria realmente importante de ser mostrada
naquele momento para a compreensão de quem tá ali assistindo e focam
numa outra coisa que pode dar Ibope, uma ligação a trama e isso é foda. Eu
acho que eles têm que fazer da forma correta até o ponto que mostram como
aquilo tem que ser mostrado e depois desenvolve. Primeiro, [tem que mostrar
que] a Marina é lésbica, a Marina chegou ali, a Marina teve uma luta, a
Marina é a Marina... Depois a Marina ama Cláudia, a Marina casou com não
sei quem... É uma coisa assim que eles [os produtores de televisão] deveriam
tá focando mais pra acontecer essa coisa de autorepresentatividade. Nós
vamos começar a se identificar com os personagens a partir do personagem,
da forma que o personagem se posiciona e se abre. É aí que vamos ver o que
ele tem pra nos oferecer e qual é o nosso grau de identificação com ele.
[sic].56
54
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Tradução de
Pedrinho A. Guareshi. 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 56.
55
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Tradução de
Pedrinho A. Guareshi. 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 58.
56
ANA LÚCIA, entrevistada em 30/11/2017.
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57
ANA LÚCIA, entrevistada em 30/11/2017.
58
JAQUELINE, entrevista em 30/11/2017.
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cantando aí... O que é Pabllo Vittar lá na Globo? Pisa mais! Pisa mais! 59
(risos). [sic].60
59
Gíria homossexual para classificar êxito. Embora não iremos trabalhar essa dimensão, cabe esclarecer
que se trata de um tipo de recurso linguístico adotado pelos homossexuais.
60
JAQUELINE, entrevista em 30/11/2017.
61
GUSTAVO, entrevistado em 19/11/2017.
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A visão da depoente Ana Lúcia a respeito desse assunto converge com a reflexão
de Gustavo. A depoente em questão afirma que “a ignorância do brasileiro é alta
demais”, sendo por isso que, dificilmente, a telenovela irá conseguir extinguir a
homofobia no Brasil. E isso ocorre porque o brasileiro:
vai ver uma novela ali e não vai procurar saber mais depois. Se ele tiver um
filho que ele desconfia que é gay, ele não vai ter certeza, ele pode não gostar
daquilo, ele pode não achar aquilo legal e essa novela não ajudou em nada
acabar com o preconceito daquele pai, porque é educação, é aquela coisa de
cultura, esse pai foi criado assim: homem tem que ser macho, pôr a mão no
saco e comer todo mundo, macho tem que ser forte. E já criou a mulher pra
ser frágil, delicada, vai lá e faz isso, ele quer, ele gosta... [sic]. 64
62
Ver mais em: http://atarde.uol.com.br/economia/noticias/1785135-consumo-do-publico-lgbt-e-ate-4-
vezes-acima-da-media. n.p. Acesso em 27/11/2018.
63
GUSTAVO, entrevistado em 19/11/2017.
64
ANA LÚCIA, entrevista em 30/11/2017.
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Considerações Finais
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teve alguma alteração em relação ao período anterior. Notamos que ainda não acontece
uma representação ampla, posto que não vimos ainda uma lésbica negra e pobre tendo
um protagonismo numa telenovela das nove da TV Globo.
Portanto, embora haja para alguns depoentes uma representatividade em relação
as representações homossexuais exibidas nas telenovelas da TV Globo, ainda não há
totalmente uma aceitação de tais representações. Isso porque elas ainda excluem
algumas causas urgentes das minorias que pertencem ao grupo de homossexuais,
mesmo que essas representações possam ser relevantes para uma parcela desse grupo de
minoria que se vê representado ficcionalmente. Com isso, a análise desenvolvida mostra
que a telenovela, um objeto aceitável e acessível, traz para o público uma hibridação da
temática homossexualidade, uma causa ainda pouco acolhida na esfera social.
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Referências bibliográficas
ALBERTI, Verena. História Oral: A Experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV,
1989.
JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Tel Gallimard, 1994.
MEIHY, José Carlos Sebe B. Prostituição à Brasileira. São Paulo: Contexto, 2015.
PORTELLI. Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
204
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.d9.p.205.230
Resumo
A partir da “Questão do Acre” retratada nos periódicos da capital federal, de Belém e Manaus publicados
entre 1890 a 1909, se traz reflexões acerca do contributo da escrita da trajetória acriana por meio da História
Pública. As pesquisas foram feitas nos acervos da Hemeroteca da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil.
O referencial é constituído por Albuquerque2; Almeida, Rovai3; Barbosa4; Barros5; Cunha6; Galvão7 ;
Luca8; Tocantins9 e Silva10. Em termos estruturais, no introito do artigo há relato do que foi a “Questão do
Acre”, depois apontamentos sobre o marco temporal e aporte teórico-metodológico, seguido de diálogo a
respeito de como a História Pública pode fazer repensar a escrita da História do Acre, complementado com
ponderações quanto ao corpus documental e resultados da pesquisa, que fortalecem o desenvolvimento de
um historiografia acriana desconstruindo narrativas laudatórias de mitos.
Palavras-chave: Acre; Jornais; História Pública.
Abstract
From the "Question of Acre" portrayed in the journals of the federal capital, Belem and Manaus published
between 1890 and 1909, reflections are brought about the contribution of writing the acriana trajectory
through Public History. The research was made in the Brazilian National Library Foundation (Hemeroteca).
The reference consists of Albuquerque; Almeida, Rovai; Barbosa; Barros; Cunha; Galvão; Luca; Tocantins
and Silva. In structural terms, in the introitus of the article there is a report of what was the "Acre Question",
then notes about the time frame and theoretical-methodological contribution, followed by dialogue about
how Public History can rethink the writing of the History of Acre, complemented with weightings regarding
the documentary corpus and research results, which reinforce the development of an acriana historiography
deconstructing laudatory narratives of myths.
1
Professora lotada no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre.
Atualmente, exerce o cargo de sub-coordenadora do Curso de Licenciatura em História. É pesquisadora do
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC). E-mail:
[email protected]
2
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. A cavalo dado não se olham os dentes: o Bolivian
Syndicate e a Questão do Acre na imprensa (1890-1909). Tese de Doutoramento em História Social pela
FFLCH da USP: São Paulo, 2015.
3
ALMEIDA, Juliele Rabêlo de; OLIVEIRA ROVAI, Marta Gouveia de (Org.). Introdução à História
Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
4
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
5
BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. In: Caderno de Pesquisa do
CDHIS/UFU. v.25, n.2, jul./dez. 2012. p. 407-429. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/15209/11834> Acesso em: 04 mar. 2020.
6
CUNHA, Euclides. À margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999
7
GALVÃO, Walnice N. No calor da hora: a guerra de canudos nos jornais. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994.
8
LUCA, Tania Regina de. Fontes Impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 116 p.
9
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001. 2 v. 548p.
10
SILVA, Francisco Bento da. Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades.
Revista Jamaxi, v. 1, p. 49-67, 2017.
205
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Introdução
Em termos territoriais a configuração atual do Brasil teve o início de sua
construção com a partilha do Novo Mundo entre portugueses e espanhóis pela Bula
Intercoetera de 1493 e Tratado de Tordesilhas de 1494. A partir das ocupações dos
ibéricos na América do Sul outros tantos acordos lindeiros foram feitos, de tal ordem que
o Brasil nos primeiros anos do século XIX tivesse as suas fronteiras configuradas a
semelhança de seus contornos atuais11 excetuando-se partes do Acre, Amapá e Rio
Grande do Sul.
Contudo, somente na Primeira República se realizaram as negociações definitivas
entre o governo brasileiro e os vizinhos fixando os limites. E dentro do conjunto destas
tratativas o Acre legalmente se tornou parte constitutiva do Brasil em 17 de novembro de
1903, por meio da assinatura do Tratado de Petrópolis, solucionando a contenda com a
Bolívia e findando as polêmicas de sua demarcação territorial com o Peru no acordo
firmado no Rio de Janeiro de 1909, que fechava a questão entre Brasil e Peru. Assim, os
brasileiros obtiveram legitimidade de exploração da borracha extraída da árvore da
seringueira existente naquela região.
Todavia, em âmbito interno a “Questão do Acre” (como ficou registrada em livros
e jornais) gerou polêmicas antes, durante e após sua resolução. Preliminarmente
denotaram-se os aspectos de direito internacional (manifestos tanto em debates sobre
soberania, quanto no caráter colonial com a proposta de arrendamento ao Bolivian
Syndicate). O percurso foi pontuado por beligerância nos periódicos e os embates de
tropas, indo desemborcaram na anexação territorial, com criação de novo ente federativo
não previsto na Constituição de 1891. Resultando em pagamento de dois milhões de libras
esterlinas, acrescido de “permuta” de terras entre o Abunã e Madeira pelo Acre, livre
navegação boliviana em rios brasileiros para atingir o Atlântico e a construção da Ferrovia
Madeira-Mamoré.
O Acre brasileiro de direito deu origem ao Território Federal homônimo,
acarretando ampliação “territorial brasileira em mais de 200.00 km”, ao mesmo tempo
em que demonstrava descumprimento das “recomendações constitucionais” previstas no
art. 88, Título V, das Disposições Gerais na Constituição de 1891 a respeito de não se
“empenharem em guerra de conquista, direta ou indiretamente” a exemplo do que
11
A este respeito ver FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001. p. 85
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recordou Porto.12 Essa anexação do Acre ao Brasil, sob gestão direta da União, instituído
pelo Decreto nº 1. 181 de 25 de fevereiro de 1904, conflitava aos interesses do governo
do Amazonas conforme demonstrado em processo movido no Supremo Tribunal Federal
que teve Rui Barbosa13 como um de seus patronos.
Tais controvérsias nas esferas políticas e jurídicas movimentaram debates a fim de
sensibilizar a opinião pública por meio da imprensa antes, durante e após o desenrolar da
“Questão do Acre”. A parte inicial da divergência, relativa ao Bolivian Syndicate, é o
objeto de exame do presente artigo, tendo em conta como a escrita se relaciona com a
história pública. Neste intuito foram fontes as publicações datadas entre os anos de 1899
a 1909, que circularam em jornais da capital federal, de Belém e Manaus, disponibilizados
no acervo digital e físico da Fundação Biblioteca Nacional.
A opção por esse marco cronológico vincula-se as dissensões de domínio político
e econômico sobre a região primeiro entre bolivianos e brasileiros, acrescido depois das
contestações peruanas. Isto porque em 1899 a tentativa da Bolívia de instalação aduaneira
em terras do Acre motivou o levante comandado por José Carvalho, seguido do
movimento de “Estado Independente” liderado por Galvez, que foram sucedidos pelos
conflitos militares entre brasileiros e bolivianos, solucionados por diplomacia bilateral.
Entretanto, a “Questão do Acre” se prolongou até o Tratado do Rio de Janeiro em 1909.
Esses escritos jornalísticos publicados entre 1899 a 1909 foram analisados a luz de
referências no trato das fontes hemerográficas constantes em Walnice Galvão, Marialva
Barbosa, Tânia de Luca e José D’Assunção Barros. Ao passo que os dados históricos
foram confrontados com as obras de Cunha14, Tocantins15; Calixto, Souza e Souza16;
12
PORTO, J. L. R. Os Territórios Federais e a sua evolução no Brasil. Revista Presença (Porto Velho),
Porto Velho, n. 16, 2000.
13
Documentação, peças redigidas e argumentação a esse respeito podem ser lidos em no livro de Rui
Barbosa denominado O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional. BARBOSA Rui. Obras completas de
Rui Barbosa: o direito do Amazonas ao Acre setentrional. Vol. XXXVII, tomo V, 1910. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
14
CUNHA, Euclides. À margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
15
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001. 2 v. 548p.
16
CALIXTO, Valdir de Oliveira; SOUZA, Josué Fernandes de; SOUZA, José Dourado de. Acre: uma
história em construção. Rio Branco: Fundação Cultural,1985.
207
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Como a História Pública pode fazer repensar sobre a escrita da História do Acre?
Para responder nossa indagação motriz, há de se recordar que é recorrente na
historiografia ao lidar com a anexação do estado ao Brasil denominá-la de “Questão do
Acre”, apontando enquanto clássico acerca do tema a obra “Formação Histórica do
Acre”20 de Leandro Tocantins, assim como a análise de ocupação da área estar
referenciada a partir de Euclides da Cunha (em “À Margem da História”21 e seus demais
escritos sobre Amazônia, tanto quanto no seu trabalho da comissão de demarcação
territorial na região do Alto Purus).22
Os dois autores pautam a construção das análises (históricas, geográficas e
sociológicas da incorporação territorial e humana da planície amazônica) inaugurando, a
nosso ver, o “acrianismo” em analogia ao “brasilianismo”. Compreensão desligada de
adjetivo pátrio, porquanto o termo independa das origens de autoria e desvincule a
produção de ter sido redigida em terras acrianas, mas, seja correlato a produção sobre à
região.23
Entretanto, essa construção historiográfica até o início do XXI teria sido pontuada
quanto a “Questão do Acre” em caráter uníssono pela versão dada por Leandro Tocantins.
Narrativa com ênfase a participação de Luiz Galvez ao denunciar a propositura do
Bolivian Syndicate e liderar o movimento de formação do Estado Independente do Acre,
sustentado no governo do Amazonas.
17
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Carlos
Alberto Alves de Souza, 2002.
18
CARNEIRO, Eduardo de Araújo. 'A fundação do Acre': um estudo sobre comemorações cívicas e abusos
da história. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
19
FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra; MELO, Ricardo Marques de; KOBELINSKI, Michel. História
pública brasileira e internacional: seu desenvolvimento no tempo, possíveis consensos e dissensos. Revista
do NUPEM, v. 11, p. 29-47, 2019.
20
TOCANTINS, Leandro. Formação histórica do Acre. Brasília: Senado Federal, 2001, Vols. I e II
21
CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
22
GUIMARAES, Leandro Belinaso. Euclides da Cunha na Amazônia: descontinuidades históricas nos
modos de ver e narrar a floresta. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 705-718,
2010. Disponível em: from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
59702010000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 Jul. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
59702010000300008.
23
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. A cavalo dado não se olham os dentes: o Bolivian
Syndicate e a Questão do Acre na imprensa (1890-1909). Tese de Doutoramento em História Social pela
FFLCH da USP: São Paulo, 2015, p. 54.
208
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
24
CALIXTO, Valdir de Oliveira; SOUZA, Josué Fernandes de; SOUZA, José Dourado de. Acre: uma
história em construção. Rio Branco: Fundação Cultural,1985.
25
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. História do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Carlos
Alberto Alves de Souza, 2002.
26
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca M. O Bolivian Syndicate nos livros didáticos de História do Acre. In:
SOUZA, S. R. G.; SILVA, F. B. Diálogos sobre história, cultura e linguagens. 1. ed. Rio Branco: NEPAN,
2018. v. 1. p. 11-24.
27
SILVA, Francisco Bento da. Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades.
Revista Jamaxi, v. 1, p. 49-67, 2017.
28
BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. In: Caderno de Pesquisa do
CDHIS/UFU. V.25, N.2, jul./dez. 2012. pp. 407-429. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/”view/15209/11834> Acesso em: 04 mar. 2020.
29
CARNEIRO, Eduardo de Araújo. 'A fundação do Acre': um estudo sobre comemorações cívicas e abusos
da história. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
209
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
30
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca M. O Bolivian Syndicate nos livros didáticos de História do Acre. In:
SOUZA, S. R. G.; SILVA, F. B. Diálogos sobre história, cultura e linguagens. 1. ed. Rio Branco: NEPAN,
2018. v. 1. p. 11-24.
31
CARNEIRO, Eduardo de Araújo. 'A fundação do Acre': um estudo sobre comemorações cívicas e abusos
da história. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
32
KLEIN, Daniel da Silva. A Amazônia no Ciclo da Borracha: populações e economia no Acre, Amazonas
e Pará entre 1880 e 1920. In: Revista Estudos Amazônicos. v. 8, n. 02, 2012.
33
SILVA, Francisco Bento da. Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades.
Revista Jamaxi, v. 1, p. 49-67, 2017.
34
BARBOSA, Marialva. Imprensa e história pública. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele R. de;
SANTHIAGO, Ricardo (Org). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz,
2016. p. 126.
35
LAPUENTE, Rafael Saraiva. O jornal impresso como fonte de pesquisa: delineamentos metodológicos.
In: 10º ENCONTRO DA REDE ALFREDO DE CARVALHO (ALCAR), 2015, Porto Alegre.
210
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
36
SILVA, Francisco Bento da. Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades.
Revista Jamaxi, v. 1, p. 49-67, 2017.
37
LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (Org.) Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
38
CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas
sobre História e Imprensa. Projeto História: História e Imprensa, São Paulo, v. 35, ago./dez. 2007.
Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2221> Acesso em: 3 fev. 2020.
39
A respeito do uso dos jornais como fontes ver: ALBUQUERQUE, N. B. M. História e Jornais: diálogos
sobre a produção historiográfica. In: IV ENCONTRO REGIONAL NORTE DE HISTÓRIA DA MÍDIA,
2016, RIO BRANCO. ANAIS DO IV ENCONTRO REGIONAL NORTE DE HISTÓRIA DA MÍDIA,
2016. p. 1-13.
211
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
40
Já na década de 1970 Walnice Nogueira Galvão alertava para as diferenças de configuração entre
periódicos do XIX em comparação ao XX, além disso, enfatizava que a própria forma de contato com os
jornais e de leitura eram distintas, sobre isso ler: GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a guerra
de canudos nos jornais. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994.
212
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
que ocorria com a ida do leitor a sede do jornal a se fazer a anotação dos seus pedidos,
reclamações ou contribuições de informações.41
A atualização das notícias advinha dos telegramas (que em várias publicações
ganharam um espaço específico de vinculação) ou das agências.42 Contudo, não se
obliterou nestas gazetas – fossem estatais ou privadas – a “percepção de que os textos
que os historiadores tomam para fontes históricas também foram produzidos, em sua
época, a partir de um lugar que precisa ser compreendido e decifrado pelo historiador.” 43
Entendendo-as como fruto de um lugar de produção, tomamos esse conceito como
preconiza Barros, ou seja, para além do espaço físico da elaboração impressa do jornal,
compreendendo-o face às relações de poder que permeiam a sustentação da publicação.
Logo, associando a imprensa escrita aos aspectos sociais e políticos concatenando donos
de periódicos, financiadores, redatores, equipe gráfica e destinatários, a fim de
descontruir a ideia de noticiários como “documento monumento”.44
Desta feita, era necessário não perder de vista que o Jornal do Brasil criado por
Rodolfo Dantas em 1891 inicialmente tinha caráter monarquista, contando nas duas
primeiras décadas de funcionamento com a contribuição de textos escritos pelo Barão do
Rio Branco. Entretanto, sem esquecer, que o Jornal do Brasil em 1893 ganha ascendência
republicana após a constituição como Sociedade Anônima45, onde incluía-se Rui Barbosa
dentre os sócios e a passagem da propriedade dos irmão Mendes Almeida em sua Almeida
& Cia. Ao passo que O Paiz fundado em 1884 por João José dos Reis Júnior foi desde o
início contrário à monarquia, tendo adotado postura política republicana mais
conservadora a partir de sua aquisição pelo conselheiro Francisco de Paula Mayrink, que
foi figura empresarial e política proeminente da Primeira República. Assim demonstrando
as relações daquelas folhas com os bastidores políticos da capital federal durante o
alvorecer republicano do Estado brasileiro.
Já nos jornais belenenses analisados não havia longevidade e configuração política
uníssona, porquanto Correio Paraense tivesse circulado apenas entre 1892 a 1894, ao
41
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010.
42
MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno da relação
telégrafo e imprensa – 1880 /1920. In: FENELON, Déa Ribeiro (Org.). Muitas memórias, outras histórias.
São Paulo: Olho d’Água, 2005.
43
BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. In: Caderno de Pesquisa do
CDHIS/UFU. V.25, N.2, jul./dez. 2012. pp. 407-429. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/”view/15209/11834> Acesso em: 04 mar. 2020.
44
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora UNICAMP, 1996. p. 538.
45
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010.
213
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
passo que A Província do Pará fundada por Antônio Lemos em 1876 circula atualmente
em formato on-line. Exemplificando o contexto político podemos mencionar a Folha do
Norte que foi caracterizada como uma gazeta simpatizante do Partido Republicano
Democrático sob a liderança política de Lauro Sodré, sendo o projeto político do Partido
Republicano Paraense defendido em O Pará e contando com apoio de A Província do
Pará comandada por Antônio Lemos. Todavia, apesar de serem diários de caráter
republicano, ambos repercutiram as polêmicas e confrontos políticos entre Lauro Sodré e
Antônio Lemos travados na capital do Pará.
Em Manaus, o jornal A Federação criado em 1895 dizia em seu subtítulo dizia ser
“órgão do partido republicano federal”. E os periódicos Commércio do Amazonas e o
Diário Official teriam seus exemplares inaugurais datados de 1869 segundo João Batista
Faria e Souza.46 A opção pelo diálogo com o Commércio do Amazonas decorre da
caracterização tal qual se lê em Tocantins47 desse “como órgão oficial da República do
Acre”, vez que “um decreto do governo acriano o considerava seu porta-voz”. Ao passo
que o trato do Diario Official do Amazonas foi movido pelas escriturações fundiárias em
função do Decreto nº 037 de novembro de 1893, instituidor e regulatório da Repartição
de Terras.48
E ainda que o período estudado corresponda aquilo que foi denominado por Sodré49
como “jornais empresas” 50 tais características não se estendem a todos os noticiários
pesquisados, porquanto alguns em Belém se adequassem melhor a ideia de
“empreendimento individual”, ou no caso de Manaus do financiamento estatal com o
Diário Official do Amazonas, ao político-partidário a exemplo de A Federação (cujo
subtítulo era “orgam do Partido Republicano Federal”) ou O Pará (que era “órgão
político” ligado ao Partido Republicano Paraense).
46
Há controvérsias quanto as datas de fundação tanto de Commércio do Amazonas e o Diario Official, pois
na Imprensa Oficial do Estado do Amazonas se atribui a criação pela Lei n° 01, de 31 de agosto de 1892,
tendo circulado seu primeiro exemplar em 1893. Aqui se tomou por referência o levantamento de João
Baptista Faria e Souza feito em 1908 que no centenário da imprensa no Brasil, que inventariou a imprensa
do Amazonas de 1851 a 1908, divulgado na Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. FARIA
E SOUZA, João Baptista; SOUZA, Monteiro de; BAHIA, Alcides. A imprensa no Amazonas, 1851-1908.
Manaus: Tipografia da Imprensa Oficial, 1908.
47
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001. V.2, p.368.
48
Que dentre outros aspectos (e principalmente antes da oficialização do Acre como brasileiro) pautava o
reconhecimento de áreas em solo acriano a fim de assegurar a propriedade e eventualmente propiciar o
financiamento para abertura de seringais.
49
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
50
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X,
2007.
214
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
51
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca M. O Bolivian Syndicate nos livros didáticos de História do Acre. In:
SOUZA, S. R. G.; SILVA, F. B. Diálogos sobre história, cultura e linguagens. 1. ed. Rio Branco: NEPAN,
2018. v. 1. p. 11-24.
215
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
52
KLEIN, Daniel da Silva. A Amazônia no Ciclo da Borracha: populações e economia no Acre, Amazonas
e Pará entre 1880 e 1920. In: Revista Estudos Amazônicos. v. 8, n. 02, 2012.
53
A respeito das populações indígenas da Amazônia ler: COSTA, K. S. Apontamentos sobre a formação
histórica da Amazônia: uma abordagem continental. Série Estudos e Ensaios (Faculdade Latino Americana
de Ciências Sociais), v. 1, p. 90-114, 2009.
54
(I)migração grafada assim, pois, ao considerarmos que até 1903 o Acre não era oficialmente brasileiro,
compreende-se tratar de processo de mobilidade entre países diferentes, logo, sendo imigração.
216
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Entre 1880 a 1909 o nordeste brasileiro sofreu grandes secas, vivenciou a alforria
de escravos sem adoção de políticas de distribuição de terras ou inclusão destes
trabalhadores no mercado de trabalho, fatores que ocasionaram a “disponibilidade” de
pessoas para se deslocarem. Somando-se a isso também as campanhas de recrutamento e
propaganda para o translado desses sujeitos.55 De onde verificamos que a movimentação
foi significativa, apesar do desencontro de dados sobre um quantitativo exato.56 Porém,
assim se torna possível enxergar o Acre como alternativa aos potenciais conflitos
fundiários nordestinos. E por oportuno somos conduzidos a recordar que o desterro não
seja sinônimo de patriotismo. Entrementes, nas leituras de obras sob influência de
Tocantins acerca da temática em comento, observa-se degredo silente destas pessoas,
impossibilitando o diálogo a respeito das causas de deslocamento ou reflexões
aprofundadas quanto aos modos de vidas constituídos no Acre por esses sujeitos. E o
caráter de deportação é repetido a tal ponto de fazê-lo ser classificado como Sibéria
Tropical.57
Ao nos debruçarmos sobre o corpus documental igualmente verificamos
dissonância com o texto clássico de Tocantins, posto que as imisções bolivianas sobre o
Acre não deveriam ser apreciadas como indevidas. A Bolívia antes de 17 de novembro
de 1903 ao arrendar o Acre, ou tributar a produção de borracha, estava no exercício de
sua soberania em terras então oficialmente tidas como suas.58
Por conseguinte, nos resta ainda dizer que, ao consultarmos as fontes
hemerográficas, constatamos peculiaridades às personas heroicas na atuação do processo
de incorporação territorial do Acre ao Brasil. Ou para melhor elucidar, tratam-se de
interpretações alternativas, nas quais Galvez, Plácido de Castro e Barão do Rio Branco
são lembrados, apresentados, depreciados ou esquecidos conforme a vontade, o período
de análise e os interesses das elites locais.
55
Embora Isabel Guillen tome como foco o diálogo sobre o período de migração dos nordestinos para a
Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial, faz uma breve introdução analisando o recrutamento de
trabalhadores em momento antecedente, por isso, sugere-se ler: GUILLEN, Isabel C. M. A Batalha da
Borracha. Propaganda política e migração nordestina para a Amazônia. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, n.9, p. 95-102, 1997.
56
KLEIN, Daniel da S. Historiografia Amazônica: discutindo questões demográficas nos tempos da
borracha. Revista Jamaxi, v. 3, p. 44-52, 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufac.br/index.php/jamaxi/article/view/2804. Acesso em: 20 jan. 2020.
57
SILVA, Francisco Bento da. Acre, a Siberia tropical: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904
e 1910. 2. ed. Rio Branco: Nepan, 2017. v. 01. 340p.
58
VERGARA, Moema de Rezende. Ciência, fronteiras e nação: comissões brasileiras na demarcação dos
limites territoriais entre Brasil e Bolívia (1895-1901). Belém: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi,
Vol. 5, Nº 2, Maio/Agosto de 2010.
217
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
59
BARBOSA, Marialva. Imprensa e história pública. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele R. de;
SANTHIAGO, Ricardo (Org). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz,
2016. p. 136.
60
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001. Volume I,
pp. 315 a 316.
61
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 14 jun. 1893, nº 165, p. 2.
62
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 05 out. 1895, nº 278, p. 4.
218
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
ganhou novo destaque nas páginas da imprensa carioca em 1900 por ocasião do Estado
Independente do Acre, quando se lia em O Paiz a identificação do aventureiro da fronteira
com o outrora introdutor e estimulador da jogatina na capital federal:
[...]Essa outra palavra – frontão – nos traz no bico da Penna o famoso
nome de Luiz Galvez, ex-presidente da República do Acre.
- Que tem Judas com as almas dos pobres? perguntará o leitor, e nós
respondemos que, segundo informações fidedignas, foi Galvez quem
introduziu o jogo da pelota nesta infeliz capital, onde péga de galho,
cria raízes, floresce e frutifica tudo quanto é máo.
Depois de incompatibilizado com todos os seus parceiros de jogatina,
Galvez partiu para o Amazonas – a terra da promissão -, e de lá subiu
até o Acre, onde pretendeu fundar um estado livre.63
63
O PAIZ, Rio de Janeiro,14 out. 1900, nº 5851, p. 1.
64
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001, V. I, p. 316.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
WARNING TO INVESTORS
Germans Are Urged to Let the Bolivian Syndicate Alone.
The Brazilian Minister in Berlin Points Out that Territory Concerned is
Still in Dispute.
BERLIN, June 14. – The Brazilian Minister, Baron Rio Branco, has
issued a warning to German investors against putting Money in the Bolivian
Syndicate, because, he points out, the boundaries of the Province of Acre are
uncertain. Brazil and Peru are claiming, and are still negotiating with Bolivia
regarding the same.
Attempts last night to reach the gentlemen in this city Who are
interested in the Bolivian Syndicate were not successful, most of them being
out of town. Arthur S. Fairchild of Vermilye & Co. was the only one of them
who could be seen.
Mr. Fairchild Said, when the Berlin dispatch was read to him, that he
had heard nothing about the statement made in it, and could give no
information as to the correctness of the reportor or its bearing on the future of
the Bolivian Syndicate.
As announced in a dispatch from Berlin June 4, F. W. Whitridge of New
York left Berlin that Day for England after having arranged with the Deutscher
Bank and other financial houses of Berlin to take shares in the Bolivian
Syndicate of New York.
The object of getting German capital for this syndicate does not appear
to have been because outside money was needed, but because August Belmont
& Co., Vermilye & Co., Brown Brothers & Co., Frederic P. Olcott, President
of the Central Trust Company, and others composing the syndicate desired to
broaden the international basis of the enterprise and thus obtain additional
diplomatic support in the negotiations now pending between the syndicate and
Brazil. It is through Brazilian territory that the Bolivian Syndicate must find
na outlet for intercourse with the world. It is likely that the syndicate will also
obtain some Belgian capital.
The Bolivian Syndicate has been authorized to administer fiscally, to
police, and to govern 80.000 square miles of rubber forests in Bolivia, and the
output of this country will have to be transported on Rivers which cross the
Brazilian frontier. It will also pay na export duty to certain Brazilian States and
chiefly to the State of Amazonas.
The apprehension of the Brazilian Government arising from the fact
that Americans are obtaining fiscal rights in and police control over so vast a
territory in Bolivia, a strip of which territory is claimed by Brazil, has created
a difficulty which has made international partition and ownership desirable.
American interests, however, Will predominate.
While Mr. Whitridge has been dealing with the financial interests of the
syndicate Sir William Martin Conway, the explorer, who negotiated the
syndicate’s concession from Bolivia, has been in Berlin and has explained to
the German Foreign Office the objects of the enterprise. It is understood that
the Foreing Office will probably forward the aims of the Bolivian Syndicate,
in which both American and German capital is now interested.
Brazil has obtained of Argentina the right to navigate certain Rivers
which cross the boundaries of the two countries, and has long contended that
Venezuela should concede similar rights with regard to the Orinoco River. It
is consequently thought probable that Brazil Will yield to the request that
Bolivian and Brazilian streams be opened to international navigation.65
65
THE NEW YORK TIMES. June 15, 1902. Disponível em: https://newspaperarchive.com/ . Acesso em: 10
jan 2012.
220
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
apenas o responsável pela Arthur S. Fairchild da Vermilye & Co, que disse não poder se
manifestar sobre o empreendimento. Outro acionista seria F. W. Whitridge de Nova York,
que teria obtido junto a casas bancárias como Deutscher Bank capital para o Sindicato.
Explicando-se o ingresso do capital alemão não por falta de dinheiro dos envolvidos
(August Belmont & Co., Vermilye & Co., Brown Brothers & Co., Frederic P. Olcott,
Presidente da Central Trust Company e outros), mas, enquanto uma estratégia de
alargamento das bases internacionais do empreendimento, pensando em suporte
diplomático para atuar nas negociações do litígio fronteiriço. Preocupação permeada pela
necessidade de circulação das mercadorias do Sindicato por terras brasileiras. O artigo
prosseguia mencionando se tratar de faixa territorial de 80 mil milhas, em que o Sindicato
teria poder fiscal e de polícia. Todavia, se enfatizava a necessidade de trânsito por terras
e águas brasileiras, reconhecendo não obstante o pagamento de taxas de exportação a
estados brasileiros às ameaças a soberania do Brasil.
A intervenção de Rio Branco acima, caracteriza aviso aos investidores que
pretendiam participar do contrato de arrendamento das terras do Acre feita pelo governo
boliviano a consórcio de acionistas reunidos no Bolivian Syndicate (em formato
semelhante as chartered companies então existentes no continente africano). 66 Curioso
observar que a admoestação datava de julho de 1902, quando oficialmente ainda se
desenvolviam as tratativas para o empreendimento, antecedendo inclusive a eclosão da
rebelião liderada por Plácido Castro.
A advertência, embora tenha sido coletada em jornal norte americano, também foi
obtida pela internet, via Newspaper Archive (que reúne acervos hemerográficos digitais
de periódicos do continente americano desde o século XVII) não transcendendo a História
Pública. Desta feita, o emprego de materiais coletados no The New York Times, assim
como o corpus constituído e aqui analisado coadunam-se a observação feita por Fonseca67
quanto ao fato de que:
Hoje em dia, quando se fala em mídia, não se pensa mais somente
naquelas que marcaram a história do século XX: imprensa escrita, rádio,
televisão, cinema. As novas formas advindas das novas tecnologias de
comunicação são cada vez mais associadas a elas, e as novas gerações têm com
elas evidente familiaridade, sobretudo a internet e as modalidades de recursos
66
A respeito do Bolivian Syndicate e sua caracterização em obras didáticas ler ALBUQUERQUE, Nedy
Bianca M. O Bolivian Syndicate nos livros didáticos de História do Acre. In: SOUZA, Sérgio Roberto
Gomes; SILVA, Francisco Bento da. Diálogos sobre história, cultura e linguagens. 1. ed. Rio Branco:
NEPAN, 2018. v. 1. p. 11-24.
67
LIMA E FONSECA, Thais Nívia de. Ensino de história, mídia e história pública. In: MAUAD, Ana
Maria; ALMEIDA, Juniele R. de; SANTHIAGO, Ricardo (Org). História pública no Brasil: sentidos e
itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. p. 185.
221
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
ou ferramentas que ela permite acessar. [...] Disso deriva, portanto, o problema
de divulgação do conhecimento histórico e dos usos possíveis desse
conhecimento no ensino de História e seu papel na educação de uma forma
geral. Com esse problema em foco, cabe a reflexão a partir do “conceito” de
história pública, como um caminho para se pensar a função e os usos dessas
mídias na divulgação da História como conhecimento academicamente
produzido e como patrimônio coletivo.
Entretanto, ousa-se acrescer que não devemos pensá-la apenas como divulgadora,
mas, igualmente associada a produção de conteúdo. Tal afirmação toma como exemplo o
presente trabalho, resultante de corpus constituído em espaços públicos de memória
hemerográficas, que se enquadram como locais de História Pública. Igualmente oportuno
é considerar a notícia alertada no periódico estadunidense em função introdutória para
referenciar Rio Branco nos diários pesquisados. Nesse sentido, por obviedade durante a
baliza cronológica da investigação abundam menções a José Maria da Silva Paranhos
Júnior, pois o Barão do Rio Branco assume a pasta das Relações Exteriores em 1902 e lá
permanece até seu óbito em 1912.
O chanceler para além de ser teor de matérias, tinha sido um dos colaboradores dos
primeiros tempos do Jornal do Brasil e continuou a redigir textos para o periódico, dentre
outros noticiários, visando influenciar a opinião pública. Barbosa sobre a interação
política das gazetas e o ministro Rio Branco aponta a vasta troca de cartas entre ele e José
Carlos Rodrigues, recheadas de pedidos de favores junto à presidência da república,
acrescidos de sugestões de artigos a serem publicados em que se faria o hoje denominado
“marketing pessoal” do barão. A autora afirmou que as interferências eram tão intensas,
a ponto de Rio Branco redigir com exatidão parte dos textos a serem divulgados.
Incidentes que se intensificaram quando ele assumiu a pasta das relações exteriores, visto
que:
[...] costumava pessoalmente redigir os artigos sobre questões polêmicas
publicados ora no jornal de José Carlos Rodrigues, ora n’O Paiz, como corre,
por exemplo, durante ‘A Questão do Acre’.68
Não obstante tais meandros, Rio Branco é pontuado na historiografia acriana como
o signatário do Tratado de Petrópolis (1903) e do acordo entre Brasil-Peru (1909), sem
69
análises aprofundadas a sua atuação. Silêncios repetidos acerca do Bolivian
68
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010. p.186-187.
69
ALBUQUERQUE FRANCO, N. B. M. A anexação do Acre ao brasil dentro do contexto de relações
internacionais que conduziram a construção das fronteiras brasileiras (1580-1909). JAMAXI, v. 1, p. 124-
136, 2017.
222
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Syndicate.70 Por sua vez, o consórcio internacional de arrendamento do Acre tem sua
menção inaugural nos periódicos amazônicos notadamente em Belém no A Província do
Pará, em 03 de junho de 1899, no seu exemplar nº 7056:
AINDA A QUESTÃO DO ACRE
CASO SENSACIONAL
A serem exactas certas informações, de caracter reservado, que chegam ao
nosso conhecimento, o papel do sr. José Paravicini, era reivindicação dos
pretensos direitos do seu paiz, não se limitou aos actos ostensivos de pose, que
chegaram à notícia do público.
Secretamente o ministro da Bolivia, procurou entrar em negociações com o
governo de uma nação amiga, para obter a intervenção diplomatica, e talvez
armada, d’essa potência em favor do seu país.
Por intermedio do respectivo consul se transmittiu ao dito governo a minuta de
um accôrdo.
N’este se fazem importantes concessões, em materia de exportação de
borracha, caso a pendência se resolva pela via diplomatica, e se estabelecem
bases para a partilha de uma parte do territorio brazileiro, havendo guerra.
Talvez possamos dar aos nossos leitores cópia d’este documento, que é, por
todos os motivos interessantes, em uma das nossas primeiras edições. 71
70
A respeito do Bolivian Syndicate se enquadrar nos moldes das chatered companies ver: TOCANTINS,
Leandro. Formação Histórica do Acre. 4.ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001, V.2., p.
51-52.:
71
A PROVÍNCIA DO PARÁ, Belém, 3 jun. 1899, nº. 7056, p. 1.
72
FOLHA DO NORTE, Belém, 30 set.1896, nº 274, p. 2.
73
FOLHA DO NORTE, Belém, 11 dez. 1896, nº 346, p. 1.
74
FOLHA DO NORTE, Belém, 15 nov.1896, nº 320, p. 2.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
A República do Acre
Tem nos causado hilariedade a notícia da fundação do novo paiz do Acre, que
adoptou a forma republicana e, por causa das dúvidas, todas as leis brazileiras,
inclusive as tarifas aduaneiras...
O presidente de tal república também não esqueceu a língua portugueza, e a
nossa moeda.
O mais engraçado de tudo é considerar como orgam official o Commercio do
Amazonas que se publica em Manáus.
Como é desopilativa a república do Acre!
Que pandego é o Galvez! Aquele sujeito esteve por aqui e sem dúvida ouviu
falar da república de Cunany. Foi para o Acre, entendeu-se com uns
seringueiros e eil-o presidente do Acre.
A capital e o seringal do sr. José.
O orgam official, por emquanto, um jornal de Manaús.
Tem espírito, o Galvez. 75
O Pará foi dos jornais belenenses o que adotou postura mais crítica em relação ao
espanhol e a sua empreitada, alegando dentre outras coisas que Galvez transpunha ao
Acre suas jogatinas experimentadas em empreendimentos na capital federal. Tais
alegações desconstroem o perfil heroico incutido nos textos de Tocantins e nas páginas
de A Província do Pará. Sendo importante observar com estes periódicos, salvo os dois
últimos, pouco interesse a contenda fronteiriça. Contudo, ao compararmos O Pará e A
Província do Pará verificamos que embora esse também fosse pertencente a um membro
do Partido Republicano Paraense, se diferencia por ter sido o denunciante do processo de
arrendamento do Acre, demonstrando assim a falta de homogeneidade dentro daquela
sigla partidária.
Outro destaque a ser feito sobre A Província do Pará é que, como dito
anteriormente, foi o único dos periódicos pesquisados não digitalizado, entretanto, na
coleção deste não há menção textual a Galvez e tampouco ao Bolivian Syndicate. Mas,
foram encontradas duas ocorrências em que se falava do projeto do sindicato. Ademais,
antes mesmo de julho de 1899 A Província do Pará já dedicava espaço para acompanhar
o que chamava então de “questão brasileiro-boliviana” (sic). Fechando o exame dos
jornais belenenses se verifica que o Acre (além de representar terra de chegadas e partidas
para deslocamento de cargas e pessoas) era pautado na imprensa escrita da capital
paraense por conta do comércio e tributação, em sobreposição a outros aspectos, ao sabor
dos interesses da elite local.
Logo, se é visível o indicativo de falta de heterogeneidade nas gazetas belenenses,
homogeneidade também carecia aos diários manauaras quando o assunto era o Acre.
Porém, é importante ressaltar como primeira grande distinção entre Belém e Manaus o
75
O PARÁ, Belém, 25 ago. 1899, nº 519, p.1.
224
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
76
DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. (Descobrindo o Brasil).3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor,2000. pp.7-8.
77
ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. A cavalo dado não se olham os dentes: o Bolivian
Syndicate e a Questão do Acre na imprensa (1890-1909). Tese de Doutorado em História Social pela
FFLCH da USP, São Paulo: 2015. P. 149.
225
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Considerações Finais
78
DIARIO OFFICIAL DO AMAZONAS, Manaus, 25 ago. 1899, nº 1659.
79
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. 4. ed. Brasília: Senado Federal, 2001. V.2, p. 376.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
reflexões sobre o Acre polissêmico, com fito de desconstrução desse axioma, se passou a
elaboração do corpus documental aqui analisado, pontuando que as formas de contato
com as fontes primaram pela escolha de acervos hemerográficos de acessos
disponibilizados na internet em locais de visitação não restrita. Tais opções, bem como a
metodologia de trabalho foram permeadas pela dessacralização das fontes
hemerográficas, bem como o confronto dos dados coletados. Neste sentido, o diálogo
com os periódicos considerou ao interpretar as informações os lugares de produção a luz
do conceito estabelecido por Barros, que nortearam os enfoques e silenciamentos das
palavras-chaves no nosso instrumento de pesquisa.
Em conformidade com tais procedimentos, ao pensarmos os resultados da pesquisa
afirmamos que foram prospectados mais de 200 escritos jornalísticos (que iam de
notícias, textos telegrafados e anúncios) referentes ao Acre, Galvez e Bolivian Syndicate.
Ao cotejá-los verificamos a tendência da historiografia acriana em seguir a linha traçada
por Tocantins, sem problematizar sua versão, tampouco questionar a narrativa
heroicizada de personas. Ao mesmo tempo, em que percebemos a peculiaridade nas
fontes hemerográficas dos relatos, permeados pelos interesses dos grupamentos de
poderes locais. E concluímos que a História Pública permite o lançamento de outros
olhares sobre temas consagrados, colaborando com a escrita historiográfica a partir de
novas reflexões.
227
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al1.p.231.259
Resumo
Este artigo trata da relação entre os discursos produzidos acerca das mulheres negras,
escravas e libertas, nas últimas décadas da escravidão e pós a abolição (1850 - 1900), e
as estratégias de sobrevivência delas diante das visões negativadas a que eram
submetidas. A presença continua destas mulheres no cotidiano urbano da cidade de
Belém, como ganhadeiras, vendedoras, criadas e amas as tornaram essencial as dinâmicas
de produção em um contexto de efervescia econômica devido à economia da Borracha.
O processo de modernização na Amazônia esteve vinculado a aspirações burguesas
modeladas pelo ideal de civilização europeu, em tal contexto a presença de libertas e
negras no ambiente doméstico foi tida como um mal necessário. Mostrei as tensões entre
o modelo de domínio senhorial e a aspirações de liberdade destas mulheres.
Palavras-chave: Libertas; conflitos; Cidadania.
Abstract
This article deals with the relation between the discourses produced about black women,
slaves and liberated women, in the last decades of slavery and after the abolition (1850 -
1900), and their survival strategies in face of the negative visions to which they were
submitted. The continued presence of these women in the urban daily life of the city of
Belém, as winners, saleswomen, maids and maids, made their production dynamics
essential in a context of economic effervescence due to Borra's economy. The process of
modernization in the Amazon was linked to bourgeois aspirations shaped by the ideal of
European civilization, in such a context the presence of free and black people in the
domestic environment was considered a necessary evil. I have shown the tensions
between the model of manorial rule and the aspirations for freedom of these women.
1
Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia, PPHIST – UFPA.
E-mail: [email protected]
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Minha mãe Raimunda, nascida em 1944, durante boa parte de sua vida trabalhou entre
panelas e roupas sujas, recebeu o apelido carinhoso de “morena”, frequentou os lares de
pessoas classificadas como classe média, empresários, jornalistas entre outros. Nas
muitas das suas histórias que narra durante os cafés e almoços destaco uma em particular.
Em casa de certo patrão rico era costume mandar suas criadas limparem a geladeira com
água de coco. Quando “morena” foi designada para tal tarefa não lhe pareceu normal ou
justo que se usasse do precioso líquido em uma atividade de limpeza, tomada de um senso
próprio de justiça resolver dividir entre os demais criados a água, e limpar a geladeira
com a boa e velha água sanitária e da pia. Tal “causo” remete a agência de mulheres que
viveram sob a designação de “Domésticas”, suas formas (sutis) de resistência. Lutas
cotidianas entre as visões de senhoras abastadas e suas criadas.
É importante frisar que as disputas ao entorno da mão de obra de mulheres que se
processou entre a virada do século XIX para o XX esteve relacionado aos projetos de
modernização e de construção de valores burgueses que, em contrapartida deparava-se
com a presença “necessária e temerosa” de mulheres “subalternas”, pretas, mulatas e
morenas, que ao longo do século XIX e, muito mais, após o 13 de maio de 1888 passaram
exercer sua autonomia ante as estruturas paternalistas que buscaram novos mecanismos
de coerção e controle sobre as mesmas.
2
Foram utilizados oito títulos de periódicos paraenses de regular circulação entre as décadas de 1850 a
1910, por meio de várias notas publicadas nestes é possível identificar a presença de escravas e libertas em
conflitos do cotidiano, assim como folhetins publicados em meados da década de 1880. Todos os periódicos
consultados estão disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o que possibilitou o recurso
de pesquisa por palavras-chave tais como “liberta”, “preta livre” “mulata” e “escrava”. Se para as décadas
de 1820 e 1830 tais periódicos possuíam circulação restrita a camadas mais abastadas da sociedade, como
destaca Aldrin Figueiredo no período pós-cabanagem no Pará, principalmente a partir da década de 1870 o
consumo destes periódicos alcançou novas camadas sociais. Sobre a imprensa paraense no século XIX ver:
FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Páginas Antigas: uma introdução a leitura de jornais paraenses, 1822-1922.
Margens, v. 2, n 3, 2005. p. 245-266.
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3
A Epocha: Folha Política, Comercial e noticiosa, 20/05/1859, p.2. Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional. (HDBN)
4
Gazeta Official, 03/01/1860, p. 3. HDBN
5
Gazeta Official, 15/02/1860, p. 4. HDBN
6
PALHA, Barbara da Fonseca. Escravidão negra em Belém: mercado, trabalho e liberdade (1810-1850).
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História, Belém, 2011, p. 79-80.
7
A Epocha: Folha Política, Comercial e noticiosa, 07/06/1859, p. 4. HDBN
8
Gazeta Official; 04/06/1859, p. 4. HDBN
9
PALHA, Barbara da Fonseca. Escravidão negra em Belém: mercado, trabalho e liberdade (1810-1850).
pp. 71-76.
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status ao longo da segunda metade do século XIX. Contudo, também possibilitava para
além da sobrevivência a construção de um lugar social.
Engomar, lavar, passar, cozinhar e amamentar todos estes verbos que designam certas
aptidões proporcionaram as libertas e escravas chances de acumular recursos pecuniários.
Algumas delas puderam contar com o auxílio de terceiros, indo além de sobrevivência,
sobraram recursos para investir nos projetos futuros, como alforriar parentes, comprar
escravos e obter autonomia. O número de mulheres libertas em testamentos superava o
número de homens, demonstrando uma pequena vantagem em relação às chances de
mobilidade para as cativas.10
O fato de estarem vinculadas a família senhorial por meio das relações domésticas
potencializaria as chances de liberdade, somando-se também as relações amorosas e
violências sexuais praticadas por senhores contra as suas escravas, não que
necessariamente isto levasse à alforria.
Estar forra não quebraria os laços com seus antigos senhores, e por vezes tais libertas
estariam submetidas aos rigores das prerrogativas senhoriais de domínio. Na repartição
de polícia da capital paraense em 29 de maio de 1855, além de ter sido preso o preto
liberto Antônio Carlos por furto de seringa, também foi detida na cadeia pública de Belém
a liberta Leocádia Maria, “por injúrias que dirigiu a quem deveria tratar civilmente”.11O
“tratar civilmente” remete as hierarquias e expectativas senhoriais ante aos forros e forras,
de quem se esperava deferência e submissão. Em 1887, o Diário de Notícias denunciava
sob o título “Ferimentos” os abusos de um ex-senhor contra a mulata liberta Maria
Viterbo Simões. Este ao encontrá-la “queria que ela lhe tomasse benção”, não tendo suas
expectativas atendidas ele desferiu um golpe com o seu chapéu de sol na mulata.12
Em 1859 o subdelegado de Cametá enviou um ofício com os autos de averiguação de
uma denúncia feita no Jornal O Conservador contra Antônio Rodrigues Vieira (3.º
suplente de subdelegado de Cametá). Este teria posto em troncos a rapariga liberta
Mathilde e a castigado, contudo, na leitura do delegado de Cametá (Guimarães Peixoto)
não havia ocorrido crime algum. Em sua investigação verificou que a rapariga havia
sofrido “somente uns bolos por falta de costuras mandadas dar pela senhora do mesmo
Antônio Rodrigues”, não resultando em crime algum visto que “a rapariga foi criada em
10
LOBO, Marcelo Ferreira. “Apesar de Preto é cidadão”: trabalho, família e mobilidade de libertos no
Brasil (Grão-Pará, 1796-1918). Tese de Doutorado, PPHIST/UFPA, 2019.
11
Treze de Maio (PA), 30/05/1855, p. 1. HDBN.
12
Diário de Notícias (PA), 07/04/1887, p. 2. HDBN.
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sua casa desde a infância tem estado em baixo de sua proteção, e em seu governo, o que
é publicamente sabido em todo este termo”.13
O caso de Mathilde remete as práticas de controle e disciplina sobre as libertas. Estas
sob condições precárias, viviam ameaçadas de sevícias e abusos sexuais. Sidney
Chalhoub analisou o caso de estupro da escrava Honorata, com 12 anos de idade, seu
senhor morador em Pernambuco foi acusado de violentá-la. O caso foi tão chocante que
levou a abertura de um inquérito policial, como destaca Chalhoub o mais impressionante
foi o fato do senhor não negar o estupro, mas defender-se alegando que o ato não se
caracterizava como um crime, pois segundo o artigo 222 do código criminal do Império
o senhor possui pleno poder sobre sua propriedade “salvo em casos de homicídio ou
castigos cruéis”.14
Noções mais amplas sobre direitos próprios aos libertos como conservação, vida,
honra e propriedade estavam em jogo nestas disputas de escravas e libertas contra antigos
proprietários. Formas paralelas de controle sobre a mão de obra de libertas e menores
vigoraram ao longo do século XIX (contratos de locação de serviços, tutelas, alforrias
condicionais), o “desvelo” promovido por senhores aos seus escravos e libertos convertia-
se em domínio e expectativas de obrigação.
O jornal Diário de Belém em abril de 1870 narrava sob o título “ELLE ME REMIO” a
história de uma escrava vendida em hasta pública. Um cavalheiro que passava diante do
leilão de uma escrava decidiu comprá-la, e imediatamente deu-lhe a liberdade. Espantada,
a recém liberta ficou atônita, paralisada de emoção, quando da partida de seu redentor ela
deu um passo adiante e declarou:
- Meu senhor, seguir-vos-ei para onde quer que seja: servi-vos ei enquanto for
viva, porque eu era cativa, e vós me remistes. Oh! Sim, ele me remiu! Ele me
remiu; exclamava ela, erguendo os braços, em cujas mãos a carta de sua
liberdade era convulsivamente apertada.
A turba de curiosos aplaudiu esta cena; e os próprios parceiros, bendizendo
com ternos e húmidos olhares de generosidade, abriram passagem ao
cavalheiro, que lá foi caminho de sua casa, seguido da escrava que libertara.15
13
Gazeta Official (PA), 21/06/1859, p. 1. HBDN.
14
Ver prefácio feito por Siney Chalhoub do livro de Camila Cowling, “Concebendo a liberdade; Mulheres
de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro”; p. 15-18.
15
Diário de Belém, 06/04/1870, p. 1. HDBN.
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de escravos assassinos, até as bondosas mães pretas. Neste sentido tomo aqui de
empréstimo a ideia de iconografia do imaginário apresentada por Schwarz, cujos
romances oitocentistas por vezes apresentados ao público por meio os jornais, vão
formulando visões acerca dos sujeitos históricos, expectativas e sentimentos coletivos de
um dado contexto social.
Ginzburg ao discutir as análises de Eric Auerbach sobre dois romancistas do século
XIX (Balzac e Stendhal) demonstra o quanto o tom verossímil de tais autores contribui e
se coaduna com a narrativa histórica, não pela verdade posta nas obras, e sim pelo tom
verossímil a qual tais autores impregnavam seus textos.16Neste sentido, Robert Schwartz
ao analisar os romances de José de Alencar e Machado de Assis, tece considerações da
imigração de modelos do romance europeu ao Brasil, “a imigração do romance,
particularmente de seu veio realista, iria por dificuldades”. As dificuldades estariam
vinculadas a importação do modelo europeu frente a uma realidade social brasileira
composta por uma multiplicidade de gentes e cenários que não se aplicavam aos
ambientes europeus, implicando em construções literárias não tão verossímeis, desafio
melhor encarado, segundo Schwartz, por Machado de Assis no seu “realismo da
observação miúda”.17
Contrapondo-se ao projeto emancipacionista apresentado na figura da escrava/liberta
agradecida, Marques de Carvalho18escreveu um livreto sob o título A Viola de Joana.
Publicado originalmente em formato de folhetim nos jornais de Belém ao longo de três
meses.19Esta obra foi editada em formato de livreto pela tipografia do jornal Diário de
Notícias em 1888, e narra as peripécias da mulata Joana, as vésperas da abolição.
16
GINZBURG, Carlo. A áspera verdade – um desafio de Stendhal aos historiadores. In: O Fio e os Rastros:
verdadeiro, falso e fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
17
SCHWARZ, Roberto. A importação do romance e suas contradições em Alencar. In: Ao vencedor as
Batatas: forma literária e o processo social nos inícios do romance brasileiro. – São Paulo: Duas Cidades;
Ed. 34, 2000, pp. 35-80.
18
João Marques de Carvalho, nasceu em 1866 em Belém (1866-1910), concluiu seus estudos na Europa
retornando a Belém em 1883, foi escritor, jornalista, político e diplomata, tendo vários contos publicados
nos periódicos de Belém. Ver: Eustáchio de Azevedo (antologia Amazônica).
19
Ao analisar as obras de literatos paraenses na virada do século XIX para o XX, Silva destaca o papel
primordial que os periódicos tiveram na publicação, circulação e difusão de obras escritas por literatos no
Pará, entre tais periódicos o Diário de Belém destacou-se por ser um dos primeiros a abrirem as suas páginas
aos escritores locais. Ver: SILVA, Alan Victor Flor da. Vida literária na Belém oitocentista: a contribuição
do Diário de Belém para o desenvolvimento das letras na capital paraense (1882-1889). Tese (Doutorado)
- Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará,
Belém, 2018, p. 23-27.
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20
SILVA, Alan Victor Flor da. Marques de Carvalho na Imprensa periódica paraense (1880-1900).
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras; ILC/UFPA, 2014, p. 30.
21
Idem, p. 30.
22
Ver: MODESTO, Victor Hugo (2018); “Nascidos de Ventre Livre”: A Tutela de “Ingênuos” Em Belém
Do Grão-Pará (1871-1889). Monografia de conclusão de curso – UFPA/FAHIS, 2018. LOBO, Marcelo
Ferreira. Liberdade tutelada: ingênuos e órfãos no Pará (1871-1893). Dissertação de Mestrado; PPHIST/
UFPA. - 2015.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
23
Certamente os lares de grande parte da população paraense se caracterizava pela simplicidade de seus
utensílios, ainda assim destaca-se que para um grupo restrito dos egressos do cativeiro ocorreu a
possibilidade de mobilidade e acumulação de bens materiais.
24
BARBOSA, Maruel Ferreira. O Pagé: o naturalismo inacabado de Marques de Carvalho (1884-1887).
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, PPHIST/UFPA;
2011, pp. 124-133.
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Para algumas figuras femininas como Joanna, a escrava Josepha e sua filha
Isaura,25Marques de Carvalho buscou atribuir virtudes, ao mesmo tempo que destacava
as caraterísticas vinculadas as classes subalternas. Para sua personagem Joanna, o literato,
atribui um tom positivado dos seus costumes, e desafia ao leitor a encontrar em casa uma
mulher que retrate as virtudes de Joanna; “a minha heroína é uma ficção, mas uma ficção
que exprime a maior realidade de nossa sociedade; porque não se finge, senão o que
realmente existe”, frisando ainda ao leitor “quem sabe se não tem em sua casa uma
Joanna, uma dessas raparigas, apaixonadas, dedicadas, amorosas, que estimam a gente
com todas as veras do amor”.
Composta por trinta “modinhas” a narrativa apresenta Joanna e seu “amásio”. Ao
cantar seus amores pela mulata este vai construído as representações sobre a mulher de
cor. Na modinha I é apresentado o mulato velho que rememora sua vida com Joanna, em
seguida ela é apresentada; “mulata-sangue de gato/mulata-sangue sem lei/se tu queres ser
rainha toma meu cetro de rei”. Joanna é posta como uma personalidade forte, rebelde, e
em certo sentido independente. Na mesma modinha (II) é posto a sexualidade da heroína,
além de mostrar que a mesma era cativa; “veras mulatinha bela, /que varinha de
condão.../faz esquecer aos cativos/as dores da escravidão;/faz desprezar os deleites/ da
próxima redenção”.
A sexualidade da heroína é apresentada em vários trechos da obra, os desejos do
mulato por Joanna são cantarolados várias vezes através de alegorias que remetem a
relações sexuais. A primeira relação de Joanna é desenvolvida ainda infância, no quintal
da casa a qual corria e brincava, neste momento ao “acabar a brincadeira” Joanna deixava
de ser criança, poderia estar cá a alusão a uma relação consentida, ou como era comum
as escravas da casa um estupro perpetrado pelo senhor moço, ou outros cativos.26
Ao caracterizar Joanna o autor a designa “faceira como um macaco/tem as doçuras da
cana/no requebrado... que coisa”. Como destacou Maruel Ferreira, é possível perceber no
literato em questão as impressões racializadas sobre os negros e mulatos, uma concepção
higienista é percebida na própria iconografia presente da obra (imagem I). Em relação às
25
Josepha e Isaura são as personagens apresentadas no conto A Lição de Paleógrapho, publicado em 1889
no primeiro aniversário da abolição da escravidão no jornal A Província do Pará. o conto narra a trajetória
da escrava Josepha e sua filha Isaura, esta última foi levada para Europa em companhia da família do senhor
de Josepha, seu senhor prometia instrui-la e educá-la, anos de passaram quando Josepha recebe uma carta
de sua filha e decide aprender a ler para que pudesse ela mesma ler a carta.
26
“Em lá chegando, botava/o ferro no seu canal;/faria do peito dela/ meu escaler festival (modinha IV). “e
o brinquedo do jujú/no quintal da Violante/Tu te lembras, ó Joanna/ Desse brinquedo galante?
/Escondíamos da mãe/por detraz da pacoveira.../um dia...Zaz! deste um berro, /E acabou a brincadeira.
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27
“Mas a arte não quer dizer/só nos bailes bem dançar/Arte está no bem fazer/ e no melhor acabar/Aplica-
te bem Joanna/Nesta arte culinária;/imitando o quanto puderes, / uma tar de januaria.”
240
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A liberdade tida como um problema, foi uma das questões centrais nos discursos sobre
a abolição da escravidão. Estaria o liberto apto a viver em liberdade? Como lidar com a
“horda” de libertos despreparados e incutidos dos “vícios” do cativeiro? Valder Paixão
analisou os discursos de Joaquim Nabuco e Tavares Bastos quanto a questão do fim da
escravidão, demonstrando nestes discursos a necessidade de uma política de preparação
destes libertos para “tornarem-se cidadãos”, por meio do trabalho e da educação.28
Marques de Carvalho ao final deixa “Joanna falar”, por meio de uma carta que “ela
escreveu” a sua amiga Maria do Rosário. Joanna descreve o que ocorreu na casa de seu
patrão durante um domingo, ao explicar de maneira sôfrega o funcionamento de um
estranho aparelho (telefone) que ficava na sala de seu patrão. O autor está evidenciando
as transformações que se processam em meados daquele século, a ideia de um progresso
científico com o desenvolvimento de tecnologias a luz do pensamento moderno, como
também indica um mundo rústico, atrasado e ignorante diante da reação de Joanna.
Às três da tarde, quando a mulata estava a preparar a janta o telefone tocou e não
demorou para escutar os gritos de seu patrão; “Viva a liberdade! Viva a princesa! Viva
João Alfredo! Viva Joanna!”. Joanna relatava a sua amiga o fim da escravidão: “Estamos
livres, minha querida amiga, estamos livres desse cruel cativeiro que, quando mesmo mais
suave parecesse, era sempre insuportável, porquanto usurpava o direito que tínhamos ao
nosso trabalho e ao seu produto”, ao termino da Carta assinava o nome “Joanna Treze de
Maio”.
A perspectiva lançada pelo autor atribui a existência de modalidades mais suaves da
escravidão, uma relação menos cruel, e quiçá mais humana. Entreve-se uma romantização
da exploração do trabalho dos cativos, para o autor o que estava em jogo era o direito ao
produto do próprio trabalho, essa foi a leitura de muitos abolicionistas da década de 1880,
ao liberto caberia usufruir dos frutos de seu suor livremente, contudo como já
28
SILVA, Valder Paixão e. Abolicionismo e Instrução: o aprendizado da liberdade (Pará, 1860-1888).
Trabalho de conclusão de curso; Faculdade de História, IFCH/UFPA, 2019.
241
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
29
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª
Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
30
MATA, Iacy Maia. ―Libertos do Treze de Maio‖ e ex-senhores na Bahia: conflitos no pós-abolição.
Revista Afro-Ásia nº 35, pp. 163-198.
31
BEZERRA NETO, José Maia. José Veríssimo: Pensamento Social e Etnografia da Amazônia
(1877/1915). Dados vol.42 n.3 Rio de Janeiro 1999.
32
RONCADOR, Sônia. A doméstica imaginária: literatura, testemunhos e a invenção da empregada
doméstica no Brasil (1889-1999). – Brasília: editora Universidade de Brasília, 2008, pp. 17-76.
33
Sobre o fenômeno do medo da ação dos cativos as vésperas da abolição ver: AZEVEDO, Célia Marinho
de. Onda negra medo branco, o negro no imaginário das elites no século XIX. Annablume, 2004.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
longos artigos foram publicados no jornal Estado do Pará em junho de 1918, a tônica
central de tais artigos era o “saneamento moral e social de Belém” por meio da
criadagem.34Muitas das concepções presentes na literatura acerca de tal camada da
população estiveram presentes nos debates da Câmara Municipal em março de 1889.
34
Estado do Pará, 23/06/1918, p.1; 16/08/1918, p. 2. HDBN.
35
SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas, Tributos e Mercado de Trabalho em Belém (1890-1910). In:
Tesouros da Memória – História e Patrimônio no Grão-Pará. Aldrin Moura Figueiredo & Moema Bacelar
Alves (orgs.). MABE, 2009, Belém.
36
LACERDA, Franciane da Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889/1916).
Belém; Ed. Açaí, 2010.
37
GUIMARÃES, Eduardo Valente. Migrações portuguesas no Pará (1800-1850). Tese (Doutorado) -
Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém, 2016. Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia.
38
MALCHER, Aline de Kassia. Chegadas e partidas: a trajetória de trabalhadores espanhóis na
metrópole amazônica (1898-1920). In: Trabalho, democracia e direitos, volume 2: mundos do trabalho,
identidades e cultura operária [recurso eletrônico] / Clarice Gontarski; Speranza; Micaele Scheer (Orgs.) –
Porto Alege, RS: Editora Fi, 2019, pp. 233-254.
39
LIMA, Maria Roseane Corrêa Pinto. Barbadianos negros e estrangeiros: trabalho, racismo, identidade
e memoria em Belém de início do século XX. Tese – Universidade federal Fluminense, Departamento de
História, 2013.
40
BEZERRA NETO, José Maia. Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da escravidão urbana em
Belém (1860-1888). Revista: História & Perspectivas, Uberlândia (41): 267-298; jul/dez.2009.
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alforrias levantadas por meio dos testamentos, as décadas de 1870 e 1880 foram a que
mais produziram manumissões em termos percentuais. Além destas, a partir da década de
1870 os escravos adquiriram mecanismos legais para obtenção da liberdade por meio da
Lei do Ventre livre (1871) e dos Sexagenários (1885), tendo nos tribunais de Belém um
espaço para lutar pela liberdade.41O mundo urbano atraiu essa população liberta em
virtude das possibilidades de trabalho, moradia, e redes de solidariedade como a
irmandades religiosas. Os dados abaixo confirmam tal afirmativa.
TABELA – I
Trabalhadores Livres e Escravos da Província paraense, 187242
Livres Escravos %* Total
Artistas 2.056 76 0,81% 2.132
Marítimos 971 56 0,39% 1.027
Pescadores 894 95 0,37% 989
Criados e 3.193 1.043 1,62% 4.236
Jornaleiros
Serviços 22.657 3.831 10,13% 26.488
Domésticos
Costureiras 6.141 960 2,71% 7.101
Edificações 888 360 0,47% 1.248
Madeiras 2.232 283 0,96% 2.515
Lavradores 83.979 11.353 36,48% 95.332
Criadores 943 0,36% 943
Sem profissão 110.370 8.944 45,65% 119.314
Total 234.324 27.001 100% 261.325
* Percentual de trabalhadores Escravos em relação ao total de trabalhadores.
41
LOBO, Marcelo Ferreira. Direito e Escravidão: As ações de liberdade nos tribunais de Belém na segunda
metade do século XIX. Trabalho de conclusão de curso. UFPA, IFCH, Faculdade de História, 2011.
42
Dados sobre o censo imperial de 1872 disponíveis no site do Núcleo de Pesquisas em História Econômica
e Demográfica/ NPHED. www./nphed.cedeplar.ufmg.br/pop72 , acessado em 01/08/2019, às 10:40.
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Tabela II
Trabalhadores escravos da capital do Grão Pará, 1872.
Serviços Domésticos. 1.130 22,21%
Lavradores 1.034 20,32%
Criados e Jornaleiros 767 15,07%
Marítimos. 62 1,21%
Pescadores 37 0,72%
Atividades mecânicas 873 17,16%
Sem qualificação definida 1.184 23,27%
Total 5.087 100%
Na tabela acima optei por utilizar apenas atividades que contam com a participação de
escravos, outros ofícios como cirurgiões, juízes, e demais atividades declaradas de
“profissionais liberais” foram deixadas de lado. Após as atividades dedicadas a
agricultura, que ocupam a maior parcela da população da província, foram seguidas
justamente ofícios dedicados aos serviços domiciliares e urbanos, serviços domésticos,
seguido por criados e jornaleiros, correspondendo a 11,73% do total de trabalhadores.
Destes trabalhadores, Belém concentrava 30%, 57,08% e 80,53% entre serviços
domésticos, criados e jornaleiros, e artistas respectivamente. Embora a permanência de
cativos neste mercado urbano de trabalho seja importante, visto que muitos eram alugados
a terceiros por seus senhores e agentes, a presença contínua de libertos deve ser tida como
uma válvula de suprimento de mão de obra. Em abril de 1885 a bordo do vapor
Pernambuco chegavam a Belém alguns libertos que foram contratados em Teresina, o
Diário de Notícias denunciava que entre homens e mulheres desembarcados haviam
menores, possivelmente ingênuos,43no início do mês de abril do mesmo ano pelo vapor
Dito chegaram 48 passageiros, sendo 28 libertos, para trabalharem na olaria de Domingos
Nouguez.44
No Pará oitocentista temos uma população caracterizada pela mestiçagem, das 275
232 almas apontadas na província pelo censo de 1872, divididos segundo o censo em
brancos, pardos, pretos e caboclos, livres e escravos, os não brancos chegam a 66, 34%
da população do Grão-Pará. A capital, Belém, possuía valor aproximado em relação a sua
população não branca, das 61 997 almas da cidade, 64,82% eram pretos, pardos e
43
Diário de Notícias, 08/04/1885, p. 3.
44
Diário de Notícias, 07/04/1885, p. 3.
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caboclos, chegando a ter em 1872 pelo menos 225 africanos livres dos 586 apontados
pelo censo. Somados pretos e pardos, estes ultrapassam de longe a população designada
como branca. Desde a segunda metade do século XIX, e particularmente a partir da
década de 1870, as discussões sobre a mão de obra livre perpassaram pelo viés da
educação, uma educação de caráter oficioso para as classes populares, incutindo não
apenas as habilidades necessárias ao ofício,45mas valores morais que atribuíssem as
atividades mecânicas um caráter positivo. O mercado de trabalho para a população
masculina se apresentava sob um leque de atividades, contemplando escravos e libertos,
para as mulheres a maior parte das oportunidades estariam disponíveis nos “serviços
domésticos”.
Vicente Salles classificou as escravas de serviço doméstico como uma categoria a
parte, onde ocorria uma maior aproximação entre cativos e senhores, e por vezes resultava
em um processo de mestiçagem. Várias cidades do Império passaram a debater ao longo
das décadas de 1870 e 1880 a necessidade de controle sobre a mão de obra dos fâmulos.
Em novembro de 1883 no Diário de Belém, foi publicado um longo artigo versando
sobre a segurança pública e o combate a vadiagem na capital paraense. O articulista
buscava instigar uma atuação mais efetiva da polícia contra a “malta de vadios”, dando
caça a estes e os obrigando a assinar o termo de bem viver, a questão da emancipação
escrava esteve vinculada ao tema; “entretanto maltas de vadios enchem as nossas ruas,
hoje principalmente com o subsídio que recebem do elemento servil, cuja extinção todos
procuramos”. Ao recém liberto conviria a obrigação ao trabalho, visto que:
O escravo se liberta e vai para os cortiços, enferma no vicio e entra logo para
o círculo dos que esmolam a caridade pública. Liberta-se para ser pesado a
ordem pública e finalmente a caridade dos bons e prestantes cidadãos!
Por que se o não constrange ao trabalho?
Cumprisse a polícia o que lhe incumbe com relação aos vadios, e a moralidade
pública lucraria imensamente, e a indústria não viveria entre nós tão
esmorecida à mingua de braços.
Tal leitura sobre o liberto permanecerá presente ao longo da década de 1880 e nos anos
subsequentes a Abolição da escravidão. Neste cenário de crítica a mão de obra nacional,
políticas de controle e formação de mão de obra estiveram ao lado de projetos de
melhoramento da raça com a entrada de imigrantes europeus, no Pará entre 1890 e 1920
entraram por volta de 15 000 imigrantes espanhóis em direção às colônias
45
COSTA, Raíssa Cristina Ferreira. A pedagogia da liberdade: a educação profissionalizante e o Instituto
Paraense de Educandos Artífices. Monografia de Conclusão de Curso. UFPA/ IFCH, Faculdade de
História, 2016.
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agrícolas.46Uma mão de obra que não estaria necessariamente qualificada, mas desejosa
de escapar dos conflitos e condições precárias de seu lugar de origem.
O articulista do Diário de Belém dedicou algumas linhas para falar da criadagem.
Segundo ele as mulheres que se colocavam a alugar impunham de imediato a condição
da “dormida livre”, “porque o cortiço é seu elemento e a prostituição seu sonho de todas
as horas”. O controle sobre as práticas e costumes de suas criadas foi um dos temas mais
discutidos quando da regulamentação do serviço doméstico em Belém, o articulista
deixava claro que as criadas daquele contexto eram um mal necessário, um risco ao seio
familiar, a moral, um canal de contaminação, “e pode uma mulher dessas ser admitida em
casa de família? A que outras se recorrerá?”.
São Paulo,47Rio de Janeiro,48Rio Grande do Sul,49Recife, Salvador50e Belém tiverem
seus embates nas assembleias locais a fim de regulamentar os serviços domésticos.
Segundo Marina Barreto, na década de 1880 ao menos 25 cidades do Império passaram
a debater e produzir regulamentos sobre tais trabalhadores.51Em Belém tais discussões já
aparecem nos jornais a partir de 1881. Segundo Bezerra Neto foi noticiado no Diário do
Gram-Pará que o então chefe de polícia da província estava confeccionado um projeto
de regulamentação do serviço doméstico, visto que o trabalho livre de então estava sujeito
a muitos vícios.52A presença não só de escravas, mas também de libertas em atividades
domesticas foi algo comum no Pará, o Diário de Notícias denunciou em 21 de dezembro
de 1885, que no distrito do Mojú a polícia invadiu a casa comercial de Ferrão Silva &
Cia, agarrando e conduzindo a cozinheira, então liberta Alexandrina.
Em março de 1888 foi denunciado que o subdelegado do segundo distrito da capital
havia invadido a casa de uma mulher chamada Amália, na rua das Flores, remexendo a
“mais pequena caixa de segredos da pobre mulher”.53Em resposta, o dito subdelegado
46
LIMA, Aline de Kassia Malcher. Já citado.
47
TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São
Paulo (1880-1920). São Paulo: Alamenda, 2013.
48
COWLIG, Camila. Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas
cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.
49
BAKOS, Margareth. Regulamentos sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento
Estado e Sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889). Revista Brasileira de História.
50
SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fûlo: Histórias de trabalhadoras domésticas em
Recife e Salvador. Jundiai, Paco Editorial, 2016.
51
BARRETO, Marina Leão de Aquino. Criada, não, empregada! contrastes e resistências sob a vigília dos
patrões na regulamentação do trabalho doméstico livre ao final do século XIX em Salvador. -- Salvador,
2018. p. 21.
52
BEZERRA NETO, José Maia. Por Todos os Meios Legítimos e Legais: As lutas contra a escravidão e
os limites da Abolição (Brasil, Grão-Pará, 1850-1888). Tese de Doutorado, PUC- SÃO PAULO, PGHIST,
São Paulo, 2009. p. 342.
53
O Liberal do Pará, 25/03/1888, p. 2. HDBN.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
publicou suas explicações no Diário de Notícias, segundo ele, o chefe de polícia o havia
designado para averiguar o roubo de algumas joias da Tinturaria do Comércio que teriam
sido levadas pela cozinheira do mesmo estabelecimento de nome Anna Andreza, filha da
liberta Amália. Ao entrar na casa delas lhe foi apresentado 4 caixas, duas vazias e duas
com joias, porém estas não eram as joias roubadas da tinturaria, mãe e filha foram
intimadas a comparecerem à delegacia de polícia a fim de prestarem esclarecimentos.54
Já que trato deste fato, devo cientificar ao público que Amália e sua filha Anna
Andreza, sendo interrogadas pelo chefe de polícia, divergiram em pontos
essenciais do seu interrogatório, ficando a dita autoridade convencida de que
Anna Andreza, foi quem furtou da gaveta de uma cômoda, do quarto das
meninas órfãos do finado tintureiro Coumat, as joias a que acima me refiro”.55
A suspeição que recaia sobre libertos, especialmente criadas, era um dos grandes
problemas enfrentados por tais mulheres. Foi Amália quem procurou os jornais para
denunciar os abusos do subdelegado, em um contexto de efervescência do movimento
abolicionista paraense. Talvez acreditasse poder contar com a simpatia de algum
abolicionista ante a sua causa. Mãe e filha sobreviviam de alugar seus serviços, possuíam
algumas joias, objetos que foram comuns a libertas nos testamentos, teriam rendas
mínimas para seu sustento, como reforça Maria Odila, estas mulheres viviam mais como
autônomas, não necessariamente como assalariadas,56eram formas hibridas de trabalho,
que mesclava o servilismo da escravidão, as aspirações modernizantes sobre o trabalho e
a luta cotidiana por autonomia destas mulheres. A menor Antônia Luísa, filha da liberta
Crescencia Maria da Conceição, mesmo sendo ingênua foi alugada aos comerciantes
Sinay & Levi, sendo pago trinta mil reis mensais a antiga senhora de sua mãe, e após o
treze de maio passou a receber para si o valor de trinta e cinco mil reis mensais.57
As mulheres que viviam da produção e venda de comida estavam marcadas pelas
experiências da escravidão, mulheres pobres marcadas por designações depreciativas,
consideradas de maus costumes.58Como ressalta Maria Odila; “não eram assalariadas,
não gozavam de direitos civis, nem tinham acesso à cidadania política”, 59seus registros
são tão esparsos e dispersos que reconstituir suas vidas, experiencias e lutas tornou-se um
desafio aos historiadores.
54
Diário de Notícias (PA), 27/03/1888, p. 3. HDBN.
55
Idem.
56
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder: em São Paulo no século XIX. Editora Brasiliense,
1984, p. 24. p.9.
57
Auto de Tutela da menor Antônia. Série: Cível; Subsérie: Tutelas, Caixa: 1888. Cartório Ódon. Centro
de Memória da Amazônia.
58
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder: em São Paulo no século XIX.
59
Idem, p.31.
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Para a população masculina de libertos, pude me valer das listas de cidadãos votantes,
de matrículas de alunos, e tantas outras informações que aparecem nos jornais, para
resgatar suas experiências, já para estas mulheres, restaram apenas suas alforrias, suas
sombras em processos de liberdade, notas de jornais que traziam os padrões normativos
e morais construídos por homens, reforçados por mulheres de aspirações burguesas.
Escravas e libertas, não estavam a margem do cotidiano, estiveram no centro, nas ruas,
nas cozinhas, mercados, tabernas, construindo seus próprios valores.
Eleodora Maria da Conceição, de 27 anos, natural de Monte Alegre interior da
província, residente na travessa de Santo Antônio, no dia 4 de agosto de 1887, por volta
das cinco horas da tarde escutou sua “vizinha” Patrícia Maria da Silva, de sua “casa”,
chamá-la de ladra acusando de ter furtado certa quantia. Defendeu-se declarando que não
possuía tal vício e que já esteve “alugada em muitas casas comerciais, sem quem nenhum
de seus patrões tivessem queixas suas”, e mais, que Patrícia dizia semelhante coisa
“porque se mostrava ser uma negra”.60No dia seguinte, Patrícia foi ao encontro de
Eleodora que acabava de fazer compras na taberna fronteiriça a sua residência, armada
de uma faca, e tentou golpeá-la sendo impedida pelo dono do comércio e sua amásia.
Entrevemos neste caso uma série de elementos do submundo de empregadas,
taberneiros e amasias. Certos valores presentes nos discursos das elites foram
ressignificados por Eleodora, ter trabalhado em muitas casas lhe conferiu um ar de boa
criada, mesmo que nas discussões sobre o regulamento em março de 1889, o fato da
frequente circulação das domésticas ser duramente criticado. Ao alegar que Patrícia se
“mostrava ser uma negra”, não me parece estar simplesmente aludindo a cor, e sim aos
signos da negritude, as atitudes de Patrícia, seriam atitudes de uma negra, cheia de vícios
tal qual é construída nas narrativas de folhetins, e notícias dos periódicos.
Elas coabitavam uma casa subdividida em quartos com outros tantos moradores, os
cortiços, que passaram a abrigar libertos, imigrantes e migrantes. Patrícia era natural do
Maranhão, tinha 21 anos, mulher solteira, coabitando com outras mulheres e homens,
além de ter sido roubada, foi chamada de negra em tom jocoso, teve de lidar com sua
própria condição e no ímpeto de sua juventude resolver levar a cabo uma fadada vingança.
Para além da importação de mão de obra masculina, estas mulheres também migravam,
forçosamente ou por escolha própria, em um contexto de crescente urbanização. Tais
experiencias de lutas efetivadas por mulheres foram tecidas ainda durante o regime
60
Autos de Crime de tentativa de Homicídio, 1887, 1º Distrito Criminal, notação 7 (1887-1892). CMA.
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Família de libertas
Uma família de libertas que potencializou a mobilidade ao longo de duas décadas foi
a de Maria da Conceição e suas filhas. A manutenção de bens ao longo das décadas de
1860 e 1870 foi uma das estratégias de sobrevivência e mobilidade acionadas por estas
mulheres. Maria da Conceição além de liberta era africana, possuía um quarto de casas
na travessa São Matheus e um terreno na Estrada de São Jeronimo, não é difícil supor que
ela tenha herdado tais propriedades de seus antigos senhores. Era então solteira com duas
filhas e uma neta, Dorothea das Chagas, Maria de Nazareth e Ignez de Jesus
respectivamente, estabelecendo a seguinte divisão de seus bens:
Declaro que deixo o quarto de casas onde moro sito a travessa São Matheus a
minha filha Maria de Nazareth com a obrigação desta dar a sua irmã Doroteia
das Chagas a quantia de cento e cinquenta e seis mil reis.
Declaro que deixo cinco braças de frente e seus respectivos fundos do terreno
que possuo na estrada de São Jeronimo a minha filha Doroteia das Chagas;
bem assim deixo mais a esta todos os aviamentos existentes no mesmo terreno
e toda a telha que tenha na casa em que mora para ajuda de qualquer edificação
que ela tenha que fazer no supradito terreno.
Declaro que deixo duas braças do remanescente terreno acima declarado sendo
estas de frente e seus respectivos fundos a minha neta Ignez de Jesus filha da
minha filha Maria de Nazareth.
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Dorothea das Chagas foi designada como preta em seu testamento, o mais provável é
que o escrivão assim tenha feito, menos em função da sua cor e sim pelo reconhecimento
social dado a ela. Ela legou sua casa na estrada de São Jeronimo a sua irmã, e parte de
seu terreno ao mestre sineiro da igreja de Nazareth chamado Manoel Teles, é mais
provável que este tenha entrado no círculo social de Dorothea por ser vizinho,61além da
proximidade espacial temos a proximidade social pautada na designação de cor, em 1877
foi publicado o falecimento de Manoel Telles, pardo, casado, sacristão da freguesia de
Nazareth, neste sentido testadora e herdeiro compunham o que usualmente se designou
no século XIX como pessoas livres de cor.62O círculo social a qual Dorothea estava
imerso vinculava-se ainda a antiga condição de sua mãe, todas às três mulheres nomearam
como testamenteiro ao Sr. Ricardino Augusto da Costa, este por sua vez aparece como
testamenteiro ao menos 14 vezes entre as décadas de 1860 e 1880, seu nome foi recorrente
nos jornais de Belém, principalmente em relação à captura e detenção de escravos de sua
propriedade.
A presença contínua de Ricardino nos testamentos desta família de libertas demonstra
a influência e a capacidade do domínio senhorial, claro que tal domínio na vida em
liberdade exigiria contrapartidas vinculadas a noção de proteção, uma destas foi ter sido
nomeado testamenteiro delas. Tarefa essa que não era algo tão simples visto ter que fazer
cumprir as últimas disposições das testadoras, exigindo certa dedicação e tempo para tal
tarefa. As informações sobre cada uma dessas mulheres são parcas, enquanto para libertos
seus nomes podem ser rastreados com maiores chances de êxito, as libertas raramente
aparecem nos jornais de maneira especificada, não por estarem restritas ao universo
doméstico, e sim por estarem inseridas em um processo de exclusão social amplo, atrelado
a status jurídico, cor e gênero.
Mulheres negras, pardas e mulatas, agiam entre brechas das estruturas da escravidão,
do paternalismo e patriarcado. Não votavam, não tinham acesso a cargos públicos salvo
de professoras, não passaram por um processo de valorização de seu trabalho como
ocorreu com os artífices na virada do século XIX para o XX. Ainda assim, margeando as
engrenagens do poder, das estruturas, conseguiam mobilidade e inserção social, como já
destacou Sheila de Castro Farias ao tratar das “sinhás pretas”. Demonstrou que estas
61
Em um anúncio de venda de um terreno na Estrada de São Jeronimo, o mesmo terreno localizava-se
continuo a casa do sr. Manoel Telles. Neste sentido infiro tratar-se do mesmo Manoel indicado no
testamento de Dortothea. Diário de Belém, 03/09/1869, p. 3. HDBN.
62
A Constituição (PA), 13/07/1877, p. 2. HDBN.
251
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63
FARIAS, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras. Tese apresentada ao
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense Concurso para Professor Titular em História
do Brasil. Niterói, 2004.
64
Testamento e Antônia da Veiga da Fonseca, 1842.
65
Diário de Belém, 20/03/1889, p. 7. HDBN.
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O certo é que Maria legou em esmolas, doações aos seus afilhados e amigos, doações
as irmandades religiosas, mais dinheiro de missas para sua alma atingindo o valor de dois
contos e oitocentos mil réis, não foi um montante irrisório mesmo para meados da década
de 1870. Certamente Maria poderia ser designada como uma “sinhá preta”, embora sua
condição tenha diluído sua cor em um processo de embranquecimento social. Salvo a sua
genealogia descrita em testamento não ocorreu menção a sua cor, e a condição de africana
liberta de sua mãe. Guardava em sua memória a dor da perda de mãe, irmã e filha, tanto
que preocupada com a vida “além túmulo” mandou dizer capelas de missas por seus
familiares:
Quero que se mande rezar uma capela de missas por minha alma, uma dita por
alma de minha mãe, uma dita por alma de minha filha Ignez de Jesus, meia
dita por alma de minha irmã Dorothea das Chagas, meia dita por alma de meu
irmão Manoel e meia dita por alma de Gaudêncio, a quem em vida reconheceu
como pai.
Nascida e criada no catolicismo popular, por sua morte legou dinheiro as irmandades
do Santíssimo Sacramento da Freguesia da Campina, de Nossa Senhora das Dores do
Rosário da Campina, para a própria Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Campina
assim como a de São Benedito e de Nossa Senhora da Conceição existentes na igreja da
Campina, colaborou também para os festejos em homenagem a São Raimundo Nonato da
igreja de Sant’Anna da Campina. Sua religiosidade eminentemente católica estava
atrelada a uma das irmandades “pretas” de Belém, ressaltando traços da sua identidade
familiar e de seu status social, desejou então ter um lugar especial para seus restos
mortais; “quero também, que depois de três anos de meu falecimento sejam exumados os
meus restos mortais e depositados numa urna na igreja do Rosário da Campina”. O teor
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simbólico de tal desejo remete ao prestígio que Maria acreditava possuir em virtude talvez
das muitas doações feitas para a igreja, reconstruindo uma tradição do “mundo branco
lusitano” na sua comunidade negra. Exigiu bem mais que sua mãe e sua irmã, e assim o
fez por poder fazer, seu grau de mobilidade em termos materiais seria utilizado no próprio
processo de salvação de sua alma, barganhava assim como muitos senhores a salvação
por meio da piedade cristã na hora da morte, chegou a legar dois mil reis a cada Lázaro
do Asilo do Tucunduba que lá existisse quando morresse.
Dentre os vários nomes mencionados em seu testamento estava o da professora de
ensino primário do 3.º distrito da capital Antônia de Jesus Gomes Franco. Maria de
Nazareth declarou o seguinte “deixo duzentos mil reis a minha comadre Dona Antônia de
Jesus Gomes Franco, professora pública nesta capital”. A escolha das palavras ao se
referir a Antônia de Jesus são significativas, foi a única das mulheres designadas como
Dona no testamento e tal termo é tomado enquanto símbolo de prestígio social, além
disso, ela chamou de comadre, neste sentido provavelmente Antônia foi madrinha da sua
falecida filha Ignez de Jesus.
O pouco que pode-se saber sobre sua comadre é que ela estudou no Colégio do Amparo
em Belém, instituição fundada no início do século XIX pelo Bispo D. Manoel Almeida
Carvalho em 1804, a fim de abrigar e promover a educação de meninas índias trazidas
para a capital, e ao longo do século XIX se tornou um importante instituto de ensino a
meninas desvalidas e pensionistas.66Em 1859 Antônia solicitou ser admitida para realizar
o exame de provimento para a cadeira de ensino primário no distrito do Mojú,67ao que
parece ela executou tal exame com excelência recebendo elogios pela folha Gazeta de
Notícias; “foi em verdade um ato de glória e satisfação para muitos dos
assistentes”,68nomeada para tal vaga em meados de abril de 1859.69Ainda no primeiro
semestre de 1859 foi transferida para a cadeira de ensino feminino do 2.º distrito da
Capital,70tendo ocupado na década de 1870 a cadeira de ensino primário do sexo feminino
no 3.º distrito de Belém.
Impossível saber que maneira Maria de Nazareth e Antônia se conheceram, contudo,
Ignez já era nascida em 1864 e Antônia como madrinha da mesma já mantinha contado
66
Sobre o colégio do Amparo em Belém ver: SABINO, Elianne Barreto. A Assistência e a educação de
meninas Desvalidas no Colégio de Nossa senhora do Amparo na província do Grão – Pará (1860 -1889).
Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, UFPA, 2012.
67
A Epocha: Folha política, comercial e noticiosa, 01/03/1859, p. 2. HDBN.
68
Gazeta Official, 15/04/1859, p. 2. HDBN.
69
A Epocha: Folha política, comercial e noticiosa, 26/04/1859, p. 2. HDBN.
70
Gazeta Official, 02/07/1859, p. 2. HDBN.
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com esta família de libertas ao menos durante 15 anos, enquanto professora primaria
poderia lecionar a Ignez ampliando as chances de mobilidade geracional. Entre os
afilhados de Maria de Nazareth encontrei membros de famílias senhoriais, de
comerciantes, da armada e escravos. Manteve contato com a família de Ricardino
Augusto da Costa, deixou duzentos mil reis a neta deste, Maria Augusta da Costa,
mencionou o nome da mãe de Ricardino e a incumbiu de cuidar das missas a sua Coroa
do Divino Espirito Santo, a relação tão longeva com esta família faz crer que se tratava
da antiga família senhorial a qual sua mãe pertenceu. Relações de parentesco Ritual
reafirmavam laços horizontais e verticais com a antiga família patriarcal.
Maria deixou o valor de quatrocentos mil réis para a alforria de sua afilhada Benedicta,
escrava de um Jeronimo de tal da Costa, e se esta já estivesse livre tal valor deveria lhe
ser entregue da mesma maneira, além do dinheiro deixou um cordão de ouro. No limiar
de sua vida pode prover, ou ao menos tentar, a experiência de liberdade a uma jovem
cativa, sabia então que a sociedade poderia absorver Benedita, torná-la livre e senhora de
si.
Considerações finais
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relações sociais conquistaram direito a família (embora este estivesse sob ameaça
continua), a bens, e uma ainda confusa e complexa “semi-cidadania”.
Nas “fimbrias do sistema”, ampliavam as chances de mobilidade de seus
descendentes, e, ao mesmo tempo contrapunham-se aos modelos de feminilidade
projetados pelos ideais de civilização modernos.
256
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Referências Bibliográficas
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elites no século XIX. Annablume, 2004.
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a escravidão e os limites da Abolição (Brasil, Grão-Pará, 1850-1888). Tese de Doutorado,
PUC- SÃO PAULO, PGHIST, São Paulo, 2009.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder: em São Paulo no século XIX.
Editora Brasiliense, 1984.
257
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SILVA, Alan Victor Flor da. Marques de Carvalho na Imprensa periódica paraense
(1880-1900). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras;
ILC/UFPA, 2014.
SILVA, Alan Victor Flor da. Vida literária na Belém oitocentista: a contribuição do
Diário de Belém para o desenvolvimento das letras na capital paraense (1882-1889). Tese
(Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras e Comunicação,
Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.
SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fûlo: Histórias de trabalhadoras
domésticas em Recife e Salvador. Jundiai, Paco Editorial, 2016.
TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho
doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alamenda, 2013.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al2.p.260.287
Resumo
A trajetória de Isabel Valença popularizada no carnaval como “Chica da Silva” nos
permite perceber a importância da relação estabelecida entre a cultura e a imprensa, para
o debate sobre gênero e raça nos anos 1960. Representando uma escrava no período
colonial, Isabel sintetizou a força de superação das mulheres, se tornando um exemplo a
ser seguido. A imprensa ajudou a construir o mito e até os dias atuais continua a
reverenciar essa personagem no cenário cultural do Rio de Janeiro. Outras mulheres
importantes na história da agremiação também foram relevantes neste cenário e serão
brevemente comentadas. Utilizando matérias do período e textos mais atuais, livros de
jornalistas e pesquisadores desenvolvi as bases deste artigo.
Palavras-chave: carnaval; imprensa; escolas de samba; memória; questão social; gênero.
Abstract
Isabel Valença's journey popularized in carnival as “Chica da Silva” allows us to perceive
the importance of the relationship established between culture and the press, for the
debate on gender and race in the 1960s. Representing a slave in the colonial period, Isabel
synthesized the strength of overcoming women, becoming an example to be followed.
The press helped build the myth and to this day continues to reverence this character in
the cultural scene of Rio de Janeiro. Other important women in the history of the
association were also relevant in this scenario and will be commented shortly. Using
materials from the period and more current texts, books by journalists and researchers, I
developed the bases of this article.
Keywords: carnaval; press; schools of samba; memory; social issues; genre.
1
Professor Assistente da Universidade Veiga de Almeida, Pós-Doutor História (USP) e Doutor em História
(UFF). E-mail: [email protected]
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Nos anos 1960, o desfile das escolas de samba passou a se constituir no grande
evento do carnaval carioca. Os enredos apresentados passaram a ser ampliados e
ganharam espaços consideráveis na imprensa. Em alguns casos, histórias retratando
personagens negros, que a história brasileira pouco referenciava tornaram possível
revelar para o grande público exemplos de resistência, ousadia e criatividade.
No ambiente do carnaval carioca vivia-se uma dualidade, de um lado buscava-
se representar na avenida os símbolos, oriundos de valores que vinham sendo
“pregados” pelo Estado, por outro lado, algumas agremiações demonstravam um
desejo de ampliar o leque de discussões e questionar a própria ascensão social por parte
dos sambistas. Na maioria dos relatos dos pesquisadores2, como Sergio Cabral (1996),
Haroldo Costa (1984), Felipe Ferreira (1999), o Salgueiro “revolucionou” a ideologia
e a estética dos enredos abrindo novo campo de discussões acerca da História brasileira
e sua interpretação.
A Acadêmicos do Salgueiro também inovou nas escolhas dos enredos,
homenageando personalidades brasileiras, na época, pouco conhecidas,
como Zumbi dos Palmares (em 1960), Chica da Silva (em 1963), Chico
Rei (em 1964) e Dona Beija (em 1968). Na época, apenas figuras conhecidas
da história nacional eram temas de enredo, herança do patriotismo imposto
pelo Estado Novo e que ainda vigorava no carnaval carioca. Em 1957, a
escola colocou os afrodescendentes como protagonistas do carnaval, ao
realizar o enredo "Navio Negreiro", sobre a viagem de escravos ao Brasil. A
escola criou forte identificação com essa temática, tendo diversos enredos
abordando a cultura afro-brasileira3.
2
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004.
FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. 1.ed. Rio: Altos da
Glória, 1999.
3
www.salgueiro.com.br, pesquisado em 23 de dezembro de 2016.
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Com efeito, tanto em 1963, com Chica da Silva, em 1965 numa homenagem a
Eneida e sua obra “História do Carnaval carioca” ou em 1968 com “Dona Beija – a
Feiticeira de Araxá”, dando ênfase e espaço para as figuras femininas, o Salgueiro, nas
palavras de Gustavo Melo parecia estar caminhando no sentido de destacar as mulheres
que encarnavam em si o ideal de liberdade e de autonomia.
A breve descrição dos enredos ilustra como o perfil do negro foi elaborado
pela equipe de Fernando Pamplona no Salgueiro. A imagem heroica,
exaltando valores sedimentados durante o período da escravização dos negros
e sua presença no Brasil, fez emergir o sentimento de orgulho da raça. Criou-
se o estereótipo do lutador, forte e transgressor. Conforme idealizava
Fernando Pamplona, o Salgueiro levava uma mensagem baseada, sobretudo,
nas ações em prol da liberdade. Vale ressaltar que a temática negra foi um
dos pontos fortes dos enredos apresentados pela escola tijucana, dentro de
uma proposta maior de ser identificada como "diferente", ao fazer emergir,
dos livros de história restritos ao conhecimento de poucos, personagens
"marginais" cuja trajetória se apresentava como interessante fonte narrativa.5
4
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca dos bastidores ao Desfile. O rito e
o tempo: Ensaios de Carnaval. Rio: Civilização Brasileira, 1999, p.37.
5
MELO, João Gustavo. Na Vida, Um Mendigo... Na Folia, Um Rei! Monografia de graduação do Curso de
Comunicação Social: Universidade Federal do Ceará. UFCE-JAN/2000, p. 9-10.
6
Idem, idem, p.11.
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Paula do Salgueiro não é destaque apenas de sua escola. Ela é mais do que
isso, porque simboliza o carnaval e em sentido mais largo o próprio espírito
do povo carioca. Com a sua alegria vestida de rendas, com a sua pele feita de
noite, a famosa passista não precisa vencer para ser ela própria, uma vitória
do morro humilde que fabrica o samba, e um momento de glória para a sua
raça. Ninguém precisa saber quanto custou a sua requintada fantasia, ou o
muito suor que exigiu a maestria de seus passos. Paula e o Salgueiro, o samba
e o Rio, unidos num ritmo de cor e de som, alma aberta à alegria, corpo-
oferenda ao amor7.
Nascida sob o nome de Paula da Silva Campos, no primeiro dia do ano de 1918,
em Cantagalo, interior do estado do Rio de Janeiro morou desde pequena em Niterói,
cidade onde a sambista continuou morando, mesmo com toda a fama conquistada pelos
desfiles, pelos shows e eventos que participava. “Participou do grupo folclórico “A
Brasiliana” viajou por muitos países: Alemanha, França, Portugal e Suíça e marcou
presença nos corpos de dança de Felitícia, Mercedes Baptista e no Teatro Folclórico
Brasileiro, de Solano Trindade”8. O tratamento dispensado pela imprensa era de uma
“diva” do carnaval, mas também de uma mulher forte, corajosa e exemplo de
engajamento nas questões de gênero.
Paula era, até a entrada em cena de Isabel Valença, a grande figura do
Salgueiro. Nas pesquisas que efetuei no Jornal do Brasil, seu nome foi citado em
praticamente todos os anos que estão inseridos no recorte temporal deste artigo. Um
ponto importante na matéria abaixo destacava o “desejo” da passista em concorrer no
7
Jornal do Brasil, 04/2/60, 2º caderno, p. 4.
8
Paula do Salgueiro, por ela criou-se o termo passista. In: http://carnavaln1.com.br/paula-do-salgueiro-
por-ela-criou-se-o-termo-passista/, publicado em 29 de março 2020, pesquisado em 25 de julho 2020.
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Municipal. Mesmo que não estivesse explícito em sua fala, é possível perceber que
“concorrer no Municipal” era algo que povoava o imaginário dos sambistas das escolas
de samba. A sua “rica fantasia”, presente dos dirigentes, revelava a sua importância na
Escola e o “desejo”, que parecia improvável de ser realizado. Interessante notar que
esta fala de Paula é de 1960, portanto quatro anos antes da emblemática participação
e vitoria de Isabel Valença no referido concurso.
Paula saiu de escrava, em 1957, foi baiana nos dois últimos anos e este ano
trará uma fantasia que deve surpreender todo mundo. - Será um presente da
própria Escola – conta Paula dizendo que será uma fantasia cara,
luxuosíssima, “coisa de grã-fino apresentar-se no Municipal”. Vamos ver
êste ano os Acadêmicos ganham finalmente o primeiro lugar do campeonato
do Samba9.
[...] Mas já então o Salgueiro era assunto único, correndo de boca em boca,
por toda a extensão da Presidente Vargas onde se desenrolava o desfile, que
os Acadêmicos do Salgueiro eram o estouro de 63. E Salgueiro foi de fato
espetacular. Rica, original, trazendo um enredo excelente e um samba bonito,
a vermelho e branco, fez com que nem mesmo o fato de desfilar de dia – foi
a primeira depois do amanhecer -, sem a festa de luzes que é a apresentação
noturna, se constituísse em prejuízo para ela, tal o encanto que causou. Chica
da Silva foi indiscutivelmente o melhor enredo de 63. Muito bem bolado,
defendido por um samba à altura e cheio de pontos originais onde nem por
isso entrava a coisa espúria, deve ter ganho a nota máxima ou quase isso. A
fantasia da mulata que representou Chica da Silva era assim como uma
fábula, tão rica quanto as mais ricas dos bailes sofisticados. Entre outras
coisas, tinha uma cabeleira de nylon vinda de Paris e três pedras preciosas
autênticas. Um bonito chafariz e a revoada de pombos foram algumas das
características originais do enrêdo. Entre suas figuras, valeram
principalmente o folclórico Monsueto, a própria encarnação da bossa do
samba, carregando sempre um largo e cativante sorriso, mostrando-se
também um ótimo passista, e a imortal Paula, ao lado de quem êle teve a
responsabilidade de atuar [...] 10.
A presença de Paula foi ao longo dos anos uma das forças dos Acadêmicos do
Salgueiro. Sergio Cabral identificou a “pastora” como essa “mulher síntese” da
9
Jornal do Brasil, 04/2/60, 2º caderno, p. 4. Foi respeitada a grafia da época.
10
Jornal do Brasil, 04/2/60, p. 4- 2º caderno.
265
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11
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996, p.197.
12
COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.168.
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Ao início de 1940, Mercedes Batista iniciou seu projeto com a então, famosa
bailarina de clássico e dança folclórica Eros Volúsia e ingressou na Escola de Danças
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde aprimorou sua arte com os principais
mestres da época: Yuco Lindberg e Vaslav Veltchek14.
Em 1947, Mercedes Batista foi admitida como bailarina profissional no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, tornando-se assim a primeira mulher negra a ingressar
como bailarina nesta casa de espetáculos. Durante essa sua nova fase, Mercedes Batista
percebeu o preconceito existente devido ao reduzido número de apresentações no
palco. Não conformada com preconceito que imperava na época, Mercedes Batista
amadureceu sua consciência política e se engajou no principal movimento de luta
contra o preconceito e o racismo; ingressou para o grupo do TEN - Teatro Experimental
do Negro, liderado por Abdias Nascimento. Em 1948, Mercedes Batista foi eleita a
Rainha das Mulatas e em 1950, tornou-se membro do Conselho de Mulheres Negras.
Essa trajetória que rompeu muitas barreiras ao provocar embates com os interditos
sociais que a questão racial no Brasil impunha aos negros foi ressaltada no texto de
Martha Abreu e Hebe Matos:
13
MATTOS, Hebe e ABREU, Martha, Uma coreógrafa brasileira no atlântico negro – homenagem à
Mercedes Baptista, publicado em, 25/8/2014. In https://conversadehistoriadoras.com/2014/08/25/,
pesquisado em 08 de outubro 2019.
14
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. in:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa106837/mercedes-baptista>. Acesso em: 10 de outubro
2019.
15
MATTOS e ABREU, 2014.
267
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16
JUNIOR, Paulo Melgaço da Silva. Mercedes Baptista - a criação da identidade negra na dança. Rio:
Fundação Cultural Palmares, 2007.
17
COSTA, 1984, p.165.
268
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Além de ter atuado em companhias de balé, Baptista fez trabalhos para teatro,
escolas de samba, televisão e cinema. Entre eles, destacamos a comemoração
do Centenário da Abolição da Escravidão, em 1988. Nos dias 12 e 13 de maio,
a coreógrafa foi a responsável pela parte dançante da Missa dos Quilombos,
espetáculo concebido por João das Neves nos Arcos da Lapa e Paço
Imperial.19
As Irmãs Marinho
O trio de bailarinas intitulado “irmãs Marinho” formado por Mary, Olívia e
Norma representaram nos anos 1960 a beleza e a força das mulheres que participavam
da vida e da arte dos Acadêmicos do Salgueiro. As artistas ligadas a espetáculos de
cultura afro-brasileira atuaram no país e no exterior como embaixadores dos ritmos
brasileiros e da manifestação da cultura das Escola de Samba.
Cultuadas e muito respeitadas no meio carnavalesco, as irmãs sintetizavam o
ideal de beleza feminina negra e o sentido de amor ao samba em família.
18
www.salgueiro.com.br, pesquisado em 23 de dezembro de 2016.
19
MATTOS e ABREU, 2014.
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Uma entrevista com o cartunista Lan, em fevereiro de 2015, destacou sua paixão
pela cidade, pelas escolas de samba e pelas mulatas, sempre retratadas em suas
caricaturas nos últimos anos nas páginas do Jornal O Globo. Sob o título, “O gênio do
traço”, o jornalista Daniel Brunet apresentou o personagem e em determinado ponto
comentou sobre a esposa de Lan, Olívia, uma das famosas passistas do Salgueiro.
Talvez por isso tenha resistido a se casar. Mas, aos 35 anos, trocou alianças
com a mulata de sua vida: Olívia Marinho, das irmãs Marinho, as famosas
passistas do Salgueiro da década de 1960. — Eu sempre fui contra o
casamento. E continuo sendo. Mas sou a favor da Olívia — brinca,
completando: — Todo mundo achava que essa coisa das mulatas era
sacanagem. Mas eu me casei com uma. A mais linda de todas — elogia22.
20
Site da agremiação, CABRAL (1996), COSTA (1984), site do jornal Extra, Salgueiro faz a festa no carnaval
do Quarto Centenário da Cidade do Rio, in https://extra.globo.com/noticias/carnaval/7255693.html, publicado
em 10/01/2013 e pesquisado em 10 de junho 2019.
21
http://muitoscarnavais.com.br/2016/12/05/513/, pesquisado em 08 de outubro de 2019.
22
https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/o-genio-do-traco-561087.html, pesquisado em 8 de
outubro de 2019.
23
https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/irmas-marinho-vao-virar-documentario.html, pesquisado
em 10 de outubro de 2019.
270
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Mas, quem foi Isabel Valença? Qual a sua história e trajetória? Por que ela se
tornou um dos símbolos maiores da escola de samba GRES Salgueiro e o posto
eternizado de destaque de carnaval? Por que a lembrança de sua presença é ainda
evocada pelos antigos sambistas da escola?
24
BARROS, Júlio Cesar. Nunca houve um destaque como Isabel.in
veja.abril.com.br/blog/passarela/figuracas/, publicado em nunca-houve-um-destaque-como-isabel,
publicado em 27/12/2010, pesquisado em 16 de março de 2012.
25
Idem, idem.
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A análise de Júlio Cesar seguiu narrando episódios onde esse efeito tornou-se
geral, expandindo das classes sociais de onde Isabel fazia parte até as esferas de nobreza
dos países europeus. O jornalista exaltou a sua trajetória, que inevitavelmente
estabelecia paralelos com a história de Chica da Silva, pois, “Assim, a sambista e a
personagem se fundiram numa só lenda carnavalesca. Ao ponto dela ser convidada
para, vestida de Chica da Silva, participar da recepção a Lord Moutbatten, o bisneto da
Rainha Vitória, que visitava o país.”26
Sobre Isabel Valença, notabilizada assim no desfile de 1963, Haroldo Costa
narrou uma curiosidade que tornou peculiar a sua presença na escola naquele desfile.
Ela era a esposa do presidente da agremiação e poderia desfilar em qualquer posição,
sobretudo como destaque, mas o que quase impedia sua presença era uma obrigação
espiritual que ela convencida pelo carnavalesco Arlindo Rodrigues precisou pedir
licença ao seu pai-de-santo que lhe destinou nova obrigação ganhou. Assim, Isabel
conseguiu a “liberação” para desfilar.27
A narrativa do jornalista Haroldo Costa demonstrou que as relações entre o
universo das escolas de samba com os terreiros de candomblé se constituíam em laços
fortes de respeito e permissão. Essa ligação intensa foi uma das marcas fortes do início
das escolas e que perduram até os dias atuais. No caso de Isabel, a permissão para a
quebra do “compromisso” não lhe trouxe problemas e ainda possibilitou que ela se
imortalizasse no imaginário popular e se consagrasse nas páginas da crônica
carnavalesca.
A vitória inconteste do Salgueiro abriu inúmeras possibilidades para a escola e
seu prestígio alcançou força e o nome da agremiação, a partir desse carnaval, se tornou
um marco no universo das escolas de samba. As palavras de Haroldo Costa
descrevendo a espera pelo resultado e a dimensão que o desfile sobre Chica da Silva
impactou os demais espaços socioculturais do país merece um registro.
O mito de Chica da Silva se espalhou pelo Brasil afora e chegou até o exterior.
A revista norte-americana Time, na sua edição de 1º de março daquele ano,
saiu com um artigo sobre a escola e seu desfile, tendo como ilustração uma
fotografia de Isabel Valença experimentando a peruca de 1 metro e 10
centímetros de altura. O texto da reportagem fazia um histórico do enredo, do
número de componentes e da quantia gasta para realizar o desfile. 28
26
Idem, idem.
27
COSTA, 1984, p.131-132.
28
Idem, idem, p.134.
272
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
29
Idem, idem, p.136.
30
Jornal do Brasil, 14/02/65, Caderno B, p.3.
31
Jornal do Brasil, 26/02/65, p.10.
273
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Na matéria “Dez grandes pedem passagem para passar as 19h”, mais uma vez
o texto sobre a expectativa com o desfile da agremiação tijucana recaía na presença de
Isabel Valença em sua esperada luxuosa fantasia, “a escola tem como atração as
fantasias de destaque, principalmente a de Isabel Valença, a famosa Chica da Silva,
que ganhou o concurso do Teatro Municipal do ano passado e anuncia para o desfile
deste ano uma das fantasias mais caras do carnaval”32.
Na matéria “Desfile das escolas de samba será o mais rico de todos os tempos”,
estampada nas páginas do JB podemos perceber a importância das mulheres dos
Acadêmicos do Salgueiro. Na foto em destaque aparecem Isabel Valença, trajada como
Chica da Silva, recepcionando na pista do aeroporto Galeão uma das irmãs marinho. A
legenda não esclarece quem é a irmã e a identifica como a que morava na Itália33.
O ano de 1965 foi para as agremiações cariocas um momento de celebração,
pois a cidade do Rio de Janeiro comemorava seus 400 anos de fundação. A proposta
do organizador do Carnaval, o Departamento de Turismo foi aceita pelas Escolas de
samba para realizar um desfile temático inteiramente sobre a “cidade maravilhosa”.
O Salgueiro procurou apresentar uma proposta diferente, “História do Carnaval
Carioca”. Segundo o jornalista Gustavo Melo, essa ousadia coube ao carnavalesco
Fernando Pamplona, que “[...] de volta ao Brasil depois de uma temporada de dois anos
de estudos na Europa, sentenciou: “Vou bancar Shakespeare, que com Hamlet contou
a história do teatro dentro do teatro”. Finalizando sua lógica, o carnavalesco ainda
apontou: “Eu vou fazer o carnaval dentro do carnaval, baseado no livro da jornalista
Eneida de Moraes””34.
Para compreendermos a importância das mulheres do Salgueiro, vivenciada no
carnaval do quarto centenário, a narrativa de Haroldo Costa rememorou a campanha
feroz que o então influente jornalista Sergio Bittencourt, nas páginas do Jornal Correio
da Manhã, manteve ao longo do período de janeiro e fevereiro de 1965. Na matéria
intitulada “Crônica antipática”35 incitava o público a se posicionar contra os
profissionais de outras áreas artísticas que estavam “invadindo” a passarela do samba.
Uma das Escolas que apresentava o maior número de artistas conhecidos era o
Salgueiro, portanto a expectativa negativa era uma realidade que preocupava os
32
Jornal do Brasil, 26/02/1965, Caderno B, p.3.
33
Jornal do Brasil, 28/02/65, p. 3. 28/02/65.
34
MELO, João Gustavo. Salgueiro faz a festa no carnaval do Quarto Centenário da Cidade do Rio. Publicado
em10/01/13. In https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico, pesquisado em 8/10/2019.
35
A referência deste texto está centrada na narrativa de COSTA, 1984, p.150.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
A presença de Isabel Valença era também apontada pela imprensa38 como ponto
forte da apresentação do Salgueiro. Naquele 1965 não foi diferente, sobretudo após a
consagradora vitória no concurso de fantasias do Teatro Municipal, no ano anterior,
que comentaremos com mais detalhes mais adiante. A comoção popular premiou o
desfile da agremiação.
36
Idem, idem.
37
MELO, 2013.
38
COSTA, 1984, p.149.
39
Site do Salgueiro, in www.salgueiro.com.br, pesquisado em 23 de dezembro de 2016.
275
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
40
www.salgueiro.com.br, pesquisado em 23 de dezembro de 2016.
41
Jornal do Brasil, 04/03/65, caderno B, p. 6.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Ainda na mesma edição, com o sugestivo título de “Salgueiro troca Chica por
Chico para tentar ser bi”, novas referências a Isabel Valença e o papel que lhe caberia
representar no desfile de 1964.
. Se em 1963, Isabel atingiu a “fama” pela beleza e por ter encarnado com
perfeição a personagem Chica da Silva, o ano seguinte, por conta de outras batalhas
reforçaria a sua personalidade, tornando-a, com efeito, um mito, do Salgueiro, da
presença feminina nas escolas de samba, como retratou o jornalista Julio Cesar Barros.
42
Jornal do Brasil, 06/02/64, Capa, Caderno B.
43
Jornal do Brasil, 06/02/64, Caderno B, p.6.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Uma ampla matéria abordou o assunto, que se tornou centro de uma polêmica,
revelando por um lado as bases do preconceito racial da “elite carioca” e por outro, um
episódio, onde se reivindicava a conquista de espaços sociais relevantes. A coluna
Samba Cá entre nós deu grande ênfase ao conflito, estampando o título da matéria:
“Municipal recusou a inscrição de Isabel Valença”, realçando um subtítulo que
identificava Isabel por seu nome/personagem, “Chica sem vez”.
A mulata Isabel Valença, famosa Chica da Silva, que desfilou no ano passado
pela Acadêmicos do Salgueiro, foi impedida ontem de tarde de apresentar sua
nova fantasia – Vila Rica – no concurso do Teatro Municipal sob a alegação
de que “não são permitidas as inscrições de fantasias que desfilam em escolas
de samba”, item, que, no entanto, não consta do regulamento feito pela
coordenação do concurso46.
44
Jornal do Brasil, 07/2/64, p. 13.
45
Jornal do Brasil, 07/02/64, capa.
46
Jornal do Brasil, 8/2/64, p. 5.
278
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
a respeito, o Sr. Ribeiro Martins disse: - Isso não estava previsto porque nunca
aconteceu47.
Haroldo Costa também retratou este fato marcante, relacionado com a história
do Salgueiro e dos desfiles das escolas de samba, narrando todo o processo dramático
da tentativa de inscrição e a sua recusa pelos organizadores do baile do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.
Não obstante a bela impressão visual que causou, o Salgueiro não saiu da
avenida com pinta de campeão, muito menos de bicampeão. Na noite
seguinte, porém, a escola criou mais um fato importante na história do
carnaval desta cidade. Alguns dias antes do início do período carnavalesco,
os jornais tinham noticiado que a comissão julgadora dos desfiles de fantasias
do baile do Teatro municipal havia recusado a inscrição de Isabel Valença,
que desfilaria com a fantasia “Rainha Rita de Vila Rica”, porque o
regulamento vetava a participação de trajes que já houvessem sido exibidos,
ainda que modificados. E a fantasia de Isabel seria apresentada um dia antes
no desfile das escolas de samba. (COSTA, 1984, p. 141)
47
Idem, idem, idem.
48
Jornal do Brasil, 8/2/64, p. 5.
279
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
coluna “O Samba cá entre nós”, de Luis Paulo e Mauro Ivan. Todo esse movimento
aconteceu em pleno sábado de carnaval.
O Sr. Milton Marcos disse que o Governador Carlos Lacerda lhe havia
perguntado se Isabel Valença devia participar do desfile. Salientou que as
ponderações do Coordenador do concurso de fantasias, Sr. Ribeiro Martins,
foram no sentido de que o vestido a ser apresentado por Chica da Sila já terá
desfilado no domingo pela Avenida Presidente Vargas, na Escola de Samba
Acadêmicos do Salgueiro. - Mais isto agora é prôblema dela – acrescentou.
A secretária do Sr. Ribeiro Martins, Srt.ª Glória Rodrigues, que está a cargo
das inscrições para o desfile de segunda-feira na passarela do Municipal,
49
Jornal do Brasil, 09/02/64, p.4.
50
COSTA, 1984, p.168.
280
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
51
Jornal do Brasil, 09/02/64, p.4.
52
Jornal do Brasil, 13/2/64, p. 7, caderno B.
53
BARROS, 2010.
54
COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.141.
281
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
O que ganhou peso nesse episódio foi que Isabel encarnou com sua atitude toda
a força simbólica que era ampliada por sua condição de mulher, negra e moradora dos
bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro. Imbuída do “espírito” transgressor da
sua personagem, tal qual Chica da Silva, Isabel Valença enfrentou as adversidades, os
obstáculos e cumpriu seu papel, o de conquistar o espaço que ela acreditava ser dela,
por direito. Esse caso é emblemático de todo um processo de lutas que, segregava os
atores sociais, dos espaços centrais da cidade. Envolvidos nas agremiações desde o
início dos desfiles das escolas de samba, os sambistas sentiam na pele a discriminação
ou a “aceitação” pelo lado “exótico”, “folclórico” da manifestação escola de samba.
55
Idem, idem, idem.
56
Jornal do Brasil, 18/2/64, p. 5.
282
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Mas sua carreira não foi de uma personagem só. Em 1966, ela foi a Marquesa
de Santos. O jornalista Gustavo Melo, ex-diretor cultural do Salgueiro, narra
a apresentação espetacular da destaque como a amante de D. Pedro I, no
enredo Amores Célebres do Brasil, em que contracenou com Clóvis Bornay,
museólogo e carnavalesco dos desfiles de fantasia do Municipal, que além de
montar o enredo saiu como o imperador, fazendo par com Isabel: “Isabel
mirava seu olhar no julgador, hipnotizado pela postura da destaque. Até que
alguém aplaudiu a performance, atitude seguida por todos próximos à cabine.
A destaque continuava imóvel e cada vez mais altiva. Queria mais. Havia um
gran finale a cumprir. Eis que todos se levantaram, aplaudiram de pé e
ovacionaram em êxtase a personagem imortalizada na história como a amante
do Imperador. E Isabel, como uma grande atriz, abriu um largo sorriso,
reverenciou a todos que a aplaudiam calorosamente, saiu de cena e seguiu
para mais uma consagração nos braços do povo”, contou Melo. A
performance de Isabel não foi o suficiente para evitar que o Salgueiro,
campeão de 1965, amargasse um mirrado quinto lugar.58
57
Jornal do Brasil, 18/2/64, p. 5.
58
BARROS, 2010.
283
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
59
Idem, idem.
60
COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.177.
61
Idem, idem, p.185.
284
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
62
BARROS, 2010.
63
FARIA, Guilherme José Motta. Nem melhor nem pior. Os Acadêmicos do Salgueiro e a história dos
negros nos desfiles dos anos 1960. Rio: Multifoco, 2015.
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alimentada como uma vitória da mulher negra, pobre, sambista das Escolas de Samba
e moradoras das periferias da cidade do Rio de Janeiro.
Isabel Valença não era um enredo e sim uma mulher que encarnou, assim como a
personagem que lhe deu fama, Chica da Silva, uma história que também simbolizava
postura de luta e transcendência das barreiras sociais. Todo o drama vivenciado pela
sambista ajudou a conferir ao Salgueiro essa aura mítica de escola que apresentava a luta
do negro por respeito e consolidação de seu espaço social. Esse mote narrativo, exaltando
momentos de luta ou estratégias de superação das barreiras sociais, possuía também uma
vertente de denúncia contundente do passado escravista e das formas de resistência que
os negros encontraram para superar essas dificuldades impostas.
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Referências bibliográficas
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al3.p.288.316
Resumo
O presente artigo tem por objetivo analisar e discutir os concursos de beleza negra
“Rainha das Mulatas” e “Boneca de Pixe” realizados pelo Teatro Experimental do Negro
entre 1947 e 1950. A partir dos concursos destinados às mulheres negras da cidade do
Rio de Janeiro, pretendemos analisar quais seriam os objetivos dos concursos, quem eram
as candidatas, quais diferenças separavam os dois concursos. Destacamos também a
importância de apontar as especificidades dos concursos, devido a organização dos
mesmos pertencer a um espaço expressivo de afirmação da identidade negra e luta contra
o racismo durante as décadas de 40 e 50 no Brasil. Dentro deste contexto, as questões
ligadas ao intercruzamento de raça, classe e gênero contribuem para conhecermos as
“rainhas” e “bonecas negras” do Teatro Experimental do Negro.
Palavras-chave: Concursos; beleza negra; feminismo negro; gênero.
Abstract
This article has the objective of analyzing and discussing the black beauty contests
"Rainha das Mulatas" and "Boneca de Pixe" realized by the Experimental Black Theater
between 1947 and 1950. From the contests destined to the black women of the city of Rio
de Janeiro we wanted to analyze the objectives of the contests, who were the candidates,
what differences separated the two competitions. We also emphasize the importance of
pointing out the specificities of the contests, due to the organization of the same belong
to an expressive space of affirmation of black identity and fight against racism during the
40s and 50s in Brazil. In this context, the issues related to the interbreeding of race, class
and gender contribute to know the "rainhas" and "bonecas de pixe" of the Experimental
Black Theater.
1
Doutoranda em história do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense
(UFF). E-mail: [email protected]
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
“Garotas bonitas, de cor de canela ou de jabuticaba madura”, esta foi uma das
frases utilizadas em um dos anúncios realizados pelo Teatro Experimental do Negro
(TEN), sobre os concursos de beleza negra realizados entre 1947 e 1950. As duas cores
destacadas no anúncio dizem respeito aos concursos realizados pelo grupo, o primeiro
concurso intitulado “Rainha das Mulatas”, e o outro chamado de “Boneca de Pixe2”.
Nesse sentido, o presente artigo busca discutir a realização dos dois concursos de
beleza citados, analisando quais seriam seus objetivos, as características que permearam
o julgamento das candidatas a coroa dentro de um espaço expressivo de afirmação da
identidade negra e luta contra racismo durante as décadas de 1940 e 1950.
O grupo teatral criado em 1944 por Abdias Nascimento3, na cidade do Rio de
Janeiro, ultrapassou o campo artístico, envolvendo-se em projetos políticos, educacionais,
jornalísticos, intelectuais e estéticos que contribuíssem para a denúncia do racismo no
Brasil. Desde sua criação, o TEN não se limitou apenas aos palcos de teatro, suas áreas
de atuação se expandiram em diversas frentes para fortalecer a cultura negra. O objetivo
central do grupo partia da necessidade de denunciar o racismo, e também de integrar o
negro na sociedade brasileira de forma real, uma vez que nesse período, a ideia de
democracia racial permitia a falsa percepção da inexistência do racismo no Brasil.
O TEN tinha entre suas atividades cursos de alfabetização para domésticas,
eventos intelectuais, associações e a produção de um jornal chamado Quilombo, que
reunia temas e notícias acerca da diáspora africana. Dentro desse contexto e da
pluralidade de eventos produzidos pelo TEN, centralizando-se na realização dos
concursos de beleza negra, vertente desenvolvida pelo grupo que tinha como intenção de
discutir a imposição da brancura como padrão de beleza, ao mesmo tempo em que
rechaçaria os estereótipos atribuídos à mulher negra4.
De acordo com os organizadores, os critérios usados pelo TEN estariam voltados
não apenas para “características físicas”, mas também seriam levados em consideração
“qualidades de personalidade e caráter”. Acerca dos organizadores não encontramos uma
lista formal das pessoas que organizavam o evento, porém, em matérias publicadas no
jornal sabemos que o júri do concurso era formado por artistas plásticos, cientistas,
2
A grafia correta da palavra é “piche”, porém o nome do concurso nas fontes pesquisadas aparece sempre
com a letra “x”, usaremos essa grafia quando nos referirmos ao concurso.
3
Abdias Nascimento pode ser considerado um intelectual múltiplo em suas atividades, foi escritor, artista
plástico, teatrólogo, político e poeta durante sua vida.
4
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da Cor. Identidade, raça e gênero no Brasil. 1. ed. São Paulo:
Summus/ Selo Negro, 2003, p. 203.
289
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
jornalistas, escritores e atores teatrais. Nesse sentido, observamos que tanto a organização
dos concursos, quanto o julgamento das candidatas, não estava dentro das atribuições do
Conselho Nacional das Mulheres do Teatro Experimental do Negro, e sim a cargo homens
intelectuais, que não necessariamente integravam o grupo5.
A realização de concursos de beleza, e também dos concursos de beleza negra
especificamente, não foram uma exclusividade do grupo de Abdias Nascimento nesse
contexto. Neste período concursos disputados por mulheres já eram amplamente
divulgados, principalmente a partir da figura das misses. Para Vigarello, o grande
momento de expansão dos concursos de beleza deu-se internacionalmente entre as duas
guerras mundiais, ocorreram o Miss América em 1921, Miss França em 1928, Miss
Europa em 1929 e o Miss Universo em 19306.
Os concursos de beleza negra no Brasil também já eram realizados, um exemplo
seria a publicação de 1923, do jornal paulista O Getulino, onde havia uma divulgação de
um concurso de beleza negra que ocorreria em Campinas7. Entretanto, a popularização e
proeminência desses concursos ocorreu a partir de 1940, principalmente pela existência
de diversos clubes sociais negros em todo país.
Os concursos Rainha das Mulatas e Boneca de Pixe, portanto, contavam com a
realização organizada por um grupo direcionado à militância negra, que através de
diversas ações tentavam interferir tanto no campo social, quanto na legislação brasileira,
a fim de conquistas maiores de direitos para a população negra.
Como organizador o TEN realizou dois concursos de beleza distintos ao longo de
sua história, o primeiro foi o Rainha das Mulatas criado em 1947, e o Boneca de Pixe
(também chamado de Glamour Negro Girl) iniciado no ano seguinte. A partir de 1948, os
dois concursos foram realizados simultaneamente, decisão essa, que deixa em evidência
que apesar dos dois concursos se destinarem às mulheres negras, existiam características
específicas para cada um deles, que separariam as “mulatas” das “bonecas de pixe”.
5
O Conselho Nacional das Mulheres do Teatro Experimental do Negro tinha como objetivo principal “lutar
pela integração da mulher negra na vida social, pelo seu alevantamento educacional, cultural e econômico”
(Quilombo, 09/05/1950), o conselho foi idealizado pela assistente social, jornalista, professora e ativista
Maria Lourdes, contava também com o auxílio de Guiomar Ferreira de Mattos, Guerreiro Ramos, Mercedes
Baptista e Milka Cruz. Essa prática dos concursos do TEN seguia o costume em todos os concursos de
beleza do país, pois, dificilmente mulheres integravam o julgamento das candidatas.
6
SILVA, J. & BERNADINO, M. A democracia racial em desfile: concursos de beleza na década de
sessenta. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/As Negros/As (ABPN), 6 (12), 2014, p. 205.
7
SILVA, J. & BERNADINO, M. A democracia racial em desfile, p. 203.
290
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
8
Entre os estudos feministas não há um consenso a respeito do conceito de patriarcado. A concepção mais
difundida, estabelece que o patriarcado é uma “forma de dominação masculina contra as mulheres”.
291
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
sobre as mulheres9.
A compreensão de tais autoras dialoga intrinsecamente com o entendimento de que
por trás da construção dos padrões de beleza e boa forma direcionada às mulheres,
esconde-se uma ideologia política elitista e racista10. Em outras palavras, tais padrões não
são naturais, inerentes ou neutros, eles estão vinculados a discursos marcados por relações
de poder e hierarquias sociais, sejam elas políticas, sociais ou raciais.
Um exemplo dessa relação entre o corpo e estabelecimento de padrões, é a experiência
alemã com o nazismo, dentro da ideologia eugênica, somente pessoas que possuíam
características arianas contavam com direito e igualdade perante a sociedade. Pessoas que
estivessem fora deste determinado grupo foram consideradas inferiores, e acabaram por
serem objetos de diversos experimentos médicos, e depois vítimas do holocausto.
A eugenia, portanto, preocupava-se com o debate acerca das diferenças entre os seres
humanos na modernidade, elegendo como discussão principal as diferenças entre os
povos, sua origem e seus estágios de “civilização” 11. Conceitos que anteriormente eram
difundidos nas áreas da ciência e da biologia, adentraram nas análises sociais e culturais
sobre diversos povos e nações.
Há que ressaltar que os padrões de beleza e suas representações ao longo da história
mantiveram-se e pautaram-se pelas experiências e contatos ocasionados pelo
colonialismo. Assim, tais contatos foram moldados pelas hierarquias e relações de poder
presentes entre europeus e suas colônias, colônias essas, que contavam com distintas
características físicas e culturais. Desta maneira, os padrões de beleza femininos europeus
foram forjados por suas próprias visões de mundo, formadas a partir de hierarquias
raciais, afetando assim, as concepções de beleza e corpo significativamente.
Ao falarmos de Brasil e das relações raciais que aqui se estabeleceram, o colonialismo
e o período escravocrata, tornam-se indispensáveis para a compreensão dos padrões de
beleza e de seus reflexos na atualidade.
As condições especiais de existência das culturas negras, os deslocamentos, e
identidades que caracterizam essa formação são chamadas pelo intelectual Gilroy de
“Atlântico Negro”. Utilizando-se da metáfora das viagens entre o continente africano e o
9
JEFFREYS, Sheila. Beauty and misogyny: harmful cultural practices in the West. London: Routledge,
2005, p. 05.
10
FLOR, Gisele. Corpo, mídia e status social: reflexões sobre os padrões de beleza. Revista de Estudos da
Comunicação, Paraná, 2009, p.268.
11
OLIVEIRA, Maybel. O Teatro Experimental do Negro em meio a militância e a intelectualidade: eventos
programáticos realizados entre 1945 e 1950. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, 2018, p. 17.
292
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
12
XAVIER, Giovana. Entre personagens, tipologias e rótulos da diferença: a mulher escrava na ficção do
Rio de Janeiro no século XIX. In: História das mulheres negras no Brasil escravista e do pós-
emancipação. 1 ed. Rio de Janeiro: Pallas/Selo Negro, 2012, p. 67.
13
XAVIER, Giovana. Entre personagens, tipologias e rótulos da diferença, p. 67.
14
XAVIER, Giovana. Entre personagens, tipologias e rótulos da diferença, p.71.
293
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15
XAVIER, Giovana. Entre personagens, tipologias e rótulos da diferença, p.78.
16
FIGUEIREDO. Ângela. Carta de uma ex-mulata à Judith Butler. Periódicus, Salvador, n. 3, v. 1, mai.-
out. 2015.
294
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
17
FIGUEIREDO. Ângela. Carta de uma ex-mulata à Judith Butler. Periódicus, Salvador, n. 3, v. 1, mai.-
out. 2015.
18
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. 1ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras,
2018, p. 25.
295
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Por muito tempo, essa ligação entre diferentes formas de opressão foi negada por
diversos intelectuais de esquerda que se dedicavam ao tema, a respeito dessa negação,
Angela Davis disserta:
19
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?, p.27.
296
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
propõem novas discussões sobre qual espaço era dedicado a elas, e como se organizavam.
Os concursos de beleza
20
BRAGA, Amanda. História da beleza negra no Brasil: discursos, corpos e práticas. 1. ed. São Carlos,
SP: EdUFSCar, 2015, p. 85.
21
No contexto do pós-abolição, a população negra organizou-se várias maneiras no combate à
discriminação racial e em busca de melhores condições de vida. Nas primeiras décadas do século XX em
São Paulo, intensificou-se a produção de jornais e revistas escritas por negros com esse objetivo, que no
em seu conjunto ficaram conhecidos como a Imprensa Negra Paulista. Disponível em:
http://biton.uspnet.usp.br/imprensanegra/. Acesso em 31 de maio de 2018.
297
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
22
BRAGA, Amanda. História da beleza negra no Brasil, p. 88.
23
BRAGA, Amanda. História da beleza negra no Brasil, p.94.
24
Maneco Muller adotava o pseudônimo Jacinto de Thormes quando publicava suas crônicas e reportagens.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Observamos que ao fim do texto, o autor discorre sobre ter conhecido uma das
candidatas ao título. Sem citar seu nome, ou tecer qualquer referência da forma que se
deu o encontro, Muller diz que conheceu “uma das mulatinhas”, e que em seu julgamento
a candidata era “razoável, bastante razoável”. O trecho que em um primeiro momento
pode ser lido como uma tentativa de “elogiar” a candidata, mostra o tom pejorativo, e o
racismo cordial presente no texto, que acaba por depreciar a candidata.
Outro ponto a ser destacado é a escolha da data do concurso, o dia não é eleito de
forma aleatória, mas pretendia referenciar a Lei do Ventre Livre, homologada em 28 de
setembro de 1871, que promulgava que seriam livres todos os filhos de mulheres
escravizadas nascidos a partir da data da lei.
Cabe ressaltar que mesmo que por muito tempo tal lei “tipicamente brasileira” foi
interpretada por um viés abolicionista e benéfico para a população negra no período
escravocrata, atualmente estudos discutem que apesar da Lei do Ventre Livre
teoricamente promover liberdade para as crianças negras, e ser um dos primeiros passos
dados no país para que acontecesse a abolição, a lei ao mesmo tempo promovia a
separação das crianças de seus pais, desestruturando as famílias negras, pois, uma vez
que tais crianças não eram escravizadas, os senhores não queriam arcar com quaisquer
responsabilidades sobre elas, ou até mesmo, mantê-las em suas terras26.
Outro trecho citado por Muller é a música oficial do concurso, a composição de
Lamartine Babo chamada O teu cabelo não nega, traria para o evento de acordo com ele
a presença do senso de humor. A letra da música de Lamartine Babo afirma:
O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
Tens um sabor bem do Brasil27.
De acordo com Djamila Ribeiro28 a letra por si só é autoexplicativa, onde a referência
ao cabelo é feita de forma pejorativa, visto que por mais que a moça em questão tentasse
25
MULLER, Maneco. O teu cabelo não nega. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 14 de set. de 1947, p.04.
26
Disponível em: http://www.educafro.org.br/site/wp-content/uploads/2014/07/os_sete_atos.pdf. Acesso
em 22 de outubro de 2019.
27
BABO, Lamartine. O teu cabelo não nega. Rio de Janeiro: Gravadora Victor, 1929.
28
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-teu-discurso-nao-nega-racista. Acesso em
22 de outubro de 2019.
299
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“esconder”, seu cabelo a denunciaria como uma mulata, ou seja, uma mulher negra. Além
disso, no trecho “mas como a cor não pega mulata”, vale destacar que a condição para o
envolvimento amoroso com a mulata, seria o fato da sua cor “não pegar” a partir do
contato.
Também através dos jornais Diário Carioca, A manhã, O Momento Feminino
encontramos alguns nomes, fotos e informações sobre algumas candidatas à Rainha das
Mulatas de 1947. Entre elas estão Dulce Martins, Iolanda Couto, Marina Rodrigues, Laura
de Souza, Maria Aparecida Marques e Mercedes Batista.
A primeira candidata de que tivemos notícia é Iolanda Couto, com poucas
informações sabemos que Iolanda era solista, e já havia participado de um espetáculo que
reunia poemas de Castro Alves, o evento arrecadaria fundos para a construção de um
monumento em homenagem ao “poeta dos escravos” 29.
No mesmo ano, Iolanda inscreveu-se no concurso de beleza negra Rainha das
Mulatas, na edição de setembro do jornal A manhã, sua foto aparece acompanhada da
seguinte notícia:
Iolanda Couto, de Del Castilho, desafiará, como todas as demais candidatas ao
título de “Rainha das Mulatas”, no grandioso Baile das Mulatas, a realizar-se
no High-life como um dos números do concurso promovido pelo Teatro
Experimental do Negro30.
O periódico faz pouca menção sobre informações acerca de Iolanda, o único dado
mais preciso sobre a candidata, é seu bairro de origem: Del Castilho. A respeito da foto,
observamos que Iolanda posa vestida com o que nos parece ser um biquíni, com salto alto
e mãos na cintura, a foto apresenta a candidata à Rainha das Mulatas de corpo inteiro, em
um ângulo de baixo para cima, onde suas formas ficam evidenciadas.
Outras duas candidatas, que ganham as páginas dos jornais da cidade do Rio de
Janeiro nesse período, são Marina Rodrigues e Laura de Souza. As duas candidatas
aparecem juntas na edição de 25 de setembro de 1947 do jornal Diário Carioca, apontadas
como fortes concorrentes ao título, novamente poucas informações sobre elas serão
abordadas. Marina Rodrigues era candidata pelo Clube Flamengo, já Laura de Souza era
proveniente do bairro do Catumbi.
Nas fotos publicadas no jornal, podemos perceber que tanto Laura, quanto Marina
aparecem usando trajes parecidos com o utilizado por Iolanda Couto. Os biquínis, ou os
chamados trajes de banho utilizados, faziam parte do vestuário que compõem os
29
O Centenário de Castro Alves. A manhã, Rio de Janeiro, 09 de fev. de 1947, p.09.
30
Noite da Mulata no High-Life. A manhã, Rio de Janeiro, 27 de set. de 1947, p.05.
300
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processos seletivos dos concursos de beleza, contudo, também podemos considerar uma
leitura das imagens que explora um lado mais sensual.
O texto que acompanha a foto de Marina e Laura exalta a realização do concurso
como algo “sensacional”, e afirma que a escolha da vencedora se daria após um desfile
das candidatas perante o júri. A festa que aconteceria no clube carnavalesco High –Life,
localizado no bairro da Glória do Rio de Janeiro, contava com o show da artista Pérola
Negra e do tenor Moacir Nascimento31.
A respeito de Dulce Martins, sua imagem é veiculada no jornal A manhã, na edição
do dia 27 de setembro de 1947, anunciando a realização do concurso de beleza naquela
noite. Sobre Dulce, o jornal, assim como os outros encontrados, não apresenta maiores
informações sobre o perfil das candidatas, apenas informa que Dulce morava no bairro
das Laranjeiras, e era uma forte candidata ao trono de rainha naquela noite32. A afirmação
do jornal se mostra verdadeira, pois, Dulce Martins naquela noite galgou o segundo lugar
do concurso, perdendo o título para Maria Aparecida Marques33.
A respeito de Mercedes Batista, no ano de 1947, sua foto não foi veiculada nos jornais,
porém Mercedes foi coroada com o título de “princesa” no concurso, pois, foi muito
admirada e aplaudida pelo púbico, assim como Dulce34.
Já a primeira Rainha das Mulatas coroada pelo TEN em 1947 foi Maria Aparecida
Marques, conhecida também como Maria d’Aparecida. Nascida na cidade do Rio de
Janeiro, Maria era do bairro da Tijuca e antes de ser coroada no concurso, trabalhava
como professora primária. O concurso rendeu a Maria d’Aparecida o prêmio de 5.000
cruzeiros, e grande visibilidade na área artística, por possuir grande talento na área musical
começou a desenvolver trabalhos como radialista e cantora.
A segunda edição do Rainha das Mulatas se realizou no ano seguinte, com os mesmos
moldes da primeira premiação, o baile e o desfile das candidatas novamente foi realizado
no Clube High-Life na noite do dia 06 de novembro de 1948. No entanto, uma das
novidades da edição de 1948 foi o patrocínio da Rádio Guanabara, que além de fazer a
cobertura jornalística do evento, contribuiu para as premiações dos primeiros lugares.
Esse interesse e a contribuição de novos patrocinadores demonstram que tanto o
Teatro Experimental do Negro, quanto os próprios concursos de beleza negra ganhavam
31
Noite da Mulata. O momento feminino, Rio de Janeiro, 19 de set. de 1947.
32
Noite da Mulata no High-Life. A manhã, Rio de Janeiro, 27 de set. de 1947, p.05.
33
Eleição Da "Glamour Negro Girl. O momento feminino, Rio de Janeiro, 03 de jan. de 1948.
34
Eleição Da "Glamour Negro Girl. O momento feminino, Rio de Janeiro, 03 de jan. de 1948.
301
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35
Grande expectativa em torno do Segundo Baile das mulatas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 de out.
de 1948, p. 12.
36
Prosseguem os preparativos para a escolha da Rainha das Mulatas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 17
de out. de 1948, p.12.
37
Hoje a noite, o 2º baile das mulatas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 06 de nov. de 1948, p. 12.
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Dentre as diversas matérias jornalísticas analisadas, um fator que nos chamou atenção
foram as variadas categorias utilizadas para se referir a cor de pele das candidatas ao
concurso. A partir da pluralidade dos termos que fazem referência ao tom de pele das
participantes, percebe-se aqui que o concurso Rainha das Mulatas esteve direcionado a
um público específico de mulheres negras, ou seja, a definição do que seria uma mulata
aqui, perpassará a presença de tom de pele claro, marcado pelo processo de mestiçagem
brasileiro.
Entre os termos encontrados referentes ao tom de pele, podemos citar alguns
exemplos, como: “sereias cor de jambo”, “sereia mestiça”, “sereias bronzeadas”, “flor da
mistura de raças”, “garotas bonitas cor de canela”, entre outros40. Apesar de não haver
referências diretas de que mulheres negras de pele mais retinta não pudessem concorrer
ao Rainha das Mulatas, a partir dos múltiplos termos que exaltam a pele mais clara das
candidatas, podemos compreender um direcionamento específico proposto pelo concurso.
Compreendemos aqui que mesmo que a intenção do Teatro Experimental do Negro
fosse valorizar as mulheres negras e sua beleza, a categoria mulata utilizada no concurso
38
Mercedes, a Rainha Mulata. Carioca, n°687, dez. de 1948, p. 34.
39
Mercedes, a Rainha Mulata. Carioca, p. 34.
40
Os termos são encontrados tanto nos jornais da “grande imprensa”, quanto do próprio jornal Quilombo.
303
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41
Vale ressaltar aqui as compreensões do conceito de democracia racial defendidos pelo TEN nesse
período. Ver: OLIVEIRA, Maybel. O Teatro Experimental do Negro em meio a militância e a
intelectualidade: eventos programáticos realizados entre 1945 e 1950. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2018,
42
Encerrar-se-á, Sábado, no High – Life o 2° Concurso das Mulatas, de 1948. Diário Carioca, 31 de out.
de 1948, p.11.
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concurso, este agora para eleger a mulher negra mais bela, mais simpática,
mais “glamorosa”, enfim eleger a preta mais representativa da raça, como tipo
físico e como personalidade. No dia 17 deste mês, nos salões da Casa do
Estudante do Brasil, terá o lugar o grandioso 1° Baile da Boneca de Pixe,
durante o qual serão apresentadas as primeiras concorrentes ao título de
Glamour Negro Girl de 194843.
O certame, como o outro anterior das mulatas, visa o sadio e humano propósito
de dar uma “chance” as nossas humildes e esquecidas jovens de cor, as quais
desde hoje vão figurar nas páginas da nossa imprensa, com o destaque que elas
merecem. A mulher negra foi quem mais sofreu e trabalhou pelo Brasil;
humildemente, silenciosamente, a “Mãe Preta” amamentou e embalou nos
braços o homem que desbravou os sertões45.
43
A negra também sabe ser bonita. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 04 de jan. de 1948, p.02.
44
Vinte mil cruzeiros para a negra mais bonita do Rio. Quilombo, Rio de Janeiro, 05 de jan. de 1950, p.12.
45
A negra também sabe ser bonita. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 04 de jan. de 1948, p.02.
46
ALBERTO, Paulina. A Mãe Preta entre sentimento, ciência, e mito: Os intelectuais negros e as metáforas
variáveis da inclusão racial no Brasil, 1920-1980. In Políticas da raça entre experiências e legados da
Abolição e da pós-emancipação no Brasil, ed. Flávio dos Santos Gomes and Petrônio J. Domingues São
Paulo: Editora Selo Negro, 2014, p. 377-401.
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A primeira vencedora do concurso Boneca de Pixe de 1948 foi Maria Teresa, apesar
de a candidata ter aparecido nas primeiras apurações em segundo lugar, acabou por
47
Concursos Rainha das Mulatas e Boneca de Pixe. Quilombo, Rio de Janeiro, 03 de jun. de 1949, p.01.
48
Quem sera a boneca de pixe de 1948?. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 03 de mar. de 1948, p. 09.
49
Boneca de Pixe. O Cruzeiro, 05 de jun. de 1948, p.32.
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conseguir o primeiro lugar da premiação. Maria Teresa foi uma das ganhadoras mais
jovens na história do concurso, assumiu a coroa aos seus 17 anos, apesar da pouca idade,
a rainha nesse período já trabalhava, enquanto estudava, e também estava noiva de um
rapaz.
A idade das candidatas é um dado relevante para pensar os aspectos do belo, uma vez,
que não raramente a beleza está associada à juventude. Para socióloga Cristina Figueiredo
Santos, a juventude compõe uma das características principais corpo feminino ideal,
acompanha da magreza e beleza, para a autora “a corporeidade perfeita assenta-se numa
trilogia, que reflete os ideais de beleza ocidentais e contemporâneos, os quais são
encarados como ‘um capital’ pessoal a ser conquistado e a mantido”50.
Outro dado relevante é a indicação de que a candidata trabalhava, pois, nesse período,
já era comum que mulheres negras jovens necessitassem trabalhar para manterem seu
sustento, sua educação ou chefiar suas famílias.
Diferentemente de como descreveram Mercedes Batista, a escolha de Maria Teresa
como ganhadora foi apontada pela revista O Cruzeiro como uma decisão “mais que
justa”, pois a vitoriosa tinha “graça, personalidade, educação, valor moral e beleza”, além
de ter o “charme de Paris e o “glamour” de Hollywood” 51.
Notamos aqui, portanto, que a beleza física de Maria Teresa, será destacada ao mesmo
tempo em que suas qualidades morais são afirmadas pelo concurso, dessa forma, podemos
compreender que não só a beleza estaria sendo posta em julgamento, era necessário
também possuir qualidades morais de comportamento.
A democracia racial apesar da ausência da exaltação da mulata, não deixou de ser
exaltada pelas páginas da imprensa naquele período. Na matéria da revista O Cruzeiro,
dedicada ao concurso, o baile para a coroação da candidata seria um local da prova da
democracia racial no Brasil, que colocava lado a lado distintas classes sociais e “raças”.
50
SANTOS, Cristina. A corporeidade feminina na publicidade: algumas reflexões sobre representações
normativas. Revista Estudos em Comunicação, Covilhã, v. 23, n. 2, dez. 2016, p. 18.
51
Boneca de Pixe. O Cruzeiro, 05 de jun. de 1948, p.32.
52
Boneca de Pixe. O Cruzeiro, 05 de jun. de 1948, p.32.
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Espanha no Brasil.
No concurso Boneca de Pixe, também temos acesso a maiores informações sobre os
trajes utilizados pelas candidatas na noite de premiação. De acordo com a revista O
Cruzeiro, as candidatas estariam vestidas em “toilletes do mais moderno figurino”, a
matéria aponta que o vestido escolhido por Maria Tereza era “suntuoso”, e contava com
ajustes até o último momento para não haver quaisquer erros.
Além da escolha perfeita do vestido, era necessária uma preocupação com o penteado
usado nos cabelos, à maquiagem, o desenho das sobrancelhas, esses exemplos são
destacados por fotos na matéria da revista. Infelizmente não há pistas acerca de quem
arcava com essas despesas, porém, é possível que nem todas as candidatas tivessem
condições financeiras de arcar com os gastos do concurso, já que muitas eram jovens
trabalhadoras e estudantes.
A segunda edição do concurso realizou-se apenas em 1950, como já tratamos
anteriormente, o Boneca de Pixe, assim como o Rainha das Mulatas chegou a ser
anunciado em 1949, mas acabou por não se realizar53.
A realização do Boneca de Pixe em 1950 contou a grande cobertura feita pelo jornal
Quilombo, nele encontraremos diversos detalhes que cercaram a eleição da Boneca de
Pixe de 1950. A matéria dedicada ao evento conta um texto de J. Barbosa a respeito da
importância do concurso e sua verdadeira intenção com o certame, para Barbosa a
intenção do concurso não era procurar um indivíduo de beleza física apenas, mas sim
romper um ideal de beleza apenas restrito aos brancos.
As candidatas favoritas ao título de 1950 eram identificadas por seus nomes e seus
bairros de origem, entre elas estavam: Nina Barros do bairro da Glória, Catty Silva do
Maracanã, Nely Santos de Santa Teresa, Iracilda Morais da Abolição, Elohá de
Copacabana, Eunica do Irajá, Maria Joaquina da Gávea, Floricéia do Catete, Geralda
Galeno de Botafogo, Maria Assunção de Vicente de Carvalho, Matilde de Niterói e
53
Vinte mil cruzeiros para a negra mais bonita do Rio. Quilombo, Rio de Janeiro, 05 de jan. de 1950, p.12.
54
Vinte mil cruzeiros para a negra mais bonita do Rio. Quilombo, p.12.
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55
Catty, a boneca de pixe de 1950.Quilombo, Rio de Janeiro, 09 de mai. de 1950, p. 6-7.
56
Catty, a boneca de pixe de 1950. Quilombo, p. 6-7.
57
Não há referência ao nome da embaixatriz nas fontes pesquisadas.
58
Catty, a boneca de pixe de 1950. Quilombo, p. 6-7.
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Assim como a representação da “mulata” aprisiona a mulher negra de pele mais clara
ao status de promiscuidade, onde sua sexualidade e sensualidade serão exacerbadas, a
59
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da Cor. Identidade, raça e gênero no Brasil. 1. ed. São Paulo:
Summus/ Selo Negro, 2003. v. 1, p. 299.
60
Boneca de Pixe. O Cruzeiro, 05 de jun. de 1948, p.32.
61
SILVA, Joyce Gonçalves. “Nós também somos belas”: a construção social do corpo e da beleza em
mulheres negras. Dissertação de Mestrado - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca , 2015, p.03.
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pele mais retinta eleva a opressão para outro patamar, onde além dos fatores ligados a
promiscuidade, sua presença na sociedade será sempre negada.
Acerca dessas “diferenciações de tonalidade”, e status social, a socióloga Claudete A.
S. Souza nos ajuda a compreender com um antigo aforismo do século XIX, que dizia: “as
mulheres brancas são para o casamento, as mulheres mulatas são para a fornicação e as
mulheres pretas são para o trabalho” 62.
A segunda edição do Boneca de Pixe em 1950 encerrou as atividades dos dois
concursos de beleza negra no Teatro Experimental. O motivo do fim dos concursos, de
acordo com Abdias Nascimento foram as diversas “críticas esquerdistas” e a insistência
da imprensa em “distorcer a iniciativa” 63.
Considerações finais
Quem nunca ouviu o velho ditado popular “a beleza está nos olhos de quem a vê”? 64
A frase “romântica”, conhecida por nós, e por nós muitas vezes até por repetida, pode não
representar a realidade. Pois, é preciso considerar que a beleza, é uma realidade construída
pela sociedade em determinado período histórico, ou seja, nosso entendimento do que é
“belo”, está diretamente veiculado ao nosso lugar de origem, ao período em que vivemos,
e principalmente a nossa herança cultural.
A autora americana Yaba Blay define com precisão essa relação, ao afirmar que “no
contexto da supremacia branca, vemos que o poder funciona como hierarquia, onde o
branco está no topo, associado ao belo, e a negritude, na base, associada ao que é bárbaro,
negativo e feio” 65
. Esse ponto é fundamental para pensar o presente artigo, pois, nos
concursos de beleza, vemos a construção de binômios que dialogam diretamente com essa
concepção. Assim temos a beleza associada à ideia de progresso e a feiura dialogando
com o "atraso" civilizatório.
Inseridas nessas relações hierarquizadas, baseadas nas opressões raça, classe e de
62
SOUZA, Claudete Alves da Silva. A solidão da mulher negra: sua subjetividade e seu preterimento pelo
homem negro na cidade de São Paulo. 2008. 174 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008, p.58.
63
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento (Grandes vultos que honraram o Senado). Brasília:
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014, p. 162
64
A ideia de citação do ditado foi inspirada na reportagem de Mariana Tokarnia sobre a participação de
Yaba Blay no Festival Mulher da Mulher Afro-Latino- Americana e Caribenha de 2015. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-07/beleza-negra-e-uma-questao-politica-para-
professora-yaba-blay. Acesso em 20 de outubro de 2019.
65
BLAY, Yaba. Latinidades: padrão de beleza é predominantemente branco, diz professora dos EUA. In.
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-07/beleza-negra-e-uma-questao-politica-para-
professora-yaba-blay. 2018.
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gênero, encontram-se as mulheres negras. Afinal, a mulher negra convive com a opressão
do racismo e suas mazelas sociais, assim como também enfrenta uma sociedade
patriarcal, que considera mulheres como “seres inferiores”.
É dentro dessas relações que também estavam nossas candidatas ao Rainha das
Mulatas e ao Boneca de Pixe. Mulheres negras que não aparentavam integrar a “alta
sociedade”, por isso poderiam enxergar nos concursos de beleza negra uma valorização
de sua beleza, assim como também, a obtenção de destaque social.
Tendo em vista esse processo de desumanização e escravização dos corpos negros,
destacamos a relevância e o caráter pedagógico dos concursos de beleza negra realizados
pelo TEN e demais associações no processo de valorização da mulher negra. As relações
raciais brasileiras desse período envolviam diversas complexidades em suas ações,
portanto, os objetivos do TEN a respeito da integração e o aumento de oportunidade para
negros e negras, podem em certa medida ser estratégias que possibilitavam a visibilidade
do grupo, e de uma visão positividade das mulheres negras.
Entretanto, apesar dos objetivos reafirmarem o compromisso com essa valorização, a
realização de concursos de beleza, por si só, já traz consigo diversas complexidades. Pois,
uma vez que haverá um “julgamento da mais bela”, há que se considerar que há critérios
para tal escolha, logo, quais seriam os critérios utilizados para avaliar essas mulheres
negras?
A realização de dois concursos distintos foi a primeira pista que encontramos para
responder algumas questões deste texto. Nesse sentido, observamos que uma das
diferenças entre os dois, se dava pela tonalidade de pele das candidatas, ou seja, as de
pele negra mais clara deveriam se inscrever no Rainha das Mulatas, e as de pele mais
retinta concorreriam ao Boneca de Pixe. Porém, também é importante destacar, que a
partir das fontes encontradas, notamos que mesmo que houvesse distinções entre os dois
grupos de mulheres negras nos concursos, ambas, eram consideradas pelo Teatro
Experimental do Negro como mulheres negras.
Contudo, “rainhas” e “bonecas” contavam com maiores diferenças, para além do tom
de pele. Inevitavelmente o Rainha das Mulatas, além de ser destinado às mulheres negras
de pele mais clara, também se apoiava na valorização dos atributos físicos das candidatas,
destacando seu corpo e sensualidade. Logo, as “garotas cor de canela” não raramente
serão descritas na imprensa de maneira estereotipada, como “explosiva mulata”, “mulata
bomba atômica”, “mulata com beleza alucinante”, “mulata gostosa”, como vimos
anteriormente.
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Essa prática para com as “mulatas” fica mais explícita com a utilização de alusões a
elementos comparativos, ou com aspectos mais “cômicos”. Um exemplo dessa prática é
observado a partir do trecho de diálogo entre dois homens, publicado em 1950, no jornal
Quilombo:
Bastante razão tinha um amigo meu quando, ao aproximar-se de um outro,
louvando a beleza da nossa raça, trazia em uma das mãos o número 5, de
janeiro deste ano, de QUILOMBO, cuja capa ostentava a fotografia de uma
bela e graciosa jovem americana cujo sorriso irradiava a meiguice
característica das mulatas.
- Que coisinha ein! Exclamou mostrando o jornal.
- Que coisinha nada meu amigo. Eu diria melhor, e com mais propriedade, se
me permite, qui...lombinho66!
66
Catty, a boneca de pixe de 1950.Quilombo, Rio de Janeiro, 09 de mai. de 1950, p. 6-7.
313
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
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de 1947.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1ª ed. — São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
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SILVA, Joyce Gonçalves. “Nós também somos belas”: a construção social do corpo e
da beleza em mulheres negras. Dissertação de Mestrado - Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, 2015.
SOUZA, Claudete Alves da Silva. A solidão da mulher negra: sua subjetividade e seu
preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo. 2008. 174 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2008.
316
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al4.p.317.342
Abstract
The present theme is part of the master's dissertation defended in the year 2020/1 at the Federal University
of Mato Grosso - UFMT under the guidelines of the Department of Graduate Studies in History - PPGHIS,
entitled “History of bohemian and turbulent women in toy houses of the Porto neighborhood in Cuiabá
1860 - 1888 ”, that is, this work addresses a social historiographical analysis based on readings made from
official documents from the end of the 19th century, found in the Public Archives in the penal series of the
Registry of the 6th Office of the Court of Police Relations and Records, registered as light / heavy bodily
injuries, turbulence to public order, drunkenness, homicides and attempted homicide, which comprised a
social plot of dramas and amorous and financial conflicts in the port region of this city, which was known
as customer of Pedro II. This region, being a busy area for businesses, also housed several types of family
residences of diverse social levels and, in this historical period studied, became known as turbulent and
dangerous due to the large number of tavernas, bars, hotels and houses of free access where the parties
known as drummers of cururu and siriri were practiced, in which many white, poor and free men and
women mingled with enslaved blacks who, when they had their letters of authorization giving them the
“freedom to be able to celebrate”, they were together with other black liners, freed and mixed-race,
practicing their freedom of fun through the act of playing, having fun both in the family, as in friendship,
dating and forbidden romances.
1
Mestre em História - Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]
317
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Introdução
2
GONÇALVES FILHO, Carlos Antônio. Honradas senhoras e bons cidadãos: gênero, imprensa e
sociabilidades no Recife oitocentista. Dissertação (Mestrado em História) - UFPE, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História. Recife, 2009. p. 60. O entendimento na
perspectiva do que se refere a “classe social”, está subentendido em Thompson (1987, p. 9), quando ele
afirma que “[...] um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente
desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno
histórico. Dessa forma, não vejo os segmentos enquanto ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’,
mas como algo que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações humanas”.
3
REIS, João José. Tambores e Tremores: A Festa Negra na Bahia na primeira metade do Século XIX. In:
CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). Carnavais e Outras F(r)estas. Ensaios de História Social da
Cultura. 1 ed. São Paulo: UNICAMP; CECULT, 2002, p. 113.
4
MOURA, Denise. Saindo das Sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: Área
dePublicações CMU; UNICAMP, 1998, p. 40.
318
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
domésticos, como o próprio nome já afirma, trabalhavam dentro dos lares e dos comércios
locais, e os escravos de ganho trabalhavam na cidade, porém no final do trabalho eles
teriam que voltar para casa de seus donos e também dar um percentual a mais do seu
salário para compensar a sua ausência de trabalho ao seu dono. Já os escravos de jornais,
eles trabalhavam de forma semelhante ao escravo de ganho, contudo a maioria deles
possuía um nível de leitura e escrita igual ao dos “homens brancos”, e aqueles negros
livres e pobres considerados camaradas eram agregados a pequenos lavradores,
trabalhadores de ofício, soldados, condutores de tropas, mineiros pobres, domésticos,
vendedoras de tabuleiros, quitandeiras, artesãos, lavadeiras, etc..
Segundo a descrição de Gomes (2011), nessa divisão de trabalho, que ocorreu
durante o século XIX com a chegada dos imigrantes italianos, havia uma espécie de
divisão que era chamada de ‘empregados técnicos e/ou especializados’, ou seja, nesses
ambientes de trabalho, cada trabalhador iria desenvolver seu ofício tanto na cidade quanto
no campo.
De um lado, existiam trabalhadores pobres formados por brancos, índios e
negros ex-escravos; de outro, havia os trabalhadores nacionais e/ou estrangeiros
desenvolvendo atividades especializadas. Cada um deles recebia os seus salários de
acordo com seu oficio e com seu desenvolvimento intelectual: leitura, escrita e
comunicação.
Contudo, nessa última camada social, existiam pessoas brancas, indígenas e
negros livres e seus respectivos descendentes, como os mestiços, que eram considerados
cabras, mulatos, crioulos, caburés, pardos, etc..5
Desta forma, havia as divisões sociais de trabalho no segmento das classes
humildes, onde cada indivíduo poderia ser um pequeno patrão, mesmo se tivesse poucas
posses ou, até mesmo, sem nada, mas que trabalhava por conta própria e com autonomia
entre ruas, avenidas e becos da cidade como mascates, caixeiros viajantes e vendedores
ambulantes.
Assim, essas pessoas que possuíam pequenos empreendimentos pelas ruas da
cidade poderiam sim precisar da ajuda de alguém, mas, por outro lado, quem poderia
suprir essa necessidade de mão de obra do trabalhador autônomo? Seriam praticamente
aqueles escravos de ganho, forros e os libertos que geralmente tinham habilidades na
escrita e nos cálculos matemáticos. Por outro lado, havia pessoas que não conseguiam
5
SENA, Divino Marcos de. Camaradas e complexidade entre livres e pobres: Mato Grosso - primeira
metade do século XIX. Descreve essa categoria de pessoas em suas atividades laborais pela cidade.
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emprego formal ou informal, e sua única alternativa era sair pedindo nas ruas e becos da
cidade.
As relações de trabalho entre patrões e empregados poderiam ser
compreendidas a partir de acordos firmados entre as duas partes, estipulando as atividades
a serem desenvolvidas a partir dos serviços prestados para que se pudesse chegar ao valor
a ser pago pelo serviço. Quanto ao tempo de serviço, isso poderia variar de um dia a duas
semanas ou meses, como no caso de colheita ou, até mesmo, de serviços em
estabelecimentos comerciais.
Para aqueles indivíduos que almejassem trabalhar em casa de família, mas que
não eram escravos, havia atividades como a de pedreiro, de ferreiro, de marceneiro e de
jardineiro, ganhando seu dinheiro pelo dia trabalhado. Segundo Volpato (1996)6, nos
ambientes rurais, os indivíduos que não fossem escravos também prestavam os seus
serviços em lavouras, fazendas de criação de animais, engenhos e, também, nas minas,
com a extração de minérios. Ou seja, a diferença desses indivíduos pobres, livres e não
escravos era vista a partir dos pagamentos recebidos pelos seus serviços e, às vezes, essas
diferenças eram vistas também da seguinte forma: muitos desses trabalhadores livres
tinham as famílias na cidade e somente na temporada de serviço é que eles se ausentavam
de suas casas; possuíam também liberdade de circular livremente pela cidade sem
nenhuma restrição e, até mesmo, de participar das festas dos brinquedos que fossem
legalizadas.
Todavia, aqueles que eram escravos e que precisavam sair nas ruas ou fazer
compras para seus senhores teriam de estar com uma carta de autorização informando os
motivos de sua presença naquele local, entretanto alguns donos de escravos davam uma
certa flexibilidade e deixavam um escravo de confiança sair para se divertir em bares,
tavernas ou brinquedos. Caso o escravo perdesse essa autorização ou não a levasse
consigo e fosse preso, ele seria levado para a delegacia, seria lavrada a ocorrência, seu
dono seria comunicado e teria que pagar uma fiança. Consequentemente, esse escravo
sofreria mais tarde algum tipo de punição por essa contravenção de conduta na cidade.
Havia ainda, nesse espaço, os ex-escravos considerados forros, os quais
trabalhavam por conta própria como se fossem pequenos comerciantes da cidade, fato
6
VOLPATO, L. R. R. op. cit.
320
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observado por Edvaldo de Assis,7 que menciona dois escravos forros que tinham seu
próprio comércio:
[...] O Primeiro caso: A mulher negra forra Catarina Maria de Jesus, que criava
porcos e fornecia toucinho aos Armazéns do Príncipe da Beira do Rio.
O Segundo Caso: Preto Forro chamado Domingos Martins, Bernardo Veiga e
Cipriano José, que tiveram seus bens penhorados, por serem devedores de
dívidas. O primeiro devedor da Capital e os últimos dízimos. Na documentação
não foram mencionados os bens penhorados, mas eles possuíam casas, gados
vacuns e pequenas terras.
7
ASSIS, Edvaldo. Mato Grosso: Negro Forro& Sociedade Escravocrata. Diário Oficial-Suplemento
Mensal do dia 31 de julho de 1986, p. 6.
8
Ibidem.
321
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como nas senzalas, nas rodas de batuque, nas rodas de folguedo ou nos quintais das casas
dos seus senhores.
É nesse contexto que verificamos um entrelaçamento entre a convivência do
privado e o público. A pesquisadora Siqueira (1999) evidenciou essas tais vivências entre
indivíduos livres pobres e os negros escravos ou libertos nos espaços sociais da cidade de
Cuiabá, afirmando que as pessoas das classes sociais mais inferiores costumavam se
divertir de forma livre e espontânea entre rodadas de aguardente nos bares, tavernas e
botequins, ou até mesmo, nos espaços privados de quintais residenciais ou de fazendas,
praticando, assim, as festas do brinquedo em ritmo de batuque, cururu e siriri.
Reforçando essa ideia de resistência e de luta em busca da liberdade dentro dos
espaços urbanos, onde se pudesse praticar a própria fé religiosa nas matrizes africanas,
como também na forma de divertimento em reuniões familiares ou de amigos, em rodas
de conversa nos batuques e dos brinquedos, temos também outra forma festiva que os
olhares da sociedade cuiabana condenavam e acabavam rotulando como algo
pecaminoso, cheio de luxúria, barulhento, turbulento, e que se reuniam somente pessoas
de má fé, como vadios, prostitutas e ladrões.
Esse pensamento de desqualificação nos espaços de divertimento das classes
pobres brancas, mestiças, escravas, libertas, forras e livres que observamos nos discursos
feitos acima pelas autoridades policiais e por alguns moradores sem ao menos conhecer
o lugar direito, e isso só acontecia a partir do momento em que se via reunidos esses
aglomerados de pessoas, então, os policiais e os guardas de quarteirão eram chamados
para averiguar se nesse local estavam ocorrendo os divertimentos ilícitos.
Então, nesse reforço pela proteção e pela segurança popular que surge o Código
de Postura, ou seja, seria uma medida preventiva que traria segurança e paz para a
comunidade local, mas vale ressaltar que essa medida preventiva do Código de Postura
não era algo restrito ao Mato Grosso, mais algo implantado a nível nacional pela Corte
Portuguesa, através do Governo Imperial. Contudo, o objetivo do Código de Postura era
que a sociedade criasse um modo de vida saudável e harmônico nesse momento. A
pesquisadora Volpato (1993) descreve como essas medidas sociais foram impostas na
sociedade cuiabana durante Período Imperial:
322
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“[...] pelo alto índice de atritos que ocorriam nessas reuniões das festas,
funções, divertimento, batuques eram vistos pelas autoridades como momentos
privilegiados de brigas e por isso deveriam ser no máximo evitados”.9
9
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Op.cit., p. 205.
10
Decreto nº 577. Postura Municipais de Cuiabá. Cuiabá 30 de novembro de 1880. IMPL- Livro de
Registro dos Decretos e Resoluções.
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endividado, perdendo tudo o que tinha, além das traições conjugais que redundavam na
descoberta de amantes, concubinas e filhos ilegítimos.
Assim, acentuando esses fatores de riscos, o jornal O Povir trouxe uma matéria,
publicada no ano de 1877, intitulada de “As consequências do jogo”, reforçando para a
população que esse tipo de divertimento só trazia infelicidade no meio social e familiar:
11
O PORVIR. Vício do Jogo- nº 25. Cuiabá 15 de dezembro de 1877/15/dez. APMT- Coleção de Jornais.
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[...] que muito apreciava, em companhia de dois e três senhores, no seu amplo
e confortável gabinete de trabalho. Costumava oferecer-nos esplêndidos
charutos paraguaios. Assistíamos ao jogo e durante os intervalos, tínhamos a
oportunidade de melhorar os nossos, ainda bem falho, conhecimentos de
português. [...] Às 19 horas era servido o chá de origem paraguaia ou chinesa,
acompanhado de excelentes biscoitos. Pouco a pouco os jogadores acabavam
o entretenimento, fazendo as contas dos grãos de milho, conversando ainda um
pouco, e retirando-se pontualmente.12
12
STEINEN, Karl von den. Op. cit., p. 78.
13
INOUI, Simone Zanelatti de Cubas. Sobre o vestuário e suas representações na Vila Real do Senhor
Bom Jesus do Cuiabá (1727-1818). Dissertação (Mestrado em História) – UFMT/ICHS, 2004.
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[...] Não fala com pobre, não dá mão ao preto, não carrega embrulho
Prá que tanta pose doutor? Prá que esse orgulho?
A bruxa que é cega, esbarra na gente, a vida estanca
O infarto te pega doutor, caba essa banca
A vaidade é assim, põe o tonto no alto, retira a escada
Fica por perto esperando sentada
Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do tonto afinal, todo mundo é igual,
quando o tombo termina com terra por cima e na horizontal
A citação acima nos proporcionou uma reflexão sobre como esse momento de
divertimentos, lazer e trabalho das classes mais humildes incomodava a elite, pois quando
a música diz não dá a mão a preto, ela faz uma referência ao estigma que a escravidão
deixou no trabalhador livre, fazendo-o recusar aquela forma de trabalho por considerá-la
própria de escravos.
O outro ponto da música que faz alusão mais direta a essa separação social, é
quando se diz não carrega embrulho, ou seja, essa particularidade estaria vivenciada no
cotidiano dos brasileiros, já que o embrulho, por sua vez, se relaciona ao comércio que
era considerado inferior, o do mascate, que embrulhava as mercadorias para as entregas.
Assim, o termo pequeno comerciante representava aqueles que, necessariamente, se
colocavam fora do segmento das elites: homens comuns, poucos conceituados, que
faziam a diferença nos espaços urbanos. Essa diferença se dava, pois muitos desses
pequenos comerciantes, considerados mascates, levavam suas mercadorias em diversos
locais de difícil acesso, e seus produtos eram de extrema importância para esses
moradores, que os aguardavam com muitas expectativas e entusiasmo, já que muitos
desses produtos diversos abasteciam as casas e outros comércios de uma determinada
região.
Levando-se em consideração a importância da profissão dos mascates na
cidade, sendo ele um empresário autônomo desse período, destacamos a referência da
escritora Rodrigues (1981. p. 26) sobre a afirmação de que a presença desse profissional
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que chegava nas ruas, avenidas e becos com suas carroças ou, às vezes, nos lombos de
animais, e estavam repletos de mercadorias e novidades vindas da cidade grande. Essas
pessoas eram conhecidas como turcos,
Trata-se de vendedores ambulantes que eram de origem síria e chamados na
época de Turcos. Eles traziam às costas, presas por grossos cadarços, um baú de folhas
de Flandos, cheio de quinquilharia, que continha desde lenços, perfumes baratos, pó de
arroz, sabonetes, leques, peças de fitas de bordados de rendas valenciana, de todos os
aviamentos de costura e alguns, cortes de fazendas. Vinham arcados com tanto peso e
seguravam uma campainha que tilintava a sua passagem. Quando melhoravam a situação,
alugavam um carregador qualquer para aguentar o peso do baú de folha e eles, os donos,
vinham aliviados, tocando a companhia.
Além dessas ações de relacionamento comercial de compra e venda, esses
mascates eram pessoas que simbolizavam a alegria por ondem passavam, pois eram
conhecidos por todos, e esse fato nos transporta para o seguinte trecho do texto da
Rodrigues (1981), quando ela narra a sequência de fatos da personalidade de um mascate
chamado Elias, que era turco e que viveu nesse período histórico,
[…] Elias era um turco, para mim era uma festa ve-lo arriar a carga, dar uma
bufada de alívio, com a testa gotejando do esforço e do calor. Que Maravilha,
quando levantantava a tampa do baú! Havia até malacocheta dourada de
missangas para enfeitar roupas de anjo de procissão e fantasia de carnaval.
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E esses direitos políticos poderiam ser reconhecidos pelo autor como direito civil, a saber
o direito garantido pelo Código de Processo Criminal do ano de 1832.
De fato, a Constituição de 1832 abordava se o Poder Judiciário era composto
pelos crimes civis, pelos juízes e jurados. Desta forma, o cidadão em sua participação
como jurado participava de um modo direto do poder judicial exercido por um voto direito
sobre um crime.
Acreditamos que essa análise de mudança estrutural política e social da cidade
veio a culminar nessas mudanças em que a capacidade política a ser votada, entre os
cidadãos e o Estado no Brasil durante o século XIX, foram a guarda nacional, o serviço
militar, o serviço do júri e o recenseamento dentro do registro civil.
Trabalhando com essa perspectiva histórica do avanço, o Estado Oitocentista
em direção a regularizar a sociedade como um todo de forma a secularizar as relações
sociais, surgiram três medidas básicas de incentivos que despertaram de algum modo a
ira da população: o alistamento militar, o registro civil e a introdução do sistema métrico.
Como já foi dito anteriormente, o alistamento militar só se concretizaria a partir
de uma reação de Guerra, como houve na Guerra da Tríplice Aliança. Nesse contexto,
todos os cidadãos jovens seriam obrigados a se apresentar num quartel - anterior a esse
fato, a decisão era voluntária de se fazer parte da corporação militar. Já a questão dos
registro civil era uma situação menos tensa até então, pois nos anos de 1850, o governo
fez aprovar uma lei que mandava fazer o primeiro censo demográfico do país para se
compreender a espacialidade do Brasil e de seus habitantes, introduzindo, assim,
documentos oficiais, como de registro civil de nascimento, casamento e óbitos, e todos
esses registros deveriam ser feitos e registrados por um Juiz de Paz. Porém, nesse contexto
de mudança, o registro de batismo religioso era mantido pelos registros civis.
Para finalizar a exemplificação da mudança judiciária ocorrida nos anos
oitocentistas, temos a introdução do novo sistema de pesos e medidas, que provocou
revoltas muito sérias nas populações. O Sistema Métrico foi adotado por lei no ano de
1862, mas com prazo de 10 anos em vigência, porém, no ano de 1871, houve uma reação
contrária na cidade do Rio de Janeiro, quando os conceitos de peso e medidas foram
quebrados e destruídos pela população, que se expressava dizendo ‘quebra de quilo’.
Contudo, a reação maior veio da zona rural, por volta dos anos de 1874, principalmente
nas províncias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, e, após esses
eventos, outras províncias se manifestaram nesse mesmo propósito.
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Os exemplos acima são uma pequena amostra de como o cotidiano das cidades
grandes e centrais estava servindo de modelo para aqueles que estavam passando por um
processo de transformação e adequação ao novo regime jurídico e administrativo a nível
nacional e estadual.
Em se tratando de Mato Grosso, percebemos que sua trajetória jurídica passou
pelos olhares da Prof.ª Dr.ª Madureira (2010), que apresenta essa estrutura nova de
governo jurídico em sua obra O Sistema eleitoral no final do século XIX. Sua base é após
a Independência do Brasil, em 1828, quando as eleições para a escolha dos membros do
Senado da Câmara de Vereadores possuíam características de Vilas, e sua
representatividade era de uma administração do Sistema de Capitanias.
Contudo, o mais importante nesse momento de mudança jurídica foi a
instalação de capitais dentro das capitanias, ou seja, servindo de modelo para as demais
vilas. Porém as Câmaras recebiam títulos do Senado da Câmara, outorgados em geral, e
isso se dava nas esferas Administrativa, Legislativa e Judiciária.
Procuramos apresentar de forma que aparecessem os homens e as mulheres de
destaque social na vila, que vieram a ocupar cargos no interior do Senado da Câmara -
também designada de Conselhos ou Mesa de Vereação. Isso era um distintivo, gozando
seus membros de inúmeras regalias, como o direito de prisão domiciliar e de se
corresponder diretamente com o rei de Portugal (Silva, 2000).
De fato, a lei de regulamentação dessa eleição era normatizada pela Coroa
Portuguesa através das Ordenações - legislação que regia todas as colônias lusitanas.
As Câmaras de Vereadores existiam em Portugal desde longa data, porém seu
primeiro registro foram as Ordenações Afonsinas, que ocorreram durante os séculos XIII
e XIV. O historiador Paulo Pitalunga Costa Silva (2000, p.13) descreve da seguinte
forma: essa primeira Ordenação apenas disciplinou os deveres e direitos dos camaristas
dessa instituição que há muitos séculos já vinha funcionando com direito, mais no antigo
regime dos portugueses.
Ao analisar como foi a trajetória da regulamentação pelas Ordenações Filipinas,
chamamos atenção para o Título 66 (1446), que nos referencia da seguinte forma:
330
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
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• Juiz de Fora: seria um magistrado com título de bacharel em Direito, mas que era
nomeado pelo Rei para que velasse pela justiça, parentesco e amizade dos
moradores da Vila durante o século XVIII. Sua função era considerada para
garantir a isenção no julgamento, presidido por eles dentro das Câmaras. Além de
presidir o Senado da Câmara, os Juízes de Fora executavam devassas
administrativas nos âmbitos público e privado, tendo por base as denúncias que
recebiam.
• Juízes Ordinários: eles eram eleitos com o mandato de um ano, dentre os homens
da Vila, e isso lhes dava a garantia das Cartas de Usanças, que possuíam uma
autoridade superior à de um Capitão General, por exemplo. Essa função possuía
a característica de administrar […] a justiça do povo e tendo-se em vista o Direito
Costumeiro, os Forais, que por ventura não poderiam ser de agrado do Poder Real
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e muito menos dos Juristas. (Código Filipiano apud Silva, 2000, p.37), de acordo
com a historiografia consultada, o número de Juízes Ordinários era de dois por
Vila, e isso lhes obrigavam a frequentar as sessões semanais do Senado da
Câmara, e ao mesmo tempo, a proceder ao lado dos Vereadores em eleições
trianuais dos seus integrantes.
• Juízes de Vintena: eram homens considerados bons em suas localidades, que por
ventura possuíssem cerca de vinte vizinhos na vila. Sua função era diminuir as
contendas entre os moradores na forma verbal dentro do conceito civil, e isso
poderia acarretar em documentos por escrito que, logo em seguida, seriam
encaminhados ao Juiz Ordinário - caso esse não estivesse disponível, seria o Juiz
de Fora quem responderia o auto. Para tanto, essa função de Juiz do Arraial,
“certamenta era de grande utilidade na prestação da justice às pequenas causas e
no desafogo processual dos Juizes de For a e Ordinários” (Silva, 2000, p 40).
14
COMETTI, Pe. Pedro (SDB) Apontamentos da História Eclesiástica de Mato Grosso – Paróquia e
Prelazia Volume I. Instituto Histórico geográfico do Mato Grosso e Academia Mato-grossense de Letras,
Cuiabá, 06 de dezembro de 1996, p. 12.
15
SILVA, Octhayde Jorge da. Cuiabá-São Benedito. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato
Grosso. Cuiabá, Ano L, 1978, p. 48.
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Mas o que se percebe ao longo dessa história, é que esses espaços festivos entre
negros e brancos sempre se cruzavam porque os seus limites territoriais religiosos eram
próximos entre si. Assim, os negros aproveitavam esses momentos festivos religiosos
católicos para comemorar com suas divindades negras, mas de forma tímida e clandestina,
pois a cultura e a religiosidade africanas eram consideras como atos profanos à fé cristã
e, ao celebrar o dia de São Benedito, o santo negro, lhes remetia um significado de
proteção dos escravos, os quais nunca esqueceram suas raízes culturais e religiosas.
As procissões feitas ao santo negro só podiam ser realizadas via permissão das
autoridades e seguindo as determinações da lei:
16
APEMT-Arquivo Público Estadual de Mato Grosso. Assembleia Legislativa do ano de 1888, nº 764.
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Quanto à existência desse fato, a presente pesquisa não pôde dar a devida
resposta, com profundidade nos fatos, pois o tempo de busca não era ábil para tanto.
Entretanto, tudo nos leva a crer que ambas as estórias possuem alguma verdade
historiográfica, pois, segundo os levantamentos já feitos sobre essa região, a presença
negra e escravizada era de fato bastante presente, então, há indícios de que existia sim
esse espaço religioso de fé africana.
Por outro lado, as duas últimas estórias se assemelham a um inventário da Dona
Argemiza18, que nos afirma que essa localidade do bairro Porto era chamada, nos meados
do século XIX, de Capão do Gama, ou seja, existiam ali vários sítios e chácaras que
compunham este local, e essa dimensão territorial se dava desde a Ponte Nova da cidade
de Várzea Grande, do municipal atual, passando por Cidade Alta, seguindo o contorno
17
Esses trechos de lendas urbanas entorno da fé africana foram retirados do site:
https://www.almanaquecuiaba.com.br/cuiabanidade/bairros/a-historia-passa-pelo-porto no dia 30/10/2019
as 23: 14 hs.
18
INVENTÁRIO - Cartório do 2º Oficio- Serviço Notarial e Registral da 1º Circunscrição imobiliário da
Comarca de Cuiabá Estado de Mato Grosso. Argemisa de Campos Figueiredo. Transcrição 41.055 as fls
219 do livro 3-AD em 04/05/1970. Matricula 15.822 as fls, 017 do livro 2-BE em 04/09/1980. Matricula
24.866 as fls. 124 do livro 2-CO em 28/05/1982.Transcrição: 35.957 as fls. 065 do livro 3-AB em
23/02/1968. Transcrição: 44.878 as 212 do livro 3-AH em 12/12/1971.
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do rio Cuiabá, Porto Geral, até chegar no Coxipó da ponte, mais precisamente próximo
ao comércio da Paiol materiais de construções.
Metodologia
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Imperial igual as outras cidades do Brasil, tais como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador,
etc., que tiveram modificações nas estruturas físicas de casas, comércios e casarões,
becos, ruas e travessas, como também na implantação do código de Postura, o qual regia
a sociedade de forma protetiva no convívio social, afastando, assim, os perigos eminentes
com algum morador baderneiro, boêmico e turbulento, reforçando, assim, a segurança
pública das ruas tanto com os policiais quanto com os guardas de quarteirão, que faziam
o patrulhamento das ruas diuturnamente.
Resultados e Discussão
19
BERMAN, Marshall. Baudelaire: o modernismo nas Ruas. In: Tudo que é sólido desmancha no ar.
São Paulo: Cia. das Letras, 1986, p. 133.
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Considerações Finais
Art.56- É proibido a dança do batuque nas casas das povoações com algazarras
de dia ou de noite, de sorte que incomode a vizinhança. Aquele que dera a casa
sofrerá a pena de trinta mil réis, ou trinta dias de prisão, e os concorrentes de
seis mil réis ou seis dias de prisão.
Art. 57- Semelhantemente ficam proibidos os batuques os pretos dentro das
povoações. O infrator se for liberto, será castigado com trinta dias de prisão, e
se cativo, com cem açoutes, e quebrados todos os instrumentos. (APMT.
Coleção Códigos de Postura Municipal. 1832).
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amorosos, que se faziam presentes nessas festas de batuques da camada mais humilde da
sociedade citada acima, o que era visto como algo tenebroso em relação aos bons
costumes.
Apesar de injunções rigorosas que se destinavam a classificar e a normatizar o
território urbano, a resistência se fez presente, pois, como nos lembra Foucault (1995, p.
248), “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão
eventual”.
Praticamente, o cotidiano desses sujeitos históricos das classes pobres e dos
escravos na cidade de Cuiabá foi analisado numa perspectiva a fim de ver como
funcionava a organização do cotidiano deles em relação às práticas do divertimento/lazer
em torno das festas dos batuques em ritmo de cururu e siri.
Isso acarretou numa análise da existência e da resistência sociais diante do
sistema autoritário implantado e apoiado pelo Código de Postura vigente, e isso constituiu
um universo cultural, onde homens e mulheres conviviam, marcado por amizade, carinho,
amor, afeto, trabalho, respeito, como também por rixas, ódios, ciúmes e negociações.
Realmente, para afirmar o fato acima, houve uma junção de várias histórias
de vida interpretadas pelos processos crimes do Cartório do 6º Ofício e do Tribunal das
Relações, delimitando e, ao mesmo tempo, marcando suas histórias e memórias de vida
pessoal. Esse trabalho procurou evidenciar suas histórias de vida sob um olhar diferente,
colocando-as como parte integrante da história social da cidade de Cuiabá durante o
século XIX.
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Referências Bibliográficas
ALVES, Gilberto Luiz. Mato Grosso e a História 1870-1929. Ensaio sobre a transição
do domínio econômico da casa comercial para hegemonia do capital financeira. São
Paulo: 1985.
ARRUDA, Maria Auxiliadora de. Escravidão Urbana da Vila Real do Senhor Bom
Jesus de Cuiabá: Limites e possibilidades. 2009. Dissertação (Mestrado em) –
Universidade Federal de Mato Grosso 2009.
340
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
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CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas, tomo II. Lisboa: Imprensa
Nacional; Casa da Moeda, 2009.
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NOGUEIRA, Arlinda Rocha et. al. (orgs). Sergio Buarque de Holanda: vida e obra.
São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Arquivo Público do Estado de São Paulo;
Universidade de São Paulo/Instituto de Estudos Brasileiros, 1988.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al5.p.343.366
A CIVILIZAÇÃO DO AMAZONAS NO
PENSAMENTO DE TORQUATO TAPAJÓS
(1853-1897)
Luís Francisco Munaro1
Resumo
Este artigo busca interpretar a obra do intelectual amazonense Torquato Tapajós (1853-
1897), dando especial destaque para os recursos que ele utilizou para entender a natureza,
a sociedade e a política da província do Amazonas. Na sua primeira parte, procura traçar
um panorama do Amazonas quando do período de juventude de Torquato, até a sua
mudança para o Rio de Janeiro, onde completou os seus estudos e ingressou no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Na segunda parte, investiga a obra de caráter
fundamentalmente geopolítico de Torquato, onde estão evidenciadas a exaltação da
natureza, a necessidade do povoamento do Amazonas, bem como as promessas
econômicas inerentes à ocupação da “estrela do norte”. Estas ideias giram em torno da
busca central pela civilização.
Palavras-chave: História do Amazonas; Torquato Tapajós; geografia; civilização.
Abstract
This article seeks to interpret the work from the amazon intellectual Torquato Tapajós
(1853-1897), giving special emphasis to the resources he used to understand the nature,
society and politics of the province of Amazonas. In its first part, an overview of the
Amazon is sought during Torquato´s youth, until its move to Rio de Janeiro, where he
finished his studies and joined the Brazilian Historical and Geographic Institute. The
article realized how, in Torquato's fundamentally geopolitical work, the exaltation of the
nature and settlement of Amazonas is evident, as well as economic promises inherent in
the occupation of the "northern star". These ideas are available in a central search for the
reach of civilization.
Keywords: History of Amazon; Torquato Tapajós; geography; civilization.
1
Professor adjunto do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Graduado em História e em Jornalismo pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO),
mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutor em História pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:[email protected]
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2
MOTA, Assislene Barros. A escola normal do Amazonas: a formação de uma identidade (1889-1945),
Tese apresentada à UNISO, Sorocaba, 2005.
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posição política e econômica mais favorecida, tão logo findo os seus estudos no liceu, ele
foi enviado para outra província para continuar o seu processo de formação intelectual.
Além de um pioneiro, a figura de Torquato é importante porque seu processo de formação
em Manaus acompanha o dos primeiros filhos da província que ingressaram no mundo
das letras. Nos dicionários biográficos de Agnelo Bittencourt3 e Anisio Jobim4, não há a
data precisa para a sua saída de Manaus em direção ao Rio de Janeiro, onde morou o resto
dos seus dias. Supõe-se que o término dos seus estudos secundários em Manaus aconteceu
no início dos anos 1870, dado que em 1871 completou 18 anos.
No que diz respeito à dimensão da cidade na qual Torquato Tapajós estava
inserido, a população do Amazonas, segundo o censo geral de 1872, contava 57.610
almas, sendo que mais da metade (29.334) estava localizada em Manaus. Ainda não se
experimentaram, nesse período, os eventos econômicos definidores da expansão da
borracha, quando a população se multiplicou muito rapidamente, atraindo migrantes de
outras regiões e países e, fato de não menor importância, assistindo a um número cada
vez maior de periódicos impressos e a multiplicação de “escritores públicos” ou
jornalistas. Este processo “fecundou” a bacia hidrográfica amazônica com pequenas
folhas jornalísticas, criadas de forma quase concomitante à fundação dos municípios
impulsionada pela economia gomífera e em acordo com as necessidades administrativas
de publicação de atos oficiais.
A partir do pano de fundo que é a província recém criada, com modesta
arrecadação tributária e com severas restrições para o financiamento do ensino público,
uma população dispersa pelo vasto território e atividades extrativas pouco conectadas
com o comércio internacional (a navegação internacional a vapor passou a figurar na
Amazônia a partir de 1867), pode-se vislumbrar o estado de acanhamento da vila descrita
pelos viajantes, desde brasileiros como Gonçalves Dias (1861-1862) até estrangeiros
como Louis e Elizabeth Agassiz (1865-1866). Neste panorama algo “acanhado”,
moldaram-se os estudos primários e secundários de Torquato Tapajós e entreteceram-se
os cenários, panoramas e símbolos para a sua fatura poética, patente nas obras Negreiros
(poesia), de 1872, e Nuvens Medrosas (poesia), de 1874.
3
BITTENCOURT, Agnelo. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro:
Conquista, 1973.
4
JOBIM, Anisio. A Intellectualidade no Extremo Norte. Contribuições para a História da Literatura no
Amazonas. Manaus: Livraria Clássica, 1934.
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Como será descrito neste artigo, Torquato Tapajós cruzou dois elementos que
justificam o seu estudo mais aprofundado: foi um pioneiro numa cidade com condições
de instrução precárias, apresentou significativa produção bibliográfica uma vez instalado
na capital do Império, e destinou-a em sua maior parte para pensar a sua região de origem,
muitas vezes na forma de imoderado ufanismo. A partir de sua trajetória na província e
do seu deslocamento para a capital, serão buscados detalhes de seu pensamento
geográfico e político deixados numa obra que se fez essencialmente uma defesa da
“civilização do Amazonas”. Na condição de intelectual amazônico, Torquato produziu
uma determinada representação do Amazonas e, ao mesmo tempo, ampliou-a por meio
do diálogo com outros literatos, retomando a tradição de cronistas e viajantes e
expandindo uma noção de civilização cara também aos presidentes da província.
Intelectual sendo aquele cujos escritos assumem uma dimensão pública, buscando
intervir, de alguma forma, na condução da sociedade por meio da operação de conceitos.
Jean François Sirinelli lembra que há duas acepções mais frequentes de intelectual, uma
ampla e sociocultural e outra, mais estreita, baseada na noção de engajamento. Nessa
definição mais ampla, estão “uma parte dos estudantes, criadores ou ‘mediadores’ em
potencial, e ainda outras categorias de ‘receptores’ de cultura”5. Na segunda, estaria o
intelectual engajado como um ator de relativa importância na condução da vida coletiva,
assinando e escrevendo manifestos, buscando modificar o rumo dos eventos. Torquato
Tapajós cruzou as duas noções: por um lado ele ajudou a criar uma definição cultural para
o Amazonas, pensando-lhe no interior da República em gestação; por outro, atuou como
um propagandista da causa do Amazonas diante de pretensões de outros estados e mesmo
de outras nações, escrevendo para jornais do Amazonas para assumir determinadas
posições políticas.
A partir da noção da trajetória de Torquato, se buscará na primeira parte deste
artigo mapear a sua formação na província e as condições em que migrou para a capital;
e, na segunda, identificar alguns traços do seu pensamento em vínculo com a exaltação
da terra do Amazonas, tendo como eixo central de análise o conceito de civilização e
progresso como eram percebidos pelas elites brasileiras da segunda metade do século
XIX. Será possível responder, assim, como Torquato, saído de condições precárias da
província, pode se fazer um intelectual atuante na questão do Amazonas a partir do seu
5
SIRINELLI, Jean François, RIOUX (orgs) Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 242.
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Da província à capital
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6
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.
7
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920).
Manaus: EDUA, 2015.
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8
DAOU, Ana Maria. A cidade, o teatro e o ‘Paiz das seringueiras’. Rio de Janeiro: rio´s Books, 2014.
9
Ibid, p. 54.
10
Ibid, p. 56.
11
MONTELLO, Josué. Gonçalves Dias na Amazônia. Relatórios e diários da viagem do Rio Negro. Rio
de Janeiro: ABL, 2002.
12
MOTA, Assislene Barros. A escola normal do Amazonas: a formação de uma identidade (1889-1945),
Tese apresentada à UNISO, Sorocaba, 2005, p. 54.
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13
Relatório da província do Amazonas do tenente-coronel João Wilkens de Mattos, de 4 de Abril de 1869,
Apud MOTA, Assislene Barros. A escola normal do Amazonas: a formação de uma identidade (1889-
1945), Tese apresentada à UNISO, Sorocaba, 2005, p. 54, p. 19-20, grafia atualizada, grifos nossos
14
LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na época imperial. 2ª edição. Manaus: Editora Valer,
2007, p. 124.
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lembra Vicente Tapajós, “foram de sua autoria proposições como as apresentadas nas
sessões de 17 a 18 de agosto de 1854, decretando, respectivamente, aumento salarial dos
professores e a prática da Educação Musical nas escolas”15. Outra de suas propostas,
também no campo da educação, sugere que “a educação e ensino da mocidade deve
sempre ser um dos principais cuidados do legislador, para apresentar à sociedade homens
instruídos e sábios, que possam substituir aos que curam dos interesses de seus
semelhantes, do bem estar de seus concidadãos e engrandecimento de um país [...]”16. O
Coronel Monteiro Tapajós ilustra, portanto, uma certa aflição da elite nativa em torno da
educação de seus filhos e da dificuldade em favorecê-los com um conhecimento de caráter
universal, capaz de ir além do acanhamento da vida na província. O vínculo entre o
Coronel Monteiro e seu filho Torquato se demonstrou em carta de outubro de 1877,
publicada no Jornal do Amazonas, quando o então engenheiro Torquato Tapajós
defendeu o seu pai de “umas agressões” desferidas pelo presidente de província Agesiláo
Pereira:
O sr. Coronel Francisco Antonio Monteiro Tapajós, a quem tanto mal quer o
sr. Dr. Agesiláo, é um velho e respeitável servidor da pátria que em época que
vai bem longe começou, expondo sua vida em prol da ordem pública e das
instituições juradas, a prestar os mais relevantes serviços ao país, serviços que
nunca serão comparados aos de qualquer cabo de eleições17.
Graças à influência política de seu pai, preocupado com os estudos dos filhos,
Torquato viajou na condição de Alferes da Guarda Nacional para o Rio de Janeiro, já que
como soldado raso teria que viajar na terceira classe18. Uma vez ali instalado, realizou os
estudos na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde, evidentemente, se envolveu com
toda uma outra ordem de preocupações intelectuais não acessíveis aos letrados que
ficaram na província e foram absorvidos pelos quadros administrativos e pela produção
dos jornais. A Escola Politécnica, instituição civil nascida da Escola Militar, oferecia seis
15
Apud. TAPAJÓS, Vicente et all. A Amazônia no século XIX. Contribuição do coronel Francisco
Antonio Monteiro Tapajós para o seu desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gráfica Vida Doméstica, 1979, p.
154.
16
Sessão de 18 de Agosto de 1854, TAPAJÓS, Vicente et all. A Amazônia no século XIX. Contribuição
do coronel Francisco Antonio Monteiro Tapajós para o seu desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gráfica Vida
Doméstica, 1979, p. 156.
17
TAPAJÓS, Vicente et all. A Amazônia no século XIX. Contribuição do coronel Francisco Antonio
Monteiro Tapajós para o seu desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gráfica Vida Doméstica, 1979, p. 144
18
BITTENCOURT, Agnelo. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro:
Conquista, 1973, p. 488.
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19
GABLER, Louise. “Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1891-1920)”. 2018. Disponível em
http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/244-academia-imperial-militar Acesso em Janeiro
de 2020.
20
TAPAJÓS, Vicente et all. A Amazônia no século XIX. Contribuição do coronel Francisco Antonio
Monteiro Tapajós para o seu desenvolvimento. Rio de Janeiro: Gráfica Vida Doméstica, 1979, p. 130)
21
TAPAJOS, Torquato. Nuvens Medrosas, Manaus, 1874. Disponível em:
https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/nuvens_medrosas, p. 137.
22
Ibid, p. 93.
23
Ibid, p. 136.
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Por conta dessa atuação, mesmo sem formação médica, Torquato Tapajós
ingressou na Sociedade Nacional de Medicina. Ele também produziu estudos sobre
esgotos e saneamento em São Paulo e Niterói, incluindo uma “Memória sobre a Eletrólise
das Águas do Mar e Sua Aplicação às Grandes Redes de Esgotos”, em 1891, que recebeu
a “medalha Hankshaw”. Seu ingresso no IHGB, em 1888, como sócio correspondente,
demarcou sua preocupação com temas atinentes à geografia nacional, durante a transição
do Império para a República, que inaugurou novas relações de força política nos estados
e municípios. Em 1890, Torquato foi transformado em sócio efetivo. Na missão dos
intelectuais no IHGB, estão presentes a ideia de que a história e a geografia auxiliam na
compreensão dos aspectos singulares da nação, elementos que marcarão os contornos da
obra de Torquato Tapajós.
24
TAPAJOS, Torquato. Nuvens Medrosas, Manaus, 1874. Disponível em:
https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/nuvens_medrosas, , p. xv-xvi.
25
BITTENCOURT, Agnelo. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro:
Conquista, 1973, p. 489-90.
26
Ibid, p. 489.
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Nesta obra, segundo sua biografia que consta na página digital do IHGB, estão
contidos ao menos 24 livros publicados, somando 4 de poesia ou literatura e 14 sobre a
geografia do Amazonas, além de outros envolvendo questões sanitárias. São as obras
sobre o Amazonas aquelas que interessam aqui, já que permitem ver como o autor buscou
vocalizar uma preocupação com o estado do Amazonas no período de transição
republicana, buscando imprimir-lhe consistência e um sentido particular, ao mesmo
tempo em que demonstra os benefícios da ocupação humana da região para o alcance da
civilização. Torquato não se refere à Amazônia (que aparecerá com mais força entre os
letrados de início do século XX), antes busca pelo Amazonas, que ocupa uma situação de
indefinição territorial nas fronteiras com o Pará e Mato Grosso. Nestas obras, Torquato
Tapajós se realizou como um intelectual em defesa de sua terra. Os vínculos que o ligam
à terra não são apenas as lembranças da juventude, mas também vínculos políticos no
interior dos quais está enredado o seu pai Coronel Francisco Tapajós.
Dentre as obras que foi possível acessar durante a produção deste artigo, atinentes
ao tema geografia e Amazonas ou o lugar do Amazonas no Brasil, estão os
“Apontamentos para o dicionário geográfico do Brazil”, de 1888; “Apontamentos para a
Climatologia do Valle do Amazonas”, de 1889; “Estudos sobre o Amazonas”, de 1896 e
“Colonisação e immigração, povoamento do estado do Amazonas”, de 1897. A escolha
destas obras seguiu um fator simples de logística: sua disponibilidade na biblioteca digital
do Senado e no acervo digital da Biblioteca do Amazonas.
27
BITTENCOURT, Agnelo. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro:
Conquista, 1973, p. 490.
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Nas obras citadas, Torquato buscou entender o Amazonas por meio da geografia
e viabilizar a sua civilização, defendendo-o das “calúnias” relativas ao clima insalubre.
Ele compartilha uma dada cultura política com os presidentes de província sobre a
necessidade de povoamento do Amazonas e da atração dos imigrantes para a empreitada
civilizacional28. Sobretudo entre estes presidentes, a necessidade de povoamento e
desenvolvimento da agricultura se tornou um tópico predominante, particularmente
urgente para o progresso da província. Este progresso viria, segundo a crença iluminista,
a partir do “domínio da natureza pela técnica”. Sobre isto, segundo Pedro Braga,
28
BRAGA, Pedro Henrique Maia. O clima do Amazonas: Uma interpretação dos discursos de
administradores provinciais (1850-1890). Dissertação apresentada ao PPGH de História da UFPB, 2015.
29
BRAGA, Pedro Henrique Maia. O clima do Amazonas: Uma interpretação dos discursos de
administradores provinciais (1850-1890). Dissertação apresentada ao PPGH de História da UFPB, 2015, p.
13.
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ações dos presidentes da província do Amazonas, que deixaram uma série de relatórios
em que descreviam as suas tentativas de implantação desse progresso e os obstáculos que
encontravam. Segundo a autora:
Vários instrumentos foram utilizados para este fim, entre os quais a geologia,
astronomia, botânica, zoologia, etnografia e a geografia. Com as cada vez mais numerosas
comissões científicas destinadas a explorar o território brasileiro, estes instrumentos
foram sendo colocados em funcionamento e ajudaram a entender a especificidade do
território brasileiro, dentro de um enquadramento científico. A exploração geográfica
visava dar uma inteligibilidade ao território brasileiro, expandir o poder central, ocupar
os interiores e, ao mesmo tempo, descobrir as suas potencialidades econômicas. Como
lembra a mesma Nasthya Pereira, a relevância da geografia ia além do aspecto meramente
físico:
30
PEREIRA, Nasthya. Relações Homem-Natureza: O Discurso Político Sobre Agricultura e Extrativismo
na Província do Amazonas (1852-1889). Dissertação apresentada ao PPGH-UFAM: Manaus, 2008, p. 57-
8.
31
Ibid., 2008, p. 64.
32
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Polo, 1994.
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que o seu apelo ao povoamento, como será visto adiante, passa ao largo dos inumeráveis
problemas concretos para a habitação humana no Amazonas.
Além de, como geógrafo, buscar definir os contornos do Amazonas, dar um lugar
para o seu “povo” e, ao mesmo tempo, estimular o seu povoamento, preocupou-o a
entrada de “braços para o trabalho”. Sobre isso, como lembra Braga,
33
BRAGA, Pedro Henrique Maia. O clima do Amazonas: Uma interpretação dos discursos de
administradores provinciais (1850-1890). Dissertação apresentada ao PPGH de História da UFPB, 2015, p.
105.
34
TAPAJÓS, Torquato. Apontamentos para a Climatologia do Valle do Amazonas. Autor: Torquato
Tapajós Rio de Janeiro, 1889a. Disponível em:
https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/apontamentos_para_a_climatologia_do, p. xvii, grifo nosso.
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Ao falar no IHGB, por exemplo ele estava mais preocupado com a propaganda explícita
da sua terra e em chamar a atenção de seus colegas literatos para a grandeza amazônica.
Em sessão de 10 de outubro de 1889, ele fez alusão a um texto de Onffroy de Thoron que
defende as origens lendárias da Amazônia e, considerando então o grande afluxo de
recursos promovido no período da “Belle Époque”, sua disposição para a grandeza:
35
TAPAJÓS, Torquato. Conferência realizada na sessão de 10 de Outubro de 1889; pelo sócio remido
Torquato. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. TOMO V Ano de 1889b Disponível
em http://memoria.bn.br/pdf/181897/per181897_1889_00004.pdf, pp. 227-8, grifos nossos.
36
TAPAJÓS, Torquato. Conferência realizada na sessão de 10 de Outubro de 1889; pelo sócio remido
Torquato. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. TOMO V Ano de 1889b Disponível
em http://memoria.bn.br/pdf/181897/per181897_1889_00004.pdf, p. 229, grifos nossos.
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37
TAPAJÓS, Torquato. Estudos sobre o Amazonas. Limites do Estado. Rio de Janeiro: Tipografia do
Jornal do Comércio, 1896. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/179466, p. 6.
38
TAPAJÓS, Torquato. Colonisação e immigração. Povoamento do estado do Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1897. Disponível em: https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/colonisacao_e_migracao,
1897, p. 6.
359
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39
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização. In: MAIO, M.C., and SANTOS, R.V., orgs. Raça, ciência e sociedade [online].
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; CCBB, 1996, p. 43, grifo da autora.
40
TAPAJÓS, Torquato. Colonisação e immigração. Povoamento do estado do Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1897. Disponível em: https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/colonisacao_e_migracao,
1897, p. 7.
41
TAPAJÓS, Torquato. Colonisação e immigração. Povoamento do estado do Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1897. Disponível em: https://issuu.com/bibliovirtualsec/docs/colonisacao_e_migracao,
p. 8.
360
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42
Ibid, 1897, p. 9.
43
Ibid, 1897, p. 11.
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44
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização. In: MAIO, M.C., and SANTOS, R.V., orgs. Raça, ciência e sociedade [online].
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; CCBB, 1996, pp. 52-3, grifo da autora.
45
Ibid, p. 13, grifos nossos.
46
Ibid, 1897, p. 15.
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Considerações finais
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incentivo para o povoamento de imigrantes para suprir as demandas dos ainda “vastos
desertos”. Muito possivelmente, se tivesse vivido mais tempo, teria se envolvido de forma
mais ativa com as questões sanitárias que absorveram os esforços de Oswaldo Cruz e
Carlos Chagas, tornando a Amazônia uma espécie de centro laboratorial da produção
científica brasileira.
Ademais, teria podido dialogar, quem sabe até participar, das várias comissões de
demarcações que se seguiram, em especial aquela da qual participou Euclides da Cunha,
entre 1904 e 1905, e que gerou a obra “À margem da História”, com visão bastante
diferente da oferecida por ele mesmo. Antes do Éden, para Euclides, na monotonia do
verde sem fim a floresta introduzia o inferno, mesmo “inferno verde” de Alberto Rangel
em contos de 1908. No seu esforço circunscrito ao final do século e início da República,
Torquato estava mais preocupado em dar um contorno civilizacional ao estado do
Amazonas pintando-o como a grande promessa do Brasil.
Retomando a questão lançada ao início deste artigo, sobre o intelectual, é
importante pensá-lo como aquele que, no momento de transição do Império para a
República, reflete sobre a sua terra e busca inscrevê-la no fluxo histórico orientando, de
alguma forma, o rumo dos acontecimentos, encaixando-a na nova arquitetura de poder
que se desenhava. Por um lado, este intelectual se inscreve numa tradição cultural e
amplia o significado da Amazônia, de outro, transforma-se ele mesmo num militante da
causa do Amazonas.
Nos cenários críticos, lembra Claudia Wasserman, “os intelectuais são capazes de
explicar a aceleração do tempo. Ideias que pareciam fora do lugar – ou do tempo – passam
a fazer sentido, bem como as propostas de transformação ou conservação da sociedade
também adquirem significado nos discursos intelectuais” (2015, p. 73). Tanto quanto
explicar a aceleração do tempo e organizar os eventos, Torquato buscou no passado, na
tradição, elementos para justificar uma determinada proposta de transformação ou mesmo
a conservação de uma situação. Neste caso, buscou fornecer alicerce para a ideia de uma
civilização, perfeitamente escorada na história e encaixada na República, do Amazonas.
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Referências bibliográficas
BRAGA, Pedro Henrique Maia. O clima do Amazonas: Uma interpretação dos discursos
de administradores provinciais (1850-1890). Dissertação apresentada ao PPGH de
História da UFPB, 2015.
DAOU, Ana Maria. A cidade, o teatro e o ‘Paiz das seringueiras’. Rio de Janeiro: rio´s
Books, 2014.
SIRINELLI, Jean François, RIOUX (orgs) Para uma história cultural. Lisboa:
Estampa, 1998.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al6.p.367.394
Abstract
This article discusses the social control of Apurinã people regards to the coercive power. The
objective is to analyze how Apurinã society was and still is structured to delimit the power of the
political and religious leaderships, thus avoiding the emergence of coercive power and of a society
divided into social classes. To achieve that objective, the analysis is mainly based on the work of
Pierre Clastres, Hélène Clastres and Marcel Gauchet. Pierre Clastres comes to the conclusion that
all power in indigenous societies emanates from the community. The leaderships would be
deprived of coercive power and thus indigenous societies would be “societies against State”, the
most finished form of coercive power that institutes the emergence of classes and alienated labor.
From historical and ethnographic data, this article dialogues with the thesis of Clastres seeking to
present the point of view of Apurinã visible in its history and in its mythical narratives. But unlike
Clastres, for whom coercive power seems to come more substantially from the warrior class, to
the Apurinã, it seems to come dangerously from religion. The main historical and ethnographic
sources used here are of two orders: extracts from letters and reports produced by missionaries of
the South American Missionary Society between the 1870s and 1880s; and field observations
resulting from my convivialite with the Apurinã of the Middle Purus.
1
Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Teologia
pela Faculdade EST (2008). Doutor em História pela UFRGS (2016). Pós-doutor em História Indígena pela
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq,
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. E-mail: [email protected]
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Introdução
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Missionary Society (SAMS) que manteve missionários e missionárias no Rio Purus entre
as décadas de 1870 e 1880 – e publicados na revista South American Missionary
Magazine (SAMM); 2) e observações de campos decorrentes de minha convivência com
os Apurinã do Médio Purus entre agosto de 2008 a agosto de 2010 como assessor de um
projeto de revitalização linguística e cultural entre os Apurinã mantido pelo Conselho de
Missão entre Povos Indígenas (COMIN) e observações feitas entre janeiro e fevereiro de
2013 durante uma pesquisa de campo.
A primeira coisa que podemos tomar como uma afirmação axiológica é que, antes
do contato intensivo, as lideranças apurinã (kiumãnety) eram desprovidas de poder
coercitivo e que todos os Apurinã se consideravam e se consideram eles mesmos como
chefes. Ou como afirmou o Coronel Antonio Rodrigues Pereira Labre, colonizador do
Purus que, em 1871, estabeleceu sua colônia no estuário do Rio Ituxi, atual cidade de
Lábrea: “não há distinção e nem privilégio algum, nem tampouco para o chefe e sua
família, que nivelada com as outras, trabalha e vive do mesmo modo, não tendo servos
ou criados” (LABRE, 1872: 16). Isso não quer dizer que os Apurinã desconheciam o
poder exercido coercitivamente; ao contrário, como tentarei argumentar, os chefes
apurinã não possuíam poder de mando justamente porque a sociedade apurinã se colocava
e se coloca contrária à existência de tal poder. Meu objetivo aqui é justamente abordar
como a sociedade apurinã estava e ainda está estruturada para delimitar o poder das
lideranças políticas. Para Pierre Clastres (2012: 211, 219, 231; 2014: 142) todo poder nas
sociedades indígenas emana da comunidade. As lideranças seriam desprovidas de poder
coercitivo e, dessa forma, as sociedades indígenas seriam “sociedades contra o Estado”,
a forma mais acabada de poder coercitivo que institui o aparecimento das classes e do
trabalho alienado. A argumentação de Clastres é que as sociedades indígenas não
estruturadas em classes teriam sido na realidade eficazes na sua “luta” para impedir que
relações sociais de exploração emergissem. Isso porque o poder não está na figura de um
chefe supremo. Ao contrário, “o chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si
mesma – verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe”
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(CLASTRES, 2012: 221). Assim, o igualitarismo seria uma prevenção contra o Estado
(SCOTT, 2009: 274ss).
No final do século XIX, Paul Ehrenreich (1891: 65) – antropólogo alemão que
descreveu os primeiros anos de contato – também observou esse igualitarismo entre os
Apurinã. Para esse autor, a figura do chefe era totalmente desprovida de poder de mando
e, quando perguntados por seu chefe, os Apurinã sempre respondiam que entre eles todos
eram chefes. É interessante notar que mais de um século depois, obtive várias vezes a
mesma explicação de diferentes interlocutores. Marco Antônio Lazarin (1981: 79) e
Juliana Schiel (2004: 85) também vão identificar a mesma problemática; o que é sinal de
uma estrutura de longa duração. Nesse sentido, Ehrenreich também vai dizer que os
Apurinã chamavam seu chefe de enẽkakary. Infelizmente não consegui verificar o uso
desta palavra na atualidade. Ao invés dela, obtive a palavra kiumãny (liderança) que é
também utilizada para designar os sábios ancestrais. Há que se dizer, no entanto, que essa
palavra somente surgiu depois de um longo processo de consulta e que, portanto, ela pode
estar muito longe daquilo que a sociedade não-indígena entende como chefe. Na
atualidade, ao falar da figura do chefe, os Apurinã utilizam palavras provenientes do
contexto regional como cacique e tuxaua. O próprio missionário Jacob Evert Resyek
Polak, que atuou entre 1873 e 1881 com os Apurinã, não registrou em sua gramática-
dicionário (1894) nenhum termo que correspondesse a uma figura de chefe ou liderança.
Em novembro de 1875, o missionário Robert Stewart Clough afirma que “cada
comunidade é governada por um tuxaua ou chefe [tuchaua or chief], mas outro principal
[head man] possui uma autoridade praticamente igual aquela de seu superior nominal”
(SAMM, 1876: 112). A questão parece ser assim bastante evidente: não existia uma tal
figura separada da comunidade que merecesse receber um atributo que a distinguisse em
graus dos demais. A sociedade apurinã não estava dividida entre aqueles que mandavam
e aqueles que obedeciam. Portanto, entre os Apurinã, em vez de chefe, é melhor falar em
liderança. E a figura da liderança somente é reconhecida como tal pela sua capacidade de
servir à coletividade.
O serviço que as lideranças prestam à comunidade, segundo Clastres (2012: 48,
55), depende das qualidades exigidas pela comunidade que são: ser bom orador para
representar a comunidade, ser generoso trabalhando mais do que os outros e
redistribuindo os bens e ser um apaziguador de conflitos. Em troca recebe da comunidade
o privilégio da poliginia. Em relação aos Apurinã, Clastres (2012: 55) vai afirmar que o
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chefe será aquele que se destaca como um dos melhores caçadores. No entanto, essa
parece ser uma informação superficial e equivocada, ou seja, sem observação etnográfica.
O fato de ser bom caçador, não faz de ninguém uma liderança política; seus
atributos como bom caçador são reconhecidos somente no momento da caça. Para ser
liderança política, os atributos exigidos são outros. No caso dos Apurinã, a liderança
parece ser aquela que melhor lida com as fronteiras culturais. Portanto, a liderança apurinã
é alguém que se destaca na capacidade diplomática, geralmente evidenciada pelo domínio
da língua do estrangeiro. No contexto pós-contato, a liderança geralmente era alguém que
falava bem o português. Talvez por isso tenhamos muitos relatos de que os Apurinã
entregavam sistematicamente suas crianças para os não-indígenas, para os ĩparãnyry2.
Parece que a “doação de crianças” instituía um rito de passagem que visava o domínio do
mundo do karywa. Pelo menos essa tem sido minha argumentação (LINK, 2016: 103-
123). Disso podemos inferir que essa situação também seria verídica para o período
anterior ao contato com os ĩparãnyry, o que é evidenciado, sobretudo, nos relatos que
afirmavam a existência de alguns Apurinã vivendo entre outros grupos indígenas e
desempenhando um papel de liderança justamente por dominar uma habilidade linguística
necessária (LINK, 2016: 184, 240). Com essa estratégia, portanto, os Apurinã parecem
dar continuidade ao processo de formar lideranças; e, quanto mais lideranças – mais
fragmentação do poder político –, menos chance de serem coagidos e explorados. A
educação para que todos sejam chefes fragmenta e impede que um grupo domine
exclusivamente o campo da atuação política.
Assim, a capacidade diplomática parece ser um ponto central para que um Apurinã
possa ser reconhecido como uma liderança. Esse atributo está ligado, obviamente com a
capacidade oratória. E esse talento oratório é exigido tanto para representar a comunidade
para fora do grupo quanto também para representar os anseios internos da própria
comunidade. Mas quando o discurso da liderança dirigir-se à comunidade, geralmente
esta não presta a menor atenção. Com essa indiferença, a comunidade parece lembrar seu
chefe que ele não detém nenhum poder de mando (CLASTRES, 2012: 50s). De
2
Os Apurinã possuem dois termos para se referirem aos não-indígenas: karywa e ĩparãnyry. O primeiro é
um empréstimo da Língua Geral Amazônica (no português atual cariú) e é compartilhado entre vários
povos indígenas da região amazônica. Provavelmente, os primeiros exploradores falantes da língua geral,
ao entrarem em contato com os indígenas, utilizavam esse termo para se referirem a eles mesmos e o termo
foi sendo transmitido de povo para povo. O segundo etnônimo, por sua vez, provém da própria língua
apurinã e denota a conjuntura do momento histórico a partir do qual os Apurinã perceberam a chegada
desses forasteiros que adentravam seu território e pode ser traduzido como “aqueles que chegam com a
época das chuvas”.
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semelhante forma, atualmente, da liderança apurinã, exige-se que pronuncie discursos dos
quais a comunidade geralmente permanece indiferente. É também obrigação das
lideranças organizarem festas e reuniões políticas das quais uma grande parte da
comunidade não contribui ou nem mesmo participa. As lideranças, notadamente,
reclamam dessa situação, mas a comunidade parece impassível frente a essas
admoestações. As lideranças são assim constantemente lembradas que elas não detêm
nenhum poder de fato. Mesmo assim, as festas organizadas pelas lideranças têm como
um de seus fundamentos a manutenção do prestígio e ou a tentativa de construção de
hierarquias sociais. Elas são organizadas geralmente para celebrar a morte de lideranças.
Ao celebrar e reviver os feitos, os vivos estão agenciando o poder simbólico do morto em
benefício próprio. É a consolidação do prestígio familiar que está em jogo. E a realização
de festas traduz-se, obviamente, em poder político. Dessa forma, embora as hierarquias
sociais possam ser menos presentes entre os Apurinã e entre os demais Aruak do Sul da
Amazônia do que em relação aos seus vizinhos do Norte (HILL; SANTOS-GRANERO,
2002: 19), certamente ela também é uma característica observável.
Embora cada Apurinã seja formado para exercer a liderança, essa tarefa de fato
parece recair preferencialmente sobre alguns indivíduos. Geralmente é chefe quem tem
uma rede familiar maior. Se a capacidade da rede familiar tende a delimitar o
reconhecimento de uma liderança, isso implica que geração após geração as lideranças
tendem a provir das mesmas famílias, pois essas são as famílias maiores. Assim como
entre os demais Aruak (SANTOS-GRANERO, 2002: 44s), a linhagem parece, pois,
representar um importante componente para que um Apurinã seja reconhecido como
liderança. A rede familiar e a linhagem são, assim, o suporte das lideranças. E são suporte,
sobretudo, porque ajudam as lideranças no serviço à comunidade.
Portanto, uma rede familiar ampliada auxilia a liderança na tarefa de servir à
comunidade. Tradicionalmente, como também descreveu Clastres (2012: 60), numa
comunidade indígena, a liderança é quem trabalha mais arduamente. Geralmente é ela
quem tem o maior roçado, o qual fica a disposição da comunidade, pois a liderança é
quem tem a obrigação da generosidade. O acúmulo de bens desproporcionais não é algo
aceito pela comunidade. Dessa forma, a obrigação de ser generoso impede que a liderança
consiga obter vantagens de seu posto acumulando bens e distinguindo-se dos demais.
Uma liderança que tenta transformar seu poder em vantagem é simplesmente abandonada
pela comunidade (CLASTRES, 2012: 171). Assim, o prestígio de um chefe – ou seu
capital simbólico (BOURDIEU, 1996: 170) – é medido pela sua capacidade de
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generosidade, sua capacidade de doação para e pela comunidade. Quanto mais uma
liderança doa, mais prestígio ela tem. No período pós-contato, a capacidade de chefia
passou a ser medida também pelo acesso que as lideranças propiciavam aos bens
manufaturados. Por exemplo, em 1881 o missionário William Thwaites Duke, escrevendo
desde o Rio Mamoriá quando estava em uma viagem ao Rio Seruini, faz a seguinte
observação:
No meu retorno desta viagem [ao Seruini], eu espero visitar novamente o
Sepatini, porque eu ouvi do Senhor Barbosa, que vive perto daqui [da boca do
Rio Mamoriá] e que nos acompanhou em nossa visita aos índios, que um chefe
de um ponto mais alto do Sepatini esteve em sua casa e reclamou que o
pequeno vapor não tenha ido até a sua aldeia. Ele disse: “os outros dois chefes
são bons [chefes que Duke teria visitado]; mas eu não sou bom, pois você não
veio me ver com o pequeno vapor”. Ele também disse que lá ele tem um grande
número de crianças. (SAMM, 1881: 187, tradução própria)
Se o lamento da liderança foi registrado corretamente pelo missionário, podemos
então concluir que o chefe ansiava para que os missionários fossem até sua aldeia tanto
quanto os missionários ansiavam para ir. O relato deixa entrever que essa liderança estaria
preocupada com o fato dos missionários terem visitado outras aldeias nas imediações e
negligenciado a sua. Situação que o colocava em uma posição de menor prestígio perante
os chefes das outras aldeias e perante a sua própria aldeia. Podemos inferir que sua
comunidade o admoestava para que ele também conseguisse que os ĩparãnyry, portadores
de bens desejáveis, viessem até eles. Talvez por isso, esse chefe tenha empreendido uma
viagem até o Purus para tentar contatar os missionários para que também fossem visitá-
los. E, como alguém que sabe o que os missionários estão procurando, acrescenta que a
aldeia estaria cheia de crianças.
Em troca dos seus serviços prestados, as comunidades indígenas parecem admitir
que as lideranças tomem mais de uma esposa. Como as lideranças precisam ter uma base
familiar ampliada para servir à comunidade, essa situação é amplamente aceita. Daí a
observação etnográfica recorrente de que a poliginia seria prerrogativa dos chefes em
muitas comunidades. Entre os Apurinã, a poliginia também parece ter sido privilégio das
lideranças. Em mais de uma ocasião, os missionários observaram que as lideranças
tinham mais de uma esposa (SAMM, 1876: 112, 116).
Até aqui descrevi a natureza do poder político. Outra questão que chama a atenção
nas fontes históricas é o excesso de violência interna entre os Apurinã. Como também
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observou Juliana Schiel (SCHIEL, 2004: 266s), a violência entre os Apurinã parece ter
uma incidência significativa e é narrada como uma condição decorrente da “terra do
meio”3. Sem dúvida a participação na sociedade nacional levou os Apurinã a
potencializarem o conflito interno. Assim, o contato com a sociedade nacional acentuou
conflitos e desestruturou a sociedade apurinã; mas, como argumento, essa situação de
conflito também é decorrente da própria cultura apurinã. A chegada do ĩparãnyry trouxe
a divisão social em termos de exploração e muitos Apurinã, não aceitando essa situação,
se insurgiram. Daí a escalada crescente de violência interna descrita pelos missionários,
exploradores e colonizadores.
No entanto, essa situação de violência não pode ser creditada somente ao contexto
pós-contato. Ela certamente tem uma causa mais profunda vinculada à estrutura cultural
apurinã. A análise das fontes mais antigas já aponta a incidência de conflitos internos,
que em decorrência do contexto de colonização fora descrito por vezes como propensão
para a guerra. Meu argumento aqui é que, embora os Apurinã pudessem ser descritos
como guerreiros, os conflitos esporádicos e localizados não corroboravam com a
interpretação de um estado de beligerância (LINK, 2016: 203, 205, 218-220). No entanto,
se nunca fora registrado um estado efetivo de guerra – uma “sociedade de guerreiros”
como diria Clastres (2014: 279) – que opunha o conjunto da sociedade Apurinã aos
ĩparãnyry ou a outros grupos indígenas, o mesmo não se pode dizer dos conflitos internos.
Na realidade, como a análise das fontes sugere, os conflitos registrados sempre foram
internos, ou seja, envolviam facções internas e ou estrangeiros que estavam sendo
“consanguinizados”. Os Apurinã parecem viver, então, um estado de guerra em
potencial. Clastres (2014: 279) chama isso de “estado de guerra permanente”. Os estudos
antropológicos mais recentes, vão vincular esses conflitos à instituição da vingança que
parece fazer parte da estrutura social apurinã e que seria, em última instância, responsável
pela escalada de violência no contexto pós-contato. Na cosmologia apurinã, a vingança,
assim, é descrita como um legado do começo do mundo quando “os filhos de Yakonero
[Yakuneru] vingam a morte de sua mãe, matando seus ‘avós’” (SCHIEL, 2004: 227). Os
filhos de Yakuneru seriam Erutã, Uxurũku, Ekipaã e Tsura e se vingariam de
Katsamãũteru pela morte de sua mãe (SCHIEL, 2004: 227). Tsura é o protagonista maior
e é quem sempre é lembrado como aquele que instituiu a obrigatoriedade da vingança.
3
Cosmologicamente, os Apurinã consideram-se como um povo que vive na terra do meio entre duas
terras de perfeição (Kairiku e Iputuxity). Eles teriam empreendido uma migração originária e
permaneceram na terra do meio (LINK, 2016: 257).
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de ethos e habitus devido à sua conotação religiosa. Faço uso desse conceito a partir do
trabalho de Carl Gustav Jung (2002). Para Jung, arquétipo é uma categoria que explicaria
as projeções coletivas da sociedade; por isso ele o vincula ao inconsciente coletivo. Nas
diferentes áreas do conhecimento, esse conceito seria expresso como: motivo, temas,
representação coletiva, categorias da imaginação, pensamentos elementares ou
primordiais (JUNG, 2002: 53). Podendo ser vinculado às forças sugestivas e emocionais
das ideias religiosas, Jung (2002: 67s, 74) aproxima esse termo do conceito empírico de
anima (alma), como aquilo que anima e põe em movimento o ser social. Estruturados nas
projeções sociais, dentre as quais se destacam as dos pares opostos presentes nos motivos
mitológicos (JUNG, 2002: 71s, 81), o arquétipo é aquela forma por trás das ideias que
institui comportamentos e ações. São as tendências estruturantes presentes no
inconsciente coletivo. Os arquétipos estariam, assim, estruturados nas projeções
mitológicas e religiosas que a sociedade compartilha e vive no cotidiano ou, como diz
Jung (2002: 132), “a sugestão da comunidade produz a identificação com o deus”. No
caso em questão, o herói mítico. Dessa forma, o compartilhamento coletivo das histórias
míticas introjetaria nos indivíduos o ideal social presente nos arquétipos. Portanto, como
uma espécie de sinônimo para ethos e habitus, entendo arquétipo como uma estrutura de
projeção de opostos estruturada e estruturante (BOURDIEU, 1992: 191) que põe a
sociedade em movimento e assim reproduz a estrutura social.
Como arquétipo da vingança, do desafiador, Tsura institui uma estrutura da
vingança. As relações entre aldeias diferentes e, às vezes dentro da mesma aldeia, são
permeadas por rixas e vinganças que são atualizações míticas da vingança primordial a
qual impede a divisão do corpo social entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem.
Na prática, os Apurinã vivem cotidianamente essa tradição iniciada arquetipicamente por
Tsura ou, dito de outra forma, reinterpretam o seu cotidiano a partir da figura desse herói
mítico criador. A vingança aqui é pura retribuição. O sistema de reciprocidade que
instaura obrigações mútuas de dar, receber e retribuir (MAUSS, 2015 [1925]: 241ss)
também pode ser observado entre os Apurinã. Nesse sentido, os missionários igualmente
entraram nessa mesma lógica, embora não a entendessem ou fingissem não a entender.
Em dezembro de 1881, Duke vai escrever:
A propósito, eu devo mencionar que os índios de uma grande maloca nas
margens do Seruini se tornaram tão enfurecidos porque nós não demos a eles
presentes sem eles darem alguma coisa em retorno, que quando nós pedimos
que eles soltassem as amarras do Pioneiro [nome da lancha a vapor], em vez
de fazer isso eles nos puseram à deriva, e então nos disseram adeus com gritos
e lamentos nada agradáveis de ouvir. (SAMM, 1882: 87s)
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Mas diferente de Marcel Mauss (2015 [1925]: 200), para quem a guerra parece
ser a quebra da reciprocidade, entre os Apurinã, a potencialidade da guerra é a
continuação de uma relação reciprocitária. Só que, “enquanto na troca de bens aquele que
dá quer receber, na vingança, o desejo se inverte, e o matador não quer ser pago, nem está
obrigado a receber o pagamento” (FAUSTO, 1999: 263s). No entanto, o que estou
chamando de estrutura da vingança não se resume na morte do “inimigo”. Entre a simples
injúria e a pena capital, há um leque de possibilidades. Assim, a retribuição é aqui ato de
vingança que é mais bem evidenciada na estruturação de ritos e celebrações nos quais os
conflitos são mitigados; às vezes, com violência. Nesses rituais, a “vingança” é uma
forma de fabricação de parentesco, de “predação familiarizante” (FAUSTO, 1999: 265ss;
VILAÇA, 2006: 187s, 192-205). Michael Heckenberger (2002: 115) vai afirmar que entre
os Aruak a predação não parece ser um distintivo cultural. E isso seria inclusive a
justificativa que apontaria os Apurinã como diferentes dos demais Aruak. No entanto,
logo a seguir Heckenberger descreve uma série de rituais para a redução de conflitos,
incluindo antagonismo sexual, eventos esportivos e conflitos ritualizados. Entre os
Apurinã, os missionários também registraram rituais semelhantes, como lutas e conflitos
encenados ou ritualizados (SAMM, 1876: 87-89); e isso é predação familiarizante. O
modo de ser Apurinã parece, dessa forma, semelhante ao modo de ser Wari’ descrito por
Aparecida Vilaça. Como para os Wari’, para os Apurinã, “o processo de diferenciação
interna, de ‘estrangeirização’, é parte do processo de ‘inimização’” (VILAÇA, 2006: 61),
pois o parente é aquele que se deixa submeter às diversas situações, mesmo de violência
ou vexação, e mesmo assim demonstra confiança e entrega aos cuidados do anfitrião. Mas
ao contrário dos Wari’, para quem os inimigos seriam todos os não-Wari’ (VILAÇA,
2006: 56), para os Apurinã, os “inimigos ideais” (FAUSTO, 2001), se essa pode ser uma
expressão utilizável, são outros Apurinã. Isso também é o que nos indicam as fontes
históricas. William Chandless (1866: 96)4, por exemplo, afirmou que os Apurinã
praticariam a guerra em especial contra sua própria gente. Assim, enquanto aqueles tidos
como iguais sofrem pressão interna para evitar a diferenciação, os ĩparãnyry, como uma
categoria de outsiders, parecem representar aqueles que estão em posição de serem
apuranizados. Esse parece ser o caso dos Kuwarinyry que, como argumentei (LINK,
2016: 199s), embora sendo um grupo apurinã, sofre pressão social dos demais grupos. No
4
Geógrafo inglês que realizou viagens exploratória no Amazonas na década de 1860, mapeando os rios,
descrevendo a geografia, a fauna, a flora e os habitantes. Em 1866, fez uma viagem exploratória ao Rio
Purus e ao Rio Acre.
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possa existir o guerreiro deve existir a guerra e, como vimos, esta aparece mais como
possibilidade do que como evento histórico. Talvez, quando os Apurinã se refiram ao fato
de que todos são chefes, eles também tenham a intenção de dizer que todos são guerreiros,
que todos são contestadores. Dito de outro modo, que eles não se submetem ao controle
de outrem. Dessa forma, o guerreiro apurinã é o vingador por excelência, ou seja, é aquele
que administra o antídoto – a vingança – contra a divisão do corpo social entre dominantes
e dominados. O guerreiro é, dessa forma, um instrumento pelo qual a sociedade apurinã
parece evitar o surgimento de um poder centralizador. Quiçá por causa disso os Apurinã
sejam descritos insistentemente como guerreiros, pois as narrativas de contato parecem
estar fazendo referência, em realidade, ao fato de que os Apurinã não se submetem ao
mando e à exploração.
Clastres vai identificar na lógica guerreira o potencial para impor-se sobre a
comunidade indivisa. “A guerra traz dentro dela, portanto, o perigo da divisão do corpo
social homogêneo da sociedade primitiva” (CLASTRES, 2014: 280). A confraria dos
guerreiros teria, dessa forma, o potencial para usurpar o poder da comunidade. No
entanto, como fonte de todo prestígio, glória e poder, a comunidade indígena seria ela
própria também o antídoto para que os guerreiros não instituam a divisão entre
dominantes e dominados. Esse antídoto, por um lado, está na própria lógica do prestígio
concedido que é individual e impediria “ao conjunto dos guerreiros aparecer como
coletividade homogênea” em disputa com a comunidade (CLASTRES, 2014: 281). Por
outro lado, como a vontade da comunidade é de que a liderança política seja um
apaziguador, pois ela não quer viver em constante conflito, a natureza do prestígio
guerreiro não parece provir então da mesma fonte do prestígio da liderança política. A
necessidade da liderança parece surgir justamente porque a comunidade necessita de um
apaziguador. Só existe a liderança política porque a comunidade tem a necessidade de
manter-se una em meio à realidade conflituosa. Então, a sociedade apurinã parece ser
contra a guerra. Por causa disso, um guerreiro tem dificuldade de se estabelecer como
liderança política, pois seu prestígio advém de fonte diferente. O prestígio pode ser obtido
também agenciando a violência em tempos de guerra e conflito, mas é um poder efêmero,
pois, passado o tempo do conflito, o agenciador perde sua fonte legitimatória. Para o
guerreiro, portanto, é necessário viver em constante guerra (CLASTRES, 2014: 278,
281). Assim, uma liderança política pode desempenhar o papel de guerreiro e um
guerreiro pode chegar a ser uma liderança política, mas a função da liderança política não
está na mesma ordem do papel desempenhado pelo guerreiro. Para um guerreiro se tornar
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uma liderança política, ele deve, em primeiro lugar, renunciar à função básica que lhe
concede prestígio que é o conflito, a guerra. Desse modo, ele deve se converter em um
pacifista, pois, como disse, a função básica da liderança política é ser um mediador dos
interesses da comunidade. Ele deve ser o ponto intermediário que mantêm unido todo o
tecido social apaziguando os conflitos. No entanto, como o resto da comunidade se
comporta como guerreiros em potencial, a posição do chefe está sempre ameaçada e ele,
assim como os guerreiros, não consegue transformar seu “poder” em poder de mando.
Entre os Apurinã, existe um ritual que tipifica sobremaneira a função da liderança
política e a função dos guerreiros, pois os colocam lado a lado em oposição a outro grupo
de guerreiros. Toda festa tradicional apurinã inicia formalmente com uma “encenação”
conhecida localmente como “cortar sanguiré” (SCHIEL, 2004: 81). Trata-se de um
diálogo entre duas lideranças acompanhadas de seus guerreiros em armas. A expressão
regional vem da própria língua apurinã, para a qual sãkyry significa o ato de falar, de
conversar. Mas nesse ritual não se trata de uma conversa cordial. Trata-se de um momento
tenso no qual a violência encenada pode se tornar realidade a qualquer momento. O grupo
de guerreiros visitantes aproxima-se como se viessem para a guerra. Os anfitriões, então,
vão ao encontro deles. Esse encontro ocorre fora da aldeia. Armas apontadas, ânimos
exaltados, os guerreiros prontos para iniciarem a batalha. Neste momento, intervém a
figura da liderança política. Situado naquele instante como um guerreiro, ele também
troca insultos com seus adversários e está pronto para a batalha, mas, como representante
político de sua comunidade, eles iniciam um diálogo no qual vão se reconhecendo como
parentes. A tensão dá lugar então a um reconhecimento mútuo. As lideranças
apaziguaram o conflito e, em seu lugar, reataram alianças (SCHIEL, 1999: 110). Os
convidados, então, baixam as armas e se submetem aos “cuidados dos anfitriões”. Eles
são alimentados e festejam enquanto a festa durar. Eles se submetem em uma clara
demonstração de confiança. É também nesse sentido que Aparecida Vilaça (2006: 107-
139) demonstra como as festas Wari’ são pensadas e performadas como uma forma de
perpetuação ou constante fabricação do Outro (do estrangeiro) em um afim. As festas têm
como objetivo a predação familiarizante do outro, nas quais “os convidados se constituem
em presas dos anfitriões” (VILAÇA, 2006: 129). Assim os Wari’ evitam que seus aliados
se tornem inimigos. Ao se submeterem, os convidados reafirmam a confiança naqueles
que os recebem, pois aqueles poderiam ser mortos a qualquer instante. Ao mesmo tempo,
aqueles que recebem também reconhecem que os convidados não são inimigos, pois se
submetem à vexação e à violência predatória.
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Controlando religiosos
Como abordei acima, para Clastres, o lócus mais propenso para que a comunidade
indígena perda sua “luta” contra o aparecimento da divisão social que institui a exploração
de um pequeno grupo sobre o grosso do tecido social é a instituição da guerra. Em sua
teoria, um grupo de guerreiros em busca de prestígio poderia conduzir a comunidade para
uma situação de “guerra efetiva permanente”, o que, em um segundo passo, poderia levar
à tomada do poder, ou seja, à instituição dos guerreiros como lideranças políticas
instaurando a divisão entre dominantes e dominados (CLASTRES, 2014: 279s). No
entanto, se minhas interpretações estiverem certas, para os Apurinã, a guerra – ou no caso
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a potencialidade guerreira – não parece ser a fonte originária de suas preocupações. Aliás,
como defendi acima, os Apurinã parecem bem-sucedidos no controle social tanto de seus
guerreiros quanto de suas lideranças políticas, de modo que eles não parecem apresentar
ameaças ao sistema igualitário. Tanto guerreiros quanto lideranças políticas são, de fato,
desprovidos de poder efetivo. Só conseguem fazer em nome da comunidade aquilo que a
comunidade quer que façam. Mas existe outro campo no qual a sociedade apurinã parece
depositar toda sua preocupação e cuidado, o campo religioso.
Neste ponto, além de Clastres, minha pesquisa é devedora da análise de Hélène
Clastres (1978: 55) quando ela afirma a descontinuidade entre o profetismo tupi e o
exercício do poder político. Para ela, a confluência dos fenômenos religioso e político em
uma mesma liderança é exceção proveniente das vicissitudes do pós-contato que
enfraqueceram o controle social sobre as lideranças e possibilitou o surgimento do poder
coercitivo. Nesse mesmo sentido, minha abordagem também é devedora do trabalho de
Marcel Gauchet “A dívida do sentido e as raízes do Estado”. Segundo Gauchet (1980:
51s), a ruptura entre a sociedade igualitária e a sociedade de classes – o aparecimento do
Estado – seria proveniente da religião. Depositando o sentido de sua existência fora de si
mesma (na religião), a sociedade operaria a primeira ruptura necessária para a segunda
ruptura quando as pessoas que representariam as divindades passaram a exercer poder
sobre os demais em nome dessas divindades. O argumento do autor é que para existir
enquanto sociedade – para se pensar a si mesma –, a sociedade deve projetar para fora
dela mesma o sentido de sua existência. Esse seria o “imperativo radical” que se
transforma num paradoxo social, pois, se as pessoas aceitam a heteronomia no fenômeno
religioso, também poderiam passar a aceitar no fenômeno político (GAUCHET, 1980:
66-76). A questão está, então, em como as sociedades controlam suas forças religiosas
para impedir que apareça a exploração do ser humano sobre o ser humano. Assim o autor
conclui: “a história humana não é outra coisa mais do que uma luta longamente vitoriosa
contra a alienação política, quer dizer, contra a separação de uma instância de poder,
depois a de uma derrota que não terá deixado de se aprofundar (...)” (GAUCHET, 1980:
87).
Assim como todo Apurinã é em potência uma liderança e um guerreiro, todo
Apurinã também é em potência um mẽety (xamã). No entanto, ao contrário da liderança
e ao contrário dos guerreiros que podem ser encontrados em maior número, poucos
chegam a serem reconhecidos como mẽety. A liderança política adquire seu prestígio por
ser um bom orador, por ser generoso e por ser um apaziguador. O guerreiro consegue seu
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prestigio através das façanhas obtidas na guerra – tanto na guerra efetiva contra outros
grupos quanto na demonstração de sua potencialidade guerreira dentro do grupo
(demonstrações públicas, jogos, rituais, brigas). Já no campo religioso, o mẽety recebe
seu prestígio decorrente de sua capacidade xamânica que é uma qualidade transcendental.
Todos os três adquirem prestígio, em última instância, da capacidade de agenciar a
vontade da comunidade. No entanto, enquanto a liderança política e os guerreiros estão
no nível da imanência, o xamã opera no nível da transcendência. O mẽety é quem, na
comunidade apurinã, vai controlar o sagrado que causa ao mesmo tempo atração e terror;
o “numinoso” e o “mistério tremendo” (OTTO, 2007: 37s, 44s). A comunidade tolera a
figura do xamã porque ele pode protegê-la dessas forças transcendentais expressas pela
predação dos espíritos da natureza e pelos ataques dos xamãs de outras comunidades.
Assim, a qualidade xamânica parece ser desejada, mas também temida pelos demais, pois
ela é controlável apenas por especialistas. Desse modo, todo Apurinã em sã consciência
teme afrontar um mẽety.
Mas o que acontece se o xamã utiliza seu poder xamânico para conseguir poder
político? O poder religioso pode se transformar em poder político e assim dividir a
comunidade entre dominados e dominadores? Minha hipótese é que, das três formas de
lideranças – política, guerreira e religiosa –, a liderança religiosa é quem teria maiores
chances de transformar seu prestígio em poder coercitivo. Isso porque a sociedade apurinã
parece temer sobremaneira o poder religioso e, como veremos, se esmera para controlá-
lo e subordiná-lo. O que procuro responder a seguir é como a comunidade apurinã impede
que seus mẽety se transformem em déspotas exploradores do trabalho alheio?
Os Apurinã concebem um mundo no qual não há distinção de cultura entre seres
humanos e animais. Para acessar e entrar em contato com os outros seres, é, pois,
necessário alterar o corpo, ou seja, ser capaz de assumir o ponto de vista do Outro. Seria
apenas uma questão de moldar o corpo. Para a cosmovisão apurinã, portanto, é possível
assumir o ponto de vista dos animais e, poder-se-ia dizer também, de outros povos,
inclusive do karywa. Os Apurinã demonstram assim estarem aptos para lidarem com os
diferentes tipos de identidades que podem acionar no momento em que necessitam. No
entanto, quando se trata dos outros seres ou das terras míticas (Kairiku e do Iputuxity), é
o mẽety quem transita, por excelência, entre os “mundos”. Embora todos os Apurinã
estejam sujeitos às mesmas contingências, no que tange ao transcendente, o pajé difere
dos demais em grau, pois ele recebe uma preparação especial que o qualifica para o
exercício da pajelança. É ele quem detém as habilidades e o conhecimento necessários
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para lidar com os “flechadores” (kipyatitirã) ou os chefes dos bichos (hãwity) e com as
almas (kumuru), ou seja, com os encantes, com as outras perspectivas (VIVEIROS DE
CASTRO, 2011: 357). Portanto, é ele quem vai ser procurado pela comunidade em caso
de enfermidades. Sobre a atuação dos xamãs, o missionário Clough escreve em novembro
de 1875:
Teruã não tem pajé ou curandeiro, mas um que reside perto da boca do Pauini
possui considerável influência sobre as hordas vizinhas. Meu anfitrião [Sr.
Pinheiros] contou-me que há poucos meses atrás um aprendiz dessa faculdade
foi convocado para curar um aldeão doente que estava confinado à sua rede
por muitas semanas. Sentado no chão com seus artigos de fetiche
[provavelmente um chocalho emplumado], ele fez investigações necessárias,
cheirou todo seu paciente e depois se retirou sozinho para a floresta. No dia
seguinte ele retornou e, na presença de um grupo de homens pintados e
emplumados organizados em um círculo, começou as operações. Novamente
cheirando como antes, farejando com toda sua força, ele descansou um tempo
com a cabeça sobre os joelhos como se estivesse em profunda contemplação,
de vez em quando levantando seu fetiche e passando ele em seus ouvidos e
olhos, então repentinamente saltanto de pé ele beliscou a pele do sofredor e
virorozamente sugou com a boca vários pontos. Para o assombro dos
espectadores ele cuspiu vários grandes ossos de peixe declaradamente
extraídos da pessoa que ele declarou ter sido enfeitiçada e, depois de dar
instruções quanto ao tipo de alimento a ser administrado, retirou-se; o homem
estava bem no dia seguinte e tem permanecido assim desde então. (SAMM,
1876: 115, tradução própria)
Nesse relato de Clough, temos a estrutura de funcionamento da cura xamânica.
Após inspecionar seu paciente, o mẽety retira-se para a floresta. Para aqueles que ficaram,
ele foi encontrar-se com os encantes e descobrir a causa e o tratamento da doença. No
outro dia retorna e, com o auxílio de outros homens da aldeia, realiza a cura sugando de
dentro da vítima os ẽtyty (feitiços) que lhe causavam a moléstia. O missionário não diz,
mas os ẽtyty só poderiam vir dos encantes ou de outro pajé. Como um ser misterioso –
ele próprio uma espécie de encante –, o xamã se retira. O pajé é dessa forma tanto
desejado pela comunidade pelo bem que pode trazer quanto temido pelo mal que pode
realizar. Mas o xamã não é tão diferente dos demais. Na verdade, antes de ser mẽety ele
era como qualquer outro apurinã. Ele apenas adquiriu um conhecimento que o distancia
da comunidade e o aproxima dos encantes. Assim, embora todos possam ser xamãs em
potencial, para se transformar em um pajé, muitos são os obstáculos que nem todos estão
dispostos a enfrentar. Para isso, o candidato a pajé tem que passar por um intenso processo
de jejum, retiros espirituais e abstinência sexual. Na verdade, o mẽety apurinã é um asceta.
Várias foram as pessoas que me informaram sobre o processo necessário para que
um Apurinã seja reconhecido como mẽety e todas repetiram uma fórmula semelhante a
esta que Manuel Marcos de Souza Apurinã (Mathiũ) me passou em 24 de maio de 2009.
Para se tornar xamã, o candidato a mẽety recebe treinamento de outro xamã e é submetido
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a um rigoroso regime alimentar no qual pode comer apenas certos tipos de alimentos em
pequena quantidade. Sua dieta é muito reduzida e completada pela ingestão de katsupary
(folha de coca) e de certos tipos de folhas amargas (Mathiũ disse que teria que beber suco
da folha de katsinhary) que, junto com o consumo abundante de awyry (rapé), o auxilia a
transcender. Para completar seu ciclo de formação, tem que passar uma temporada isolado
na mata (ĩtupa) sob rígidas restrições alimentares. Essa temporada pode durar meses.
Nesse retiro, é esperado que receba a visita dos encantados, como o chefe da onça (hãkyty
hãwity) e o chefe da sucuri (wainamary hãwity). Ao receber a visita dos encantados, o
xamã não os vê como animais, mas como gente, o que significa que ele participa da
perspectiva desses seres míticos. A partir desse momento, ele já transita entre os mundos.
Mẽety e encantados confraternizam awyry e conhecimentos. Dos chefes dos encantados,
o mẽety recebe os ẽtyty (pedras enfeitiçadas) que são a fonte do poder dos pajés. Se ele
for corajoso para enfrentar os encantados, ele recebe os ẽtyty como prêmio. Para testar
seus novos poderes, o mẽety joga seus ẽtyty nas árvores as quais adoecem e morrem
(LINK, 2012: 271s).
O processo de formação do mẽety apurinã não termina com esse retiro. Ele é
apenas o ponto de partida de uma vida de “ascese”. Notadamente, o tempo de retiro pode
variar, mas o reconhecimento de suas habilidades está intrinsecamente relacionado com
seu estilo de vida. Por isso, muitos Apurinã afirmam que hoje os mẽety são fraquinhos,
pois ninguém quer se submeter a uma vida de sacrifícios. O equivalente é dizer que
antigamente eles eram fortes. Embora o xamã apurinã possa casar, a vida de ascese e
sacrifícios também implica em uma família pequena. Isso é justificado porque se diz que
o pajé tem outra família no mundo dos animais e é por isso que ele passa grande parte do
seu tempo lá. Assim, se aquele que se diz mẽety possui uma família numerosa, ele não é
reconhecido pelos demais como tal. Isso porque sua vida pública o desqualifica como
xamã. Inversamente, se uma pessoa não se considera mẽety, mas tem uma vida que o
identifica como um asceta, ele passa a ser reconhecido como tal. Desse modo, geralmente
os xamãs apurinã são pessoas mais idosas, viúvos e viúvas, ou uma pessoa menos
sociável. Assim, como vemos, o controle social inibe que o pajé tenha família numerosa;
condição fundamental para que um Apurinã exerça a liderança política. Portanto, fica
evidente que, se o mẽety apurinã lida com poderes sobrenaturais, ele também não possui
muitos aliados que poderiam sustentá-lo numa eventual tentativa de tomada do poder
político. É, consequentemente, desta forma que a sociedade apurinã delimita o poder de
atuação do xamã: legitimando e controlando a fonte de poder e conhecimento xamânica.
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Ao trabalhar com grupos Aruak, Silvia Vidal (2002: 258) especula que os
ancestrais dos Baré e dos Warekena teriam sido afiliados a diferentes confederações
multiétnicas flexíveis e essas confederações teriam sido lideradas por xamãs-guerreiros
carismáticos através do que ela chama de modelo de liderança “teocrático genealógico”.
Na segunda metade do século XVIII, o contato com as sociedades coloniais europeias,
com os Caribe e com os Tucano levou os Baré e os Warekena a outro modelo, o
“comercial-militar”. Esse novo modelo se baseia na subjugação militar e na conversão
dos parceiros comerciais em apoiadores políticos e aliados militares. Na hipótese de
Vidal, podemos notar então que a transição para um poder mais coercitivo teria sido
realizada durante o período colonial. Teoria que também pode ser aplicada aos Apurinã
para o final do período imperial, pois, nesse período, os Apurinã foram incorporados ao
sistema extrativista e novas relações de trabalho foram se impondo. No entanto, seu
modelo de liderança teocrática – xamãs-guerreiros – do período anterior ao contato não
pode ser aplicado para os Apurinã. Pois, para os Apurinã, o que parece uma constante é
justamente a estrutura social que impede que um mẽety consiga usurpar o poder de mando.
O período pós-contato gerou desconfianças para com as lideranças políticas o que
ampliou os conflitos e as vinganças que são justamente expressões da evitação da
exploração. O mesmo ocorreu com as lideranças religiosas que foram acusadas de
agenciarem seus poderes em benefício próprio.
Em uma oficina de revitalização da língua apurinã que coordenei na aldeia
Mipyry, na Terra Indígena Água Preta/Inari, durante duas semanas em fevereiro de 2010,
além das curas xamânicas que eram expressões da mestiçagem cultural, pude observar a
estrutura xamânica em ação. Ao contrário daquelas sessões pequenas nas quais são
articuladas as relações de parentescos e amizades mais próximas, a presença de várias
pessoas que se auto-afirmavam como mẽety trouxe um desconforto para os demais
participantes e, sobretudo, para os anfitriões. Esse desconforto, ao contrário das sessões
comunitárias, propicia um olhar mais direto sobre a estrutura xamânica apurinã em ação.
A presença dessas pessoas que se diziam mẽety, mas que pertenciam a aldeias e famílias
diferentes, aflorou conflitos internos presentes na memória. Isso se refletia, por exemplo,
no fato das pessoas expressarem que estavam vendo vultos e que estavam com medo de
que algo acontecesse. Diziam que “muitas forças” estavam agindo na aldeia. Mas um
episódio em particular que presenciei traz à tona toda a discussão sobre a natureza do
poder dos xamãs. Ao final da tarde, depois de encerrado o estudo formal em sala de aula,
estava sentado junto a um pequeno círculo de pessoas na casa da liderança da aldeia
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segue foi extraída dessa publicação. Outras versões dessa história podem ser encontradas
na tese de Schiel (2004: 230-236).
Kanynary era pajé forte. Ele era casado com uma mulher bonita [Eriana,
conforme Schiel (2004: 230)]. Os seus primos tinham raiva dele. Eles diziam:
vamos matar Kanynary. Ele já sabia disso. Kanynary fez o seu roçado. Quando
ele foi queimar o seu roçado, ele foi buscar os seus primos. Eu vim buscar
vocês, ele disse! Ei, nós vamos, eles disseram! Eles foram com ele. Lá eles
disseram: agora vamos matar Kanynary. Eles foram queimar o roçado dele,
arrodearam-no com fogo. Kanynary estava no meio do roçado. Um disse:
Kanynary não está mais vivo. O outro disse: é verdade! Dessa forma eles
voltaram para a aldeia. Um disse: vou casar com a mulher do Kanynary. Você
não vai casar, eu é quem vou casar, o outro disse. Já chegamos à casa do
Kanynary, eles disseram. – Você está aqui Kanynary! É você! Ele disse: eu
estou aqui! Pode subir! Assim eles disseram: Kanynary ainda está vivo! Então
eles foram embora. (LINK, 2010a)
Nesse pequeno fragmento das histórias que narram as aventuras de Kanynary,
podemos notar de imediato certa “passividade” do herói xamã. A história inicia com
uma afirmação categórica que reconhece a força xamânica dele. No entanto, apesar de
toda sua capacidade transcendental, Kanynary não esboça retaliação frente às tentativas
de seus primos. Em apurinã, a forma narrativa em si é ritmada e cômica, cativando a
atenção e o riso dos ouvintes, mas ela também é cômica porque todos esperariam que o
poderoso mẽety desse uma lição em seus primos. No entanto, não é isso o que acontece.
Kanynary desvencilha-se das armadilhas que os seus lhe preparam sem causar danos a
seus oponentes. Ele nem mesmo esboça qualquer reação que indicasse uma possível
vingança no sentido arquetípico de Tsura.
Os informantes de Schiel (2004: 63, 230) lhe indicam que Kanynary seria
Miutymãnety, enquanto Tsura seria Xuapurunyry5. Eles também lhe afirmam que Tsura
infringia a lei do incesto, enquanto Kanynary permanecia fiel à tradição do grupo. Na
narrativa de Kanynary, a palavra empregada em apurinã para primo é epyry que designa
os irmãos de clã. Por isso, eles também almejavam tomar a mulher de Kanynary como
esposa. Como a esposa dele pertence ao outro clã, eles não estariam infringindo a
proibição do incesto. Dessa forma, o mito nos diz que são os parentes mais próximos
de Kanynary que o rejeitam e tentam matá-lo. São seus companheiros de clã. Os primos
parecem assim representar a comunidade local em oposição ao seu xamã. Numa relação
pautada pela retaliação, esperar-se-ia que Kanynary empreendesse sua vingança. No
entanto, ao contrário de qualquer expectativa, ele é apresentado quebrando o arquétipo
5
O povo Apurinã divide-se em dois troncos/clãs exogâmicos patrilineares: Xuapurinyry e Miutymãnety. O
casamento correto ocorre entre esses dois clãs. Aqueles que pertencem ao mesmo grupo são chamados de
nepyry ou nepyru (meu irmão, minha irmã) e aqueles que pertencem ao outro clã de numinapary ou
numinaparu (meu cunhado, minha cunhada).
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Considerações finais
Como vimos, Pierre Clastres (2012: 215) vai expor a tese de que é a ruptura
política e não a mudança econômica, a responsável pelo aparecimento da sociedade de
classes e, portanto, da exploração do ser humano sobre o ser humano. Como argumentei,
isso parece ser verificável também entre os Apurinã. No entanto, diferente de Clastres
para quem o poder coercitivo parece provir mais substancialmente do grupo dos
guerreiros, para os Apurinã ele parece provir perigosamente da religião. Clastres chega a
assinalar em um breve momento de sua arguição que talvez os karai – os profetas Tupi-
Guarani que exortavam seu povo para buscarem a terra sem mal – pudessem vir a ser os
causadores do infortúnio da sociedade igualitária. Diz ele: “no discurso dos profetas jaz
talvez em germe o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens
[do karai] que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota”
(CLASTRES, 2012: 231). No entanto, Clastres se mantém no talvez. Ele não chegou a
aprofundar essa questão. Hélène Castres, ao contrário, vai afirmar mais categoricamente
a separação entre as forças políticas e as forças religiosas. Para ela, quando um profeta
tupi chegava a se tornar chefe, ele deixava de ser completamente profeta. Portanto, Hélène
foi mais longe do que Clastres nesse sentido, mas o que a tese de Pierre Clastres, nos diz
sobre as sociedades indígenas – e nisso Hélène Castres também é signatária – é que elas
mantêm “o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes” (CLASTRES,
2012: 231). Como procurei argumentar, a essa fala de Clastres, deveríamos incorporar
também o empenho dos Apurinã em controlarem as forças perigosas da Religião.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al7.p.395.417
Resumo
No artigo, investiga-se, através de um processo-crime e publicações em periódicos, as
ações de um malfeitor no bairro do Recife no período compreendido entre 1887 e 1903.
Através dessas fontes, foi possível construir um fragmento do cotidiano da cidade do
Recife e das denominadas pessoas comuns na transição do Império para a República. E
mais: a movimentação em torno de um dos maiores portos do Império do Brasil e
posteriormente da República. A documentação possibilitou reconstituir uma página,
talvez esquecida, da então freguesia do Recife, hoje, o turístico bairro do Recife Antigo.
Palavras-chave: Bairro do Recife; Processo-crime; Cotidiano.
Abstract
The article investigates through a civil proceeding and journals publications the actions
of a malefactor in Recife district in the period between 1887 and 1903. Through the
sources, it was possible construe a daily life fragment of Recife as well as people called
ordinary people. And more, the movement around one of the largest ports in the Brazil
Empire and after of the Republic. The documentation allowed reconstitute a page, maybe
forgotten, of what was the parish of Recife, today, the touristic Recife Antigo district.
1
Possui doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Atualmente é professor
associado da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]
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2
Africanos: os ex-escravizados trazidos da África. Pretos: os nascidos no Brasil durante o período da
escravidão, quando eram denominados crioulos e seus descendentes. Os pardos: os pretos mais claros, às
vezes miscigenados. Sobre essa questão, ver: SANTOS, Jocélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos
pouco claros: classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, n. 32, p. 115-137, 2005.
3
O Código Penal brasileiro de 1890, no Título X, Capítulo VI; proibia o duelo.
4
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999.
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5
Entendemos intriga na perspectiva de Paul Veyne: “A palavra intriga tem a vantagem de lembrar que
aquilo que o historiador estuda é tão humano como um drama ou um romance [...] A intriga pode então ser
corte transversal dos diferentes ritmos temporais, análise espectral: ela será sempre intriga porque será
humana, sublunar, porque não será um bocado de determinismo.” (VEYNE, Paul. Noção de intriga. In:
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Ed. 70, 1971, p. 44).
6
Sobre esta questão, ver: LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In. PINSKY,
Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
7
Eram estabelecimentos comerciais onde se vendia “de um tudo” no século XIX até a segunda metade do
século XX, quando foram substituídas, nos centros urbanos, pelos supermercados e afins. Mas é possível
encontrá-las em cidades do interior, ao mesmo estilo, inclusive com o tradicional caderno de “fiados”.
8
Estamos nos referindo às narrativas contadas sobre a cidade de Lavras, nas décadas de vinte e trinta do
século passado. O narrador, [...], contou-nos casos sobre a cidade do passado. Alguns ele teria presenciado,
outros ouviu de pessoas que foram testemunhas oculares. Entre muitos casos que registramos, ficou o de
Saracura, que, segundo o narrador, era um pinta-brava, como se diz no interior do Estado de Minas Gerais
– um sujeito “cabuloso”, cheio de artimanhas, mais temido do que respeitado. Sobre tais narrativas, ver:
AUTOR.
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era a do Saracura, que ouvimos na infância, nas narrativas de nosso pai. Ele, um narrador
na perspectiva de Walter Benjamin, marcou nossa memória, tanto é que a categoria social
pinta-brava serve para identificarmos certas pessoas nos dias atuais 9. Não foi por acaso
que intitulamos este artigo João Duelo, um pinta-brava no bairro do Recife. O recorte
temporal (1887-1903) equivale aos registros que encontramos sobre as suas entradas e
saídas na Casa de Detenção do Recife, até o final do processo no qual ele foi condenado
por um dos homicídios praticados. Numa linguagem popular: João Duelo era um “chave-
de-cadeia”.
9
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
10
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
11
Flâneur: na literatura francesa, uma figura típica da vida urbana parisiense do século XIX, um “passeador.
Sobre esta categoria social. Ver: BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Obras
Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
12
Uma categoria usada na literatura inglesa do século XIX para caracterizar uma pessoa elegante, leia-se
aburguesada. Equivale ao flâneur da literatura francesa do século XIX.
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movimento do porto, nas colunas: vapores a sair, vapores a entrar e vapores esperados.
Os apitos dos navios anunciavam diuturnamente as entradas e saídas. É fácil imaginar
algumas pessoas que viviam no entorno do porto sendo guiadas pelos sons dos apitos
marítimos: “Vom! Vooom!! Vooooom!”
Entre os moradores da Rua do Vigário Tenório no período investigado,
encontravam-se: o estivador José Manoel da Rosa, 40 anos, solteiro, filho de Manoel
Antônio dos Santos; adiante, o empregado público Manoel Antônio Leal, 33 anos, casado;
um dos seus vizinhos era o seu xará, Manoel Justino Nascimento Burity, também casado,
com 33 anos, marítimo; mais adiante, no número 6, ficava a taberna de Marcelino M.; o
escritório e armazém de charque Silva & Bastos ficava no início da rua, onde se instalara
no dia 1º de setembro de 1901; em um dos andares no mesmo prédio, estava o consultório
médico do renomado Dr. Otávio de Freitas; a Cia. de Martins de Barros estava ao lado,
no prédio de número 3; a Monte Pio Liberal União Beneficente ficava no segundo andar
do prédio localizado no número 15 – no ano de 1901 fez “meeting” em comemoração ao
seu 33º aniversário13. Havia ainda o Centro Protetor dos Navegantes e o Clube Dramático
Dezessete de Setembro, ambos instalados no número 19; a Sociedade Beneficente União
dos Estivadores, localizada no primeiro andar do prédio de número 25; no número 42 o
Grupo Carnavalesco Amantes do Recife; no primeiro andar do prédio número 19,
localizava-se o curso dirigido pelo professor Francisco das Chagas, com aulas de
primeiras letras, português, francês, mecânica elementar e de explicação de máquinas a
vapor.
O movimento da Rua também pode ser identificado por outros estabelecimentos
ligados direta ou indiretamente ao movimento do porto: a Junta Comercial; o escritório
Consignações &Comissões – Carlos Rabello & Cia.; o Armazém de Charque de Joaquim
Brandão – que fazia concorrência com o Escritório e Armazém de Charque do senhor
Silva Maia; mais ao centro da rua, no número 17, estava a Cia. Manufatora de Fósforos.
Não parece ter sido por acaso que o agente Pestana se estabelecera no primeiro andar do
prédio número 26 dessa rua, pois era um bom ponto para fazer negócios com aluguéis,
leilões etc., como mostram os anúncios de jornais.
Mas havia, no outro lado da rua, os seus inconvenientes, provavelmente em
decorrência do próprio movimento. No segundo andar do prédio número 26, de acordo
com uma queixa veiculada no Pequeno Jornal, existiam “umas mulheres de vida airada
13
Diario de Pernambuco. Recife. Edição n. 195. Sexta-feira, 13 de abril de 1901, p. 2.
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14
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 296. Terça-feira, 30 de dezembro de 1902, p. 1.
15
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 77. Sexta-feira, 7 de abril de 1889, p. 2.
16
Bote pequeno, tripulado por um só homem.
17
A Província. Recife. Edição n. 36. Sexta-feira, 14 de fevereiro de 1902, p. 1
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18
Encontramos várias notas em jornais, atribuindo aos africanos e seus descendentes costumes “nefandos
e primitivos”. O Jornal Pequeno foi um desses veículos, sobretudo nas primeiras décadas do século XX,
quando promoveu uma “cruzada contra os rituais religiosos de matriz africana”. Sobre essa questão, ver:
SILVA, José Bento Rosa da Silva. O Paraíso do catimbó: Recife nas primeiras décadas do século XX. In.
Revista da ABPN • v. 11, n. 29 • jun – ago 2019, p.174-197.
19
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 125. Domingo, 3 de junho de 1900, p. 2.
20
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 127. Terça-feira, 6 de junho de 1900, p. 2.
21
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 180. Quinta-feira, 9 de junho de 1900, p. 3.
22
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 267. Segunda-feira, 25 de novembro de 1901, p. 2.
23
Diario de Pernambuco. Recife. Edição 53b. Domingo, 23 de junho de 1901, p. 2.
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que se sentiu enfermo [...] em estado de delírio, Soares caiu sobre a rede
telefônica, partindo os fios e vindo a falecer 20 minutos depois.
Em volta do seu cadáver reuniram-se logo muitos populares, alguns dos quais
tinham lhe assistido a morte.
O carro de isolamento, que então chegava para leva-lo com destino ao lazareto,
conduziu-o para o necrotério, de onde foi em seguida para a sepultura.
Dos curiosos ali reunidos alguns quiseram se opor que o cadáver fosse
transportado no dito carro, havendo quase um conflito; compareceu o Dr.
Barros Rego, que requisitou uma força da cavalaria reestabelecendo-se logo a
ordem[...].24
Soube-se que o Luiz Soares Bezerra era natural da cidade de Palmares, onde tinha
uma única filha. Quanto à doente que dividia com ele o terceiro andar do prédio número
8, segundo o jornal, faleceu no dia 22 daquele mesmo mês de maio. Ao que nos parece,
o apartamento era um refúgio para os “desamparados da sorte”, para usar uma expressão
da época. Uma permanência que se encontra nas ruas do Recife de hoje, bem como em
tantos outros centros urbanos deste país. Em sua grande maioria, afrodescendentes que
não foram “abolidos” da miséria com o 13 de maio de 1888. Nabuco já advertia: “ Não
basta acabar com a escravidão, é preciso destruir a obra da escravidão...” 25
Sorte melhor teve a dona Maria de Holanda Cavalcante Catanho, moradora do
terceiro andar do prédio número 25, que foi uma das beneficiadas com as espórtulas
(esmolas) que um distinto cavalheiro que não quis ter o nome revelado doou para a
redação do Jornal do Recife, em favor dos necessitados.26
Como vimos acima, na Rua do Vigário Tenório havia muitas casas de comércio
em virtude da importação e exportação pelo cais do porto. Tais lojas, eram por vezes,
“objeto de desejo” dos gatunos. O estabelecimento do Sr. Joaquim Beltrão, um armazém
de charque, foi alvo da “visita” desses “amigos do alheio” na madrugada da quinta-feira,
29 de julho de 1899. Os meliantes foram pegos “com a boca na botija”, conforme noticiou
o Jornal Pequeno. Eram aproximadamente cinco indivíduos. Três conseguiram fugir, mas
um de nome Gitirana, que tinha acabado de cumprir sentença de 24 anos, e um outro de
nome João Paulo foram presos em flagrante.
24
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 115. Sexta-feira, 23 de maio de 1902, p. 2.
25
NABUCO, Joaquim. Abolicionismo. Brasília: Ed. Do Senado Federal, 2003.
26
Entre os que foram contemplados com quantia de 873$000 (oitocentos e setenta e três mil réis), além de
Dona Maria Holanda, estavam: o Convento do Carmo, a Irmandade São Vicente de Paula, a Conferência
Nossa Senhora do Carmo, Dona Maria Amélia da Silva e Dona Anna de Barros, entre outros. (Jornal do
Recife. Recife. Edição n. 128. Sexta-feira, 9 de junho de 1899, p. 2).
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A descrição que temos de João Pedro Cavalcante, vulgo João Duelo, foi construída
a partir de peças processuais: depoimentos das testemunhas, auto de qualificação,
interrogatório no sumário de culpa e documentos anexados ao processo, por solicitação
do juiz, dos advogados e de outras autoridades envolvidas. E também pelas notícias
veiculadas nos jornais acerca da sua vida pregressa no crime.
Passaremos a nomeá-lo a partir de agora João Duelo, pois era assim que ele era
conhecido no Bairro do Recife e para além, já que sua má fama corria a região. Com essa
alcunha, ele ficaria nas lembranças e na escrita de alguns memorialistas, como se verá
adiante. Não sabemos ao certo a origem do apelido, mais uma coisa é certa, não foi em
decorrência da “lavagem de sua honra” que ficou conhecido como João Duelo. Não
sabemos se tinha uma honra a defender, não era um dos tais “cidadãos de bem”, que por
qualquer motivo, puxava uma arma e buscava fazer “justiça com as próprias mãos”. Era,
pelo contrário, um “pinta-brava”.
Uma das testemunhas descreveu o réu João Duelo da seguinte forma: “altura
regular, cheio de corpo, de cor branca, cabelos crespos e com bigode grosso e preto”27.
Quanto à idade, é uma incógnita, pois, no exame de qualificação, quando de sua prisão
em 26 de julho de 1900, disse ter a idade de 32 anos. No entanto, dois anos depois, no
interrogatório no Tribunal do Júri, disse ter 21 anos de idade, ser solteiro, analfabeto, filho
de João Pedro de Alcântara, natural de Pernambuco, de profissão tanoeiro, residente à
Rua Maria César desde menino.28
Ao consultar o documento enviado pelo diretor da Casa de Detenção do Recife,
João Henrique Gomes Vieira, para Manoel Francisco de Barros Rego, delegado do
27
Depoimento da testemunha Antônio Luiz Sena Cavalcanti (Memorial da Justiça de Pernambuco.
Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. Comarca do Recife. Ano: 1900.
Caixa 2014. Folha: 35).
28
Interrogatório do réu (Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo-Crime contra João Pedro de
Alcântara, “vulgo” João Duelo. Comarca do Recife. Ano: 1900. Caixa 2014. Folha: 68). Doravante
citaremos como: MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. João Duelo deve ter nascido entre o ano de 1868 e 1879.
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29
Documento da Casa de Detenção do Recife, n. 945, de 17 de julho de 1900 (Processo-Crime contra João
Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 27 -29v).
30
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 197. Sexta-feira, 31 de agosto de 1900, p. 2.
31
“Júri do Recife: Encerrou-se ontem a segunda sessão, sendo submetido a julgamento o réu Tranquilino
Xavier da Silva, que foi absolvido. Teve por advogado o major José Joaquim Dias do Rego. Nesta sessão
foram julgados vinte processos, havendo oito absolvições e doze condenações. O dr. Joaquim
ALCEBÍADES Tavares Hollanda, presidente do Tribunal, agradeceu a todos os juízes [...] bem como o
zelo que sempre manifestou o advogado José Joaquim Dias do Rego” (A Província. Recife. Edição n. 140.
Domingo, 22 de junho de 1902, p. 6).
32
Sobre essa questão, ver: MÜLLER, Tânia Maria Pedroso; CARDOSO, Lourenço (Org.). Branquitude:
estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017.
33
Sobre as teorias racialistas, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças. São Paulo: Cia. das
Letras, 1993.
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34
Teoria advinda de Hipócrates, amparado nos quatro elementos de Empédocles. Segundo ele, há quatro
tipos de temperamento, conforme domine no corpo do indivíduo um dos quatro fluidos corporais
(humores): sanguíneo (sangue), fleumático (linfa ou fleuma), colérico (bílis) e melancólico (atrabílis ou
bílis negra). Cada um deles possui uma determinada característica (DALGALARRONDO, Paulo.
Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000).
35
Auto de corpo de delito em Luiz Antônio Ferreira (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara,
“vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 07v-08v).
36
Do depoimento de Lindolfo de Oliveira (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João
Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folha: 37v).
37
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 91. Quarta-feira, 23 de abril de 1890, p. 2.
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despedindo dos colegas de cela, portanto ficara vinte e três dias “vendo o sol nascer
quadrado”38.
No ano de 1891, foram várias notícias publicadas sobre o envolvimento de João
Duelo no submundo do crime: em 23 de julho foi preso por distúrbio e ofensas à moral
pública39. Esta prisão revelou o envolvimento do referido personagem em outros crimes,
tais como o assassinato de Manoel da Costa Ramos, na Rua Visconde de Inhaúma40. Este
crime, conforme o jornal, foi cometido com requintes de brutalidade. Vejamos a notícia:
[...] Interrogada anteontem a mulher de cor preta, de nome Josepha, que era
ama de Guilhermina de tal, que mantinha relações com o indivíduo João Duelo,
na época em que se deu o crime, isto é, em dezembro do ano passado, disse ela
que na madrugada do dia em que aparecera assassinado Manoel Ramos, João
Duelo chegando à residência de Guilhermina, pedira a ela Josepha para lavar-
lhe uma camisa ensanguentada, dizendo-lhe ter havido um crime e ameaçando-
a de assassiná-la com dez facadas, se ela dissesse qualquer coisa a esse
respeito.
38
A primeira prisão de João Duelo se deu em 1º de julho de 1887, ficando preso por três dias; a segunda,
em 24 de setembro de 1888, ficando preso por cinco dias; a terceira em 1º de março de 1889, ficando preso
por trinta e um dias; a quarta em 27 de julho de 1889, ficando preso por trinta e três dias (Documento da
Casa de Detenção do Recife, n. 945, de 17 de julho de 1900. In: Processo-Crime contra João Pedro de
Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 27-29v).
39
Diario de Pernambuco. Recife. Edição n. 164. Quinta-feira, 23 de julho de 1891, p. 1.
40
Jornal do Recife. Recife. Edições n. 175 e 177.Quarta-feira e sexta-feira, 5 e 7 de agosto de 1891, p. 3. e
2 respectivamente.
41
Diario de Pernambuco. Recife. Edição n. 164. Quinta-feira, 23 de julho de 1891, p. 3.
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Não foi ainda interrogado João Duelo que só o será depois que terminarem as
diligências sobre o crime[...].42
42
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 167. Domingo, 26 de julho de 1891, p. 2.
43
Jornal do Recife. Recife. Edição n.207.Quarta-feira, 14 de setembro de 1892, p. 2.
44
Idem.
45
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 33. Sexta-feira, 8 de fevereiro de 1929, p. 1.
46
Jornal do Recife. Recife. Edição n. 68. Sexta-feira, 24 de março de 1893, p. 2; Jornal do Recife. Recife.
Edição n. 73. Domingo, 2 de abril de 1893, p. 2.
47
Branquitude é um debate acerca da forma diferenciada como as pessoas de cor branca são tratadas no
Brasil, em comparação às não brancas. Sobre essa questão, ver: MÜLLER, Tânia, M. P.; CARDOSO,
Lourenço (Org.). Branquitude: Estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017.
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A última notícia de jornal que tivemos de João Duelo foi a veiculada no Jornal
Pequeno na edição 256, de quinta-feira, 7 de novembro de 1912. Depois ele foi citado
como lembrança, como memória. Vejamos: na edição acima mencionada, noticiava-se o
julgamento de Cândido Gomes de França, que em agosto daquele ano, assassinara no
presídio de Fernando de Noronha o sentenciado João Duelo. A outra “aparição” de João
Duelo, como dissemos, foi na condição de lembranças ou memórias de valentões do
Recife do passado. O título em letras garrafais e em negrito; “RECIFE DE 35 ANOS
ATRAZ: homens que naquela época se salientaram pela bravura e valentia na luta.
48
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 197. Sexta-feira, 31 de agosto de 1900, p. 2.
49
O grifo é nosso.
50
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 197. Sexta-feira, 31 de agosto de 1900, p. 2.
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51
Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 33. Sexta-feira, 8 de fevereiro de 1929, p. 1.
52
Idem.
53
“[...] Homens que, há 35 anos atrás, pela sua coragem, demonstrada em lutas sangrentas, deixaram os
seus nomes inscritos na história da criminalidade do Estado[...]”. Idem. Ibidem.
54
Sobre esta questão, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e
questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
55
Sobre ideologias e mentalidades, ver. VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
56
Ao que nos parece este local servia aos trabalhadores da orla portuária, uma comida nutritiva, a preço
acessível. Era uma comida básica, inclusive servida pelo Estado aos imigrantes europeus, quando da
tentativa de promover a substituições do trabalho escravo africano e de seus descendentes. No Edital
publicado no jornal A Província em 1891, constava: “[...] A alimentação constará do seguinte: às 7 horas
da manhã cada imigrante receberá uma caneca com café e pão, às 10 horas terá lugar o almoço, constando
de carne verde, guisado de bacalhau, arroz e pão; às 4 horas da tarde, o jantar, que será composto de sopa
de arroz ou de pão, carne cozida com verduras, angu de milho e bananas; e às 7 horas da noite lhe será
fornecido café com pão e bolacha [...]” (A Província. Recife. Edição n. 119. Domingo, 31 de maio de 1891,
p. 2, grifo nosso).
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Luiz Antônio faleceu dias depois no Hospital Pedro II, mas teve tempo suficiente
para responder às perguntas feitas pelo subdelegado Vicente Ferreira da Silva Júnior.
Disse:
[...] Que tendo há dias uma troca de palavras com João Duelo em casa da
mulher conhecida por “Maria Mata homem”, moradora da rua da Senzala
Nova, número vinte. Aconteceu que hoje, 11 horas da noite, achando-se ele
respondente em companhia do ex-tenente de polícia José Alves, tomando café
em casa de refeição de Maia, conhecido por Pataca de angu, na rua do Vigário,
número 7, primeiro andar, quando viu ali entrar o seu inimigo João Duelo
acompanhado por mais seis indivíduos; que João Duelo logo que avistou a ele,
respondente, chamou-o dizendo: “Luiz, vem cá, dá-me uma palavra”; que ele
respondente levantando-se do lugar onde estava assentado, acompanhou João
Duelo até as escadas e ali chegados, aquele vira-se de repente e deu-lhe a
facada que apresenta na última costela do lado esquerdo, e em seguida sem dar
uma palavra, correu de escada abaixo, acompanhado pelas pessoas que com o
mesmo ofensor João Duelo, haviam entrado em casa do referido Maia [...]. 57
57
Auto de perguntas feitas a Luiz Antônio Ferreira. (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara,
“vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 11 e 11v).
58
Quando de seu depoimento, ela já havia mudado de residência, como ficou evidente no depoimento do
sargento de polícia Luiz Sena Cavalcanti, ao dizer do motivo do crime: [Disse] “ [...] que sabe que havia
intriga entre o denunciado e a vítima por causa de uma rapariga de nome Maria, moradora a rua da Senzala
nova, n. 22, onde morava antes de ser perpetrado o crime[...]” (Auto de perguntas feitas a Antônio Luiz
Sena Cavalcanti. In: Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano:
1900. Cx. 2014. Folhas: 34v e 35).
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da última terça feira do mês passado. Que veio mais um em companhia de João
Duelo, um tal Pavão, Leandrinho que já teve jogo de bola, e o indivíduo
conhecido por João-caga-no-beco.
Que na sexta feira da mesma semana seu amásio Luiz Antônio Ferreira disse-
lhe que tinha sabido por Manoel Prático, que João Duelo tinha almoçado na
casa dela, e que não queria que ela aprontasse mais almoço para o mesmo João
Duelo.
Que no dia seguinte [sábado] voltou João Duelo, por volta das sete horas da
noite com um pouco de peixe e pediu-lhe para aprontar, ao que ela se recusou,
alegando que não podia, por ser sábado e estava esperando por seu amásio Luiz
que ia levar-lhe dinheiro. Ao que João Duelo replicou-lhe com as seguintes
palavras: “- Fode-te tu e teu macho”, e atirou com o peixe em cima da mesa e
retirou-se; que ela aprontou o peixe antes que o seu amásio Luiz chegasse e foi
levar o peixe a João Duelo que morava na mesma rua número 16. Isso já depois
das nove horas da noite. João Duelo depois de ceado o peixe, saiu e entrou na
casa de jogo que fica em frente à casa dela, que saindo este depois das dez
horas da noite, e vendo-a assustada na janela de sua casa perguntou: “- Teu
macho já chegou? E tendo em resposta que não, João Duelo disse: “ - Então
deixe-me ver aquele baile ali!” [...]59
59
Auto de perguntas feitas a Maria Francisca dos Santos (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara,
“vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 24 e 25v).
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[...] - Matou-me e correu perseguido por João Duelo que provavelmente por
ouvir outros gritos de Luiz que dizia: “- mataram-me, socorram-me”; não
continuou a perseguição. Que ainda viu João Duelo limpar a faca na manga da
camisa, porque se achava em mangas de camisa, e voltando para onde tinha
ficado os companheiros disse: “- vamos embora! “ [...]”60
O jornaleiro Lindolfo Oliveira, que morava com Luiz Ferreira, foi visitá-lo no
Hospital Pedro II e ouviu da vítima a narrativa tal e qual foi reproduzida pelas
testemunhas. Na ocasião da visita, ao perguntar ao paciente e companheiro de residência
como estava, aquele lhe respondeu que estava terminando seus dias. Disse mais, que não
conhece João Duelo, e que na noite do crime, Luiz Ferreira chegou em casa pelas nove
horas da noite, mudou a roupa, saiu novamente, não voltando mais naquela noite, que no
dia seguinte, pelas 8 horas do dia, chegou em sua casa o sargento do destacamento do
Recife, com a notícia, e que Luiz estava recolhido no Hospital Pedro II.61
O proprietário da Pataca do Angu, Antônio Luiz Souza Maia, 32 anos de idade,
ex-tenente da polícia, que estava no estabelecimento na hora do ocorrido, deu o seguinte
depoimento:
[...] Disse que estava na data em que consta a denúncia, em sua casa à rua do
Vigário, n. 07, em conversa com Severino José da Silva, cozinheiro do Hotel
Marquês de Pombal, e hoje soldado de polícia, quando surgiu o carroceiro Luiz
Antônio Ferreira todo ensanguentado dizendo-lhe: “- acudam-me senhor Maia
que estou morrendo”. E que verificando que Luiz Antônio estava efetivamente
ferido; perguntando-lhe quem havia feito o ferimento, ele respondeu que tinha
sido o denunciado João Duelo, que imediatamente mandou chamar a polícia, e
então chegando o cabo José dos Santos Silva, a quem entregou o ferido e
contou o que acima foi dito; que ignora ainda hoje o motivo deste fato, de onde
ter morrido no hospital o ferido Luiz Antônio Ferreira em consequência do
ferimento tido, que conhece o denunciado João Duelo, e sabe ser ele cabra
desordeiro e que já fora deportado para [o presídio de] Fernando de
Noronha[...].62
60
Auto de perguntas feitas a José Joaquim Alves. (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara,
“vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folha: 18).
61
Idem. Folha: 37v.
62
Auto de perguntas feitas a Antônio Luiz de Souza Maia. (Processo-Crime contra João Pedro de
Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 36-36v).
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Que não conhece Luiz Antônio Ferreira e nem este apareceu na ocasião da ceia
em que estava com os seus companheiros. Que no dia 03, seguiu ele para a
referida Usina tomando o trem nas Cinco Pontas as 8 horas e quinze minutos
da manhã, hora até a qual nada ouviu sobre o que que lhe imputam; que se
achando na Usina Caraassú no dia 04 fez o seu trabalho até o dia 26 de agosto,
dia em que voltou passando pela cidade de Barreiros, onde esteve com o
delegado de polícia, embarcando na barcaça Rainha das Águas no dia 27 às 4
horas e meia da tarde. Que chegando a esta cidade do Recife no dia 29, as 3
horas da tarde, foi preso na Lingueta, atribuindo-se nesta ocasião a autoria do
fato criminoso em Maria Gregry, no Estado de Alagoas. Que oito dias depois,
foi ele chamado à sala das audiências para ser interrogado e assistir ao
depoimento de uma mulher, sabendo nesta ocasião, por lhe interrogar o dr.
Promotor público, da morte de Luiz Carroceiro[...].63
63
Interrogatório do réu. (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR.
Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 68-69v).
64
Idem. Folhas: 68-68v.
413
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65
Termo de comparecimento. (Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo.
MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 66 -66v).
66
Idem.
67
5º quesito: O réu cometeu o crime com traição? (Ata do julgamento. In: Processo-Crime contra João
Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR. Ano: 1900. Cx. 2014. Folhas: 76-77).
68
7º quesito: Houve por parte do réu superioridade em arma, de maneira que o ofendido pudesse defender-
se ou facilidade de repelir a ofensiva? (Idem).
69
Idem, Ibidem.
414
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
70
Ata do Julgamento (In: Processo-Crime contra João Pedro de Alcântara, “vulgo” João Duelo. MJP/CR.
Ano: 1900. Cx. 2014. Folha: 105).
71
O Jornal ao relembrar as ações e impunidades de Duelo, registrou: “[...] No governo do dr. Barbosa Lima
ficou um tanto amansado com algumas eficazes surras de facão que em diversos xadrezes desta capital lhe
foram aplicadas pela polícia daqueles tempos ominosos. Depois desta época João Duelo reencetou as suas
façunhudas proezas realizando tropelias sem número, escapando sempre à ação, criminosamente
complacente da nossa polícia [...]” (Jornal Pequeno. Recife. Edição n. 197. Sexta-feira, 31 de agosto de
1900, p. 2).
415
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
REFERÊNCIAS
Jornal do Recife. Recife. Edições n. 175. Quarta-feira e sexta feira, 5 de agosto de 1891.
416
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Referências Bibliográficas
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LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
SANTOS, Jocélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações
raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, n. 32, p. 115-137, 2005.
VEYNE, Paul. Noção de intriga. In: VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa:
Ed. 70, 1971.
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Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al8.p.418.438
“TRANSGREDINDO A NORMA”: AS
MULHERES BRASILEIRAS E A LUTA PELO
DIREITO AO SUFRÁGIO
Luciane Campos1
Resumo
A conquista dos direitos políticos foi o resultado de uma longa e árdua luta que envolveu
as relações de gêneros e entendida como mais uma conquista emancipatória para o sexo
feminino e que dividia opiniões da sociedade. O presente artigo tem por finalidade
apresentar uma breve discussão sobre o impacto social e político que a luta sufragista
brasileira acarretou nas primeiras décadas do século XX e apresentar fatos e sujeitos que
contribuíram para a conquista do voto em 1932. No Amazonas essa questão também
estava presente e, assim como em todo o Brasil, era refletida especialmente através da
imprensa. Em 1934, a primeira mulher política do Estado foi eleita: Maria de Miranda
Leão.
Palavras-chave: Sufragismo; Mulheres; Política.
Abstract
The conquest of political rights was the result of a long and arduous struggle that involved
gender relations and understood as yet another emancipatory achievement for women and
that divided the opinions of society. The purpose of this article is to present a brief
discussion on the social and political impact that the Brazilian suffrage struggle had in
the first decades of the 20th century and to present facts and subjects that contributed to
the winning of the vote in 1932. In Amazonas, this issue was also present and, as in all of
Brazil, it was reflected especially through the press. In 1934, the state's first political
woman was elected: Maria de Miranda Leão.
1
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Pesquisa sobre História das
Mulheres, feminismo e Gênero. E-mail: [email protected]
418
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2
Às mulheres foi permitido o acesso ao ensino Superior pelo Decreto Nº 7.247, de 19 de Abril de 1879
(Lei da Reforma Educacional).
3
Como conceito, o Sufrágio é um dos principais institutos dos direitos políticos, o qual abrange tanto o
direito de votar quanto o direito de ser votado. Comumente, as expressões “sufrágio” e “voto” são
empregados indistintamente, como sinônimos. Entretanto, a doutrina estabelece a diferença entre os termos:
o sufrágio é o direito, enquanto o voto é o exercício. Ver: SANTOS, Luiza Chaves. Sufrágio Feminino e
democracia no Brasil. Monografia de conclusão do Curso de Direito. PUC/RIO, Rio de Janeiro, 2017. p.18.
4
o jus suffraggii e o jus honorum, como distinguiam os romanos.
5
LEITE, Carlos Henrique Ferreira. Teoria, metodologia e possibilidades: os jornais como fonte e objeto
de pesquisa histórica. ESCRITAS Vol. 7 n.1 (2015) ISSN 2238-7188 p. 3-17.
419
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No entanto, não foi uma luta fácil, muito pelo contrário, foi longa e árdua. Foram
décadas de reivindicações, articulações feministas - envolvendo mulheres e também
muitos homens que apoiavam a causa - e discussões políticas, que se iniciam antes mesmo
da Proclamação da República11. Para June Hahner, a agitação política do período
“fortaleceu o desejo das mulheres por seus direitos políticos e indiretamente forneceu-
lhes não só argumentos adicionais pró-sufrágio, mas também oportunidade de
empenharem-se por este direito”12. Mas é a partir de 1890, ano que ocorre a Assembleia
6
TOSCANO, Moema; GOLDENBERG, Miriam. A Revolução das Mulheres: um balanço do feminismo
no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992.p.25
7
HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e Suas Lutas Sociais e Políticas: 1850-1937. São Paulo:
Brasiliense, 1981. p.87
8
HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e Suas Lutas Sociais e Políticas. p.82
9
BESTER, Gisela Maria. A luta sufrágica feminina e a conquista do voto pelas mulheres brasileiras:
aspectos históricos de uma caminhada. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, Brasil, n. 25. p. 330-
333.
10
BESTER, Gisela Maria. A luta sufrágica feminina e a conquista do voto pelas mulheres brasileiras:
aspectos históricos de uma caminhada. p. 330-331.
11
É importante dizer que o Brasil foi o primeiro país da America Latina a discutir a questão do Sufrágio
feminino.
12
HAHNER, June. E. A luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Editora
Mulheres/EDUNISC, 2003. p.160
420
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Constituinte, que a questão do sufrágio feminino passou a ser a pauta principal de luta e
reivindicações das mulheres no Brasil.
É importante destacar que antes mesmo de lutarem para conqusitar esse direito de
forma legal na Nova Costituição que estava sendo elaborada, ainda nos finais do século
XIX, muitas mulheres de forma isolada, solicitaram seu alistamento eleitoral com base
na Lei Saraiva que instituiu o título elitoral e garantia o direito de voto aos portadores de
títulos científicos13. Entre as pioneiras, destacam-se as figuras das Cirurgiãs-dentistas
Isabel de Sousa Matos, que no ano de 1885 requereu seu alistamento eleitoral na cidade
de São José do Norte/RS, e a baiana Isabel Dilon que se apresentou como candidata à
Constituinte mas não conseguiu alistamento.14
Acredita-se que inspirada na história de Isabel Dillon, a professora Josefina
Alvares de Azevedo tenha escrito a peça Voto Feminino, em 1890. A comédia,
apresentada uma única vez no Teatro ‘Recreio Dramático’, no Rio de Janeiro, teve a
intenção de promover no público uma reflexão sobre as questões levantadas pelos grupos
socias favoráveis e contrários ao sufrágio. Na peça, o debate familiar gira em torno das
opiniões do patriarca da Família (Anastacio), sua esposa (Inês), o genro (Rafael) e a filha
(Esmeralda) sobre o direito de voto feminino. Em uma das cenas, podemos conferir como
a questão era cheia de conflitos ideológicos:
ANASTÁCIO (dirigindo-se a Rafael) – Meu genro, estamos perdidos, a
revolução das saias entrou-nos porta adentro: é preciso reagir. A mulher
votante! Com direito aos cargos públicos! Que Desgraça! Que calamidade!
INÊS: - Calamidade é a de termos homens como o senhor que procuram
aniquilar os nossos direitos em proveito da sua vaidade.
ANASTÁCIO (para Rafael) – o que diz a isso?
RAFAEL (atrapalhado, olhando para Ismeralda) – Eu...eu não digo nada.
ANASTÁCIO – Se o senhor tem aprovado a atitude delas.
ESMERALDA – Porque é justo meu pai.
ANASTÁCIO – Até a senhora! Está desejosa por votar e ser votada, ir ao
parlamento, sobraçar uma pasta, andar de coupé e ordenanças! São assim todas
as mulheres. Ah! Mas eu hei de ensiná-las! Agora é comigo. Senhor meu genro,
venha daí. É preciso ser homem, ouviu? Ser homem! (empurrando-o na frente)
Ande, mexa-se. 15
13
Decreto nº 3.029, de 09 de janeiro de 1881.
14
Celi Pinto nos informa que Isabel Matos foi vitoriosa em sua cidade natal mas teve o direito suspenso
quando tentou se alistar no Rio de Janeiro. PINTO, Celi Regina. Uma história do Feminismo no Brasil.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. p.15
15
Cena sete da peça Voto Feminino. In: KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos
primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). Tese Doutorado em
História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. p.76.
421
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para as mulheres”16.
Na Constituinte de 1890, foi intensa a discussão entre os poucos deputados
sensíveis à possibilidade da concessão do voto às mulheres e os que se posicionavam
terrivelmente contra, usando de diversos argumentos para mostrar que o mundo político
brasileiro não se abriria ao “sexo frágil”. Vejamos um exemplo dessa assertiva:
“Estender o voto à mulher é uma ideia imoral e anárquica, porque no dia em
que for convertido em Lei, ficará decretada a dissolução da família brasielira.
A concorrência dos sexos nas relações da vida ativa anula os laços sagrados da
família”17
16
KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos primórdios da questão à conquista do
sufrágio feminino no Brasil. pag 82
17
TOSCANO, Moema; GOLDENBERG, Miriam. A Revolução das Mulheres p.27
18
KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos primórdios da questão à conquista do
sufrágio feminino no Brasil. pag 82. p.79
19
O projeto da Constituição foi elaborada pela chamada Comissão dos cinco, formada por: Saldanha
Marinho, Rangel Pestanha, Antonio Luiz dos Santos Werneck, Américo Brasiliense de Almeida Mello e
José Antonio Pedreira de Magalhães Castro; foi inspirada em três Constituições: Argentina, Estados Unidos
e Suíça. In: KARAWEJCZYK, Mônica. KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos
primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil. pag 80
20
Comissão especial para apreciação do projeto da Constituinte, eleita pelos congressistas e composta por
um representante de cada estado incluindo o Distrito Federal
21
Segundo nos informa Monica Karawejczyk, a emenda foi elaborada e apresentada pelos deputados Lopes
Trovão (Distrito Federal), Leopoldo de Bulhões (Goiás) e Casemiro Junior (Maranhão). KARAWEJCZYK,
Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no
Brasil. 87
22
SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. O florete e a Máscara. Josefina Álvares de Azevedo. Dramaturga
do Século XIX. Florianópolis: Mulheres, 2001. p. 76
422
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da lei23. Para Celi Pinto, “a mulher não foi citada porque simplesmente não existia na
cabeça dos constituintes como um indivíduo dotado de direitos”. O próprio termo
“cidadão”, segundo o senso comum da época, não se referia ao termo universal que
abrange homens e mulheres, mas exclusivamente aos homens, reitera a autora. 24
Muitas mulheres em várias partes do Brasil usaram dessa falta de clareza da Lei
para requerer seu alistamento eleitoral. No entanto, o poder judiciário ficava livre para
autorizar ou não esses pedidos e sempre optava pela recusa, prevalecendo a tradição
conservadora, patriarcal e autoritária que relegava as mulheres à “um papel menor” na
sociedade da época, fato que lhes causava muito constrangimento e revolta. Exemplo
dessa assertiva é a trajetória empregada pela estudante de Direito Diva Nolf Nazário em
busca do seu alistamento eleitoral em São Paulo, no ano de 1922. Nazário defendia que o
voto feminino era constitucional e que era seu direito exercê-lo. Após seu processo
caminhar longamente e ser recusado em vários setores, “com espanto e surpresa por ser
uma mulher candidato”25, e recursos por sua parte, o parecer final do juiz eleitoral foi-lhe
desfavorável. Esse fato fez com que Diva, que participava da Liga Paulista de Senhoras26,
ficasse ainda mais atuante na luta pelos direitos políticos das mulheres. Um ano depois
publicou o livro Voto Feminino e Feminismo27 descrevendo toda a sua luta e persistência
em busca do seu alistamento eleitoral. O livro também aborda posicionamentos e
argumentos variados em relação ao sufrágio feminino, presentes em artigos publicados
na imprensa daquela época e copilados pela autora. Em um desses artigos publicados no
jornal Gazeta de Batatais, ela escreveu:
Todos os dicionários estão acordes em dizer que um cidadão é um habitante
de um Estado livre.
A mulher brasileira não será habitante de um Estado livre?
Diz-se sempre: “Todo o cidadão está sujeito às leis do seu país”.
23
É oportuno transcrevermos o artigo 70 da Constituição de 1891:“Art. 70 - São eleitores os cidadãos
maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições
federais ou para as dos Estados: 1º os mendigos; 2º os analfabetos; 3º as praças de pré, excetuados os
alunos das escolas militares de ensino superior; 4º os religiosos de ordens monásticas, companhias,
congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto
que importe a renúncia da liberdade individual. § 3º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis.”
(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891). Disponivel em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91
24
PINTO, Celi Regina. Uma história do Feminismo no Brasil. p. 15-16
25
SILVA. Lenina Vernucci da. Gênero e Poder: Diva Nolf Nazário na luta pelo voto feminino. Dissertação
de Mestrado. UNESP Araraquara, 2014. p.22
26
Filial da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) em São Paulo.
27
Uma edição fac-similar foi publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em 2009. Na
introdução do livro, Diva Nolf diz que a intensão ao escrevê-lo é a de “servir a nobre causa do feminismo
que, no Brasil, há de ser brevemente vencedora, para a glória de nossa Pátria” (p.33)
423
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A mulher brasileira não estará, por acaso, sujeita às leis do Brasil? Ser-lhe a,
por ventura, permitido matar e roubar sem incorrer nas penas estabelecidas
para os homens?
Por que há de fazer exceção única e injusta quando trata de eleitores?
[...] Negar o direito de voto à mulher, é negar a utilidade da mulher em tantas
ocupações onde só homem era visto antes.28
28
NAZÁRIO, Diva Nolf. Voto feminino & feminismo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p.41-44. Grifos
no original. Optou-se por usar a ortografia atual.
29
Segundo nos informa Celi Pinto, a motivação para Leolinda Daltro criar o Partido Republicano Feminino
foi a recusa de seu alistamento eleitoral em 1909. Ela “era Professora e uma mulher muito diferente das de
seu tempo. Criou 5 filhos sozinha. Indigenista, realizou uma cruzada a partir de 1895 em defesa dos índios,
contra o extermíninio e o autoritarismo da catequese”. PINTO, Celi Regina. Uma história do Feminismo
no Brasil, p. 18-19.
30
Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976) era filha do cientista e pioneiro da Medicina Tropical, Adolfo Lutz,
e da enfermeira inglesa Amy Fowler. Formou-se em Biologia pela Sorbonne. Em sua estadia pela Europa,
tomou contato com a campanha sufragista inglesa. Voltou ao Brasil em 1918 e ingressou por concurso
público como bióloga no Museu Nacional, sendo a segunda mulher a entrar no serviço público brasileiro.
Ao lado de outras pioneiras, empenhou-se na luta pelo voto feminino e criou, em 1919, a Liga para a
Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
(FBPF), tornando-se uma das principais líderes à frente do movimento feminino organizado no Brasil e
umas das pioneiras da luta pelo voto feminino e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no país.
Berta Lutz organizou o I Congresso Feminista do Brasil. Na Organização Internacional do Trabalho,
discutiu problemas relacionados à proteção do trabalho feminino. Em 1929, participou da Conferência
Internacional da Mulher, em Berlim. Ao regressar, fundou a União Universitária Feminina. Em 1932, criou
a Liga Eleitoral Independente e, no ano seguinte, a União Profissional Feminina e a União das Funcionárias
Públicas. Elege-se deputada em 1934,no Rio de Janeiro, como primeira suplente e tomou posse no ano de
1936.
31
PINTO, Celi Regina. Uma história do Feminismo no Brasil, p. 18.
424
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32
KARAWEJCZYK , Mônica. “O voto e as saias”: as repercussões do projeto Lacerda sobre o alistamento
feminino (1917). Revista Altos e Baixos, 2015.p.72. Disponível em:
http://revistadigital.jfrs.jus.br/revista/index.php/revista_autos_e_baixas
33
Teve como sua entecessora a Liga para a Emancipação da Mulher, criada em 1919 também por Bertha
Lutz.
34
MOURELLE, Rodrigo Cavaliere et al. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e o governo de
Getúlio Vargas na década de 1930: estratégias e paradoxos do movimento feminista no Brasil. Colóquio
Internacional Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul. Universidade Federal de Santa Catarina – de
4 a 7 de maio de 2009
35
Aqui a autora utiliza expressões de (Céli Regina Jardim PINTO, 2003) e (Rachel SOIHET, 2006).
KARAWEJCZYK, Mônica. O Feminismo em Boa Marcha no Brasil! Bertha Lutz e a Conferência pelo
Progresso Feminino. p. 01;
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defendia que a emancipação da mulher não estaria vinculada à igualdade de direitos civis
e políticos, mas sim à libertação dos preconceitos sociais já cristalizados naquela
sociedade, frutos do sistema capitalista e patriarcal brasileiro36.
É salutar destacar ainda que na historiografia do movimento feminista o
movimento sufragista não está isento de críticas no que se refere aos caminhos traçados
na luta pelos direitos das mulheres. Para Branca Moreira Alves a conquista do direito ao
voto não modificou a condição feminina no Brasil, “pois o evento em si não foi capaz de
criar uma autoconsciência que as fizesse questionar a sua própria inferiorização social e
as relações de dominação nas quais estavam inseridas”37, ou que o movimento sufragista
brasileiro fez-se, em grande parte, conservador, para adaptar-se à uma sociedade
atravessada por valores e relações patriarcais38 pois evitava contrapor-se à sociedade e à
família, no intuito de se tornar aceito e respeitado pelas elites governantes39,
diferentemente das estratégias, muitas vezes violentas, como as adotadas pelas
suffragettes inglesas, por exemplo.
36
MANCILHA, Virginia Maria Netto, Vozes femininas: um estudo sobre a Revista Feminina e a luta pelo
direito ao voto, ao trabalho e à instrução. Dissertação de mestrado - UNICAMP, 2012; Nesse viés de
pensamento temos os trabalhos de Miriam Leite e Samanta Mendes que pesquisaram sobre a trajetória
dentro do movimento feminista de Maria Lacerda de Moura e Isabel Cerruti, respectivamente. VER:
LEITE, Miriam Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984;
MENDES, Samanta C. “O feminino no Anarquismo: as mulheres anarquistas em São Paulo na Primeira
República (1889 -1930).” Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão.
ANPUH/SP – USP. 08 a 12 de setembro de 2008;
37
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1980.p.155.
38
SOIHET, Rachel. “Transgredindo e conservando, mulheres conquistam o espaço público: a contribuição
de Bertha Lutz. Labrys- estudos feministas. Brasília, v.2, nº1, julho-dezembro 2002.
39
HAHNER, June. A luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. p. 366
40
HAHNER, June E. A Mulher Brasileira e Suas Lutas Sociais e Políticas. p. 78
426
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
41
BORELLI, Andrea. “A Rainha do Lar”. A esposa e a mãe perante a legislação brasileira. 1830-1950.
Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu Tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis,
24 a 28 de julho de 2006.
42
SOIHET, Rachel. Abaixo as mulheres. In: Revista Nossa História, n° 03. janeiro de 2004.
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lutas e conquistas femininas. Eram temas que sempre promoviam acaloradas discussões
as quais muitas vezes envolviam grande parte da sociedade, principalmente os
representantes do sexo masculino. Esse intransigente comportamento dos homens e da
imprensa tem sua justificativa: ver uma mulher assumir uma cadeira na tribuna pública
era simplesmente o pior e o mais incômodo dos acontecimentos da época pois “voto não
se compatibilizava com o mundo dos sentimentos e do lar e marcava uma fissura
definitiva na esfera masculina”43. Ou ainda, entendiam que a “mulher não tinha liberdade
em relação ao marido para formar a sua própria opinião”44. Segundo o pensamento dos
contrários aos direitos políticos femininos, a política deveria ser território exclusivo dos
homen dado a incompatibilidade da natureza feminina com as atividades políticas. Como
observou Perrot, a entrada das mulheres na política não é normal em nenhum lugar, quer
se trate dos partidos, do legislativo ou do executivo45, pois para a sociedade da época,
a política é uma profissão de homens, concebida e organizada no masculino.
Em seus ritos, em seus ritmos, em seus horários, em suas formas de
sociabilidade, em sua apresentação de si, que molda também a expectativa do
público, eventualmente decepcionado por ser representado por uma mulher.46;
43
HAHNER, June. Emancipação do Sexo Feminino. p. 156.
44
Discurso de Assis Brasil, reformador da República. In: PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do
Feminismo no Brasil, p. 29.
45
PERROT, Michelle. As Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998. p. 129-130.
46
. PERROT, Michelle. As Mulheres Públicas p. 130
47
Revista ilustrada semanal, que circulou no Rio de Janeiro de 1902 à 1953. Sua principal característica
era a sátira política e o humor a partir de Charges.
428
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Diz a legenda:
ZÉ POVO: - Aqui tem, “seu” Mauricio, um quadro do futuro que nos espera
se passar o seu projecto, dando o direiro de voto ás mulheres... Em pouco
tempo. “ellas” que são mais sabidas do que nós, aproveitarão a moleza dos
homens e dominarão tudo! E teremos então esta belleza: O avô fazendo
“crochê”, a avó fumando cachimbo, o marido amamentando o filho, enquanto
vae para a Camara dos Deputados deitar o verbo pela salvação da pátria!
Tudo transformado! Tudo invertido!
MAURICIO DE LACERDA: - mas que tem isso? A Constituição é clara: as
mulheres podem ser eleitoras!
ZÉ POVO: - pois então, viva a Consttiuição e o voto feminino! Talvez com as
mulheres em scena, nós sejamos mais homens... acudindo ao appello do
Ministério da Agricultura e fazendo – rumo ao campo – para plantar batatas!
48
48
O Malho (RJ) Ed. 0771 de 23/06/1917. Disponível on line na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
429
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assim, para a expansão, até certo ponto prejudicial dessa aberração do século.49
Embora esse tipo de discurso fosse o mais comum na imprensa da época mesmo
assim, algumas vozes se levantaram em prol da defesa da mulher e de suas lutas. O jornal
A Reacção, “órgão dos moços católicos de Manaus”, (1933), pleiteava que à elas fossem
dado direitos políticos porque “se democracia é o governo do povo para o povo tão povo
49
O Constructor Civil, nº 1. Manaus, 5 de janeiro de 1920. In: PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto e
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte (Orgs). Imprensa Operária no Amazonas. Manaus: EDUA/Cnpq, 2004,
p. 119.
50
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto e PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte (Orgs). Imprensa Operária no
Amazonas. p.119
51
Jornal do Commercio, 19 de novembro de 1927. Em várias edições da coluna “Uma Por Dia”, publicadas
no Jornal do Commercio em meados da década de 1920, o alvo de críticas foram as reivindicações
femininas bem como as suas mudanças comportamentais.
430
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
52
A Reacção. Manaus, 2 de abril de 1933.
53
A Reacção. Manaus, 2 de abril de 1933
54
O jornal A Família trazia em sua epígrafe: “jornal literário dedicado à educação da mãe de família”.
Era de publicação semanal e cotava com oito páginas. Inicialmente o Jornal foi publicado em São Paulo e
a partir de 1889 passou a circular no Rio de Janeiro devido a mudança de endereço de Josefina Azevedo.
O Jornal teve duração até 1898. O Periódico encontra-se disponível digitalizado na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
55
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O Voto feminino no Brasil. 2º ed. Brasília: Câmara dos
Deputados , Edições Câmara, 2019. p. 62
431
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
56
A Família, 21 de Dezembro de 1889.
57
Revista Cabocla. Manaus, 1936
432
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Enfim a vitória!
58
Informações preliminares da pesquisa apontam que antes do Código eleitoral de 1932, dez estados
brasileiros permitiam o alistamento eleitoral feminino. No entanto, além dos três citados, não conseguimos
localizar ainda quais eram os outros Estados. Esperamos obter essa resposta no decorrer na pesquisa.
59
Celina conseguiu o reconhecimento de seu direito por meio da lei estadual 660/1917, na qual constava a
possibilidade do voto feminino. Consta no art. 77 da referida lei:"No Rio Grande do Norte poderão votar
e ser votados, sem distincção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei.".
Fonte: www.migalhas.com.br
60
Pinto, Céli Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil., p. 25. No entanto, uma informação
de Branca Moreira Alves (Ideologia e feminismo. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 94-95) é a de que, muito
antes, no ano de 1906, na comarca de Minas Novas, Minas Gerais, três mulheres, Alzira Vieira Ferreira
Netto, mais tarde formada em Medicina, Cândida Maria dos Santos, professora em escola pública, e
Clotildes Francisca de Oliveira, haviam já se alistado como eleitoras e votado.
61
Segundo fontes preliminares da pesquisa, Alzira Soriano foi impedida de exercer o mandato pois teve
seus votos anulados pela Comissão de Poderes do Senado.
62
Além do Voto feminino, o código de 1932 também instituiu o voto secreto e a criação da Justiça eleitoral.
63
Os primeiros países a concederem esse direito foram a Nova Zelândia, em 1893 e Finlândia em 1906,
seguido por Inglaterra em 1918, EUA em 1920. O Equador foi o primeiro país latino-americano a permitir
que suas cidadãs votassem, em 1929. Os últimos países a aprovar o sufrágio feminino foram África do Sul
em 1993 e Arábia Saudita em 2011.
64
Texto contido no artigo 2º do Decreto.
65
A saber: pretendia estabelecer o voto às mulheres casadas com autorização do marido e às solteiras ou
viúvas que tivessem renda própria.
433
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
66
KARAWEJCZYK, Mônica. A mulher deve votar?O código eleitoral de 1932 e a conquista do voto
feminino através das páginas dos jornais Correio da Manhã e A Noite. p.225
67
Carlota foi eleita com 176 mil votos no Estado de São Paulo. Foi a primeira mulher constituinte a assinar
uma Constituição (a de 1934). Bertha Lutz, representando a Liga Eleitoral Independente, instituição criada
por ela e ligada ao movimento feminista, conquistou a primeira suplência, tomando posse em 1936, em
consequência da morte do deputado constituinte Cândido Pessoa. Fonte: www.tre-rs.jusbrasil.com.br
68
Quatro décadas depois, em 1978, Eunice Mafalda Michilles foi eleita suplente do senador João Bosco
Ramos de Lima, porém em Maio de 1979 com o falecimento de João Bosco assumiu a vaga aberta no
Senado, tornando-se assim a primeira senadora do país.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
certamente muito contribuiu para seu sucesso nas urnas aos 48 anos. Além dos trabalhos
voltados para a assistência aos menos favorecidos, principalmente para crianças e
mulheres, Maria de Miranda Leão era participante ativa do Movimento sufragista, sendo
membro da Federação Feminista Amazonense e uma das fundadoras da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino. Segundo análise de Maria das Graças Costa, os
pronunciamentos da Mãezinha no legislativo estavam voltados principalmente em defesa
da Igreja Católica, pela valorização da mulher amazonense, pela inclusão do ensino
religioso nas escolas69 e contra aquilo que ela considerava como a maior ameaça ao
Brasil: o comunismo. A autora sugere ainda que a deputada era vítima de preconceito
tanto por parte dos colegas de Plenário, a quem deveria incomodar pelos seu pioneirismo,
como também por parte da imprensa da época que sempre noticiavam seu desempenho
na Assembléia de forma jocosa, destacando o a suposta fragilidade feminina: “a casa, que
estava acostumada ao cachoeirar das vozes masculinas, precisava ser benevolente para se
aperceber do sussurro da voz feminina”70. Mesmo assim, a autora reitera que,
69
COSTA, Maria das Graças Pinheiro da. O Direito à educação no Amazonas (1933-1935). Tese de
Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 216
70
O Jornal. Manaus, 27/02/1935. In: COSTA, Maria das Graças Pinheiro da. O Direito à educação no
Amazonas (1933-1935). p. 216
71
COSTA, Maria das Graças Pinheiro da. O Direito à educação no Amazonas (1933-1935). p.216
435
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Imagem 2
72
. Disponível em www.tse.jus.br. Acesso em 28/12/19.
73
Seminário “Elas por elas”, Brasília, 2018. Disponível em www.tse.jus.br/imprensa. Acessado em
22/08/19
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.al9.p.439.456
Resumo
Em abril de 1845, Alexandrina Francisca da Trindade deu entrada em duas ações de
liberdade no Juízo Municipal da cidade de Belém, capital do Grão-Pará: a primeira em
favor de seu filho Prudêncio, e a segunda em conjunto com sua mãe, Francisca da
Trindade, e irmã, Carolina Maria do Rozário. Analisando os autos cíveis de liberdade, é
possível perceber que Alexandrina buscava, além das liberdades, uma “cor” para si, na
medida em que foi classificada de diferentes formas nas fontes, tais como “mulata”,
“parda liberta” e “parda”. Este artigo analisa as agências de Alexandrina em sua vontade
de ocupar um novo lugar dentro da hierarquia social da escravidão e da mestiçagem,
enquanto uma mulher liberta e parda, a luz dos termos de classificação de cor em voga
nos séculos XVIII e XIX e da historiografia sobre a mestiçagem.
Palavras-chave: Escravidão; Mestiçagem; Ação cível de liberdade.
Abstract
In April 1845, Alexandrina Francisca da Trindade checked two actions of freedom in the
Municipal Court of Belém, capital of Grão-Pará: the first in favor of her son Prudêncio,
and the second together with her mother, Francisca da Trindade, and sister, Carolina
Maria do Rozário. Analying the civil liberties, it is possible to perceive that Alexandrina
sought, in addition to freedoms, a “color” for herself, according as she was classified in
different ways in the sources, such as “mulatto”, “freed parda” and “parda”. This article
analyzes Alexandrina's agencies in their desire to occupy a new place within the social
hierarchy of slavery and mestizaje, while a woman freed and pard, in the light of the color
classification terms in vogue in the 18th and 19th centuries and historiography on
mestizaje.
1
Doutora em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da
Amazônia, da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]
439
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2
Centro de Memória da Amazônia (CMA), Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862,
Ações Cíveis de Liberdade, Autos Cíveis de Liberdade em que é Suplicante o mulatinho Prudêncio, filho
da mulata Alexandrina Francisca da Trindade, 1845.
3
A utilização da categoria “cor” neste caso, se relaciona com o fato de ter sido utilizado, desde os primeiros
tempos da colonização portuguesa em diante, como um marcador de distinção social, de acordo com
Eduardo França Paiva: “[...] o uso dessa categoria, não apenas coloriu aquele universo, mas serviu de
marcador social de distinção, de vivência, de convivência e de mobilidade”. E Alexandrina buscava essa
distinção na sociedade belenense do oitocentos, quando manejava os termos de classificação “parda” e
“parda liberta” nos autos cíveis de liberdade ora analisados. In: PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao
novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as
dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese (Professor Titular em História do Brasil) –
Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, 286 f., p. 166.
440
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
esteve envolvida com sua mãe e irmã, tais como “parda liberta”, “mulata” e “parda”. Na
hierarquia da escravidão e da mestiçagem, os termos de cor traziam em seu bojo o lugar
dos indivíduos na sociedade e a abertura (ou não) para a mobilidade social. E Alexandrina
parecia saber disso.4
Diz a parda liberta Alexandrina Francisca da Trindade que seu finado Benfeitor
o Capitão Jacinto José Monteiro deu liberdade ao filho da Suplicante por nome
Prudêncio, como se vê do documento junto, extrahido do Livro de Baptizados
da Matriz da Igreja Santa Anna desta Cidade baptismo que teve lugar aos onze
de julho de 1835 [...].5
4
Silvia Hunold Lara analisando processos judiciais de injúria envolvendo sujeitos negros, livres e libertos,
e a utilização de termos de classificação de cor como forma de desqualificação e rebaixamento social,
afirma que estes grupos eram atentos as formas como eram considerados, em busca de manter o
“reconhecimento social”: “Para manter o reconhecimento social arduamente conquistado, não podiam
deixar que fossem chamados de qualquer modo. Ainda mais quando o ‘acidente de cor’ podia ser usado
para desqualificá-los. Talvez, por isso, precisassem ser tão ciosos dos qualificativos com que eram
tratados.” In: LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 139.
5
CMA, Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862, Ações Cíveis de Liberdade, Autos Cíveis
de Liberdade em que é Suplicante o mulatinho Prudêncio, filho da mulata Alexandrina Francisca da
Trindade, 1845, p. 2.
6
CMA, Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862, Ações Cíveis de Liberdade, Autos Cíveis
de Liberdade em que é Suplicante o mulatinho Prudêncio, filho da mulata Alexandrina Francisca da
Trindade, 1845, p. 5.
441
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7
CMA, Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862. Ações Cíveis de Liberdade, Autos Cíveis
de Liberdade em que são suplicantes Francisca Trindade, suas filhas Alexandrina Francisca da Trindade e
Carolina Maria do Rozario, 1845.
8
“[...] a rationalistic, ‘scientific’ desire to bring a sense of order and logic into what appears [...] to have
been [...] disorderly world of subjective descriptions of color and other phenotypical characteristics”.
FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black
Peoples. Chicago: University of Illinois Press, 2ª Edição, 1993, p. 103.
9
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v., volume 6, p. 628. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/preto Acesso em 20 de novembro de 2017.
10
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos
até agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE
MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 326. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/preto Acesso em 20 de novembro de 2017.
442
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
11
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural
da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832, página não identificada. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/3/preto Acesso em 20 de novembro de 2017.
443
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meninos Antonio, de cinco anos de idade, e Angelo, de um ano e meio, ambos filhos da
“preta criola” Maria.12 O garoto Maximo da Conceição, “mulatinho” de doze anos, era
filho da “mulata” Anna Catharina. O pequeno Luiz, de apenas um mês e meio, filho da
“criola” Maria da Conceição;13 e ainda Ignacio, de um ano de meio, filho da “cafuza”
Bernardina, ambos eram “mulatinhos”.14 Por fim, Francisca da Conceição, de três anos
“pouco mais ou menos”, filha da “preta” africana Maria de nação “Megicongo”, mas
também Maria, de três anos, filha da “mulata” Claudia, cada uma foi classificada como
“mulatinha”.15
Como pode ser observada, a ascendência materna de um indivíduo escravizado e
classificado como “mulato” ou “mulata”, nos casos acima, além de suas variantes
“mulatinho” e “mulatinha”, era bastante distinta, sendo originado de mulheres
classificadas como “preta”, “preta criola”, “criola”, “mulata” e “cafuza”, de acordo com
o vocabulário da época.
Nesses casos, como a ascendência paterna era desconhecida, seria possível
pressupor que os pais eram indivíduos brancos e daí surgiram os “mulatinhos” e
“mulatinhas” acima citados, isto de acordo com a definição de Bluteau e dos demais
intelectuais citados anteriormente. Mas da relação entre indivíduos negros também
nasceram mulatos. Os cativos Miguel e Theotonia, ela “criola”, ele “preto” de nação
Benguela, eram os pais de Ricardo, classificado como “mulatinho”, com seis anos de
idade.16 Já Sabino, de seis anos, registrado também “mulatinho”, era filho de pai e mãe
“criolos”, os cativos Izidoro e Custodia.17
Jack D. Forbes apresenta em seu estudo sobre a historicidade dos termos de
classificação de cor no contexto do colonialismo e da escravidão nas Américas, derivados
do processo de mestiçagem envolvendo africanos e indígenas (ou native americans),
principalmente, duas teorias que deram origem ao termo “mulato”.18
12
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Órfãos da Capital, inventário de João Português
de Oliva, 1810.
13
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Fora e de Órfãos, inventário de João
Chrizostomo da Costa, 1812.
14
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Órfãos da Capital, inventário de Joanna
Antonia, 1815.
15
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Órfãos da Capital, inventário do Tenente
Coronel Joaquim Pedro Borralho, 1817.
16
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Órfãos da Capital, inventário do Tenente
Coronel Joaquim Pedro Borralho, 1817.
17
APEP, Judiciário, Autos de Inventário e Partilha. Juízo de Órfãos da Capital, inventário do Tenente
Coronel Joaquim Pedro Borralho, 1817.
18
FORBES, op. cit., 1993.
444
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A primeira é a que sugere que “mulato” tem origem da palavra “mulo”, como visto
anteriormente em Bluteau. No entanto, a primeira referência real da teoria de que o termo
“mulato” aplicado a humanos deriva de “mulo” está presente na cultura ibérica desde o
dicionário castelhano de Sebastián Covarrubias, do ano de 1611, quando comparou o
hibridismo animal com os descendentes híbridos da relação entre brancos e negros:
Ao mesmo tempo que aponta sua origem e aplicação, o autor aponta dois
problemas com esta tese. O primeiro tem relação com o uso do termo mulato, pois afinal,
se mulato derivou de “mulo” porque utilizar o termo mulato e não mulo, já que mulo já
equivale a híbrido?! O segundo problema é de ordem contextual. Quando se fala de
mulato nos séculos XVI e XVII não se trata de um termo que se refere principalmente a
mistura racial, mas também “para a mistura de selvagem e manso, cidadão e estranho, e
assim por diante”.20 Dessa forma, de acordo com Forbes “não devemos esperar que o
filho de um preto e um branco, ambos nascidos na mesma aldeia, sejam chamados de
híbrido”.21 O híbrido seria, portanto, o filho “de um negro ‘selvagem’ da África e um
negro nascido localmente”.22 Para o século XVIII, com o racismo, houve uma prevalência
da aparência física sobre a linguagem, cultura e religião.23
A segunda teoria aponta que a origem de “mulato” tem relação com a palavra
árabe muwallad e seus derivados ibéricos muladí (forma espanhola) e malado (forma
portuguesa) cujos significados remontam aos séculos IX e X, referindo-se a muitos
cristãos que se converteram ao islamismo (muwallad); ou para designar os indígenas da
19
“Covarrubias states ‘mulato = he who is the child of a negra, and of a white man, or the reverse = and for
being an extraordinary mixture they compare it to the origin of the mule.’ He also refers to the mulo as ‘a
know bastard animal’ and to muleto as a small or young mule.” In: FORBES, Jack D. Africans and Native
Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black Peoples, p. 132.
20
“[...] in the sixteenth and seventeenth centuries did not point primarily towards racial mixture but towards
the mixture of wild and tame, citizen and stranger, and so on.” In: FORBES, Jack D. Africans and Native
Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black Peoples, p. 139.
21
“This being the case, we should not expect the child of a black and a white, both born in the same village,
to be called a hybrid.” In: FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and
the evolution of Red-Black Peoples, p. 139.
22
“We should expect instead to find a child of a 'wild' black from Africa and a black native-born resident
to the hybrid.” Id., 139.
23
“Clearly this argument might not be valid in the eighteenth century, after racism led to greater stress
being placed upon physical appearance rather than upon language, culture and religion.” In: FORBES, Jack
D. Africans and Native Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black Peoples, p. 139.
445
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24
FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black
Peoples, p. 142.
25
“[…] ‘Mulato de … mowallad wich designates ‘one who is born an Arab father and the foreign mother.’”
In: FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and the evolution of Red-
Black Peoples, p. 144.
26
Analisa o caso de uma escrava chamada Maria, das Ilhas Canárias, que foi classificada como “morisca
mulata” em 1558, quando o termo mulato, portanto, tornou-se popular como um termo de cor. In: FORBES,
Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and the evolution of Red-Black Peoples, p.
148-150.
27
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2007.
446
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28
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa, p. 57.
29
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 141.
30
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ..., p. 265.
31
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos
até agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE
MORAES SILVA, p. 398.
32
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural
da Provincia de Goyaz, p. 98.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
33
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa, p. 83.
34
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836.
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Volume 12, número 1, jan./jun. 2020.
Declaro que sou senhor e possuidor de hum Escravo pardo por nome Pedro ...,
oficial de Barbeiro, o qual deixo a minha Comadre Bazilia Magna do Carmo
para a servir quatro annos, findo os quais lhe dará a sua Carta de Alforria, e no
cazo que aconteça ella falecer antes desse tempo que deve ser contado desde o
dia de meu falecimento, seja logo livre e isento do Cativeiro como se nascido
fora de ventre livre.35
35
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836,
p. 4.
36
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836,
p. 4.
37
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836,
p. 5.
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nova com frente para a rua da Olaria”, propriedade de terra que mais tarde, em inventário,
fora avaliada em 36 mil réis.38
Além de ser filho de uma mulher “crioula”, a qual muito provavelmente fora uma
escravizada, Elias mantinha relações muito próximas com pessoas negras, que haviam
saído da escravidão ou estavam dentro dela ainda, estabelecendo vínculos de confiança
construídos por meio de trabalho e prestação de serviços, como foram os casos de Antonio
Manoel dos Santos, “homem preto”, um “criado” que lhe prestava serviços e que foi
escolhido como um de seus universais herdeiros; e do “crioulinho” Bento, que vivia na
casa da comadre Bazilia e que lhe fazia muitos favores e recebeu vinte mil réis; e,
finalmente, o escravo “pardo” Pedro, único cativo sobre sua posse, a quem deixou a
própria liberdade, apesar da condição imposta.
Com outras pessoas estabeleceu vínculos de maior intimidade, talvez sexual e/ou
amoroso, como foi o caso da “parda liberta” Francisca, deixando inclusive uma esmola
na forma de uma propriedade de terra para o filho dela, Elias, o qual recebeu o mesmo
nome do dito padrinho.
Talvez essa solidariedade manifesta por Elias Caetano do Carmo, por meio de
doação de “esmolas” e concessão de liberdade a este grupo de pessoas de seu convívio
social, tenha alguma ligação com a própria relação que Elias manteve com sua senhora
no tempo do cativeiro e que possa ter garantido a ele a própria liberdade e algum legado
por meio do qual passou a viver no pós-escravidão, quando tornou-se proprietário de um
escravizado, de imóveis, como os dois quartos de casas localizadas na rua Água das
Flores, números 28 e 29, avaliados em 550 mil réis cada um e terras como os dois
“Chãos”, um na estrada da Olaria, e outro na rua de Santo Amaro, este avaliado em 40
mil réis.
A provável senhora de Elias no tempo do cativeiro do mesmo, Dona Clara Maria
do Rozario, na ocasião da produção do testamento dele, já havia falecido e Elias Caetano
encomendou uma capela de missas por sua alma, fato que se pode considerar bastante
emblemático sobre a relação entre ambos, além de ainda chamá-la de “minha Senhora”
na redação do testamento:
38
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836,
p. 5.
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Para João José Reis, o oferecimento de missas para antigos proprietários, “a quem
chamavam patronos”, e o cumprimento disso, perpassava pela lógica paternalista
característica da relação senhor-escravo, que impunha uma sujeição e/ou reconhecimento
de seu ex-senhor mesmo quando já na condição de liberto: “[...] refletia um compromisso
ideológico com o paternalismo senhorial e com novas regras (católicas) de descendência,
impostas pela escravidão [...]”.40
Uma questão envolvida e que pode explicar a preocupação de Elias Caetano pela
alma de sua ex-proprietária, já falecida, tem relação com o destino da alma após a morte
e a crença no purgatório, tanto por parte dos senhores que obrigavam os cativos no
cumprimento de suas vontades, neste sentido, funcionando até mesmo como uma cláusula
testamental que condicionava a confirmação da liberdade; quanto dos próprios libertos
que não se omitiam quanto a esta obrigação, com medo da alma ir parar no purgatório,
estando, portanto, a vontade senhorial expressa em seus testamentos, como foi o caso de
Elias Caetano do Carmo.41
Tendo acumulado bens móveis, imóveis e se tornado proprietário de pelo menos
um cativo no pós-escravidão, Elias Caetano procurou garantir aos seus herdeiros e
legatários alguma condição de sobrevivência, especialmente para aqueles que sairiam do
cativeiro, como o próprio Pedro que, conhecendo o ofício de barbeiro, poderia prestar
esse serviço e garantir rendimentos para si. Além do fato de ter sido classificado como
“pardo”, acredito que pelo próprio senhor, pois este deveria saber sobre os obstáculos
sociais e econômicos enfrentados por um indivíduo recém-saído da escravidão e a
classificação recebida por Pedro, de certa maneira, poderia diminuir as barreiras sociais
impostas pela cor da pele. Afinal o próprio Elias Caetano já não tinha cor nenhuma nos
documentos que registraram os indícios de sua vida, tanto no testamento quanto no
próprio inventário, sinal de que talvez tivesse sido “branqueado” no pós-escravidão.
Estudando a segunda metade do século XIX, a historiadora Hebe de Mattos afirma
que a experiência de liberdade para forros e a de “viver sobre si” para escravizados no
39
CMA, Cartório Odon (2ª vara cível), 225.698.759.731-170. Inventário de Elias Caetano do Carmo, 1836,
p. 5.
40
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 263.
41
FURTADO, Júnia Ferreira. A morte como testemunho da vida. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA,
Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, pp. 93-118.
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Por tanto, deferindo a petição a folhas 2 feita pela requerente hei por liberto
seu mencionado filho Prudêncio e no pleno gozo de sua liberdade. Mando se
lhe dê Carta de Manumissão para seu titulo, e pague as custas. 44
Na ação cível de liberdade movida em conjunto com sua mãe e irmã, Alexandrina
também teve ganho de causa, tornando-se então libertas as três mulheres. Da mesma
forma como sucedeu com a ação do menino Prudêncio, esgotaram todas as possibilidades
de impedimentos a confirmação da liberdade, apresentando documentos que
comprovavam que a liberdade havia sido concedida pelos senhores das três mulheres,
Jacinto José Monteiro e sua primeira esposa, D. Catharina de Melo Monteiro, com a
condição de:
[...] ficarem obrigadas a lhes servir a eles outorgantes em tudo, e não poderem
sahir de sua companhia sem que falescessem, e nem darem lhes disgosto sob
pena de anularem a Carta de liberdade [...].
Assim como comprovavam que ambos já haviam falecido, não havendo, portanto,
nenhum outro impedimento legal a liberdade delas:
[...] deferindo seu requerimento a folhas 2 hei por libertas as mencionadas
requerentes Francisca da Trindade, Alexandrina Francisca da Trindade e
Carolina Maria do Rozario, para que gozem plenamente de sua liberdade sem
outro ônus, ou restrição mais a que a legal a que estão todos geralmente
42
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2013, edição revista, p.
60.
43
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio, p. 42.
44
CMA, Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862, Ações Cíveis de Liberdade, Autos
Cíveis de Liberdade em que é Suplicante o mulatinho Prudêncio, filho da mulata Alexandrina Francisca da
Trindade, 1845, p. 9.
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O ganho de causa nas duas ações teve relação com legislações em vigor, as quais
tratavam sobre questões envolvendo o alcance e/ou a manutenção da liberdade. A
historiadora Keila Grinberg, ao analisar os processos cíveis relativos à liberdade que
subiram à Corte de Apelação do Rio de Janeiro, entre 1808 a 1888, identificou quatro leis
que foram citadas nas ações de reescravização pelas duas partes envolvidas nestes tipos
de processos. A saber: o artigo 179 da Constituição Imperial que tratava da
inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos: liberdade, segurança e
propriedade; a lei de liberdade indígena de 06 de junho de 1755; e dois títulos das
Ordenações Filipinas, ambos do livro 4, o título 63 que tratava sobre revogação da
alforria; e o título 11, parágrafo 4 que dizia que “São maiores as razões a favor da
liberdade...”.46
Apesar de nas duas ações movidas por Alexandrina não aparecer referências a
qualquer uma destas leis indicadas, o que parece ter sido mais comum nos processos de
reescravização identificados por Grinberg, acredito que foi com base na documentação
anexada aos autos cíveis e pela própria atitude de Alexandrina, que ela conseguiu ter a
sua liberdade confirmada. Ao não dar “disgotos” aos seus senhores em vida, e recorrer à
justiça em duas ocasiões em busca de liberdade, quando, pelo contrário, poderia ter
acessado a liberdade praticando uma fuga ou ter recorrido a outras formas de resistência
a escravidão, como ter participado do movimento social da Cabanagem, deflagrado em
1835, mesmo ano em que Alexandrina batizava seu filho na igreja de Santana.
O argumento do título 11, parágrafo 4, das Ordenações Filipinas, portanto, que
dizia que “São maiores as razões a favor da liberdade...” ou, como argumentavam os
curadores na Corte de Apelação do Rio de Janeiro, “em favor da liberdade são muitas as
coisas outorgadas contra as regras gerais”, parecia estar intrínseco nas duas ações cíveis
de liberdade.47
⁎⁎⁎
45
CMA, Índice da 14ª Vara Cível (Cartório Sarmento), 1833-1862. Ações Cíveis de Liberdade, Autos
Cíveis de Liberdade em que são suplicantes Francisca Trindade, suas filhas Alexandrina Francisca da
Trindade e Carolina Maria do Rozario, 1845, p. 12.
46
GRINBERG, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil. In: LARA, Silvia Hunold &
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, pp. 101-128, p. 109.
47
GRINBERG, Keila. Reescravização, Direitos e Justiças no Brasil. In: LARA, Silvia Hunold &
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social, p. 109.
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Referências Bibliográficas
FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The language of Race and the
evolution of Red-Black Peoples. Chicago: University of Illinois Press, 2ª Edição, 1993,
p. 103.
FURTADO, Júnia Ferreira. A morte como testemunho da vida. In: PINSKY, Carla
Bassanezi & LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009, pp. 93-118.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2013,
edição revista, p. 60.
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas
portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o
mundo do trabalho). Tese (Professor Titular em História do Brasil) – Universidade
Federal de Minas Gerais, 2012, 286 f., p. 166.
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da
Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832, página
não identificada. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/3/preto
Acesso em 20 de novembro de 2017.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 263.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.res.p.457.463
A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas.
Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização
de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates
públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é
preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública
(policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes
penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos
das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas
políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo
presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente,
disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é
uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o
mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um
trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.
É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos
de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore,
na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do
Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo
presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no
1
Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de
Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate
público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: [email protected]
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delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre
a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da
elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia
de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a
discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os
limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia
reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação
coletiva” (p. 54).
Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz
Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da
comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta
pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação
fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos
conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta,
muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida
(EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a
apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu
trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos
problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a
imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.
Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando
representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências
em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz
uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas
pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação
à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-
se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do
passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos
temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma
alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de
gerações anteriores.
O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a
formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar.
Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste
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Referências Bibliográficas
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz,
2016. (Coleção Ideias).
TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation
David Broder. New York/London: Verso., 2019.
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DOI: https://doi.org/10.38047/rct.v12.n01.2020.ent.p.464.467
*
Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela Universidade de São
Paulo (USP). Pesquisadora do Labhoi/UFF e uma das coordenadoras do projeto História Oral na Pandemia.
1
Projeto “A COVID-19 no Brasil: Análise e resposta aos impactos sociais da pandemia entre profissionais
de saúde e população em isolamento” (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações / MCTIC –
Coordenação-Geral de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas: UFRGS; Fiocruz Minas).
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“Triste nesse período é não saber o que nos espera. Como será o dia seguinte?”
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uma festinha para receber os amigos. Brindamos, nos abraçamos, mas a partir desse dia
eu não vi mais ninguém. Não vi mais meus filhos, netas e nora. Assim achei melhor para
minha segurança. Faço tudo em casa, cozinho e faço compras uma vez por semana no
comércio local que fica pertinho de casa. Tomo todos os cuidados.
Durante esses dias da pandemia tenho me sentido bem de saúde. Mas vivo
preocupada, me observando, para ter a certeza de que estou bem mesmo... E que não sinto
nada fora do normal. Nenhum sintoma! O dia mais triste foi o dia das mães... Eu não pude
abraçar os meus filhos! Fiquei sem internet e isso me impediu de ver mais tarde a live que
minha nora e meu filho iriam fazer. Mas, no final, deu tudo certo. Eles cantaram uma
música de autoria dele em minha homenagem. Eu me emocionei muito! Não esquecerei
mais esse dia.
Tenho motivos de preocupação, sim! Muitas vezes me sinto impotente e até me
revolto com notícias que vejo na tv. Falta de honestidade, desumanidade,
irresponsabilidade. Porém, não me deixo abalar não! Sou espírita e me apego ao estudo
da doutrina e das orações. Procuro preencher meu tempo com atividades físicas,
meditação, pintura e os cuidados com a casa.
Sou professora de artes aposentada por invalidez porque tive um câncer de mama
há quatro anos. Preciso, uma vez por mês, ir à ONCORIO para acompanhamento. Faço
tratamento com uma injeção de hormônio e, por isso, tive que ir ao Rio fazer alguns
exames. Eu me senti muito insegura; por ter que me expor a riscos.
Sou aluna da formação de bonança e, com isso, compreendi melhor a vida e o que
vem acontecendo comigo e com todos. Busco me orientar em meio à pandemia, e busco
os melhores aprendizados para que, quando tudo tiver passado, poder acompanhar as
mudanças.
Triste nesse período é não saber o que nos espera. Como será o dia seguinte? E o
futuro? O que irá acontecer? Principalmente por não termos segurança por parte dos
governos. O que mais me incomoda, e é muito revoltante até, é ver o número de pessoas
que morrem por irresponsabilidade dos gestores. Somos marionetes em suas mãos.
Tenho o suficiente para viver, mas quando penso nos menos favorecidos, me dá
muita pena por não poder ajudá-los! Sou grupo de risco e não poderia atuar tão próximo.
E, financeiramente, não tenho condições nesse momento... Espero que não falte nada pra
mim mais lá na frente, pois sei que o país está vivendo momentos difíceis devido à
corrupção que aqui se instalou e se perpetua. Temos que aprender com tudo isso.
Tive que conter minha ansiedade... Pra que a pressa? Agora, tenho todo o tempo do
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mundo! Posso fazer tudo o que eu desejar! Se não fizer num dia, faço no outro. E vamos
vivendo um dia de cada vez. Tudo vai passar.
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