Praticas Discursivas Furlameto
Praticas Discursivas Furlameto
Praticas Discursivas Furlameto
Resumo: Apresento, neste texto, algumas considerações sobre desafios da Linguística Aplicada rela-
tivamente à pedagogia de línguas, abordando a noção de prática discursiva. Exponho algumas noções
relevantes para o contexto de ensino: o texto como unidade de análise, materializando discursos através
de gêneros específicos, abarcando o horizonte social e integrando outras formas de linguagem, em
sua relação com a produção e a interpretação. Discuto ainda as noções de estrutura e acontecimento
associadas à produção textual, e apresento uma proposta de desenvolvimento pedagógico do processo
de autoria, através de uma abordagem centralizando o jogo entre repetição (paráfrase) e alteração
(polissemia), conforme proposta de Orlandi no campo da Análise de Discurso.
Palavras-chave: Língua portuguesa. Práticas discursivas. Autoria.
Abstract: This paper presents some considerations about the challenges to Applied Linguistics in
relation to language teaching through the notion of discursive practice. Some important notions for
the teaching context are presented, for example: the text as a unit of analysis, the materialization of
discourses through specific genres, the consideration of the social horizon and the integration of other
language forms, in their relationship with production and interpretation. In addition, there is a discussion
about the notions of structure and event associated to textual production, and a proposal of pedagogical
development of authorship, through an approach that considers the movement between repetition
(paraphrase) and alteration (polysemy), as proposed by Orlandi in the field of Discourse Analysis.
Keywords: Portuguese language. Discursive practices. Authorship.
Introdução
*
Este trabalho corresponde a uma palestra proferida durante o III Simpósio Internacional e VI Fórum
Nacional de Educação, realizado em 2009 na ULBRA-Torres.
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Professora Doutora da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). <[email protected]>
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Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/>.
1. Língua-estrutura e língua-acontecimento
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Apesar de o termo “intenção” parecer pressupor uma subjetividade consciente, entendo-o mais espe-
cificamente como direcionamento na comunicação discursiva, que pode não ser bem-sucedida porque
depende da intersubjetividade, regulada pelos constrangimentos socioideológicos.
aquilo que nele pode ser repetido e reproduzido. É nesse caso que se diz que
o texto é usado como pretexto para ensinar vocabulário, classes de palavras,
estrutura sintática, concordância, regência...
Isso não significa, contudo, que não se deva fazer análise linguística
do texto. A língua oferece, de fato, as possibilidades para a construção de
enunciados reais. Na metodologia do estudo dos gêneros, considerando-se
a abordagem pedagógica, essa dupla visão do texto ajuda a propor focos de
análise, mas é importante que se parta da dimensão sociocultural (comunicação
discursiva nas esferas de uso, com suas situações particulares e interlocutores)
para chegar até o nível dos recursos linguísticos utilizados na produção, e em
função dos próprios gêneros.
Encarado como enunciado – como acontecimento discursivo – o
texto abarca o horizonte social, integrando outras formas de linguagem (a
imagem, o som, o gesto). Como unidade complexa, pode ser apresentado
sob vários ângulos: é uma unidade de sentido, com tema específico; é objeto
linguístico, histórico e ideológico; tem autor; relaciona-se com outros textos
e com a memória dos discursos sociais; é produzido numa forma de gênero,
correspondente ao espaço onde se origina: relatório, ofício, artigo de opinião,
artigo científico, resenha, notícia, receita, bula, piada, e todas as formas mais
ou menos conhecidas de produção textual.
Os gêneros, em suas formas concretas textuais, com certo acabamento
(a unidade textual, a coesão de seus elementos, sua coerência semântica, dando-
-lhe um tema) emergem, circulam e produzem seus efeitos no tecido social.
Representam os valores sociais. Por isso, não é de estranhar que as ciências
da linguagem, sobretudo a Linguística Aplicada, se tenham empenhado em
compreender seu funcionamento, bem como em estabelecer metodologias para
desenvolver o trabalho pedagógico.
Pedagogicamente, essas duas dimensões do texto devem ser comple-
mentares. Nesse sentido, podemos nos guiar por uma ordem metodológica
sugerida por Bakhtin para o estudo dos gêneros, que especificarei a seguir.
um sujeito traz um ponto de vista sobre si, sobre os outros, sobre aspectos da
realidade, considerando-os bons ou maus, falsos ou verdadeiros, positivos ou
negativos. Ninguém tem índices de valor puramente pessoais: eles chegam a
uma consciência individual e se tornam, de certa forma, índices individuais
(por isso se diz que cada um tem a sua filosofia de vida, pensa de certa forma,
tem as suas opiniões); entretanto, “sua fonte não se encontra na consciência
individual. O índice de valor é por natureza interindividual” (BAKHTIN,
1979, p. 31, grifo do autor). Os valores, pelo menos parcialmente, estão inves-
tidos em grupos organizados (que criam valores comunitários); esses grupos,
certamente, contestam não raramente valores oficiais – no sentido do poder
de legislar, de dominar, de pressionar institucionalmente (o que poderia ser
chamado de “ideologia oficial”). Bakhtin/Voloshinov (1979, p. 33) expressa
que uma ideologia oficial “tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio ante-
rior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem
como sendo válida hoje em dia”. Essa é uma forma de supervalorizar o que
se chama tradição.
Isso também é visível no contexto escolar, que em última análise está
sujeito a um poder centralizador que pode produzir pressão ou, de outro lado,
abertura. E nenhuma ordem metodológica pode dizer-se isenta da possibili-
dade de levar a problemas e de ser contestada e modificada ou substituída. As
questões são mais sensíveis no ambiente crucial da relação professor/alunos/
alunos – e as respostas podem ser encontradas mais facilmente se a cada um
se der voz, possibilidade de responder e de perguntar.
Por isso, Bakhtin (2003, p. 330) diz que, na relação criadora com o
que está dado (disponível na memória), no que produzimos “há vozes às vezes
infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes
lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam
concomitantemente”. Quer dizer: o mundo discursivo preexistente ressoa
em nossa produção, e fica disponível para sofrer algum tipo de remodelação.
A par das questões que dizem respeito ao dado e ao criado, convém
especificar que todas as formas enunciativas manifestam tanto forças cen-
trípetas (que levam à estabilidade) como forças centrífugas (que produzem
deslocamento e variação). Os gêneros, nesse quadro, aparecem como formas
relativamente estáveis e normativas, que servem como modelo de formulação
de textos, e como ponto de partida para remodelação, na dependência de cir-
cunstâncias interacionais. Dadas as circunstâncias, pode haver deslocamento
de temas (há temas abandonados, esquecidos, adormecidos), de estrutura
composicional e de estilo (possibilidades de uso dos recursos linguísticos).
Assim, as alterações que percebemos numa língua podem ser tratadas como
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O chamado internetês, por exemplo – jargão do português e de outras línguas –, que se verifica no
bate-papo virtual conhecido como chat e em outros gêneros típicos da Internet, pode se distanciar menos
ou mais da língua em uso formal: o uso dos recursos linguísticos manifesta um estilo especial, bem
mais fluido do que na escrita padrão.
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Bakhtin fez uma distinção teórica entre gêneros primários – mais simples, de caráter cotidiano – e
gêneros secundários – ocorrendo em organizações sociais mais ritualizadas, que utilizam comumente a
modalidade escrita da língua (comunidades científicas, religiosas, políticas, culturais).
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Bajard (2006, p. 502) diz: “Para nós, a leitura se vale de dois processos. O primeiro, esporádico, recorre
à decodificação para elucidar o material desconhecido. O outro, contínuo, trata ideograficamente o ma-
terial conhecido. O leitor experiente utiliza de maneira pontual a decodificação – que para ele também
permanece lenta – e de maneira corrente a leitura ideográfica – rápida, por ser visual.”
C
Autonomia autoral
O
N ITERAR Memória discursiva
T (paráfrase, repetição)
Querer-dizer R
O
L
E ALTERAR
(polissemia, Produção subjetiva
dispersão)
Considerações finais
No percurso feito neste trabalho, focalizei as práticas discursivas
em geral e em seguida canalizei a discussão para as práticas no âmbito da
instituição escolar, voltadas, na relação imediata professor/alunos/alunos,
para os objetivos do processo pedagógico. Para isso, mostrei o contraste entre
língua-estrutura e língua-acontecimento, duas dimensões para o tratamento do
enunciado (tal como considerado pelo Círculo de Bakhtin) em sua formulação
através dos gêneros do discurso. A partir daí, a unidade texto foi apresenta-
da em sua dimensão estrutural e em sua dimensão de acontecimento, como
enunciado que se origina em, circula em e sofre alterações nas comunidades
discursivas. Em seguida a essas noções, desenvolvi questões sobre as práticas
discursivas na escola, e tratei especificamente de um modo de desenvolver a
função subjetiva de autoria, como processo de aprendizado mediado.
Deve ter ficado claro que, na abordagem proposta, o trabalho pedagó-
gico estará centrado na caracterização dos gêneros como formas institucionais
que ocorrem nas comunidades discursivas vinculadas a esferas sociais variadas,
formas que são elaboradas materialmente com recursos de linguagem verbais
e não verbais disponíveis, e utilizadas tanto para as trocas cotidianas mais
simples (coloquiais) como para aquelas mais elaboradas (formais, ritualizadas).
Originados os gêneros nas esferas sociais, os textos que lhes correspondem
são, como acontecimento discursivo situado e datado, singulares:
[...] cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular,
e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi
criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade,
com a beleza, com a história. (BAKHTIN, 2003, p. 310).
estímulo para outra resposta); pode ser também atenção respeitosa em busca
de compreensão, também na leitura; e pode ser – o que estou enfatizando
aqui – a escuta do texto escrito do aluno no momento da aprendizagem e da
avaliação. Em trabalho anterior (FURLANETTO, 1997) focalizei esse tema
ao observar que, como professores, podemos ser tentados a “caçar erros”,
como se isso fosse um jogo. A função do olho que persegue erros de caráter
linguístico – os mais visíveis – acaba minimizando aspectos importantes da
produção escrita (atributos textuais), ou eles deixam de ser percebidos, não
pesando na avaliação. O fato de o texto escrito ser visualizado mostra nele,
primeiramente, a forma da letra, a distribuição dos parágrafos na página, a
pontuação. E nós o olhamos “como algo que deve conduzir-se segundo uma
estética” (FURLANETTO, 1997, p. 656-657).
Imaginei, então, que a escuta (como função dialógica) seria uma
estratégia para buscar equilíbrio entre a caça ao erro e a explicitação do que
vai bem na construção do texto. Sintetizei essa atitude com o “sermos menos
olhos e mais ouvidos” – o que levanta de imediato uma questão: como ouvir um
texto escrito? E respondo que o próprio aluno pode ler seu texto, ou um colega.
Essa estratégia ajuda-nos a “enxergar” além do que permite nossa percepção
gramatical, que costuma ser exacerbada: ajuda a perceber o desenvolvimento
do tema, a coerência, a expressividade (FURLANETTO, 1997, p. 661-662).
Observar um texto por esse ângulo faz aparecer diante de nós um
objeto novo, que nos obriga a atuar como interlocutores, exercitando a escuta
e eventualmente deslocando o juízo de valor. Por isso, vejo aí uma chave para
o ensino, sem com isto desejar anular ou minimizar a dimensão gramatical e
notacional do texto. Penso que é nossa opção: “[...] ou se trabalha por bons
textos, com tudo o que isso implica, ou se trabalha por boas amostras de gra-
maticalidade. Estas amostras, acrescento, não servem para interagir – ou seja,
não funcionam” (FURLANETTO, 1997, p. 662).
O que fazer para pelo menos abrir vias de acesso a experiências
semelhantes? Ocorre que somos participantes de um processo de ensino
que ainda tende à homogeneização: dos sujeitos, do saber, das atividades,
do discurso. Como já exposto, fazemos parte de uma instituição marcada
pela chamada “herança da cultura ocidental”, e como tal também tendemos
a ignorar o que é heterogêneo no ser humano e em sua produção discursiva
no meio social. Isso precisa ser questionado. Como tais valores são efeito da
dimensão ideológica que atravessa as práticas, isso orienta o comportamento
no sentido da homogeneização: o sujeito se submete a algo, a alguém, a
Referências
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n. 3, p. 493-507, set./dez. 2006.
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