Praticas Discursivas Furlameto

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.33i1.

0003 CDD 407

Ensino de língua portuguesa: focalizando


*
as práticas discursivas

Teaching portuguese language: focalizing


the discursive practices
**
Maria Marta Furlanetto

Resumo: Apresento, neste texto, algumas considerações sobre desafios da Linguística Aplicada rela-
tivamente à pedagogia de línguas, abordando a noção de prática discursiva. Exponho algumas noções
relevantes para o contexto de ensino: o texto como unidade de análise, materializando discursos através
de gêneros específicos, abarcando o horizonte social e integrando outras formas de linguagem, em
sua relação com a produção e a interpretação. Discuto ainda as noções de estrutura e acontecimento
associadas à produção textual, e apresento uma proposta de desenvolvimento pedagógico do processo
de autoria, através de uma abordagem centralizando o jogo entre repetição (paráfrase) e alteração
(polissemia), conforme proposta de Orlandi no campo da Análise de Discurso.
Palavras-chave: Língua portuguesa. Práticas discursivas. Autoria.
Abstract: This paper presents some considerations about the challenges to Applied Linguistics in
relation to language teaching through the notion of discursive practice. Some important notions for
the teaching context are presented, for example: the text as a unit of analysis, the materialization of
discourses through specific genres, the consideration of the social horizon and the integration of other
language forms, in their relationship with production and interpretation. In addition, there is a discussion
about the notions of structure and event associated to textual production, and a proposal of pedagogical
development of authorship, through an approach that considers the movement between repetition
(paraphrase) and alteration (polysemy), as proposed by Orlandi in the field of Discourse Analysis.
Keywords: Portuguese language. Discursive practices. Authorship.

Introdução

Vou partir de algumas questões e reflexões apresentadas num texto


que publiquei sob o título Práticas discursivas: desafio no ensino de língua

*
Este trabalho corresponde a uma palestra proferida durante o III Simpósio Internacional e VI Fórum
Nacional de Educação, realizado em 2009 na ULBRA-Torres.
**
Professora Doutora da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). <[email protected]>

Uniletras, Ponta Grossa, v. 33, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2011


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portuguesa (FURLANETTO, 2007), desenvolvendo o tema das práticas


discursivas em abordagens que privilegiam o caráter discursivo das relações
interpessoais, pensando especificamente nos desafios do ensino e da aprendi-
zagem no contexto escolar.
Atualmente, aqueles que trabalham no campo da Linguística Aplicada
se preocupam sobremaneira com a perspectiva sociointeracionista, com o inter-
câmbio intersubjetivo, tentando mostrar, teórica e pragmaticamente, que para
abordar as práticas com linguagem é necessário ultrapassar os pressupostos do
estudo abstrato da linguagem e, por consequência, o foco num sujeito abstrato
e homogêneo, visto como um “emissor” de informação.
Como o termo discurso tem não poucas acepções, e é construído
diferentemente nas teorias, cabe especificar que é entendido aqui – seguindo
a perspectiva de Maingueneau – como um modo específico de apreender a
linguagem, que considera constitutivo dele a relação verbal/institucional, só
adquirindo sentido no interior de um universo de outros discursos, ou seja, do
1
interdiscurso. Para estudar o discurso, então, precisamos ver os textos amar-
rados a um lugar social. Aí sempre haverá um sujeito que se expressa a partir
de uma posição social, e o faz através de textos que se conformam a gêneros.
Meu objetivo é apresentar alguns conceitos de abordagens em que
as práticas discursivas são focalizadas, tentando mostrar que se abrem pos-
sibilidades pedagógicas através desse conhecimento. Utilizarei, de modo
especial, princípios e pressupostos da teoria sociointeracionista desenvolvida
pelo Círculo de Bakhtin, associados àqueles da Análise de Discurso, em suas
aproximações.
São as condições de produção que determinam as relações discursivas
materializadas nas várias práticas sociais – que, linguisticamente, surgem atra-
vés de gêneros do discurso. As relações discursivas mostram o modo como os
fenômenos são olhados, interpretados e julgados, tendo como tela de fundo o
material discursivo que circula no meio social. As condições em que as formu-
lações discursivas aparecem determinam certos modos de composição, certos
temas e certos estilos (BAKHTIN, 1979, 2003). Assim, uma noção importante
é a de posição (social) detectada num campo discursivo.

1
Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/>.

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1. Língua-estrutura e língua-acontecimento

O trabalho pedagógico com gêneros do discurso supõe que não sejam


ignoradas essas duas dimensões do funcionamento da linguagem: o que se
pode chamar gramática em sentido amplo (incorporando formas linguísticas
e notações da escrita) e o discurso, que pressupõe eventos de linguagem, ou
seja, o uso em contextos específicos.
As manifestações discursivas têm sempre uma base linguística, mas
esta base, ainda que necessária, não é o discurso. A base linguística, organi-
zada através de gramáticas específicas das línguas, tais como as conhecemos,
compõe aquilo que chamamos língua-estrutura, conforme documento da
Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) – cuja elaboração acompanhei
como consultora. Entretanto, se a base pode ser descrita, não pode ser usada
enquanto tal. Seja, por exemplo, a sequência “Quero que vocês façam silêncio”.
Se isso for apenas um exemplo de sentença da língua portuguesa, pode-se
imaginar o quanto se pode dizer a respeito do ponto de vista gramatical (sobre
classe de palavras, padrão sintático, regência, concordância...).
Por outro lado, se eu me postar na frente de uma turma e disser, toman-
do certa atitude, usando certo tom de voz e de olhar, eventualmente fazendo
um gesto de aborrecimento, “Quero que vocês façam silêncio!”, temos aí um
evento de discurso, ou língua-acontecimento – como tratamos na Proposta
Curricular. É que, nesse momento específico, nessa situação em um contexto
social, há interlocutores (sujeitos de discurso), pessoas em interação que rea-
girão a esse “enunciado” (não simples sentença/oração). O evento discursivo
é cada vez único, e cada vez produz algum efeito de sentido. A reação nem
precisa ser verbal; afinal, no exemplo, o que se pediu foi silêncio. Por aí ve-
mos também o quanto importa no discurso a dimensão semântica. De fato, o
tempo todo nos sentimos pressionados a dar sentido ao discurso – a interpretar.
Para que se realizasse tal tipo de intervenção houve, certamente, o que
se chama “projeto do dizer” de um sujeito endereçado a outrem. Um projeto
(querer-dizer) implica um sujeito que está ocupando determinada posição num
espaço social – no exemplo, trata-se de aula em ambiente institucional. O que
se produz aí corresponde, em princípio, às expectativas, ou seja, ao que se
espera a partir dessa posição (no caso, um professor solicitando silêncio aos
alunos). O comportamento social e discursivo é regulado e, de modo geral, tem
regularidades que podem ser detectadas. Se isso ocorre, é porque há relações

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humanas. Assim, a noção de subjetividade se dá, efetivamente, como inter-


subjetividade. A alteridade é fundante das relações humanas, e está implicada
no princípio do dialogismo, conforme Bakhtin (1979, 2003). É aqui que faz
sentido evocar a noção fundamental de enunciado, no contexto da teoria de
Bakhtin. Farei isso através da abordagem do texto.

2. O texto: estrutura ou acontecimento?

O texto é, diz Bakhtin (2003, p. 308), a “realidade imediata” das


ciências ditas humanas (e isso inclui a musicologia e a teoria e história das
artes plásticas), e todo texto “tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem
escreve)”, bem como existem muitas modalidades de textos (textos como
modelos, textos imaginários, textos experimentais). Ele olha o texto, aqui,
como enunciado, ou seja, como material concreto em circulação no meio
social e produzindo seus efeitos em situações reais. Nessa perspectiva, o texto
é acontecimento da vida social.
O que determina o texto como enunciado é que, de um lado, há um
projeto discursivo, “sua ideia (intenção)”, e de outro “a realização dessa in-
2
tenção” (BAKHTIN, 2003, p. 308). É claro que existe a possibilidade de não
se efetivar a intenção inicial (querer-dizer), que também pode sofrer mudança
no seu processo, especialmente na interlocução oral. O que acarreta isso é seu
endereçamento ao sujeito destinatário – um texto não é produzido no ar. Por
sua vez, mesmo tratando-se de documento escrito, a interpretação pode alterar
de alguma forma o texto inicial, produzindo novo acontecimento na relação
dialógica. Como enunciado, cada texto é individual, único e singular, e é assim
que ele faz sentido – para isso ele foi produzido. Como unidade do mundo
da vida, um texto tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza,
com a história. Em relação a esse elemento, diz Bakhtin (2003, p. 309-310),
tudo o que é suscetível de repetição e reprodução vem a ser material e meio.
Entretanto, é possível – e talvez, quando se ensina, seja ainda a for-
ma mais usual – olhar um texto diretamente em sua constituição meramente
linguística, ou seja, em seu caráter de língua-estrutura, e então apenas aparece

2
Apesar de o termo “intenção” parecer pressupor uma subjetividade consciente, entendo-o mais espe-
cificamente como direcionamento na comunicação discursiva, que pode não ser bem-sucedida porque
depende da intersubjetividade, regulada pelos constrangimentos socioideológicos.

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aquilo que nele pode ser repetido e reproduzido. É nesse caso que se diz que
o texto é usado como pretexto para ensinar vocabulário, classes de palavras,
estrutura sintática, concordância, regência...
Isso não significa, contudo, que não se deva fazer análise linguística
do texto. A língua oferece, de fato, as possibilidades para a construção de
enunciados reais. Na metodologia do estudo dos gêneros, considerando-se
a abordagem pedagógica, essa dupla visão do texto ajuda a propor focos de
análise, mas é importante que se parta da dimensão sociocultural (comunicação
discursiva nas esferas de uso, com suas situações particulares e interlocutores)
para chegar até o nível dos recursos linguísticos utilizados na produção, e em
função dos próprios gêneros.
Encarado como enunciado – como acontecimento discursivo – o
texto abarca o horizonte social, integrando outras formas de linguagem (a
imagem, o som, o gesto). Como unidade complexa, pode ser apresentado
sob vários ângulos: é uma unidade de sentido, com tema específico; é objeto
linguístico, histórico e ideológico; tem autor; relaciona-se com outros textos
e com a memória dos discursos sociais; é produzido numa forma de gênero,
correspondente ao espaço onde se origina: relatório, ofício, artigo de opinião,
artigo científico, resenha, notícia, receita, bula, piada, e todas as formas mais
ou menos conhecidas de produção textual.
Os gêneros, em suas formas concretas textuais, com certo acabamento
(a unidade textual, a coesão de seus elementos, sua coerência semântica, dando-
-lhe um tema) emergem, circulam e produzem seus efeitos no tecido social.
Representam os valores sociais. Por isso, não é de estranhar que as ciências
da linguagem, sobretudo a Linguística Aplicada, se tenham empenhado em
compreender seu funcionamento, bem como em estabelecer metodologias para
desenvolver o trabalho pedagógico.
Pedagogicamente, essas duas dimensões do texto devem ser comple-
mentares. Nesse sentido, podemos nos guiar por uma ordem metodológica
sugerida por Bakhtin para o estudo dos gêneros, que especificarei a seguir.

3. Práticas discursivas na escola

O tratamento pedagógico dos conhecimentos (existentes e a construir)


é feito através de práticas específicas, de caráter institucional, e então é

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importante que se considerem teorias da aprendizagem. Aprendizagem presume


a existência de disciplinas, que são a forma de os saberes serem organizados,
compondo espaços que implicam procedimentos de controle e restrição dos
discursos – conforme explica Foucault (1996) em A ordem do discurso. Por
outro lado, aprendizagem presume processos complexos de mediação, de
orientação, de trabalho cooperativo, envolvendo a interação humana.
Uma prática discursiva pode referir-se de modo geral a qualquer
atividade discursiva, ou a uma prática específica. Muitas ciências do homem
estão envolvidas, hoje, com o conhecimento de como se processam as inte-
rações em suas áreas de interesse: a sociologia, a administração, o serviço
social, o direito... Afinal, trata-se de compreender melhor como se processa a
interlocução humana e o que ela diz acerca da compreensão do mundo e das
próprias relações humanas. Essas práticas estão associadas necessariamente
às comunidades discursivas onde elas ocorrem (considere-se, por exemplo,
a produção de trabalhos científicos, e sua subdivisão pelas inúmeras áreas de
estudo reconhecidas). Na instituição escola são práticas bem específicas: “dar”
aulas, preparar aulas, participar de conselhos de classe; fazer os “deveres”, bater
papo no recreio, “produzir textos” ou “redação”, ler (com vários objetivos),
produzir requerimentos, relatórios. O produto dessas práticas ora circula e se
conserva dentro de uma mesma instituição, ora circula em espaços bem mais
amplos – como trabalhos científicos, por exemplo, e aqueles que são produ-
zidos na área da comunicação social (jornalismo, publicidade). A circulação
deve ser ampla (em vários graus), e através de multimeios.
Ao considerar o universo escolar em todos os níveis, cabe-nos, como
pesquisadores e interessados, a preocupação de como os conhecimentos são
produzidos na academia (o meio científico, mas também magisterial) e como
eles serão selecionados e utilizados quando se trata da formação profissional.
Nessa esfera da vida humana, é comum a observação de que há um descom-
passo entre o desenvolvimento científico e o ensino, além de outro fenômeno
que tem sido visto como uma barreira à formação: a resistência histórica a
novas teorias, novos discursos, experiências novas. É nesse ponto que certo
pessimismo grassa: há pesquisadores que lembram – não sem razão – que a
herança da cultura ocidental tem um peso negativo relativamente aos novos
aportes das ciências. Na verdade, a própria tradição científica parece mascarar
a constituição heterogênea da subjetividade, impondo certos moldes ao próprio
saber que será “transmitido” no ambiente escolar.

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O esforço, atualmente bastante presente, de caráter institucional e


também individual, de revolver, rever e modificar tradicionais esquemas e
disciplinas a partir das bases que as sustentam, sofre a dificuldade de remover
tais esquemas e as percepções correspondentes por se terem tornado “naturais”
nesses espaços. Concebendo a ideologia como um mecanismo de naturalização
de objetos, valores e crenças no meio social (ORLANDI, 1999), fica extrema-
mente difícil e lento questionar e transformar o que quer que seja – começando
por nossa própria maneira de pensar. Todas as “iniciações” são difíceis, custosas
e parecem revolver em nosso íntimo algo assentado que era o norte de nossa
existência. A própria linguagem, que estabelece um mundo e a realidade que
conseguimos abarcar, deve sofrer modificação, porque uma a uma, palavras
e expressões estão impregnadas de ressonâncias que apreendemos em cada
troca. Esse é um motivo que fez com se tentasse substituir, no contexto da
escola, a palavra “redação” quando voltada para aquela atividade específica
e desagradável de fazer alguma coisa com começo, meio e fim, sem fugir do
tema e obedecendo às regras da norma prescritiva. A expressão sugerida foi
“produção de textos”, que devia supor uma compreensão nova da própria
textualidade, como tentei mostrar anteriormente.
Sabe-se, contudo, que a “redação” ainda é praticada, e às vezes até
mesmo sob a nova denominação, o que significa que ainda pesa a tradição
de escrever na instituição escolar segundo moldes mais antigos, em que a
preocupação maior é escrever corretamente segundo os princípios normativos
atados a certa concepção de gramática. Nesse caso, põe-se como secundário o
propósito de estabelecer a “comunicação discursiva” propriamente dita, que
se processa através de gêneros específicos. É verdade que esse procedimento
também aparece entrelaçado a um trabalho mais cuidadoso de promover a
metodologia que é recomendada nas propostas curriculares elaboradas no país.
É, de fato, muito complicado abandonar valores tradicionais. Ideologicamente
nosso comportamento tem sido orientado para que haja homogeneização, por
isso há pressão para que nos sujeitemos ao que se enraizou na sociedade. E
é preciso compreender como as instituições funcionam se quisermos realizar
esforços para transformar o que acreditamos que não está conduzindo aos
objetivos propostos.
É assim que, para refletir sobre linguagem e produzir aprendizado
na ordem escolar, tem sido adotada, nos documentos institucionais, uma
ordem metodológica baseada nos trabalhos do Círculo de Bakhtin, centrada
na concepção de gênero do discurso. Essa metodologia inverte o percurso do

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trabalho que se fixa nas formas e nas estruturas, apresentadas em metalinguagem


gramatical, e então principia com a dimensão social dos gêneros, buscando
entender qual seu sentido nas várias esferas sociais: onde aparecem, como são
produzidos, quem produz, para quem; que recursos linguísticos podem ser
utilizados e em que grau de formalização? Só no final é que se passa às formas
da língua na composição e organização do gênero, dando identidade a seu
estilo, e buscando compreender suas características gramaticais – em função
do todo que é o texto formulado para produzir interação entre os membros,
seja de uma comunidade estrita, seja de uma comunidade ampla.
Os textos assim produzidos são manifestações concretas das práticas
sociais com linguagem, que mostram maneiras específicas de conceber o
mundo e de estar nele, modos de relacionamento humano, e, portanto, valo-
res culturais. Os modos de organização social dos indivíduos e as condições
em que ocorrem as interações explicam, também, as formas de enunciação
produzidas no meio social. Os textos mostram a alteridade.
Quando nas linguagens, gírias e estilos começam a se fazer ouvir as
vozes, estas deixam de ser meios exponenciais de expressão e se tornam
expressão atual, realizada; a voz entrou nelas e passou a dominá-las.
Elas estão chamadas a desempenhar o seu papel único e singular na
comunicação discursiva (criadora). [...] A relação com o sentido é
sempre dialógica. A própria compreensão já é dialógica. (BAKHTIN,
2003, p. 327).

Quando Bakhtin/Voloshinov caracterizou a palavra (ou melhor, o


enunciado), atribuiu-lhe inicialmente um tema e uma significação. O tema
só é perceptível (compreensível) no todo do enunciado, produzindo um
efeito de sentido, em sua qualidade de acontecimento. A significação, por
sua vez, está integrada no tema, e não tem independência – ela se liga à base
linguística, e constitui a potencialidade para produzir sentido; em si mesma
não serve para a comunicação discursiva. Nesse contexto, a significação pode
ser buscada num dicionário ou numa gramática. Note-se, portanto, o papel
essencial da compreensão nesse processo: compreender exige atitude ativa e
implica a possibilidade de uma resposta; para compreender, buscamos pistas,
que ficam disponíveis, mas para construir sentido temos de nos envolver no
acontecimento discursivo.
Mas Bakhtin/Voloshinov também especificou que no enunciado
sempre aparece um índice de valor (ou acento apreciativo): a enunciação de

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um sujeito traz um ponto de vista sobre si, sobre os outros, sobre aspectos da
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negativos. Ninguém tem índices de valor puramente pessoais: eles chegam a
uma consciência individual e se tornam, de certa forma, índices individuais
(por isso se diz que cada um tem a sua filosofia de vida, pensa de certa forma,
tem as suas opiniões); entretanto, “sua fonte não se encontra na consciência
individual. O índice de valor é por natureza interindividual” (BAKHTIN,
1979, p. 31, grifo do autor). Os valores, pelo menos parcialmente, estão inves-
tidos em grupos organizados (que criam valores comunitários); esses grupos,
certamente, contestam não raramente valores oficiais – no sentido do poder
de legislar, de dominar, de pressionar institucionalmente (o que poderia ser
chamado de “ideologia oficial”). Bakhtin/Voloshinov (1979, p. 33) expressa
que uma ideologia oficial “tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio ante-
rior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem
como sendo válida hoje em dia”. Essa é uma forma de supervalorizar o que
se chama tradição.
Isso também é visível no contexto escolar, que em última análise está
sujeito a um poder centralizador que pode produzir pressão ou, de outro lado,
abertura. E nenhuma ordem metodológica pode dizer-se isenta da possibili-
dade de levar a problemas e de ser contestada e modificada ou substituída. As
questões são mais sensíveis no ambiente crucial da relação professor/alunos/
alunos – e as respostas podem ser encontradas mais facilmente se a cada um
se der voz, possibilidade de responder e de perguntar.

4. Produzindo AUTORIA NA ESCOLA

A autoria, que implica o domínio paulatino de um conjunto complexo


de habilidades, é, paralelamente ao objetivo de adquirir e manipular
conhecimentos, parte constitutiva da meta de formação básica e formação
profissional. Ela implica a lida cotidiana com um sem-número de práticas
sociais e discursivas: fala e escuta, leitura e escrita, reflexão, crítica, análise
da linguagem em vários níveis. Não podemos fazer da leitura mera extração
de informações que possam ser passadas adiante; ela tem, autenticamente,
caráter produtivo e é assim que precisa ser desenvolvida: interpretação também
é produção. Compreensão é diálogo (BAKHTIN, 2003, p. 325). Por isso,
uma atividade que pode ser explorada didaticamente é a aposição, à margem

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de um texto em leitura, de uma reação imediata em forma de anotações


(exercitando a compreensão ativa, a contrapalavra). Trata-se de construir
uma espécie de “fotografia da leitura” ou “leitura escrita”, para pô-la em
discussão. Um investimento posterior a partir desse rascunho pode ser feito,
se suficientemente motivador para desenvolver um tema, e então fica patente
o benefício dessa transição.
Qualquer forma de produção discursiva (singular) faz apelo àquilo
que chamamos memória discursiva, que convive com as práticas sociais
em geral. Não criamos nada senão a partir de um pano de fundo histórico e
cultural, permeado de crenças, valores, discursos – que vai se formando como
tradição. É nesse sentido que, ao falar do dado e do criado, Bakhtin (2003,
p. 326) assim se expressa:
O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já
existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia
antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem
relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza,
etc.). Contudo, alguma coisa criada é sempre criada a partir de algo
dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade, um sentimento
vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão do mundo,
etc.). Todo o dado se transforma em criado.

Por isso, Bakhtin (2003, p. 330) diz que, na relação criadora com o
que está dado (disponível na memória), no que produzimos “há vozes às vezes
infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes
lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam
concomitantemente”. Quer dizer: o mundo discursivo preexistente ressoa
em nossa produção, e fica disponível para sofrer algum tipo de remodelação.
A par das questões que dizem respeito ao dado e ao criado, convém
especificar que todas as formas enunciativas manifestam tanto forças cen-
trípetas (que levam à estabilidade) como forças centrífugas (que produzem
deslocamento e variação). Os gêneros, nesse quadro, aparecem como formas
relativamente estáveis e normativas, que servem como modelo de formulação
de textos, e como ponto de partida para remodelação, na dependência de cir-
cunstâncias interacionais. Dadas as circunstâncias, pode haver deslocamento
de temas (há temas abandonados, esquecidos, adormecidos), de estrutura
composicional e de estilo (possibilidades de uso dos recursos linguísticos).
Assim, as alterações que percebemos numa língua podem ser tratadas como

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sintoma de mudanças ocorrendo na sociedade: “O destino da palavra é o da


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sociedade que fala” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 180).
Essas noções foram aqui apresentadas para que seja possível compre-
ender, na presente abordagem, uma forma possível de trabalho para a consti-
tuição da autoria no contexto escolar. Apresentei uma proposta metodológica
geral para isso em um trabalho recente vinculando ensino, autoria e gêneros
(FURLANETTO, 2008), que vou retomar aqui sinteticamente.
Em Bakhtin (2003), o que marca fundamentalmente sua concepção de
autoria é o caráter heteroglóssico da linguagem – o fato de nela se conjugarem
vozes sociais, falares, registros de todo tipo (que expressam valores e inter-
pretações do mundo). É, portanto, com esse material heterogêneo que se tem
de lidar para fazer o longo percurso de construção da autoria. Digo “longo”
porque precisamos aprender a ser autores; nenhum aprendizado se faz da noite
para o dia e, na escola, precisa ser mediado. Nesse aprendizado, a apreensão
da dimensão gramatical é necessária, mas não suficiente; ademais, isolada ela
perde o sentido que teria se perspectivada pelo enunciado.
Os dois movimentos com que temos de lidar são regulados pelas forças
centrípetas e pelas forças centrífugas, como especificado há pouco. Na Análise
de Discurso, Orlandi (1999) propõe a denominação, respectivamente: processos
parafrásticos e processos polissêmicos. Pelo primeiro movimento há pressão
social no sentido de estabilizar a significação e manter uma estrutura nas for-
mulações; pelo segundo, certas motivações sociais levam ao deslocamento, à
diversidade, à dispersão. Há, então, um jogo complementar entre as exigências
de estruturação e de flutuação e mudança, entre canonização e heteroglossia.
Na prática, quando iniciamos a aventura da autoria estamos no li-
miar de um processo que exige um voltar-se para trás – a memória do mundo
discursivo com os matizes que observamos ou, presentemente, ignoramos e
precisamos pôr em perspectiva – e para diante – numa tentativa de aprender
a encontrar o outro (outros textos, autores, vozes, matizes), dar-lhe voz em
seu texto e, concomitantemente, afastar-se para tecer sua própria obra, bem
como, mais adiante, avaliar a textualidade construída e fazê-la figurar como
marco da construção da autoria.

3
O chamado internetês, por exemplo – jargão do português e de outras línguas –, que se verifica no
bate-papo virtual conhecido como chat e em outros gêneros típicos da Internet, pode se distanciar menos
ou mais da língua em uso formal: o uso dos recursos linguísticos manifesta um estilo especial, bem
mais fluido do que na escrita padrão.

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Na Análise de Discurso, o jogo entre paráfrase e polissemia produz


um movimento discursivo entre “o mesmo” e “o diferente” – não há como
não repetir material enunciativo da memória discursiva, que por sua vez pode
sofrer deslizamento e produzir outro efeito (pelo produtor, pelos intérpretes,
variando conforme circula nos espaços). Então a paráfrase
[...] representa [...] o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-
-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase
está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos
é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o
equívoco. (ORLANDI, 1999, p. 36).

Como nada tem acabamento real, e igualmente ninguém o tem, o


objeto de nosso escopo (na fala, na escrita) está em processo na produção, e a
subjetividade (no escritor, no poeta, no cientista) também está se constituindo,
e o modo de ver o mundo, e os meios de expressão (BAKHTIN, 2003, p. 326).
A própria paráfrase já tangencia o novo, o possível, o diferente (ORLANDI,
1999, p. 38).
Para estabelecer efeitos distintos do jogo da repetição, Orlandi (1999,
p. 54) propõe uma tripartição: uma repetição que produz o “efeito papagaio”
é empírica, mnemônica (efeito de decorar); uma repetição como outro modo
de dizer o mesmo é formal, técnica; uma repetição que desloca está histori-
cizando o dizer e o sujeito, permitindo que o discurso flua, possibilitando que
algo novo irrompa, tem caráter histórico. Esta se abre para o polissêmico.
Esse movimento instaura a metáfora.
Pode-se perceber que o simples “efeito papagaio” não ajuda ninguém
a trilhar as veredas da autoria, e que a paráfrase no sentido técnico pode ser
um começo para explorar as possibilidades abertas pela língua em direção ao
discurso (por exemplo, a produção de sínteses, resumos); mas é a repetição
histórica que desliza para a concretude significativa do enunciado, produzido
em função da alteridade (uma atitude valorativa de resposta a leituras, dis-
cussões, comentários).
Considerando tudo o que foi exposto, conclui-se que há muitas etapas e
muitas nuanças no exercício da função de autoria, até o reconhecimento de uma
parcela razoável de singularidade na produção. Quando citamos autores, direta
ou indiretamente, em nossa produção, podemos estar legitimamente “conver-
sando” com eles para conversar com os potenciais leitores. Ao citar, estamos

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Ensino de língua portuguesa: focalizando as práticas discursivas

adotando uma atitude em relação ao que é citado e em relação à perspectiva


autoral de origem. Se, contudo, copiamos de outrem trechos para compor
com outros trechos um produto que, no fundo, é só colagem e não repercute
legitimamente em comunidade, trata-se apenas de efeito papagaio. Daí que
tal atitude seja veementemente rechaçada, e não só no ensino superior. Com
efeito, qual o nível de autoria numa produção desse tipo? Outro exemplo: uma
epígrafe (sentença, aforismo, frase de efeito) escolhida para “abrir” um texto
reflete um exercício autoral de transferência, distanciamento e aproximação,
mostrando intertextualidade: há uma repetição, mas com distanciamento e com
uma marca extra quando o material é inserido em outro contexto.
Quem pode promover os passos necessários para o desenvolvimento
das habilidades necessárias ao exercício de autoria? São os professores os
mediadores privilegiados e também leitores privilegiados, a quem cabe
controlar e dar impulso à produção de autoria. Entendendo que é possível
desenvolver a função de autoria na escola, através de práticas específicas, e
que, portanto, há patamares de autoria, estabeleci algumas premissas sobre
o tema (FURLANETTO, 2008): a) não há autoria “imaculada” (plena); b)
nosso projeto discursivo envolverá vozes de enunciados próximos e distantes,
de autores específicos ou não (o que circula anonimamente na língua); c)
uma pesquisa com consulta sistemática a autores se reflete, em princípio,
num trabalho reconhecido em meios em que circulam gêneros secundários
4
(conforme tipologia de Bakhtin); d) a abordagem escolar da própria oralidade
prevê um uso mais regulado das trocas no contexto da escola (contação de
histórias, depoimento, seminário); e) a abordagem da escrita supõe a superação
passo a passo de etapas que vão desde o início do aprendizado do sistema
alfabético e da ideografia da escrita até o nível em que o produtor se sinta
5
participante do processo autoral.
Ao desenvolver esse tema, nunca perdi de vista que a produção
discursiva se processa através dos gêneros de discurso, em textos que ex-
pressam a vida na sociedade, sua organização e o modo como se compõe. É

4
Bakhtin fez uma distinção teórica entre gêneros primários – mais simples, de caráter cotidiano – e
gêneros secundários – ocorrendo em organizações sociais mais ritualizadas, que utilizam comumente a
modalidade escrita da língua (comunidades científicas, religiosas, políticas, culturais).
5
Bajard (2006, p. 502) diz: “Para nós, a leitura se vale de dois processos. O primeiro, esporádico, recorre
à decodificação para elucidar o material desconhecido. O outro, contínuo, trata ideograficamente o ma-
terial conhecido. O leitor experiente utiliza de maneira pontual a decodificação – que para ele também
permanece lenta – e de maneira corrente a leitura ideográfica – rápida, por ser visual.”

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Maria Marta Furlanetto

preciso compreendê-los e aprender a produzi-los, na escola, seletivamente.


E o princípio de desenvolvimento do trabalho pedagógico é a produção de
texto autocontrolada, feita pelo aluno, e controlada pelo professor, envolvendo
o jogo entre paráfrase e polissemia – ou, ainda, entre repetição e alteração.
É de se esperar que, no início (no ensino fundamental), haja a produção
do “efeito papagaio”, até porque, tradicionalmente, há receio de que qualquer
pincelada fora do “previsto” vá provocar reação negativa do professor; mais
tarde espera-se que ocorra a repetição “formal”, ou paráfrase em seu sentido
mais comum (dizer o mesmo com outras palavras) – enfim, é sempre um pou-
co arriscado fazer um investimento subjetivo. A difícil passagem à repetição
“histórica” precisa contar com o apoio e o estímulo do professor, e o resultado
dela pede avaliação e negociação, pois não basta revolucionar o existente, em
certas circunstâncias, esquecendo que qualquer produção deve prever o seu
endereçamento ao(s) interlocutor(es). O jogo previsto está esquematizado na
Figura 1, que reproduzo de meu trabalho anterior (FURLANETTO, 2008):

Figura 1 - O jogo da autonomia autoral

C
Autonomia autoral
O
N ITERAR Memória discursiva
T (paráfrase, repetição)
Querer-dizer R
O
L
E ALTERAR
(polissemia, Produção subjetiva
dispersão)

O que se pretende, na longa caminhada do aprendizado, é, paulatina-


mente, a conquista da autonomia autoral, pelo labirinto dos gêneros discursi-
vos circulando nas múltiplas esferas da vida social. Por “autonomia autoral”
entendo um processo que, não acabado por sua própria natureza, representa
a possibilidade subjetiva de buscar autonomamente os meios para continuar
desenvolvendo sua potencialidade em matéria de uso social da linguagem:
O texto a produzir é como uma malha (rede) recebida em fragmentos na
qual cada sujeito escolhe incrustar ‘ornamentos’ de sua escolha fazendo
as ligações que julga necessárias para se fazer ouvir e produzir uma
marca: o gênero tem um estilo (coletivo); cada sujeito cria seu estilo
(singular). (FURLANETTO, 2008, p. 17).

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Ensino de língua portuguesa: focalizando as práticas discursivas

Considerações finais
No percurso feito neste trabalho, focalizei as práticas discursivas
em geral e em seguida canalizei a discussão para as práticas no âmbito da
instituição escolar, voltadas, na relação imediata professor/alunos/alunos,
para os objetivos do processo pedagógico. Para isso, mostrei o contraste entre
língua-estrutura e língua-acontecimento, duas dimensões para o tratamento do
enunciado (tal como considerado pelo Círculo de Bakhtin) em sua formulação
através dos gêneros do discurso. A partir daí, a unidade texto foi apresenta-
da em sua dimensão estrutural e em sua dimensão de acontecimento, como
enunciado que se origina em, circula em e sofre alterações nas comunidades
discursivas. Em seguida a essas noções, desenvolvi questões sobre as práticas
discursivas na escola, e tratei especificamente de um modo de desenvolver a
função subjetiva de autoria, como processo de aprendizado mediado.
Deve ter ficado claro que, na abordagem proposta, o trabalho pedagó-
gico estará centrado na caracterização dos gêneros como formas institucionais
que ocorrem nas comunidades discursivas vinculadas a esferas sociais variadas,
formas que são elaboradas materialmente com recursos de linguagem verbais
e não verbais disponíveis, e utilizadas tanto para as trocas cotidianas mais
simples (coloquiais) como para aquelas mais elaboradas (formais, ritualizadas).
Originados os gêneros nas esferas sociais, os textos que lhes correspondem
são, como acontecimento discursivo situado e datado, singulares:
[...] cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular,
e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi
criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade,
com a beleza, com a história. (BAKHTIN, 2003, p. 310).

Nesse contexto, é de esperar que estrutura e acontecimento sejam


tratados em sua complementaridade. O que esses termos subsumem pode ser
o ponto de partida para realizar a produção regulada de autoria, através de
atividades alternativas e conjugadas dessas duas dimensões do enunciado –
abandonando, especialmente, táticas produtoras da repetição mecânica (“efeito
papagaio”). As atividades devem estimular uma produção aberta aos efeitos
novos, levando à caracterização da singularidade de seus aprendizes de autores.
Nesse sentido, gostaria de lembrar uma face desse processo que nem
sempre está em foco: a escuta está implicada na interação discursiva, e ela tem
um peso excepcional em mais de um nível: escuta faz par com fala no sentido
mais estrito (quem fala quer ser escutado, esperando uma resposta, que se fará
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Maria Marta Furlanetto

estímulo para outra resposta); pode ser também atenção respeitosa em busca
de compreensão, também na leitura; e pode ser – o que estou enfatizando
aqui – a escuta do texto escrito do aluno no momento da aprendizagem e da
avaliação. Em trabalho anterior (FURLANETTO, 1997) focalizei esse tema
ao observar que, como professores, podemos ser tentados a “caçar erros”,
como se isso fosse um jogo. A função do olho que persegue erros de caráter
linguístico – os mais visíveis – acaba minimizando aspectos importantes da
produção escrita (atributos textuais), ou eles deixam de ser percebidos, não
pesando na avaliação. O fato de o texto escrito ser visualizado mostra nele,
primeiramente, a forma da letra, a distribuição dos parágrafos na página, a
pontuação. E nós o olhamos “como algo que deve conduzir-se segundo uma
estética” (FURLANETTO, 1997, p. 656-657).
Imaginei, então, que a escuta (como função dialógica) seria uma
estratégia para buscar equilíbrio entre a caça ao erro e a explicitação do que
vai bem na construção do texto. Sintetizei essa atitude com o “sermos menos
olhos e mais ouvidos” – o que levanta de imediato uma questão: como ouvir um
texto escrito? E respondo que o próprio aluno pode ler seu texto, ou um colega.
Essa estratégia ajuda-nos a “enxergar” além do que permite nossa percepção
gramatical, que costuma ser exacerbada: ajuda a perceber o desenvolvimento
do tema, a coerência, a expressividade (FURLANETTO, 1997, p. 661-662).
Observar um texto por esse ângulo faz aparecer diante de nós um
objeto novo, que nos obriga a atuar como interlocutores, exercitando a escuta
e eventualmente deslocando o juízo de valor. Por isso, vejo aí uma chave para
o ensino, sem com isto desejar anular ou minimizar a dimensão gramatical e
notacional do texto. Penso que é nossa opção: “[...] ou se trabalha por bons
textos, com tudo o que isso implica, ou se trabalha por boas amostras de gra-
maticalidade. Estas amostras, acrescento, não servem para interagir – ou seja,
não funcionam” (FURLANETTO, 1997, p. 662).
O que fazer para pelo menos abrir vias de acesso a experiências
semelhantes? Ocorre que somos participantes de um processo de ensino
que ainda tende à homogeneização: dos sujeitos, do saber, das atividades,
do discurso. Como já exposto, fazemos parte de uma instituição marcada
pela chamada “herança da cultura ocidental”, e como tal também tendemos
a ignorar o que é heterogêneo no ser humano e em sua produção discursiva
no meio social. Isso precisa ser questionado. Como tais valores são efeito da
dimensão ideológica que atravessa as práticas, isso orienta o comportamento
no sentido da homogeneização: o sujeito se submete a algo, a alguém, a

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Ensino de língua portuguesa: focalizando as práticas discursivas

instituições, dadas as relações de poder que permeiam a sociedade. Um


conhecimento já estabilizado e assumido (mais ou menos conscientemente)
entra necessariamente em conflito com as possibilidades abertas por novos
conhecimentos teóricos e correspondentes atitudes práticas, tornando difícil
delinear essas práticas concretas. Contudo, se o contexto em que estamos tem
regras que em princípio “devem” ser seguidas, uma ordem metodológica que
não produz resultados satisfatórios sempre pode ser contestada e substituída.
Há boas propostas para esse deslocamento.

Referências
BAJARD, E. Nova embalagem, mercadoria antiga. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32,
n. 3, p. 493-507, set./dez. 2006.
BAKHTIN, M. (Voloshinov). Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. [Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira]. São Paulo: Hucitec, 1979.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 2.
ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FURLANETTO, M. M. Gêneros e autoria: relação, possibilidades e perspectivas de ensino
In: ENCONTRO DO CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL, 8., 2008, Porto
Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2008. 1 CD.
______. Práticas discursivas: desafio no ensino de língua portuguesa. In: CORREA, D. A.;
SALEH, P. B. O. Práticas de letramento no ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo:
Parábola, 2007. p. 131-150.
______. Tirando partido da escuta. In: ENCONTRO DO CÍRCULO DE ESTUDOS
LINGUÍSTICOS DO SUL, 1., 1995, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 1997.
p. 652-662, v. 2.
MAINGUENEAU, D. Quelques réflexions sur l’identité de l’analyse du discours et la
didactique du texte littéraire. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/>. Acesso
em: 17 maio 2007.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta Curricular
de Santa Catarina: educação infantil, ensino fundamental e médio (disciplinas curriculares).
Florianópolis: COGEN, 1998.

Recebido para publicação em 19 ago. 2011.


Aceito para publicação em 17 out. 2011.

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