Marxismo e Linguagem

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CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM EM MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

RIZZO, Joselma de Souza Mendes


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Resumo: Este trabalho tem por finalidade apresentar, em linhas gerais, o diálogo realizado por Bakhtin com
autores estudiosos da linguagem no que diz respeito às concepções de linguagem defendidas por eles, na obra
Marxismo e Filosofia da linguagem, publicada em 1929-1930 em Leningrado e assinada por V. N. Volochínov.
Neste livro, autor realiza uma reflexão sobre a filosofia da linguagem, analisando as concepções predominantes
na época, explicitando as bases teóricas e propiciando reflexões sobre os aportes metodológicos que decorrem
de cada uma delas, apontando assim, as implicações de sua utilização. O autor apresenta, ainda, a sua forma de
entender/perceber a linguagem, explicitando a concepção de linguagem que para ele deve direcionar os estudos
nessa área.

Palavras-chave: língua, linguagem, concepções de linguagem, gênero textual

INTRODUÇÃO

Mesmo tendo sido escrita em 1929, Marxismo e filosofia da linguagem revela-se uma
obra muito atual, uma vez que traz à tona aspectos negligenciados nos estudos linguísticos e
literários durante muito tempo.
O autor organiza as ideias sobre a linguagem em três grandes blocos aos quais ele
chama de orientações: o subjetivismo individualista, o objetivismo abstrato e a concepção de
linguagem como interação verbal.
Segundo Bakhtin (1992a), para a primeira orientação, o fundamento da língua é o ato
de fala individual e sua fonte é o psiquismo individual. Nessa orientação, as “[...] leis da criação
lingüística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da
psicologia individual e são as que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da
linguagem” (BAKHTIN, 1992a, p. 72). Sendo assim, a atitude do lingüista seria meramente
classificatória, descritiva, uma vez que se limita “[...] simplesmente a preparar a explicação
exaustiva do fato lingüístico como proveniente de um ato de criação individual, ou então
servir a finalidades práticas de aquisição de uma língua dada” (p. 72).
As posições mais importantes dessa primeira orientação são sintetizadas por Bakhtin
(1992a), em quatro proposições:

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1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção


(‘energia’) que se materializa sob a forma de atos individuais de fala.
2. As leis da criação lingüística são essencialmente as leis da psicologia individual.
3. A criação lingüística é uma criação significativa, análoga à criação artística.
4. A língua, enquanto produto acabado (‘ergon’), enquanto sistema estável (léxico,
gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria da
criação lingüística, abstratamente construída pelos lingüistas com vistas à sua
aquisição prática como instrumento pronto para ser usada (BAKHTIN, 1992a, p. 72).

Essas proposições, no entanto, não são suficientes, de acordo com Bakhtin (1992a),
para expressar todas as ideias de Wilhelm Humboldt, o mais importante representante dessa
orientação, pois do seu pensamento se originaram correntes completamente divergentes.
Alguns de seus seguidores, como Steintahh, acreditam que o “[...] psiquismo individual
constitui a fonte da língua, enquanto as leis do desenvolvimento lingüístico são leis
psicológicas” (BAKHTIN, 1992a, p. 74). Para Wundt, segundo esse mesmo autor, “[...] todos os
fatos da língua, sem exceção, prestam-se a uma explicação fundada na psicologia individual
sobre uma base voluntarista” (BAKHTIN, 1992a, p. 74).
De acordo com Bakhtin (1992a), é a escola de Vossler que vai representar um avanço
em relação às posições anteriores por rejeitar os métodos do positivismo e por reconhecer o
componente ideológico do ato linguístico. Em sua opinião, [...] a negação categórica e de
princípio do positivismo lingüístico que não consegue ver além das formas lingüísticas (em
particular as fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as engendra
(VOSSLER, apud BAKHTIN, 1992a, p. 75).
Dessa forma, é colocado em primeiro plano “[...] o componente ideológico do
significante da língua”. Porém, para Vossler, de acordo com Bakhtin, “[...] o motor principal da
criação é o ‘gosto linguístico, variedade particular do gosto artístico” (BAKHTIN, 1992a, p.75).
Porém, tanto a escola de Vossler, como as diversas orientações originárias das idéias de
Humboldt, filiadas ao subjetivismo individualista, não explicam, totalmente, o objeto de
estudo da Linguística – a linguagem como fenômeno socioideológico. Segundo Bakhtin, essa
primeira orientação do pensamento filosófico-linguístico está ligada ao Romantismo, que foi
uma “[...] reação contra a última reincidência do poder cultural da palavra estrangeira: as
épocas do Renascimento e do Classicismo” (BAKHTIN, 1992a, p.110). Dessa forma, como os
românticos, essa primeira orientação toma como ponto de partida a enunciação monológica
nas suas investigações, mas não numa perspectiva de compreensão passiva e sim do ponto de
vista da pessoa que se exprime.
Para essa primeira orientação, a enunciação monológica é um ato individual, uma
expressão da consciência individual, entendendo expressão como uma “[...] categoria geral, de
nível superior, que engloba o ato de fala, a enunciação” (BAKHTIN, 1992a, p. 111), que se

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forma no psiquismo do indivíduo e exterioriza-se por meio de algum código do qual ele se
apropria, o que caracteriza um “[...] dualismo entre o que é interior e o que é exterior, com
primazia do conteúdo interior, já que o ato de objetivação procede do interior para o exterior”
(BAKHTIN, 1992a, p. 111). O exterior é apenas o meio por intermédio do qual o interior se
manifesta. Portanto, a concepção de língua que sustenta os trabalhos dos filósofos e linguistas
filiados ao subjetivismo individualista apóia-se na enunciação monológica, que encontra, na
expressão, o seu meio de exteriorização, subjugando-a ao papel de transmissão do que é
produzido no psiquismo individual.
Para Bakhtin (1992), essa concepção é totalmente falsa, uma vez que tanto o conteúdo
interior quanto sua objetivação são criados a partir de um mesmo material, a expressão
semiótica de natureza social, não existindo, assim, essa distinção entre ambos, pois um não
existe sem o outro. Além disso, “[...] não é a atividade mental que organiza a expressão, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”
(BAKHTIN, 1992a, p. 112). Nesse sentido, é o exterior, o meio social, que modela a atividade
mental, pois ela está sempre orientada para um auditório social bem definido. É a expressão
que vai estruturá-la e torná-la mais estável.
Assim, segundo o autor, o subjetivismo individualista comete um primeiro equívoco ao
desconsiderar a natureza social da enunciação e ao considerá-la expressão do mundo interior
do locutor, pois tanto sua estrutura quanto a atividade mental a ser expressa por ela são de
natureza social. Comete outro equívoco, ainda, pois, mesmo considerando o aspecto
ideológico da língua, afirma que esse “[...] conteúdo ideológico pode ser deduzido das
condições do psiquismo individual” (BAKHTIN, 1992a, p. 122).
A segunda orientação do pensamento filosófico linguístico a que se refere Bakhtin é o
objetivismo abstrato. Essa orientação teve suas origens no racionalismo dos Séculos XVII e
XVIII, de onde vêm as ideias filiadas ao cartesianismo, segundo as quais o que interessa ao
linguista é a lógica interna do sistema de signos. Nesse sentido, a língua é vista como um
sistema fechado que não se vincula a qualquer significação ideológica.
Para o objetivismo abstrato, “[...] o centro organizador dos fatos da língua, o que faz
dela objeto de uma ciência bem definida situa-se no sistema linguístico: o sistema das formas
fonéticas, gramaticais e lexicais da língua” (BAKHTIN, 1992a, p. 77). São esses traços que
asseguram, de acordo com essa orientação, a unicidade da língua e sua compreensão por
todos os falantes de uma mesma comunidade.

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Destacando a regularidade desses fatos, como o que garante o funcionamento de uma


língua, essa orientação descarta toda possibilidade de criação individual. Dessa forma, “[...] a
língua opõe-se ao indivíduo enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só
pode aceitar como tal” (BAKHTIN, 1992, p. 78). Assim, o sistema linguístico tem que ser
acatado pelo indivíduo como é. O que está de acordo com esse sistema é aceito e o que não
está de acordo é considerado errado. O que faz com que as leis linguísticas adquiram um
caráter arbitrário, uma vez que não existe correspondência real “[...] entre a face fonética da
palavra e o seu sentido” (BAKHTIN, 1992a, p. 79).
Outro aspecto relevante, nessa segunda orientação, é o que decorre da afirmação de
que a língua é um sistema fechado, imutável. Para o objetivismo abstrato, não há relação
entre o aspecto sincrônico e o diacrônico da língua, não pode haver nada em comum entre a
lógica do sistema de formas linguísticas e a evolução histórica dessas formas, uma vez que,
sendo um sistema fechado, qualquer alteração em seus elementos criaria um novo sistema.
Portanto, para essa orientação,

A lógica da história da língua é a lógica dos erros individuais ou dos desvios [...]. Assim,
entre a lógica da língua, como sistema de formas e a lógica de sua evolução histórica,
não há nenhum vínculo, nada de comum. As duas esferas são regidas por leis
completamente diferentes, por fatores heterogêneos (BAKHTIN, 1992a, p. 81).

As principais proposições do objetivismo abstrato são resumidas por Bakhtin da


seguinte forma:

1- A língua é um sistema estável, imutável, de formas lingüísticas submetidas a uma


norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta.
2- As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas específicas, que estabelecem
ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado. Estas leis são
objetivas relativamente a toda consciência subjetiva.
3- As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos
(artísticos, cognitivos ou outros). Não se encontra, na base dos fatos lingüísticos,
nenhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e
compreensível para a consciência, nem vínculo artístico.
4- Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples
refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas
são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das
formas da língua: enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e
mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem
vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si (BAKHTIN, 1992a, p.
82-83).

Entre os representantes dessa orientação filosófico-linguística, o de maior destaque,


por ser o articulador de seus fundamentos, é Ferdinand de Saussure. Suas proposições
coincidem com o exposto anteriormente, mas não se esgotam aí. Saussure estabelece,

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também, uma distinção entre linguagem e língua. Para ele, a linguagem refere-se a todo tipo
de manifestação linguística, ela “[...] é multiforme e heteróclita, participando de diversos
domínios [...] pertencendo ao domínio individual e ao social” (SAUSSURE, apud BAKHTIN,
1992a, p. 86).
Por isso, para Saussure, a linguagem não pode ser o objeto da linguística. Ela não é
passível de classificação. Acredita que só a língua, como uma das manifestações da linguagem,
é passível de classificação. Segundo ele, o caminho metodológico para alcançar o objeto de
estudo da linguística é instalar-se no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as
demais manifestações da linguagem [...] [pois] só a língua parece suscetível de uma definição
autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (SAUSSURE, apud BAKHTIN,
1992a, p. 85, grifos do autor).
Saussure estabelece, também, uma distinção entre língua e fala, afirmando que a língua
é social e a fala, uma manifestação individual e, como tal, também não é passível de
classificação, pois, para ele, ela é a utilização do código lingüístico para a expressão do
pensamento. Assim, ele afirma que a fala é [...] um ato individual de vontade e de inteligência
no interior do qual convém distinguir as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o
código da língua para exprimir seu pensamento pessoal e o mecanismo psicofísico que lhe
permite exteriorizar estas combinações (SAUSSURE, apud BAKHTIN, 1992a, p. 87).
No entanto, é no quadro diacrônico que a fala ganha seu espaço. A língua, como
sistema de formas estáveis, não pode garantir sua evolução. É a fala que o faz, por ser
individual e acidental.
Outros representantes dessa segunda orientação são os neogramáticos que,
principalmente, na segunda metade do Século XIX, difundiram suas ideias. Para eles, o
aspecto mais importante de toda a teoria do objetivismo abstrato é o aspecto fisiológico. O
indivíduo é, portanto, um ser essencialmente fisiológico.

INTERAÇÃO VERBAL, TEXTO E GÊNEROS TEXTUAIS

Ao criticar e questionar as concepções teóricas do subjetivismo individualista e do


objetivismo abstrato, Bakhtin abre campo para outros posicionamentos. Assim, apresenta sua
própria concepção do que é o objeto da linguística e traça o caminho metodológico para
compreender esse objeto. Ao fazer esse percurso, ele reflete sobre várias categorias
indispensáveis à compreensão de sua perspectiva.

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Bakhtin é totalmente contrário às afirmações do objetivismo abstrato com relação à


língua e à fala. Se, para essa corrente, a língua é um fenômeno social, a fala é individual e o
objeto de estudo da linguística é a língua; para Bakhtin, a enunciação, como produto dos atos
de fala, é o ponto de partida para a reflexão sobre a linguagem. Segundo o autor, a afirmação
de que a língua é um sistema de normas imutáveis, externo à consciência individual, do qual o
falante apenas faz uso, só pode ser considerada como realidade se levarmos em conta a
consciência individual, num determinado e curto espaço de tempo, pois, ao contrário, o que
percebemos é a evolução ininterrupta da língua. Para ele, “[...] o sistema sincrônico da língua
só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor de uma dada comunidade
linguística, num dado momento da história” (BAKHTIN, 1992a, p. 91).
Ao questionar como a língua se apresenta para a consciência subjetiva do locutor, no
objetivismo abstrato, Bakhtin (1992a) refuta novamente a ideia de língua como sistema de
formas imutáveis, pois, para ele, esse sistema é uma abstração, uma construção com
propósitos claros. Para o locutor, no momento da enunciação, não está presente a
preocupação de estar refletindo sobre o sistema linguístico, mas sim a de orientar sua fala de
acordo com o contexto em que está inserido. De acordo com o autor,

O que importa não é o aspecto da forma lingüística [...] o que importa é aquilo que
permite que a forma lingüística figure num determinado contexto, aquilo que a torna
um signo adequado às condições de uma situação concreta dada.
Para o locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinal estável e
sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível
(BAKHTIN, 1992a, p. 92).

Nesse sentido, o que importa, segundo o autor, não é a identificação do sinal, mas a
compreensão do signo e de sua utilização em cada situação, tendo em vista que o sinal não é
passível de descodificação, uma vez que não é capaz de refletir nem refratar nada, “[...] é uma
entidade de conteúdo imutável” (BAKHTIN, 1992a, p. 93), só o signo o é, como uma entidade
variável e flexível, portador de uma mobilidade particular. Assim, o sinal, apesar de ser uma
realidade linguística, não pode ser tomado como constituinte da língua, pois ele “[...] é
dialeticamente deslocado, absorvido pela nova qualidade do signo (isto é, da língua como tal)”
(BAKHTIN, 1992a, p. 94).
Desse modo, para Bakhtin, a língua é uma realidade viva, mutável e inseparável de seu
conteúdo ideológico, portanto não pode ser analisada, unicamente, a partir de componentes
abstratos, deslocados dos atos de fala, das enunciações.

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Assim, ao se contrapor à categoria da expressão, como entendida pelo subjetivismo


individualista, Bakhtin (1992a) apresenta o que para ele é a categoria fundamental da sua
concepção de linguagem: a interação verbal. Para o autor, são as condições sociais de
produção de um enunciado que lhe determinam a forma e o conteúdo, pois toda palavra é
orientada para um interlocutor e é a imagem que o locutor faz desse interlocutor que orienta
seu discurso. A figura desse interlocutor, no entanto, é moldada de acordo com contornos
sociais, por isso, segundo ele, [...] é preciso supor além disso um certo horizonte social
definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que
pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa
moral, do nosso direito (BAKHTIN, 1992a, p. 112, grifos do autor).
A palavra, nesse contexto, é o elo entre locutor e interlocutor. Por meio dela se dá a
interação entre ambos. No entanto, ela não é propriedade de nenhum deles, pois é uma
construção social. Sua realização “[...] na enunciação concreta é inteiramente determinada
pelas relações sociais” (BAKHTIN, 1992a, p.113). Assim, a estrutura da enunciação é
totalmente determinada por pressões sociais. É a imagem que o locutor tem de seu
interlocutor que moldará a estrutura da enunciação. Para Bakhtin (1992a), qualquer que seja
a enunciação, é totalmente dirigida e determinada “[...] pelos participantes do ato de fala,
explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma à
enunciação” (BAKHTIN, 1992a, p. 113).
Para Bakhtin, o ato de fala, a enunciação, não pode ser meramente a expressão da
consciência individual, pois essa consciência não existiria sem a expressão. Segundo ele,
qualquer tomada de consciência é já um ato ideológico, uma vez que “[...] toda tomada de
consciência implica discurso interior, entoação interior e estilo interior, ainda que
rudimentares” (BAKHTIN, 1992a, p. 114). No entanto, para o autor, é preciso também
diferenciar graus na consciência que será orientada em função do auditório social. Em seu
entender, há dois pólos entre os quais oscila a atividade mental. Ele os chama de atividade
mental do eu e atividade mental do nós, que geram formas de enunciação correspondentes.
Assim, a consciência individual não pode ser entendida fora do contexto social, pois
“[...] a atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que a expressão exterior um
território social” (BAKHTIN, 1992a, p. 117). Desse modo, afirma que a consciência, fora de sua
realização num material concreto, é uma ficção, pois “[...] enquanto expressão material
estruturada [...] a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa” (BAKHTIN,
1992a, p. 118), capaz de reestruturar a vida interior do sujeito, num movimento constante de
reelaboração, o que significa dizer que “[...] não é a expressão que se adapta ao nosso mundo

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interior, mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão, aos
seus caminhos e orientações possíveis” (BAKHTIN, 1992a, p. 118).
Nesse sentido, o autor considera totalmente equivocada a concepção de expressão tal
qual descrita pelo subjetivismo individualista, pois o centro organizador de toda expressão
está situado no meio social, no sentido de que todo ato enunciativo é organizado para atender
a pressões sociais, procura atender à situação imediata, sendo, assim, “[...]um puro produto da
interação social” (BAKHTIN, 1992a, p. 121).
Para Bakhtin (1992a), portanto, a substância da língua é constituída pela interação
verbal, um fenômeno social que se realiza por meio de enunciações e só pode ser explicado
em relação com a situação concreta de produção. Em decorrência disso, para ele, a ordem
metodológica para o estudo da língua, segundo a qual ela evolui, deve ser a seguinte:

1- As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em


que se realiza.
2- As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita
com a interação de que constituem elementos, isto é, as categorias dos atos de fala na
vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3- A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual
(BAKHTIN, 1992, p. 124).

Assim, para o autor, a análise da língua deve partir da análise das enunciações como
um todo, pois “[...] as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações“ (BAKHTIN, 1992a, p.
125). Suas proposições a respeito da verdadeira natureza da língua, como objeto de estudo
linguístico, são:

1 - A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma


abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares.
Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua.
2 - A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da
interação verbal social dos locutores.
3 - As leis da evolução lingüística não são as da psicologia individual, mas também não
podem ser divorciadas da atividade dos falantes. São leis essencialmente sociológicas.
4 - A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com
qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas não pode ser
compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela
se ligam.
5 - A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal
só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual é uma contradição in adjecto
(BAKHTIN, 1992a, p. 127).

Dessa forma, Bakhtin confirma o caráter socioideológico da linguagem, ao afirmar a


natureza social da língua, como produto das enunciações ocorridas entre locutor e
interlocutor, e a interação verbal, como produto dessas enunciações.

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O sujeito, para a concepção sócio-histórica da linguagem, difere-se do sujeito


relacionado com a concepção de língua como representação do pensamento (o subjetivismo
idealista), em que o sujeito é visto como dono de suas ações; e difere-se também do sujeito
relacionado com a teoria estruturalista (objetivismo abstrato), em que o sujeito é
determinado, assujeitado pelo sistema (KOCH, 2003). Para a concepção sócio-histórica da
linguagem, o sujeito é aquele que produz, mediante sua relação com o outro. Essa
relação/interação se dá por meio de enunciações que se traduzem em diferentes formas de
organização textual.
Assim, as relações sociais se configuram em diferentes tipos de textos, portanto o texto
é um produto social. Surge para atender a necessidades do dia-a-dia, a necessidade de
comunicação e assume diferentes formas conforme a exigência da situação de produção.
Produzem-se textos literários, jurídicos, provérbios, textos para distrair, ensinar, convencer
etc. A essas diferentes formas que podem assumir os textos, Bakhtin (1992b) chama de
gêneros textuais. Para ele, a utilização da língua em diferentes esferas de comunicação define
inúmeros e diferenciados gêneros textuais. Segundo o autor, [...] qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis, de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do
discurso (BAKHTIN, 1992b, p. 279).
Para Bakhtin, portanto, não importa “[...] minimizar a extrema heterogeneidade dos
gêneros do discurso”, uma vez que diferentes situações de comunicação requerem novos
gêneros. Basta, segundo ele, estabelecer o que chama de “[...] a diferença essencial existente
entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo)”
(BAKHTIN, 1992b, p. 281). O gênero do discurso primário seria aquele que “[...] tem relação
imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios” (BAKHTIN,
1992b, p. 281), sendo, assim, colado à situação de produção. O gênero do discurso secundário,
seria, ao contrário, descolado da situação de produção. Aparece “[...] em circunstâncias de
uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN, 1992b,
p.281).

CONSIDERAÇÕES

É importante a contribuição de Bakhtin para pensar os fenômenos da linguagem. A


partir do diálogo realizado por ele com estudiosos como Humboldt e Saussure no que diz

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respeito às concepções de linguagem defendidas por eles, Bakhtin analisa, discute, contrapõe
e propõe a sua forma de entender a linguagem, bem como reflexões sobre os aportes
metodológicos que decorrem de cada uma delas, apontando assim, as implicações de sua
utilização.
As reflexões feitas por ele influenciaram e ainda influenciam os estudos na área da
linguagem, mas é importante destacar e revisitar os conceitos construídos pelo autor para que
eles não sejam utilizados de maneira descontextualizada, ou em contextos outros, que façam
vazios ou tenham alterados seus sentidos, mas sim para que sejam possibilidade de novas
reflexões.

REFERÊNCIAS

BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 1992a.

______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.

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