Que Professor de Português Queremos Formar
Que Professor de Português Queremos Formar
Que Professor de Português Queremos Formar
Magda Soares
A pergunta que dá titulo a esta exposição envolve outras, que a precedem; que saber
escolar é este, a que chamamos Português? que critérios tem definir o profissional que se
responsabilize pelo ensino e pela aprendizagem desse saber escolar?
Para responder a essas perguntas, duas ordens de fatores devem ser consideradas; de um
lado fatores externos à própria disciplina Português - fatores de natureza social política,
cultural, de outro lado, fatores internos à disciplina - fatores relativos ao estatuto da área de
conhecimentos sobre a língua. Uma perspectiva histórica que recupere o processo de
instituição do Português como disciplina escolar e os processos de constituição do
profissional "professor de Português", e, assim, revele o papel determinante desses fatores
ao longo do tempo, permitirá compreender o presente - que professor de Português
estamos formando - e definir a meta para o futuro: que professor de Português queremos
(ou devemos) formar. A necessidade, num país de língua portuguesa, de uma disciplina, no
currículo escolar, que tenha por objeto e objetivo o estudo dessa língua, e de um
profissional formado especificarnente para encarregar-se do ensino dessa disciplina parece,
aos olhos de hoje, óbvia e indiscutível. Urna perspectiva histórica mostra que não é assim.
com tal denominação - Língua Portuguesa ou Português - a disciplina só passou a existir
nos currículos escolares brasileiros tardiamente, nas últimas décadas' do século XIX, depois
de já há muito organizado o sistema de ensino, e o processo de formação do professor para
tal disciplina só teve inicio rios anos 30 do século XX.
Até meados do século XVIII, no sistema de ensino do Brasil (como no de Portugal), o ensino
do português restringia-se à alfabetização, após à qual aqueles poucos alunos que tinham
acesso a uma escolarização mais prolongada passavam diretamente à aprendizagem do
latim, basicamente da gramática da língua latina, e ainda da retórica e da poética; quando a
Reforma Pombalina (1759) tomou obrigatório, em Portugal e no Brasil, o ensino da Língua
Portuguesa, esse ensino seguiu a tradição do ensino do latim, isto é, definiu-se e realizou-
se como ensino da gramática do português, ao lado do qual manteve-se, até fins do século
XIX, o ensino da retórica e da poética Assim, quando, em 1837, foi criado, no Rio de
Janeiro, o Colégio Pedro II, que se tornou, durante décadas, o modelo e padrão para o
ensino secundário no Brasil, o estudo da língua portuguesa foi incluído no currículo sob a
forma das disciplinas Retórica e Poética, abrangendo esta a Literatura; curiosamente, só no
ano seguinte, em 1838, o regulamento do Colégio passa a mencionar a Gramática Nacional
como objeto de estudo.
Retórica, Poética, Gramática estas eram, pois, as disciplinas nas quais se fazia o ensino da
língua portuguesa até o fim do Império. Em meados do século XIX o conteúdo gramatical
ganha a denominação de Português, e em 1871 foi criado no pais, por decreto imperial, o
cargo de Professor de Português.*
Por outro lado, fatores internos explicam a persistência, por tanto tempo, de um ensino da
língua entendido como estudos de gramática, retórica e poética; o conhecimento que então
se tinha da língua era aquele transferido do conhecimento da gramática do latim, da retórica
e da poética aprendidas de e em autores latinos e gregos. Que outra coisa se poderia
ensinar? Assim, na disciplina Português, durante todo esse período, estudava- se a
gramática da língua portuguesa, e analisavam-se textos de autores consagrados, ou seja;
persistiu, na verdade, a disciplina gramática; para a aprendizagem sobre o sistema da
língua, e persistiram a retórica e a poética, estas adquirindo, é verdade, novas roupagens
ao longo do tempo. à medida que a oratória foi perdendo o lugar de destaque que tinha até
meados do século XIX tanto no contexto eclesiástico quarto no contexto social, a retórica e
a poética foram assumindo o caráter de estudos estilísticos, tal como hoje os conhecemos,
e foram-se afastando dos preceitos sobre o falar bem, que já não era uma exigência social,
para substituí-los por preceitos sobre o escrever bem já então exigência social. Assim,
embora a disciplina curricular se denominasse Português persistiram, embutida nelas, as
disciplinas anteriores, até mesmo com individualidade e autonomia, o que se comprova pela
convivência na escola, nas quatro primeira décadas deste século, de dois diferente e
independentes manuais didáticos: as gramáticas e as coletâneas de textos. Evidenciam
essa convivência com independência a publicação concomitante de gramática e seletas,
ambos os gêneros com forte presença na escola, nas primeiras décadas do século XX
A partir dos anos 50 é que começa a ocorrer uma real modificação nas condições de ensino
e de aprendizagem da disciplina Português - fatores externos: uma progressiva
transformação das condições sociais e culturais e, sobretudo, das possibilidades de acesso
à escola vai exigindo a reformulação das funções e dos objetivos dessa instituição Em
primeiro lugar, é a partir desse momento que começa a modificar-se profundamente o
alunado: como conseqüência da crescente reivindicação, pelas camadas populares, do
direito à escolarização; democratiza-se a escola, e já não são apenas os filhos da burguesia
que povoam as salas de aula, São também os filhos dos trabalhadores - nos anos 60, o
número de alunos no ensino médio quase triplicou, e duplicou no ensino primário. Em
segundo lugar, e como conseqüência da multiplicação de alunos, ocorreu um recrutamento
mais amplo e, portanto, menos seletivo de professores embora estes fossem, já, em grande
parte, oriundos das recém-criadas Faculdades de Filosofia, formados não só em conteúdos
de língua e de literatura, mas também de pedagogia e didática. As condições escolares e
pedagógicas, as necessidades e exigências culturais passam, assim, a ser outras bem
diferentes.
No entanto, não houve grande alteração nos fatores internos, isto é, nos conhecimentos
sobre a língua; esta continuou a ser concebida como um sistema cuja gramática deveria ser
estudada, e como um instrumento de expressão para fins retóricos e poéticos. Assim, não
houve alteração significativa no objeto e nos objetivos da disciplina Português. E verdade
que gramática e texto, estudo sobre a língua e estudo da língua, começam a deixar de ser
duas áreas independentes, e passam a articular-se: ora é na gramática que se vão buscar
elementos para a compreensão e a interpretação do texto, ora é no texto que se vão buscar
estruturas lingüísticas para a aprendizagem da gramática. Assim, ou se estuda a gramática
a parti do texto, ou se estuda o texto com os instrumentos que a gramática oferece.
Uma delas é que é nessa época que se intensifica o processo de depreciação da função
docente. a necessidade de recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores, já
anteriormente mencionado, resultado da multiplicação de alunos, vai conduzindo a
rebaixamento salarial e, conseqüentemente, a precárias condições de trabalho, o que
obriga os professores a buscar estratégias de facilitação de sua atividade docente: uma
delas é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios. Acrescente-se a
isso o fato de que o rebaixamento salarial, e conseqüente perda de prestígio da profissão
docente, muda significativamente a clientela dos cursos de Letras, que começam a atrair
para o magistério indivíduos oriundos de contextos pouco letrados, com precárias práticas
de leitura e de escrita. Enquanto isso, os Formadores de professores, nas Faculdades de
Filosofia, eram especialistas que desconheciam as novas condições de letramento de seus
alunos, futuros professores, e também, desconheciam a nova realidade da escola e do
alunado à espera desses futuros professores, o que se explica por se terem formado em
outras condições sociais e educacionais. Por isso, não se propunham propriamente o
objetivo de formar professores, mas estudiosos da língua e da literatura.
Mas não são apenas as ciências lingüísticas que vêm constituindo os fatores internos de
determinação do ensino de Português e, portanto, de definição dos professores que
queremos formar. Recentemente, três novas áreas de estudo introduzem a necessidade de
orientar o ensino da língua também por perspectivas históricas, sociológicas e
antropológicas: a História da Leitura e da Escrita, a Sociologia da Leitura e da Escrita, a
Antropologia da Leitura e da Escrita, especializações da História, da Sociologia e da
Antropologia, ao investigar e analisar, a primeira, as práticas históricas de leitura e escrita, a
segunda, as práticas sociais de leitura e escrita, a terceira, os usos e funções da leitura e da
escrita em diferentes grupos culturais, propõem questões que um ensino de língua não
pode deixar de levar em consideração: como se explicam as práticas de leitura e de escrita
atuais, à luz das práticas do passado? Quais são essas práticas atuais de leitura e de
escrita, que demandas de leitura e de escrita são feitas e serão feitas aos alunos nas
sociedades grafocêntricas em que vivemos? Que práticas de leitura e escrita têm aqueles
que pretendem formar-se professores de Português? Que gêneros de texto, que portadores
de texto circulam nessas sociedades? Que funções e que usos têm a leitura e a escrita no
grupo cultural a que os futuros professores e os futuros alunos desses professores
pertencem?
Pode-se concluir do exposto que a resposta à pergunta "Que professores de Português
queremos formar?" só pode ser encontrada considerando-se fatores internos à própria
disciplina "Português", isto é, fatores relativos ao estatuto atual da área de conhecimentos
sobre a língua, e fatores externos, relativos ao contexto social, político, cultural.
A inevitável consideração dos fatores externos exige resposta às perguntas: Que grupos
sociais estão hoje demandando a profissão de professores de Português e, para isso,
freqüentam as salas de aula dos cursos de Letras? Por outro lado, que grupos sociais têm
hoje acesso á escola fundamental e média, quem são esses para quem os professores que
formamos ensinarão Português? Em outras palavras; quem são estes que devemos formar
como professores de Português, e quem são esses a quem ensinarão eles a língua? E
mais: que expectativas, interesses, objetivos tem a sociedade em relação à escola e ao
Português que se deve ensinar e aprender nela? Em que estrutura de sistema educacional
se insere a escola e o ensino da língua?
Antes de mais nada, devemos definir o que é texto ou discurso: "ocorrência lingüística
falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e
formal" (Costa Val, 1999 ).
- tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação informativa e comunicativa, levando-
se em conta o desempenho formal (conhecimento da língua e do contexto sociocultural em
que se insere o discurso);
Semântico-conceitual - diz respeito à coerência, ou seja, um texto deve ser percebido pelo
receptor como um todo significativo;
Tendo em vista o que as pessoas têm a dizer umas às outras, não se emitem palavras
soltas e sim textos. Chamamos textualidade ao conjunto de características que fazem com
que um todo seja um texto e, não apenas, uma seqüência de frases. É bastante sabido ser
a textualidade decorrência não só de fatores lingüísticos (coesão, coerência e
intertextualidade) como de fatores pragmáticos (intencionalidade, situacionalidade,
informatividade e aceitabilidade), já apontados em Beaugrande e Dressler (1983). Analisar a
textualidade significa analisar a presença dos mencionados fatores. As regras para seu
emprego decorrem, em grande parte, da "gramática intuitiva dos falantes d e uma dada
língua. Esse trabalho requer cooperação entre interlocutores, de modo que eventuais falhas
do produtor são percebidas como não-significativas, ou são cobertas pela tolerância do
receptor. A margem de tolerância é tanto maior quanto mais conhecido é o assunto, maior o
convívio entre interlocutores e mais informal é a situação.
Quanto aos trabalhos escolares, isto é, os textos produzidos pelos alunos, não só nas
"aulas de redação", como também em outras disciplinas, nas chamadas questões
dissertativas, a queixa generalizada é serem esses trabalhos mera repetição de frases
feitas, pouco além da cópia, muitas vezes até com desconhecimento do que se está
dizendo, ou transcrevendo.
A falta de ter o que dizer é o fator responsável pelo uso de chavões, de frases de efeito e ,
até mesmo , de incoerências.
A situação, em geral, é a seguinte: o aluno escreve para interlocutor nenhum, sem qualquer
propósito, a não ser receber uma nota, sem a qual não passará de ano. O professor é, para
o aluno, um revisor, um apontador de "erros", que farão, apenas, com que a nota seja
rebaixada. Os atos de revisão, quase sempre, caem no vazio, não levam a direção alguma.
Sua meta não existe, já que, no próximo trabalho, o tema será outro e os "erros de
português" serão outros. Para que, então, aprimorar um trabalho que não tem
continuidade? Não é de admirar que essa situação gere insegurança, fazendo com que o
aluno copie de obra publicada, ou peça a outra pessoa que faça a redação. Gera-se uma
situação de impasse, que perdura, em alguns casos, por uma vida inteira. Os professores
de português, ao se identificarem, já contam com a reação de algumas pessoas, de
intimidação, por vezes, com alguma ironia, e o comentário: "sou péssimo em português", às
vezes com o acréscimo: "no inglês, eu me garanto". Falar sobre o que não se conhece é
difícil. Escrever, pior ainda. Escrever sobre o que não se conhece, apenas para cumprir
obrigação, é a pior situação possível. Em geral, se fornece um modelo formal, solicitando-se
reflexões sobre o tema dado, isto é, a estrutura sintatico-semântica não decorre da reflexão
sobre o tema, e sim, o contrário: um arcabouço preenchido com fragmentos de reflexão, ou
evocações desarticuladas. Outro procedimento seria a estratégia de transferência, pela qual
o aluno apenas transferem regras de uso de sua produção oral à produção de seus textos
escritos. Portanto, não devemos estranhar quando as redações não correspondem ao que
se espera de um texto autêntico. Faz-se necessário instaurar, na sala de aula, situações em
que a linguagem seja usada como meio de alcançar um objetivo que tenha a ver com as
necessidades e interesses dos alunos: trocar experiências, ler artigos de jornal com fatos
interessantes, ler por lazer, etc. O diálogo é um jogo, e, como tal, só se efetiva se ambos os
parceiros o desejarem. Não existe diálogo/texto no vazio.
Análise
Vêm a seguir, alguns parágrafos em que o autor pretende desenvolver seu pensamento.
Mas ao leitor resta a pergunta: que têm a ver desemprego e violência com o meio social e a
não-predestinação? Aí a descontinuidade se mostra no plano da coesão. A expressão tanta
violência apresenta-se sem co-referente. Não há meio de recobrar, no texto, o seu
antecedente. O uso do intensificador pode remeter ao contexto histórico (a exacerbação da
violência no Brasil), mas não remete a nenhum elemento do texto. A quarta frase pretende
ser uma frase nominal, sem predicado explícito, mas essa idéia não está bem apresentada,
restando uma sensação de incompletude de sentença. A afirmação desemprego é a
principal causa de tanta violência é corriqueira, previsível, dispensa comprovação toma-se
por verdade inquestionável. Mas não fornecem dados necessários para saber por que
trabalho não seria solução e que providências devem ser tomadas.
Com todos esses problemas a fugir do padrão de textualidade, o trabalho não apresenta
muitos desvios da chamada norma culta, com poucas falhas no tocante à ortografia e
pontuação.
No segundo texto há mais fluência, com estruturação. Começa com afirmativa instigante,
demonstrando estar o autor bem informado. Mesmo a expressão batida violência gera
violência é tomada com ironia, demonstrando sentido crítico. O autor opondo suas idéias às
do deputado das armas, opõe vida a violência. Em vida incluem-se, com propriedade: casa,
trabalho, saúde e bem estar.
A conclusão retoma a afirmativa inicial e o título, mantendo assim perfeita coesão. Essa
redação, com bom índice de textualidade, apresenta falhas gritantes de grafia e pontuação.
Essas falhas nada têm a ver com a substância do texto em si e sim com a maneira de
representá-lo no código escrito. Se o texto fosse lido em voz alta, não se detectaria nenhum
"erro" . No entanto, esses aspectos são, às vezes, super-valorizados, fazendo com alunos,
receosos da nota baixa, produzam redações certinhas, ainda que frágeis em conteúdo.
BIBLIOGRAFIA
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1995.
KOCH, Ingedore G. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Cortez, 1997.