O documento discute as cantigas do trovador medieval Joan Zorro, analisando suas características e temas comuns. As cantigas exploram símbolos como rios, mares e cabelos e geralmente descrevem encontros entre donzelas e o rei, sugerindo ritos de passagem ou pedidos de casamento. A análise sugere que as cantigas compartilham uma coerência temática e estilística, apesar de usarem formas fixas da poesia trovadoresca.
O documento discute as cantigas do trovador medieval Joan Zorro, analisando suas características e temas comuns. As cantigas exploram símbolos como rios, mares e cabelos e geralmente descrevem encontros entre donzelas e o rei, sugerindo ritos de passagem ou pedidos de casamento. A análise sugere que as cantigas compartilham uma coerência temática e estilística, apesar de usarem formas fixas da poesia trovadoresca.
O documento discute as cantigas do trovador medieval Joan Zorro, analisando suas características e temas comuns. As cantigas exploram símbolos como rios, mares e cabelos e geralmente descrevem encontros entre donzelas e o rei, sugerindo ritos de passagem ou pedidos de casamento. A análise sugere que as cantigas compartilham uma coerência temática e estilística, apesar de usarem formas fixas da poesia trovadoresca.
O documento discute as cantigas do trovador medieval Joan Zorro, analisando suas características e temas comuns. As cantigas exploram símbolos como rios, mares e cabelos e geralmente descrevem encontros entre donzelas e o rei, sugerindo ritos de passagem ou pedidos de casamento. A análise sugere que as cantigas compartilham uma coerência temática e estilística, apesar de usarem formas fixas da poesia trovadoresca.
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CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004.
96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em
http://www.letras.ufmg.br/poslit 1 As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos Viviane Cunha Universidade Federal de Minas Gerais
Joan Zorro, que em razo das referncias nas suas cantigas ao rei de Portugal e aos topnimos Portugal e Estremadura, poder-se-ia identificar como um jogral de origem portuguesa, exerceu a sua atividade potica durante o reinado de Dom Dinis (1279-1325). O conjunto das cantigas atribudas a Joan Zorro (nove cantigas de amigo, uma cantiga de amor e uma pastorela) compe-se de vrios sub-gneros: sete barcarolas, uma bailia<1>, duas tenes e uma pastorela, que Lorenzo Gradn
(Dicion.) considera como sendo de carter hbrido: meio-caminho entre a pastorela e o Frauenlied. Para o estudo desse pequeno corpus fundamentamo-nos na edio crtica apresentada por Cunha (1949<2>), e todas as referncias, salvo outras explicaes, remetem a ela. Segundo esse autor, cada um procura extrair do sistema lingstico, que utiliza, as formas e as frmulas que melhor possam exprimir seu pensamento; todavia, em certas pocas e em certas situaes, o trao estilstico pessoal perde-se nos traos coletivos. H, na atividade literria, mais especificamente, na Idade Mdia, uma srie de componentes gerais permanentes, que so bsicos: o aspecto formal comum, rgido e repetido ; o vocabulrio reduzido e fixo; as construes so idnticas; a temtica reiterada - h variaes em torno de temas j consagrados, nos quais o trao individual torna-se secundrio. O ideal literrio funda-se, ento, no domnio da tcnica comum: o poeta ser melhor medida que ele revele uma virtude cannica, utilizando processos, temas e frmulas correntes. (cf. Cunha, 1949, p. 4) Segundo Cunha (1949, p. 4), as cantigas trovadorescas apresentam formas fixas, assim como so fixos os tipos de versos, as disposies das estrofes, os apoios fonticos, os clichs, as formas de tratamento e os adjetivos, sobretudo os superlativos. Malgrado isso, parece-nos que se pode observar, em certos poetas medievais, uma marca de autor (como acontece nas cantigas de Pero Meogo), que as distingue, mais ou menos, da maioria dos poetas corteses. O conjunto das cantigas de Joan Zorro apresenta uma temtica comum, uma preferncia por certos topoi, como por exemplo, o rio e o mar, que so exclusivos de um nmero reduzido de poetas galego-portugueses. Analisando a repetio das palavras mar e rio nas seis cantigas, que fazem parte de um repertrio constitudo de onze cantigas, pode-se observar, que elas so componentes de um discurso mais ou menos unitrio, no qual existe uma certa coerncia temtica e estilstica. A seqncia das cantigas de Joan Zorro estabelecida por Tavani e adotada por Lrica Profana Galego- Portuguesa (1996)<3> nos permite observar, nesse corpus, um texto nico, quer dizer, uma variao em torno de um tema comum. Segundo Lorenzo Gradn<4>, as cantigas de Joan Zorro renem caractersticas tradicionais, que as distanciam da esttica da poesia corts, pelo fato de que so todas cantigas de refro, com uma preferncia pela tcnica do paralelismo e do leixa-pren<5>, e pelos processos formais da assonncia, do verso irregular, pela utilizao freqente do tema da barcarola e pela introduo de um smbolo natural: os cabelos (em uma das cantigas). Parece, entretanto, que esses caracteres no impedem uma presuno de terem as cantigas sido criadas e cantadas num meio corts. Alm do mais, o conjunto das cantigas evoca, explicitamente, o universo corts, o que raro na cantiga de amigo. Isto se pode depreender, atravs da figura do rei, e da cantiga de amor, a inserida, mesmo se essa ltima, conserva a forma da cantiga de amigo. Seguindo-se a ordem das cantigas adotada por Tavani, pode-se observar na primeira cantiga (B 1158 (bis), V 761) uma bailia, onde a donzela convida alegremente suas amigas a danar: Baylemos agora, por Deus, ay velidas / s aquestas avelaneyras frolidas. Trata-se, talvez, de uma espcie de prlogo, se considerarmos o conjunto de cantigas, como uma pea nica, ou como um texto nico. uma cantiga de paralelismo, que compe-se de duas estrofes de quatro versos, seguidas de um refro de dois versos, a partir da leitura de Cunha (1949, p.59), da qual citamos, apenas, a primeira estrofe, pois, a segunda uma repetio: Bailemos agora, por Deus, ay velidas, s aquestas avelaneyras frolidas e quen fr velida, como ns velidas, s'amig'amar, s aquestas avelaneyras frolidas verra bailar ! Na segunda estrofe da mesma cantiga, loadas substitui velidas belas' e granadas substitui frolidas, adjetivos que assumem, aqui, a funo de substantivos. Estamos, sem dvida, diante de um locus amoenus: as avelaneiras floridas, CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 2 onde as donzelas belas ou louvadas, que esto enamoradas, ou que tm um amigo (s'amig'amar) - so convidadas a danar. possvel, que a cantiga evoque um desses ritos de passagem: a iniciao das jovens, na vida amorosa. As avelaneiras floridas so um motivo da Natureingang, e possvel, que as donzelas a se renam para danar e celebrar a chegada da primavera. A segunda cantiga (B 1154, V 756): Cabelos, los meus cabelos uma cantiga dialogada, de duas estrofes, seguidas de refro (onde a filha fala em trs versos e a me lhe responde no refro). Num discurso direto, a filha pergunta me o que ela deve fazer com os seus cabelos ou com as suas tranas, e a me lhe aconselha a d-los ao rei: I - Cabelos, los meus cabelos, el-rey m'enviou por elos! Madre, que lhis farey ? -Filha, dade-os a el-rey.
II Garcetas, las myas garcetas, el-rey m'enviou por elas! Madre, que lhis farey ? Filha, dade-as a el-rey. Essa cantiga apresenta alguns elementos simblicos, como os cabelos/as tranas, que significam o pedido de casamento donzela, por parte do rei, possivelmente, para algum que se encontra em seu domnio<6>. Por outro lado, os cabelos, como nas cantigas de Pero Meogo<7>, podem ser um smbolo, entre outros, de seduo, e na Idade Mdia, esse um topos freqente, sobretudo, nas narrativas melusinianas. Na terceira cantiga (B 1153, V 755) o sujeito falante - em todos os dsticos e no refro - a me, uma narradora em terceira pessoa, que utiliza formas de futuro. As quatro estrofes se assemelham, com apenas uma pequena variao dos verbos lavrare ~ fazere e deytare ~ metere, que so equivalentes na cantiga, da qual citamos apenas a primeira e a terceira estrofes: I El-rey de Portugale barcas mandou lavrare, e la iran nas barcas migo mya filha e noss'amigo.
III Barcas mandou lavrare e no mar as deytare, e la iran nas barcas migo mya filha e noss'amigo. Em torno desses quatro personagens citados na cantiga, se constri uma narrativa inteiramente simblica: a me, que conduzir sua filha ao rei, e o amigo comum (noss'amigo) que as acompanha. Aqui, o vocbulo amigo no se refere ao bem amado, mas a uma pessoa prxima da famlia, a quem est ligado por laos de amizade. Na quarta cantiga (B 1151, V 754), o discurso em primeira pessoa faz-nos entrever o rei como actante, numa espcie de monlogo, tratando-se aqui de uma cantiga de amor: I En Lixboa sobre lo mar barcas novas mandey lavrar, ay mya senhor velida!
II En Lixboa sobre lo lez barcas novas mandey fazer, ay mya senhor velida! CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 3 III Barcas novas mandey lavrar e no mar as mandey deytar, ay mya senhor velida!
IV Barcas novas mandey fazer e no mar as mandey meter, ay mya senhor velida! Essa cantiga, malgrado a repetio das estrofes, deve ser citada integralmente, porque uma cantiga de amor, que conserva a forma da cantiga de amigo, isto , ela apresenta o refro e o paralelismo. Pode-se observar, a, uma espcie de eco da cantiga anterior, na qual se encontra o mesmo discurso: o sujeito do enunciado o rei, que, encontrando-se na corte de Lisboa, mandou construir barcas, e mandou coloc-las no mar. No refro, pode-se notar a admirao do rei: ay mya senhor<8> velida!, clich tpico da cantiga de amor. A quinta cantiga (B 1157, V 759) - Jus'a lo mar e o rio - apresenta o discurso da filha nas duas primeiras estrofes e o da me nas duas estrofes seguintes: I Jus'a lo mar e o rio eu namorada irey, U el-rey arma navio, Amores, convusco m'irey.
II Jus'a lo mar e o alto eu namorada irey, U el-rey arma o barco, Amores, convusco m'irey.
III U el-rey arma navio eu namorada irey, pera levar a virgo, Amores, convusco m'irey.
IV U el-rey arma o barco eu namorada irey, pera levar a d'algo, Amores convusco m'irey. A me acompanha sua filha, uma donzela feliz de estar no barco, pois ela fora pedida em casamento. Na sexta cantiga (B 1156, V 758), de duas estrofes dsticas, seguidas do refro, o rei manda reconduzir a jovem regio de onde ela tinha vindo, isto , a Estremadura: I Met'el-rey barcas no rio forte ; quen amig'a que Deus lh'o amostre: ala vay, madr', ond'ey suidade!
II Met'el-rey barcas na Estremadura: quen amig'a que Deus lh'o aduga: ala vay, madr', ond'ey suidade! Narrada na terceira pessoa - pela me ou pela filha - a cantiga apresenta a voz da donzela no refro: ala vay, madr', ond'ey suidade, e ressoa como uma espcie de preldio cantiga seguinte, isto , stima cantiga, segundo a ordem estabelecida por Tavani. CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 4 Na narrativa da cantiga (B 1149, V 752), que uma teno entre me e filha, pode-se perceber a decepo e a tristeza da jovem, o que faz supor uma desiluso amorosa. Observemos a cantiga: I -Os meus olhos e o meu coraon e o meu lume foy-se con el-rey! -Quen est', ay filha, se Deus vos perdon ? Que my-o digades gracir-vo-lo-ey. Direy-vo-l'eu e, poys que o disser, non vos ps, madre, quand'aqui veer.
II -Que coyt'ouv'ora el-rey de me levar quanto ben avia, nen ey d'aver! -Non vos ten prol, filha, de my'o negar, ante vo-lo terra de my-o dizer. -Direy-vo-l'eu e, poys que o disser, non vos ps, madre, quand'aqui veer. A dor de amor (a coita) parece ser o tema central dessa cantiga. possvel que a me tenha conduzido a filha, com a esperana de que o rei, ou uma pessoa do seu domnio, se enamorasse de sua filha, e a tomasse como esposa. A filha, que, talvez, tenha sido um simples objeto de desejo, se sentia profundamente infeliz, porque perdera tudo o que possua: a alegria de viver, prpria da sua idade (como demonstra a primeira cantiga), a virgindade, e, possivelmente, at mesmo seu antigo amor. Todavia, a cantiga Pela ribeyra do rio (B 1155, V 757) apresenta um motivo totalmente contrrio ao da cantiga precedente: I Pela ribeyra do rio cantando ia la dona-virgo d'amor: Venham nas barcas polo rio a sabor .
II Pela ribeyra do alto cantando ia la dona d'algo d'amor: venham nas barcas polo rio a sabor . A cantiga, de duas estrofes dsticas narrada na terceira pessoa, apresenta a voz da donzela, no refro, onde ela almeja, que com as barcas, venham notcias do amigo. Talvez, ela se lembre dos bons momentos passados (a sabor) para atenuar a sua infelicidade (cf. a cantiga precedente) e reencontre sua alegria. A cantiga seguinte, Pela ribeyra do rio salido (B 1158, V 760), compe-se de duas estrofes dsticas, seguidas de um refro de quatro versos, cujo tema o mesmo que o da cantiga precedente, com a diferena, de que aqui a filha se dirige sua me, e lhe fala das lembranas de seu amigo. Citamos apenas a primeira estrofe, j que, a segunda uma repetio, apenas se alternando os vocbulos salido (I, 1) ~ levado (II, 1) e amigo (I, 2) ~ amado (II, 2): I Pela ribeyra do rio salido trebelhey, madre, con meu amigo: amor ey migo que non ouvesse! fiz por amigo que non fezesse! A dcima cantiga apresenta o mesmo motivo das duas cantigas anteriores, como se essas trs cantigas (VIII, IX, X) fossem eco uma da outra, o que produz um efeito, quase, musical. Essa cantiga, composta de seis estrofes dsticas, mais o refro de um verso, repete o mesmo tema das outras: a alegria amorosa. Isso parece reforar o que dissemos acima: a donzela deve se lembrar do tempo passado quando ela amava, e seu amor era correspondido. A cantiga CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 5 apresenta o paralelismo e um encadeamento perfeito, na seguinte estrutura: abR, a'b'R, bcR, b'c'R, cdR, c'd'R, da qual temos o prottipo: abcdR. Citamos apenas as estrofes mpares, j que as estrofes pares so repeties, com uma alternncia de palavras sinnimas, no havendo mudana semntica dos versos. Eis aqui as estrofes mpares da cantiga (B 1150, V 753): I Per ribeyra do rio vi remar o navio, e sabor ey da ribeyra.
III Vi remar o navio: i vay o meu amigo, e sabor ey da ribeyra.
V I vay o meu amigo, quer-me levar consigo, e sabor ey da ribeyra. A donzela se encontra margem do rio, onde v passar o navio, no qual est seu amigo, que quer lev-la consigo. As trs cantigas - isto , a oitava, a nona e a dcima cantigas da srie organizada por Tavani - so todas elas barcarolas (ou marinhas, como preferem alguns) e apresentam um tema comum, isto , o rio profundo: rio salido, rio levado (cf. IX cantiga), as barcas que passam, e sobretudo a alegria da donzela. O cenrio parece ser um elemento inteiramente simblico. A dcima primeira cantiga da srie, constituda de trs estrofes de quatro versos e de um refro igualmente de quatro versos, apresenta a voz de um narrador de terceira pessoa (talvez o poeta mesmo), e a voz da donzela, no refro. Essa cantiga, talvez uma espcie de eplogo do conjunto das cantigas de Joan Zorro, confirma o sofrimento da donzela aps sua estadia (?) , na corte do rei. Cremonesi (1947) observou que o poeta est sempre do lado das heronas das cantigas de tela francesas: parece que nas cantigas de amigo, igualmente, o poeta pende mais para essas heronas annimas, o que se manifesta, nitidamente, na cantiga (Quen viss'andar fremosia, B 1148a, V 751) de Joan Zorro, atravs da voz do narrador: I Quen viss'andar fremosia, com'eu vi, d'amor coytada e tan muito namorada que, chorand'assi dizia: Ay amor, leyxedes-m'oje de s lo ramo folgar e depoys treydes-vos migo meu amigo demandar!
II Quen viss'andar a fremosa, con'eu vi d'amor chorando e dizendo e rogando por amor da Gloriosa: (...)
III Quen lhi viss'andar fazendo queyxumes d'amor d'amigo que ama e, sempre sigo chorando, assi dizendo: (...) Segundo o narrador, a donzela, abatida e chorando, por causa de seu infortnio, encontra-se sob uma rvore, onde descansa, e suplica, ao mesmo tempo, a Amor e Virgem, para ajud-la a reconquistar o amigo, que ela sempre amou. O conjunto das cantigas de Joan Zorro apresenta uma unidade temtica e formal indiscutveis, e parece-nos, que CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 6 se pode pensar, numa leitura serial, como a que Tavani (1998) props, para as cantigas de Martin Codax. As onze cantigas de Joan Zorro representariam - assim como as cantigas de Pero Meogo<9> - uma pequena dramatizao estruturada na seqncia dos incipits a saber: a donzela, na sua vitalidade juvenil, encontra-se numa paisagem primaveril, a danar em companhia de suas amigas: ( I ) Baylemos agora, por Deus, ay velidas. O rei - ou algum sob a sua proteo - possivelmente a viu e a escolheu como sua favorita: (II) Cabelos, los meus cabelos. A me e a filha vo a Lisboa acompanhadas de um amigo comum: (III) El-rey de Portugale. O rei espera impacientemente a bela: (IV) En Lixboa sobre lo mar. No barco enviado pelo rei, a me leva a donna virgo: (V) Jus'a lo mar e o rio. O que se passara na corte do rei no explicitado para o leitor, ou antes, para o ouvinte da cantiga, mas subentende-se, que alguma coisa ali acontecera, uma vez que, a jovem acaba por retornar: (VI) Met'el-rey barcas no rio forte. A donzela encontra-se de tal modo angustiada, que a me ao perceber isto a interroga: (VII) Os meus olhos e o meu coraon. O poema segue num crescendo at o momento mais dramtico: a desiluso. Em seguida, vem um allegretto, onde um narrador em terceira pessoa introduz a donzela, lembrando-se dos momentos em que ela era feliz, porque o amigo correspondia ao seu amor: (VIII) Pela ribeyra do rio. Na cantiga seguinte, a donzela se lembra dos dias felizes, dialogando com sua me: (IX) Pela ribeyra do rio salido. Em seguida, s ou (em solo) ela canta a sua felicidade, alternando formas do passado e do presente: (X) Per ribeyra do rio. Enfim, o eplogo apresenta uma jovem exaurida, sentada sob os galhos das rvores como para retomar foras, pedindo a Amor e orando Virgem (e eis aqui o sincretismo medieval), para trazer-lhe de volta seu amigo: (XI) Quem viss'andar fremosia. Se considerarmos as cantigas como peas de um discurso unitrio teremos, aqui, uma pequena histria dramatizada, que observa os preceitos da retrica medieval: a exordia (proemium) ; a argumentao (argumentatio) composta da narrao, do tratado e da demonstrao (narratio, tractatio et probatio) ; a refutao (refutatio) e o eplogo (epilogus)<10>. A narrativa comea por um prlogo, constitudo de um motivo primaveril, que evoca uma espcie de ritual, como acontece nas canes gregas antigas. Lembremos, aqui, o episdio de Persfone (relatado no Hino a Demter), que brincava, alegremente, com suas amigas, quando foi raptada por Hades. Na cantiga de Joan Zorro, possvel que o rei (ou algum de seu domnio) estivesse passeando pelo bosque, e ao ver a donzela danar sentira-se atrado por ela, o que pode ser confirmado pela segunda cantiga: o desejo pelos cabelos ou tranas da donzela, smbolo de um pedido de casamento, no qual, a questo da virgindade est implcita. Tudo isto, pode ser corroborado, pelo cenrio: as donzelas se encontram danando sob as avelaneiras floridas, como uma espcie de exordia ou proemium, e nos encontramos, assim, num universo simblico, que evoca um imaginrio mtico, j que, a avelaneira representa uma rvore da fertilidade. Uma variante dessa cantiga apresentada pelo trovador Airas Nunes - provavelmente um clrigo galego - que, possivelmente, comps as suas cantigas, na corte de Sancho IV (1284-1289), e manteve relaes literrias com Joan Zorro (e outros poetas da Pennsula Ibrica). Trata-se da cantiga Bailemos ns j todas tres, ai amigas (B 879, V 462): I Bailemos ns j todas tres, ai amigas, so aquestas avelaneiras frolidas, e quen for velida como ns, velidas, se amigo amar, so aquestas avelaneiras frolidas verra bailar. II Bailemos ns j todas tres, ai irmanas, so aqueste ramo d'estas avelanas, e quen for louana como ns, louanas, se amigo amar, so aqueste ramo d'estas avelanas verra bailar.
III Por Deus, ai amigas, mentr'al non fazemos so aqueste ramo frolido bailemos, e quen ben parecer como ns parecemos, se amig'amar, so aqueste ramo, sol que ns bailemos, verra bailar. CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 7 Malgrado a semelhana, entre essa cantiga e a de Joan Zorro, parece-nos importante cit-la integralmente, uma vez, que ela apresenta uma forma diferente, e que nela, aparece o tema tradicional das avelaneiras; o que confirmaria, de certa maneira, a teoria do carter arcaico das cantigas de amigo, to ressaltado pelos eruditos, que se tm ocupado do trovadorismo galego-portugus. A cantiga do trovador Airas Nunes se apresenta sob a forma de uma cantiga de seguir<11> o que nos remete teoria da imitatio, ou seja, a fonte como recurso, como bem o observou Goyet (1987, p. 318). A prtica da imitatio, no universo dos trovadores, est citada, no captulo V, do tratado de arte potica galego-portugus. O topos da avelaneira pode ser encontrado, entre outros, no lai Chievrefoil Madressilva' de Maria de Frana, no qual a avelaneira e a madressilva so smbolos do amor inseparvel de Tristo e Isolda. A ttulo de exemplificao, eis aqui uma passagem, na qual o narrador sintetiza a mensagem, que Tristo envia a Isolda - numa varinha de avelaneira - citada a partir de Harf-Lancner (1990, p. 264): Ceo fut la sume de l'escrit qu'il li aveit mand e dit: que lunges ot ilec est e atendu e surjurn pur esper e pur saveir coment il la pest veeir, kar ne poeit nent vivre senz li . D'els dous fu il tut autresi cume del chievrefueil esteit ki a la coldre si perneit: quant il s'i est laciez e pris e tut entur le fust s'est mis, ensemble poeent bien durer ; mes ki puis les vuelt desevrer, la coldre muert hastivement e li chievrefueilz ensement. (v. 61-76)<12> Segundo Chevalier & Gheerbrant<13>, a avelaneira e seu fruto tiveram um papel importante, no simbolismo dos povos germnicos e nrdicos: num conto islands, uma duquesa estril passeia em um bosque coberto de avelaneiras, para pedir aos deuses que a tornem frtil; a avel tem sempre o seu lugar nos ritos de casamento; e quebrar as nozes era considerado, na Alemanha, como eufemismo amoroso. Assim, a avelaneira tornou-se a rvore da orgia. A varinha da avelaneira era utilizada na Idade Mdia, entre outras supersties, para bater (trs vezes) na vaca, com a finalidade de que ela desse leite. Na cultura cltica, a avelaneira est, tambm, ligada s prticas mgicas. bem possvel que, na cantiga de Joan Zorro, a imagem das donzelas que danam represente, entre outros, um rito de fertilidade<14>, se a associarmos s cantigas subseqentes, que tm como cenrio os rios, e at mesmo o mar, tendo em vista que, Lisboa atravessada pelo rio Tejo, e situa-se na costa atlntica. possvel, que as embarcaes: barca, navio, sejam apenas componentes do espao, onde se passa a pequena histria: a regio da Estremadura at Lisboa. Todavia, pode-se tambm desvelar a, um certo simbolismo. Chevalier & Gheerbrant afirmam que, na China antiga, por exemplo, os casais de jovens faziam a travessia do rio, numa espcie de purificao preparatria fecundidade. Com efeito, se tomarmos o conjunto das cantigas de Joan Zorro, como uma pea nica, poderemos descobrir, a, um universo inteiramente metafrico: as embarcaes - componentes de uma paisagem quotidiana - esto associadas aos rios e ao mar, e todos esses elementos, como dissemos anteriormente, so, entre outros, smbolos de origem da vida. As barcas e os elementos aquticos, isto , os rios e o mar podem ser, tambm, smbolos de uma viagem, onde os ritos de iniciao se amalgamam aos mitos. Bibliografia Brea, M. (coord.) et al. Lrica Profana Galego-Portuguesa. Corpus completo das cantigas medievais, con estudio biogrfico, anlise retrica e bibliografa especfica. (1a edio). Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1996, 2 volumes, 1077 pginas. Cremonesi, C. Chansons de geste e Chansons de toile, dans: Studi Romanzi di Filologia e Letteratura. Brescia, 1984, p. 3-120. Chevalier & Gheerbrant. Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Lafond/Jupiter, 1982. Cunha, C. O Cancioneiro de Joan Zorro. Aspectos Lingsticos, Texto crtico, Glossrio. Rio de Janeiro, s. e., 1949. Cunha, V. Les voix des femmes dans l'univers roman mdival. Lille: A.N.R.T., 2004, 264 pginas. CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 8 Curtius, E. R. La littrature europenne et le Moyen Age latin. Paris: P.U.F. Agora, 1956. Dragonetti, R. La technique potique des trouvres dans la chanson courtoise. Contribution l'tude de la rhtorique mdivale. Brugge: s. e., 1960. Furtado, A. L. Lais de Maria de Frana. Traduo e introduo de A. L. F. Petrpolis: Vozes, 2001. Goyet, F. Imitatio ou Intertextualit (Riffaterre revisited), Potique, Septembre/1987, Seuil, p. 313-320. Harf-Lancner, L. Lais de Marie de France. Traduits, prsents et annots par L. Harf-Lancner. Texte dit par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. Lanciani, G. & Tavani, G. Dicionrio da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. Lorenzo Gradn, P. Joan Zorro', in: Dicionrio da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. Marie de France. Lais de Marie de France. Traduits, prsents et annots par L. Harf-Lancner. Texte dit par Karl Warnke. Paris: Le Livre de Poche, 1990. Marie de France. Lais de Maria de Frana. Traduo e introduo de A. L. Furtado. Petrpolis: Vozes, 2001. Tavani, G. Airas Nunes', Dicionrio da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. Tavani, G. Ainda sobre Martin Codax e Meendinho. Ondas do Mar de Vigo. Actas do Simpsio Internacional sobre a Lrica Medieval Galego-Portuguesa. Birmingham, 1998, p. 158-173. Vasconcelos, C. M. de. Cancioneiro da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. Reimpresso da edio de Halle (1904), 2 Volumes. Resumo: Estudo do corpus das onze cantigas de amigo de Joan Zorro, poeta do sculo XIII, partindo-se da hiptese de uma leitura serial, que permite a visualizar uma certa unidade discursiva, apresentando as cantigas, como pequenas composies de uma pea nica.
Rsum: Il s'agit d'une tude en srie des onze chansons d'ami du pote du XIIIe sicle, Joan Zorro, analyses comme composantes d'un texte unique, vu qu'elles prsentent une certaine unit discursive. Notas 1 Lorenzo Gradn, no Dicionrio da Literatura Medieval Galego e Portuguesa (Joan Zorro) observa que esta cantiga nomeada assim de maneira errada, pois ela no possui a forma de uma cantiga de dana; entretanto, parece-nos que seria antes o tema - um convite dana - que teria dado nome a esse sub-gnero da cantiga de amigo. 2 Cunha, C. O Cancioneiro de Joan Zorro. Aspectos Lingusticos,Texto crtico, Glossrio. Rio de Janeiro, s. e., 1949. 3 Adotamos aqui a mesma disposio das cantigas ordenadas por Tavani, no Indice bibliografico dei poeti e dei testi anonimi - Repertorio metrico della lirica galego-portoghese, Edizioni dell'teneo, Roma, 1967 (adotada tambm por Brea, M. et alii. In: Lrica Profana Galega Portuguesa, fonte de nossa citao) a qual diferente na edio crtica de Celso Cunha. 4 Dicionrio da literatura medieval galega e portuguesa, ver: Joan Zorro. 5 O mesmo que encadeamento perfeito. 6 Segundo Celso Cunha (1949, Glossrio) cabia ao rei casar os habitantes da corte - ele pedia para quem estava sob a sua proteo os cabelos da donzela, da mesma maneira que hoje se pede a mo de uma moa em casamento. Esse costume tem uma relao com os cabelos escondidos, que so signos da virgindade. Ainda se canta em Astrias: Ayer estaba sottera / con el cabelo tendido, hoy estoy prisonerina / ya al lado de mi marido. (cf. Carolina Michalis de Vasconcelos, C. A. , II, p. 922). 7 Cf. Cunha (2004, cap. VI) 8 A expresso senhor designa, como se sabe, a amada do poeta, nas cantigas de amor. Segundo as regras da cortesia o amante era um cavalheiro, que devia sua dama a mesma obedincia, que o vassalo devia ao seu senhor. Jeanroy assim escreve: Fauriel a dj remarqu que le chevalier donnait trs souvent la dame le titre de seigneur au masculin. L'expression consacre est midons o mi est la forme masculine du vocatif, dans la lyrique portugaise imite de la ntre, l'emploi du mot senhor est courant. (In: La posie occitane, p. 15 n 4, apud Cunha, op. cit., Gloss.) Entretanto, Cunha no compartilha dessa opinio: segundo ele, a forma senhor conserva, durante um certo tempo, nas lnguas romnicas - no portugus e no espanhol antigo, particularmente, o duplo gnero que ela tinha no latim. Todavia, o masculino se diferenciava do feminino pelo determinante ou pelo qualificativo empregado. O masculino se referia sempre a Deus, precedido, em geral, pelos possessivos Nostro e Meu ; o feminino designava a amiga do trovador, e, em geral, era precedido do possessivo mya, do qualificativo fremosa (ou de um sinnimo), ou dos dois modificadores ao mesmo tempo. Uma cantiga de mal dizer de D. Joan Soarez Coelho diz: E o vilo que trobar souber, / que trob'e chame senhor sa molher. 9 Cf. Cunha (2004, p. 166-168). 10 Cf. Dragonetti (1960, p. 140). CUNHA, Viviane. As cantigas de Joan Zorro: os mitos e os ritos. Revista do CESP, v.24, n.33, p.81-96, jan-dez 2004. ISSN 1676-515X. Disponvel em http://www.letras.ufmg.br/poslit 9 11 A cantiga de seguir pode ser classificada como uma modalidade anmala do contrafactum ou pardia. (cf. Tavani, Dic. Lit. Med. Gal Port.). 12 Trad. port.: Tal foi a soma total do escrito: anunciava que desde h muito ele estava residindo ali, espera, procurando saber como poderia v-la, pois no podia viver sem ela. Com eles dois se passava o mesmo que com a madressilva ao prender-se aveleira [ou avelaneira]: quando aquela se enlaa e adere a esta, e se pe em volta do tronco todo, juntas podem durar longamente; mas, se quiserem separ-las, a aveleira morrer logo e, igualmente, a madressilva. (In: Furtado, A. F. Lais de Maria de Frana. Petrpolis: Vozes, 2001, p. 132. 13 Cf. Dictionnaire de symboles. 14 Cf. Curtius (1956).