Montaigne, Waly, Caetano e A Cobra Coral
Montaigne, Waly, Caetano e A Cobra Coral
Montaigne, Waly, Caetano e A Cobra Coral
Resumo:
Em 2000, o poeta baiano Waly Salomão (1943-2003) publicou seu último livro, Tarifa de
Embarque, no qual havia um poema chamado “Cobra Coral”. No mesmo ano, o poema foi
musicado por Caetano Veloso e incluído no disco Noites do Norte. Em 2002, publicamos um texto
em que mostramos que o poema era uma transcriação da “canção da serpente” (chanson de la
couleuvre), citada pelo escritor francês Michel de Montaigne (1533-1592), no seu ensaio em defesa
da humanidade dos índios canibais brasileiros. O objetivo da comunicação é apresentar o fato
literário, justapondo o original francês, a tradução e a transcriação brasileiras, abrindo a
discussão sobre a zona fronteiriça entre tradução e transcriação, a partir desse exemplo concreto,
e suas implicações literárias e éticas.
Palavras-chaves: Montaigne, Waly Salomão, “canção da serpente”, transcriação, Caetano Veloso.
Introdução
O objetivo desta comunicação é apresentar um fato literário caracterizado pela apropriação de
um fragmento de texto de um autor sobre outro, envolvendo um escritor francês do século XVI e
um poeta baiano do século XXI. Os autores em questão são Michel de Montaigne (1533-1592) e
Waly Salomão (1943-2003), respectivamente. Poderíamos dizer que se trata de um caso de
transcriação, em que o texto de partida, originalmente escrito em francês, serviu de base, através da
tradução, para a criação de um segundo, em português. O texto de chegada é, ao mesmo tempo, uma
tradução e uma criação. A transcriaçao, conceito formulado por Haroldo de Campos e posto em
pratica pelos expoentes do Concretismo, propõe um tipo de tradução criativa, em que o tradutor, na
pele do escritor (ou do poeta), se permite alterar, acrescentando ou suprimindo determinadas
passagens do original, estabelecendo uma espécie de diálogo criativo com o autor e a tradição
literária.
Comecemos, portanto, pelos fatos. Em 2000, Salomão publicou seu último livro, Tarifa de
Embarque, no qual havia um poema chamado “Cobra Coral”. Para quem está familiarizado com os
Ensaios (e esse era o nosso caso por estarmos fazendo então uma tese sobre o autor francês)1, não é
difícil perceber a grande semelhança entre o poema de Salomão e a famosa “canção da serpente”
(chanson de la couleuvre), citada por Montaigne, em 1580, no seu ensaio “Dos canibais” (I, 31),
escrito em defesa da humanidade dos índios brasileiros, acusados então de serem “bárbaros” e
“selvagens”.
Para se contrapor a este juízo, amplamente difundido no século XVI, Montaigne procurou
apresentar, por assim dizer, “elementos de provas”, a fim de demonstrar que os índios eram seres
humanos completos (e não de segunda categoria, como postulavam os colonizadores europeus) e
que possuíam uma rica cultura oral, através de histórias e mitos que revelavam uma imaginação
digna das melhores obras literárias européias. A “canção da serpente”, diz Montaigne, lhe teria sido
transmitido por um empregado seu que teria passado “dez ou doze anos” no Brasil, durante o
período em que Nicolas Durand de Villegagnon comandou o projeto francês de implantação de uma
colônia no Novo Mundo, a França Antártica (1555-1560).
Depois de exaltar a vida natural e livre do índio brasileiro e de ter descrito determinados
aspectos da sociedade e dos costumes indígenas, Montaigne resume sua argumentação para então
citar a “canção da serpente”:
1
Defendida em 19/12/2003 na Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3), com o título de Civilisation et Barbarie
en France au temps de Montaigne, sob orientação de M. Claude-Gilbert Dubois.
XI Congresso Internacional da ABRALIC 13 a 17 de julho de 2008
Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil
Para que não se pense que tudo isto se faça por simples e servil obediência a seus hábitos e pela força
de autoridade de seus antigos costumes, sem raciocínio e sem julgamento, e porque têm a alma tão estúpida
que seja incapaz de fazer diferentemente, é preciso expor alguns traços de suas capacidades (suffisances).
Além daquele que acabo de recitar de uma de suas canções guerreiras, tenho outra, amorosa, que começa
assim: Serpente, pare; pare, serpente, a fim que minha irmã tire do modelo da tua pintura a forma e as
cores de um rico colar para que eu possa ofertá-lo à minha amada: assim sejam tua beleza e tuas
formas para sempre preferidas entre todas as outras serpentes. Estes primeiros versos são o refrão da
canção. Ora, conheço bastante de poesia para julgar isto. Não só não há nada de bárbaro nesta criação quanto
ela é perfeitamente anacreôntica. De resto, a língua deles é doce e tem sons agradáveis, próximos às
2
terminações da língua grega. (MONTAIGNE, 1999, p. 213) .
A “canção da serpente” tem uma curiosa fortuna literária, que passa pelos românticos
alemães, no século XVIII, antes de virar canção popular no Brasil, no século XXI, conforme
veremos adiante. A “canção da serpente” foi inicialmente traduzida por Herder como exemplo de
poesia popular em outros povos. Como se sabe, ele foi um dos principais mentores da primeira
geração do romantismo alemão, a Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), da qual fizeram parte
os jovens Goethe e Schiller3. Estava em busca do gênio nacional, do genuíno espírito do povo
alemão (volkgeist), a fim de se contrapor ao pensamento iluminista francês cuja exaltação de uma
Razão Universal, impessoal e abstrata, tendia a obscurecer as manifestações particulares de outras
“razões”, não menos belas e representativas. Em 1783, Goethe traduziu a “canção da serpente”
como “canção de amor de um selvagem americano” (Liebeslied eines Amerikanischen Wilden)4. Ela
aparece no pensamento de Goethe como exemplo da “literatura mundial” (weltliteratur), conceito
formulado por ele e exposto por seu amigo Eckermann nas suas Conversações com Goethe5. A idéia
consiste em projetar um conceito de literatura que ultrapasse os modelos literários europeus e as
barreiras lingüísticas, de forma a incluir as mais diversas expressões do imaginário de qualquer
povo, em qualquer tempo ou lugar. As traduções cumpriam a função de intermediar as trocas
culturais, permitindo o conhecimento das mais diversas manifestações literárias estrangeiras.
Curiosamente, o episódio brasileiro da fortuna literária da “canção da serpente” ilustra as idéias de
Goethe a respeito da “literatura mundial”. Quarenta e três anos depois, Goethe faz uma segunda
tradução do poema, intitulando-o de “Brasileiro” (Brasilianisch).
Depois de fazer este breve interegnum, voltemos à transcriação operada por Waly Salomão
sobre a “canção da serpente” citada por Montaigne. Ei-la:
Pára de ondular, agora, cobra coral :
A fim de que eu copie as cores com que te adornas,
A fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
A fim de que tua beleza
Teu langor
Tua elegância
Reinem sobre as cobras não corais.
2
Les Essais, I, 31. Edition de Pierre Villey. « [A] Et, afin qu’on ne pense point que tout cecy se face par une simple et
servile obligation à leur usance et par l’impression de l’authorité de leur ancienne coustume, sans discours et sans
jugement, et pour avoir l’ame si stupide que de ne pouvoir prendre autre party, il faut alleguer quelques traits de leur
suffisance. Outre celuy que je vien de reciter de l’une de leurs chansons guerrieres, j’en ay un’autre, amoureuse, qui
commence en ce sens : Couleuvre, arreste toy ; arreste toy, couleuvre, afin que ma sœur tire sur le patron de ta
peinture la façon et l’ouvrage d’un riche cordon que je puisse donner à m’amie : ainsi soit en tout temps ta
beauté et ta disposition preferée à tous les autres serpens. Ce premier couplet, c’est le refrain de la chanson. Or j’ay
assez de commerce avec la poësie pour juger cecy, que non seulement il n’y a rien de barbarie en cette imagination,
mais qu’elle est tout à fait Anacreontique. Leur langage, au demeurant, c’est un doux langage et qui a le son aggreable,
retirant aux terminaisons Grecques. ». Tradução e grifo nossos.
3
ROSENFELD, Anatol. « Aspectos do Romantismo Alemão ». Texto/Contexto. pp. 147-171.
4
BOUILLIER, Victor. « Montaigne et Goethe ». Revue de Littérature Comparée, 5ème année, 1925, pp. 572-593.
5
São Paulo, Itatiaia, 1982.
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Uma simples comparação tira qualquer dúvida a respeito da filiação entre os poemas. A
comparação mostra que Salomão operou uma espécie de redução, compactando as principais linhas
de força do poema (o movimento da cobra, a beleza de sua pele como modelo para a fabricação de
um colar que será ofertado à amada, a elegância dos movimentos da cobra). Salomão fez uma
espécie de tradução livre da “canção”, eliminando excessos (como a supressão do personagem da
“irmã”, sem prejuízo algum ao poema), enfatizando determinados aspectos da representação (a
elegância altaneira da serpente). Em certo sentido, Waly Salomão melhorou a “canção da serpente”
original, tornando-a mais expressiva, graças, por exemplo, à repetição da locução adverbial “a fim
que” (três vezes). O poema ganhou também em ritmo, mais sincopado do que o lânguido ritmo do
poema original. O maior mérito de Salomão talvez seja o abrasileiramento do poema, através da
identificação, por assim dizer, da serpente (couleuvre) à qual se referiu um autor francês do século
XVI: trata-se da cobra coral, ofídio endêmico da mata atlântica, autêntico exemplar da fauna
brasileira.
A “canção” que o empregado de Montaigne lhe contou é provavelmente autêntica: talvez seja
um fragmento de um mito indígena brasileiro; ela parece estar associada aos mitos que serviam de
inspiração para as práticas de pintura corporal, típicas dos costumes indígenas. Essas pinturas eram
geralmente feitas à base de jenipapo; além disso, em muitos mitos indígenas brasileiros há uma
profusão de parentes, entre irmãs, genros, tios, pais, cunhados etc., o que parece explicar a presença
da irmã na “canção da serpente”6.
Gostaríamos aqui de ratificar nossa primeira interpretação da “canção da serpente”,
inicialmente formulada na nossa tese e posteriormente exposta em alguns artigos publicados7. Mais
recentemente tivemos a oportunidade de apresentá-la sob forma de comunicação no IX Encontro
Regional da ABRALIC, realizado em julho de 2007, na Universidade de São Paulo.
Não pensamos mais que a “canção da serpente” seja uma invenção de Montaigne, um blefe
literário motivado por princípios nobres. Sobretudo não acreditamos mais que os versos do poema
sejam uma metaforizaçao do ut pictura poesis, formulado pelo poeta romano Horácio, como forma
de expressar a “irmandade” entre poesia e pintura, conforme propunha a argumentação que
tentamos sustentar.
Motivados pela descoberta segundo a qual Montaigne teria blefado ao dizer que o encontro
com os índios brasileiros se deu em Rouen “no tempo em que Carlos IX lá estava”, fizemos uma
interpretação da “canção da serpente” que não defendemos mais. O entusiasmo e vírus do “espírito
de desconfiança” ajudaram a levar a cabo uma interpretação que hoje reconhecemos ser fantasiosa,
uma super-interpretação, excessivamente imaginativa. O conhecimento de alguns mitos indígenas
parece apontar no sentido da autenticidade da “canção da serpente”, considerada por especialistas
como uma contribuição original de Montaigne aos relatos etnográficos típicos do século XVI8.
Retomemos a fortuna literária da “canção da serpente”. No mesmo ano em que Waly Salomão
publicou sua transcriação, o cantor e compositor Caetano Veloso musicou o poema “Cobra Coral” e
gravou-o em forma de canção no CD Noites do Norte, transformando a “canção da serpente” em
música popular, fechando o circuito da intermediação cultural que vai de um fragmento de mito
indígena, passa por um ensaísta renascentista francês, um poeta romântico alemão, até voltar ao país
onde foi originalmente criado, através de um poeta e de um compositor tropicalistas baianos.
A confirmação de que a base para a transcriação operada por Waly Salomão era um
fragmento do texto de Montaigne, foi dado em reportagem realizada pelo jornalista Alexandre
Werneck, no Jornal do Brasil de 16/09/2002. Questionado pelo repórter sobre a origem do poema,
6
Em Moquém de maridos, Betty MINDLIN descreve alguns mitos de povos indígenas da região amazônica que têm
alguma semelhança com a “canção da serpente”.
7
Forum Deutsch. Revista Brasileira de Estudos Germânicos, volume 8, 2005.
8
Cf. LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le Sauvage.
XI Congresso Internacional da ABRALIC 13 a 17 de julho de 2008
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Salomão qualificou-se de “réu confesso”, mas argumentou que esse tipo de apropriação literária era
praticado pelo próprio Montaigne. De fato, o ensaísta francês concebia a criação literária, no sentido
amplo e não necessariamente no sentido ficcional, como um movimento onde a originalidade não
era um fator primordial, mas antes a capacidade de dialogar com os grandes autores e de dar, de
alguma maneira, continuidade dialeticamente ao que eles disseram.
Em “Dos livros” (II, 10), Montaigne fala de seus empréstimos literários, confessando que ele
se apropriava de autores que admirava, mesclando seu discurso ao deles:
Que se veja naquilo que tomo de empréstimo, se eu soube escolher algo para realçar meu discurso.
Pois faço os outros dizerem aquilo que não posso dizer tão bem, quer por insuficiência da minha linguagem,
quer por insuficiência das minhas idéias. Não conto meus empréstimos: eu os peso. E se eu quisesse fazê-los
valer em quantidade, eu teria me munido do dobro. Eles são todos, ou com muito poucas exceções, nomes
tão famosos e antigos que me perecem se nomear o bastante sem mim. Quanto aos argumentos e invenções
que transplanto em meu solo e confundo com os meus, por vezes omiti propositalmente de dizer o autor, de
maneira a subjugar a leviandade dessas sentenças apressadas que são lançadas sobre todo tipo de literatura,
sobretudo quando recentemente escrita por autores ainda vivos e em língua vulgar, sobre a qual todos têm
algo a dizer e que parecem corroborar a idéia e a intenção, igualmente vulgares. Eu quero que eles dêem uma
trombada em Plutarco acreditando que trombam em mim e que se dêem ao trabalho de injuriar Sêneca em
mim. É preciso esconder minhas fraquezas à sombra desses grandes nomes. Gostaria de alguém que soubesse
me desvelar, digo em clareza de pensamento e graças apenas à força e beleza das idéias. (MONTAIGNE,
1999, p. 408)
Salomão exagera, porém, ao afirmar que sua “cobra coral” era “um poema livre feito a partir
do poema e não baseado no de Montaigne”. A simples justaposição dos dois poemas mostra que
Salomão traduziu, digamos, cerca de 80% do poema francês (suprimindo alguns elementos), e
transcriou o restante. Sabemos que o poeta baiano era grande admirador e conhecedor da obra do
ensaísta francês, conforme revela seu amigo Caetano Veloso, o qual só veio a tomar conhecimento
da origem literária do poema quando da reportagem em questão. Caetano mostrou-se surpreso e
classificou o episódio como sendo um caso de “globalização” antes mesmo do nascimento do termo
e um elemento representativo da “brasilidade” do disco.
Conclusão
O caso da “canção da serpente” ilustra bem tanto a transcriação, como zona fronteiriça entre
tradução e criação, quanto a questão das intermediações culturais. Qualquer que seja o suposto
julgamento ético em torno da fonte não mencionada por Waly Salomão, nem mesmo para seu
amigo Caetano Veloso, o mais importante é identificar Montaigne como a fonte inspiradora, a
matriz lingüística, a partir da qual Salomão traduz recriando. A fortuna literária da “canção da
serpente” é um exemplo concreto das intermediações culturais, tendo atravessado os séculos,
servindo a projetos literários afins e convergentes, reunindo nomes tão diversos quanto
representativos, como Montaigne, Goethe, Waly Salomão e Caetano Veloso. A “canção da
serpente” revela também a capacidade de avaliar esteticamente uma criação poética. Ela foi
primeiramente demonstrada por Montaigne, em seguida por Goethe, e graças a intermediação de
Waly Salomão, por Caetano Veloso, que foi capaz de escolher este poema, dentre os diversos do
livro de seu amigo, percebendo suas qualidades estéticas, sem saber da origem e do percurso desse
que pode ser considerado o primeiro poema brasileiro. Assim como Montaigne empenhou, por
assim dizer, seu nome ao atribuir qualidades estéticas à “canção da serpente”, julgamento que a
fortuna literária da mesma confirmaria, poderíamos dizer que este verso de uma das canções do
próprio Caetano Veloso ilustra esta mesma sensibilidade estética no compositor baiano:
”Eu sei o que é bom”9.
9
Verso da canção « Fora da Ordem », do disco Circuladô (1991).
XI Congresso Internacional da ABRALIC 13 a 17 de julho de 2008
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Referências bibliográficas: