Apostila de Literatura

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FRENTE 2 Literatura
MÓDULO 1 A Lírica Trovadoresca
1. AS RAÍZES DA eram, muitas vezes, autores de poesia sua coita, ou seja, sua dor de amar
LITERATURA PORTUGUESA e música. sem ser correspondido. Muitas vezes,
Pode-se mencionar ainda que porém, esse amor ardente confes-
O aparecimento da Literatura nesse período, além da produção líri- sado encobre ora um apelo sexual,
Portuguesa coincide, a bem dizer, ca propriamente, houve também ora um conveniente galanteio de
com o aparecimento de Portugal produção literária em prosa, repre- inspiração política. (O sistema polí-
como nação livre. A primeira mani- sentada pelas novelas de cavalaria, tico-social da Idade Média, chamado
festação literária portuguesa de que pelos cronicões e livros de linhagem. feudalismo, reforçava a necessi-
se tem notícia, a “Cantiga da Garvaia” dade de o vassalo agradar sempre a
ou “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio 3. OS CANCIONEIROS seu suserano — seu “senhor” — e à
Soares de Taveirós, é de aproximada- sua família.)
mente 1198 (ou 1189), ou seja, cerca O Trovadorismo é anterior ao a- As cantigas de amor não nasce-
de cinquenta anos apenas após o parecimento da imprensa. Por isso, ram em Portugal, mas na Provença
ano de 1143, data em que Portugal as cantigas medievais eram manus- (sul da França) e dali se espalharam
conseguiu sua independência da Es- critas e, colecionadas, formavam os por muitas cortes da Europa. A língua
panha, ou, mais propriamente, data cancioneiros, nome que se dá aos provençal também havia provindo do
em que foi reconhecida sua eman- códices (manuscritos antigos) que latim. Todo trovador que se prezasse
cipação dos Reinos Católicos (Leão, abrigam a poesia medieval. deveria conhecer um pouco o proven-
Castela, Navarra e Aragão). Como a Os cancioneiros da fase trova- çal. Nas canções provençais é que ele
“Cantiga da Garvaia” não é o início da doresca são três e foram descober- buscava inspiração para compor suas
Literatura Portuguesa, mas apenas o tos a partir do fim do século XVIII: cantigas em português arcaico. Quan-
documento literário mais antigo que • Cancioneiro da Ajuda, o mais to ao português destas cantigas — o
chegou até nós, podemos conjec- antigo, com 310 cantigas; chamado português arcaico —, trata-
turar que já se produzia literatura em • Cancioneiro da Vaticana, que se de uma língua permeada de gale-
Portugal desde o começo de sua vida contém 1.205 cantigas, distribuídas en- guismos. Esse fato não é surpreen-
como país independente. tre as quatro modalidades (amigo, dente, dada a proximidade linguística,
amor, escárnio e maldizer). Reúne a geográfica e cultural entre Portugal e
maioria das composições de El-Rei D. Galiza e dado que diversos trovadores
2. O TROVADORISMO — alguns entre os mais importantes —
Dinis, o mais notável trovador por-
tuguês; eram galegos, não portugueses. Daí
O primeiro período da Literatura • Cancioneiro da Biblioteca Na- ser mais apropriado que se fale em
Portuguesa é denominado Trovado- cional de Lisboa, que contém 1.647 trovadorismo galego-por tuguês, ou
rismo, e está compreendido aproxi- cantigas das quatro modalidades. É galaico-português, em vez de tro-
madamente entre os anos de 1198 também conhecido como Cancionei- vadorismo português simplesmente.
ou (1189) e 1418. ro Colocci-Brancutti.
São chamados trovadores os
TEXTO I
poetas da fase final da Idade Média, os 4. AS CANTIGAS DE AMOR
quais iniciaram um novo tipo de litera- CANTIGA DE AMOR
tura — o princípio das literaturas de lín- As cantigas de amor são com-
guas modernas, entre as quais o por- posições líricas em que o trovador Estes meus olhos nunca perderán,
tuguês. Os trovadores não eram ape- senhor, gran coita, mentr’ 1eu vivo for;
exalta as qualidades de uma mulher,
e direi-vos, fermosa mia senhor,
nas poetas, mas também músicos: a quem chama minha senhor (o fe- destes meus olhos a coita que han2:
eles compunham as melodias com minino dessa palavra ainda não se choran e cegan quand’alguen non veen,
que cantavam seus poemas. A poesia havia formado). Trata-a, portanto, se- e ora cegan por alguen que veen.
era sempre associada à música e se gundo o sistema hierárquico da so-
fazia presente tanto nas reuniões ciedade feudal, como a alguém de Guisado tẽen de nunca perder
palacianas da alta aristocracia quanto meus olhos coita e meu coraçon3,
condição superior, a quem ele se sub- e estas coitas, senhor, mias son,
nas festas populares. Os jograis mete, a quem “presta serviço” e de mais4 os meus olhos, por alguen veer,
eram executantes das composições quem espera benefício (ben). Na choran e cegan quand’alguen non veen,
dos trovadores, mas eles mesmos cantiga de amor, o poeta confessa a e ora cegan por alguen que veen.

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E nunca já poderei haver ben5, Conforme o lugar ou as circunstân- Comentários


pois que amor já non quer nem quer Deus; cias em que ocorre o episódio senti- • Observa-se a existência de duas solis-
mais os cativos destes olhos meus mental, a cantiga de amigo recebe o tas: a primeira (versos de 1 a 12) interroga as
morrerán sempre por veer alguen: flores, e a segunda (versos de 13 a 24)
título de cantiga de romaria, ser-
choran e cegan quand’alguen non veen, assume o papel das flores para a resposta.
e ora cegan por alguen que veen. ranilha, pastorela, marinha ou
Ambas se aliam às demais moças presentes
barcarola, bailada ou bailia, alba para entoar o refrão: “Ai, Deus, e u é?”, em que
(Joan Garcia de Guilhade, século XIII) ou alvorada, serena, malmariada o suspirar de amor pelo amado ausente passa
etc. Essas configurações das cantigas a ser compartilhado por todas.
Vocabulário e Notas de amigo traduzem os vários mo- • Observa-se também a técnica parale-
1 – Mentr’: enquanto. lística, que consiste em ir repetindo a ideia
mentos do namoro, desde a alegria
2 – Han: têm. central em duas séries de estrofes paralelas,
3 – Meus olhos e meu coração têm o hábito de da espera até a tristeza pelo aban-
isto é, a segunda estrofe repete a primeira, só
nunca deixar de sofrer (“perder...coita”). dono ou pela separação forçada.
alterando a palavra final para efeito de rima,
4 – Mais: mas. As cantigas de amigo são mais pri- sempre com estribilho (refrão):
5 – Haver ben: ter prazer. mitivas que as cantigas de amor; a pre-
sença do paralelismo e do refrão é Ai flores, ai flores do verde pinho, A
5. AS CANTIGAS DE AMIGO quase obrigatória e reflete mais a tra- se sabedes novas do meu amigo? B
dição poética e musical dos povos pe- Ai, Deus, e u é? (Refrão)

Além das cantigas de amor, os ninsulares que a influência provençal.


Ai flores, ai flores do verde ramo, A’
trovadores galego-portugueses dedi- se sabedes novas do meu amado? B’
caram-se a um outro tipo de compo- TEXTO II Ai, Deus, e u é? (Refrão)
sição lírica: a cantiga de amigo.
CANTIGA DE AMIGO
Esta é originária da Península
Ai flores, ai flores do verde pinho1, 6. AS CANTIGAS SATÍRICAS
Ibérica; ela não provém da tradição
se sabedes novas2 do meu amigo?
do trovadorismo provençal, pois não Ai, Deus, e u3 é? Do ponto de vista social e linguís-
se encontram, na obra dos trova-
Ai flores, ai flores do verde ramo, tico, as cantigas satíricas são de
dores de Provença, poemas com as
se sabedes novas do meu amado? extraordinária importância, já que
características da cantiga de amigo. Ai, Deus, e u é? compõem um retrato de vários usos e
Nesta, em primeiro lugar, o emissor, o
Se sabedes novas do meu amigo,
costumes medievais, em linguagem
eu lírico, não é um homem, mas
aquel que mentiu do que pôs4 comigo? mais popular, refletindo o falar das
uma mulher. Isso, evidentemente, Ai, Deus, e u é? camadas inferiores. Nem sempre é
não quer dizer que os poemas eram
fácil distingui-las, pois, às vezes, as
compostos por mulheres. Os poetas Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que m’a jurado? duas modalidades (escárnio e maldi-
eram os mesmos que compunham as Ai, Deus, e u é? zer) se misturam.
cantigas de amor, com a diferença
de que, nas cantigas de amigo, eles Vós me preguntades pelo voss’amigo?
E eu ben vos digo que é san’e vivo5 ❑ A cantiga de escárnio
fingiam um eu lírico feminino. A cantiga de escárnio continha
Ai, Deus, e u é?
Uma segunda característica im- sátira indireta, realizada com sutile-
portante das cantigas de amigo é o Vós me preguntades pelo voss’amado?
za, valendo-se da ambiguidade, de
E eu ben vos digo que é viv’e sano:
seu ambiente familiar. Elas não são “palavras cubertas que ajam dois
Ai, Deus, e u é?
composições que refletem o mundo en ten dimentos para lhe lo non
palaciano, típico das cantigas de E eu ben vos digo que é san’e vivo,
entenderem ligeiramente”. A sátira
amor. Ao contrário, as cantigas de e será vosc’ant’o prazo saído 6.
Ai, Deus, e u é? era artificialmente arquitetada e não
amigo põem em cena uma moça do permitia a identificação da pessoa
povo, que pode estar acompanhada E eu ben vos digo que é viv’e sano,
atacada.
de sua mãe ou de suas amigas, e e será vosc’ant’o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?
que canta seu amor pelo namorado,
TEXTO III
o amigo (notemos que essa palavra (Dom Dinis, séculos XIII-XIV)
tem a raiz am–, do verbo amar). CANTIGA DE ESCÁRNIO
Vocabulário e Notas
Na cantiga de amigo, o amor da 1 – Pinho: pinheiro.
mulher em relação ao homem desen- 2 – Novas: notícias. Ũa dona, non digu’eu qual,
3 – U: onde. non agoirou ogano mal
volve-se num plano concreto. O amor
4 – Pôs: combinou. polas oitavas1 de Natal:
é realizado e a mulher lamenta-se 5 – San’e vivo: são e vivo. ia por sa missa oir
justamente por causa da ausência do 6 – E estará convosco quando terminar o prazo e ouv’un corvo carnaçal
amado. do serviço militar. e non quis da casa sair.

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A dona, mui de coraçon2, algum. Constituía a maioria das can- en que vos loarei toda via;
oíra sa missa enton tigas satíricas e era comum o empre- e direi-vos como vos loarei:
e foi por oir o sarmon, dona fea, velha e sandia!
go de termos baixos e chulos, no
e vedes que lho foi partir3 (Joan Garcia de Guilhade, século XIII)
ouve sig’4 un corvo acaron5 mais das vezes a resvalar para os
e non quis da casa sair. limites da mais grosseira obsce- Vocabulário e Notas
nidade. Mesmo os mais elevados 1 – Ora: agora.
A dona disse: — Que será? trovadores compunham cantigas de 2 – Loarei: louvarei.
E i6 o clérigu’7 está já 3 – Sandia: louca.
maldizer, consideradas ancestrais da
revestid’e maldizer-m’-á
se me na igreja non vir. sátira palavrosa de poetas como
Gregório de Matos e Bocage. Elas Em linguagem atual, teríamos:
E diss’o corvo: — quá, acá8,
e non quis da casa sair. testemunham a “vocação” luso-brasi-
Ai, mulher feia! você se queixou
leira para o chiste e para o palavrão. de que eu nunca a louvei em minha poesia;
Nunca taes agoiros vi,
A referência a atos fisiológicos e à mas agora eu vou fazer uma cantiga
des aquel dia que nasci,
com’aquest’ano ouv’aqui9; escatologia é frequente. em que eu a louvarei completamente;
e veja como a quero louvar:
e ela quis provar de s’ir10
mulher feia, velha e louca!
e ouv’un corvo sobre si
e non quis da casa sair. TEXTO IV
Ai, mulher feia! Deus me perdoe!
(Joan Airas de Santiago, século XIII)
pois você tem tão grande esperança
CANTIGA DE MALDIZER de que eu a louve por justiça,
Vocabulário e Notas
quero agora louvá-la completamente;
1 – Oitavas: missas. Ai, dona fea! fostes-vos queixar e veja qual será a louvação:
2 – Mui de coraçon: de muito boa vontade. porque vos nunca louv’en meu trobar; mulher feia, velha e louca!
3 – Partir: acontecer. mais ora1 quero fazer un cantar
4 – Sig’: consigo. en que vos loarei2 toda via; Ai, mulher feia! nunca a louvei
5 – Acaron: colado ao corpo. e vedes como vos quero loar: em minha poesia, e eu muito escrevi;
6 – I: ali (na igreja).
dona fea, velha e sandia3! mas agora farei uma bela cantiga
7 – Clérigu’: padre.
em que a louvarei completamente;
8 – Quá, acá: aqui, vem cá.
Ai, dona fea! se Deus me perdon! e vou lhe dizer como a louvarei:
9 – Com’aquest’ano ouv’aqui: como aquele
e pois havedes tan gran coraçon mulher feia, velha e louca!
ano houve aqui.
que vos eu loe en esta razon,
10 – Provar de s’ir: tentar ir.
vos quero já loar toda via; Comentários
e vedes qual será a loaçon: • Trata-se de uma sátira individual, con-
Comentário
dona fea, velha e sandia! tundente e, ainda que o nome da ofendida não
• Na cantiga anterior, o poeta zomba de
apareça, é dada como cantiga de maldizer.
uma mulher que, ao se dirigir à missa, ouviu
Dona fea, nunca vos eu loei • A mesma mulher, idealizada nas can-
um corvo em sua casa e, com medo do mau
en meu trobar, pero muito trobei; tigas de amor, é, nas cantigas de maldizer,
agouro (as pessoas na Idade Média eram
mais ora já un bon cantar farei, rebaixada à mais ínfima condição.
muito supersticiosas), não quis sair de casa.
Mas a cantiga é toda baseada em duplos
sentidos, a partir do segundo verso, pois a ex-
pressão “non agoirou ogano mal” pode signi-
ficar tanto “teve bastante [mau] agouro este
ano” quanto “não teve mau agouro este ano”.
Depois, a forma verbal ouve pode tanto cor-
responder ao verbo haver como ao verbo
ouvir. De início, parece que a mulher ouviu um
corvo, mas logo percebemos que ela teve
(ouve = houve) junto de si, colado à sua carne
(acaron), um “corvo carnaçal ”, que não é uma
ave de rapina, mas um homem faminto de
carne... E ela “non quis da casa sair ”... O
poema atinge o clímax quando imita o crocitar
do corvo (“E diss’o corvo: — quá, acá,” ), com
duas palavras do português arcaico que
podem significar “aqui, vem cá” — o corvo
sedutor chamando avidamente a sua presa.

❑ A cantiga de maldizer
A cantiga de maldizer encerrava
sátira direta, agressiva, contundente, A lírica provençal influenciou todas as literaturas da Europa, fazendo do amor e da
em linguagem objetiva, sem disfarce mulher o centro de uma inspiração poética e musical poderosa e refinada.
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MÓDULO 2 A Poesia Palaciana


da prosperidade, voltando-se para a A Revolução de Avis (1383-
CONCEITO E ÂMBITO
terra, para a inteligência, para o cor- 1385) marcou a substituição da Di-
A POESIA PALACIANA
po, para o prazer e para a aventura. nastia de Borgonha pela Dinastia de
FERNÃO LOPES
É, portanto, oposto ao espírito medie- Avis. Esta iniciou o processo de cen-
val, feudal e teocêntrico. tralização monárquica, aliando-
Historicamente, o Humanismo cor- se à burguesia ascendente. Foi o
responde a uma fase de profundas princípio do Estado Nacional
transformações sociais: o desenvol- Português, orientado na direção do
vimento do comércio, o surgimento da absolutismo e do mercantilis-
burguesia e das cidades, a aliança mo. O palácio tornou-se o centro
entre o rei e a burguesia (fermento das vital das decisões políticas, econô-
monarquias nacionais), o aparecimen- micas e da atividade cultural e artís-
to da imprensa, a divulgação da cultu- tica. A expansão dos interesses eco-
nômicos da burguesia e dos próprios
ra clássica e as Grandes Navegações.
políticos da monarquia lançou o país
Os primeiros anúncios desse pro-
na aventura ultramarina, cujo marco
cesso de transição foram registrados,
inicial foi a Tomada de Ceuta, em
na literatura, pelos italianos Dante
1415. Consolidou-se o nacionalis-
Alighieri (1265-1321), Francesco
mo português, e a nação começou
Petrarca (1304-1374) e Giovanni
a ganhar uma fisionomia própria na
Boccaccio (1313-1375).
Península Ibérica. No período ante-
A característica central do perío- rior, havia uma cultura mais ibérica
do humanista é o bifrontismo: a que especificamente portuguesa.
coexistência de resíduos medievais e Além do aparecimento do me-
Capa dos Adágios, de Erasmo de Roterdã,
com retratos dos autores gregos e latinos instituições antecipadoras do Renas- cenatismo oficial, outro fato cultural
traduzidos pelo humanista holandês. cimento. Teocentrismo e antropocen- relevante foi o surgimento de uma
trismo, feudalismo e mercantilismo, língua portuguesa, autônoma em
ideais cavaleirescos e pragmatismo relação ao primitivo dialeto galego-
1. HUMANISMO E
burguês são simultâneos. português. A prosa ganhou excelên-
PRÉ-RENASCIMENTO
cia literária com Fernão Lopes, o
primeiro bom prosador da língua.
❑ Localização ❑ O contexto
O apogeu do Humanismo cor-
histórico-cultural português (1434-1527)
respondeu aos reinados de D.
O Humanismo (no sentido que Em Portugal, o Humanismo ini-
Afonso V, D. João ll e D. Manuel,
aqui nos interessa) foi o movimento ciou-se em 1434, com a nomeação marcados pela intensa produção
intelectual que precedeu ao Renasci- de Fernão Lopes para Primeiro cultural e artística e pelo auge,
mento e constituiu um atento debruçar- Cronista-Mor do Reino, incum- também, das Grandes Navegações.
se do homem sobre sua própria bido por D. Duarte de escrever a Literariamente, os três fatos mais
condição. Se durante a Idade Média o história dos reis que o antecederam. relevantes do Humanismo português
homem se voltou para Deus, agora ele A criação do cargo de cronista- foram: a poesia palaciana, compi-
se volta para si mesmo (antropocen- mor e a nomeação de Fernão Lopes lada no Cancioneiro Geral de Garcia
trismo), readquirindo a consciência inauguraram, em 1434, o mecena- de Resende; a prosa historiográ-
de que é uma força criadora, capaz de tismo oficial e os reis tornaram-se fica de Fernão Lopes e o teatro
dominar o universo e transformá-lo. protetores da cultura e da arte, abri- medieval e popular de Gil Vicente.
Desenvolve-se a consciência de que é gando na Corte artistas e intelec-
necessário o saber e de que é por tuais, incentivados e subvenciona- 2. A POESIA PALACIANA
meio do conhecimento e da ação que dos pela própria monarquia. O perío- DO CANCIONEIRO GERAL
o homem e o mundo se transformam. do estendeu-se até 1527, ano em DE GARCIA DE RESENDE
Esse novo homem identifica-se que se iniciou o Classicismo-
com a cultura clássica greco-roma- Renascimento em Portugal, com a A produção poética da fase do
na, com o racionalismo, com a ciên- introdução da medida nova por Sá Humanismo, abrangendo os reina-
cia, com o ideal burguês do lucro e de Miranda. dos de D. Afonso V, D. João II e D.

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Manuel, foi compilada em 1516, por Dentre os 286 poetas que figu- dada no anseio de encontrar algo perdurável,
para além da fugacidade cósmica.
Garcia de Resende, no Cancio- ram no Cancioneiro Geral, os mais
Coube a Sá de Miranda trazer da Itália,
neiro Geral que leva o seu nome. famosos são Bernardim Ribeiro, Sá onde viveu de 1520 a 1527, a medida nova
Esse cancioneiro nada tem a ver de Miranda e Gil Vicente, que, po- (versos decassílabos, a forma fixa do soneto,
com os primitivos cancioneiros trova- rém, irá celebrizar-se, não como o terceto etc.), introduzindo em Por tugal
formas e temas característicos do Classicismo
dorescos. Nele, observa-se uma poeta lírico, mas como o maior autor renascentista, que os italianos denominavam
grande amostra da chamada “poesia teatral de língua portuguesa. dolce stil nuovo (= doce estilo novo). Como
palaciana”, ou poesia da Corte, que Camões, foi grande sonetista e tem, também,
parte de sua obra comprometida com a heran-
se praticou em Portugal no período TEXTOS ça medieval, nas composições que fez na me-
imediatamente anterior ao chamado dida velha, como a trova em questão.
Classicismo. É uma produção TROVA À MANEIRA ANTIGA • O tema da cisão da personalidade, a
sutil exploração dos mistérios do eu, a
poética que pode ser considerada fragmentação do sujeito lírico, em tensão
Comigo me desavim1,
pré-clássica, pois nela já se sou posto em todo perigo; consigo e por si, prestes a consumar a ruptura
encontram alguns dos componentes não posso viver comigo interior, é o tema de um belíssimo vilancete de
que caracterizarão a poesia do nem posso fugir de mim. Bernardim Ribeiro. Observe a aproximação
com o poema de Sá de Miranda anteriormente
período posterior. A poesia palaciana apresentado:
Com dor, da gente fugia,
representa uma evolução formal antes que esta assim crescesse;
em relação ao período trovadoresco. agora já fugiria Entre mim mesmo e mim
de mim, se de mim pudesse. não sei [o] que s’ alevantou1
A poesia separa-se da música, que tão meu imigo2 sou.
Que meio espero ou que fim
e o trovador cede lugar ao do vão trabalho que sigo,
poeta. Este escreve não mais para pois que trago a mim comigo, Uns tempos com grand’engano
tamanho imigo2 de mim? vivi eu mesmo comigo,
cantar, mas para ler e recitar nos
(Francisco Sá de Miranda) agora, no mor3 perigo,
serões da Corte. Como não depende se me descobre o mor dano.
mais da música, os refrãos e o Vocabulário e Notas Caro custa um desengano,
paralelismo são menos marcantes. 1 – Desavir: desentender, desencontrar. e pois m’este não matou,
2 – Imigo: forma arcaica de inimigo. quão caro que me custou!
Os poetas da fase palaciana
consolidaram a medida velha, nome Comentários De mim me sou feito alheio;
genérico que se dava às composições • A trova de Sá de Miranda, composta na entre o cuidado e cuidado
medida velha (versos redondilhos maiores), fo- está um mal derramado
em versos curtos — os chamados que por mal grande me veio.
caliza o desencontro do eu consigo mesmo, a
versos redondilhos. A estes, dá-se o partir do dilema viver comigo x fugir de mim, Nova dor, novo receio
nome de redondilhos menores, ambas as situações impossíveis para o poeta. foi este que me tomou,
quando têm cinco sílabas poéticas, Essa dilaceração do eu expressa as perple- assi4 me tem, assi estou.
xidades do homem diante das transformações (Bernardim Ribeiro)
e de maiores, quando têm sete nos limiares da Idade Moderna e projeta a
sílabas. Esses versos são até hoje, personalidade grave e reflexiva do autor. Sua Vocabulário e Notas
em Portugal e no Brasil, os versos postura estoica, cética e desiludida já se 1 – Alevantar: erguer. 2 – Imigo: inimigo.
integra nos quadros da cultura clássica, fun- 3 – Mor: maior. 4 – Assi: assim.
mais tradicionais e populares,
dada a facilidade de memorização, o
ritmo e a musicalidade envolventes. É o
verso mais comum nas composições
folclóricas e populares (cantigas de
roda, cantigas de ninar, acalantos,
modinhas, desafios etc.); foi, e ainda é,
o verso mais utilizado pelos autores que
buscaram e buscam as raízes mais tra-
dicionais da poesia e da música.
No plano temático, o caráter po-
pular e sentimental da poesia trova-
doresca é substituído pela poesia
frívola e galante, composta para o
deleite do público palaciano; disso
de cor re certa afetação e artifi -
cialismo.
Poemas satíricos, religiosos e nar-
rativos coexistem com poemas de
tema amoroso. As influências greco-
latina e italiana começam a aparecer. Capa da primeira edição do Cancioneiro Geral.

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MÓDULO 3 Gil Vicente


1. GIL VICENTE terceira esposa do Rei D. Manuel; sa. Foi cognominado O Genial
E AS ORIGENS DO alcançou uma situação de grande Criador do Teatro Português,
TEATRO PORTUGUÊS prestígio junto à Corte de Avis, o que em alusão ao fato de ter sido o
Ihe permitiu, em 1531, por ocasião primeiro autor a impor o texto escrito
❑ Os antecedentes de um terremoto, num discurso feito às encenações teatrais. Como para a
do teatro vicentino aos frades de Santarém, censurar Literatura o importante é o texto
Durante a Idade Média, o teatro energicamente os sermões terríficos que se escreve para a representa-
clássico greco-romano desapareceu. em que estes explicavam a catás- ção, Gil Vicente é considerado o
Ficaram ignoradas as tragédias e co- trofe como resultado da ira divina. fundador do teatro português.
médias, que expressavam, do subli- Quando Gil Vicente atinge a
me ao grotesco, a densa visão (In: LOPES, Óscar e SARAIVA,
plena maturidade de sua arte,
clássica do homem, do mundo e dos Antônio José. História da Literatura
opera-se a secularização com-
deuses. Portuguesa. 10.a ed., Porto: Porto pleta e definitiva de seu teatro. A
Não se pode falar propriamente Editora, p. 200.) galeria de tipos alarga-se e enri-
de teatro medieval, já que as encena- quece-se para nos oferecer uma
ções que se faziam em Portugal, Outra prova de sua influência substancial reconstituição da
antes de Gil Vicente, não pressupu- nos meios palacianos é a carta que sociedade de seu tempo: dos
nham um texto escrito, uma produ- escreveu ao rei, na qual se pronun- beberrões aos nobres, passando
ção literária de natureza dramática. ciava contra a perseguição movida pelos camponeses, ciganos, judeus,
Havia representações cênicas, mas aos judeus e cristãos-novos. alcoviteiras, bobos, padres moral-
estas eram, principalmente, figura- Suas encenações alcançaram mente relaxados, fidalgos decaden-
tivas. Não havia o texto dramático, largo sucesso na Corte e são referi- tes, burgueses gananciosos, artesãos
que é o que interessa à Literatura. das por vários contemporâneos do ambiciosos, usurpadores, corruptos.
As encenações, àquela época, dramaturgo. Sua última peça, Flores- Esses tipos são definidos não só
dividiam-se em duas vertentes: pro- ta de Enganos, foi encenada em pelas ações, hábitos e vestuários,
fanas (apresentadas nos palácios) 1536 e, posteriormente a essa data, mas também pela linguagem pecu-
e litúrgicas (nas igrejas e abadias). nada mais se sabe de seu autor. liar a cada um deles. Gil Vicente
No início da carreira de Gil Supõe-se que tenha morrido em revela toda sua força dramática,
Vicente, a tradição teatral portuguesa 1537, mas não há provas documen- captando os flagrantes da vida real,
que o precedeu foi irrelevante. Em tais. tipos e ambientes, com grande
suas primeiras peças, o modelo foi o Em 34 anos de atividade teatral, poder de evocação realista e relevo
castelhano Juan del Encina. da estreia, em 1502, à última ence- caricatural.
nação, em 1536, escreveu, encenou A crítica social e a dramaturgia
2. O GENIAL CRIADOR e representou cerca de 46 autos e religiosa revestem-se de forte inten-
DO TEATRO PORTUGUÊS farsas, sendo 17 em português, 18 ção moralizadora, pelas alegorias
bilíngues (com uso do espanhol e do que aproveitam temas bíblicos,
O pouco que se sabe a respeito dialeto saiaguês, falado em Sala- bucólicos, cavaleirescos e mitoló-
do primeiro e maior dramaturgo de manca) e 11 em castelhano. Foi, ao gicos.
Por tugal reduz-se ao seguinte: mesmo tempo, autor, diretor e ator de Gil Vicente traz ao palco toda a
nasceu por volta de 1465; encenou muitos de seus autos e farsas. nação portuguesa. Apesar de ser, do
sua primeira peça, O Monólogo do Um de seus filhos, Luís Vicente, ponto de vista cênico, um teatro
Vaqueiro ou Auto da Visitação, em foi o organizador de sua obra, publi- rudimentar, primitivo, baseado na
1502, sob proteção da rainha D. cada em 1562, sob o título espontaneidade e na impro-
Leonor; foi colaborador do Copilaçam de Todalas Obras de Gil visação, está vazado em alta poe-
Cancioneiro Geral de Garcia de Vicente, com muitas falhas e sia dramática. É um teatro que revela
Resende; desempenhou, na Corte, a omissões, devidas, pelo menos em o profundo pensamento cristão de
importante função de organizador parte, à censura. um artista a serviço de uma causa;
das festas palacianas, como, por É considerado o maior dramatur- sua obra é uma arma de combate, de
exemplo, a recepção, em Lisboa, da go ou teatrólogo da língua portugue- acusação e de moralidade.
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3. AUTOS E FARSAS morreu lhe garantiria a ida para o Dia. Ora, ponde aqui o pé...
Brí. Hui! e eu vou pra o Paraíso!
céu... Só são aceitos pelo Anjo o
Dia. E quem te dixe19 a ti isso?
❑ Autos Parvo (idiota), camponês explorado e Brí. Lá hei de ir desta maré20.
Inspirados no teatro religioso da sofredor, e quatro cavaleiros que mor-
Idade Média, nos mistérios, milagres reram em defesa da fé de Cristo. Nes- Eu sô ũa mártela21 tal,
e moralidades, os autos encerram uma se desfile de almas, temos um amplo açoutes22 tenho levados
e tormentos soportados23
intenção moralizante e trazem perso- quadro crítico da sociedade portu- que ninguém me foi igual.
nagens alegóricas (anjos, demônios guesa da época, apresentado em ver- Se fosse ò24 fogo infernal,
etc.), que são personificações de sos de enorme encanto, pois são alta- lá iria todo o mundo!
virtudes ou de defeitos humanos. mente refinados e não se afastam da A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
linguagem falada da época, em seus
Auto da Barca do Inferno vários registros. Por tais motivos, Gil Barqueiro mano, meus olhos25,
Vicente é considerado, por críticos prancha a Brísida Vaz!
Representada pela primeira vez de importância, como o poeta mais
Vocabulário e Notas
em 1517, a peça de Gil Vicente faz original de Portugal e o maior drama- 1 – Tanto que: assim que.
parte de uma trilogia em que assisti- turgo europeu de sua época. 2 – Alcouveteira: alcoviteira, caftina, isto é, “mu-
mos a um desfile de almas de mortos lher que serve de intermediária nas relações
prestes a embarcar para a eter - amorosas” (dicionário Aurélio); prostituta.
nidade. Os títulos das peças indicam TEXTO 3 – Ea: eia!
4 – Como: por que.
os possíveis destinos da viagem: 5 – Joana de Valdês: alcoviteira conhecida.
AUTO DA BARCA DO INFERNO
Auto da Barca do Inferno, da Barca 6 – Arrecear: recear, temer.
do Purgatório e da Barca da Glória. Tanto que1 o Frade foi embarcado, veio 7 – Catar: procurar.
8 – Fato: roupas e outros bens móveis.
Na primeira peça, os mortos são con- ũa Alcouveteira2, per nome Brísida Vaz, a qual,
9 – Virgo: hímen.
frontados com o Diabo, que, com fina chegando à barca infernal, diz desta maneira:
10 – Que nom podem mais levar: porque não
ironia (é um diabo muito bem-humo- se pode levar mais.
Brí. Hou lá da barca, hou lá!
rado e com grande presença de 11 – Almário: armário.
Dia. Quem chama? 12 – Enlheo: enredo, confusão.
espírito), apresenta-lhes as razões Brí. Brísida Vaz. 13 – Alheo: alheio.
pelas quais devem embarcar no seu Dia. Ea3, aguarda-me, rapaz! 14 – Encobrir: disfarçar, iludir.
“batel” (navio), que vai para a “terra Como4 nom vem ela já? 15 – Movediço: móvel.
perdida”. Todos resistem e se Com. Diz que nom há de vir cá 16 – Coxim: almofada.
sem Joana de Valdês5. 17 – Mor cárrega: maior carga.
dirigem ao Anjo, que guarda a barca
Dia. Entrai vós, e remarês. 18 – Bofé: na verdade (em boa fé).
do Paraíso. O Anjo, em tom solene Brí. Nom quero eu entrar lá. 19 – Dixe: disse.
(ele não tem a graça do Diabo), 20 – Maré: vez.
mostra a quase todos (só há exceção Dia. Que saboroso arrecear6! 21 – Mártelo: mártir.
22 – Açoute: chicotada (punição dada às pros-
em dois casos) que seu caminho é Brí. Nom é essa barca que eu cato7.
titutas).
irremediavelmente o inferno, tendo Dia. E trazês vós muito fato8?
23 – Soportado: suportado.
Brí. O que me convém levar.
em vista a vida que levaram. E quem 24 – Ò: ao.
Dia. Que é o qu’havês d’embarcar?
são os mortos? São figuras alegó- 25 – Meus olhos: meu bem.
Brí. Seiscentos virgos9 postiços
ricas que representam classes ou e três arcas de feitiços
categorias sociais, como o Fidalgo, que nom podem mais levar10.
❑ Farsas
arrogante e falso, o Onzeneiro (usu- Inspiradas no teatro profano (não
Três almários11 de mentir, religioso), as farsas visam a ca-
rário), explorador dos outros, o Sapa-
e cinco cofres de enlheos12, racterizar, em simples episódios ou
teiro, ladrão de seus fregueses, o
e alguns furtos alheos13, em narrativas mais complexas, tipos
Frade, que vem acompanhado de assi em joias de vestir, característicos da sociedade portu-
sua amante, a Alcoviteira (cafetina), guarda-roupa d’encobrir14, guesa, na transição da Idade Média
que fornecia moças para homens de enfim – casa movediça15;
para o Renascimento.
dinheiro e poder, o Judeu, contra um estrado de cortiça
com dous coxins16 d’encobrir.
quem até o Diabo demonstra pre- Além das peças até aqui men-
venção, o Corregedor (juiz), pompo- cionadas, podem-se destacar ainda:
A mor cárrega17 que é:
so e corrupto, o Procurador, deso- essas moças que vendia. Auto da Alma, Farsa de Inês Pereira,
nesto como o juiz, o Enforcado, que Daquesta mercadoria Quem Tem Farelos?, Juiz da Beira,
acreditava que a forma por que trago eu muita, bofé18! Auto da Fé, Auto da Lusitânia etc.
– 43
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MÓDULO 4 A Medida Nova – Luís de Camões


ças a grandes cometimentos: des- estilo renascentista expressivo a
CONCEITO E ÂMBITO
coberta do caminho marítimo para partir de 1527, quando o poeta Sá de
A MEDIDA NOVA
as Índias, empreendida por Vasco Miranda regressou da Itália, local em
LUÍS DE CAMÕES
da Gama em 1498; descobrimento que viveu, entre 1520 e 1527, e onde
do Brasil em 1500; conquista de Goa esteve em contato com a literatura da
1. O RENASCIMENTO e de regiões da África entre 1507 e Renascença italiana, com o dolce stil
1513; Viagem de Circunavegação nuovo, e iniciou a divulgação, em Por-
❑ Conceito e âmbito realizada por Fernão de Magalhães tugal, das modalidades poéticas clás-
O Renascimento foi um dos perío- entre 1519 e 1520. sicas. Esse conjunto de procedimen-
dos mais férteis da cultura ocidental: Desses fatos sobreveio uma ex- tos artísticos, que, em território luso,
Dante, Camões, Petrarca, Sha- traordinária prosperidade econômi- chamou-se medida nova, consistia
kespeare, Rabelais, Ronsard, ca: Lisboa transformou-se num impor- • na utilização do verso decas-
Cervantes, Tasso, Ariosto, Miche- tante centro comercial; na Corte im- sílabo, em lugar dos redondilhos tra-
lângelo, Da Vinci alinharam-se perava o luxo desmedido, na certeza dicionais;
como as mais portentosas figuras da de que a Pátria houvesse chegado a • na predileção pelas formas fi-
arte em todos os tempos. Foi um uma inalterável riqueza material. Este xas, inspiradas nos modelos latinos e
período marcado pela supervalo- ufanismo, contudo, foi declinando italianos: o soneto, o terceto, a sexti-
rização do homem, pelo antro- até a derrocada final em Alcácer- na, a oitava, a ode, a elegia, a can-
pocentrismo, pelo hedonismo, Quibir, em 1578, com a destruição do ção, a écloga, a epístola, o epigrama,
em oposição ao teocentrismo, misti- exército português e morte de D. o epitalâmio; além do teatro clássico,
cismo e ascetismo medievais. Sebastião. A literatura começou a com a tragédia grega e a comédia
O interesse pelo homem e pelo refletir a comoção épica gerada pelo latina, regidas pela “lei das três uni-
que ele poderia realizar de alto, progresso nas primeiras décadas do dades” (de tempo, de lugar e de ação);
profundo e glorioso (Humanismo) século XVI, mas refletiu também, vez • na assimilação da influência
inspirou o conceito de homem in- por outra, o desalento e a advertên- temática e formal de autores como
tegral, senhor do mundo, sequioso cia, lúcidos perante a dúbia e provi- Horácio, Virgílio, Ovídio, Plauto, Te-
para conhecê-lo totalmente. sória superioridade. rêncio, Homero, Píndaro, Anacreonte,
O Renascimento português não Sannazzaro, Boccaccio, Boiardo, Tor-
❑ Características representou, como nos países protes- quato Tasso, Ariosto, Dante Alighieri e
centrais do Renascimento tantes, uma revolução cultural tão Petrarca, além da releitura dos filóso-
• Equilíbrio e harmonia de extensa e profunda. Na facção pro- fos gregos Platão e Aristóteles, filtra-
forma e fundo. Clareza, mentalida- testante, as condições foram mais dos pelo pensamento cristão de São
de aberta, intensidade vital, ímpeto favoráveis à liberdade de pensa- Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
progressista, euforia, ânsia de glória mento e à difusão popular da cultu- Contudo, o espírito medieval não
e perenidade, apreço pelo humano. ra, graças à propagação da impren- foi completamente abandonado. Por
• Universalismo, apego aos sa, veículo privilegiado pela Refor- isso, o Quinhentismo luso constituiu
valores transcendentais (o Belo, o ma Luterana. Em Portugal, como na uma época bifronte, pela coexistên-
Bem, a Verdade, a Perfeição) e aos Espanha e Itália, a Contrar-reforma cia e, não raro, a interinfluência das
sistemas racionais; simplificação por Católica inaugurou, precocemente, duas formas de cultura: a medieval,
lucidez técnica, simetria. um período de recalque ideológico popular, tradicional, materializada na
• Culto da Antiguidade gre- e de repressão. Em 1547, o Santo medida velha, e a clássica, erudi-
co-latina. Deuses pagãos usados co- Ofício visitou casas e livrarias à ta, renascentista, que se expressou
mo figuras literárias e claras alegorias. procura de livros heréticos. Gil Vicente, por meio da medida nova. Esse
Camões, Sá de Miranda, Antônio bifrontismo foi lugar-comum entre os
❑ O Renascimento português Ferreira, entre outros, foram consi- autores portugueses da época renas-
O Renascimento em Portugal derados “agentes contra a Fé e os centista, cujas aparentes contradi-
correspondeu ao período de apogeu Costumes”. ções só podem ser explicadas quan-
da Nação, cujo império, à semelhan- do se tem em vista a ambivalência
ça do império inglês do século XIX, cultural da época.
abrangia do Oriente (China, Índia) 2. A ESCOLA CLÁSSICA RE- No caso português, acresce não
ao Ocidente (Brasil), e marcou, com NASCENTISTA (1527-1580) ter havido um Renascimento típico,
Camões, a plena maturação da lín- pois, dada a prevalência do catoli-
gua portuguesa. Ainda que, já no fim da Idade cismo e do poder eclesiástico, o ra-
Sob o reinado de D. Manuel, o Média, os autores da Antiguidade Clás- cionalismo e a ideologia burguesa
Venturoso, Portugal gozou de mo- sica fossem conhecidos em Portugal, não vingaram de modo tão expres-
mentânea mas intensa euforia, gra- só se pode falar na existência de um sivo como ocorreu em outros países.
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3. LUÍS DE CAMÕES plesmente como um sentimento, mas ❑ As redondilhas de Camões


como uma força vital, uma força Sem muita rigidez, pode-se dizer
A biografia de Camões apre- cósmica que pode elevar o espírito. que a grande maioria das composi-
senta problemas insolúveis por falta Camões celebrou amores, a beleza ções na medida velha, em versos
de dados seguros. Lisboa, Coimbra, feminina, o prazer sensual (os versos redondilhos, ao gosto do público pa-
Alenquer e Santarém disputam o seu em que descreve o encanto da es- laciano, e à maneira do Cancioneiro
nascimento. Mais provável Lisboa ou crava negra, a menina dos olhos ver- Geral de Garcia Resende, data da
Coimbra, por volta de 1525. Morreu des, a moça que vai buscar água na mocidade de Camões. Em geral, as
em 1580, em Lisboa. fonte); mas celebrou também o amor redondilhas são leves, brincalhonas,
Em 1552, num dia de Corpus espiritual (o amor dito “platônico” e madrigalescas e destinam-se à reci-
Christi, numa rixa com um funcio- que mais propriamente se deve tação na Corte. Revelam a habili-
nário do paço, Gonçalo Borges, foi considerar um sinal do neoplato- dade formal do poeta, que usa ima-
ferido com um golpe de espada, ten- nismo camoniano). Neste último gens, trocadilhos e ambiguidades
do sido recolhido à prisão do Tronco. caso, o amor é visto como força que
mais voltados para a magia verbal,
No ano seguinte, como aventureiro, pode libertar o espírito do mundo da
para a demonstração da habilidade
tomou parte em várias expedições, matéria e elevá-lo a um plano mate-
na manipulação de palavras e con-
refazendo assim toda a rota de Vasco rial superior.
ceitos, do que para a expressão
da Gama, na viagem do descobri- Outros temas da obra lírica ca-
pessoal e individualizada.
mento do caminho marítimo para as moniana são a mudança constan-
Índias, que mais tarde se converteu te de tudo, ou seja, a instabilidade
na ação central de Os Lusíadas. da vida humana, e o desconcerto TEXTOS
Em 1555, envolveu-se em traba- do mundo, ou seja, a desordem e a
lhos de guerra em Goa, cujo gover- desrazão que governam tudo. Dessas DESCALÇA VAI PARA A FONTE
nador era Afonso de Albuquerque. características, também decorre a MOTE
Por volta de 1558, esteve em Macau necessidade de um mundo supe-
(China), primeiro estabelecimento rior, liberto deste mundo de aparên- Descalça vai para a fonte
europeu no Extremo Oriente. Aí foi cias enganosas, no qual o próprio Lianor pela verdura;1
Provedor-Mor de Bens de Defuntos e amor não passa de fonte de desen- Vai formosa, e não segura.
Ausentes, importante cargo adminis- ganos e sofrimentos.
VOLTAS
trativo. Acusado de irregularidades, Os livros didáticos, sem muito
voltou preso a Goa, para justificar- rigor, abordam duas vertentes da Leva na cabeça o pote,
se. Durante a viagem (1559), naufra- lírica de Camões: O testo2 nas mãos de prata,
gou às margens do Rio Mekong, no • a primeira, tradicional, popu- Cinta de fina escarlata,
Camboja. Em Os Lusíadas há uma lar, de inspiração medieval, vazada Sainho de chamalote3;
alusão a este fato e ao seu salva- em trovas, vilancetes, cantigas e es- Traz a vasquinha4 de cote5,
mento com o manuscrito de Os parsas, composta em versos redondi- Mais branca que a neve pura;
Vai formosa, e não segura.
Lusíadas, o que faz ver que a obra lhos, na medida velha, com utiliza-
devesse estar quase completa ção frequente de motes e glosas. É Descobre a touca a garganta,
(Canto X, 127-128). É da tradição uma poesia leve, galante, madriga- Cabelos de ouro o trançado,
que tenha perdido neste naufrágio lesca, como as composições do Can- Fita de cor de encarnado6,
seu grande amor oriental (Dina- cioneiro Geral de Garcia de Resende; Tão linda que o mundo espanta!
mene), em memória de quem fez o • a segunda, clássica, erudita, Chove nela graça tanta,
soneto “AIma minha gentil que te de inspiração italiana, vazada em Que dá graça à formosura;
Vai formosa, e não segura.
partiste”, além de outros. sonetos, canções, odes, oitavas,
Morreu miserável em 1580, após éclogas, tercetos, sextinas e elegias, Vocabulário e Notas
o desastre militar de Alcácer-Quibir, composta em decassílabos, na me- 1 – Verdura: vegetação.
que antevia a anexação de Portugal dida nova. É a maturidade de Ca- 2 – Testo: tampa do pote.
aos domínios da Espanha. Poucos mões, marcada pelo tom reflexivo, 3 – Chamalote: tecido de lã e seda.
dias antes de morrer, em carta a um pela dialética cerrada e pela reflexão 4 – Vasquinha: saia de vestir por cima de toda
amigo, D. Francisco de Almeida, densa sobre o tema lírico-amoroso, a roupa, com muitas pregas na cintura.
5 – De cote: de uso diário.
dizia: “Enfim acabarei a vida e verão sobre os transes existenciais do poe-
6 – Encarnado: vermelho.
todos que fui tão afeiçoado à minha ta e sobre o desconcerto do mundo.
pátria, que não me contentei em Em ambas as vertentes, Camões Comentário
morrer nela, mas com ela”. foi o maior poeta de seu tempo. Sua • Trata-se de um vilancete, com mote e
obra abrange as diversas correntes glosa, na medida velha (redondilha). Faz parte
❑ Camões lírico artísticas e ideológicas do século XVI de um ciclo de redondilhas em torno do tema
O tema central da lírica camo- e reflete uma experiência pessoal da donzela que caminha descalça para algum
lugar (para a fonte, pela neve etc.)
niana é o amor, concebido não sim- múltipla.
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De inspiração medieval e popular (pela ❑ A lírica clássica camoniana É querer estar preso por vontade;
forma, pela protagonista e pelo sentimento É servir a quem vence, o vencedor;
Sob influência da escola renas-
amoroso expresso), a redondilha acentua a É ter com quem nos mata lealdade.
tendência para a elaboração engenhosa de
centista italiana, ou escola petrar-
conceitos, para o jogo de ideias e para a cons- quista, Camões realizou a parcela Mas como causar pode seu favor
trução antitética e paradoxal, pressagiando a mais densa e perfeita de sua lírica. Nos corações humanos amizade,
vertente conceptista da poesia barroca. Com os decassílabos da medida Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
À maneira das cantigas de amigo, a
protagonista, Leonor, é uma mulher do povo,
nova e com as formas fixas do Clas- ***
de hábitos simples. O poeta oscila entre a des- sicismo (sonetos, canções, odes, Alma minha gentil, que te partiste
contração e o realismo das cantigas, a expres- elegias, éclogas, oitavas e sextinas), Tão cedo desta vida, descontente,
são direta do sentimento amoroso e a ex- Repousa lá no Céu eternamente,
o poeta conseguiu o mais alto
pressão elevada e conceitual do amor, que irá E viva eu cá na Terra sempre triste.
marcar a lírica clássica dos sonetos.
equilíbrio entre a disciplina, o virtuo-
sismo formal e a reflexão profunda Se lá no assento etéreo, onde subiste,
ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO sobre o sentido do amor e da vida. Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Os bons vi sempre passar Amor é um fogo que arde sem se ver; Que já nos olhos meus tão puro viste.
no mundo graves tormentos;
É ferida que dói e não se sente;
e, para mais me espantar,
É um contentamento descontente; E se vires que pode merecer-te
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos. É dor que desatina sem doer. Alguma coisa a dor que me ficou
Cuidando alcançar assim Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
o bem tão mal ordenado, É um não querer mais que bem querer;
fui mau, mas fui castigado. É um andar solitário entre a gente; Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Assim que só para mim É nunca contentar-se de contente; Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
anda o mundo concertado. É um cuidar que ganha em se perder. Quão cedo de meus olhos te levou.

MÓDULO 5 Os Lusíadas – I
1. EPOPEIA CAMONIANA pansão geográfica custou caro para rior). Além de Os Lusíadas, Camões
os outros, os povos das terras “des- não publicou nenhum outro livro.
Epopeia é um poema do gê- cobertas”, para os quais a chegada
nero épico, poesia de tom elevado, dos europeus significou, na maioria 2. DIVISÕES FORMAIS:
heroica, que conta uma história e dos casos, dominação, destruição CANTOS E ESTROFES
celebra um herói, em aventuras ge- cultural, escravidão e morte.)
ralmente guerreiras, cujo sentido O assunto é um grande episó- • O poema divide-se em dez
grandioso se liga à vida da socieda- dio da conquista dos mares e avanço cantos (cantos são as principais divi-
de a que pertence. Depois das gran- sobre terras distantes e desconhe- sões materiais ou partes de um poe-
des epopeias da Antiguidade (a cidas: o descobrimento do caminho ma, correspondendo, na prosa, aos
Ilíada e a Odisseia, de Homero, do marítimo para as Índias, realizado no capítulos). Cada canto contém em
século VIII a.C.), a poesia épica raras fim do século XV por um português, média 110 estrofes ou estâncias. O
vezes atingiu a altura a que se Vasco da Gama, numa época em Canto VII é o mais curto, com 87
elevam Os Lusíadas. Neste poema, que Portugal vivia seu apogeu e estrofes; o Canto X é o mais longo,
os grandes ingredientes do gênero estava na vanguarda da aventura com 156 estrofes.
épico estiveram presentes: um mo- conquistadora da Europa. • O poema compõe-se de 1.102
mento grandioso, um assunto É com Os Lusíadas que a língua estrofes, com 8 versos em cada uma,
grandioso e um poeta grandioso. portuguesa adquire, definitivamente, dispostos em oitava-rima (esquema
O momento foi o Renascimento, sua maioridade. ABABABCC).
uma época fervilhante, de expansão Datadas do ano de 1572, há duas
das fronteiras do mundo conhecido edições de Os Lusíadas, praticamen- 3. AS PARTES DO POEMA
— expansão no espaço (descobriu- te idênticas. Não se sabe se as duas
se grande parte do planeta), no tem- foram feitas pelo poeta naquele ano A proposição (estrofes 1 e 2) é
po (redescobriu-se toda a Antiguida- ou se uma delas (não se saberia qual) parte obrigatória do poema épico. É a
de) e no espírito (ampliou-se enorme- é falsificação posterior, feita para iludir apresentação do assunto. O núcleo da
mente o conhecimento e iniciou-se a a Inquisição (que fora tolerante quan- proposição está nos versos 15 e 16
investigação científica do mundo). do da primeira edição do poema, mas (“Cantando espalharei por toda parte /
(Hoje, procura-se lembrar que a ex- exigiu alterações em edição poste- Se a tanto me ajudar o engenho e arte”):
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As armas e os barões1 assinalados, Em seguida, propõe uma infla- Da branca escuma1 os mares se mostravam
Que, da Ocidental praia Lusitana2, mada dedicatória a D. Sebastião, Cobertos, onde as proas vão cortando
Por mares nunca dantes navegados3, As marítimas águas consagradas2,
Passaram ainda além da Taprobana4,
estimulando-o a uma grande empre- Que do gado de Próteu3 são cortadas,
Em perigos e guerras esforçados sa de conquista que o elevasse à
Mais do que prometia a força humana, altura de seus ilustres antepassados Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
E entre gente remota5 edificaram (sabe-se do desastre em que termi- Onde o governo está da humana gente,
Novo Reino, que tanto sublimaram6. Se ajuntam em consílio4 glorioso,
naria, poucos anos depois, a aven- Sobre as coisas futuras do Oriente.
E também as memórias gloriosas tura de D. Sebastião na África): (…)
Daqueles Reis que foram dilatando7
A Fé, o Império, e as terras viciosas8 E, enquanto eu estes canto, e a vós não Vocabulário e Notas
De África e de Ásia andaram devastando, [posso, 1 – Escuma: espuma.
E aqueles que por obras valorosas Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, 2 – Consagrado: sagrado, santificado.
Se vão da lei da Morte libertando9: Tomai as rédeas vós do Reino vosso: 3 – Próteu: deus marinho, guardador do gado
Cantando espalharei10 por toda parte, Dareis matéria a nunca ouvido canto. de Netuno. Tinha o dom de tomar todas as
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Comecem a sentir o peso grosso formas possíveis.
(Que pelo mundo todo faça espanto) 4 – Consílio: conselho, assembleia.
Vocabulário e Notas De exércitos e feitos singulares
1 – Armas: guerras; barões: varões.
De África as terras e do Oriente os mares. No canto décimo, a narrativa se
2 – Portugal é o país mais ocidental da Euro- encerra e o poema se fecha com um
pa.
3 – Verso célebre, muito repetido. Na estrofe 19, inicia-se a nar- epílogo desalentado, em que o poe-
4 – Taprobana: Ceilão (hoje Sri Lanka), pon- ração de Os Lusíadas, a qual com- ta lamenta a situação presente de
to-limite primeiro ultrapassado pelos por-
preende três ações principais: a seu país e se dirige de novo a D.
tugueses. Sebastião, retomando a exortação
5 – Gente remota: povos distantes. viagem de Vasco da Gama, a
6 – Sublimar: elevar, enaltecer. história de Portugal e a luta que a ele fizera na dedicatória do
7 – Dilatar: ampliar, ou seja, espalhar pelo dos deuses do Olimpo (Baco x poema.
mundo.
Vênus); são, portanto, duas ações Contrapondo-se ao tom vibrante
8 – A Fé, o Império: O Cristianismo e o Impé-
históricas e uma ação mitológica. e ufanista do início do poema, o des-
rio português; terras viciosas: países não
cristãos. fecho contém uma dolorosa crítica à
Essas ações são entremeadas de di-
9 – Se vão da lei da Morte libertando: Vão-se decadência do país, corroído pela
gressões (dissertações) poéticas de
tornando imortais, porque serão sempre ambição desmedida de conquista e
lembrados. Camões sobre a moral, sobre a des-
de riqueza. É uma clara premonição
10 – Cantando espalharei: nessa expressão consideração de seus contempo-
está o verbo principal, do qual tudo o que da derrocada do país, submetido à
râneos pela poesia, sobre o verda-
veio antes é objeto. Espanha, e de seu Império Oriental:
deiro valor da glória, sobre a onipo-
tência do ouro e sobre o destino de Não mais, Musa1, não mais, que a Lira tenho
Depois dessa proposição — es-
palhar pelo mundo, com seu poema, Portugal. Destemperada2 e a voz enrouquecida,
O início da ação (I, 19) se dá, E não do canto, mas de ver que venho
os grandes feitos dos portugueses Cantar a gente surda e endurecida3.
—, o poeta faz a invocação, não não no início da viagem de Vasco da O favor com que mais se acende o engenho
das Musas (deusas que presidiam às Gama, mas quando os navegadores Não no dá a pátria, não, que está metida
já estão em pleno Oceano Índico, na No gosto da cobiça e na rudeza
artes), mas das Tágides, ou ninfas D’uma austera, apagada e vil tristeza.
do Rio Tejo, para que o inspirem. costa leste da África, à altura da Ilha
de Madagáscar. Só mais tarde é que Vocabulário e Notas
E vós, Tágides minhas, pois criado se irão narrar o início da viagem, a 1 – Musa: Camões dirige-se novamente a
Tendes em mim um novo engenho partida das naus e os incidentes da suas inspiradoras, as Tágides, para
[ardente1, informá-las de que vai parar o poema, não
Se sempre, em verso humilde, celebrado navegação no Atlântico. porque tivesse se cansado do canto, mas
Foi de mim vosso rio alegremente, Camões, na estrofe 19 do primei- porque sente falta do maior estímulo à sua
Dai-me agora um som alto e sublimado, ro canto, apresenta rapidamente os poesia: o reconhecimento do povo, da
Um estilo grandíloquo e corrente, pátria.
navegadores já no Índico, para, a se-
Por que de vossas águas Febo2 ordene 2 – Destemperado: desafinado.
Que não tenham inveja às de Hipocrene3. guir, apresentar a primeira ação mito- 3 – Gente surda e endurecida: o povo portu-
lógica, a primeira intervenção do guês. Para alguns críticos, Camões refere-
Vocabulário e Notas se apenas àquela parcela corroída pela
“maravilhoso pagão”, no episódio do
1 – Engenho ardente: refere-se à inspiração ganância e pelo individualismo. Para ou-
épica (heroica). “Consílio dos Deuses no Olimpo”: tros, o sentido da crítica é mais amplo e
2 – Febo: Apolo, deus do sol e aquele que presi- atinge toda a Nação, entregue ao obscu-
de as musas. Já no largo Oceano navegavam, rantismo religioso (a Contrarreforma), ao
3 – Hipocrene: fonte que o cavalo alado Pé- As inquietas ondas apartando; autoritarismo político (o Absolutismo), à
gaso fez brotar no Hélicon. Quem bebesse Os ventos brandamente respiravam, decadência econômica e à retórica pedan-
de suas águas se tornaria poeta. Das naus as velas côncavas inchando; te e esterilizante da ignorância e do medo.

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MÓDULO 6 Os Lusíadas – II
A narração da Viagem de Melin- no Palácio de Netuno, desembocan-
de até Calicute, na Índia, é retomada do na “llha dos Amores”, onde os planos
pelo poeta no Canto Vl. Seguem-se histórico e mitológico se fundem.
os episódios da conquista do Oriente.
No Canto IX inicia-se a viagem de re- ❑ Resumo dos cantos
gresso à pátria, interrompida na “Ilha
dos Amores”, onde os navegadores CANTO I
são recebidos por Tétis e pelas Ninfas, Proposição, invocação, de-
que amorosamente os recompensam dicatória, início da narração
dos duros trabalhos do mar; (rápida referência a que os portugue-
• a segunda ação histó- ses já navegavam no Oceano Índico);
rica, o relato da história de Portugal, Consílio dos Deuses no Olimpo; em
com dois narradores: Vasco da Gama Moçambique, Quiloa e Mombaça,
e seu irmão, Paulo da Gama. Vasco ciladas de Baco contra os navegado-
da Gama conta ao rei de Melinde a res e intervenções de Vênus e das
Luís de Camões fundação do País; os feitos dos reis e Nereidas a favor dos portugueses;
heróis portugueses, as principais bata- reflexões morais do poeta.
1. A NARRAÇÃO DO POEMA lhas que venceram (Ourique, Salado
e Aljubarrota); o episódio lírico-amoro- CANTO II
Já vimos, na aula anterior, que a so de Inês de Castro; o sonho proféti- Em Mombaça, narram-se as ma-
narração da viagem de Vasco da co de D. Manuel; o início da viagem; quinações de Baco e as interven-
Gama inicia-se na estrofe 19 do Can- o episódio do Gigante Adamastor, per- ções de Vênus e das Nereidas;
to I, com os navegadores já no meio sonificação do Cabo das Tormentas Vênus sobe ao Olimpo e queixa-se a
da viagem, em pleno Oceano Índico. e símbolo da superação do medo do Júpiter, que profetiza os feitos lusos;
Vimos também que a narração “Mar Tenebroso”. chegada a Melinde, onde os portu-
compreende duas ações históricas e A relação dos heróis portugueses gueses são bem recebidos.
uma ação mitológica. Dessas ações
e de seus atos é completada no Canto
destacam-se inúmeros episódios de CANTO III
Vlll, por Paulo da Gama, que conta ao
natureza simbólica, profética, lírica, Vasco da Gama invoca a inspira-
catual, a pretexto de explicar o signi-
naturista, histórica ou mitológica. ção de Calíope e inicia a narração da
ficado das bandeiras de Portugal, os
Particularizando melhor a nar- história de Portugal, destacando: os
feitos heroicos da gente lusitana.
ração, temos primeiros heróis (Luso e Viriato), a fun-
As narrativas são entremeadas de
• a primeira ação histórica, dação do País e os reis de Portugal, as
intervenções do poeta, principalmen-
que principia com os navegadores já batalhas de Ourique e Salado e o epi-
te no final dos cantos, em que Camões
em pleno Oceano Índico, próximos sódio lírico-amoroso de Inês de Castro.
lança suas reflexões morais, invectivas
de Moçambique.
contra o desprezo dos portugueses CANTO IV
Vencidos os perigos do mar e as
armadilhas de Baco, em Quiloa e pela arte, considerações sobre o ver- Vasco da Gama prossegue a nar-
Mombaça, os portugueses aportaram dadeiro valor da glória, sobre a sub- ração da história de Portugal: a Bata-
em Melinde. missão dos homens ao dinheiro e lha de Aljubarrota (centralização mo-
Do Canto lll ao V a ação (viagem) é sobre a decadência do país; nárquica — início da Dinastia de Avis).
interrompida, e Vasco da Gama • a ação mitológica, que prin- As primeiras conquistas, a Tomada de
conta ao rei de Melinde a história de cipia no Canto I, 20, com o episódio Ceuta, o sonho profético de D. Manuel,
Portugal, desde os heróis primitivos, do Consílio dos Deuses no Olimpo. que confia a Vasco da Gama o des-
passando por todos os reis, heróis e Baco é contrário aos portugueses: cobrimento do caminho marítimo para
feitos relevantes, até a inserção do Vênus é favorável a eles, e acaba con- as Índias. A partir desse ponto, Vasco
próprio narrador (Vasco da Gama) na vencendo Marte e Júpiter. A interven- da Gama passa a narrar a própria via-
história, narrando, ele próprio, a ção de divindades mitológicas (“ma- gem, a partida das naus e a adver-
partida das naus, os incidentes da ravilhoso pagão”) desdobra-se em ou- tência do Velho do Restelo (censura
viagem de Portugal a Melinde, a tros episódios: as ciladas de Baco, às navegações, representando a
travessia do Cabo das Tormentas, ou as intervenções de Vênus e das Nerei- sobrevivência da ideologia medieval,
da Boa Esperança. das, o Consílio dos Deuses Marinhos feudal e conservadora).
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CANTO V (a “Máquina do Mundo”), apontan- ❑ Inês de Castro (III,118-135)


Vasco da Gama conclui a nar- do os lugares onde os portugueses Episódio de natureza Iírico-amo-
ração da sua viagem. Fala do Cruzeiro iriam praticar grandes feitos. Camões rosa, simboliza a força e a veemência
do Sul, do fogo-de-santelmo, da narra o episódio de São Tomé, em do amor em Portugal.
tromba marítima, do episódio cômico que se fundem o “maravilhoso cris- Valendo-se de fontes medievais
de Veloso e do Gigante Adamastor tão” (bíblico), o “maravilhoso pagão” (as Trovas, de Garcia de Resende) e
(monstro de pedra que personifica o (mitológico) e o plano histórico. Tétis clássicas (a tragédia A Castro, de
Cabo das Tormentas, simbolizando a despede-se dos portugueses. Re- Antônio Ferreira), Camões, pela boca
superação do medo do “Mar Tene- gresso à pátria. Camões lamenta a de Vasco da Gama, inscreve na
broso”). De novo em Melinde, Vasco decadência de Portugal (Epílogo), epopeia a narrativa lírica da jovem
da Gama exalta a tenacidade portu- faz exortação a D. Sebastião e va- condenada pelo crime de amar. Inês,
guesa. Aqui se encerra o primeiro ticina as futuras glórias. jovem da pequena nobreza de
ciclo épico. Camões recrimina os por- Castela, apaixonou-se pelo Príncipe
tugueses pelo desapego à poesia. 2. EPISÓDIOS NOTÁVEIS D. Pedro (depois D. Pedro I, de Por-
tugal). A corte portuguesa opunha-se
CANTO Vl Os episódios de Os Lusíadas a tal união, e o Rei D. Afonso IV, mes-
Camões retoma a narração da via- são ações acessórias às ações mo reconhecendo a inocência da
gem de Melinde para a Índia. Os deu- principais. Além das ações históri- moça, não impede sua morte. Pedro,
ses reúnem-se no Palácio de Netuno cas, reais, narradas diretamente pelo na época em trabalhos de guerra na
para o Consílio dos Deuses Marinhos. poeta, por Vasco da Gama, ou por África, regressa a Portugal e encon-
A bordo das naus, os portugueses se seu irmão, Paulo da Gama, há epi- tra a amada morta (de onde vem a
entretêm com a narrativa cavaleires- sódios mitológicos, proféticos, líricos expressão popular “agora Inês é
ca do episódio dos Doze da Ingla- e naturistas (descrições da natu-
morta”). Diz a lenda que, treslouca-
terra (inspirada nos torneios da cava- reza), entremeados uns aos outros,
do, o príncipe teria desenterrado Inês,
laria medieval). Meditações do poeta de forma que um mesmo episódio
coroando-a rainha após a morte, e teria,
sobre o verdadeiro valor da glória. pode ter vários significados.
ainda, obrigado a corte a beijar a mão
da rainha-defunta. O certo é que, as-
CANTO VII ❑ O Consílio dos
sumindo o trono, foi um dos reis mais
Os portugueses chegam a Cali- Deuses no Olimpo (I, 20-41)
cruéis do país, obcecado pela vingan-
cute, na Índia. Camões descreve o Reunidos sob a presidência de
ça contra os algozes da amada.
Oriente exótico. Júpiter, os deuses discutem o futuro
das navegações portuguesas e da ❑ O Velho do
CANTO Vlll viagem de Vasco da Gama. Baco é Restelo (IV, 94-104)
Paulo da Gama, atendendo a um contrário aos portugueses, pois teme Quando as naus de Vasco da
pedido do catual (autoridade re- que eles suplantem seus feitos no Gama se despediam do porto de Be-
gional da Índia), explica o significado Oriente. Também Netuno (deus do lém, um velho, o Velho do Res-
das bandeiras de Portugal e refere- mar) fará depois oposição aos nave- telo, elevando a voz, manifestou sua
se aos heróis portugueses e aos gadores, invejoso de seus sucessos oposição à viagem às Índias. A sua
seus feitos. Camões narra os perigos marítimos. Vênus (deusa do amor) e fala pode ser interpretada como a
enfrentados no Oriente. Vasco da Marte (deus da guerra) tomam par-
Gama é feito prisioneiro e é res- sobrevivência da mentalidade feudal,
tido dos lusos, considerados pela deu- agrária, oposta ao expansionismo e
gatado em troca de mercadorias sa como os maiores amantes e, por-
europeias. Camões tece conside- às navegações, que configuravam os
tanto, seus protegidos, e tidos por interesses da burguesia e da monar-
rações sobre a onipotência do ouro.
Marte como os guerreiros mais valen- quia. É a expressão rigorosa do con-
tes. Após o debate, Júpiter decide a servadorismo. Certo é que Camões,
CANTO IX
favor dos portugueses. Baco, incon- mesmo numa epopeia que se propõe
Os portugueses iniciam a viagem
formado, desce à Terra e tenta im- a exaltar as Grandes Navegações,
de regresso. Vênus e as Ninfas prepa-
ram a “llha dos Amores”, prêmio e re- pedir o êxito da viagem, armando ci- dá a palavra aos que se opõem ao
pouso para os navegadores. É a fusão ladas e ataques traiçoeiros. projeto expansionista.
dos planos histórico e mitológico. Essa ação mitológica, a disputa
entre Vênus e Baco, interfere no plano ❑ O Gigante
CANTO X histórico, e tem o claro propósito de ele- Adamastor (V, 37-60)
Na “llha dos Amores”, Tétis e as var os navegadores à altura dos deu- Quando a esquadra de Vasco da
Ninfas oferecem um banquete aos ses olímpicos. Inspiradas na tradição Gama atravessava o Cabo das Tor-
navegadores. Tétis mostra a Vasco clássica, essas alegorias constituem mentas, passando do Oceano Atlân-
da Gama uma miniatura do Universo alguns dos pontos altos do poema. tico para o Índico, um monstro disfor-
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me e ameaçador interpela os navega- portugueses iriam fincar sua ban- De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
dores, condenando sua ousadia, pro- deira, incluindo aqui o Descobri-
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
fetizando desgraças e miséria. O Gi- mento do Brasil. Quando um gesto suave te sujeita.
gante narra, a seguir, a causa de sua Esse longo episódio é riquíssi- Vendo estas namoradas estranhezas,
transformação na figura monstruosa O velho pai sisudo, que respeita
mo em sugestões e significados.
O murmurar do povo e a fantasia
que guarnecia o Cabo das Tormentas: Simboliza a elevação dos navega- Do filho, que casar-se não queria,
tendo-se apaixonado por Tétis (filha dores à condição de semideuses, (III, 122)
de Dóris e Nereu), foi por ela repudia- interseccionando os planos histórico
do e tentou tomá-la à força. Derrota- Tirar Inês ao mundo determina,
e mitológico. Na exibição da Má- Por lhe tirar o filho que tem preso,
do e punido pelos deuses, foi transfor- quina do Mundo, os portugueses tor- Crendo com sangue só da morte indina11
mado num monstro de pedra. Inspi- nam-se senhores dos segredos do Matar do firme amor o fogo aceso.
rada na mitologia clássica (Homero e Que furor consentiu que a espada fina,
Universo, e Vasco da Gama triunfa Que pôde sustentar o grande peso
Ovídio), é uma das alegorias mais mais uma vez sobre Adamastor, tor- Do furor Mauro12, fosse alevantada
ricas do poema. Simboliza, no plano Contra hũa fraca dama delicada?
nando-se amante de Tétis, ninfa do
histórico, a superação, pelos portu- (III, 123)
mar. Inspirado em Virgílio, Horácio e
gueses, do medo do “Mar Tenebro-
Ovídio, o episódio é um hino ao amor (...)
so”, das superstições medievais. No
e à sensualidade.
plano lírico, desenvolve o tema do A corte, contudo, exige a morte
amante infeliz e desenganado (Tétis de Inês (nobre, mas bastarda), com
era esposa de Peleu, e enganou o TEXTOS quem o príncipe tinha filhos e de
Gigante); o amor-tragédia. Curiosa- quem não queria se afastar. Levada à
mente, o primeiro navegante a atraves- EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO presença do rei, Inês suplica a cle-
sar o Cabo das Tormentas, Bartolomeu (fragmentos) mência de D. Afonso IV, não por ela,
Dias, morreu exatamente ali, quando, ou pela sua vida, mas por seus filhos.
Passada esta tão próspera vitória1,
12 anos depois, em 1500, comanda- Tornado Afonso à Lusitana Terra, Observe a elegância e concisão do
va uma das quatro naus que Pedro A se lograr da paz com tanta glória poeta na estrofe que se segue:
Álvares Cabral perdeu na costa afri- Quanta soube ganhar na dura guerra,
cana, num naufrá gio. Era a O caso triste e digno da memória, Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
Que do sepulcro os homens desenterra, (Se de humano é matar uma donzela,
vingança do Gigante, ou do Cabo Aconteceu da mísera e mesquinha Fraca e sem força, só por ter sujeito
da Boa Esperança, como o batizou Que depois de ser morta foi Rainha. O coração a quem soube vencê-la),
Bartolomeu Dias, em 1488. (III, 118) A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Mova-te a piedade sua e minha,
❑ A llha dos Pois te não move a culpa que não tinha.
Que os corações humanos tanto obriga,
Amores (IX, 18 a X, 143) Deste causa à molesta2 morte sua, (III, 127)
Após a conquista do Oriente, lan- Como se fora3 pérfida inimiga. Vocabulário e Notas
çadas as sementes do Império Por- Se dizem, fero Amor, que a sede tua 1 – Esta... vitória: refere-se à vitória dos cris-
Nem com lágrimas tristes se mitiga4, tãos na Batalha do Salado.
tuguês que aí surgiria, os navegado-
É porque queres, áspero e tirano, 2 – Molesto: lastimoso, lamentável.
res estão voltando a Portugal. Vênus, Tuas aras5 banhar em sangue humano. 3 – Fora: fosse.
entretanto, prepara-lhes uma surpre- (III, 119) 4 – Mitigar: abrandar.
sa, como recompensa aos seus es- 5 – Ara: altar.
Estavas, linda Inês, posta em sossego, 6 – Fruito: fruto.
forços e sacrifícios. Numa ilha para- 7 – Engano: êxtase, enlevo.
De teus anos colhendo doce fruito6,
disíaca, os navegadores são recebi- Naquele engano7 da alma, Iedo e cego, 8 – Fortuna: na crença dos antigos, deusa que
dos pelas ninfas do mar, que Cupido, Que a Fortuna8 não deixa durar muito, presidia ao bem e ao mal; destino, fado.
Nos saudosos campos do Mondego9, 9 – Mondego: rio que banha Coimbra.
por ordem de Vênus, fez enamora-
De teus formosos olhos nunca enxuito10, 10 – Enxuito: enxuto.
das dos portugueses. Emoldurados 11 – Indino: indigno.
Aos montes ensinando e às ervinhas
por uma natureza exuberante, vivem O nome que no peito escrito tinhas.
12 – Mauro: mouro.
instantes de prazeres ilimitados. (III, 120)
EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO
Homenageados por Tétis com um
Do teu Príncipe ali te respondiam
banquete, uma ninfa profetiza os Mas um velho, de aspecto venerando,
As lembranças que na alma Ihe moravam, Que ficava nas praias, entre a gente,
futuros feitos portugueses. Após, Que sempre ante seus olhos te traziam, Postos em nós os olhos, meneando
Tétis, do alto de um monte, mostra a Quando dos teus formosos se apartavam; Três vezes a cabeça, descontente,
Vasco da Gama a Máquina do De noite, em doces sonhos que mentiam, A voz pesada um pouco alevantando,
De dia, em pensamentos que voavam; Que nós no mar ouvimos claramente,
Mundo, espécie de miniatura do
E quanto, enfim, cuidava e quanto via C’um saber só de experiências feito,
Universo. Particularizando o globo Eram tudo memórias de alegria. Tais palavras tirou do experto1 peito:
terrestre, aponta os lugares onde os (III, 121) (IV, 94)

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“Ó glória de mandar, ó vã cobiça Deixas criar as portas o inimigo, Que a tua estátua ilustre não tivera
Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Por ires buscar outro de tão longe, Fogo de altos desejos que a movera!
Ó fraudulento gosto, que se atiça Por quem se despovoe o Reino antigo, (IV, 103)
C’uma aura popular, que honra se chama! Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Que castigo tamanho e que justiça Buscas o incerto e incógnito perigo Não cometera o moço miserando8
Fazes no peito vão que muito te ama! Por que a Fama te exalte e te lisonje O carro alto do pai, nem o ar vazio
Que mortes, que perigos, que tormentas, Chamando-te senhor com larga cópia, O grande arquitector com o filho9, dando,
Que crueldades neles exprimentas2! Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia. Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
(IV, 95) (IV, 101) Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Condenando a temeridade de Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Deixa intentado a humana geração.
se lançarem os portugueses na con- Nas ondas vela pôs em seco lenho5! Mísera sorte! Estranha condição!”
Digno da eterna pena do Profundo6, (IV, 104)
quista do Oriente, adverte para o pe- Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
rigo representado pelos árabes e Nunca juízo algum, alto e profundo, Vocabulário e Notas
amaldiçoa as navegações: Nem cítara sonora de vivo engenho, 1 – Experto: experiente, sábio.
Te dê por isso fama nem memória, 2 – Exprimentas: experimentas.
Não tens junto contigo o Ismaelita3, Mas contigo se acabe o nome e glória! 3 – Ismaelita: referente a Ismael, filho de
Com quem sempre terás guerras sobejas? (IV, 102) Abraão, segundo o Velho Testamento.
Não segue ele do Arábio a Lei maldita, 4 – Pola: pela.
Se tu pola4 de Cristo só pelejas? Trouxe o filho de Jápeto7 do Céu 5 – Seco lenho: embarcação, navio.
Não tem cidades mil, terra infinita, O fogo que ajuntou ao peito humano, 6 – Profundo: inferno.
Se terras e riqueza mais desejas? Fogo que o mundo em armas acendeu, 7 – Filho de Jápeto: Prometeu.
Não é ele por armas esforçado, Em mortes, em desonras (grandeengano!). 8 – Miserando: digno de pena.
Se queres por vitórias ser louvado? Quanto melhor nos fora, Prometeu, 9 – Grande arquitector com o filho: Dédalo
(IV, 100) E quanto para o mundo menos dano, (da mitologia grega) e seu filho, Ícaro.

MÓDULO 7 Barroco
1. CONCEITO E ÂMBITO tações liberais do protestantismo e ção do espaço é perceptível em Vitória,
racionalismo na Inglaterra, Holanda e Palestrina, Bach e Haendel, no vir-
A apreciação do Barroco França. Nessa dimensão, o Barroco tuosismo dos esquemas polifônicos,
oscila entre a recusa e a posi- designa um certo número de estrutu- geradores do contraponto e da fuga.
ção negativista dos críticos ras formais que tendem a fundir e a Em sentido mais restrito, es-
que acusam o estilo de rebuscado, conciliar atitudes opostas, correspon- pecialmente espanhol, Barroco é a
artificial e vazio de conteúdo e a dentes à coexistência e interdepen- expressão artística e literária da Con-
apologia entusiasmada de ou- dência, mesmo conflituosa, de formas trarreforma católica e do absolutismo
tros, maravilhados com a engenho- sociais profundamente diferentes na das cortes dos Habsburgos. Expres-
sidade e sutileza da linguagem artís- Europa. Essa ânsia de fusão dos con- sa a dualidade cultural da Contrar-
tica barroca, voltada para a novida- trários fornece os principais elemen- reforma: Humanismo renascentista
de, para a alusão, para a suges- tos para a cosmovisão do Barroco: (valorização da cultura pagã do
tão e para a ilusão, entendida como 1) na Filosofia, a passagem de mundo greco-latino) mais a religiosi-
fuga da realidade convencional. uma concepção finitista e estática do dade tridentina, gerada na estufa da
Em sentido amplo, tomado como mundo para uma concepção infini- nobreza e do clero romano, espanhol,
constante universal, no homem e na tista, energética e dinâmica, com austríaco e português (valorização
arte, barroco designa um conjunto de Pascal, Newton e Giordano Bruno; da cultura cristã do mundo medieval).
características estéticas e formais que, 2) nas Artes Plásticas, essa A dualidade, o bifrontismo (Teo-
aparentemente, ressurgem em certas ânsia de expressar o movimento, a centrismo x Antropocentrismo, Fé x
épocas, como no Helenismo, no profundidade e a irregularidade pro- Razão, Céu x Terra, Alma x Corpo,
Gótico flamejante, no século XVII, no jeta-se em Michelângelo, Bernini, Virtude x Prazer, Ascetismo x He-
Romantismo e no Impressionismo, mar- Rubens, Velásquez, El Greco, Cara- donismo, Cristianismo x Paganismo),
cadas pela tendência à intensifica- vaggio, Rembrandt, Tintoretto e faz do Barroco ibérico-jesuítico a ex-
ção, ao exagero, e pela ânsia de ex- Zurbarán, na criação de um espaço pressão de um sentimento de dese-
pressar a tensão e a irregularidade. tumultuado que busca sugerir atmos- quilíbrio, de frustração e de instabili-
O Barroco designa as caracterís- feras ora místicas, ora imprecisas, dade, relacionado com a repressão
ticas que assumem a arte e a cultura repletas de elementos ornamentais e inquisitorial, com o terror político e re-
seiscentistas, condicionadas, de início, pormenores significativos; ligioso e com a decadência do mun-
pelo Absolutismo e pela Contrar- 3) na Música, esse mesmo sen- do católico, abalado com a derrota
reforma, incluindo, depois, manifes- tido de profundidade labiríntica e dilui- da invencível Armada, em 1588.
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A transição do ideal clássico para cupação, ao lado da consciência da metáforas), num estado de verda-
o barroco é definida por Heinrich fugacidade do tempo, e da incerteza deiro delírio cromático, apoiado em
Wölfflin, em termos de uma passagem e inconstância da vida. sugestões intensivas de cores e de
1) do linear ao pictórico, sons. Esse processo de identificação
incluindo o pitoresco e o “colorido”; ❑ A religiosidade (ilusória, sensorial, não racional)
2) da visão de superfície à Projetando uma época de intensos apoia-se nos jogos de palavras, nos
visão de profundidade, implican- conflitos espirituais, o tema religioso trocadilhos, nos enigmas, nas metá-
do o desdobramento de planos e mas- aparece muitas vezes mesclado com foras e nas perífrases ou circunló-
sas; a sensualidade; as alegorias bíblicas quios (= torneio em redor do termo
3) da forma fechada à for- do Antigo e do Novo Testamento mis- próprio e adoção de muitas palavras
ma aberta, denotando as perspec- turam-se com a mitologia pagã; a fé para evitá-lo). Assim, em vez de lá-
tivas múltiplas do observador; cristã e o misticismo aliam-se ao racio- grima, o barroco diz o “cristal dos
4) da multiplicidade à uni- nalismo, no arrependimento e na bus- olhos”; em vez de dentes, as “pérolas
dade, subordinando vários aspectos ca do perdão. Os argumentos lógicos da boca”; em vez de leque, o “zéfiro
a um único sentido; sobrepõem-se à revelação mística e manual”. O abuso artificioso da fan-
5) da clareza absoluta dos a consciência do pecado não inibe a tasia no campo psicológico da repre-
objetos à clareza relativa, a su- esperança de salvação. É uma reli- sentação sensível faz do poeta gon-
gerir formas de expressão esfuma- giosidade tensa e conflituosa. górico um verdadeiro alquimista, que
das, ambíguas, não finitas. busca extrair do real uma natureza
❑ Atitude lúdica supranatural, imaterial e arbitrária.
2. CARACTERÍSTICAS O propósito da arte barroca é, O aspecto exterior, imediata-
ESTÉTICO-ESTILÍSTICAS muitas vezes, o de surpreender o lei- mente perceptível, no Barroco cultis-
tor pelo virtuosismo, pela engenhosi- ta ou gongórico, é o abuso no empre-
❑ O dualismo dade, enredando-o em verdadeiros go de figuras de linguagem.
O Barroco é a arte do conflito, do labirintos de imagens e ideias. Mani-
contraste, da contradição, do dilema, pulando as palavras, abusando das
TEXTO I
e da dúvida, que se expressam pelo figuras de linguagem, privilegia o as-
acúmulo de antíteses, parado- pecto formal, o significante, em A serpe1, que adornando várias cores2,
xos e oxímoros. detrimento do significado. Assim, Com passos mais oblíquos3, que serenos,
alguns textos barrocos parecem Entre belos jardins, prados amenos,
❑ O fusionismo vazios de conteúdo, meros pretextos É maio errante de torcidas flores4;
O artista barroco não se limita a para o artista exibir a sua habilidade
Se quer matar da sede os desfavores5,
expor os contrários; quer conciliá-los, na exploração de sutilezas, de Os cristais6 bebe coa peçonha7 menos,
fundi-los, integrá-los por meio das fi- trocadilhos e de construções Por que não morra cos mortais venenos,
guras de linguagem: inusitadas. Esse niilismo temático, Se acaso gosta8 dos vitais licores9.
“Incêndio em mares de água dis- essa “pobreza” de conteúdo é mais
Assim também meu coração queixoso,
farçado; / Rio de neve em fogo con- frequente no aspecto gongórico ou Na sede ardente do feliz cuidado,
vertido.” cultista do Barroco. Bebe cos olhos teu cristal 10 fermoso11;

❑ O feísmo 3. O BARROCO Pois para não morrer no gosto amado,


Depõe logo o tormento venenoso,
Expressando uma época de in- CULTISTA OU GONGÓRICO Se acaso gosta o cristalino agrado12.
certeza, de repressão, de obscuran- (Manuel Botelho de Oliveira)
tismo, o homem barroco tem acen- Denomina-se cultismo ou cultera-
tuada predileção pelos aspectos nismo o aspecto do Barroco voltado Vocabulário e Notas
1 – Serpe: cobra, serpente.
cruéis, dolorosos e sangrentos, pelo para o jogo de palavras, para o
2 – Adornando várias cores: perífrase de “co-
“belo horrendo”, pelo espetáculo trá- rebuscamento da forma, para a orna- lorida”.
gico, deformando as imagens pelo mentação estilística, para o precio- 3 – Passos ... oblíquos: coleante, como o movi-
exagero, a resvalar o grotesco. sismo linguístico, para a erudição mi- mento da serpente.
4 – É maio errante de torcidas flores: multico-
nuciosa. Retrata-se a realidade de
lorida, a serpe é tão colorida quanto a
❑ O pessimismo modo indireto, realçando mais a ma- primavera (maio, na Europa); torcidas
Vivendo na órbita do medo e da neira de representar que propriamen- flores sugere a imagem de cores em
dúvida, o Barroco manifesta-se por te o apresentado. Constitui o aspecto espiral, pelo movimento coleante da
uma visão desencantada do mundo. sensual do Barroco, voltado para a serpente (“passos oblíquos”).
5 – Se quer matar da sede os desfavores: é
Como na Idade Média e no Roman- descrição do mundo por meio das perífrase de “se quer beber água”.
tismo, a morte é uma constante preo- sensações (analogias sensoriais = 6 – Cristais: metáfora de “água”.

52 –
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7 – Peçonha: veneno; os cristais bebe coa falsa. Há conceptismo, por exemplo, Comentário
peçonha menos – bebe água, mas sem o na poesia sacra e reflexivo-filosófica • A propósito do achamento de um braço
veneno que nela se deposita. de uma estátua perdida de Cristo, o poeta,
8 – Gostar: beber, provar.
de Gregório de Matos, uma variante partindo de constatações óbvias (versos 1-2: o
9 – Vitais licores: água. da poesia a lo divino, dos místicos todo depende da parte e a parte, do todo),
10 – Cristal: brilho, beleza. espanhóis, em que o Homem é desenvolve um raciocínio sutil e paradoxal
11 – Fermoso: formoso. divinizado e Deus humanizado, por (versos 3-4: se a parte é que faz o todo, a parte
12 – Gosta o cristalino agrado: aqui o verbo é tudo — é essencial — para que haja o todo),
meio de sutilezas conceituais, na
gostar está em lugar de ver : vê o rosto exemplifica com um artigo de fé (Deus está
esteira de Quevedo, modelo concep- inteiro em cada hóstia, que é parte de seu
amado.
tista muito reproduzido em Portugal e corpo), chegando à conclusão de que o braço
4. O BARROCO CONCEPTISTA no Brasil. da imagem de Cristo vale não apenas como
O conceptismo é a vertente bar- parte, mas como a imagem toda.

O conceptismo, ou concep- roca mais diretamente influenciada


tualismo, é o aspecto construtivo pela visão de mundo da Companhia TEXTO III
do Barroco, voltado para o significa- de Jesus, pela fé inaciana e contrar-
do, para o jogo de ideias, para a reformista: os recursos da lógica aris- VOS ESTIS SAL TERRAE – Math., V, 13

argumentação sutil, para a dia- totélica e tomista postos a serviço do


Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com
lética cerrada. Configura a atitu- convencimento religioso; a expres-
os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-
de intelectual do Barroco, o seu são da angústia de ter ou não ter fé, lhes sal da terra, porque quer que façam na
modo de reconhecer e conceituar os de amar a Cristo e revoltar-se contra terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir
objetos. Opera por meio de trocadi- suas determinações. Evitando a apa- a corrupção, mas quando a terra se vê tão

lhos, de associações inesperadas e rência brilhante do cultismo, o con- corrupta como está a nossa, havendo tantos
ceptismo procura economizar pala- nela que têm ofício de sal, qual será ou qual
dos mecanismos da Lógica: o silo- pode ser a causa desta corrupção? Ou é por-
gismo, o sofisma e o paradoxo. Há vras e imagens. Mas têm em comum
que o sal não salga, ou porque a terra se não
um constante esforço dialético orien- o desejo de surpreender pela novida-
deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
tando a organização convincente de, pela excentricidade, requerendo Pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
das ideias. A um certo caos plástico ambos do leitor um elevado grau de ou porque a terra se não deixa salgar, e os
(cultismo) opõe-se a ordem raciona- atenção, dado o obscurantismo deli- ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes
berado, a propor verdadeiros labi- dão, a não querem receber; ou é porque o sal
lista (conceptismo). Há uma tese a não salga, e os Pregadores dizem uma coisa e
demonstrar e o interlocutor tem de rintos de imagens e ideias.
fazem outra, ou porque a terra se não deixa
ser convencido. salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
Enquanto o cultismo (gongoris- TEXTO II eles fazem, que fazer o que dizem: ou é
mo) procura apreender o como dos porque o sal não salga, e os Pregadores se
ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO pregam a si, e não a Cristo; ou porque a terra
objetos, por meio da captação (des-
MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de
crição) de seus aspectos sensoriais servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é
QUE DESACATARAM
e plásticos (contorno, forma, cor, vo- INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA tudo isto verdade? Ainda mal. (…)
lume), num verdadeiro frenesi cromá- (Padre Antônio Vieira,
tico e imagético, o conceptismo pes- O todo sem a parte não é todo; Sermão de Santo Antônio aos Peixes)
quisa a essência dos objetos, bus- A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Comentário
cando saber o que são, buscando
Não se diga que é parte, sendo o todo. • A partir de um “conceito predicável”,
apreender a face oculta das coisas, extraído da citação bíblica, Vieira desenvolve
apenas acessível ao pensamento, ou Em todo o Sacramento está Deus todo, o raciocínio explorando as possibilidades
seja, aos conceitos. O cultismo e o E todo assiste inteiro em qualquer parte, sugeridas pelo tema, por meio de antíteses e
conceptismo não podem ser vistos E feito em partes todo em toda a parte, associações de ideias que, dispostas em
como polos construtivos opostos. Em qualquer parte sempre fica o todo. movimento circular, vão sendo retomadas e
ampliadas. A estrutura paralelística revela-se
Como observou Dámaso Alonso,
O braço de Jesus não seja parte, em várias orações — “Ou é porque o sal não
“esta paixão barroca, podería- salga, ou porque a terra se não deixa salgar”.
Pois que feito Jesus em partes todo,
mos dizer que o Gongorismo a Assiste cada parte em sua parte. O título, Sermão de Santo Antônio aos
expressa como uma labareda Peixes, indicia o fato de que, alegoricamente,
para fora e o Conceptismo co- Não se sabendo parte deste todo, Vieira irá falar aos “peixes”, que agrupam, se-
mo uma reconcentração para Um braço que lhe acharam, sendo parte, gundo ele, categorias humanas. Parte da lenda
Nos diz as partes todas deste todo. medieval segundo a qual o franciscano Santo
dentro”. São como duas faces de
Antônio, numa de suas pregações, não sendo
uma mesma moeda chamada Bar- ouvido pelos homens, lança a sua palavra ilumi-
(Gregório de Matos)
roco. Costuma-se dizer que o nada na praia deserta, e os peixes levantam a
conceptismo predomina na prosa e o Vocabulário e Notas cabeça à superfície das águas, como sinal da
gongorismo, na poesia. Esta noção é 1 – Parte: nada. força da palavra do santo pregador.

– 53
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MÓDULO 8 O Barroco Conceptista – Padre Antônio Vieira


1. PADRE ANTÔNIO VIEIRA semente é a palavra de Deus”. Trans- Encaminhando-se para a pero-
(Lisboa, 1608 – Bahia, 1697) formando o tema em pergunta, o ração (ou epílogo), lembra que os
pregador indaga: “E se a palavra de pregadores “pregam palavras de
Pregador da Companhia de Jesus Deus é tão poderosa e tão eficaz, co- Deus, mas não pregam a palavra de
que exerceu intensa atividade como mo vemos tão poucos frutos da Deus” e finaliza advertindo:
missionário no Brasil, nas diversas palavra de Deus?”
vezes em que aqui esteve. A serviço Depois de considerar todas as TEXTO III
da Coroa Portuguesa, foi como embai- condições pelas quais a palavra de
xador à França, Holanda e Itália. Na Deus não pode frutificar, passa a de- Semeadores do Evangelho, eis aqui o
Europa, foi perseguido pela Inquisição finir as qualidades exigíveis de um que devemos pretender nos nossos sermões,
por suas ideias favoráveis em relação pregador: não que os homens saiam contentes de nós,
senão que saiam muito descontentes de si; não
aos judeus. Chegou a ser expulso do
que Ihes pareçam bem os nossos conceitos,
Maranhão por opor-se aos colonos TEXTO I mas que Ihes pareçam mal os seus costumes,
que queriam escravizar os índios. as suas vidas, os seus passatempos, as suas
Brilhou como pregador na Itália, na Mas como em um pregador há tantas ambições e, enfim, todos os seus pecados.
qualidades, e em uma pregação tantas leis, e
corte da rainha Cristina da Suécia. No
os pregadores podem ser culpados em todas,
fim da vida, dedicou-se a compilar os em qual consistirá essa culpa? — No pregador 3. SERMÃO DE SANTO
sermões que havia pronunciado. podem-se considerar cinco circunstâncias: a ANTÔNIO AOS PEIXES
Além dos sermões, sua obra in- pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz.
clui três volumes de cartas e obras
Pregado em São Luís do Mara-
proféticas, como História do Futuro e, No quinto capítulo inicia o ata-
nhão, em 1654, revela fina ironia, rique-
em latim, Clavis Prophetarum (“Chave que ao preciosismo da oratória
dos Profetas”), ainda inédita. za nas sugestões alegóricas e agudo
gongórica, investindo contra os exa-
senso de observação sobre os vícios
geros ornamentais praticados por
e vaidades do homem, comparando-
❑ Estrutura dos sermões muitos sermonistas, especialmente o
o, por meio de alegorias, aos peixes.
Os sermões de Vieira têm estru- dominicano Frei Domingos de S.
Critica a prepotência dos gran-
tura tradicional: Tomás: “O estilo culto não é escuro, é
des que, como peixes, vivem do sa-
• proposição do tema, em ge- negro, e negro boçal e muito cer-
crifício de muitos pequenos, os quais
ral trecho da Bíblia; rado”. À condenação do gongorismo
• introito, em que expõe o pla- “engolem” e “devoram”. O alvo são
segue-se a defesa do conceptismo e
no segundo o qual se desenvolverá o os colonos do Maranhão, que no Bra-
do primado da lógica, da clareza, do
sermão; sil são grandes, mas em Portugal
rigor da sintaxe e do pensamento:
• invocação, geralmente, à “acham outros maiores que os co-
Nossa Senhora; mam, também, a eles”.
TEXTO II Censura os soberbos (= ronca-
• argumentação, que consis-
te no desenvolvimento do tema e in- Há de tomar o pregador uma só matéria, dores); os pregadores (= parasitas);
clui exemplos e sentenças; há de defini-la para que se conheça, há de os ambiciosos (= voadores); os hipó-
• peroração ou epílogo. dividi-la para que se distinga, há de prová-la critas e traidores (= polvos).
com a Escritura, há de declará-la com a razão,
há de confirmá-la com o exemplo, há de
2. SERMÃO DA SEXAGÉSIMA amplificá-la com as causas, com os efeitos, TEXTO IV
com as circunstâncias, com as conveniências
Pregado na Capela Real de Lis- que se hão de seguir, com os inconvenientes O polvo, com aquele seu capelo na
boa, em 1655, o Sermão da Sexagé- que se devem evitar; há de responder às cabeça, parece um monge; com aqueles seus
dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há raios estendidos, parece uma estrela; com
sima é uma teorização sobre a arte
de impugnar e refutar com toda a força da aquele não ter osso nem espinha, parece a
de pregar, um sermão sobre o ser- mesma brandura, a mesma mansidão. E,
eloquência os argumentos contrários, e depois
mão, uma aula de oratória sacra. Por debaixo dessa aparência tão modesta ou
disso há de colher, há de apertar, há de
isso, Vieira o escolheu para abrir sua concluir, há de persuadir, há de acabar.
dessa hipocrisia tão santa, testemunham
obra, como um prefácio, ou uma de- constantemente (...) que o dito polvo é o maior
claração de princípio. É uma defesa traidor do mar.
(...)
do conceptismo, um ataque aos exa-
geros do barroco cultista ou gon- As razões não hão de ser enxertadas, hão 4. SERMÃO DA PRIMEIRA
górico. O tema do sermão é extraído de ser nascidas. O pregar não é recitar. As
DOMINGA DA QUARESMA
razões próprias nascem do entendimento, as
de uma passagem bíblica escolhida alheias vão pegadas à memória e os homens
para a ocasião: “Semen est verbum não se convencem pela memória, senão pelo Também denominado Sermão
Dei” (São Lucas, Vlll, 11), ou seja, “A entendimento. do Cativo, foi pregado no Maranhão,
54 –
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em 1653. Nele o orador tenta per- Oh! se a gente preta tirada das brenhas
TEXTO VI de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhe-
suadir os colonos a libertarem os
cera bem quanto deve a Deus e à sua
indígenas, que compara aos hebreus Em um engenho sois imitadores de Cristo Santíssima mãe por este que pode parecer
cativos do faraó. Na corte, atuou na Crucificado: porque padeceis em um modo
desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão
muito semelhante ao que o mesmo Senhor
defesa do índio contra os colonos e padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão.
milagre e grande milagre!
lá pregou, em 1662, o Sermão da A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a
Epifania: “que os homens de qual- vossa em um engenho é de três. (...) Cristo
6. SERMÃO DO BOM LADRÃO
despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e
quer cor, são todos iguais por natu-
vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós
reza, e mais iguais ainda por fé”, maltratados em tudo. (...) Eles mandam, e vós Pregado em 1655, em Lisboa,
afirma o pregador, defendendo a servis; eles dormem, e vós velais; eles traz a distinção entre o ladrão co-
filiação comum e universal do descansam, e vós trabalhais; eles gozam o
fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis
mum, que eventualmente furta para
homem a um Deus criador e único. deles é um trabalho sobre outro. Não há sobreviver, e o ladrão que, amparado
trabalhos mais doces que os das vossas pelo poder, rouba cidades e reinos. A
oficinas; mas toda essa doçura para quem é? notória atualidade do tema tem tor-
TEXTO V Sois como as abelhas, de quem disse o poeta:
“Sic vos non vobis mellificatis apes”1.
nado frequente a transcrição de tre-
chos desse sermão em diversos ves-
No Sermão da Primeira Dominga
Vocabulário e Notas tibulares:
da Quaresma, imagina-se no lugar 1 – Verso atribuído a Virgílio: “Assim vós, mas
dos colonos que tivessem de se des- não para vós, fabricais o mel, abelhas”.
fazer de seus escravos e indaga: TEXTO VII
Mas, paradoxalmente, estabele-
Quem nos há de ir buscar um pote de ce uma cabal diferença entre o negro (...) Não só são ladrões, diz o Santo
água ou feixe de lenha? Quem nos há de fazer [Basílio Magno], os que cortam bolsas, ou
gentio, entregue à sua própria sorte espreitam os que se vão banhar para Ihes
duas covas de mandioca? Hão de ir nossas
na África, e o negro submetido à fé colher a roupa; os ladrões que mais própria e
mulheres? Hão de ir nossos filhos?
católica. Chega a bendizer a escra- dignamente merecem este título são aqueles a
vidão que trouxe o negro ao Brasil e quem os reis encomendam os exércitos e
5. SERMÃO XIV DO ROSÁRIO ao cristianismo: legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais, já com
Pregado na Bahia para uma irman- (...) Deveis dar infinitas graças a Deus manha, já com força, roubam e despojam os
por vos ter dado conhecimento de si e por vos povos. Os outros ladrões roubam um homem,
dade de negros, revela a repulsa ao
ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e estes roubam cidades e reinos; os outros
preconceito de cor e ao tratamento vós viveis como gentios, e vos ter trazido a furtam debaixo do seu risco, estes sem temor
cruel a que eram submetidos os es- esta, onde, instruídos na Fé, vivais como cris- nem perigo; os outros, se furtam, são enfor-
cravos: tãos e vos salveis. (...) cados, estes furtam e enforcam.

MÓDULO 9 Gregório de Matos


1. CONTEXTO 3) o terceiro momento com- nem consentissem que se impri-
HISTÓRICO-CULTURAL preende as primeiras décadas missem livros ou papéis avulsos”.
(SÉCULO XVII E PRIMEIRA do século XVIII, ainda centrado na Fomos o último povo da América a
METADE DO SÉCULO XVIII) Bahia, quando entram em moda as aca- conhecer a imprensa. A Impressão
demias literárias e científicas, por in- Régia foi implantada em 1808, com a
• Reconhecem-se três momen- fluência europeia. É o apogeu do Ma- vinda de D. João Vl, e nosso primeiro
tos no Barroco brasileiro: neirismo barroco, mercê das novas con- jornal, a Gazeta do Rio de Janeiro,
1) o primeiro momento cor- dições sociais que se vão criando com apareceu em 10 de setembro de
responde à primeira metade a descoberta de pedras e metais pre- 1808. Não havia o que ler na Colônia,
ciosos em Minas Gerais. Exagerando salvo os compêndios escolares,
do século XVII, marcado pela
o estilo barroco em suas linhas mes- obras religiosas e catequéticas,
dominação filipina, pela ocupação
tras, presencia-se o progresso no sen- coletâneas de leis e uns raros ro-
holandesa no Nordeste e pela hege-
tido de uma afetação cada vez maior, mances de cavalaria. As poucas
monia de Pernambuco, a capitania
correspondente ao estilo rococó. bibliotecas das casas religiosas reu-
mais adiantada; Não houve tipografia e imprensa niam algumas centenas de volumes
2) o segundo momento ocu- nos séculos coloniais e as tímidas ini- hagiográficos (de vidas de santos) e
pa a segunda metade do sécu- ciativas foram categoricamente proi- apologéticos (de defesa da fé).
lo XVII e marca a preeminência da bidas pela Metrópole. A Carta Régia Mesmo a circulação manuscrita era
Bahia, sede do Governo Geral, da de 8 de junho de 1706 determinava dificultada pelo alto preço do papel.
Diocese, da Relação, do principal “sequestrar as letras impressas e Até a expulsão da Companhia
presídio de tropas, do porto mais notificar os donos delas e os oficiais de Jesus, em 1759, os jesuítas
ativo e da economia mais dinâmica; de tipografia que não imprimissem detiveram o monopólio do
– 55
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ensino. Era um ensino “literário” e 1) Academia Brasílica dos Matos e não se encontrarão dois poe-
retórico, desdenhoso dos compor- Esquecidos (Bahia, 1724-1725) – mas absolutamente iguais nas diver-
tamentos científicos e técnicos Sebastião da Rocha Pita, o Acadêmi- sas edições que se seguiram à pri-
perante a realidade, infenso a toda co Vago, foi seu membro mais notório. meira tentativa de organizar, já no sé-
manifestação artística que escapas- 2) Academia Brasílica dos culo XX, sua suposta “obra comple-
se ao âmbito vocabular e oral. Renascidos (Bahia, 1759) – Propu- ta”. Nada tendo publicado em vida, e
Formávamos sacerdotes e ba- nha-se a reviver os Esquecidos. expurgado de nossa vida literária
charéis. Essa educação medie- 3) Academia dos Felizes durante dois séculos, os códices (=
valizante, retórica e contrarreformista (Rio de Janeiro) – Reuniu-se entre manuscritos antigos) e compilações
abafou, durante três séculos, os 1736 e 1740. trazem infinitas variantes, muitos
apelos da nova terra, a força de 4) Academia dos Seletos (Rio poemas que comprovadamente não
atração do meio tropical e a cons- de Janeiro, 1752) – Foi or-ganizada são de Gregório de Matos e inúmeros
ciência que os agrupamentos hu- em homenagem a Gomes Freire de casos de autoria duvidosa.
manos, mestiçados ou não, iam Andrade. Esquematicamente, podemos a-
tomando de sua diferenciação. grupar assim a poesia de Gregório
Esses apelos de nova terra irão 2. GREGÓRIO de Matos:
desaguar no sentimento nativista, DE MATOS GUERRA
fermento de várias rebeliões que, a (BA, 1623 – PE, 1699) I – Poesia satírica
partir de 1640, atestam a presença amorosa

{
de pruridos autonomistas (Amador ❑ O Boca do Inferno
erótico-irônica
Bueno, Beckman, Guerra dos Filho de senhores de engenho na
II – Poesia lírica sacra ou
Mascates, Emboabas, Vila Rica, Bahia, viveu entre a Colônia e a
religiosa
Inconfidência Mineira, Revolução Metrópole.
Bacharel em leis, advogado na reflexiva ou
dos Alfaiates, os Suassunas e a
Corte, teve vida atribulada. Andari- filosófica
Revolução Pernambucana de 1817).
Até meados do século XVIll lho, violeiro, conheceu a prisão e o
III – Poesia encomiástica
houve duplicidade linguística: o exílio em Angola por dois anos.
emprego do português e do tupi. O Incompatibilizado com autorida-
A obra atribuída a Gregório de
vernáculo era ensinado nas escolas des civis e eclesiásticas pela malda-
Matos é o organismo mais inventivo e
e revestido de uma aura de prestígio; de, irreverência e justeza de suas
atual de toda a poesia do período
a “língua geral” era empregada na sátiras, foi, desde sempre, “poeta
considerado luso-brasileiro. Gregório
vida familiar, refletindo o forte contin- maldito”. Sua obra permaneceu
praticamente inédita até o século XX, possui três modelos: Camões,
gente indígena e africano em circu- Góngora e Quevedo. Sua poética
lação durante o primeiro e segundo apesar da popularidade de que des-
frutou na Bahia, onde seus poemas mantém, portanto, compromissos
séculos. Esse “abrasileiramento lin- com a Renascença maneirista e
guístico” tem expressão nos autos de circulavam em cópias manuscritas e
eram constantemente oralizados com o Barroco cultista e con-
José de Anchieta, na poesia satírica
pelo povo. As peripécias de sua vida ceptista. Assim, a lírica amorosa
de Gregório de Matos e em alguns
foram romanceadas recentemente anda de permeio com a lírica religio-
momentos do Arcadismo.
por Ana Miranda, no romance bio- sa. Sua sátira desbocada e agressiva
As academias “literárias” baianas
gráfico Boca do Inferno. Sua sátira à vem também da Espanha barroca,
e cariocas foram o último centro
Bahia dominada pela “máquina mer- mas possui raízes medievais portu-
irradiador do Barroco literário e “o
cante” foi reaproveitada em música guesas e qualidades absolutamente
primeiro sinal de uma cultura huma-
por Caetano Veloso: próprias. A poesia encomiástica ex-
nística viva, extraconventual”, se-
plica-se pela habilidade versificatória
gundo Alfredo Bosi. Aglutinavam Triste Bahia, oh quão dessemelhante
religiosos, militares, desembarga- e pelas circunstâncias de sua vida.
Estás e estou de nosso antigo estado!
dores, altos funcionários, reunidos Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
É uma constante em sua poesia
em grêmios eruditos, à imitação das Rica te vi eu já, tu a mi abundante. a noção de que os homens e as vai-
congêneres europeias. Tinham cará- dades humanas são insignificantes,
A ti tocou-te a máquina mercante, de que o tempo é fugaz e a sorte
ter fortemente encomiástico (de
Que em sua larga barra tem entrado; instável. Dentro dessa linha, pro-
elogio) e seus atos acadêmicos des- A mi vem me trocando e tem trocado
tinavam-se à celebração das festas Tanto negócio e tanto negociante.
duziu, entre outros, o magnífico
religiosas ou dos feitos das autori- soneto “Nasce o sol, e não dura
dades coloniais. Deram maior contri- ❑ Uma obra problemática mais que um dia”, que lembra,
buição à História e à erudição em Não há um texto definitivo (edi- pela temática, o famoso “O sol é
geral que à Literatura. ção crítica) da poesia de Gregório de grande...”, de Sá de Miranda.
56 –
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❑ A sátira de Com palavras dissolutas Vocabulário e Notas


Me concluís, na verdade, 1 – Cobrado: recuperado.
Gregório de Matos
Que as lidas todas de um frade
Ora é respeitador do escrúpulo São Freiras, Sermões e Putas.
vocabular, usando palavras admiti- O poeta manipula, a seu favor, a
das pela convenção, para pôr a nu O açúcar já se acabou? … Baixou. parábola da ovelha desgarrada, do
as mazelas e baixezas de toda a E o dinheiro se extinguiu? … Subiu. Novo Testamento. A submissão e hu-
Logo já convalesceu? … Morreu. mildade religiosa reveladas no pri-
Bahia; ora é livre usuário de vocabu-
lários que ainda fazem enrubescer, À Bahia aconteceu
meiro quarteto são contraditadas nos
para retratar isomorficamente festas O que a um doente acontece, tercetos; insinua-se neles o argumen-
de bailes, passeios ou cenas pica- Cai na cama, o mal lhe cresce; to de que a alegria do Senhor e a sua
Baixou, Subiu e Morreu. glória dependem da salvação do poe-
rescas e pornográficas das ruas, lares
e prostíbulos de sua terra. Satiriza ta. Parafraseando o sofisma engen-
Por trás da contundência da sáti- drado: Se Cristo não me perdoar, ou
povo, clero e fidalgos do tempo, sem- ra observe a habilidade na constru-
pre com a mesma maldade, muita perderá uma ovelha desgarrada e,
ção das estrofes pelo processo de
inteligência e alta consciência poé- portanto, a glória, ou não é verdadei-
disseminação-e-recolha: o últi-
tica. A situação de “intelectual bran- ro o que a Bíblia registra.
mo verso de cada estrofe repete e
co” não muito prestigiado pelos po- dispõe no plano horizontal as três pa-
derosos do Brasil pungia o amor-pró- ❑ A poesia lírico-
lavras que finalizam os três primeiros
prio do poeta e o levava a estiletar versos da estrofe. -amorosa – espírito x corpo
todas as classes da nossa socieda- Apresenta-se sob o signo da
de, especialmente os “caramurus”, ❑ A poesia sacra dualidade barroca, oscilando entre
descendentes dos primeiros povoa- de Gregório de Matos a atitude contemplativa, o amor
dores e que por isso se julgavam a Os temas comuns da época da elevado, à maneira dos sonetos de
“nobreza” da terra; os “unhates”, co- Contrarreforma — o horror do peca- Camões, e a obscenidade, o carna-
merciantes portugueses; os mestiços, do, a ameaça do inferno e a humilha- lismo. É curioso que a postura platô-
mulatos, o clero e as autoridades. ção do homem perante Deus — for- nica é dominante, quando o poeta
A sátira constitui a vertente mais necem vasto material para o talento se refere a mulheres brancas, de
“brasileira” e original de sua obra, ain- poético de Gregório de Matos. A condição social superior, e a libido
da que tenha várias vezes recorrido consciência do pecado, o arre- agressiva, o erotismo e o deslo-
aos moldes espanhóis (Quevedo). pendimento e a busca do per- camento são as tônicas, quando o
dão divino são, quase sempre, pre- poeta se inspira nas mulheres de
RETRATO ANATÔMICO textos para o exercício poético. condição social inferior, especial-
DOS ACHAQUES DE QUE A manipulação engenhosa dos mente as mulatas.
PADECIA ÀQUELE TEMPO argumentos, através de silogismos,
A CIDADE DA BAHIA sofismas e paradoxos, evidencia a Minha rica mulatinha
(fragmentos) predominância conceptista na desvelo e cuidado meu,
eu já fora todo teu,
Que falta nesta cidade? … Verdade.
obra do poeta baiano, que tomou e tu foras toda minha;
Que mais por sua desonra? … Honra. emprestado de Quevedo formas,
Falta mais que se lhe ponha? … Vergonha. temas e até versos inteiros. Juro-te, minha vidinha,
se acaso minha qués1 ser,
O Demo a viver se exponha, A JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR, que todo me hei de acender
Por mais que a fama a exalta, ESTANDO O POETA em ser teu amante fino
PARA MORRER pois por ti já perco o tino2,
Numa cidade onde falta
e ando para morrer.
Verdade, Honra, Vergonha.
Pequei, Senhor; mas não porque hei
[pecado Vocabulário e Notas
(...) 1 – Qués: quiseres.
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido, 2 – Tino: juízo.
E que justiça a resguarda? … Bastarda.
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
É grátis distribuída? … Vendida.
Que tem, que a todos assusta? … Injusta. Observe os versos curtos (medida
Se basta a voz irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido; velha) e a aproximação com uma
Valha-nos Deus, o que custa Que a mesma culpa, que vos há ofendido, linguagem mais espontânea e popular.
O que El-Rei nos dá de graça, Vos tem para o perdão lisonjeado. Observe também o tema clássico
Que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta. do carpe diem (“aproveita o dia”) que
Se uma ovelha perdida e já cobrada1
Glória tal e prazer tão repentino aparece no fragmento a seguir:
(...) Vos deu, como afirmais na sacra história,
Ó não aguardes, que a madura idade,
E nos Frades há manqueiras? … Freiras. Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, te converta essa flor, essa beleza,
Em que ocupam os serões? ... Sermões. Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, em terra, em cinza, em pó, em sombra,
Não se ocupam em disputas? … Putas. Perder na vossa ovelha a vossa glória. [em nada.

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MÓDULO 10 Cláudio Manuel da Costa


1. O CONTEXTO não mais apenas descritivo e pito- ❑ Volta aos modelos clássicos
HISTÓRICO-CULTURAL resco (como ocorrera no Quinhen- Retorno aos modelos greco-ro-
tismo e no Barroco). manos e renascentistas, revaloriza-
O Arcadismo ou Neoclassicismo A vida literária, já estimulada no ção dos arquétipos da poesia e da
corresponde ao período de supe- final do período Barroco pelo apareci- mitologia da Antiguidade. Daí a de-
ração dos conflitos religiosos da mento das Academias Literárias, nominação de Neoclassicismo.
época barroca. No século XVIII a fé e ganha novo alento com o surgimento Predomínio da Razão, a arte
a religião perdem importância, e a de um público leitor. Estabiliza-se, busca o Belo, o Bem, a Verdade e
Razão e a Ciência passam a expli- dessa forma, a relação autor–obra– a Perfeição. Há intenção didática e
car o homem e o mundo. leitor, vale dizer, surgem escritores moralizante: “O belo é verdadeiro
O Arcadismo coincide com o brasileiros, que escrevem sobre o e o verdadeiro é o natural”.
Século das Luzes, marcado pelo Brasil, para leitores brasileiros. Busca da harmonia social pela obe-
Iluminismo (Rousseau, Montes- diência às leis da natureza. Otimis-
mo, crença no progresso do homem,
quieu, Voltaire); pelo Empirismo
da ciência e da razão.
Científico (Newton, Lavoisier, Lineu,
Locke); pelo Enciclopedismo
❑ Arte como
(Diderot) e, no âmbito político, pelo
imitação da natureza
Despotismo Esclarecido.
Obediência às regras de Aristó-
Representa, historicamente, o úl-
teles quanto à verossimilhança
timo período de dominação da aristo-
(mimese). O poeta deveria buscar na
cracia e as primeiras investidas da
natureza os seus modelos, selecio-
burguesia, emergente na Revolução
nando apenas os que configurassem
Comercial, e que assumirá a con-
as noções de Belo, Bem e Perfeição.
dição de classe dominante a partir Os teóricos do Neoclassicismo
da Revolução Francesa. (Boileau, Metastásio) propunham não
Em Portugal, corresponde à épo- a imitação direta da natureza, mas a
ca do Marquês de Pombal (1750- imitação com base nos autores
1777), que operou profundas trans- antigos ou renascentistas (Horácio,
formações administrativas e educa- Ovídio, Virgílio; Petrarca, Camões). O
cionais, sob influxo dos ideais do Jacques-Louis David (1748-1825), Morte poeta arcádico não visa à origina-
Iluminismo e do Despotismo de Marat (Musées Royaux des Beaux- lidade, não é um “inventor”, como o
Esclarecido (expulsão dos jesuí- Arts de Belgique).
barroco, o romântico, o simbolista, o
tas, submissão da Santa Inquisição, moderno; busca a perfeição na
laicização do ensino, reforma univer- 2. CARACTERÍSTICAS imitação do modelo.
sitária, divulgação das ideias cien- Poesia descritiva e objetiva. O
tíficas etc.) Reação aos exageros verbais do poeta deve ser mais um pintor de
No Brasil, corresponde ao Barroco, propondo a clareza, a sim- situações que de emoções.
apogeu da mineração do ouro em plicidade e o equilíbrio clássico. Poucas figuras de linguagem
Minas Gerais e à transferência do (em comparação com o Barroco),
centro econômico e cultural da Colô- Alguém há de cuidar que é frase inchada, preferência pela metonímia, predo-
nia do norte (Pernambuco e Bahia) Daquela que lá se usa entre essa gente, mínio da ordem direta da frase,
para o centro-sudeste (Minas e Rio Que julga que diz muito e não diz nada. emprego do verso branco (sem ri-
de Janeiro). ma), que aproxima a poesia da ca-
O nosso humilde gênio não consente
Corresponde também à fase de dência da prosa.
Que outra coisa se diga, mais que aquilo
estabilização de uma sociedade Que só convém ao espírito inocente.
urbana mais complexa e às primeiras ❑ Bucolismo, pastoralismo
rebeliões contra o Estatuto colonial A frase pastoril, o fraco estilo. Inspirados nos clássicos antigos,
(Inconfidência Mineira, Revolução dos Da flauta e da sanfona, antes que tudo, os árcades tematizam a natureza,
Alfaiates etc.). Daí o nativismo, Será digno que Albano chegue a ouvi-lo. vista sempre como cenário ameno e
que passa a ser reivindicatório e (Cláudio Manuel da Costa) aprazível (pastores, ovelhas, riachos

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cristalinos, campinas verdejantes, • Poesia Satírica: Tomás An- Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece que se cansa de que a um triste
alamedas floridas etc.). A natureza tônio Gonzaga (Cartas Chilenas ) e
Haja de aparecer: quanto resiste
é convencional, e serve de Silva Alvarenga (O Desertor das Letras). A seu raio este sítio tenebroso!
moldura suave, de cenário para a
vida serena dos pastores e suas ❑ Cláudio Manuel da Costa Não pode ser que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
musas, ou de testemunha impassível (Glauceste Satúrnio)
Acaso o meu delírio! se me assiste
dos lamentos e desenganos do (Mariana, 1729 – Vila Rica, Ainda aquele humor tão venenoso!
poeta. 1789)
Autor de Obras Poéticas (1768), Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai o Pastor: outro assobia,
❑ Fingimento, afetação reunindo sonetos, éclogas, cantatas,
E o gado para o monte vai chamando.
e convencionalismo epicédios, epístolas e outras modalida-
Na mitologia clássica, a Arcá- des, além do poema épico de inspira- Ora não há mais louca fantasia!
dia era concebida como morada ção camoniana, denominado Vila Rica. Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe quando é noite ou quando é dia.
dos pastores que, governados por Nasceu em Minas, filho de mine-
Pã, viviam em contato com a na- radores, estudou na Corte. Voltando
• Tentou conciliar as conven-
tureza, tangendo suas ovelhas, en- ao Brasil, foi envolvido na devassa
ções do Arcadismo com a paisagem
tretidos em amáveis pugnas poéticas da Inconfidência Mineira, suicidan-
mineira, mas reconheceu as limita-
e musicais, e na exaltação da beleza do-se na prisão. ções que as adversidades da condi-
das musas e da excelência da vida ção colonial impunham à criação
campestre. Características poética. Observe esses fragmentos
Quando, por volta de 1690, alguns • Sobrevivem traços cultistas do “Prólogo” das Obras Poéticas:
poetas italianos começaram a se opor em sua obra, que se realiza como
ao Barroco, fundaram sociedades lite- uma transição entre o Barroco “que só entre as delícias do Pin-
rárias às quais deram o nome de ar- e o Arcadismo. do se podem nutrir aqueles espíritos
cádias, aludindo à inspiração clás- que desde o berço se destinaram a
sica que norteava essas associações • Buscou os modelos clássicos tratar com as Musas.”
e às propostas de uma poesia sim- (Teócrito, Virgílio, Sannazaro, Ca- “Não são estas as venturosas
ples, bucólica e pastoril. Os mem- mões) com equilibrada consciência praias da Arcádia, onde o som das
bros das arcádias adotavam pseudô- crítica. Concluindo o Prólogo ao águas inspirava a harmonia dos ver-
nimos pastoris e chamavam-se uns Leitor, das Obras Poéticas, diz, sos. Turva e feia, a corrente desses
aos outros de pastores. com visível falsa modéstia: ribeirões, primeiro que arrebate as
São frequentes os temas clássi- ideias de Poeta, deixa ponderar
cos: o carpe diem (= aproveita o dia), “A lição dos gregos, franceses e ambiciosa fadiga de minerar a terra
a aurea mediocritas (= mediania de italianos, sim, me fizeram conhecer a que Ihes tem pervertido as cores.”
ouro), a exaltação da vida simples, o “A desconsolação de não poder
diferença sensível dos nossos estu-
substabelecer aqui as delícias do Tejo,
fugere urbem (= fugir da civilização), dos, e dos primeiros Mestres da Poe-
do Lima e do Mondego, me fez empe-
buscar na natureza a felicidade, o sia. É infelicidade que haja de con-
cer o engenho dentro do meu berço.”
locus amoenus (= natureza amena, fessar que vejo e aprovo o melhor,
aprazível). Os poetas árcades ado- mas sigo o contrário na execução.” • Essa visão realista e objetiva
tavam como lema o inutilia truncat (=
da impossibilidade de transpor para
corta o inútil), aludindo à oposição de • Apesar dos traços cultistas a natureza brasileira as convenções
exageros ornamentais do Barroco. que sua obra revela, fez severas da poesia arcádica contribuiu para
restrições a esse estilo, defendendo que se criticasse, em Cláudio
3. ARCADISMO NO BRASIL a simplicidade arcádica. Manuel da Costa, a ausência do
elemento brasileiro. Contudo, a
De 1768, com as Obras Poéticas, • Foi grande sonetista, sóbrio paisagem mineira está presente na
de Cláudio Manuel da Costa, a 1836, e elegante, revelando acen- sua obra, através de alusões à
início do Romantismo, com Suspiros tuadas influências de Camões natureza áspera (pedras, penhas,
Poéticos e Saudades, de Gonçalves e de Petrarca. Poeta de forma rochedos, penhascos), que o
de Magalhães e Caldas Barbosa. trabalhada, virtuosística, adotou uma poeta faz contrastar com a brandura
concepção neoclássica de poesia, de seus sentimentos.
• Poesia Épica: Cláudio Ma- sem sacrificar por inteiro a expressão
...oh! quem cuidara
nuel da Costa, Basílio da Gama e das emoções e sentimentos, presen- Que entre penhas tão duras se cria
Santa Rita Durão. tes em suas melhores criações. Uma alma terna, um peito sem dureza.

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• Oscilou entre o apego à Colô- na tristeza da mudança das coisas Levantar-me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
nia e o amor à Metrópole, atitude em relação à permanência dos sen-
A tempo, que o voraz lobo maldito
comum a muitos dos nossos árca- timentos; A minha ovelha mais mimosa ofende;
des. Por isso, é frequente a expres- – o contraste rústico x civilizado;
são do dilaceramento interior, – Nise, sua musa e pastora, Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
provocado pelo contraste entre o causa de seus lamentos e dissabo-
Sempre desperto está, sempre ansioso;
rústico mineiro e a experiência res:
intelectual e social na Europa. Ah! queira Deus que minta a sorte irada:
Aquela cinta azul, que o Céu estende Mas de tão triste agouro cuidadoso1
• Os temas que versou com À nossa mão esquerda, aquele grito Só me lembro de Nise, e de mais nada.
mais frequência foram Com que está toda a noite o corvo aflito
– o platonismo amoroso, Dizendo um não sei quê, que não se Vocabulário e Notas
configurado no amante infeliz e [entende; 1 – Cuidadoso (de): preocupado com.

MÓDULO 11 Autores Árcades


1. TOMÁS ANTÔNIO rado na estilização de sua alegria ou As preferências temáticas estão
GONZAGA (Porto, de seu drama. Essa nota de subje- centradas no ideal de vida simples,
1744 – Moçambique, 1810) tivismo é mais evidente na segun- no pastoralismo e bucolismo (fugere
da parte das Liras. urbem); no heroísmo que se atinge
Nascido em Portugal, veio para o Sob esse aspecto, é possível re- pela honradez e pelo trabalho (aurea
Brasil com 7 anos. Voltou a Portugal, constituir, a partir das Liras, a evolução mediocritas); no sentimento da
onde se formou em Direito e exerceu dos sentimentos e intenções de Dirceu transitoriedade da vida, que
a magistratura. Retornando ao Brasil, em relação a Marília: a descoberta e a arrasta o poeta ao carpe diem
já com 38 anos, na condição de horaciano; nos retratos que lisonjeiam e
revelação da mulher escolhida, a fase
Ouvidor de Vila Rica, ficou noivo de divinizam a mulher amada.
dos ciúmes, a consolidação dos senti-
Maria Joaquina Doroteia de Seixas (a Tudo isso se mistura à expressão
mentos e intenções, a frustração dos
Marília das Liras). de um ideal burguês de vida, às
planos de casamento e a expressão
Envolvido na Inconfidência Minei- tentativas de autovalorização,
da desesperança e da solidão. de afirmação narcisística das
ra, foi desterrado para Moçambique,
2.o) A imitação direta da na-
onde reconstruiu sua vida e conquis- qualidades do poeta, às cenas
tureza de Minas, e não da nature-
tou excelente situação econômica. da natureza que oscilam entre a
za reproduzida dos poetas bucólicos
frivolidade próxima ao estilo
greco-romanos ou renascentistas. A
❑ Obras ficção bucólica de Gonzaga é inje-
rococó e o realismo descritivo.
• Poesia lírica: Liras de Marília A primeira parte das Liras,
tada de autenticidade pela transcri-
de Dirceu – Partes I e ll; que corresponde à época do noiva-
ção dos aspectos rústicos e reais da
• Poesia satírica: Cartas Chi- do, expressa a vertente mais conven-
paisagem e da vida da Colônia.
lenas ; cional e neoclássica: os encantos de
Apesar das alusões mitológicas
• Tese jurídica: Tratado de Marília, os amores de Dirceu, os pro-
e de outras reminiscências clássicas,
Direito Natural. percebe-se que o poeta teve a preo- jetos de vida futura, os quadros des-
cupação de fazer-se claramente en- critivos amenos, a expressão otimista
❑ Características das Liras tendido por Marília. Para tanto, obser- e o narcisismo:
• Foi o poeta mais equili- va-se o tom familiar, quase prosaico,
bradamente neoclássico de Num sítio ameno,
de boa parte das composições.
nossa literatura, e sua obra lírica é, Cheio de rosas,
Mesmo admitindo a sinceridade De brancos lírios,
ainda hoje, das manifestações árca- das intenções do poeta, não há nas Murtas viçosas,
des no Brasil, a que mais se Liras um transbordamento de um apai- Dos seus amores
comunica com o leitor. xonado autêntico. Há muito de “fingi- Na companhia,
• Apesar de ceder, vez por outra, mento”, de frieza calculada e disfarça- Dirceu passava
às convenções da poesia arcádica, da de um conquistador cortês, dotado Alegre o dia.
infunde em sua obra dois elementos de apreciável intuição psicológica. Isso
não convencionais: explica as contradições na caracteri- A segunda parte das Liras,
1.o) O lirismo como expres- zação de Dirceu, ora honrado pastor, escrita no cárcere, expressa a amargu-
são pessoal, construído em torno ora ilustre magistrado, e na de Marília, ra, o desconsolo e a solidão. Há mo-
de seu modo de ser e pensar, inspi- ora loira, ora morena. mentos de revolta contra a injustiça e

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incompreensão dos homens. Os senti- Glaura, as ninfas te chamaram


E buscaram doce abrigo;
TEXTOS
mentos de melancolia, saudade e
Vem comigo, e nesta gruta
depressão aproximam-se do pathos
Branda escuta o meu amor. Minha bela Marília, tudo passa;
romântico. Mas não há o desvario a sorte deste mundo é mal segura;
sentimental dos românticos nem a in- se vem depois dos males a ventura1,
Alguns veem, na presença da pai- vem depois dos prazeres a desgraça.
continência verbal. Mesmo expressan-
sagem nativa e na exaltação de sua Estão os mesmos2 deuses
do seu desespero, o estilo de Gonzaga
graça e beleza, uma antecipação ro- sujeitos ao poder do ímpio fado3:
é sóbrio, equilibrado, ainda preso ao Apolo já fugiu do céu brilhante,
mântica.
espírito dos clássicos: já foi pastor de gado.
Defensor da política pombalina,
Se me visses com teus olhos escreveu um poema herói-cômico, O A devorante mão da negra morte
Nesta masmorra metido, Desertor das Letras, voltado para a acaba de roubar o bem que temos;
De mil ideias funestas até na triste campa4 não podemos
exaltação da reforma universitária e zombar do braço da inconstante sorte:
E cuidados combatido,
educacional promovida pelo Mar- qual5 fica no sepulcro6,
Qual seria, ó minha bela,
quês de Pombal. que seus avós ergueram, descansado;
Qual seria o teu pesar?
qual7 no campo, e lhe arranca os frios ossos
ferro do torto arado.
❑ As Cartas Chilenas 3. ALVARENGA PEIXOTO
Poema satírico, vazado em 13 (Rio, 1744 – Angola, 1792) Ah! enquanto os destinos impiedosos
cartas (a 7.a e a 13.a incompletas), não voltam contra nós a face irada,
façamos, sim, façamos, doce amada,
que ataca os desmandos do gover- Exaltou a política pombalina e os nossos breves dias mais ditosos8.
nador de Minas, D. Luís da Cunha assumiu, por vezes, atitude de crítica Um coração que, frouxo,
Menezes. Os nomes das pessoas em relação à política colonizadora de a grata posse de seu bem difere9,
envolvidas são ocultos por criptô- Portugal, tendo sido apontado como a si, Marília, a si próprio rouba
e a si próprio fere.
nimos. Gonzaga é Critilo; Cláudio responsável pelo lema da bandeira
Manuel da Costa, o suposto destina- da Inconfidência, extraído de um Ornemos nossas testas com as flores
tário, é Doroteu; o governador Cunha verso de Virgílio: Libertas quae sera e façamos de feno um brando leito;
Menezes é Minésio, o Fanfarrão. Os tamen, que significa “Liberdade, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
topônimos também são trocados, gozemos do prazer de sãos amores.
ainda que tardia”. Sobre as nossas cabeças,
mas os fatos narrados por Critilo e Sua obra era considerada irregu- sem que o possam deter, o tempo corre;
imputados ao governador são reais. lar, escassa e convencional, atrelada e para nós o tempo que se passa
A crítica é de natureza pessoal, aos clichês árcades. Entretanto, também, Marília, morre.
dirigida ao governador. Não há opo- depois que Manuel Rodrigues Lapa Com os anos, Marília, o gosto falta,
sição à Metrópole nem ao sistema publicou cinco sonetos inéditos do e se entorpece o corpo já cansado:
colonial. autor (Vida e Obra de Alvarenga triste, o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho, sempre alegre, salta.
Peixoto, Rio: INL, 1960), a crítica tem
A mesma formosura
2. SILVA ALVARENGA reavaliado a verve lírica desse poeta. é dote que só goza a mocidade:
(Vila Rica, 1749 – Rio, 1814) Transcrevemos a seguir um desses rugam-se as faces, o cabelo alveja,
sonetos: mal chega a longa idade.
Sua produção lírica está reunida
no livro Glaura, coletânea de poemas Que havemos de esperar, Marília bela?
Ao mundo esconde o Sol seus resplandores, Que vão passando os florescentes dias?
de forma fixa, especialmente de ron- e a mão da Noite embrulha os horizontes; As glórias que vêm tarde já vêm frias,
dós (composição poética graciosa e não cantam aves, não murmuram fontes, e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
musical, com estribilho constante e não fala Pã na boca dos pastores. Ah! não, minha Marília,
número variável de versos) e de ma- aproveite-se o tempo, antes que faça
Atam as Ninfas, em lugar de flores, o estrago de roubar ao corpo as forças
drigais (forma poética delicada,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes; e ao semblante a graça!
cantante), para exaltação da beleza erram chorando nos desertos montes, (Tomás Antônio Gonzaga)
e das graças femininas. sem arcos, sem aljavas, os Amores.
É o representante mais típico do Vocabulário e Notas
Vênus, Palas e as filhas da Memória, 1 – Ventura: felicidade.
estilo rococó, presente na ameni-
2 – Mesmo: próprio.
dade e frivolidade das pinturas da deixando os grandes templos esquecidos,
3 – Ímpio fado: impiedoso destino.
não se lembram de altares nem de glória.
natureza (beija-flores, borboletas 4 – Campa: túmulo.
etc.). Sua ambiência lírica é hetero- 5 – Qual: um.
Andam os elementos confundidos:
6 – Sepulcro: sepultura.
gênea: ninfas e dríades, extraídas da ah, Jônia, Jônia, dia de vitória 7 – Qual: outro.
poesia clássica, aparecem ornadas sempre o mais triste foi para os vencidos! 8 – Ditoso: feliz.
de flores de manacá e de maracujá. (Alvarenga Peixoto) 9 – Diferir: adiar.

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MÓDULO 12 Autores Épicos do Arcadismo e Pré-Romantismo


1. AUTORES bo, o amado da bela índia, foi levado niano (dez cantos, versos decassíla-
ÉPICOS DO ARCADISMO à morte por uma trama traiçoeira do bos em oitava-rima).
horrendo jesuíta Balda. Este agora vai Nesse poema, narram-se os
❑ Basílio da Gama conseguir seu intento de casar seu acontecimentos lendário-históricos do
(São José do Rio das Mor- repulsivo filho Baldeta com a índia, naufrágio, do salvamento e das
tes, MG, 1741 – Lisboa, 1795) que é filha do cacique. No final do epi- aventuras de Diogo Álvares Correia, o
Sua obra de maior representativi- sódio, Lindoia, refugiada numa gruta Caramuru.
dade foi O Uraguai, epopeia em para evitar o casamento indesejado, Caramuru destaca-se por apre-
cinco cantos, com versos brancos escreve por toda a parte o nome do sentar costumes e instituições dos
(sem rimas) e estrofação livre, que amado morto e depois deixa que uma índios brasileiros, a flora nativa e o
narra o conflito entre os índios de cobra venenosa Ihe morda o seio. sentimento nativista de amor à pátria.
Sete Povos das Missões e o exército Assim o poeta a descreve morta: Assim Santa Rita Durão prenun-
luso-espanhol. cia a figuração romântica do índio:
No poema, Basílio da Gama ten- Inda conserva o pálido semblante1
ta conciliar a louvação de Pombal e Um não sei quê de magoado e triste, Nós que zombamos deste povo insano,
Que os corações mais duros enternece,
do heroísmo do indígena. Torna herói Se bem cavarmos no solar nativo,
Tanto era bela no seu rosto a morte! Dos antigos heróis dentro às imagens
o comissário real português Gomes
Não acharemos mais que outros selvagens.
Freire de Andrade, fazendo recair Vocabulário e Notas
sobre os jesuítas a pecha de vilões. 1 – Semblante: rosto. Veja-se a abertura do poema:
Sobre O Uraguai, pode-se afirmar:
• nada há no poema que lembre Comentário De um varão em mil casos agitado,
• O antológico verso final, com suas Que as praias discorrendo do Ocidente,
as rígidas divisões do poema épico
aliterações em t e seu tom exclamativo, é Descobriu o recôncavo afamado
tradicional, ou seja, do modelo camo- imitação de um verso do poeta italiano Da capital brasílica potente,
niano; Petrarca (séc. XV): Morte bela parea nel suo bel Do filho do trovão denominado,
• a natureza é colhida por ima- viso, “a morte parecia bela em seu rosto belo”. Que o peito domar soube à fera gente,
gens densas e rápidas; já não são as Mas o verso de Basílio supera o italiano. O valor cantarei na adversa sorte,
imagens do Arcadismo, mas sim o Pois só conheço herói quem nela é forte.
caminho para o paisagismo român- Na lírica, suas produções são às
tico; vezes de alta qualidade, como atesta 2. PRÉ-ROMANTISMO
• há o realismo da ação heroica, o soneto seguinte, em que o lugar-
e não o fabuloso; comum do carpe diem é desen- Alguns periodizadores de nossa
• usa-se o sobrenatural (bruxa- volvido com o emprego de imagens literatura estabelecem a existência de
ria indígena); de discreto gosto barroco. um período de transição, situado
• o indígena é tomado como he- entre a Era Colonial e a Era
rói, equiparado ao português, pre- Já, Marfiza cruel, me não maltrata Nacional, entre o Arcadismo e o
Saber que usas comigo de cautelas,
nunciando o índio romântico de Qu’inda te espero ver, por causa delas,
Romantismo, denominado Pré-
Gonçalves Dias e Alencar. Arrependida de ter sido ingrata. Romantismo e compreendido entre
Veja-se a abertura do poema: 1808 (vinda da Família Real e
Com o tempo, que tudo desbarata1, Abertura dos Portos) e 1836 (início do
Fumam ainda nas desertas praias Teus olhos deixarão de ser estrelas; Romantismo, com o aparecimento de
Lagos de sangue tépidos1 e impuros2, Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’ouro converter-se em prata. Suspiros Poéticos e Saudades, de
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales Gonçalves de Magalhães).
O rouco som da irada artilheria. Pois se sabes que a tua formosura Esse período de 1808 a 1836
MUSA, honremos o Herói3 que o povo rude Por força há de sofrer da idade os danos, marcou a transição da condição colo-
Subjugou do Uraguai e no seu sangue Por que me negas hoje esta ventura?
nial para a de país independente e,
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai, tanto custas, ambição de império4!... Guarda para seu tempo os desenganos, literariamente, apontou para os pre-
Gozemo-nos agora, enquanto dura, núncios do Romantismo, já esboça-
Vocabulário e Notas Já que dura tão pouco, a flor dos anos. dos, como vimos, em vários autores
1 – Tépido: quente. árcades. Houve intensa atividade jor-
2 – Impuro: porque o sangue é de indígenas, Vocabulário e Notas
nalística (vinculada à independência,
não cristãos. 1 – Desbaratar: arruinar.
3 – Herói: o general português que lutou
à abolição, às crises do período re-
contra os indígenas. ❑ Frei Santa Rita gencial), além da oratória sacra (Frei
4 – Império: domínio. Durão (Cata Preta, Francisco do Monte Alverne) e
MG, 1722 – Lisboa, 1784) da poesia (José Bonifácio de
O episódio mais famoso do poe- É o autor do poema épico Cara- Andrada e Silva, Frei Francisco
ma é o da morte de Lindoia. Cacam- muru, no qual segue o modelo camo- de São Carlos e Sousa Caldas).
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MÓDULO 13 Bocage

1. CONTEXTO PORTUGUÊS geometria, álgebra, óptica etc.), dan- rebeldia contra o Barroco (inutilia
ça, esporte. A Universidade de Évora, truncat), a tentativa de restabelecer a
O absolutismo tradicional pro- cujos proprietários eram jesuítas, foi simplicidade das artes renascentista
clamava a subordinação do monarca extinta. e antiga pertencem a um contexto
às leis de Deus (leis interpretadas A educação libertou-se do con- em que as discussões literárias estão
pela Igreja, evidentemente), aos cos- trole da Igreja, com base no princípio em comum acordo com discussões e
tumes do país e às leis que o rei iluminista de que a Razão é a fonte reformas de ordem legal.
promulgava para a nação. Em opo- de todo o conhecimento. Em 1790 foi fundada a Academia
sição, o despotismo esclareci- Surgiu, como reflexo das “luzes” das Belas Artes, logo depois denomi-
do entendia que as leis (as de Deus, e do racionalismo, uma nova Lisboa: nada Nova Arcádia. Três anos de-
as naturais e as da nação) deveriam metade da cidade havia sido destruí- pois, a Academia já publicava algu-
ser interpretadas pelo soberano. da por um terremoto (1755). Caíram mas obras poéticas de seus sócios,
Esse período começou, em Por- em ruínas o palácio real, igrejas, hos- sob o título Almanaque das Musas.
tugal, a partir de 1755, com o reinado pital, ópera, ruas e bairros opulentos. Seus integrantes mais importantes
de D. José (1750-1777). Seu grande O futuro Marquês de Pombal, em vez foram Domingos Caldas Barbosa
mentor foi o Marquês de Pombal, de reedificar a cidade a partir do (1740-1800), brasileiro que ficou
que, em parte, adotou teorias de al- traçado anterior, mandou destruir as famoso nos ambientes aristocráticos
guns pedagogos portugueses que ruínas e decidiu que fosse levantada pela interpretação e composição de
tinham vivido no exterior (pejorativa- uma cidade “esclarecida”: racional- modinhas e lundus, e Padre José
mente chamados de “estrangeiros”): mente planejada e edificada, com Agostinho de Macedo, poeta satírico.
Luís Antônio Verney, Ribeiro Sanches, ruas, praças e casas traçadas a ré- Com ele se desentendeu o poeta
colaborador da Enciclopédia, de gua e compasso. Bocage e, por causa das diver-
D’Alembert, entre outros. Enquanto a nova Lisboa revelava a gências internas, a Nova Arcádia, em
No Direito, o fundamento político ideologia racional dos iluministas, houve 1794, acabou desaparecendo.
dos Estados ilustrados era a Razão. em Portugal a convivência com o estilo
A lei de 1790, unificando a jurisdição tenso do Barroco: o ouro que ia do Brasil 3. MANUEL MARIA BARBOSA
em todo o país, constituiu um novo para Portugal e o vinho exportado para DU BOCAGE (1765-1805)
passo no sentido de romper os privi- a Inglaterra levaram prosperidade ao
légios feudais e impor a todos a auto- reino, acarretando a construção de ❑ Vida
ridade única da Coroa. mansões aristocráticas que seguiram Bocage é o pastor Elmano Sa-
Além do Direito, o lluminismo de- as formas tradicionais do Barroco. dino da Nova Arcádia (Elmano é
sempenhou um papel decisivo na A renovação cultural que se pro- anagrama de Manoel e Sadino é
cultura, sobretudo na educação re- cessou levou também à substituição homenagem ao Rio Sado, que passa
gular. O atraso do sistema de ensino da influência espanhola pelas influên- por Setúbal, terra natal do poeta).
português era grande. O Estado des- cias francesa, italiana, inglesa e alemã. Desde cedo, Bocage sente-se
pótico adotou a política da interven- identificado com Camões:
ção direta no sistema cultural, me- 2. O ARCADISMO Camões, grande Camões, quão semelhante
diante a censura do Estado (a cen- EM PORTUGAL Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
sura religiosa foi substituída pela
Real Mesa Censória, de 1768). O • 1756 – Fundação da Arcádia Jovem ainda, apaixonou-se por
ensino jesuítico foi proibido e subs- Lusitana. Gertrudes (Gertrúria da poesia árca-
tituído por uma educação renovada e • 1825 – Início do Período Ro- de), mas ao voltar a Lisboa — depois
mais progressista. Verney, com seu mântico, com a publicação do de ter ido servir em Goa, colônia
Verdadeiro Método de Estudar (1746), poema Camões, de Almeida Garrett. portuguesa, e de ir a Macau, tendo já
cobriu todos os campos da Educa- Com a fundação da Arcádia desertado — o poeta a reencontra
ção. As reformas educacionais impli- Lusitana, em 1756, teve início uma casada com seu irmão:
cavam o conhecimento da escrita, nova fase no setor doutrinário: as teo-
Por bárbaros sertões gemi, vagante:
línguas, humanidades (retórica, poe- rias sobre Arte Poética, de Cândido Falta-me ainda o pior, falta-me agora
sia e história), ciências (aritmética, Lusitano, inspiradas em Boileau, a Ver Gertrúria nos braços de outro amante.

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Boêmio, conheceu a vida devas- personalidade, que o faz retratar-se, Mas, quando ferrugenta enxada idosa
sa. Em 1797 foi preso e processado gritar o seu remorso e o horror do Sepulcro me cavar em ermo outeiro 6,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
pelas ideias anticatólicas e antimo- aniquilamento na morte. Esta última
narquistas. Depois de meses de pri- é uma ideia que constantemente o “Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
são, conseguiu sua transferência persegue. Revolta-se ainda contra a Passou vida folgada e milagrosa;
para o Mosteiro de São Bento. humilhação da dependência e Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”
Dizem os biógrafos que de lá ele contra o despotismo em nome da Vocabulário e Notas
saiu arrependido e transformado. Razão. Cultiva o fúnebre e o noturno, 1 – Verbi-gratia: por exemplo.
O certo é que Bocage, ao ser exprime clamores de ciúme, de 2 – Engrolar: enrolar, recitar de qualquer jeito.
libertado, passou a viver de tradu- 3 – Sub-venites: salmos.
blasfêmia ou contrição. É o
ções, sustentando a si e a sua irmã. 4 – Gatarrão: gato.
pessimismo e o fata lis mo que 5 – Gente de malta: gente de má fama, ralé.
Em vida, o poeta publicou Idílios invadem a poesia bocagiana. 6 – Outeiro: colina, monte.
Marítimos, recitados na Academia Percebe-se que o Bocage dessa
das Belas-Artes (1791) e as Rimas fase é pré-romântico: procura expres- Textos como esse foram utilizados
(três volumes: 1791, 1799 e 1804). sões novas para transmitir suas con- para fundamentar a prisão do poeta.
fissões, o arrependimento, a tensão
❑ A lírica de Bocage
dramática, o sofrimento moral. Para
Como lírico, é da maior impor- TEXTOS
ser inteiramente romântico, falta li-
tância. Cultivou a lírica elegíaca, a
bertar-se por completo de sua
bucólica e a amorosa, exprimindo-se
formação neoclássica. Isso talvez Meu ser evaporei na lida insana
em odes, elegias, canções, epístolas,
sonetos etc. É especialmente no tenha diminuído a temperatura dra- Do tropel de paixões que me arrastava;
mática de sua poesia. De qualquer Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
soneto que ele evidencia seu alto Em mim quase imortal a essência humana.
talento lírico, sendo invariavelmente forma, é um dos maiores poetas da
considerado um dos três maiores língua por tuguesa, tornando-se a De que inúmeros sóis a mente ufana
sonetistas da língua, ao lado de sua obra o grande elo entre o melhor Existência falaz me não dourava!
Camões e Antero de Quental. da poesia clássica, a de Camões, e a Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.
que vingaria no Romantismo, carac-
❑ Evolução da lírica terizada pelo signo da revolta e da Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
bocagiana: o conflito mais profunda insatisfação. Esta alma, que sedenta em si não coube,
razão versus sentimento Sintetizando as antecipações ro- No abismo vos sumiu dos desenganos.
Pode-se dividir em duas fases a mânticas de Bocage, vale enfatizar
poesia lírica de Bocage: • a imposição do eu: o subjeti- Deus, ó Deus!… Quando a morte à luz me
[roube,
vismo; Ganhe um momento o que perderam anos,
Primeira fase: • a presença da morte, da poe- Saiba morrer o que viver não soube.
a lírica arcádica sia noturna e fúnebre: o locus
É marcada pela maior presença horrendus substitui o locus amoenus ***
de regras e convenções trazidas pelo da primeira fase;
Arcadismo. O poeta adota uma atitu- • o pessimismo, o fatalismo e a Incultas produções da mocidade
de de artificialismo poético, cercan- Exponho a vossos olhos, ó leitores:
poesia confessional.
do-se de imagens mitológicas e clás- Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:
sicas, para as quais transpõe os
❑ A poesia satírica de Bocage
seus infortúnios (fingimento poético). Ponderai da Fortuna a variedade
Ainda que considerada inferior à
Bocage procura sujeitar-se ao racio- Nos meus suspiros, lágrimas e amores:
lírica, a sátira de Bocage, vítima de
nalismo clássico, mas o seu tempe- Notai dos males seus a imensidade,
ramento e sensibilidade impelem-no severa repressão, foi o aspecto que A curta duração dos seus favores:
a uma expressão mais emotiva e pes- mais se popularizou, gerando um ane-
dotário fescenino que a imaginação E, se entre versos mil de sentimento
soal. Começa a impor-se o eu tumul- Encontrardes alguns cuja aparência
tuoso do artista contra a impes- do povo veio ampliando com o tempo.
Indique festival contentamento,
soalidade e o fingimento da poesia
Lá quando em mim perder a humanidade
árcade. Mais um daqueles que não fazem falta,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Verbi-gratia1 — o teólogo, o peralta,
Cantados pela voz da Dependência.
Segunda fase: Algum duque, ou marquês, ou conde, ou
a lírica pré-romântica [frade; ***
O que melhor o distingue nessa
Não quero funeral comunidade, Marília, se em teus olhos atentara1,
nova fase é a matéria psicológica Que engrole2 sub-venites3 em voz alta; Do estelífero2 sólio3 reluzente,
que traz pela primeira vez à poesia Pingados gatarrões 4, gente de malta 5, Ao vil mundo outra vez o onipotente,
portuguesa: o sentimento agudo da Eu também vos dispenso a caridade; O fulminante Júpiter baixara 4.

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Se o deus que assanha as Fúrias te avistara, E se a força igualasse o pensamento, 2 – Estelífero: estrelado.
As mãos de neve, o colo transparente, Ó alma de minh’alma, eu te of’recera 3 – Sólio: trono; sólio estelífero: céu.
Suspirando por ti, do caos ardente Com ela a Terra, o Mar e o Firmamento. 4 – Baixara: baixaria; ver também as formas
Surgira à luz do dia e te roubara. verbais nos versos 8, 11 e 13.
Vocabulário e Notas 5 – Dafne: ninfa da mitologia grega que, para
Se a ver-te de mais perto o Sol descera, 1 – Atentara: atentasse; ver também as formas esquivar-se do assédio de Apolo, acaba
No áureo carro veloz dando-te assento, verbais nos versos 5 e 9. sendo transformada em loureiro.
Até da esquiva Dafne5 se esquecera.

Romantismo: breve histórico –


MÓDULO 14
Romantismo em Portugal

1. ROMANTISMO larismo do indivíduo (subjetivismo) e • O predomínio


do país (nacionalismo); em vez da da imaginação e da
❑ Contexto repetição do que a tradição consa- emoção – O subjetivismo
O Romantismo é o movimento gra, os românticos valorizam a A manifestação do subjetivismo
cultural que reflete as ideias e ideais originalidade, o novo. corresponde ao predomínio da fun-
da burguesia recém-chegada ao po- ção emotiva ou expressiva da lin-
der. É, no plano intelectual, uma revo- ❑ Características guagem.
lução que corresponde ao que, no formais e temáticas A metáfora é, mais uma vez, o
plano político, foi a Revolução Fran- • A ruptura com a instrumento pelo qual a imaginação
cesa (1789) e as outras revoluções disciplina clássica descobre semelhanças onde há dis-
burguesas (de 1770 e 1848), e, no Na poesia desaparecem as for- paridade. Daí a riqueza das imagens
plano tecnológico, ao que foi a Revo- mas fixas, predominando a liberdade e a ousadia das aproximações, fer-
lução Industrial (por volta de 1750). quanto à extensão do poema e quan- mentando um discurso pomposo,
Os movimentos culturais ocor- to aos temas e à natureza dos versos colo ri do, carregado de adje -
ridos após a Idade Média — Renas- e estrofes. A poesia aproxima-se tivos. A realidade confunde-se com
cimento, Barroco e Arcadismo —, do tom coloquial da prosa, e a a fantasia, e a percepção das coisas
apesar de suas diferenças, são todos prosa ganha inflexões poéti- torna-se mais importante do que elas
pertencentes à Era Clássica, que tem cas. O conto, a novela e o ro- próprias. A intensidade da emoção,
como fundamento socioeconômico o mance tornam-se gêneros muito o impulso, por vezes o tumulto,
fato de a nobreza estar no poder. O difundidos e ganham respeitabili- fazem frequentes as interjeições, os
Romantismo inaugura a Era Român- dade. pontos de exclamação e as reticên-
tica, que, a despeito também de suas O teatro rompe com a lei das cias, a dupla pontuação e as após-
diferenças, inclui ainda o Realismo- três unidades e manifesta-se em trofes violentas.
Naturalismo, o Parnasianismo, o Sim- prosa. O gênero épico ganha inú- • O nacionalismo vai buscar
bolismo e o Modernismo. meras modalidades e perde o rigor suas fontes no passado histórico e
A burguesia, instalada então no clássico; desaparecem as sugestões lendário (na Idade Média, para os eu-
poder após aquelas revoluções, mas fundadas na mitologia greco-romana. ropeus; na figura do índio e na
sem a tradição e o prestígio da no- A liberdade, a flexibilidade e a natureza, nos países da América).
breza, já decaída, instaura nova mistura de gêneros tornam relativos Desenvolve-se o gosto pelo exótico,
perspectiva estética: em vez dos pro- todos os valores. pela cor local e pelas manifes-
cedimentos artificiosos da cultura Retomando alguns aspectos do tações nacionais e populares.
clássica — imitação da natureza, Barroco (o impulso pessoal, a intensi- • O idealismo –
razão, ordem, equilíbrio, harmonia, dade, a irregularidade), o Romantis- A insatisfação –
impessoalidade etc. —, a arte agora mo constitui o primeiro grande estilo O escapismo
expressa os aspectos tumultuosos e moderno do Ocidente. Renova-se a (fuga da realidade)
pessoais da existência, como a pai- língua, com a incorporação da O mundo real sempre frustra o
xão, o amor, o sonho, o devaneio, a linguagem oral e do neologismo. A idealismo romântico. Daí a rebeldia
loucura, a morbidez, o tédio, o espí- superação do repertório linguístico dos poetas do mal-do-século. Esse
rito de rebeldia, o ímpeto revolucio- dos clássicos possibilita uma dicção desejo de fugir à realidade manifesta-
nário, a infância e a religiosidade. No mais solta e mais compatível com o se em atitudes como: a morbidez; o
lugar do universalismo da arte clás- gosto e com o entendimento da desejo de morrer; a boêmia desbra-
sica, o Romantismo propõe o particu- burguesia e das camadas populares. gada; o culto da solidão; a evasão no

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tempo (a busca do passado, a ante- insustentável — simultaneamente Herculano e Antônio Feliciano de


visão do futuro e a abominação do protetorado inglês e colônia do Brasil. Castilho, cujas obras têm ainda for-
presente); a evasão no espaço (a A regência do general Beresford, tes ressonâncias neoclássicas.
busca de lugares longínquos, exóti- a revolta do exército (1820), a Junta Esses autores marcam-se pela presen-
cos, o gosto pelas ruínas, a poesia Provisória, as eleições para as cortes, ça do medievalismo, que fascinou
noturna e fúnebre) etc. o regresso de D. João Vl a Portugal, a o grupo coimbrão do Romantismo.
• Ilogismo nova Constituição e a Independência Camões (1825), de Garrett (o
A negação da lógica e da razão do Brasil abrem um período de autor mais ativo do grupo), foi marco
e a instabilidade emocional manifes- revoluções e contrarrevoluções, con- inicial do movimento, que só se con-
tam-se por meio de atitudes anti- trapondo absolutistas e liberais de solidou na década de 1830. São
téticas — alegria/tristeza, euforia/ de- diversos matizes, que se estenderá dessa época as primeiras traduções
pressão, desejo/autopunição, religio- até 1851, quando o governo da para o português das obras de
sidade/satanismo. Regeneração, por meio de Saldanha, Walter Scott e a publicação de A Voz
• Idealização da mulher assume o poder, apoiado pela bur- do Profeta, de Alexandre Herculano;
Anjo ou demônio, inacessível, guesia unificada. • o segundo momento
poderosa, a mulher, para os român- É nesse contexto que se desen- (1840-1850) representa a transição
ticos, é capaz de alterar a vida do volve o Romantismo português,
entre o medievalismo e a observação
homem, levá-lo à loucura e à morte. cujos marcos cronológicos são:
da realidade. É a fase do ultrarro-
Início: 1825 – Publicação do
mantismo, das novelas passionais
2. O ROMANTISMO poema Camões, de Almeida Garrett;
de Camilo Castelo Branco e da
EM PORTUGAL Término: 1865 – Eclosão da
poesia mórbida de Soares Passos;
❑ O contexto “Questão Coimbrã”, que marca o
início do período realista. • o terceiro momento
histórico português
(1850- 1865) representa a aliança
Com a transferência da família
real e do governo português para o ❑ A evolução do do Romantismo com as antecipa-
Brasil, por 14 anos, a metrópole Romantismo em Portugal ções do Realismo. Júlio Dinis, com
transforma-se em colônia da colônia Há três momentos (ou gerações) o romance de costumes, foi funda-
(1808-1822). Com a corte de D. João que podem resumir a evolução do mental na caracterização da classe
Vl no Brasil, os portugueses enfren- Romantismo português: média urbana e rural. João de Deus,
tam quatro anos de guerra contra os • o primeiro momento (1825- na poesia, atacou duramente a vena-
exércitos francês e espanhol, e o 1840), a fase de implantação do Ro- lidade do regime da Regeneração,
país fica em situação lastimável: sa- mantismo, é representado por três antecipando a atitude crítica dos
ques, perseguições e uma política autores: Almeida Garrett, Alexandre realistas.

MÓDULO 15 Almeida Garrett e Alexandre Herculano

1. JOÃO BAPTISTA mânticos: o individualismo me- jornalista), tornando-se um dos inte-


D’ALMEIDA lancólico de Byron, Chateaubriand, lectuais do regime, ao lado de Ale-
LEITÃO DA SILVA Lamartine e Vigny; o “homem natu- xandre Herculano.
GARRETT (1799-1854) ral” de Rousseau; o medievalismo
de Walter Scott. Afastou-se, contudo, ❑ Obras
❑ Vida da “espontaneidade criativa”, • Poesia
Iniciou-se, Iiterariamente, no âm- um dos traços básicos da escrita Odes Anacreônticas
bito do neoclassicismo. São dessa romântica. Retrato de Vênus
fase de iniciação as tragédias clás- Na Inglaterra, escreveu os poe- Lírica de João Mínimo
sicas Mérope e Catão, bem como os mas longos Camões e D. Branca, pu- Camões
poemas de Lírica de João Mínimo, blicados, respectivamente, em 1825 e D. Branca
além do Retrato de Vênus, que 1826, constituindo os marcos iniciais Romanceiro (poemas narrativos
provocou forte ataque dos setores do Romantismo português, não de cunho folclórico, inspirados
reacionários, ligados à Igreja, que o obstante a sobrevivência dos traços em composições populares)
acusaram de materialista e obsceno. neoclássicos. Flores sem Fruto
Militante da Revolução Liberal, Com a vitória liberal, dedicou-se Folhas Caídas
conheceu por diversas vezes o exílio, à vida pública (além de encarregado • Prosa
na França e na Inglaterra. Nesses da reorganização do teatro nacional, Viagens na Minha Terra (misto de
países assimilou os ingredientes ro- também foi diplomata, deputado e romance, livro de viagem e diário)
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• Teatro romance de amor, na paixão irresis- Pescador da barca bela,


tível de Dona Branca e do chefe Inda é tempo, foge dela,
Um Auto de Gil Vicente
Foge dela,
D. Filipa de Vilhena mouro Aben-Afã, personagens a Ó pescador!
Alfageme de Santarém quem o autor comunica o idealismo
Frei Luís de Sousa (obra-prima característico da escola. Envolve Vocabulário e Notas
1 – Vás: vai.
do teatro romântico português) também as figuras de Oriana e 2 – Velar: esconder.
Mem do Vale — o glorioso e apai- 3 – Lanço: lance (de rede).
❑ Camões xonado cavaleiro de Santiago.
É um poema narrativo cuja ação Comentário
é o processo de composição e a ❑ Folhas Caídas • O poema tem o ritmo das barcarolas
publicação de Os Lusíadas. Funde Contém poemas já libertos do medievais: as estrofes são monórrimas (rima
comedimento arcádico. Inspirados única — ELA), formadas por um dístico em
procedimentos românticos e resíduos redondilha maior e outro, que contém o refrão,
neoclássicos. na tempestuosa e tardia paixão de sob a forma de um vocativo (“Ó pescador”),
• São românticos Garrett pela Viscondessa da Luz, cujos dois versos curtos, juntos, formam um
– a personagem nacional e pa- esses poemas marcam-se pela terceiro verso de sete sílabas.
triótica, o cunho nacionalista; intensidade emocional, pelo amor
NÃO TE AMO
– a invocação à saudade (alego- sensual, irresistível, real e vivido.
ria mitológica sem mitologia); Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
ESTE INFERNO DE AMAR E eu n’alma — tenho a calma,
– o acentuado tom de elegia fú-
Este inferno de amar — como eu amo! — A calma — do jazigo.
nebre, a paisagem noturna, a am- Ai! não te amo, não.
Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi?
biência fúnebre, que penetram o eu Esta chama que alenta e consome,
pensante; Que é a vida — e que a vida destrói — Não te amo, quero-te: o amor é vida.
– a concepção do amor como Como é que se veio a atear, E a vida — nem sentida
Quando — ai quando se há de ela apagar? A trago eu já comigo.
uma realidade fatalista e irresistível, a Ai! não te amo, não!
dominar as conveniências sociais;
Eu não sei, não me lembra: o passado,
– o gosto pelas ruínas, tradições A outra vida que dantes vivi
Ai! não te amo, não; e só te quero
e lendas medievais; De um querer bruto e fero1
Era um sonho talvez... — foi um sonho —
Que o sangue me devora,
– o herói romântico: o Camões Em que paz tão serena a dormi!
Não chega ao coração.
de Garrett é um incompreendido, Oh! que doce era aquele sonhar...
individualista, vagabundo e libertário, Quem me veio, ai de mim! despertar?
Não te amo. És bela; e eu não te amo,
à maneira de Byron, um “bardo mis- [ó bela.
Só me lembra que um dia formoso
terioso”, “moribundo cisne”, “harpa Quem ama a aziaga2 estrela
Eu passei... dava o Sol tanta Luz!
sublime”; Que lhe luz na má hora
E os meus olhos, que vagos giravam,
De sua perdição?
– o saudosismo, o patriotismo e Em seus olhos ardentes os pus.
o amor à Natureza, numa paisagem Que fez ela? eu que fiz? — não o sei;
E quero-te, e não te amo, que é forçado,
Mas nessa hora a viver comecei...
luarenta, misteriosa, esfumada; De mau feitiço azado3
– a ânsia de liberdade: “oceano Comentário Este indigno furor.
indomado por tiranos”. • O poema enfoca os efeitos contraditó- Mas oh! não te amo, não.
rios do amor. O sistema ternário, as frases
• Os resíduos neoclássicos es-
curtas, reticentes e interrogativas sugerem E infame sou, porque te quero; e tanto
tão presentes bem um estado de alma em que se confun- Que de mim tenho espanto,
– na estrutura, obedecendo à di- dem o prazer e a dor de amar. De ti, medo e terror...
visão tradicional da epopeia clássica: Mas amar!... não te amo, não.
BARCA BELA
invocação, dedicatória, narra-
ção que se inicia no meio da ação; Pescador da barca bela, Vocabulário e Notas
Onde vás1 pescar com ela, 1 – Fero: feroz.
– na divisão em dez cantos e na Que é tão bela, 2 – Aziago: que traz má sorte.
adoção dos versos decassílabos Ó pescador?
3 – Azado: oportuno, propício.
brancos, sem estrofação regular;
– no uso de algumas alegorias Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?2 Comentário
da mitologia clássica, que Garrett, Colhe a vela, • Garrett retoma aqui um conflito cons-
contudo, restringe a poucas pas- Ó pescador! tante na poesia portuguesa, passando pelos
sagens. poetas do Cancioneiro Geral e por Camões: a
Deita o lanço3 com cautela, diferença entre o amar e o querer. Garrett é o
Que a sereia canta bela... pagão do amor que segue a corrente aristo-
❑ D. Branca Mas cautela, télica, como Byron, e opõe-se ao amor
É um poema narrativo, de feição Ó pescador!
idealista de Platão: “Ai! não te amo, não; e só
novelesca, em que as personagens e te quero / De um querer bruto e fero”, confessa
Não se enrede a rede nela,
o assunto são nacionais. O assunto his- o poeta, sentindo a inferioridade do seu
Que perdido é remo e vela
tórico — a conquista do Algarve Só de vê-la, compor tamento, considerando-se “infame”,
— está romanticamente integrado no Ó pescador! possuído de um “furor indigno”.

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• Síntese das público. (Massaud Moisés, A Litera- ❑ Obras


características tura Portuguesa através dos Textos) • Poesia
de Folhas Caídas Poesias , incluindo “A Harpa do
I. ausência da poesia descritiva ❑ Frei Luís de Sousa Crente” e “A Cruz Mutilada”
das fases anteriores; Composta em três atos em prosa, • Prosa de Ficção
II. lirismo profundo, subjetivo; o representada pela primeira vez em 1843 O Bobo
amor humano construído em e publicada no ano seguinte, a tragédia Eurico, o Presbítero e O Monge de
torno dos sentimentos; Frei Luís de Sousa gravita em torno da Cister, reunidos sob o título Monasticon
III.a realidade e o fatalismo, o do- vida do prosador cujo nome dá título à Lendas e Narrativas
ce amargor, o gozo-dor, o ciú- obra. Como se sabe, Madalena de • Historiografia
me e o desespero; Vilhena e Manuel de Sousa Cou- História de Portugal
IV. o amor arrebatado, sem con- tinho haviam contraído núpcias, cer- História da Origem e Estabeleci-
venções; tos de que D. João de Portugal, mari- mento da Inquisição em Portugal
V. a linguagem coloquial, com do da primeira, desaparecera em • Coleção Documental
adjetivação sugestiva e equili- Alcácer Quibir, em companhia de D. – edição
brada; as redondilhas da poe- Sebastião. Entretanto, ele está vivo e Portugaliae Monumenta Historica
sia popular e tradicional. regressa a sua casa, oculto em andra- • Polêmica (Ensaios)
jos de romeiro. Aterrados pela surpre- Opúsculos
❑ Romanceiro A Questão Eu e o Clero
sa, colhidos em pecado, os cônjuges
Coletânea de xácaras ou can-
buscam ilibar-se do involuntário delito
ções de tom novelesco inspiradas ❑ Herculano — o poeta
tomando o hábito: durante a cerimô-
nas fontes nacionais do folclore e nas Só realizou poesia na mocidade,
nia, Maria de Noronha, única filha
composições populares em verso, até os 25 anos, sob influência de
do casal, morre a seus pés. Manuel de
como “A Nau Catarineta” e o “Bernal Chateaubriand e Victor Hugo.
Sousa Coutinho, no convento, adotou
Francês”, ou resultantes do aprovei- Sua poesia é reflexiva, solene, séria,
o nome Frei Luís de Sousa.
tamento de textos literários de contrapondo-se ao lirismo sentimen-
Bernardim Ribeiro (“Avalor”) e Gil tal e intimista de Garrett. O lirismo
Vicente (“D. Duardos”). 2. ALEXANDRE
amoroso não existe em Herculano.
HERCULANO
❑ Viagens na Minha Terra Os temas de que tratou são român-
DE CARVALHO E
É incerta a classificação dessa ticos: a Religião, a Pátria e a Natureza.
ARAÚJO (1810-1877)
obra, misto de jornalismo, literatu- Formalmente, Herculano distan-
cia-se do à vontade de Garrett, reali-
ra de viagens, diário íntimo e ❑ Vida
prosa de ficção. Publicada em zando uma poesia rica em símbolos e
De origem humilde, foi quase
1846, seu fio narrativo compõe-se de expressando-se num tom solene, gra-
autodidata. Estimulado pela Marque-
uma viagem levada a efeito por ve, reflexivo, e com uso frequente de
sa de Alorna, sua protetora, inicia-se
hipérbatos (inversões sintáticas).
Garrett em 1843 entre Lisboa e na literatura e na historiografia. Como
Santarém, a convite do político Passos Garrett, empenha-se nas lutas A CRUZ MUTILADA
Manuel. Repartida em 49 capítulos, liberais e conhece o exílio.
como que escritos ao sabor da via- Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De volta a Portugal, passa pelos
De esplêndidas igrejas;
gem, a obra relata as peripécias ocor- Açores, pelo Porto e pela Biblioteca Amo-te quando à noite, sobre a campa,
ridas entre aquelas duas cidades e as da Ajuda. Publica nessa época A Voz Junto ao cipreste alvejas;
reflexões desencadeadas na mente do Profeta, inspirado em Paroles d’un Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
do viajante, acerca dos mais variados Croyant, de Lamennais. Amo-te quando em préstito1 festivo
assuntos, desde o amor até a política. Na direção da revista O Panorama, As multidões te hasteiam;
Ao chegar a Santarém, o narrador publica Lendas e Narrativas e O Bobo. Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
toma conhecimento da história amo- Como membro da Academia de No adro2 do presbitério 3,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
rosa da Joaninha dos olhos verdes, Ciências, organizou a publicação de Guias ao cemitério;
a “menina dos rouxinóis”, e de Portugaliae Monumenta Historica. Amo-te, ó cruz, até quando no vale
seu primo Carlos: ambos se apaixo- Desgostoso com os rumos políti- Negrejas triste e só,
Núncia4 do crime, a que deveu a terra
nam, mas ele se julga preso ao senti- cos do país, afastou-se da vida públi-
Do assassinado o pó:
mento de Georgina, que ficara na ca, retirando-se para a sua quinta em
Inglaterra; por fim, desfeito o impas- Vale de Lobos. Nessa época aban- Porém quando mais te amo,
se, Georgina entra para o convento e dona a literatura e passa a dedicar- Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Joaninha morre, enquanto Carlos, se, até a morte, à vida do campo. Antes de o Sol se pôr.
recomposto do transe, retoma sua Foi poeta, romancista, historiador
(...)
trajetória de dândi Don Juan e homem e polemista.
68 –
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(...) Mendes da Maia, à maneira das contro com suas consciências.


No pedestal musgoso, em que te ergueram novelas de cavalaria medievais; A religião é o complicador do
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava – “Arras por Foro de Espanha” – conflito sentimental de Eurico e
O sino os simples sons pelas quebradas novela histórica em torno de D. serve aos intuitos vingativos de Vasco.
Da cordilheira, anunciando o instante Leonor Teles; A época histórica de Eurico é a do
Da Ave-Maria; da oração singela, – “O Pároco da Aldeia” – novela
Mas solene, mas santa, em que a voz do
domínio árabe. Por carência de
[homem campesina que terá desdobramento bases documentais, Herculano recor-
Se mistura nos cânticos saudosos, na obra de Júlio Dinis. Apologia do re à intuição para nos dar o choque
Que a natureza envia ao céu no extremo cristianismo, sem qualquer ranço de duas civilizações: a dos ára-
Raio de Sol, passando fugitivo
anticlerical. bes, bárbara, violenta, e a dos go-
Na tangente deste orbe 5, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga • O Bobo dos, já caldeada pelo cristianismo. O
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja Romance histórico, aclimatado romance é mais poético do que
Até, na solidão, o esquecimento! no castelo de Guimarães, na época
(...)
histórico, e talvez por isso, menos do
das figuras legendárias de Afonso agrado de Herculano (por ferir seus
Vocabulário e Notas Henriques e Egas Moniz. Dom Bibas escrúpulos de historiador rigoroso).
1 – Préstito: procissão. é um enjeitado que diverte a corte O narrador é onisciente. O autor
2 – Adro: pátio externo, localizado em frente ou com seus defeitos físicos e seus gra-
em torno a uma igreja. ocupa sempre o primeiro pla-
3 – Presbitério: igreja paroquial.
cejos. Desprezado como o “bobo-da- no, mesmo no diálogo, por meio do
4 – Núncia: anunciadora. corte”, acabou por auxiliar os portu- qual exprime as suas ideias, ou em
5 – Orbe: mundo. gueses na independência.
suas divagações e comentários, nos
Comentário • Eurico,
• A poesia é uma vibrante afirmação de fé
quais o tom saudosista (poético)
o Presbítero – Monasticon
e uma condenação ao desprezo e ingratidão se mistura com uma ironia quase
No tempo em que godos e árabes
dos homens. Foi escrita em versos brancos agressiva muito característica de
(sem rima) em algumas passagens, e o poeta lutavam na Península Ibérica (século
Herculano em Eurico.
utiliza-se de várias estruturas estróficas. Vlll), havia um godo, Eurico, que
Há três partes distintas na obra: a
escolhera o sacerdócio como meio
primeira apresenta a pancronia da
❑ O romance para curar-se do amor impossível por
época; a segunda introduz e carac-
histórico de Herculano Hermengarda e que vazava seu tor-
teriza as personagens na ação, que,
• Lendas e Narrativas mento passional em poemas e can-
na terceira parte, surge clara e em
Reaproveitam a prosa medie- ções que logo se fizeram conhecidos
seu pleno desenvolvimento, até a
val (os nobiliários, os cronicões e as por toda parte. Com o acirramento da
conclusão. Isso contraria a estrutura
obras de Fernão Lopes e Rui de Pina), guerra entre godos e árabes, Eurico
da epopeia clássica e do romance
recriando essas fontes documentais, abandona o hábito e, tornando-se o
realista, que iniciam a narrativa em
que emprestam cor local às tramas Cavaleiro Negro, consagra-se como
pleno desenrolar da ação.
romanescas, aclimatadas em diversos herói de lendárias façanhas. Nem por
A linguagem majestosa, ritma-
períodos da Idade Média. isso o êxito sorri aos cristãos.
da, rica de lirismo e de comparações
Não há unidade de ação, e o autor Hermengarda é raptada pelos árabes.
sugestivas permite a classificação
interrompe a narrativa com frequentes Eurico enfrenta todos os perigos para
reflexões morais, religiosas, po- como poema (ao que se acresce a
salvá-la. Em delírio, a moça confessa a
líticas e com evocações históri- forma literalizante, vernácula, arcai-
Eurico que o ama. O desespero da
cas (tumultos, procissões, ambientes zante e o tom levemente irônico).
revelação (ele era, agora, um padre)
interiores e exteriores) que recons- O colorido na recriação da
leva-a à loucura, e Eurico morre em
troem a cor local com rigor histórico. época e da paisagem tem o caráter
escaramuça contra os inimigos.
Entre as Lendas e Narrativas, des- de uma crônica histórica.
tacam-se: Observações Pelo trabalho inventivo, fic-
– “Alcaide de Santarém” – aclima- Eurico, o Presbítero constitui com cional, é um romance.
tada na época de dominação árabe; O Monge de Cister uma dupla novela, A grandiosidade, a nobreza
– “Dama Pé-de-Cabra” – narrada aglutinada sob o título Monasticon, das personagens, os lances
à maneira das velhas avós que relata- que pretende examinar a questão do violentos, a unidade de ação e
vam suas lendas e crendices, em tom celibato clerical à luz do sen- o desenrolar fatídico dos acon-
poético e levemente zombeteiro; timento. tecimentos fazem de Eurico um
– “O Bispo Negro” – em que avul- A tese não se prova porque a hi- aparentado da tragédia.
ta o nacionalismo na reconstituição pótese é apresentada recorrendo-se Assim, lido como poesia, como
da personalidade afirmativa e domi- a duas figuras — Eurico e Vasco —, crônica, como romance e
nadora de D. Afonso Henriques; que se fizeram sacerdotes, não por como tragédia, Eurico é a obra-
– “A Morte do Lidador” – centra- vocação, mas por fuga a amores fra- prima de Herculano, e uma das joias
da na bravura e destemor de Gonçalo cassados ou por buscarem um en- literárias de Portugal.
– 69
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Aqui transcrevemos o momento 3. ANTÔNIO FELICIANO havia de conservador, em termos


em que Eurico se entrega, voluntaria- DE CASTILHO (1800-1875) artísticos, no país.
mente, à morte:
“E quase a um tempo dois pesados golpes Associa-se tanto à introdução do ❑ Obras
de franquisque assinalaram profundamente os Romantismo como à sua suplantação – Cartas de Eco e Narciso – 21
elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento pelo Realismo. cartas, escritas em decassílabos,
mais três ferros reluziram. Castilho, porém, apesar de divul- tendo como inspiração o poeta
Um contra três! — Era um combate calado
gador da nova corrente literária, foi clássico Ovídio.
e temeroso. O cavaleiro da Cruz parecia
desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só
um conservador. Procurou tornar
acadêmico, de acordo com uma – A Primavera – 4 poemas bucó-
nas armaduras dos dois Godos. Primeiro o
velho Opas, depois Juliano caíram. forma de pensamento neoclás- licos, dentro da convenção arcádica,
Então, recuando, o cavaleiro cristão sico, o que o Romantismo possuía com a mesma natureza estratificada
exclamou: de transformador. Persegue-o o ideal e as inevitáveis ninfas, os deuses
‘Meu Deus! Meu Deus! — Possa o sangue mitológicos, as evocações a Baco e a
de moderação, com que atenuava a
do mártir remir o crime do Presbítero!’ apologia da vida campestre (fugere
E, largando o franquisque, levou as mãos
inovação artística dos escritores que
ao capacete de bronze e arrojou-o para longe gravitavam em torno de sua pessoa. urbem, aurea mediocritas, locus
de si. Castilho, cego aos 6 anos amoenus), tudo no mais superficial
Mugueiz, cego de cólera, vibrava a espa- de idade, recebeu formação figurino de Horácio e Virgílio.
da: o crânio do seu adversário rangeu, e um jorro clássica e clerical e um senso
de sangue salpicou as faces do Sarraceno.” – Amor e Melancolia ou A Novís-
de disciplina que não Ihe per- sima Heloisa – 25 poemas inspirados
E, na sequência do desfecho, mitiram penetrar naquilo que o na paixão por uma reclusa de um
quando Pelágio constata que Her- Romantismo possuía de revo- mosteiro.
mengarda, sua irmã, enlouquecera: lucionário: a liberdade de cria-
ção. Não percebeu o sentido real da – A Noite do Castelo – poema
“Nessa noite, quando Pelágio voltou à
caverna, Hermengarda, deitada sobre o seu história e da relatividade das formas em 4 cantos em torno do ciúme,
leito, parecia dormir. Cansado do combate e artísticas. Foi um intransigente. E numa visão ultrarromântica.
vendo-a tranquila, o mancebo adormeceu, essa intransigência levou-o a criticar
também, perto dela, sobre o duro pavimento da – Os Ciúmes do Bardo – poema
gruta. Ao romper da manhã, acordou ao som os jovens escritores realistas, fazendo dramático, à maneira de Byron, eiva-
de canto suavíssimo. Era sua irmã que cantava eclodir a Questão Coimbrã. do de sensualismo e morbidez.
um dos hinos sagrados que muitas vezes ele As observações críticas de Cas-
ouvira entoar na catedral de Tárraco. (...) tilho apareceram na carta-posfácio – Foi também autor de obras pe-
Quando Hermengarda acabou de cantar, dagógicas, históricas; envolveu-se
ficou um momento pensando. Depois, repen- ao Poema da Mocidade, do futuro
tinamente, soltou uma destas risadas que romancista anticlerical Pinheiro Cha- em muitas polêmicas; traduziu (às
fazem eriçar os cabelos, tão tristes, soturnas e gas. As respostas a elas e a polêmica vezes muito bem) Ovídio, Virgílio,
dolorosas são elas: tão completamente expri- Anacreonte, Molière, Goethe, Cer-
gerada marcaram o início da afirma-
mem irremediável alienação do espírito.
ção do Realismo e comprometeram vantes e Shakespeare e deixou um
A desgraçada tinha, de feito, enlouque-
negativamente Castilho com o que abalizado Tratado de Metrificação.
cido.”

MÓDULO 16 Camilo Castelo Branco


1. CAMILO CASTELO A moça, casada por imposição gueira ameaçadora. Em 1.o de junho
BRANCO (1825-1890) familiar, foge do marido e junta-se de 1890, já cego, Camilo se suicidou.
com Camilo. Ambos são presos por
❑ Vida dois anos. Na prisão, Camilo es- ❑ Obras
Teve vida atribulada. Filho natu- creve, em quinze dias, sua obra- • Novelas: dentre as 58 que
ral, perdeu a mãe aos dois anos e o prima — Amor de Perdição —, que escreveu, destacamos:
esteve na iminência de ser rasgada Primeira Fase – Iniciação:
pai aos dez. Viveu sucessivamente
pelo autor. Com a morte do marido narrativas de mistério e novelas de
com uma tia, até os quartoze anos, e
assunto histórico: Anátema, Carlota
com uma irmã. Casou-se aos dezes- de Ana Plácido, ela e Camilo são
Ângela, Onde Está a Felicidade?, Um
seis anos. Aos vinte e um, já separa- libertados e vão viver em São Miguel
Homem de Brios e Memórias de
do da mulher, rapta uma senhora em de Seide.
Guilherme do Amaral.
Vila Real. São aprisionados. Cursa, Entregue à redação de suas
Os romances dessa fase mar-
sem concluir, Medicina e Engenharia obras, nas quais tinha seu ganha-
cam-se pelo tom macabro, terrífi-
e frequenta o seminário. Envolve-se pão, Camilo levou existência difícil,
co, com tendências para o melo-
com uma freira. Em 1857, conhe- pela falta de dinheiro, pela loucura
drama (ódios, vinganças, fata-
ce Ana Plácido, sua grande paixão. de um filho — Jorge — e pela ce-
lismo).
70 –
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Há instabilidade literária e falta • Vária rico e renovou o vernáculo castiço,


de concisão no enredo; é percep- Compreendendo crônicas, crítica comunicando-se com o grande pú-
tível a influência de Ann Radcliffe, literária, escritos sobre história, me- blico, sem deixar de fazer obra de arte.
Eugênio Sue, Alexandre Dumas, mórias etc.
Victor Hugo.
As personagens são representa- ❑ Amor de Perdição TEXTOS
tivas da miséria, dor, crime, corrup- Dois jovens, Simão Botelho (ri-
ção, perversão. É notória a influência I
co fidalgo) e Teresa Albuquerque,
de seus estudos médicos. estão enamorados. As respectivas fa- — Agora é tempo de dar sepultura ao
Já se percebem nessas obras os nosso venturoso amigo... É ventura morrer
mílias, separadas por velhas ques-
quando se vem a este mundo com tal estrela.
elementos passionais que marcarão tões, não veem com bons olhos tal Passe a senhora Mariana ali para a câmara,
a segunda fase e a intenção crítica afeição, e tentam de vários modos que vai ser levado daqui o defunto.
que amadurecerá na terceira. afastá-los, chegando até a enviar (...)
Segunda Fase – A Novela Simão para Coimbra e a obrigar Foi o cadáver envolto num lençol e
Passional: Amor de Perdição, Amor Teresa a ingressar num convento por transportado ao convés.
de Salvação e A Queda dum Anjo não se casar com seu primo Mariana seguiu-o. Do porão da nau foi
(novela satírica). Essa fase representa trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às
Baltasar Coutinho. Diante disso, pernas com um pedaço de cabo. O comandan-
a maturidade. os jovens planejam uma fuga e, te contemplava a cena triste com os olhos úmi-
Amor de Perdição, obra que quando Simão se dirige ao convento, dos, e os soldados que guarneciam a nau, tão
confere notoriedade ao autor, apre- encontra, às portas desse, o pai e o funeral respeito os impressionara, que insensi-
senta enredo conciso, equilibrado, primo de Teresa. Trava-se, então, uma velmente se descobriram.
sem personagens dispensáveis e luta entre o último e Simão. Baltasar Mariana estava, no entanto, encostada ao
quase sem digressões. A linguagem é acaba morto. Simão é preso e con-
flanco da nau, e parecia estupidamente encarar
adequada: é romântica na corres- aqueles empuxões que o marujo dava ao cadá-
denado ao exílio. Faz-lhe companhia ver, para segurar a pedra na cintura.
pondência Simão – Teresa; é popu- a pobre Mariana, moça simples, que Dois homens ergueram o morto ao alto
lar, direta, coloquial em João da
o ama sem ser correspondida e que sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o
Cruz; irônica e caricatural, quando arremessarem longe. E, antes que o baque do
lhe tem sido um anjo da guarda.
envolve as freiras do convento. cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram,
Enquanto Teresa definha no convento,
Há elementos de poesia, de e ninguém já pôde segurar Mariana, que se
atacada por um mal incurável, o moço atirara ao mar.
novela e de tragédia, perpas-
aguarda a hora de partir. O barco À voz do comandante desamarraram rapi-
sados de forte humanismo, que con-
larga. Ainda Simão avista, ao longe, o damente o bote, e saltaram homens para salvar
ferem à obra vigor e grandiosidade.
convento de Monchique e o lenço Mariana.
Terceira Fase – A Anteci- Salvá-la!...
branco de Teresa acenar debilmente.
pação Realista: Eusébio Macário, Viram-na, um momento, bracejar, não para
Sobrevém-lhe repentina febre, que o
A Corja, A Brasileira de Prazins e resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadáver
Vulcões de Lama. prostra à morte. É sepultado no mar. de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços.
O poder de observação desce ao Mariana lança-se ao mar e morre (Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição)
pormenor descritivo, com uma lingua- abraçada ao cadáver de Simão.
gem mais próxima da classe popular. II
As personagens, extraídas das ca- ❑ Características da
Havia na botica um relógio de parede, na-
madas populares, não destoam da ga- novela passional camiliana cional, datado em 1781, feito de grandes toros
leria camiliana: são enjeitadas, mulhe- • Esquema folhetinesco tra- de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando
res moralmente fracas, tísicas, loucos, dicional: amor impossível, adúltero, subiam, rangiam o estridor de um picar de
adúlteros, beberrões, mal-amados etc. incestuoso, que se engrandece em amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda
Pretendendo criticar e ironizar o face das dificuldades, tornando-se como quem tira um balde da cisterna. Por
eterno; debaixo da triplicada cornija1 do mostrador
romance naturalista, parece que
• amor fatal, obsessivo, tão havia uma medalha com uma dama cor de
Camilo acabou por aderir à nova ten- laranja, vestida de vermelhão, decotada, com
dência, realizando o romance de crí- grandioso que não pode ficar restrito
uma romeira2 e uma pescoceira, crassa3 e
tica social decalcado no tema realista ao campo terreno; grossa de vaca barrosã 4, penteada à Pom-
do adultério e na observação perso- • desenlaces trágicos, com padour, com uma réstia de pedras brancas a
nalizada da realidade. a expiação transcendental das culpas enastrar-lhe5 as tranças. Cada olho era maior
dos amantes: morte, suicídio, loucura, que a boca, dum vermelho de ginja 6. Ela tinha
• Poesia a mão esquerda escorrida no regaço, com os
convento;
Pundonores Desagravados, O dedos engelhados7 e aduncos8 como um pé
• como Balzac e Sue, procurava
Juízo Final e o Sonho do Inferno, A de perua morta; o braço direito estava no ar,
enredar emocionalmente o leitor, jo-
Murraça, Nas Trevas. hirto 9, com um ramalho de flores que parecia
gando com suas expectativas. Mes- uma vassoura de hidrângeas10. Este relógio
• Teatro mo trabalhando esquemas narrativos badalara três horas que soaram ríspidas como
Agostinho de Ceuta, O Marquês já incorporados ao gosto do leitor, as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras
das Torres Novas, A Morgadinha de Camilo inovou a escrita literária por- da Hecate de Shakespeare11.
Val d’Amores. tuguesa. Afastou o empolamento retó- (Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário)

– 71
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Vocabulário e Notas de boi, o qual é então denominado bar- 8 – Adunco: curvo.


1 – Cornija: moldura. rosão; diz-se também do boi que tem pelo 9 – Hirto: retesado, esticado.
2 – Romeira: agasalho feminino. da cor do barro. 10 – Hidrângea: hortênsia.
3 – Crasso: pesado (sentido figurado). 5 – Enastrar-lhe: entretecer-lhe, ornar-lhe. 11 – Hecate: personagem da peça Macbeth,
4 – Barrosã: feminino de barrosão, de Barroso, 6 – Ginja: fruto muito semelhante à cereja. de William Shakespeare.
região portuguesa onde se cria uma raça 7 – Engelhado: enrugado.

As Gerações Românticas – Primeira Geração:


MÓDULO 17
Gonçalves Dias
A POESIA ROMÂNTICA NO BRASIL (1836-1881)

Reconhecem-se três gerações, marcadas por certa unidade temática e formal nem sempre rígida. A atitude de
uma geração projeta-se nas demais. A seguir, há um quadro-resumo da poesia romântica no Brasil.

GERAÇÕES TEMAS E FORMAS POETAS


Primeira: Índio (idealizado como cavaleiro medieval e como o “bom selvagem” Gonçalves de Magalhães, conde
Indianista ou de Rousseau), natureza (nativismo ou ufanismo), passado his- Manuel de Araújo Porto-Alegre (fase de
tórico, religiosidade, antilusitanismo, xenofobia (aversão ao formação) e Gonçalves Dias (consolidação
Nacionalista.
estrangeiro), projeto de uma “língua brasileira”. da poesia romântica).

Segunda: Morte, tédio, dúvida, escapismo, boêmia, satanismo, Álvares de Azevedo,


Byroniana ou Individualista, ou do saudosismo (infância, família), solidão, depressão, sensualis- Fagundes Varela,
Mal-do-Século, ou Egótica, mo reprimido (“amor-e-medo”). Incorporação de novos temas Junqueira Freire e
ou Ultrarromântica. bucólicos e roceiros; poesia maldita. Casimiro de Abreu.

Liberdade, temas sociais (Guerra do Paraguai, Abolição, Castro Alves e Tobias Barreto.
Terceira: República). Poesia enfática e declamatória (poesia de comí- Sousândrade (que radicalizou as inova-
Condoreira ou cio). Uso de metáforas ousadas, baseadas em aspectos gran- ções linguísticas e desvios criativos) constitui
da poesia social, diosos da natureza (oceano, amplidão, infinito, céu, universo). caso à parte, pela originalidade e
Hugoana, ou da Águias, condores e albatrozes são utilizados como imagens da modernidade; contemporâneo da Segunda
Escola de Recife. liberdade. Emprego de antíteses, hipérboles e apóstrofes Geração, sua poesia refoge aos parâmetros
violentas, além de interjeições, exclamações, reticências etc. brasileiros.

1. A PRIMEIRA GERAÇÃO do Romantismo. O livro vale mais pe- • equilíbrio, senso de medi-
(Indianista ou Nacionalista) lo Prólogo (primeiro manifesto da da, virtuosismo e erudição, con-
poesia romântica), que pelos poemas, sequências da sólida formação
Compreende dois grupos: o escritos em Paris. Foi apelidado de neo- clássica, que não abandonou
fluminense, em torno das revistas “romântico arrependido”.
de todo;
Niterói, Minerva Brasiliense e Guana- Tentou a poesia épica indianista,
• presença de modelos portu-
bara (Gonçalves de Magalhães, com A Confederação dos Tamoios,
obra duramente criticada pelo então gueses (Garrett, Alexandre Hercu-
conde Araújo Porto-Alegre, Joaquim
iniciante José de Alencar, provocando lano), que se harmonizam com a es-
Norberto) e o maranhense (Sotero
polêmica que teve larga repercussão. pontaneidade e sabor nacional;
dos Reis, Odorico Mendes). O caçula
Colaborou com Martins Pena e • expressividade do ritmo,
da Primeira Geração, Gonçalves
João Caetano na criação do ponto forte de Gonçalves Dias, que se
Dias, pertenceu aos dois grupos e
teatro nacional, tendo escrito os utiliza de todos os metros poéticos
foi, destacadamente, o melhor poeta
dramas Olgiato e Antônio José ou O com insuperável propriedade.
de sua geração.
Não obstante defenderem a esté- Poeta e a Inquisição.
Obras
tica romântica, esses poetas apre- ❑ Gonçalves Dias
• Primeiros Cantos (1846).
sentaram fortes resíduos do Neo- - (Maranhão, 1823-1864)
classicismo. Primam pelo comedi- Consolida a poesia romântica Consta de três partes:
mento, pela sobriedade e, amparados com Primeiros Cantos (a “Canção do Poesias Americanas (a mais im-
pelo imperador, esforçaram-se por Exílio” é o poema que abre o livro). portante, pelo tratamento dado ao
não aborrecer Sua Majestade, nem a Sua poesia marca-se pelas se- índio e à natureza); Poesias Diversas
pacata sociedade de então. guintes características: e Hinos (impregnados de panteísmo
• riqueza temática, abran- — sentimento entre filosófico e religio-
gendo a poesia indianista, o li- so de ver em tudo (natureza, mares,
❑ Gonçalves de Magalhães
rismo amoroso, poesia da na- montanhas, vales, florestas, auroras)
(Rio, 1811 – Roma, 1882) tureza, saudosismo, poesia
Introdutor do Romantismo, com uma projeção de Deus).
religiosa, poesia erudita (escrita
seus Suspiros Poéticos e Saudades • Segundos Cantos e Sextilhas
em português arcaico, medieval) e
(1836), foi poeta medíocre, ainda que poesia egótica, antecipando o de Frei Antão. Obra erudita, escrita
teorizasse com lucidez as propostas mal-do-século; em português arcaico, à maneira dos

72 –
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trovadores medievais, e que Gonçalves medieval (a ação se passa em 1512), Não permita Deus que eu morra,
Dias denominava ensaio filológico. escrito em prosa. D. Jaime, Duque Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
• Os Timbiras. Poema épico in- de Bragança, suspeita da relação de
Que não encontro por cá;
dianista, do qual temos apenas os sua esposa, Leonor, com o jovem Al- Sem qu’inda aviste as palmeiras,
quatro cantos iniciais. Os doze coforado. Ambos são punidos injus- Onde canta o Sabiá.
restantes perderam-se no naufrágio tamente.
em que morreu o poeta. O plano do Gonçalves Dias deixou outros
dramas, além de traduções, estudos TEXTO II
poema era ambicioso:
etnográficos, geográficos, literários,
cartas e um dicionário de tupi. I-JUCA-PIRAMA
“(…) imaginei um poema… como nunca
(fragmento: canto X)
ouviste falar de outro: magotes de tigres, de
coatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e
jabuticabais copados, jequitibás e ipês arro-
Antologia de Gonçalves Dias Um velho Timbira, coberto de glória,
gantes, sapucaieiras e jambeiros, de palmeiras Guardou a memória
nem falemos; guerreiros diabólicos, mulheres Do moço guerreiro, do velho Tupi!
feiticeiras, sapos e jacarés sem conta; enfim,
TEXTO I E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
um gênese americano, uma Ilíada Brasileira. Do que ele contava,
Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no CANÇÃO DO EXÍLIO Dizia prudente: — “Meninos, eu vi!”
Amazonas com a dispersão dos Timbiras;
guerras entre eles e depois com os portu- Minha terra tem palmeiras, “Eu vi o brioso no largo terreiro
gueses.” Onde canta o Sabiá; Cantar prisioneiro
As aves que aqui gorjeiam Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Não gorjeiam como lá. Valente, como era, chorou sem ter pejo;
• Últimos Cantos, em que se Parece que o vejo,
inclui a obra-prima do indianismo Nosso céu tem mais estrelas, Que o tenho nest’hora diante de mi.”
romântico, “I-Juca-Pirama”. Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida, “Eu disse comigo: ‘Que infâmia d’escravo!’
• Cantos, que reúne os livros an- Nossa vida mais amores. Pois não, era um bravo;
teriores, mais os Novos Cantos. Aí se
Valente e brioso, como ele, não vi!
inclui “Ainda uma Vez, Adeus”, poema Em cismar, sozinho, à noite, E à fé que vos digo: parece-me encanto
lírico-amoroso, de fundo autobio- Mais prazer encontro eu lá; Que quem chorou tanto,
Minha terra tem palmeiras,
gráfico, tematizando o insucesso amo- Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”
Onde canta o Sabiá.
roso. Nessa vertente, mais intimista, há
ainda, em outros livros, poemas famo- Minha terra tem primores, Assim o Timbira, coberto de glória,
Que tais não encontro eu cá; Guardava a memória
sos, como “Se se Morre de Amor”,
Em cismar — sozinho, à noite — Do moço guerreiro, do velho Tupi.
“Olhos Verdes”, “Não me Deixes” etc. E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Mais prazer encontro eu lá;
• Leonor de Mendonça é um Minha terra tem palmeiras, Do que ele contava,
drama em três atos, de assunto Onde canta o Sabiá. Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

As Gerações Românticas – Segunda Geração:


MÓDULO 18
Álvares de Azevedo e Outros

1. POESIA DA SEGUNDA SE EU MORRESSE AMANHÃ IDEIAS ÍNTIMAS


GERAÇÃO ROMÂNTICA I
Se eu morresse amanhã, viria ao menos (...)
(Byroniana – Individualista
Fechar meus olhos minha triste irmã; Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
– do Mal-do-Século – Fantástico alemão1, poeta ardente
Minha mãe de saudades morreria
Ultrarromântica) Se eu morresse amanhã! Que ilumina o clarão das gotas pálidas
(...) Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
❑ Álvares de Meu coração deleita-se… Contudo,
Azevedo Parece-me que vou perdendo o gosto,
(1831-1852) Vou ficando blasé2, passeio os dias
• poesia cerebral, que reflete Pelo meu corredor, sem companheiro,
Ligado aos grupos boêmios da
mais leituras que vivências. A preco- Sem ler nem poetar. Vivo fumando.
Faculdade de Direito de São Paulo (...)
(Sociedade Epicureia), morreu aos cidade de sua poesia oscila entre
momentos geniais e descaídas. Es- Vocabulário e Notas
vinte anos. É o melhor representante
1 – Fantástico alemão: Goethe.
do mal-do-século. crevia tumultuariamente, entregue,
2 – Blasé: entediado.
Suas principais características às vezes, à incontinência verbal e ao
são: descabelamento. Nem sempre exer- • erotismo irrealizado, as-
• morbidez, tédio, dúvida, cia o senso crítico, que possuía mais sociado à culpa e ao medo. O desejo
satanismo, na esteira de Lord agudo que qualquer romântico na- e a punição fundem-se. O amor só se
Byron, modelo que seguiu de perto: cional, à exceção de Gonçalves Dias: realiza no plano do sonho:
– 73
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IDEIAS ÍNTIMAS Vocabulário e Notas Falando ao coração… que nota aérea


IX 1 – Águas-furtadas: sótãos. Deste céu, destas águas se desata?
2 – Venturoso: feliz. Canta assim algum gênio adormecido
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
3 – Morfeu: deus grego dos sonhos. Das ondas mortas no lençol de prata?
A ventura de uma alma de donzela!
4 – Mavioso: afetuoso.
E sem na vida ter sentido nunca
5 – Otelo: personagem de peça homônima de Minh’ alma tenebrosa4 se entristece,
Na suave atração de um róseo corpo
Shakespeare; personifica o ciúme. É muda como sala mortuária…
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
6 – Devaneio: fantasia, imaginação. Deito-me só e triste sem ter fome,
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
7 – Cioso: cuidadoso. Vendo na mesa a ceia solitária.
Passam tantas visões sobre meu peito!
8 – Rol: lista.
(...)
9 – Werther e Carlota: personagens de Werther, Ó lua, ó lua bela dos amores,
• poesia humorística (realismo de Goethe. Se tu és moça e tens um peito amigo,
10 – Laura e Beatriz: musas de Petrarca e Não me deixes assim dormir solteiro,
humorístico e humor negro) e litera-
Dante, respectivamente. À meia-noite vem cear5 comigo!
tura fantástica são duas contribui- (Álvares de Azevedo)
ções originais ao nosso Romantismo: Vocabulário e Notas
• Os presságios da morte, as
1 – Embuçar: cobrir.
É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! alusões à família e à infância, a fúria 2 – Carapuça: gorro.
É ela! é ela! — murmurei tremendo, da solidão, as dualidades sonho 3 – Vagabundo: errante.
E o eco ao longe murmurou “é ela!...” versus realidade, espírito versus 4 – Tenebroso: sombrio.
Eu a vi… minha fada aérea e pura, carne e alguns arroubos liberais 5 – Cear: jantar.
A minha lavadeira na janela! (“Pedro Ivo”) são temas constantes.
• A Noite na Taverna, escrito à
Dessas águas-furtadas1 onde eu moro Obras maneira dos contos fantásticos de
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas…
• Lira dos Vinte Anos reúne seus Hoffmann, traz à tona o mundo insólito
Eu a vejo e suspiro enamorado! melhores poemas: “Ideias Íntimas”, da inconsciência e da embriaguez
“Spleen e Charutos”, “É Ela! É Ela! É (incesto, envenenamento, traição, ne-
Esta noite eu ousei mais atrevido Ela! É Ela!”, além de “Lembrança de crofilia, duelo etc.), através das recor-
Nas telhas que estalavam nos meus passos dações de alguns jovens embria- ga-
Morrer” e “Se Eu Morresse Amanhã”.
Ir espiar seu venturoso2 sono,
Vê-la mais bela de Morfeu3 nos braços! O livro é dividido em três partes, e a dos, numa taverna, em noites de tem-
segunda parte vem precedida de pestade, entre mundanas bêbadas,
Como dormia! que profundo sono!… prefácio em que o poeta demonstra adormecidas, garrafas vazias etc.
Tinha na mão o ferro do engomado…
grande consciência dos componen- Solfieri, Johann, Gennaro, Bertran,
Como roncava maviosa4 e pura!
Quase caí na rua desmaiado! tes estéticos de seu trabalho. Arnold e Herman resolvem, por des-
fastio, contar casos escabrosos e ver-
Afastei a janela, entrei medroso: LEMBRANÇA DE MORRER dadeiros que tivessem vivido.
Palpitava-lhe o seio adormecido… • Macário, de classificação pro-
Fui beijá-la… roubei do seio dela Eu deixo a vida como deixa o tédio
Um bilhete que estava ali metido…
blemática, oscila entre o teatro, o
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo diário íntimo e a narrativa. Satã e
Oh! decerto… (pensei) é doce página Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Penseroso dialogam no cemitério
Onde a alma derramou gentis amores! sobre os vícios e destinos da cidade
São versos dela… que amanhã decerto (...)
de São Paulo, veiculando as ideias do
Ela me enviará cheios de flores…
próprio poeta.
Descansem o meu leito solitário
Tremi de febre! Venturosa folha! Na floresta dos homens esquecida, • Conde Lopo e Poema do
Quem pousasse contigo neste seio! À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Frade são poemas narrativos, motiva-
Como Otelo5 beijando a sua esposa, — Foi poeta — sonhou — e amou na vida. dos diretamente pela emulação do
Eu beijei-a a tremer de devaneio…6
modelo byroniano.
É ela! é ela! — repeti tremendo, SPLEEN E CHARUTOS
Mas cantou nesse instante uma coruja… I ❑ Fagundes
Abri cioso7 a página secreta… SOLIDÃO Varela (1841-1875)
Oh! meu Deus! era um rol8 de roupa suja! Autor, dentre outras obras, de
Nas nuvens cor de cinza do horizonte
Vozes d’América, Cantos e Fan-
Mas se Werther morreu por ver Carlota9 A lua amarelada a face embuça 1;
Dando pão com manteiga às criancinhas, Parece que tem frio e, no seu leito, tasias, Cantos do Ermo e da Cidade
Se achou-a assim mais bela… eu mais te Deitou, para dormir, a carapuça 2. e Anchieta ou o Evangelho nas
[adoro Selvas, realizou uma síntese da
Sonhando-te a lavar as camisinhas! Ergueu-se… vem da noite a vagabunda3 poesia romântica, versando temas
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
que vão do indianismo de Gonçalves
Vem nua e bela procurar amantes…
A Laura, a Beatriz10 que o céu revela… É doida por amor da noite a filha. Dias ao condoreirismo de Castro
É ela! é ela! — murmurei tremendo, Alves, passando pela poesia gótica,
E o eco ao longe suspirou “é ela!”. (...) pelo satanismo, pelo patriotismo,
74 –
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pelo naturalismo e pela poesia CÂNTICO DO CALVÁRIO “Meus Oito Anos”, “Amor e Medo”,
religiosa. Foi um poeta de transição “Minha Terra”, “Minha Mãe”, além da
Eras na vida a pomba predileta
no Romantismo. Que sobre um mar de angústias conduzia “Canção do Exílio”, derivação imita-
Os temas roceiros e bucó- O ramo da esperança. — Eras a estrela tiva do poema homônimo de Gonçal-
licos (“Juvenília”, “A Roça”, “A Flor Que entre as névoas do inverno cintilava ves Dias.
do Maracujá”), ao lado da dualidade Apontando o caminho ao pegureiro1.
Eras a messe2 de um dourado estio. MEU LAR OU CANÇÃO DO EXÍLIO
cidade versus campo, natureza versus
Eras o idílio de um amor sublime.
civilização, constituem a parte mais Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
significativa de sua obra, sem esque- O porvir de teu pai! Ah! no entanto, Meu Deus! não seja já!
cer o “Cântico do Calvário”, elegia Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Pomba, — varou-te a flecha do destino!
Cantar o sabiá!
dedicada ao filho morto, obrigatória Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
em qualquer antologia romântica. Teto, — caíste! — Crença, já não vives!
Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu
[morro
A ROÇA (...)
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
O balanço da rede, o bom fogo
Vocabulário e Notas Os gozos do meu lar!
Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola, 1 – Pegureiro: guardador de gado; pastor.
2 – Messe: colheita. (...)
O cigarro, a modinha, o café;
AMOR E MEDO
Um robusto alazão, mais ligeiro ❑ Casimiro de
Do que o vento que vem do sertão,
Negras crinas, olhar de tormenta,
Abreu (1839-1860) Quando eu te fujo e me desvio cauto
Pés que apenas rastejam no chão. Poeta da saudade, do amor ado- Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
lescente, simples, espontâneo, comu- Contigo dizes, suspirando amores:
(...) “— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”
nicativo; sua poesia, muito popular,
ainda agrada aos que pedem pouco Como te enganas! meu amor é chama
A FLOR DO MARACUJÁ
à poesia. Essencialmente musical, Que se alimenta no voraz segredo,
(...)
Casimiro não tem maior complexida- E se te fujo é que te adoro louco…
Por tudo o que o céu revela! de filosófica e psicológica, e sua obra, És bela — eu moço; tens amor — eu
Por tudo o que a terra dá, acessível a qualquer leitor alfabetiza- [medo!…
Eu te juro que minh’alma do, versa sempre as pulsões eróticas (...)
De tua alma escrava está!…
da adolescência, oscilando entre o
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá! amor e o medo; as saudades da infân- MEUS OITO ANOS
Não se enojem teus ouvidos cia, da família e da pátria. Opera uma
De tantas rimas em – a – Oh! que saudades que tenho
“descida de tom” em relação a Gon-
Mas ouve meus juramentos, Da aurora da minha vida,
çalves Dias e a Álvares de Azevedo. Da minha infância querida
Meus cantos ouve, Sinhá!
Te peço pelos mistérios As Primaveras, reunião de suas Que os anos não trazem mais!
Da flor do maracujá! poesias, incluem os conhecidos (...)

As Gerações Românticas – Terceira Geração:


MÓDULO 19
Castro Alves

1. A TERCEIRA GERAÇÃO Representa o segmento liberal- E traz, volvendo após das praias cérulas1,
(Condoreira – Poesia Social – progressista da burguesia, que acre- — Um brilhante — o perdão!
A alma fica melhor no descampado…
Hugoana – Escola de Recife) dita no progresso, opondo-se à ten-
O pensamento indômito, arrojado
dência saudosista e regressiva, do- Galopa no sertão,
❑ Castro Alves (1847-1871) minante em nosso Romantismo. Qual nos estepes o corcel fogoso
Os temas que versou com maior Relincha e parte turbulento, estoso2,
Imbuído da concepção de poe- Solta a crina ao tufão.
frequência foram:
ta mediúnico (que escreve em tran- (Espumas Flutuantes, 1870)
• a poesia da natureza, explo-
se, que se acredita instrumento me-
rando o efeito plástico e sugestivo dos Vocabulário e Notas
diador entre as forças superiores, grandes planos (mar, infinito, ocea- 1 – Cérulo: da cor do céu.
Deus, o cosmos e os homens), colo- 2 – Estoso: ardente, febril.
no, vastidão, águias e albatrozes).
cou sua poesia a serviço da reforma … • a poesia erótica, de sen-
da sociedade e das grandes causas Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas sualidade forte e madura, viril, às
Leva a concha dourada… e traz das plagas
de seu tempo (Guerra do Paraguai, vezes galhofeira, conciliando o exer-
Corais em turbilhão,
Abolição, República). A mente leva a prece a Deus — por pérolas cício poético com a prática do amor.
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ADORMECIDA Só tem a rua de seu… A CRUZ DA ESTRADA


Ninguém vos rouba os castelos,
Uma noite, eu me lembro… Ela dormia Tendes palácios tão belos… Caminheiro que passas pela estrada,
Numa rede encostada molemente… Deixai a terra ao Anteu1. Seguindo pelo rumo do sertão,
Quase aberto o roupão… solto o cabelo Quando vires a cruz abandonada,
E o pé descalço do tapete rente. Vocabulário e Nota
Deixa-a em paz dormir na solidão.
1 – Anteu: gigante, filho de Posídon e de Geia
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste (Terra). Habitava na Líbia e obrigava todos
Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Exalavam as silvas1 da campina… os viajantes a lutar contra ele. Enquanto
estivesse em contato com sua mãe, era Que lhe atiras nos braços ao passar?
E ao longe, num pedaço do horizonte,
invencível. Vais espantar o bando buliçoso
Via-se a noite plácida e divina.
Das borboletas, que lá vão pousar.
De um jasmineiro os galhos encurvados, • o amor ao progresso e à
É de um escravo humilde sepultura,
Indiscretos entravam pela sala, liberdade:“O Livro e a América”, “O
E de leve oscilando ao tom das auras, Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Trem de Ferro”.
Iam na face trêmulos — beijá-la. Deixa-o dormir no leito de verdura,
• poesia de inspiração judai- Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.
Era um quadro celeste!… A cada afago
ca: “Hebreia”, “Ahasverus e o Gênio”.
Mesmo em sonhos a moça estremecia… • poesia abolicionista e hu- Não precisa de ti. O gaturamo1
Quando ela serenava… a flor beijava-a… manitária, momento mais expressivo Geme, por ele, à tarde, no sertão.
Quando ela ia beijar-lhe… a flor fugia… do condoreirismo nacional. Valendo-se E a juriti 2, do taquaral no ramo,
de metáforas ousadas, antíteses, hipér- Povoa, soluçando, a solidão.
Dir-se-ia que naquele doce instante boles e apóstrofes violentas, Castro
Brincavam duas cândidas crianças… Dentre os braços da cruz, a parasita,
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Alves confere dignidade estética ao
Num abraço de flores, se prendeu.
Fazia-lhe ondear as negras tranças!… tema social, em sua movimentada Chora orvalhos a grama, que palpita:
alocução. “O Navio Negreiro”, “Vozes Lhe acende o vaga-lume o facho seu.
E o ramo ora chegava, ora afastava-se… d’África”, “A Cruz da Estrada”, “A
Mas quando a via despertada a meio, Canção do Africano” são os poemas Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
P’ra não zangá-la… sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio…
mais expressivos nesse aspecto. A sepultura fala a sós com Deus.
Prende-se a voz na boca das cascatas,
O NAVIO NEGREIRO
Eu, fitando esta cena, repetia, E as asas de ouro aos astros lá nos céus.
(Tragédia no Mar)
Naquela noite lânguida e sentida:
(...) Caminheiro! do escravo desgraçado
“Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
Virgem! — tu és a flor de minha vida!…” Negras mulheres suspendendo às tetas O sono agora mesmo começou!
(Espumas Flutuantes, 1870) Magras crianças, cujas bocas pretas Não lhe toques no leito de noivado,
Rega o sangue das mães. Há pouco a liberdade o desposou.
Vocabulário e Notas Outras, moças… mas nuas, espantadas, (Castro Alves)
1 – Silva: designação comum a diversas No turbilhão de espectros arrastadas,
plantas da família das rosáceas; silveira, Vocabulário e Notas
Em ânsia e mágoa vãs.
sarça. 1 e 2 – Gaturamo e juriti: espécies de aves.
(…)
Senhor Deus dos desgraçados! ❑ Obra
• a poesia patriótica e de-
clamatória, “Ode ao Dous de
Dizei-me vós, Senhor Deus! Espumas Flutuantes, único livro
Se é loucura… se é verdade publicado em vida (1870), reúne poe-
Julho”, “Pedro Ivo”. Tanto horror perante os céus…
Ó mar! por que não apagas
sia lírica, patriótica, naturista, faltan-
O POVO AO PODER Co’a esponja de tuas vagas do apenas o tema do escravo negro,
A praça! A praça é do povo
De teu manto este borrão?… que surgirá nos livros póstumos (Os
Como o céu é do condor, Astros! noite! tempestades! Escravos, A Cachoeira de Paulo
É o antro onde a liberdade Rolai das imensidades!
Afonso). Deixou, ainda, o drama his-
Cria águias em seu calor. Varrei os mares, tufão!...
Senhor!… pois quereis a praça?
tórico sobre a Inconfidência: Gonza-
Desgraçada a populaça (…) ga, ou a Revolução de Minas.

MÓDULO 20 Prosa Romântica I – José de Alencar I


1. ROMANCE ROMÂNTICO dievais até o romance moderno. O romance projeta, nesse sen-
Assim, a epopeia clássica, as no- tido, o gosto do público burguês,
Narrar, contar uma história, é ativi- velas de cavalaria medievais, as fábu- emergente à condição de classe
dade que remonta aos primórdios da las, as histórias de terror, as aventuras dominante com a Revolução Fran-
literatura. Os gêneros literários de picarescas, o conto e o romance são cesa. Seu triunfo deveu-se ao
natureza basicamente narrativa sem- formas de narrar que se desdobram alargamento do público ledor
pre foram os mais difundidos, desde pelos diversos períodos históricos, re- (que, em grande parte, não tinha a
as histórias orais dos rapsodos gre- fletindo o gosto predominante em cada cultura necessária à compreensão da
gos e as das canções de gesta me- época. epopeia clássica e renascentista) e,

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especialmente, à abertura que o plexas e significativas, como o romance de Minas e Goiás (O Garimpeiro e
caracteriza, já que é um gênero histórico, o de costumes, o indianista, O Seminarista, de Bernardo Guima-
literário que possibilita inúmeras varia- os de perfis de mulher e o regionalista. rães) e o sertão e o Pantanal de
ções, abrigando a imaginação fértil Em linhas gerais, a ficção român- Mato Grosso (Inocência, do Viscon-
dos românticos e acolhendo os mais tica, apoiada no propósito naciona- de de Taunay).
variados temas e formas. lista de reconhecer e exaltar nossas O regionalismo romântico enfo-
Os primeiros romances editados paisagens e costumes, desdobrou-se cava aspectos exóticos e pitorescos,
no Brasil, ainda na década de 1830, em três direções: oscilando entre a idealização
marcam-se pelo predomínio do as- • O Passado (Alencar e Bernardo Guimarães) e o
pecto folhetinesco. O folhetim, publi- Por meio do romance histórico, realismo fotográfico (Taunay e
cado com periodicidade regular pela buscava-se na História e nas lendas Franklin Távora).
imprensa, equivale às atuais novelas heroicas a afirmação da nacionalida- José de Alencar, nosso primeiro
de televisão e confina com a subli- de. Na Europa, a Idade Média e as ficcionista de largo voo, exemplifica,
teratura. Essa modalidade apoia-se novelas de cavalaria ofereceram a um pelo conjunto de sua obra, quase todos
na complicação sentimental, na peri- Walter Scott (Ivanhoé) e a um Alexan- os tipos do romance romântico.
pécia, na aventura e no mistério; as dre Herculano (Eurico, o Presbítero) Manuel Antônio de Almeida, em Me-
personagens são lineares (herói/ as possibilidades para a reconsti- mórias de um Sargento de Milícias,
heroína x vilão); a narrativa centra-se tuição do clima, dos costumes e das afasta-se das convenções românti-
na tensão bem x mal e desdobra-se instituições da época medieval, per- cas, criando uma obra que destoa do
no sentido da punição do mal (inten- mitindo também largos voos da tom idealizador e heroico dos demais
ção moralizante); a história principal é imaginação e da fantasia. romancistas de sua época, para
enxertada com histórias secundárias O romancista não tem compro- aproximar-se da imparcialidade dos
e personagens ocasionais. Não há missos com a verdade histórica. narradores realistas, ao retratarem as
análise psicológica, embora se bus- Derivado do romance de “capa-e- classes sociais do Rio colonial.
que retratar a crise moral, fazendo espada” e do romance de mistério, o A narrativa era feita na 1.a pessoa
com que a personagem sinta seus romance histórico foi tomado como (subjetividade, emoção, confidência)
crimes e meça seu desespero, sus- substituto da epopeia clássica, mo- ou na 3.a pessoa (objetividade),
pendendo por um instante o fluxo dos delando heróis nacionais, calcados conforme a natureza do assunto. Em
acontecimentos. nos valores coletivos. qualquer caso, projetava sempre os
O folhetim (romance publicado No Brasil, os índios de Alen- sentimentos e a ideologia do autor,
em capítulos, diariamente, nos jornais, car (O Guarani, Iracema e Ubirajara) que impunha ao leitor os seus comen-
semelhante às telenovelas atuais) são transformados em cava- tários e reflexões.
gozou de grande popularidade, leiros medievais, vistos como A linguagem era bastante retó-
distraindo as donzelas casadoiras e símbolos e elementos formadores da rica, apoiando-se em imagens e com-
as vovozinhas. Captava os costumes nacionalidade, substituindo a Idade parações, em adjetivos sonoros e co-
da época, exteriorizando uma visão Média que não tivemos. loridos. As descrições tendiam
superficial da vida: saraus, passeios a • A Cidade ao grandioso e eram enriquecidas
cavalo, namoricos, fofocas, histórias Com o romance urbano e de pela notação da cor, da forma e da
de amor à base do “não-ata-nem- costumes, retrata-se a vida da corte, musicalidade, em correlação com os
desata”, sem mostrar a essência no Rio de Janeiro do século XIX, estados d’alma ou com as situações
alienada desse mundo e sem pene- fotografando-se, com alguma fidelida- dramáticas.
trar nas intenções escusas e nos de, costumes, cenas, ambientes e
desejos inconfessáveis, escondidos tipos humanos da burguesia carioca. 2. TEIXEIRA E SOUSA
sob a máscara risonha das amenida- As personagens caracterizam-se
des e da hipocrisia. por meio de atos, gestos, diálogos, De origem humilde, mulato, car-
Teixeira e Sousa e Joaquim Ma- roupas. Em Macedo (A Moreninha) pinteiro, foi, cronologicamente,
nuel de Macedo foram os iniciadores não há nenhum aprofundamento nosso primeiro romancista, com
do romance folhetinesco, cujo suces- psicológico, mas em Alencar (Diva, O Filho do Pescador, publicado em
so se prolongou até os nossos dias, Lucíola, Senhora) se encontram suti- 1843.
nas radionovelas, fotonovelas e na lezas devidas a um fino entendedor Representa cabalmente o gênero
subliteratura das Sabrinas, Júlias e da sensibilidade feminina. folhetinesco. Deixou obra volumosa e
Bárbaras Cartlands. Mesmo autores • O Regionalismo de qualidade inferior, incursionando
respeitáveis, como Alencar (Cinco Volta-se para o campo, para a pro- também pelo romance histórico e pelo
Minutos, A Viuvinha e A Pata da Ga- víncia e para o sertão, num esforço de mistério.
zela), empenharam seu talento em nacionalista de reconhecer e exaltar a
produzir folhetins, atraídos pelo suces- terra e o homem brasileiro, acentuando 3. JOAQUIM MANUEL
so perante o público e pelo ganha-pão as particularidades de seus costumes DE MACEDO (1820-1882)
seguro do emprego na imprensa. e ambientes. Buscou-se retratar o
Mas nem só de folhetins se ali- Nordeste (O Sertanejo, de Alencar, e Qualitativamente, foi o nosso
mentou a ficção romântica. Houve vá- O Cabeleira, de Franklin Távora), o primeiro romancista, inaugurando
rias outras modalidades mais com- - Sul (O Gaúcho, de Alencar), o sertão o romance urbano com A Moreninha
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(1844). Foi médico, político, professor, e • o período pré-cabralino (Ubi- do de defesa de um uso brasileiro da
seus romances sentimentais e mo- rajara); língua portuguesa, escreveu Alencar:
ralistas gozaram de grande popula- • os primeiros contatos entre o “Como pode um povo que chupa a
ridade. Escrevia para o gosto do leitor índio e o colonizador nos séculos XVI manga, o abacaxi e o cambucá falar
da época, apoiando-se nas tramas e XVII (Iracema e O Guarani ); como um povo que sorve a uva, a
complicadas, intrigas, mistérios, mal- • a colonização (A Guerra dos pera e a nêspera?”.
entendidos, que acabavam sempre Mascates, As Minas de Prata); Enriqueceu a nossa língua literária
com a vitória do verdadeiro amor • o presente, a vida urbana no de inúmeros brasileirismos, aprovei-
(happy end ) e com a punição do vilão. século XIX, em todos os romances tando vocábulos, expressões e um
Escreveu romances, novelas, tea- urbanos. fraseado tipicamente nacionais, dan-
tro, poesia, crônica, reunidos em mais No plano étnico, o índio e o do à frase um meneio, uma cadência
de 40 volumes. Na ficção, além de A branco alternam-se como heróis, tropical. Suas imagens e metáforas
Moreninha, deixou O Moço Loiro, modelados na honradez e galanteria utilizam com beleza e entusiasmo a
Mulheres de Mantilha (seus livros mais dos cavaleiros medievais: Peri, Poti, fauna e a flora do país.
conhecidos) e outras obras, que repro- Jaguarê, D. Antônio Mariz e seus Além do vigor descritivo e da jus-
duzem sempre os mesmos esquemas cavaleiros, Arnaldo Louredo, Manuel teza com que “pinta” a paisagem
folhetinescos das obras iniciais, sem Caño. Alencar omite a violência de humana e a natureza, apoiado em
qualquer evolução. que o índio foi vítima, indiscrimina- metáforas que ressaltam o colorido,
Sua obra vale como documento dos damente; assim, os brancos honra- fundindo a realidade humana e a
costumes da corte no século XIX, dos, na visão alencariana, irmana- paisagem, Alencar desenvolveu
retratando a vida doméstica e social da ram-se com os índios na construção da um contínuo esforço no sen-
burguesia da época. Há, pois, algum nacionalidade, que o romancista idea- tido analítico e crítico, aprofun-
realismo no registro que acompanha as lizava morena, mestiça, resultado da dando a dimensão psicológica
tramas sentimentais e idealistas. integração da natureza (índio) com a de suas personagens, especial-
A linguagem oscila entre o uso civilização (branco). mente em Lucíola e Senhora. Ten-
coloquial, nos diálogos que são muito O negro aparece como persona- tando compreender as desarmonias e
vivos, e o português academizante gem no teatro, em O Demônio Familiar estranhezas da conduta e desmas-
(por vezes rebuscado), nas digres- e no dramalhão Mãe, cabendo lembrar carar e denunciar certos aspectos
sões e nas descrições. que, fiel à sua posição política profundos da realidade humana e
A trama de A Moreninha centra-se conservadora e à sua origem rural e social, Alencar foi, sem embargo
na fidelidade ao amor infantil, envol- aristocrática, Alencar foi contra a da idealização romântica, um
vendo o par amoroso Augusto e Caro- abolição do regime escravagista. modesto precursor de Machado
lina, a moreninha. Entre patuscadas É sempre com desprezo e irritação de Assis.
dos estudantes de Medicina (Augusto, que Alencar observa os costumes urba-
Leopoldo, Felipe, Fabrício), saraus, nos de seu tempo, bem como a vida ❑ Evolução
partidas de gamão, intrigas, fofocas, da burguesia. A atitude do autor da obra alencariana
situações cômicas ou dramáticas, o diante da vida urbana é sempre • Primeira fase (1856-1864)
casal acaba por concretizar o jura- saudosista, regressiva e res- Alencar iniciou-se publicando crô-
mento de amor que fizera na infância. sentida. Ao condenar a cidade, a saí- nicas na imprensa carioca, mais tar-
da que Alencar entrevê é puramente de reunidas em Ao Correr da Pena
4. JOSÉ DE sentimental: o retorno à natureza, ao (1856). Ganha notoriedade nesse mes-
ALENCAR (1829-1877) índio, ao sertão, aos campos. mo ano, travando áspera polêmica
A intuição nacionalista de Alencar acerca do poema épico pseudo-
❑ Características levou-o a inventar uma imensa saga indianista A Confederação dos Ta-
Consolida o romance nacional, brasileira, fundando, bem ou mal, uma moios, de Gonçalves de Magalhães.
compondo um verdadeiro painel do mitologia mestiça, colossal e telúrica, Já havia publicado A Viuvinha, sem
Brasil que abrange todas as latitudes, uma verdadeira sinfonia americana. nenhuma repercussão, quando, em
todos os períodos históricos e todos Os índios e super-heróis inscre- 1857, publica O Guarani, que lhe traz
os grupos étnicos e regionais. vem-se nesse propósito de criar uma rápida notoriedade. São dessa fase,
No plano do espaço, abrange: literatura nacional com arquétipos, e o entre outros, Lucíola, Diva, As Minas
• o sertão do Nordeste (O Serta- entusiasmo com que Alencar mergu- de Prata e Iracema (1865), além das
nejo); lhou nesse trabalho verdadeiramente peças de teatro.
• o litoral cearense (Iracema); enciclopédico explica os erros de • Segunda fase (1866-1869)
• o pampa gaúcho (O Gaúcho); História e Geografia e os exageros Envolvido na política (deputado,
• a zona rural (Til ); imaginativos, que lhe valeram inúme- ministro da justiça, candidato rejeita-
• a zona da mata fluminense (O ras críticas e zombarias. do a senador), deixou, nessa fase, os
Tronco do Ipê); Ainda o nacionalismo inspirou a escritos políticos intitulados Cartas de
• a cidade, a corte no Rio (Diva, luta que Alencar empreendeu em Erasmo.
Lucíola, Senhora) e demais romances defesa do português falado no • Terceira fase (1870-1875)
urbanos. Brasil, liberto do rigor das gramá- Abandonando a política e o tea-
No plano do tempo, abarca: ticas e dicionários lusitanos. No senti- tro, desgostoso e retraído, entrou em
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nova fase criadora, publicando cerca Na realidade, se episódios da colonização frases solenes, e vinha embeber-se no seu
de dez livros (entre outros, O Gaúcho, do Brasil nos albores do século XVII constituem coração, que se abria para recebê-la.
o entrecho da obra, o protagonista é um índio, A água subindo molhou as pontas das
Ubirajara, Senhora e O Sertanejo),
Peri, elevado à categoria de autêntico herói largas folhas da palmeira, e uma gota, resva-
além do romance póstumo Encar- romântico. Logo depois que Filipe ll da Espanha lando pelo leque, foi embeber-se na alva cam-
nação e da autobiografia Como e por ocupa o trono de Portugal, D. Antônio de Mariz, braia das roupas de Cecília.
que Sou Romancista. fidalgo da velha estirpe portuguesa, fiel à sua A menina, por um movimento instintivo de
pátria, prefere instalar-se no interior do Brasil a terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse
❑ Divisão da obra de Alencar servir à Coroa estrangeira. Com sua família e momento supremo, em que a inundação abria a
alguns homens de armas, inicia a formação de fauce enorme para tragá-los, murmurou
a) Romances indianistas (for- uma fazenda à margem do Rio Paquequer, docemente:
mação da nacionalidade; anteceden- afluente do Paraíba. De um acidente resulta a — Meu Deus!... Peri!...
tes aborígines): morte de uma índia de uma tribo aimoré, que Então passou-se sobre esse vasto deserto
– O Guarani passa por isso a hostilizar os brancos de água e céu uma cena estupenda, heroica,
colonizadores. D. Antônio de Mariz conta com a sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma
– Iracema amizade de Peri, jovem guerreiro goitacá, de sublime loucura.
– Ubirajara nobres instintos e extrema bravura. O selvagem Peri alucinado suspendeu-se aos cipós
b) Romances históricos (bos- devotava a Cecília, a filha do fidalgo, uma que se entrelaçavam pelos ramos das árvores
quejos históricos e crônicas roman- adoração quase religiosa e por isso estendia já cobertas de água e, com esforço deses-
sua proteção providencial a toda a família. perado, cingindo o tronco da palmeira nos seus
ceadas dos tempos coloniais): Depois de inúmeros acidentes e peripécias, em braços hirtos, abalou-o até as raízes.
– As Minas de Prata que se destaca a ação de Peri, conjurando Três vezes os seus músculos de aço,
– Alfarrábios perigos advindos não só dos indígenas inimi- estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e
– A Guerra dos Mascates gos, mas também do vilão Loredano e seus três vezes o seu corpo vergou, cedendo à
asseclas, dissimulados entre os “aventureiros” retração violenta da árvore, que voltava ao lugar
c) Romances regionalistas
que serviam a D. Antônio, este, esgotadas as que a natureza lhe havia marcado.
(a pátria brasileira; a sociedade rural): possibilidades de resistência, pede a Peri que Luta terrível, espantosa, louca, esvairada;
– O Gaúcho salve Cecília, levando-a para a Corte, enquanto luta da vida contra a matéria; luta do homem
– O Sertanejo faz explodir sua casa, a fim de evitar o trucida- contra a terra; luta da força contra a imobilidade.
mento de todos pelos selvagens. O final do ro- Houve um momento de repouso em que o
– Til
mance, com a palmeira arrastada pelas águas homem, concentrado todo o seu poder,
– O Tronco do Ipê da enchente e abrigando na sua copa os dois estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto
d) Romances urbanos (roman- seres de raças diferentes, é um símbolo feliz da foi terrível; e pareceu que o corpo ia despe-
ces de complicação sentimental, perfis futura população do Brasil. (R. M. Pinto, in Pe- daçar-se nessa distensão horrível.
de mulher e quadros da sociedade): queno Dicionário de Literatura Brasileira, Cultrix.) Ambos, árvore e homem, embalançaram-
se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes
– Cinco Minutos desprenderam-se da terra já minada profunda-
– A Viuvinha TEXTO I
mente pela torrente.
– A Pata da Gazela Peri compreendera o gesto da índia; não A cúpula da palmeira, embalançando-se
– Sonhos d’Ouro fez, porém, o menor movimento para segui-la. graciosamente, resvalou pela flor da água
Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu. como um ninho de garças ou alguma ilha flu-
– Encarnação tuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Por sua vez a menina também compreen-
– Diva Peri estava de novo sentado junto de sua
deu a expressão daquele sorriso e a resolução
– Lucíola firme e inabalável que se lia na fronte serena do senhora quase inanimada: e, tomando-a nos
– Senhora prisioneiro. braços, disse-lhe com um acento de ventura
Insistiu por algum tempo, mas debalde. suprema:
Peri tinha atirado para longe o arco e as — Tu viverás!...
Antologia de Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo
flechas e, recostando-se ao tronco da árvore,
José de Alencar conservava-se calmo e impassível. junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o
De repente o índio estremeceu. enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
O GUARANI Cecília aparecera no alto da esplanada e — Sim?... murmurou ela; viveremos!... lá
lhe acenara; sua mãozinha alva e delicada no céu, no seio de Deus, junto daqueles que
agitando-se no ar parecia dizer-lhe que espe- amamos!...
Publicado primeiramente em fo-
rasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de O anjo espanejava-se para remontar ao
lhetins no Diário do Rio de Janeiro, em berço.
sua senhora, apesar da distância, brilhar um raio
1857, O Guarani foi o desdobramento de felicidade. — Sobre aquele azul que tu vês, continuou
da polêmica de Alencar com Gon- (O Guarani, cap. II) ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que
çalves de Magalhães sobre a criação o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com
de uma verdadeira epopeia nacional. TEXTO II tua irmã, sempre...!
O livro procura ser a resposta de Alen- Ela embebeu os olhos nos olhos do seu
Epílogo amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
car ao problema que tanto preocupou O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
os escritores que estabeleceram o (...) Fez-se no semblante da virgem um ninho
Romantismo entre nós. Alencar afasta- Peri tinha falado com o tom inspirado que de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios
se da épica tradicional: não escreve dão as crenças profundas; com o entusiasmo abriram como as asas purpúreas de um beijo
em verso, como Magalhães, mas em das almas ricas de poesia e sentimento. soltando o voo.
Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a A palmeira arrastada pela torrente impe-
prosa, e sua narrativa filia-se ao uma as suas palavras, como se fossem as tuosa fugia...
gênero mais em voga naquela época: partículas do ar que respirava; parecia-lhe que E sumiu-se no horizonte.
o romance — no subgênero romance a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, (O Guarani )
histórico de aventuras. se desprendia do seu corpo em cada uma das

– 79
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FRENTE 2 Literatura

MÓDULO 21 Prosa Romântica II – José de Alencar II

1. O ROMANCE URBANO Antologia


q Senhora
Publicado em 1875, é o terceiro TEXTO I
da série “perfis de mulher”. A per-
sonagem principal é Aurélia Camar- (...)
Na sala, cercada de adoradores, no meio
go, rainha dos salões cariocas na das esplêndidas reverberações de sua
época do Segundo Reinado. Herdei- beleza, Aurélia, bem longe de inebriar-se da
ra repentina de um avô que desco- adoração produzida por sua formosura e do
culto que lhe rendiam, ao contrário parecia
nhecia, passa da pobreza a uma
unicamente possuída de indignação por essa
existência de fausto social. Toda a turba vil e abjeta. Um funcionário a passeio com sua famí-
intriga gira em torno do tema do Não era um triunfo que ela julgasse digno
de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua
lia, em tela de Debret.
casamento por interesse, por meio
riqueza. Era um desafio, que lançava ao
do contrato e dote, fato comum na mundo, orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, TEXTO II
época. Aurélia enquanto pobre so- como a um réptil venenoso.
frera amarga decepção ao ver E o mundo é assim feito; que foi o fulgor
satânico da beleza dessa mulher a sua maior Aurélia passava agora as noites solitária.
Fernando Seixas, por quem se ena- Raras vezes aparecia Fernando, que ar-
sedução. Na acerba veemência da alma revol-
morara, afastar-se diante do aceno ta, pressentiam-se abismos de paixão, e entre- ranjava uma desculpa qualquer para justificar
de um dote de trinta contos de réis, via-se que procelas de volúpia havia de ter o sua ausência. A menina, que não pensava em
quando ela de nada dispunha. Jurou amor da virgem bacante. interrogá-lo, também não contestava esses
Se o sinistro vislumbre se apagasse de fúteis inventos. Ao contrário, buscava afastar
vingar-se e ao receber a herança da conversa o tema desagradável.
súbito, deixando a formosa estátua na penum-
manda sigilosamente oferecer ao ex- bra suave da candura e inocência, o anjo Conhecia a moça que Seixas retirava-lhe
noivo a quantia de cem contos de casto e puro que havia naquela, como há em seu amor; mas a altivez de coração não lhe
réis para um casamento com moça todas as moças, talvez passasse desperce- consentia queixar-se. Além de que, ela tinha
bido pelo turbilhão. sobre o amor ideias singulares, talvez inspira-
desconhecida. Fernando repeliu As revoltas mais impetuosas de Aurélia das pela posição especial em que se achara
inicialmente a oferta, mas, neces- eram justamente contra a riqueza que lhe servia ao fazer-se moça.
sitando de dinheiro, aceitou-a, com a de trono e sem a qual nunca, por certo, apesar (Senhora, cap. VI)
condição de receber vinte contos de de suas prendas, receberia como rainha
desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam.
réis em adiantamento. Na noite de q Lucíola
Por isso mesmo considerava ela o ouro
núpcias, é recebido com desprezo, um vil metal que rebaixava os homens; e no Neste romance, Alencar desen-
sofrendo a humilhação de encarar o íntimo sentia-se profundamente humilhada volve um tema romântico que moti-
pensando que, para toda essa gente que a vou, e ainda motiva, muita paixão. É
recibo da sua compra em posse de
cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma o tema da “boa prostituta”, que se
Aurélia. Um ano depois, consegue, só das bajulações que tributavam a cada um
graças a um negócio antigo, receber de seus mil contos de réis. redime de seu “pecado” por meio do
a quantia de vinte contos que Nunca da pena de algum Chatterton amor sincero de um belo jovem, que
desconhecido saíram mais cruciantes apóstro- a ama, mas que a sociedade tentará
entrega à mulher para compra de fes contra o dinheiro, do que vibrava muitas afastar dela. Ela é Lúcia, meretriz de
sua liberdade. Aurélia pede-lhe que vezes o lábio perfumado dessa feiticeira meni-
singular nobreza de caráter, inspi-
fique, pois o seu procedimento fizera na, no seio de sua opulência.
Um traço basta para desenhá-la sob esta rada na Marguerite da peça A Dama
com que se redimisse de toda a ve- das Camélias, de Alexandre Dumas
face.
nalidade [venal é quem se vende] e Convencida de que todos os seus inúme- Filho; ele é Paulo Silva, um jovem
infâmia. O romance retrata os hábitos ros apaixonados, sem exceção de um, a promissor, de boa família, inspirado
e vícios da sociedade fluminense da pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia
reagia contra essa afronta, aplicando a esses
no Alfredo da mesma peça. Aqui, co-
época, influenciada pelos hábitos mo em Senhora, Alencar, romantica-
indivíduos o mesmo estalão.
europeus e em vias de formação Assim costumava ela indicar o mereci- mente, apresenta o amor como ope-
urbana. Com uma narrativa comple- mento relativo de cada um dos pretendentes, rador de mudanças comportamen-
xa para o romance da época, é dos dando-lhes certo valor monetário. Em lingua- tais nas pessoas — mudanças que
gem financeira, Aurélia cotava os seus adora-
melhores livros de José de Alencar. dores pelo preço que razoavelmente poderiam
trazem purificação, redenção, eleva-
(A. Coutinho, Enciclopédia de Litera- obter no mercado matrimonial. ção. No jogo de “pecado”, “pureza”,
tura Brasileira, MEC) (Senhora, cap. I) sexo e convenções sociais, revela-se
– 41
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a concepção moral de Alencar, que que significa, na sua língua, “filho da


exprime o moralismo da parcela con- dor”. Martim enterra o corpo da espo-
servadora da sociedade de seu tem- sa e parte, levando o filho e a sauda-
po. de da fiel companheira. (R. M. Pinto,
in Pequeno Dicionário de Literatura
TEXTO III Brasileira, Cultrix.)
Iracema, por sua linguagem su-
Um embaraço imprevisto, causado por gestiva e delicada, é um verdadeiro
duas gôndolas1, tinha feito parar o carro. A
poema em prosa. A narrativa procura
moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça
para olhar-me e sorriu. Qual é a mulher bonita Iracema, de Antônio Parreiras (1869- representar, miticamente, o surgimen-
que não sorri a um elogio espontâneo e um 1937), inspirado na personagem homô- to da nacionalidade brasileira pelo
grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos nima de José de Alencar. Iracema, “lenda contato da terra virgem (Iracema é a
lábios, sorri no coração. do Ceará”, metaforiza a formação de uma
Durante que se desimpedia o caminho,
“virgem dos lábios de mel”) com o
nova raça, morena, mestiça, tropical, uma europeu civilizado. Quanto a este
tínhamos parado para melhor admirá-la; e
utopia romântica e nacionalista, revestida
então ainda mais notei a serenidade de seu sentido simbólico, já foi notado que o
olhar que nos procurava com ingênua curiosi-
de um intenso lirismo e alta poesia.
nome Iracema é um anagrama de
dade, sem provocação e sem vaidade. O carro
partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto q Resumo América (anagrama é palavra forma-
dos cavalos por algum tempo sofreados, que a Numa atmosfera lendária, de exó- da pela transposição das letras de
moça assustou-se e deixou cair o leque. Apres- tica e delicada poesia, desenrola-se a outra palavra).
sei-me e tive o prazer de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe história triste dos amores de Martim,
primeiro colonizador português no Cea- TEXTO IV
a ponta dos dedos presos na luva de pelica.
Bem vê que tive razão assegurando-lhe que rá, e Iracema, a jovem e bela índia taba-
não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; Além, muito além daquela serra, que
jara, filha de Araquém, pajé da tribo.
agradeceu-me com um segundo sorriso e uma ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso Martim saíra à caça com seu amigo Iracema, a virgem dos lábios de mel, que
desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer Poti, guerreiro pitiguara, e perdera-se tinha os cabelos mais negros que a asa da graú-
ao meu companheiro: do companheiro, indo ter aos campos na e mais longos que seu talhe de palmeira.
— Esta moça não é feliz! O favo da jati não era doce como seu
dos inimigos dos tabajaras. Encontra
— Não sei; mas o homem a quem ela sorriso; nem a baunilha recendia no bosque
amar deve ser bem feliz! Iracema, que o acolhe na cabana de como seu hálito perfumado.
Nunca lhe sucedeu, passeando em nos- Araquém, enquanto volta Caubi, seu Mais rápida que a ema selvagem, a
sos campos, admirar alguma das brilhantes irmão, que reconduziria o guerreiro morena virgem corria o sertão e as matas do
parasitas que pendem dos ramos das árvores, Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da
abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao co-
branco, são e salvo, às terras piti-
grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal
lher a linda flor, em vez da suave fragrância guaras. Iracema, porém, apaixona-se roçando, alisava apenas a verde pelúcia que
que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de por Martim, traindo o “segredo da jure- vestia a terra com as primeiras águas.
torpe inseto que nela dormiu, não a atirou com ma”, que guardava como “virgem de Um dia, ao pino do sol, ela repousava em
desprezo para longe de si? um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
É o que se passava em mim quando
Tupã” [Iracema entrega-se sexualmen- sombra da oiticica, mais fresca do que o
essas primeiras recordações roçaram a face te a Martim, inebriados ambos pela orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
da Lúcia que eu encontrara na Glória. Voltei-me droga cujo segredo ela deveria pre- esparziam flores sobre os úmidos cabelos.
no leito para fugir à sua imagem e dormi. servar]. Acompanha o esposo, deixan- Escondidos na folhagem os pássaros ameiga-
(Lucíola, cap. II) vam o canto.
do na sua tribo um ambiente de revol- (...)
Vocabulário e Notas ta, acirrado pelos ciúmes de Irapuã, Rumor suspeito quebra a doce harmonia
1 – Gôndola: carro puxado por burros. destemido chefe tabajara. Desenca- da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol
deia-se a guerra de vingança, e os não deslumbra; sua vista perturba-se.
2. O ROMANCE INDIANISTA Diante dela e todo a contemplá-la, está um
tabajaras são derrotados; Iracema con- guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum
q Iracema funde as venturas do amor com as mau espírito da floresta. Tem nas faces o bran-
Iracema é um romance lírico que amargas tristezas que despertam os co das areias que bordam o mar, nos olhos o
desenvolve uma antiga lenda sobre a campos juncados de cadáveres de azul triste das águas profundas. Ignotas armas
e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
colonização do Ceará, terra do autor. seus irmãos. Ao remorso e saudade Foi rápido, como o olhar, o gesto de Irace-
A ação, centrada no encontro/desen- outra dor se lhe acrescenta: o arrefe- ma. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de
contro entre o europeu e o nativo cimento do amor de Martim que, para sangue borbulham na face do desconhecido.
brasileiro, envolve a rivalidade entre amenizar a nostalgia da pátria distan- De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu
sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O
as tribos tabajara e pitiguara. Martim te, ausentava-se em longas e demo- moço guerreiro aprendeu na religião de sua
é europeu, branco e civilizado; Irace- radas jornadas. Num dos seus regres- mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e
ma, a bela selvagem tabajara que sos, encontra Iracema às portas da amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no
foge com ele para o litoral, repre- morte, exausta pelo esforço que fize-
rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de
senta a América virgem e ingênua, ra para alimentar o filhinho recém-nas- si o arco e a uiraçaba e correu para o guer-
cativa e dominada. cido, a quem dera o nome de Moacir, reiro, sentida da mágoa que causara.

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A mão que rápida ferira estancou mais q Visconde de Taunay q Franklin Távora
rápida e compassiva o sangue que gotejava. (1843-1899) (1842-1888)
Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
deu a haste ao desconhecido, guardando
Engenheiro militar, participou da Foi o mais radical e coerente dos
consigo a ponta farpada. Guerra do Paraguai, tendo oportuni- regionalistas românticos, propondo
dade de observar a paisagem e os uma literatura do Norte, distinta da
(Iracema, cap. II)
costumes do sertão e do Pantanal do Sul, fundada na realidade local
Mato-Grossense, que retrata de ma- vivida e observada, apoiada em uma
3. O ROMANCE REGIONALISTA neira objetiva, “realista”, em Inocência, atitude documental com relação à
OU SERTANEJO considerado o melhor romance que o História, à Geografia e aos proble-
regionalismo romântico produziu. Em mas humanos da região açucareira
q Bernardo Guimarães A Retirada da Laguna compôs um do Nordeste. Foi, nesse sentido, pre-
(1825-1884) relato histórico-documental desse cursor, entre outros, de Domingos
Trouxe a paisagem do sertão de episódio da Guerra do Paraguai. Olímpio, Manuel de Oliveira Paiva,
Minas Gerais e de Goiás, fundindo a Aproxima-se do Realismo, no Euclides da Cunha, Rachel de Quei-
idealização romântica e a descrição sentido da fidelidade fotográfica com roz, José Lins do Rego, José Américo
da paisagem cheia de adjetivos com que fixa a natureza e os costumes da de Almeida, Graciliano Ramos,
os elementos tomados à narrativa região mato-grossense. Mas o enre- ficcionistas comprometidos com a
oral, na base do contador de casos. do, a trama, é ainda romântico. (Ino- paisagem nordestina.
Escreveu o primeiro romance cência reproduz um dos clichês mais Atacou duramente o idealismo e
regionalista brasileiro: O Ermitão de usados no Romantismo — história de a imaginação de José de Alencar
Muquém (1858). amor com desfecho trágico, provo- nas Cartas a Cincinato. Sua obra,
O Ermitão de Muquém e O Semi- cado pela autoridade paterna, pela ainda que vazada em um estilo
narista são romances de tese contra intriga e pela atuação do vilão.) sóbrio e bem-ordenado, é inconve-
o celibato clerical e a vocação força- Em Inocência, Pereira simboliza niente.
da, inspirados no Monasticon, do a noção de honradez do sertanejo, Em O Cabeleira focaliza o bandi-
romancista romântico português Ale- intransigente e anacrônica. Inocên- tismo e a violência, personificados no
xandre Herculano (Eurico, o Presbíte- cia personifica a beleza submissa, bandido José Gomes que, arrastado
ro e O Monge de Cister). meiga e singela. Manecão repre- ao crime pela sociedade e por seu
Com A Escrava Isaura, antecipa senta a mentalidade rústica e vio- próprio pai, regenera-se pelo amor
o filão abolicionista, apesar dos exa- lenta do vaqueiro. Cirino, curandeiro, de uma donzela que tentara violentar
geros de idealização (Isaura, escrava caracteriza um tipo regional. O e na qual reconhece a companheira
branca, que fala francês e toca cientista alemão Mayer, hóspede de de infância que amava. O Matuto e
piano) e da fragilidade do enredo Pereira, expressa, dentro do ro- Lourenço reconstituem episódios da
folhetinesco. Em Maurício, ou Os mance, a visão europeia e “civiliza- Guerra dos Mascates (1710/1711,
Paulistas em São João Del Rei, rea- da” do sertão. A fidelidade na carac- entre Recife e Olinda), também apro-
liza romance histórico, tematizando a terização dos costumes e do modo veitados por Alencar. Louva-se o
descoberta e exploração do ouro. O de pensar do sertanejo e a repro- equilíbrio das descrições dos costu-
Garimpeiro focaliza a paisagem dos dução do falar regional são peças mes regionais nordestinos em Um
garimpos da região de Araxá (MG). fundamentais do romance. Casamento no Arrabalde.

MÓDULO 22 Manuel Antônio de Almeida


1. MANUEL ANTÔNIO DE q Vida e obra descrições pomposas, o apego ao
ALMEIDA (1831-1861) Memórias de um Sargento de concreto imediato, a presença das
Milícias, seu único romance, apare- camadas populares (trabalhadores
ceu em folhetim publicado no suple- braçais, malandros, vadios), a ausên-
mento dominical “A Pacotilha”, do cia de heróis e vilões e a imparciali-
Correio Mercantil, entre junho de dade do narrador fizeram das Memó-
1852 e julho de 1853, sob o pseu- rias uma obra excêntrica em relação à
dônimo “Um Brasileiro”. corrente formada pela ficção idea-
Médico (não exerceu a profissão), lizadora, galante, heroica e sentimen-
jornalista, diretor da Tipografia Nacio- tal, tão ao agrado do leitor da época.
nal, Manuel Antônio de Almeida pare- Como Memórias fugisse à tipicidade
ce não ter tido pretensões à carreira da ficção romântica, não obteve êxito
literária, embora revele inegável talen- no tempo em que foi publicado.
Manuel
Antônio to na pequena obra-prima que deixou. A crítica mais recente tirou-o da
de O estilo despretensioso, a lingua- vala comum das obras menores, ven-
Almeida gem coloquial direta, a ausência de do nele antecipações de Machado de
– 43
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Assis e Lima Barreto, ao retratar o coti- faltou a proteção da madrinha, tudo em todos os seus níveis, com
diano carioca, e de Mário de Andrade, tem “conclusão feliz”: promoção a transgressões da lei cometidas
pelo humor e pelo cinismo que fazem sargento de milícias e casamento até pelas altas figuras que têm o
do protagonista, Leonardo, um ances- com Luisinha. (A. S. Amora, verbete dever de zelar pelo respeito à lei.
tral de Macunaíma, na mais legítima “Memórias de um Sargento de Milí-
linhagem do malandro nacional, do cias”, in Pequeno Dicionário de Lite- Antologia
“herói sem nenhum caráter”. ratura Brasileira, Cultrix.)
Como Macunaíma, Leonardo é um
anti-herói, com características de píca- TEXTO I
ro (tipo vadio, que vive ao sabor do
acaso). Bastardo, “filho de uma pisa- Era no tempo do rei.
dela e de um beliscão”, Leonardo en- Uma das quatro esquinas que formam as
carna um amoralismo relacionado com ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo — O
a necessidade de sobrevivência,
canto dos meirinhos1 —; e bem lhe assentava
fome e toda sorte de sujeições que o nome, porque era aí o lugar de encontro favo-
oprimem as camadas populares. rito de todos os indivíduos dessa classe (que
Memórias de um Sargento de Mi- gozava então de não pequena consideração).
lícias, escrito no reinado de D. Pedro II, Os meirinhos de hoje não são mais do que a
sombra caricata dos meirinhos do tempo do
refere-se ao período de D. João VI,
Uniforme militar, em desenho de Debret rei; esses eram gente temível e temida, respei-
fase de transição entre a condição tável e respeitada; formavam um dos extremos
colonial e a independência. As festas da formidável cadeia judiciária que envolvia
populares, a arraia-miúda (saloias, q Características todo o Rio de Janeiro no tempo em que a
meirinhos, parteiras, barbeiros, deso- Resumindo e esquematizando, demanda era entre nós um elemento de vida: o
extremo oposto eram os desembargadores. Ora,
cupados etc.), as mazelas, o jeitinho as características principais das Me- os extremos se tocam, e estes, tocando-se,
e o empreguismo são retratados mórias de um Sargento de Milícias fechavam o círculo dentro do qual se pas-
direta e objetivamente, distorcidos são as seguintes: savam os terríveis combates das citações, pro-
apenas pelo tom galhofeiro e bem- • semelhança voluntária com o varás2 , razões principais e finais e todos esses
humorado do narrador que, divertido, estilo da crônica histórica, assumi- trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
desmascara os mecanismos de uma do em tom irônico e crítico;
sociedade minada pela hipocrisia e • filiação à tradição do romance pi- (Memórias de um Sargento
pelo falso moralismo. caresco, por centrar-se nas aven- de Milícias, cap. I)
turas de um herói de posição social
q Resumo inferior, a partir do qual se traça um Vocabulário e Notas
1 – Meirinho: antigo funcionário judicial, cor-
As Memórias são uma narrativa retrato da sociedade em seus diver- respondente ao oficial de justiça de hoje.
vibrante e cheia de peripécias, o que sos estratos. O pícaro, para sobre- 2 – Provará: cada um dos artigos de um
torna qualquer resumo inapropriado viver na pobreza, dribla as condi- requerimento judicial.
e pálido. Em linhas gerais, trata-se da ções adversas por meio de peque-
história da vida de Leonardo, filho de nos engodos e variados empregos;
dois imigrantes portugueses, a saloia • representação de usos e costumes TEXTO II
[camponesa, rústica] Maria da Horta- da sociedade carioca à época de
liça e Leonardo, “algibebe” [vendedor D. João (valor documental e artís- Apesar de tudo quanto havia já sofrido por
de roupas grosseiras] em Lisboa e amores, o Leonardo de modo algum queria
tico);
emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia,
depois meirinho [oficial de justiça] no • ausência do idealismo heroico que dos granadeiros e do Vidigal esqueceu-se da
Rio no tempo do Rei D. João Vl: caracteriza os romances românti- cigana, ou antes só pensava nela para jurar
nascimento do “herói”; sua infância cos, o que faz de Manuel Antônio esquecê-la; quando, porém, as caçoadas dos
de endiabrado; suas desditas de de Almeida um autor de transição companheiros foram cessando, começou a
filho abandonado mas sempre salvo entre este período e o Realismo; renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande
de dificuldades pelos padrinhos (a descrição de diversos tipos popu- luta entre a sua ternura e a sua dignidade, em
que esta última quase triunfava, quando uma
parteira e um barbeiro); sua juventu- lares, por vezes apresentados ca-
descoberta maldita veio transtornar tudo. Não
de de valdevinos [vagabundo]; seus ricaturalmente: ciganos, barbei- sabemos por que meio o Leonardo descobriu
amores com a dengosa mulatinha ros, militares aposentados, bea- um dia que o rival feliz que o pusera fora de
Vidinha; suas malandrices com o tas, policiais etc.; combate era o reverendo mestre-de-ce-
truculento Major Vidigal, chefe de • completo afastamento de qual- rimônias1 da Sé! Subiu-lhe com isto o sangue
polícia; seu namoro com Luisinha; quer forma de moralismo: o ma- à cabeça:
sua prisão pelo major; seu enga- — Pois um padre!?... dizia ele; é preciso
landro Leonardinho não é conde-
que eu salve aquela criatura do inferno, onde
jamento, por punição, no corpo de nado, assim como são apresen- ela se está metendo já em vida...
tropa do mesmo major; finalmente, tados com naturalidade episódios E começou de novo em tentativas, em
porque os fados [o destino] acaba- em que se evidencia o funcio- promessas, em partidos para com a cigana,
ram por Ihe ser propícios e não Ihe namento “malandro” da sociedade que a coisa alguma queria dobrar-se. Um dia
44 –
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que a pilhou de jeito à janela abordou-a e — Homem, sabe que mais? Você para uma modinha.
começou ex-abrupto2 a falar-lhe deste modo: pregador não serve, não tem jeito... eu como (Memórias de um Sargento
— Você está já em vida no inferno!... pois estou, estou muito bem; não me dei bem com de Milícias, cap. XV)
logo um padre?!... os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...
A cigana interrompeu-o: — Pois então tem alguma coisa que dizer Vocabulário e Notas
— Havia muitos meirinhos para escolher, de mim?... Hei de me ver vingado... e bem 1 – Mestre-de-cerimônias: padre que dirige o
mas nenhum me agradou... vingado. cerimonial litúrgico.
— Mas você está cometendo um pecado — Ora! respondeu a cigana, rindo-se. 2 – Ex-abrupto: de súbito; sem preparação;
mortal... está deitando sua alma a perder... E começou a cantarolar o estribilho de intempestivamente.

MÓDULO 23 Introdução ao Realismo-Naturalismo

1. CONTEXTO café, as oligarquias regionais e a raça, hereditariedade), sociológi-


HISTÓRICO-CULTURAL aparição de novos atores na cena cos e ambientais (Ecologia, Geo-
política — os militares). Porém, nossa grafia, meio ou classe social), além
elite pensava segundo os modelos das circunstâncias históricas.
q A Revolução Industrial – europeus e procurava assimilar os Em síntese: determinismo de raça,
O Materialismo – costumes civilizados de Paris e de meio e momento.
O Cientificismo Londres.
Da segunda metade do século Opondo-se ao idealismo e ao es- q Os antecedentes europeus
XIX ao início do século XX, o mundo piritualismo românticos, os realistas Em sentido amplo, a atitude
ocidental assistiu ao triunfo da fazem da ciência e do materialismo realista sempre existiu, em
Revolução Industrial, à consoli- uma nova religião. Nada que não pu- todos os tempos e em todas as es-
dação e ao fortalecimento da bur- desse ser visto, apalpado, medido e colas literárias, como um dos polos
guesia como classe dominante e à examinado por meio dos sentidos de- da criação artística, voltada para a
expansão do capitalismo industrial veria merecer atenção do cientista e tendência de reproduzir nas obras os
às antigas áreas coloniais da Amé- do artista. Assim, as noções de alma, traços observados no mundo real,
rica, da África e da Ásia, agora sob a de religião, de Deus, de transcen- seja nas coisas, seja nas pessoas ou
denominação de capitalismo avança- dência, tão caras aos românticos, nos sentimentos. Essa atitude rea-
do, alicerçando-se no avanço cien- são abandonadas. Tornam-se comuns lista, universal no tempo e no espa-
tífico e tecnológico (locomotiva a vapor, o anticlericalismo e a crítica ao ço, opõe-se à atitude romântica (tam-
eletricidade, telégrafo sem fio etc.). cristianismo (Guerra Junqueiro, Eça bém universal), caracterizada pela
Surge a civilização indus- de Queirós, Inglês de Sousa, Aluísio fantasia, pela tendência a inventar
trial e acentuam-se os seus des- Azevedo, dentre outros, fizeram dos um mundo novo, diferente e muitas
dobramentos: a explosão urbana, as padres os vilões de suas obras). vezes oposto às leis do mundo real.
massas trabalhadoras, os sindicatos, Dentre as correntes científicas e Os autores e as modas literárias
as reivindicações do proletariado filosóficas em voga no Realismo e no oscilam incessantemente entre am-
(socialismo utópico de Proudhon, o Naturalismo, destacam-se bas as atitudes e é da sua combi-
socialismo científico de Marx e Engels). • o Positivismo de Auguste nação, mais ou menos variada, que
Ciência, Progresso e Razão pas- Comte, propondo o primado da ciên- se faz a Literatura.
sam a ser as palavras de ordem da cia positiva no conhecimento do A ficção moderna constitui-se
classe dominante, interessada na homem e do mundo; justamente da tendência de se bus-
estabilização de suas conquistas, • o Evolucionismo de Charles car, cada vez mais, comunicar ao
substituindo o ímpeto revolucionário, Darwin e de Herbert Spencer, subme- leitor o sentimento da realidade, por
contestatório e individualista da épo- tendo o homem às leis da Biologia meio da observação exata do mundo
ca romântica. A paixão e o impulso e à evolução natural das espécies. e dos seres. Nesse sentido, o roman-
pessoal cedem lugar à reflexão, à O homem passa a ser visto como um ce romântico esteve pleno de
observação, à análise e à disciplina. animal, submetido às mesmas leis realismo. Autores como Stendhal e
As ideias avançadas do cientifi- que regem todos os animais. Daí a pre- Balzac, na França, Charles
cismo e do materialismo europeu ferência pelos aspectos biológicos, Dickens, na Inglaterra, Gogol, na
contaminam a elite brasileira, ainda fisiológicos e instintivos que de- Rússia, todos da primeira metade do
que nossa realidade social e eco- terminam as ações das personagens, século XIX, ainda que frequente-
nômica fosse diferente da situação superando a vontade e a razão. mente relacionados ao Romantismo,
europeia. Éramos ainda uma socie- A realidade passa a ser interpre- foram os verdadeiros fundadores do
dade agrária, recém-saída do escra- tada como um todo orgânico em que Realismo na ficção contemporânea.
vagismo, fundada na produção agrí- o universo, a natureza e o homem
cola (café, açúcar, borracha) e estão intimamente associados e su-
governada por uma República Oli- jeitos, em igualdade de condições, aos 2. CARACTERÍSTICAS
gárquica, instável e frequentemente mesmos princípios, leis e finalidades;
abalada por conflitos de interesses • o Determinismo de Hippolyte q Objetivismo
no seio da própria classe dominante Taine, o qual propõe que o compor- Preocupação com a verdade não
(aristocracia decadente da cana-de- tamento humano seja determinado apenas verossímil, mas exata, apoia-
açúcar, aristocracia ascendente do pelos fatores biológicos (instinto, da na observação e na análise.
– 45
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q Predomínio das sensações q Romance social, psicológi- Apresenta preferência pelos


A realidade é captada e trans- co e de tese; poesia urbana temas escabrosos, pela patologia
crita por meio de impressões senso- e agreste (Carvalho Júnior, humana e social (taras, vícios,
riais nítidas, precisas. Daí o predomí- Bernardino Lopes, Cesário sedução, adultério, incesto, assas-
nio da descrição objetiva e minucio- Verde); poesia filosófico- sinato, homossexualismo). A aborda-
sa. Os detalhes são da maior impor- científica (Sílvio Romero); gem dos aspectos degradantes da
tância: nada é desprovido de poesia social (Antero de condição humana implica certo mo-
interesse na reconstituição exata da Quental, Guerra Junqueiro ralismo, não importando a opinião
realidade. e Teófilo Braga). sobre os atos, mas os atos em si
Enquanto o romântico capta o mesmos.
mundo por meio do coração, do q Preocupação formal É frequente a zoomorfização,
sentimento, o realista é, sobretudo, Buscam-se a clareza, o equilí- ou seja, a aproximação, por meio de
sensorial. O amor perde a conotação brio, a harmonia da composição. símiles, entre o homem e o animal, com
espiritualizante, para privilegiar o propósito depreciativo em relação ao
aspecto físico. Ocorre uma “sexuali- q Correção gramatical homem-larva, ao homem-besta,
zação” do amor, e o sexo torna-se Purismo, vernaculidade, econo- regido pelo instinto cego e brutal:
tema quase obrigatório. mia vocabular, precisão lexical.
Rita Baiana… uma cadela no cio
q q Predomínio da denotação
Temas contemporâneos
Só o presente interessa; desa- A metáfora cede lugar à meto- O Cortiço… uma geração que pa-
parece o romance histórico. A ficção nímia. Linguagem simples, direta. recia brotar espontânea… e multi-
centra-se na crítica social (contra Preferência pela narração. Uma plicar-se como larvas no esterco.
a burguesia, contra o clero, contra o contribuição importante do Realismo
capitalismo selvagem, contra o obs- foi a superação do tom excessiva- Leandra… a ‘Machona’, portuguesa
curantismo) e na análise psico- mente declamatório e do verbalismo feroz, berradora, pulsos cabeludos e
lógica, voltada para a investigação adjetival dos românticos. grossos, anca de animal do
das causas profundas das ações campo.
humanas. 3. O NATURALISMO (A. Azevedo, O Cortiço)

Surgiu na França, e seu criador e Focaliza, de preferência, as


q Impassibilidade – principal teórico foi Émile Zola camadas sociais inferiores, o
Contenção Emocional (Thérèse Raquin, Germinal ). Foi Zola proletariado e os marginaliza-
O autor ausenta-se da narrativa, que cunhou a expressão romance dos. Denuncia os aspectos degra-
assumindo uma posição neutra, im- experimental como designativa de dantes, com o propósito de tomada
parcial, desinteressado pelo destino suas aproximações com as ciências. de consciência, visando à redenção
das personagens, fotografadas “por Ainda no âmbito das propostas moral e social do homem. Arte enga-
dentro” (Machado de Assis) e “por realistas, o Naturalismo representa jada, a serviço de ideais políticos e
fora” (Aluísio Azevedo). Busca-se uma exacerbação, uma radicalização sociais.
uma explicação lógica e cientifi- do cientificismo, do materia- O Naturalismo peca, quase
camente aceitável para o compor- lismo e do determinismo. Bus- sempre, pelo reducionismo e pelo
tamento e para as ações das perso- cou analisar o comportamento hu- esquematismo, restringindo-se às
nagens. mano à luz das teorias científicas do explicações mecanicistas, à exterio-
fim do século XIX, ressaltando os ridade, aos condicionamentos, inca-
q Personagens esféricas aspectos instintivos e biológi- pazes de apreender o homem em
Opondo-se à linearidade das cos do homem, submetido ao peso toda a sua complexidade.
personagens românticas (herói x dos fatores que determinavam Nos textos que se seguem, a
vilão), as personagens realistas são sua conduta: a hereditariedade, passagem de O Cortiço ilustra a típi-
complexas, multiformes, imprevisí- a raça, o meio ambiente e a ca descrição naturalista, e a de A
veis, repelindo qualquer simplifica- sociedade. Cidade e as Serras satiriza a atitude
ção. São também dinâmicas, porque Inspirado no experimentalis- cientificista daquele tempo.
evoluem e têm profundidade psico- mo científico de Claude Bernard
lógica. (a Medicina Experimental), o Natu-
ralismo assimilou a objetividade TEXTO I
q Materialismo – das Ciências Naturais, fazendo
Cientificismo do romance uma espécie de labora- Noventa e cinco casinhas comportou a
A realidade é de caráter exclu- tório da vida, e encarando o homem imensa estalagem.
sivamente material. Oposição à como um “caso” a ser analisado. Daí Prontas, João Romão mandou levantar na
metafísica e à religiosidade. decorre a visão mais mecanicista, frente, nas vinte braças que separavam a ven-
da do sobrado do Miranda, um grosso muro de
mais determinista, e o enquadra-
dez palmos de altura, coroado de cacos de
q Narrativa lenta mento do homem como produto das vidro e fundos de garrafa, e com um grande
Ao se valorizarem as minúcias, a leis da Biologia; da hereditariedade, portão no centro, onde se dependurou uma
ação e o enredo perdem a importân- da Sociologia e da Ecologia, contra as lanterna de vidraças vermelhas, por cima de
cia para a caracterização das perso- quais a razão e a vontade humana uma tabuleta amarela, em que se lia o seguin-
nagens e dos ambientes. nada podem. te, escrito a tinta encarnada e sem ortografia:

46 –
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“Estalagem de São Romão. Alugam-se o brilho, a uma forma algébrica:


casinhas e tinas para lavadeiras”. TEXTO II

}
As casinhas eram alugadas por mês e as suma ciência
tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de (...) Ora, nesse tempo Jacinto concebera X = suma felicidade
cada tina, metendo a água, quinhentos réis; uma ideia… Este Príncipe concebera a ideia suma potência
sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham de que “o homem só é superiormente feliz
preferência e não pagavam nada para lavar. quando é superiormente civilizado”. E por ho- E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi
Graças à abundância de água que lá mem civilizado o meu camarada entendia louvada pela mocidade positiva a equação
havia, como em nenhuma outra parte, e aquele que, robustecendo1 a sua força metafísica de Jacinto.
graças ao muito espaço de que se dispunha pensante com todas as noções adquiridas Para Jacinto, porém, o seu conceito não
no cortiço para estender a roupa, a concor- desde Aristóteles e multiplicando a potência era meramente metafísico e lançado pelo gozo
rência às tinas não se fez esperar; acudiram corporal dos seus órgãos com todos os elegante de exercer a razão especulativa; mas
lavadeiras de todos os pontos da cidade, mecanismos inventados desde Terâmenes, constituía uma regra, toda de realidade e de
entre elas algumas vindas de bem longe. E, criador da roda, se torna um magnífico Adão, utilidade, determinando a conduta, modalizan-
mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, quase onipotente, quase onisciente, e apto do a vida. E já a esse tempo, em concordância
um canto onde coubesse um colchão, surgia portanto a recolher dentro de uma sociedade com o seu preceito, ele se surtira5 da Pequena
uma nuvem de pretendentes a disputá-los. e nos limites do progresso (tal como ele se Enciclopédia dos Conhecimentos Universais
E aquilo se foi constituindo numa grande comportava em 1875) todos os gozos e todos em setenta e cinco volumes e instalara, sobre
lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas os proveitos que resultam de saber e de os telhados do 202, num mirante envidraçado,
cercas de varas, as suas hortaliças verdejan- poder… Pelo menos assim Jacinto formulava um telescópio. Justamente com esse teles-
tes e os seus jardinzinhos de três e quatro copiosamente2 a sua ideia, quando conversa- cópio me tornou ele palpável a sua ideia,
palmos, que apareciam como manchas ale- mos de fins e destinos humanos, sorvendo numa noite de agosto, de mole e dormente
gres por entre a negrura das limosas tinas bocks3 poeirentos, sob o toldo das cervejarias calor. Nos céus remotos lampejavam relâm-
transbordantes e o revérbero1 das claras bar- filosóficas, no Boulevard Saint-Michel. pagos lânguidos. Pela Avenida dos Campos
racas de algodão cru, armadas sobre os Este conceito de Jacinto impressionara Elísios, os fiacres6 rolavam para as frescuras
lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes os nossos camaradas de cenáculo4, que, do Bosque, lentos, abertos, cansados,
jiraus2, cobertos de roupa molhada, cintilavam tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 transbordando de vestidos claros.
ao sol, que nem lagos de metal branco. a 1875, entre a batalha de Sadowa e a batalha
E naquela terra encharcada e fumegante, de Sedan, e ouvindo constantemente, desde (Eça de Queirós,
naquela umidade quente e lodosa, começou a então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a A Cidade e as Serras, cap. I)
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, espingarda de agulha que vencera em
uma coisa viva, uma geração, que parecia Sadowa e fora o mestre-escola quem vencera
brotar espontânea, ali mesmo, daquele la- em Sedan, estavam largamente preparados a Vocabulário e Notas
meiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. acreditar que a felicidade dos indivíduos, 1 – Robustecer: fortalecer.
(Aluísio Azevedo, O Cortiço, cap. I) como a das nações, se realiza pelo ilimitado 2 – Copiosamente: abundantemente.
desenvolvimento da Mecânica e da erudição. 3 – Bock: cerveja preta.
Vocabulário e Notas Um desses moços mesmo, o nosso inventivo 4 – Cenáculo: grupo de amigos.
1 – Revérbero: reflexo. Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, 5 – Surtir-se: servir-se.
2 – Jirau: varal. para lhe facilitar a circulação e lhe condensar 6 – Fiacre: carruagem.

MÓDULO 24 O Realismo em Portugal – Antero de Quental


1. O CONTEXTO PORTUGUÊS combatiam. escola.
Os realistas-naturalistas portugue- As teorias que fundamentaram
As teorias positivistas do século XIX ses oscilaram entre duas posições: a ideologicamente o Realismo-Natura-
surgiram em decorrência das solici- dos republicanos, adeptos de uma lismo foram, dentre outras,
tações materiais ou ideológicas da maior intervenção social do governo – a teoria determinista de
Revolução Industrial, nos países mais para promover a democratização do Hippolyte Taine (1825-1893), se-
desenvolvidos. Não era o caso de liberalismo, e a dos socialistas utó- gundo a qual o homem (e a própria
Portugal, que possuía ainda formas picos, defensores, de acordo com o arte) resultava de três condicio-
capitalistas primárias, associa- modelo proudhoniano, da criação de nantes: a raça (fatores hereditários,
das a sobrevivências feudais. cooperativas operárias, que se con- biológicos), o meio (social, geográ-
O Realismo vai chegar ao país por trapusessem à força do grande capital. fico) e o momento (fatores históri-
importação. Foi mais uma posição inte- cos);
lectual de grupos reformistas minori- – a filosofia positivista de
tários. Contudo, sua influência será 2. CARACTERÍSTICAS DO Auguste Comte (1798-1857), que
bastante importante em setores bur- REALISMO PORTUGUÊS propugnava por uma espécie de
gueses mais progressistas. “religião da ciência”, já que
A ausência de uma base social Os modelos literários do Realis- todos os fatos do mundo físico, social
similar à da França atenuará a con- mo português foram franceses: ou espiritual possuem conexões
tundência que o Realismo teve na- Balzac e Stendhal (advindos do imediatas, mecânicas. Precursor na
quele país. As produções mais tími- Romantismo) e, especialmente, Gus- moder na tecnocracia, defendia o
das e mesmo os escritores mais ra- tave Flaubert e Émile Zola, autores primado do conhecimento empírico,
dicais mostram em suas obras traços que o viés positivista e a crítica social baseado na observação, experimen-
ideológicos do Romantismo, que tanto fizeram paradigmáticos da nova tação e comparação;
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– o socialismo “utópico” de tizar (sobretudo numa perspectiva


Pierre-Joseph Proudhon (1809- republicana) o poder político e de
1865), que, contrário à luta política, instituir amplas reformas sociais.
propunha a organização dos peque- Procuravam diagnosticar os proble-
nos produtores em associações de mas da vida social e apontar solu-
auxílio mútuo. Ateu e antiburguês; ções reformistas, de caráter às vezes
– o evolucionismo de Char- socialista, mas mantendo-se a estru-
les Robert Darwin (1809-1882), que tura do regime capitalista;
fundamentou a teoria de que os • representação da vida
seres vivos evoluíram por causa da contemporânea, procurando mos-
seleção natural das espécies, e as trar todos os seus detalhes signifi-
espécies mais simples teriam, grada- cativos. Há a preocupação de se es-
tivamente, dado origem às mais tabelecer conexões rigorosas de cau-
complexas; sa e efeito entre os fenômenos obser-
– o experimentalismo de vados, já que as leis naturais são
Claude Bernard (1813-1878), equivalentes, por exemplo, nos cam-
fisiologista, fundador da “medicina pos da Física, Química e Biologia. Teófilo Braga, em gravura de autor
experimental”, na qual propunha que desconhecido, 1864.
a verdade “científica” só poderia ser 3. A QUESTÃO COIMBRÃ
concebida como tal após sua com- A primeira desavença entre os
provação “experimental” ou labora- q Antecedentes dois grupos surgiu quando Castilho,
torial; Romântico, no começo do século prefaciando o poema D. Jaime, de
– o criticismo e o anticleri- XIX, já não era somente o literato Tomás Ribeiro, declarou que Os
calismo de Joseph-Ernest filiado à Escola, mas designava um Lusíadas já não tinham mais razão de
Renan (1823-1892), propondo a estado de alma: misto de me- ser; que nenhum poeta de seu tempo
revisão da história e do papel da lancolia, tédio, abandono da subscreveria uma única oitava de to-
Igreja Católica. vida, inquietação — tudo em dos os dez cantos. João de Deus se
Podemos sintetizar o sentido comportamento liricamente insurgiu contra o “ditador das letras”
ideológico de construção da escrita choroso. e achou que a atitude do leviano crí-
do Realismo-Naturalismo português Em oposição, o século XIX ama- tico era a de profanação. Isto foi a pri-
nos seguintes pontos: durecia em conquistas científi- meira clarinada do combate.
• crítica ao tradicionalis- cas: de um lado crescia a indus-
mo vazio da sociedade portuguesa, trialização, trazendo novos hábitos q A Questão Coimbrã ou a
produto, segundo eles, da educação de vida; de outro, firmavam-se a polêmica Bom Senso e
romântica, muito convencional e Física, Química, Biologia, Psi- Bom Gosto (1865)
distante da realidade. Há um com- cologia, promovendo novos conhe- A contrarresposta de Castilho
promisso ético do escritor em relação cimentos e exigindo alterações de apareceu em sua Carta que acom-
à realidade, a ser representada com base do homem diante da vida. panhava, como posfácio, o Poema
toda a veracidade, e o seu papel é A literatura, nutrida dessas novas da Mocidade, de Pinheiro Chagas.
semelhante ao de um profeta, com concepções, abandona o Romantis- Tal poema, ingênuo e ultrarromân-
uma missão a cumprir; mo — completamente divorciado da tico, explora assunto banal e gasto:
• crítica ao conservadoris- realidade da vida —, e surge o Rea- Artur, enamorado de Ema, é traído
mo da Igreja, uma instituição volta- lismo, preocupado em ser objetivo e por ela. Bate-se em duelo com o rival
da para o passado e que impedia o de- exato. Surgiram novas ideias sobre e se desgraça, a si e à amante... Mas
senvolvimento natural da sociedade; poesia, romance, crítica, filosofia. Castilho considerou-o excelso; lou-
• visão objetiva e natural Em Coimbra, um grupo de vou o poema, discutiu política, filo-
da realidade: o escritor deveria cons- rapazes vivia em pleno tumulto sofia, estética e educação. E, em
truir suas personagens utilizando mental. Identificados com a reno- tudo, sempre, ironicamente, fez refe-
tipos concretos existentes na vida vação que vinha da França, exaspe- rências desairosas aos moços de
social, observando suas relações ravam-se diante da indiferença do Coimbra e aos impulsos (moder-
com o meio. A personalidade desses resto do país. nizadores) da rapaziada.
tipos seria a do meio ambiente, em Em Lisboa, pontificava Cas- Antero de Quental foi quem
menor escala, pelos seus compo- tilho. Era o mentor de um grupo de respondeu à Carta de Castilho, no
nentes psicofisiológicos, isto é, pela poetas e críticos, reunidos no mundo célebre folheto Bom Senso e Bom
influência dos órgãos e glândulas do do “elogio mútuo”. Bem se poderia Gosto. O moço foi desabrido e irre-
corpo humano em sua conduta; dizer: Coimbra simbolizava a reno- verente, não respeitando as cãs de
• preocupação com a refor- vação, a ideia nova, o Realismo; Lis- seu antigo professor de primeiras
ma (e não com a revolução) da so- boa, o passado, o pieguismo, o letras: “queremos puxar-lhe as
ciedade, com o objetivo de democra- Romantismo. orelhas”, diz.
48 –
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A favor de Castilho militaram • Poesia


Pinheiro Chagas, Camilo Cas- a) Primeira Fase: O Idealis-
telo Branco, Júlio de Castilho mo – O Lirismo Amoroso – As
e Ramalho Ortigão. Aproximações com o Roman-
Cerca de quarenta opúsculos tismo
circularam durante a contenda. Em Primaveras Românticas e
Os moços de Coimbra, em em alguns momentos de Raios da
verdade, não “derrubaram” o Ro- Extinta Luz, Antero parece buscar a
mantismo, mas prepararam o campo transcendência do amor espiritual.
ideológico no qual o Realismo cres- Na linha de Petrarca e de Camões,
ceu imponente e fértil. en con tramos o dualismo psico -
Castilho simboliza o Romantismo lógico quanto ao amor: a beleza
em agonia; Antero é profeta dos espiritual x a atração carnal,
novos tempos, e o Realismo não foi o amar x o querer. Antero es-
só um “momento” literário, mas o piritualiza a mulher a ponto de
sinal da nova civilização, alicerçada projetar nela a excelência e a
nas conquistas do século XIX. pureza da figura materna, da irmã,
A Questão Coimbrã é considerada da criança.
o marco inicial do Realismo português. Antero Tarquínio de Quental na juven- IDEAL
tude. Foto de autor desconhecido, 1864.
q As Conferências do Cassi- Aquela, que eu adoro, não é feita
no Lisbonense Organizou as Conferências De lírios nem de rosas purpurinas,
Realizadas na primavera de 1871, Democráticas do Cassino Lis- Não tem as formas lânguidas, divinas
foram consequências da Questão bonense (1871), proferindo a con- Da antiga Vênus1 de cintura estreita...
Coimbrã, espécie de aplicação das ferência “A Causa da Decadência
Não é a Circe2, cuja mão suspeita
ideias defendidas, arregimentação dos Povos Peninsulares”.
Compõe filtros mortais entre ruínas,
prática dos gênios da época. Publicou, além disso, artigos em Nem a Amazona3, que se agarra às crinas
Realizaram-se quatro conferên- jornais republicanos e folhetos de Do corcel 4 e combate satisfeita...
cias. Anunciada a quinta, o Cassino propaganda socialista para as orga-
foi fechado pela polícia. nizações operárias. Fundou, com A mim mesmo pergunto e não atino
Antero de Quental fez-se José Fontana, a seção portuguesa Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra, ora esconde o meu
socialista; Teófilo Braga, positivis- da Organização Internacional dos
[destino...
ta e republicano; Eça de Queirós, Trabalhadores.
Ramalho Ortigão, Guerra Jun- Candidatou-se a deputado (sim- É como uma miragem que entrevejo,
queiro e Oliveira Martins, críticos bolicamente) por duas vezes. Desi- Ideal, que nasceu da solidão...
e negativistas: todos esses constituí- ludiu-se das possibilidades revolu- Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
am o conhecido Grupo dos Ven- cionárias das camadas populares,
Vocabulário e Notas
cidos da Vida, marcado pelo ceti- passando a integrar o Grupo dos
1 – Vênus: deusa do amor.
cismo risonho e conformista. Embora Vencidos da Vida. 2 – Circe: feiticeira lendária.
“vencedores”, em termos de reco- Oscilando sempre entre o mate- 3 – Amazona: mulher guerreira que montava a
nhecimento social, consideravam-se rialismo e o idealismo, entre a cavalo.
“vencidos” em termos de ideais. E dúvida e a fé, teve vida agitada. 4 – Corcel: cavalo.
em alegres jantares comemoravam a Acometido de uma psicose de-
crise e o desalento ideológico. pressiva, suicidou-se. b) Segunda Fase: A Poesia
Antero de Quental constitui, de Combate – O Socialismo –
4. ANTERO TARQUÍNIO DE com Camões e Bocage, o trio dos
QUENTAL (1842-1891) O Humanitarismo
maiores sonetistas da Língua Por- Nas Odes Modernas, a visão
q Vida tuguesa. cristã do mundo é substituída por
Formado em Direito por Coimbra; q Obras uma religiosidade naturalista, pan-
ainda como estudante liderou a • Prosa teísta (= identificação de Deus com
chamada Campanha do Bom Senso – Bom Senso e Bom Gosto o mundo concreto). A revolução é
e Bom Gosto (Questão Coimbrã), – A Dignidade das Letras e as vista em termos dessa religiosidade:
publicando os folhetos Bom Senso e Literaturas Oficiais ideais como liberdade, igualdade e
Bom Gosto e A Dignidade das Letras – Tendências Gerais da Filo- justiça são transformados em valo-
e as Literaturas Oficiais, ambos em sofia na Segunda Metade do res santificados. O próprio ato de
1865. Interessado no movimento Século XIX escrever transforma-se em um ato
operário, instalou-se em Paris, como – Causas da Decadência dos de fé revolucionária, uma utopia que
tipógrafo, para acompanhar o movi- Povos Peninsulares nos Sécu- o escritor procura alcançar seguin-
mento operário francês. los XVII e XVIII do o humanismo proudhoniano.
– 49
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TESE E ANTÍTESE Recebi o batismo dos poetas Vocabulário e Notas


E assentado entre as formas incompletas, 1 – Roto: estragado.
I Para sempre fiquei pálido e triste. 2 – Fragor: estrondo, barulho.
Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada, O poeta frustra-se por não con-
Torva no aspecto, à luz da barricada, A GERMANO MEIRELES
seguir uma síntese entre o co-
Como bacante1 após lúbrica2 ceia!
nhecimento subjetivo (ideia) e Só males são reais, só dor existe;
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia... o objetivo (formas reais). Uma Prazeres só os gera a fantasia;
Aspira fumo e fogo embriagada... Em nada, um imaginar, o bem consiste,
“ideia pura” pediria uma forma
A deusa de alma vasta e sossegada Anda o mal em cada hora e instante e dia.
Ei-la presa das fúrias de Medeia3! plena, totalizadora, para assim che-
gar-se a uma síntese de absolutos.
Um século irritado e truculento Se buscamos o que é, o que devia
Chama à epilepsia pensamento, Por natureza ser não nos assiste;
Verbo ao estampido de pelouro e obus4...
c) Terceira Fase: O Pessimis- Se fiamos num bem, que a mente cria,
mo – A Poesia Dilemática e Que outro remédio há aí senão ser triste?
Mas a ideia é um mundo inalterável, Metafísica – O Transcendentalis-
Num cristalino céu, que vive estável... Oh! quem tanto pudera que passasse
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
mo – A Morte e a Busca de Deus
A vida em sonhos só e nada vira...
Nas partes finais dos Sonetos Mas, no que se não vê, labor1 perdido!
Vocabulário e Notas Completos, agrava-se a divisão do
1 – Bacante: integrante do cortejo de Baco.
poeta, já expressa nas fases ante- Quem fora tão ditoso2 que olvidasse3...
2 – Lúbrico: sensual.
riores, entre o Ideal (que leva ao Mas nem seu mal com ele então dormira,
3 – Medeia: figura mitológica; abandonada
Absoluto, a Deus) e o Real (que leva Que sempre o mal pior é ter nascido!
pelo marido, Jasão, vinga-se assassinando
os filhos de maneira horrenda. às ciências experimentais). Os poe-
4 – Pelouro e obus: munição e peça de mas dilemáticos dessa fase oscilam Vocabulário e Notas
artilharia, respectivamente. 1 – Labor: trabalho, esforço.
entre a sensação de aniquilamento 2 – Ditoso: feliz.
(“O Palácio da Ventura”, “A Germano 3 – Olvidar: esquecer.
O soneto, de inspiração hegelia-
Meireles” etc.) e o conformismo mís-
na, expressa o sentido contraditório do
tico (“Na Mão de Deus”).
comportamento humano: a ideia é su-
blime, mas o homem, para implantá- O PALÁCIO DA VENTURA
la, comete desmandos e a falsifica.
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
TORMENTO DO IDEAL
Paladino do amor, busco anelante
O Palácio encantado da Ventura!
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra Quebrada a espada já, rota1 a armadura...
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre, E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra Com grandes golpes bato à porta e brado:
Perder a cor, bem como a nuvem que erra Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre. Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura, Abrem-se as portas d’ouro, com fragor2...
Tropeço, em sombras, na matéria dura, Mas dentro encontro só, cheio de dor, Antônio Feliciano de Castilho,
E encontro a imperfeição de quanto existe. Silêncio e escuridão — e nada mais! aos 70 anos.

MÓDULO 25 Eça de Queirós I


1. JOSÉ MARIA EÇA DE simples espectador da Ques- q Obras
QUEIRÓS (1845-1900) tão Coimbrã, ligando-se aos rea- a) Primeira fase: de 1866 a
listas em Lisboa, no grupo Cenáculo. 1875. Há apego romântico e fanta-
q Vida Viaja, em 1869, para o Egito; partici- sioso. Escreveu folhetins na Gazeta
“Eu sou apenas um pobre pa, em 1871, das Conferências do de Portugal, depois reunidos no vo-
homem de Póvoa do Varzim.” Cassino; vai para Leiria, como admi- lume Prosas Bárbaras. Ainda a essa
Assim Eça de Queirós se apresen- nistrador do conselho. Em 1873, vai fase pertencem O Mistério da Estra-
tava. Em 1866, forma-se em Direito, como cônsul para Havana; viaja pela da de Sintra, romance originalíssimo,
pela Universidade de Coimbra. Exer- América e, finalmente, segue para a escrito em parceria com Ramalho
ce o cargo de advogado, influencia- Inglaterra e depois para a França, Ortigão. Eça estava em Lisboa. Ra-
do pelo pai, que era juiz de direito. É onde, já casado, vem a falecer. malho, em Liz. Durante dois meses,
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sem nenhum plano da obra, cada comprometedoras da ama, e explo- apoplexia1. O pároco era um homem san-
escritor remetia um folhetim ao jornal rou plenamente a situação, pondo a guíneo e nutrido, que passava entre o clero
Diário de Notícias, continuando o patroa no trabalho e maltratando-a. diocesano pelo comilão dos comilões.
Contavam-se histórias singulares da sua
enredo. Também da primeira fase é Eça declara: “A família lisboeta é pro- voracidade. O Carlos da botica — que o de-
Uma Campanha Alegre, coletânea duto do namoro, reunião desagradá- testava — costumava dizer, sempre que o via
de seus artigos publicados em As vel de egoísmos que se contradizem, sair depois da sesta, com a face afogueada de
Farpas — periódico de combate, que e, mais tarde ou mais cedo, são cen- sangue, muito enfartado:
analisava e criticava Portugal em tros de bambochata. Uma sociedade — Lá vai a jiboia esmoer2. Um dia
estoura!
todos os setores de atividade: sobre estas falsas bases não está na Com efeito estourou, depois de uma ceia
política, educação, arte, literatura, verdade: atacá-la é um dever”. de peixe — à hora em que defronte, na casa
saúde, finanças. do Dr. Godinho, que fazia anos, se polcava3
• O Mandarim com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca
b) Segunda fase: de 1875 a Romance de influência orienta- gente ao seu enterro. Em geral não era
lista. As lutas de consciência tra- estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os
1888, quando Eça se integra na
vadas em um homem que substitui o pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos
técnica realista (“Sobre a nudez nos ouvidos, palavras muito rudes.
forte da verdade, o manto trabalho pelo enriquecimento ines- Nunca fora querido das devotas; arrotava
diáfano da fantasia”), e apare- crupuloso. no confessionário e, tendo vivido sempre em
cem os romances: freguesias da aldeia ou da serra, não com-
• Os Maias preendia certas sensibilidades requintadas da
Romance de crítica social, último devoção: perdera por isso, logo ao princípio,
• O Crime do Padre Amaro da série pertencente à segunda fase quase todas as confessadas, que tinham pas-
Este livro é o introdutor do roman- sado para o polido Padre Gusmão, tão cheio
do autor. É a história do amor inces-
ce realista em Portugal. A obra tem a de lábia!
tuoso de Carlos da Maia com sua
preocupação de fixar instantâneos E quando as beatas, que lhe eram fiéis,
irmã, Maria Eduarda, e, ao mesmo
da vida provinciana. A sociedade lhe iam falar de escrúpulos de visões, José
tempo, uma ampla crônica da alta Miguéis escandalizava-as, rosnando:
leiriense é o cenário, com os serões sociedade lisboeta. Se, em O Crime — Ora histórias, santinha! Peça juízo a
da Sra. Joaneira. Romance ma- do Padre Amaro (1875), Eça foca- Deus! Mais miolo na bola!
licioso, farto de observações agudas As exagerações dos jejuns sobretudo
lizou a vida devota da Província, e,
e belos quadros psicológicos. O irritavam-no:
em O Primo Basílio (1878), retratou a
herói é o padre Amaro, que mantém — Coma-lhe e beba-lhe — costumava
classe média da Capital, com Os
relações íntimas com Amélia, e gritar —, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Maias (1888) o escritor retrata a vida Era miguelista — e os partidos liberais, as
depois a abandona. das altas esferas da política, do go- suas opiniões, os seus jornais enchiam-no
verno, da aristocracia e dos literatos, duma cólera irracionável:
• O Primo Basílio em meio a jogos e festas. — Cacete! cacete! — exclamava,
Análise da família burgue- meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
sa. Neste romance, Eça cria tipos (O Crime do Padre Amaro, cap. I)
definitivos. O Conselheiro Acá-
Vocabulário e Notas
cio, que é o formalismo oficial: “Era 1 – Apoplexia: derrame cerebral.
alto, magro, vestido todo de preto, 2 – Esmoer: fazer a digestão.
com o pescoço entalado num cola- 3 – Polcar: dançar a polca.
rinho direito. O rosto, aguçado no
queixo, ia-se alargando até a calva,
vasta e polida, um pouco amolgada TEXTO II
no alto. (…) Era muito pálido; nunca Que noite para Luísa! A cada momento
tirava as lunetas escuras. (…) Fora, acordava num sobressalto, abria os olhos na
outrora, diretor-geral do Ministério do penumbra do quarto, e caía-lhe logo na alma,
Reino e sempre que dizia — El-Rei! como uma punhalada, aquele cuidado pun-
erguia-se um pouco na cadeira. Os gente: Que havia de fazer? Como havia de ar-
seus gestos eram medidos, mesmo a ranjar dinheiro? Seiscentos mil-réis! As suas
joias valiam talvez duzentos mil-réis. Mas de-
tomar rapé. Nunca usava palavras
pois, que diria Jorge? Tinha as pratas… Mas
triviais, não dizia vomitar, fazia um era o mesmo!
gesto indicativo e empregava resti- A noite estava quente, e na sua inquie-
tuir.” Luísa, a heroína que se entre- Eça de Queirós, por volta de 1868. tação a roupa escorregara; apenas lhe restava
gara, durante a ausência do marido, Fotografia de Henrique Nunes.
o lençol sobre o corpo. Às vezes a fadiga
aos amores de um primo conquis- readormecia-a de um sono superficial, cortado
tador, Basílio, encarna o papel da de sonhos muito vivos. Via montões de libras
adúltera que sofre desesperadamen- TEXTO I reluzirem vagamente, maços de notas agita-
rem-se brandamente no ar. Erguia-se, saltava
te. Juliana, a criada, que “personifi- Foi no domingo de Páscoa que se soube para as agarrar, mas as libras começavam a
ca o descontentamento azedo e o em Leiria que o pároco da Sé, José Miguéis, rolar, a rolar como infinitas rodinhas sobre um
tédio da profissão”, possuía cartas tinha morrido de madrugada com uma chão liso, e as notas desapareciam, voando

– 51
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muito leves com um frêmito1 de asas irônicas. punha frialdades de metal sobre a pele nua do Vocabulário e Notas
Ou então era alguém que entrava na sala, peito. Acordava assustada; e o contraste da 1 – Frêmito: agitação.
curvava-se respeitosamente e começava a sua miséria real com aquelas riquezas do 2 – Chinó: peruca.
tirar do chapéu, a deixar-lhe cair no regaço li- sonho era como um acréscimo de amargura. 3 – Pera: barba no queixo, cavanhaque.
bras, moedas de cinco mil-réis, peças, muitas, Quem lhe poderia valer? — Sebastião! 4 – Impudente: desavergonhado, atrevido,
muitas, profusamente; não conhecia o homem; Sebastião era rico, era bom. Mas mandá-lo sensual.
tinha um chinó2 ver melho e uma pera3 chamar e dizer-lhe ela, ela Luísa, mulher de 5 – De esguelha: de lado.
impudente4. Seria o diabo? Que lhe impor- Jorge: — Empreste-me seiscentos mil-réis. —
tava? Estava rica, estava salva! Punha-se a Para quê, minha senhora? E podia lá
chamar, a gritar por Juliana, a correr atrás responder: para resgatar umas cartas que A terceira fase da obra de Eça de
dela, por um corredor que não findava e que escrevi ao meu amante. Era lá possível! Não,
estava perdida. Restava-lhe ir para um con-
Queirós, que constitui uma profunda
começava a estreitar-se, a estreitar-se, até que
era como uma fenda por onde ela se arrastava vento. reviravolta em alguns elementos im-
de esguelha5, respirando mal e apertando portantes da fase anterior, será estu-
sempre contra si o montão de libras que lhe (O Primo Basílio, cap. Vlll) dada na próxima aula.

MÓDULO 26 Eça de Queirós II


romances da Idade Média. Desse con- próprio título indica, a obra baseia-se
traste surge, por um lado, a ironia e, em uma antítese, dividindo-se em
por outro, o sentimento de amor à ter- duas partes. A primeira, que vai até a
ra, à gente e à paisagem portuguesa. metade do capítulo oitavo, narra a
Em A Ilustre Casa de Ramires vida de Jacinto em Paris. A segunda,
ocorrem duas histórias paralelas: a que encerra a obra, relata a ida de
primeira é a história central, ambien- Jacinto para o campo e seu encontro
tada no século XIX, que focaliza os com os ideais da vida rústica, o amor
valores da aristocracia decadente, e a felicidade. Neste romance, Eça
representada pelo protagonista Gon- critica a elite portuguesa afrancesa-
çalo Mendes Ramires; a segunda é a da e defende um retorno às raízes e
novela medieval, escrita por esse à cultura lusitana.
mesmo protagonista, que narra a A obra é estruturada de forma
vida de seu antepassado, Tructesin- dialética. Semelhante a um silogismo,
do. Temos assim uma história dentro apresenta uma tese, a antítese e a
da outra. Ambas são narradas em síntese. Primeiro, o protagonista Jacin-
terceira pessoa, por narradores to proclama a vida na cidade como o
oniscientes. As diferenças estão no suprassumo da civilização; depois,
compor tamento dos dois perso- passa a contestar o artificialismo da
nagens (o primeiro é covarde e vida urbana, voltando-se para as delí-
Eça de Queirós em Newcastle-on-tyne. ganancioso, e o segundo, heroico e cias do campo. Por fim, a cidade e as
Foto de H. S. Mendelssohn. honrado), no tempo (século XIX e XII) serras se conciliam, e a personagem
e na linguagem das duas narrativas usa as conquistas da civilização para
q Obras (continuação) (a primeira é realista, e a segunda, melhor aproveitar a vida rural.
c) Terceira fase: a partir de de caráter épico, parodia os roman- O romance é narrado na primeira
1897. É considerada a fase de ces históricos, à moda de Hercula- pessoa por Zé Fernandes, amigo
maturidade, em que Eça retorna aos no). íntimo de Jacinto. Trata-se de um
valores tradicionais portugueses. No final do romance, Gonçalo parte narrador-testemunha, que apresenta
Sua obra, agora, tem preocupação para a África em busca de fortuna, os fatos segundo sua ótica pessoal,
moral. A sátira corrosiva é substituída viagem que significará sua redenção ou seja, subjetivamente, de acordo
por uma ironia condescendente. Em moral e, numa alegoria ao antigo im- com o seu humor, sua simpatia ou
lugar do pessimismo, entra um oti- pério português de ultramar, a renova- antipatia.
mismo esperançoso. Abandonam-se ção das energias ancestrais do país. A ação se passa no período que
os esquemas naturalistas. Pertencem vai de 1820 a 1893. O protagonista,
a essa fase os romances: • A Cidade e as Serras Jacinto, tinha o apelido de “Príncipe
Publicado em 1901, um ano após da Grã-Ventura”, devido à sua riqueza,
• A Ilustre Casa de a morte do autor, A Cidade e as saúde e sorte. Vivendo em Paris, no
Ramires Serras é seu último romance, desen- palacete número 202 da Avenida
Publicado em 1897, e de forma volvido a partir do conto “Civilização” Campos Elíseos e convivendo com a
completa em 1900, o romance con- (1892). Desencantado com a civiliza- alta classe local, seu ideal de vida era
fronta a realidade do século XIX com ção urbana, Eça compõe um hino à expresso na “equação metafísica”:
o universo heroico e fantasioso dos natureza e à vida rural. Como o
52 –
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suma ciência (…) Certamente, meu Príncipe, uma nesta criação tão antinatural onde o solo é de
X
suma potência } = suma felicidade ilusão! E a mais amarga, porque o homem
pensa ter na cidade a base de toda a sua
grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua
pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu,
e a gente vive acamada nos prédios como o
paninho nas lojas, e a claridade vem pelos
miséria. (…) Na cidade findou a sua liberdade canos, e as mentiras se murmuram através de
No entanto, decorrido algum tem-
moral; cada manhã ela lhe impõe uma arames, o homem aparece como uma criatura
po, ele começa a enfadar-se de sua
necessidade, e cada necessidade o arremes- anti-humana... (…) E aqui tem o belo Jacinto o
vida repleta de luxo e riqueza, mas sa para uma dependência; pobre e subal- que é a bela cidade!
pobre de espírito. Atacado por uma terno, a sua vida é um constante solicitar, E ante estas encanecidas4 e veneráveis
melancolia crescente que afeta sua adular, vergar, rastejar, aturar; e rico e superior invectivas5, (…) o meu Príncipe vergou6 a
saúde, Jacinto parte para o campo, como um Jacinto, a sociedade logo o enreda nuca dócil, como se elas brotassem, inespe-
indo viver em sua propriedade na em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, radas e frescas, duma revelação superior,
Serra de Tormes, em Portugal. Em praxes, ritos, serviços mais disciplinares que naqueles cimos de Montmartre:
contato com a natureza e o trabalho os dum cárcere ou dum quartel… (…) Os — Sim, com efeito, a cidade… É talvez
rural, ele recupera o antigo vigor e sentimentos mais genuinamente humanos uma ilusão perversa!
disposição. O amor de Joaninha logo na cidade se desumanizam! (…) Mas o (A Cidade e as Serras, cap. VI)
completa o quadro de sua felicidade. que a cidade mais deteriora no homem é a
inteligência, porque ou lha arregimenta dentro Vocabulário e Notas
1 – Balar: o mesmo que balir: berrar como
da banalidade ou lha empurra para a extra-
ovelha, soltar balidos.
vagância. Nesta densa e pairante camada de
TEXTO 2 – Esgar: trejeito, careta.
ideias e fórmulas que constitui a atmosfera
3 – Cabriola: cambalhota.
Neste trecho de A Cidade e as mental das cidades, o homem que a respira, 4 – Encanecido: de encanecer: embranquecer
nela envolto, só pensa todos os pensamentos
Serras, Jacinto e Zé Fernandes ob- os cabelos; experiente; antigo.
já pensados, só exprime todas as expressões 5 – Invectiva: ataque, crítica feroz.
servam a cidade de Paris do alto de
já exprimidas (…) Todos, intelectualmente, são 6 – Vergar: curvar, dobrar.
uma colina. Essa visão panorâmica carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando1 o
encoraja Zé Fernandes a falar sobre mesmo balido, com o focinho pendido para a
os males da civilização urbana. Entre as demais obras de Eça de
poeira onde pisam, em fila, as pegadas
pisadas; e alguns são macacos, saltando no Queirós, estão A Relíquia, A Capital,
— Sim, é talvez tudo uma ilusão… E a topo de mastros vistosos, com esgares2 e A Tragédia da Rua das Flores, Con-
cidade a maior ilusão! cabriolas3. Assim, meu Jacinto, na cidade, tos, Cartas de Inglaterra.

MÓDULO 27 Poesia da Época do Realismo: Cesário Verde


1. VIDA q A valorização da cidade q O proletariado urbano
Entre os anos de 1877 e 1880, a Cesário Verde apresenta, entre
Filho de comerciante, Cesário grande musa de sua poesia é a ci- as imagens novas de sua poesia, um
Verde nasceu em Lisboa, em 1855. dade de Lisboa e suas transforma- quadro impressionante do operaria-
Frequentou por algum tempo o Curso ções ao se modernizar (com a che- do da cidade de Lisboa. São pes-
Superior de Letras e viajou a Paris gada da iluminação pública a gás, soas transformadas em “bestas” de
um ano antes de sua morte prematu- por exemplo). O poeta dedica à pai- carga, em consequência das con-
ra, em 1886, aos 31 anos de idade. sagem citadina um importante poe- dições desumanas de trabalho:
A poesia inovadora que produziu ma chamado “O Sentimento dum
Homens de carga! Assim as bestas vão
não foi devidamente reconhecida du- Ocidental”. Posteriormente, já tu- [curvadas!
rante sua vida, sendo publicada somen- berculoso, passa à fase da poesia
te em 1887, por seu amigo Silva Pinto, campestre, quando elogia os as- Que vida tão custosa! Que diabo!
com o título O Livro de Cesário Verde. pectos saudáveis desse tipo de (“Cristalizações”)
vida.
2. CARACTERÍSTICAS Por todas estas características,
assim como pela objetividade, preci-
É o mais singular poeta realista q A forte visualidade são e antissentimentalismo de sua
português. Sua obra não possui os A cidade, figura básica de sua linguagem, sua obra reveste-se de
aspectos místicos e filosóficos que poesia, é fixada por meio de flashes, extraordinária modernidade, tendo
caracterizam a poesia de Antero de imagens em movimento, que captam por isso influenciado alguns poetas
Quental. Ao contrário, utiliza uma lin- seu clima humano e os elementos inovadores, como os brasileiros
guagem objetiva e coloquial, com- perdidos com o desenvolvimento Augusto dos Anjos e João Cabral de
pletamente fora dos padrões do moderno. A montagem dos flashes Melo Neto e o português Fernando
lirismo tradicional, ao descrever faz-se por um processo que lembra, Pessoa, cujos heterônimos Álvaro de
cenas do cotidiano, até então hoje, o cinema, com a justaposição Campos e Alberto Caeiro prolongam
consideradas inadequadas para a de imagens fragmentadas e múlti- as duas faces de sua poesia: a cita-
poesia. São notáveis em sua obra: plas. dina e a campesina.
– 53
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EU E ELA Nós teremos então sobre os joelhos Vocabulário e Notas


Um livro que nos diga muitas cousas 1 – Lousa: túmulo.
Cobertos de folhagem, na verdura,
Dos mistérios que estão para além das 2 – Vida à paxá: vida preguiçosa e feliz.
O teu braço ao redor do meu pescoço,
[lousas1, 3 – Flos Sanctorum (latim): A Vida dos Santos,
O teu fato sem ter um só destroço,
Onde havemos de entrar antes de velhos. título de uma antologia moral composta
O meu braço apertando-te a cintura;
por Alonso de Villegas no século XVI.
Num mimoso jardim, ó pomba mansa, Outras vezes buscando distração, 4 – Laxo: débil, fraco, franzino.
Sobre um banco de mármore assentados. Leremos bons romances galhofeiros, 5 – Cavaleiro de Faublas: personagem do
Na sombra dos arbustos, que abraçados, Gozaremos assim dias inteiros, romance Os Amores do Cavaleiro de
Beijarão meigamente a tua trança. Formando unicamente um coração. Faublas (1787-90), de Louvet de Couvray.

Nós havemos de estar ambos unidos, Beatos ou pagãos, vida à paxá2,


Sem gozos sensuais, sem más ideias, Nós leremos, aceita este meu voto,
Esquecendo para sempre as nossas ceias, O Flos Sanctorum3 místico e devoto
E a loucura dos vinhos atrevidos. E o laxo4 Cavaleiro de Faublas5...

MÓDULO 28 Machado de Assis I


1. LOCALIZAÇÃO cação das instituições culturais e dos bava sempre absorvido pela respei-
HISTÓRICO-CULTURAL órgãos de imprensa (A Revista tabilidade acadêmica. Até o irreve-
Brasileira, A Gazeta Literária, A rente Emílio de Meneses acabou elei-
q Os antecedentes europeus Semana, dentre outros). to para a Academia.
e brasileiros Esse incremento na vida cultural A importância desse período
No Brasil, especialmente na projetou a maturação da nacionalida- completa-se com o relevo adquirido
ficção regionalista e urbana, os auto- de e a dinamização e consolidação da pela oratória civil (Rui Barbosa); pelos
res românticos procuraram a descri- vida nacional (modernização das cida- estudos históricos (Joaquim Nabuco,
ção da vida social e a observação do des, codificação racional das leis, mo- Capistrano de Abreu e Oliveira Lima);
ambiente, contrabalançando os exa- dernização do equipamento técnico pelo jornalismo (José do Patrocínio e
geros da imaginação e da fantasia. e do ensino superior, penetração nas Alcindo Guanabara); pelos estudos
José de Alencar, em Senhora, zonas internas, estabilização das de gramática (Júlio Ribeiro e João
desmascarou e pôs a nu certas idea- fronteiras com os países limítrofes). Ribeiro); pela crítica literária (Sílvio
lizações da moral burguesa, aprofun- O escritor passa a ser socialmen- Romero, José Veríssimo e Araripe
dando a análise psicológica e a críti- te reconhecido. Nesse sentido, a fun- Júnior) e pelo ensaísmo (Tobias
ca social; Bernardo Guimarães, dação da Academia Brasileira Barreto, Farias Brito, Euclides da
em O Seminarista, descreveu o amor de Letras (1897) veio, de certo Cunha e Clóvis Bevilácqua).
com acentuada franqueza, anteci- modo, oficializar a literatura, logran-
pando aspectos do determinismo do o reconhecimento do mundo 2. CARACTERÍSTICAS
biológico dos naturalistas; Taunay, oficial e da opinião pública e exer-
em Inocência, fotografou, com muita cendo a intermediação entre a pro- q Observação importante
fidelidade, os costumes e a paisa- dução intelectual, o poder e o pú- No Brasil, os movimentos realis-
gem do sertão de Mato Grosso; blico, papel exercido, timidamente, ta, naturalista e parnasianista
Franklin Távora, nas Cartas a no Romantismo, pelo Instituto Histó- são simultâneos, e não suces-
Cincinato, censurou duramente José rico e Geográfico. sivos. Os três ocorreram no mesmo
de Alencar pela falta de observação Se, por um lado, a Academia deu período cronológico: 1881-1893. O
adequada dos costumes e da paisa- respeitabilidade à literatura perante o Realismo inaugura-se em 1881, com
gem e pelas inverdades, que são corpo social, por outro lado, acabou a publicação de Memórias Póstumas
comuns em O Sertanejo, O Gaúcho e gerando o academicismo (no mau de Brás Cubas, de Machado de
A Guerra dos Mascates; Manuel sentido), dando à literatura um cunho Assis. O Naturalismo aparece tam-
Antônio de Almeida, em Memó- oficial e ajustando-a aos ideais da bém em 1881, com a publicação de
rias de um Sargento de Milícias, classe dominante. O Mulato, de Aluísio Azevedo. Costu-
focalizou, com surpreendente impar- Ao lado da tendência acadêmi- ma-se identificar como marco inicial
cialidade, os costumes do Rio de ca, respeitosa do decoro, que tem do Parnasianismo o aparecimento,
Janeiro, no fim da Era Colonial. em Machado de Assis um verda- em 1882, do livro de poemas Fanfar-
deiro paradigma de sobriedade, ras, de Teófilo Dias.
q O contexto brasileiro equilíbrio e dignidade, surge a figura É comum designar-se como pe-
O período realista foi o primeiro, do escritor boêmio, à margem dos ríodo realista o conjunto desses
em nossa literatura, a apresentar um padrões burgueses, livre e sem pre- três movimentos ou correntes: o
panorama completo da vida literária, conceito, cujo exemplo mais vivo é o Realismo propriamente dito, o Natu-
com todos os gêneros moder- de Emílio de Meneses. Mas o ralismo (ou Realismo Naturalista) e o
nos florescendo, com a multipli- segmento boêmio e irreverente aca- Parnasianismo.
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Esse período irá desdobrar-se q A ficção machadiana tradição entre parecer e ser, entre a
muito além de seus limites cronoló- A) Conto máscara e o desejo, entre a vida pú-
gicos estritos, projetando-se no Pré- O contista Machado de Assis, blica e os impulsos escuros da vida
Modernismo (Euclides da Cunha, para muitos, supera o romancista. interior, desembocando sempre na
Monteiro Lobato, Lima Barreto) e Coube a ele dar ao conto densidade fatal capitulação do sujeito à aparên-
fundindo-se, por vezes, com a prosa e excelência insuperáveis em nossa cia dominante.
de cunho impressionista. A atitude literatura, fundando esse gênero e Machado procura roer a substân-
realista de observação direta e de abrindo caminhos, pelos quais, cia do “eu” e do fato moral conside-
crítica social será retomada, em ple- mais tarde, iriam trilhar Mário de rados em si mesmos, mas deixa nua
no Modernismo, pela ficção regio- Andrade e Clarice Lispector, para a relação de dependência do mundo
nalista do Nordeste (Neorrea- ficarmos em apenas dois contistas interior em face da conveniência do
lismo), na década de 1930. Essa modernos. mais forte. É dessa relação que se
atitude realista, modernizada quanto Distinguem-se duas fases: a pri- ocupa, enquanto narrador.
ao código linguístico e tornada mais meira, dita romântica, com os livros É a móvel combinação de de-
aguda quanto ao propósito de Contos Fluminenses e Histórias da sejo, interesses e valor social que
análise e crítica da sociedade, é Meia-Noite; a segunda, realista, inclui fundamenta as estranhas teorias do
evidente nos autores regionalistas, os melhores contos: Papéis Avulsos, compor tamento expressas nos
ou neorrealistas, Graciliano Ramos, Histórias sem Data, Várias Histórias e contos “O Alienista”, “Teoria do
José Lins do Rego, Rachel de Relíquias de Casa Velha. Medalhão”, “O Segredo do Bonzo”,
Queiroz, Jorge Amado e José Améri- “A Sereníssima República”, “O
co de Almeida. A1) Na fase romântica, a angús- Espelho”, “A Causa Secreta”, “Conto
tia, oculta ou patente, das persona- Alexandrino”, “A Igreja do Diabo”.
3. MACHADO DE ASSIS gens é determinada pela necessida- É exatamente isso que nos diz o
(Rio de Janeiro, 1839-1908) de de obtenção de status, quer pela mais sábio dos bonzos:
aquisição de patrimônio, quer pela “Se puserdes as mais sublimes
q Vida consecução de um matrimônio com virtudes e os mais profundos conhe-
Machado de Assis é o grande parceiro mais abonado. “Segredo de cimentos em um sujeito solitário, remo-
representante do Realismo no Brasil. Augusta” e “Miss Dollar” antecipam a to de todo contato com outros ho-
De origem humilde, foi autodidata, temática de A Mão e a Luva: o dinhei- mens, é como se eles não existis-
venceu limitações pessoais (era ga- ro como móvel do casamento. O sem. Os frutos de uma laranjeira, se
go e epilético) e sociais (era mulato tema da traição (suposta ou real), ninguém os gostar, valem tanto como
e pobre). Foi aprendiz de tipógrafo antes de aparecer em Dom Casmur- as urzes e as plantas bravias, e, se
na Tipografia Nacional, sob as ro, já estava nos contos “A Mulher de ninguém os vir, não valem nada; ou,
ordens e proteção de Manuel Antô- Preto” e “Confissões de uma Viúva por outras palavras mais enérgicas,
nio de Almeida (o autor de Memórias Moça”. não há espetáculo sem espectador.”
de um Sargento de Milícias) e iniciou Nessa primeira fase, a mentira é (“O Segredo do Bonzo”)
sua carreira literária aos dezesseis punida ou desmascarada. Há nisso
anos. Ocupou cargos públicos um laivo de moralismo romântico, na B) Poesia
importantes e foi o fundador e pri- pregação de casos exemplares. Mas Em Crisálidas, Falenas e Ameri-
meiro presidente da Academia Bra- essa linha será, a seguir, superada, canas, livros que encerram a poesia
sileira de Letras. ainda na fase romântica. Em “A Para- romântica de Machado de Assis,
Considerado um agudo “analista sita Azul”, o enganador triunfa pela são evidentes as sugestões temá-
da alma humana”, Machado de Assis primeira vez. O cálculo frio, o cinis- ticas e formais da poesia de Gon-
começou escrevendo poesia e prosa mo, a máscara e o jogo de interesses çalves Dias, Casimiro de Abreu e
romântica. Em 1881 inaugura o Rea- constituem o cerne desse pragmatis- Fagundes Varela: o lirismo senti-
lismo, com o romance Memórias mo ou utilitarismo para o qual pen- mental, a poesia indianista, a natu-
Póstumas de Brás Cubas, um dos dem especialmente as personagens reza americana.
livros mais extraordinários de nossa femininas, capazes de sufocar a pai- Já Ocidentais revela maior
língua. Seus contos chegam a ser tão xão e o amor em nome da “fria elei- apuro formal e contenção de lin-
importantes quanto seus mais notá- ção do espírito”, da “segunda nature- guagem, aproximando-se das dire-
veis romances. Escreveu também za, tão imperiosa como a primeira”. A trizes do Parnasianismo. A poesia
peças teatrais, mas no teatro, assim segunda natureza do corpo é o de cunho filosófico, a reflexão sobre
como na poesia, não conseguiu ele- status, a sociedade que se incrusta o ser, o tempo e a moral constituem
var-se acima do nível mediano da na vida. os momentos mais bem realizados
produção de seu tempo. Como cro- do livro, que são os poemas: “So-
nista e como crítico literário publicou A2) Na fase realista, a partir dos neto de Natal”, “Suave Mari Magno”,
páginas notáveis, que estão entre o contos de Papéis Avulsos, Machado “A Mosca Azul”, “Círculo Vicioso”,
que se escreveu de melhor nesses começa a cunhar a fórmula mais “No Alto” e “Mundo Interior”. É
gêneros no Brasil. permanente de seus contos: a con- sempre uma poesia discreta, sem
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arrebata-mentos, reflexiva e densa, do pequeno ao grandioso, do real muitas vezes poderíamos obter,
culta, teórica, correta, mas quase ao imaginário. Por medo de tentar.]
sempre ca rente de emoções e Não quis fazer romance de
vibração. E) Crítica costumes; tentei o esboço de uma
Apesar de pequena, a produção situação e o contraste de dois carac-
C) Teatro
machadiana no gênero revela hones- teres; com esses simples elementos
Quase todas as comédias de
tidade, senso estético, fina capaci- busquei o interesse do livro, a crítica
Machado são da década de 1860,
dade analítica e independência decidirá se a obra corresponde ao
contemporâneas, portanto, das pro-
intelectual, que o colocaram acima intuito, e sobretudo se o operário tem
duções “românticas” na poesia. São
dos modismos de sua época. jeito para ela.
mais contos dialogados que propria-
Entre seus melhores trabalhos, É o que peço com o coração nas
mente peças teatrais; revelam-se
incluem-se as apreciações sobre os mãos.”
poemas de Castro Alves (em carta a Ainda que se tenha vulgarizado a
melhores quando lidas do que quan-
José de Alencar), as considerações designação de romances “românti-
do encenadas.
sobre a pouca originalidade da poe- cos”, essas primeiras experiências
Essas comédias foram represen-
sia arcádica e o estudo sobre Eça de com a ficção de maior fôlego não se
tadas com algum êxito durante a vida
Queirós, que suscitou verdadeira po- enquadram nos estreitos limites da
do seu autor, e são: A Queda que as
Mulheres Têm para os Tolos, Desen- lêmica. ficção propriamente romântica: a idea-
cantos, Quase Ministro, O Caminho lização das personagens centrais
da Porta, O Protocolo, Não Consultes F) Romance não é total, reservando lugar para
o Médico, Os Deuses de Casaca e F1) A Fase Romântica aspectos problemáticos de sua con-
Tu, só Tu, Puro Amor, inspirada no Os primeiros romances de Ma- duta, e a tensão bem versus mal, herói
chado de Assis (Ressurreição, A versus vilão, não é nítida. Caberia
episódio de Inês de Castro, de Os
Lusíadas, e encenada em come- Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia) melhor a designação de romances
podem ser considerados experiên- “convencionais”. Já existem nesses
moração do tricentenário da morte
cias para o salto qualitativo que viria romances os traços que serão cons-
do poeta português.
com Memórias Póstumas de Brás tantes na fase realista: a observação
Cubas (1881), que inaugura a fase psicológica e o interesse como o mó-
D) Crônica realista de Machado. vel principal das ações humanas.
Machado de Assis militou na O caráter de “experiência” fica Mesmo as heroínas ditas “românti-
imprensa diária do Rio de Janeiro evidente na “Advertência” com que cas” de Machado de Assis agem
durante quase toda a sua vida: pas- Machado apresenta a primeira edi- movidas pelo interesse, pelo desejo
sou pelas redações, entre outras, do ção do romance Ressurreição: de ascensão social, e não pelo amor.
Correio Mercantil, do Diário do Rio de “Não sei o que deva pensar des-
Janeiro, da Gazeta de Notícias, de O te livro; ignoro sobretudo o que pen-
Século. As crônicas que escreveu sará dele o leitor. A benevolência
iam da linguagem sarcástica, dos com que foi recebido um volume
tempos de militância liberal, ao inti- de contos e novelas, que há dois
mismo das páginas de Relíquias de anos publiquei, me animou a
Casa Velha. Nomeado funcionário escrevê-lo. É um ensaio. Vai despre-
público, subordinado à Secretaria de tensiosamente às mãos da crítica e
Estado, não pôde atuar de forma do público, que o tratarão com a
mais ostensiva no Movimento Aboli- justiça que merecer.” E, concluindo a
cionista, o que serviu de base a “Advertência”:
ideias de que ele não teria tido in- “Minha ideia ao escrever este
teresse na sorte dos escravos, dos livro foi pôr aquele pensamento de
quais descendia pelo lado paterno. Shakespeare:
As crônicas, pela maior liberda- Our doubts are traitors,
de que permitem, revelam a tendên- And make us lose the good we
cia de Machado para o diver - oft might win,
tissement, a brincadeira, o texto leve By fearing to attempt.
e divertido. Vão do corriqueiro ao [Nossas dúvidas são traidoras
sublime, do cotidiano ao clássico, E fazem-nos perder o bem que Machado de Assis aos 45 anos.

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MÓDULO 29 Machado de Assis II


F2) O Romance Realista ciais e os impulsos interiores, a q O pessimismo
É a partir de Memórias Póstumas normalidade e a loucura, o acaso, o Machado revela sempre uma vi-
de Brás Cubas (1881) que Machado ciúme, a irracionalidade, a usura, a são desencantada da vida e do ho-
atinge o ponto mais alto e equilibrado crueldade. mem. Não acreditava nos valores do
da ficção brasileira. Alinhavamos, a A pobreza de descrições, a qua- seu tempo e, a rigor, não acreditava
seguir, alguns aspectos da ficção se ausência da paisagem são ainda em nenhum valor. Mais do que pes-
machadiana. desdobramentos dessa concentração simista ou negativista, sua postura é
na análise psicológica e na reflexão “niilista” (nihil = nada). O desmasca-
q A ruptura com filosófica. As tramas dos romances ramento do cinismo e da hipocrisia,
a narrativa linear machadianos poderiam, sem grandes do egoísmo e do interesse, que se
Os fatos e as ações não se- prejuízos à narrativa, ser transplanta- camuflavam sob as convenções so-
das para qualquer época e qualquer ciais, é o móvel de grande parte da
guem um fio lógico ou cronológico;
cidade. ficção machadiana:
obedecem a um ordenamento inte-
rior, são relatados à medida que Não tive filhos, não transmiti a
q As influências
afloram à consciência ou à memória nenhuma criatura o legado de nossa
Machado de Assis esteve acima
do narrador, num processo que se miséria. (Memórias Póstumas de Brás
dos modismos da época. Enquanto
aproxima do impressionismo Cubas, “Das Negativas”, cap. CLX)
Gustave Flaubert, pai do Realismo,
associativo. defendia a superioridade do “ro- q A ironia, o humor negro
mance que narra a si mesmo”,
A forma de revolta de Machado
q A organização ocultando por completo a figura do
era o riso, quase sempre um riso
metalinguística do narrador, Machado subverte essa
amargo, que exteriorizava o desen-
discurso narrativo regra, intrometendo o narrador na
canto e o desalento ante a miséria fí-
É comum, na ficção machadiana, narrativa, fazendo que o leitor o
sica e moral de suas personagens:
que o narrador interrompa a narrativa identifique sempre, por trás e acima
“…Em verdade vos digo que
para, com saborosa e bem-humora- das convenções de verossimilhança
toda sabedoria humana não vale um
da bisbilhotice, comentar com o leitor (= aparência de realidade) da
par de botas curtas.
a própria escritura do romance, fa- ficção.
Autodidata, Machado adquiriu
Tu, minha Eugênia, é que não as
zendo-o participar de sua constru- descalçaste; foste aí pela estrada da
ção; ou, ainda, para dialogar sobre sólida formação clássica: Shakes-
peare, Dante Alighieri, Cervantes e vida, manquejando da perna e do
uma personagem, refletir sobre um amor, triste como os enterros pobres,
episódio do enredo ou tecer suas Goethe eram suas leituras obriga-
tórias. Mas os modelos que seguiu solitária, calada, laboriosa, até que
digressões sobre os mais variados vieste também para esta outra men-
mais de perto foram os do século
assuntos. sagem… O que eu não sei é se a tua
XVIII: Voltaire, com sua ironia cor-
Machado assume a posição de existência era muito necessária ao
tante, além do refinado sense of
quem escreve e, ao mesmo tempo, se século. Quem sabe? Talvez um com-
humor dos autores ingleses Sterne e
vê escrevendo. Esses comentários à parsa de menos fizesse patear a tra-
Swift.
margem da narração têm interesse gédia humana.”
central, pois neles se encontram im- q Os grandes arquétipos “Antes cair das nuvens que de
portantes ideias do autor sobre sua Uma das linhas mestras da um terceiro andar.”
arte — sobre a narrativa e sua rela- ficção machadiana parte do aprovei- “Deus, para a felicidade do ho-
ção com a vida. tamento dos arquétipos (arquétipo mem, criou a religião e o amor. Mas o
= modelo de seres criados; padrão, demônio, invejoso do sucesso de
q O universalismo exemplar; imagens psíquicas do Deus, fez com que o homem confun-
Machado captou, na sociedade inconsciente coletivo e que são o disse a religião com a Igreja, e o
carioca do século XIX, os grandes patrimônio comum a toda a humani- amor com o casamento.”
temas de sua obra. O seu interesse dade), remontando à tradição clás-
jamais recaiu sobre o típico, o pito- sica e aos textos bíblicos. q O psicologismo
resco, a cor local, o exótico, tão ao Assim, o conflito dos irmãos Pe- Ação e enredo perdem a impor-
gosto dos românticos. Buscou, na dro e Paulo, em Esaú e Jacó, remon- tância para a caracterização das
sociedade do seu tempo, o univer- ta ao arquétipo bíblico da rivalidade personagens.
sal, a essência humana, os grandes entre Caim e Abel; a psicose do Os acontecimentos exteriores
temas filosóficos: a essência e a ciúme de Bentinho, em Dom Casmur- são considerados somente à medida
aparência, o caráter relativo da ro, aproxima-se do drama de Otelo e que revelam o interior, os motivos
moral humana, as convenções so- Desdêmona, de Shakespeare. profundos da ação, que Machado de-
vassa e apresenta detalhadamente.
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Daí a narrativa lenta, pois o menor deta- Lobo Neves, homem ambicioso. qua e dissimulada”, brilha entre todas
lhe e o menor gesto são significativos Virgília, que se torna amante de Brás as personagens de Machado, não só
na composição do quadro psicológico; Cubas, é uma das grandes persona- as femininas.
nada é desprovido de interesse. Essa gens femininas de Machado. Nessa
fixação pelo pormenor é o que se obra já aparece o filósofo-mendigo q Quincas Borba (1891)
denomina microrrealismo. Quincas Borba, que será a persona- Quincas Borba é continuação de
gem principal do romance seguinte Memórias Póstumas de Brás Cubas,
q O estilo machadiano pois, como vimos, o filósofo-mendi-
de Machado. Fundamentalmente pes-
Machado prima pelo equilíbrio, simista, Brás Cubas é também um go, personagem que dá nome a este
pela disciplina clássica, correção homem cínico, até cruel, figura ele- romance, e a sua filosofia, o Humani-
gramatical, concisão e economia vo- gante e típica da ociosa elite carioca tismo, já tinham aparecido nas
cabular. Ao contrário da nossa do século passado. Memórias, nas quais, na verdade, há
congê- nita tendência ao uso um período de tempo em que Quin-
imoderado do adjetivo e do advérbio, cas Borba desaparece, só voltando
tão ao gosto de Castro Alves, de para morrer na casa de Brás Cubas.
Alencar, de Rui Barbosa etc., O romance Quincas Borba narra em
Machado é parcimonioso, sóbrio, terceira pessoa as aventuras de
quase “britânico”. Não é, contudo, Quincas nesse intervalo, nas quais in-
uma linguagem simétrica e terveio, novamente, o acaso: Quincas
mecânica, porém medida pelo seu recebeu uma herança e foi viver num
ritmo interior, donde o segredo da local tranquilo, Barbacena, mais ade-
unidade da obra. São frequentes as quado à sua filosofia. Lá se pas-
experiências narrativas
saram os fatos principais da história.
antecipadoras da modernidade, pelo
Apaixonado e recusado por Maria
aspecto irônico e antinarrativo.
Piedade, Quincas adoeceu e foi
Em Memórias Póstumas de Brás Capitu, em pintura de J. da Rocha Ferreira.
tratado por Rubião, seu amigo. Este,
Cubas, em vez de narrar a morte de
a quem Quincas tentara explicar o
D. Eulália Damasceno de Brito, Brás q Dom Casmurro (1899) Humanitismo, se interessava na ver-
Cubas “fotografa” seu epitáfio, trans- Dom Casmurro é considerado um dade pela fortuna do outro. E Rubião,
pondo o ícone, a inscrição tumular: romance sobre o adultério. Nem o de fato, tornou-se herdeiro universal
adultério é fato certo na história, nem do filósofo sob a condição de cuidar
Capítulo CXXV
o tema do romance se limita a ele. É de seu cão (que se chama também
Epitáfio
antes a abordagem da vaidade mas- Quincas Borba). Despreparado para
AQUI JAZ culina, e do vazio das instituições que a riqueza, ele é explorado pelo casal
domina, e do mistério da mulher. Sofia e Cristiano Palha. Apaixona-se
D. EULÁLIA DAMASCENO DE BRITO
Assim, todo o conjunto de certezas por ela, que é incentivada pelo mari-
MORTA da realidade (e do Realismo) torna-se do a ser receptiva a seus favores.
frágil, ilusório e enganador. Todos os Aos poucos, vai perdendo tudo, sem
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
acontecimentos narrados na obra conquistar o amor de Sofia, e enlou-
ORAI POR ELA!
ganham esta aura de dúvida por cau- quece, como Quincas. Nesse roman-
sa do ciúme que o próprio narrador- ce, é desenvolvida a teoria do Huma-
q Memórias Póstumas personagem — Bentinho, um ser me- nitismo e sua máxima, “ao vencedor,
de Brás Cubas (1881) díocre — tem de Capitu, amiguinha as batatas”. Trata-se de satirização de
Nesse romance, em primeira de infância, depois namorada, noiva correntes filosóficas da época, como
pessoa, o narrador-personagem e, enfim, esposa. Não há nenhuma pro- o Positivismo e o Evolucionismo.
Brás Cubas relata sua vida a partir va conclusiva do adultério de Capitu;
de uma estranha situação: já está ao contrário, a relação intertextual do q Esaú e Jacó (1904)
morto, sendo, por isso, como ele romance com Otelo, de Shakespeare, O título alude à famosa passa-
mesmo diz, um “defunto autor”. Com parece advertir que tanto a realidade gem do Antigo Testamento, em que
um texto cheio de digressões e de quanto as percepções humanas são
dois irmãos disputam o privilégio da
humor, narra o grande projeto de sua abaladas pelas paixões. Assim,
bênção do pai. Machado, utilizando
todas as “provas” e, em particular, a
vida, criar o “emplasto anti-hipocon- a ideia da rivalidade entre irmãos, cons-
semelhança de Ezequiel, o filho do
dríaco Brás Cubas”, esperança frus- trói as personagens Pedro e Paulo,
casal, com Escobar, o suposto amante,
trada de renome e riqueza. Brás Cubas cujo desentendimento e inimizade
são relativas, duvidosas. Machado
conta sua infância, fala da família, de não têm explicação racional. Brigavam
atinge o objetivo de mostrar que a
Marcela — a primeira amante — e de desde o útero materno. Flora é a mu-
realidade é algo móvel e enganador.
Virgília, que foi sua namorada e que lher que se apaixona pelos dois, e
Capitu, de “olhos de ressaca”, “oblí-
acaba se casando com o deputado
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que ambos amavam. Nem a morte e Carmo e o drama de sua vida, a im- lancólica da velhice, da solidão e do
dela nem a de sua própria mãe os possibilidade de ter filhos. Conso- mundo. D. Carmo, esposa do velho
reconcilia. Seu ódio destruía as pes- lam-se no amor paternal que dedi- Aguiar, seria a projeção da própria
soas em redor. Nessa obra já apa- cavam a um afilhado, Tristão. Deses- esposa de Machado, já falecida. A
rece o Conselheiro Aires, persona- peram-se quando este vai para a ironia e o sarcasmo dos livros anterio-
gem central do romance seguinte, o Europa e reencontram alegria com res são substituídos por um tom com-
último de Machado de Assis. Fidélia, até que de novo a fatalidade passivo e melancólico, as persona-
q Memorial de Aires (1908) intervém: Tristão casa-se com Fidélia gens são simples e bondosas, muito
Nesse romance em forma de diário, e a leva consigo para a Europa. distantes dos paranoicos e psicóti-
o narrador, Aires, diplomata, relata Memorial de Aires é apontado cos dos romances anteriores. Alguns
episódios de sua vida após se apo- como o romance mais projetivo da veem no Memorial de Aires uma obra
sentar, o retorno ao Brasil, a vidinha personalidade e da vida de Machado de retrocesso a concepções romanti-
em Petrópolis. Por meio de Fidélia, de Assis. zadas do mundo; outros tomam o ro-
Aires e sua irmã, Rita, entram em con- Escrito após a morte de sua es- mance como o testamento literário e
tato com o casal de velhinhos Aguiar posa, Carolina, revela uma visão me- humano de Machado de Assis.

MÓDULO 30 Machado de Assis III


grupo e cada época encontrem as desde cedo chamou a atenção dos
suas obsessões e as suas necessi- críticos, como um dos temas prin-
dades de expressão. Por isso, as cipais de sua obra.
sucessivas gerações de leitores e
críticos brasileiros foram encon-
q “O Alienista”
trando níveis diferentes em Machado
de Assis, estimando-o por motivos di- Quanto ao problema da loucura,
versos e vendo nele um grande podemos citar o conto “O Alienista”.
escritor devido a qualidades por (…) Um médico funda um hospício
vezes contraditórias. O mais curioso para os loucos da cidade e vai
é que provavelmente todas essas diagnosticando todas as manifes-
interpretações são justas, porque ao tações de anormalidade mental que
apanhar um ângulo não podem observa. Aos poucos o hospício se
deixar de ao menos pressentir os enche; dali a tempos já tem a metade
outros. (...) da população; depois quase toda
Muitos dos seus contos e alguns ela, até que o alienista sente que a
dos seus romances parecem aber- verdade, em consequência, está no
tos, sem conclusão necessária, ou contrário da sua teoria. Manda então
Machado de Assis permitindo uma dupla leitura, como soltar os internados e recolher a
ocorre entre os nossos contempo- pequena minoria de pessoas equili-
ANÁLISE CRÍTICA
râneos. (...) bradas, porque, sendo exceção, esta
Talvez possamos dizer que um é que é realmente anormal. A minoria
Nessa aula você lerá trechos de
dos problemas fundamentais da sua é submetida a um tratamento de
um texto de Antonio Candido, que
versa sobre alguns dos temas pre- obra é o da identidade. Quem sou “segunda alma”, para usar os termos
sentes e característicos da obra de eu? O que sou eu? Em que medida do conto precedente: cada um é
Machado de Assis. No texto, origi- eu só existo por meio dos outros? Eu tentado por uma fraqueza, acaba
nalmente uma palestra proferida em sou mais autêntico quando penso ou cedendo e se equipara deste modo à
1968, o crítico ressalta a importância quando existo? Haverá mais de um maioria, sendo libertado, até que o
e modernidade das “situações ficcio- ser em mim? Eis algumas perguntas hospício se esvazia de novo. O alie-
nais” criadas por Machado de Assis, que parecem formar o substrato de nista percebe então que os germes
citando, respectivamente, alguns de muitos dos seus contos e romances. de desequilíbrio prosperaram tão
seus contos e romances. Sob a forma branda, é o problema facilmente porque já estavam laten-
Nas obras dos grandes escrito- da divisão do ser ou do desdo- tes em todos; portanto, o mérito não é
res é mais visível a polivalência do bramento da personalidade, estu- da sua terapia. Não haveria um só
verbo literário. Elas são grandes por- dado por Augusto Meyer. Sob a homem normal, imune às solicitações
que são extremamente ricas de forma extrema é o problema dos das manias, das vaidades, da falta
significado, permitindo que cada limites da razão e da loucura, que de ponderação? Analisando-se bem,
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vê que é o seu caso; e resolve inter- foi um dos temas centrais do tramos em diversos contos e sobre-
nar-se, só no casarão vazio do hospí- existencialismo literário contempo- tudo num dos mais belos e pun-
cio, onde morre meses depois. E nós râneo, em Sartre e Camus, por gentes que escreveu: “Um Homem
perguntamos: quem era louco? Ou exemplo. Serei eu alguma coisa Célebre”.
seriam todos loucos, caso em que nin- mais do que o ato que me exprime? Trata-se de um compositor de
guém o é? Notemos que este conto e Será a vida mais do que uma polcas, Pestana, o mais famoso do
o anterior manifestam, no fim do século cadeia de opções? Num dos seus momento, reconhecido e louvado por
XIX, o que faria a voga de Pirandello melhores romances, Esaú e Jacó, onde vá, procurado pelos editores,
a partir do decênio de 1920. ele retoma, já no fim da carreira, abastado materialmente. No entanto,
este problema que pontilha a sua Pestana odeia as suas polcas que
q Dom Casmurro obra inteira. Retoma-o sob a for ma toda a gente canta e executa, porque
Outro problema que surge com sim bó lica da rivalidade perma - o seu desejo é compor uma peça
frequência na obra de Machado de nente de dois irmãos gêmeos, erudita de alta qualidade, uma sona-
Assis é o da relação entre o fato real Pedro e Paulo, que representam ta, uma missa, como as que admira
e o fato imaginado, que será um dos invaria velmente a alter na tiva de em Beethoven ou Mozart. À noite,
eixos do grande romance de Marcel qualquer ato. Um só faz o contrário postado no piano, leva horas solici-
Proust, e que ambos analisam princi- do outro, e evidentemente as duas tando a inspiração que resiste. De-
palmente com relação ao ciúme. A possibili da des são legítimas. O pois de muitos dias, começa a sentir
mesma reversibilidade entre a razão grande problema suscitado é o da algo que prenuncia a visita da deusa
e a loucura, que torna impossível de- validade do ato e de sua relação e a sua emoção aumenta, sente
marcar as fronteiras e, portanto, de- com o intuito que o sustém. Através quase as notas desejadas brotando
fini-las de modo satisfatório, existe da crônica aparen temente cor - nos dedos, atira-se ao teclado e...
entre o que aconteceu e o que riqueira de uma família da bur- compõe mais uma polca! Polcas e
pensamos que aconteceu. (…) Uma guesia carioca no fim do Império e sempre polcas, cada vez mais bri-
estudiosa norte-americana, Helen começo da Re pú blica, surge a lhantes e populares é o que faz até
Caldwell, no livro The Brazilian cada instante este debate, que se morrer. A alternativa é negada tam-
Othello of Machado de Assis, levan- comple ta pelo terceiro per sona - bém a ele; só lhe resta fazer como é
tou a hipótese viável, porque bem gem-chave, a moça Flora, que possível, não como lhe agradaria.
machadiana, de que na verdade ambos os irmãos amam, está claro,
Capitu não traiu o marido. Como o mas que, situada entre eles, não q Conclusão
livro é narrado por este, na primeira sabe como escolher. É a ela, como Isto é dito para justificar um con-
pessoa, é preciso convir que só a outras mulheres na obra de selho final: não procuremos na sua
conhecemos a sua visão das coisas, Machado de Assis, que cabe obra uma coleção de apólogos nem
e que para a furiosa “cristalização” encarnar a decisão ética, o com- uma galeria de tipos singulares. Pro-
negativa de um ciumento, é possível promisso do ser no ato que não curemos sobretudo as situações fic-
até encontrar semelhanças inexisten- volta atrás, porque uma vez pra- cionais que ele inventou. Tanto aque-
tes, ou que são produtos do acaso ticado define e obriga o ser de las onde os destinos e os aconteci-
(como a de Capitu com a mãe de quem o praticou. Os irmãos agem e mentos se organizam segundo uma
Sancha, mulher de Escobar). Mas o optam sem parar, porque são as espécie de encantamento gratuito;
fato é que, dentro do universo ma- alter nativas opostas; mas ela, que quanto as outras, ricas de significado
chadiano, não importa muito que a deve identificar-se com uma ou em sua aparente simplici- dade,
convicção de Bento seja falsa ou com outra, se sentiria reduzida à manifestando, com uma enganadora
verdadeira, porque a consequência metade se o fizesse, e só a posse neutralidade de tom, os conflitos
é exatamente a mesma nos dois das duas metades a realizaria; isto essenciais do homem consigo mes-
casos: imaginária ou real, ela destrói é impossível, porque seria suprimir mo, com os outros homens, com as
a sua casa e a sua vida. E concluí- a própria lei do ato, que é a opção. classes e os grupos. A visão resul-
mos que neste romance, como nou- Simbolicamente, Flora morre sem tante é poderosa, como esta palestra
tras situações da sua obra, o real escolher. não seria capaz sequer de sugerir. O
pode ser o que parece real. melhor que posso fazer é aconselhar
q “Um Homem Célebre” a cada um que esqueça o que eu
q Esaú e Jacó Parece evidente que o tema da disse, compendiando os críticos, e
Neste caso, que sentido tem o opção se completa por uma das abra diretamente os livros de Macha-
ato? Eis outro problema funda - obsessões fundamentais de Macha- do de Assis.
mental em Machado de Assis, que do de Assis, muito bem analisada
o aproxima das preocupações de por Lúcia Miguel-Pereira — o tema (Antonio Candido. “Esquema de
escritores como o Conrad de Lord da perfeição, a aspiração ao ato Machado de Assis”. Vários Escritos. São
Jim ou de The Secret Sharer, e que completo, à obra total, que encon- Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970.)
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MÓDULO 31 Aluísio Azevedo


Realismo), com a publicação de O 3. CARACTERÍSTICAS
Mulato, de Aluísio Azevedo. DAS OBRAS

q Obra heterogênea
2. ALUÍSIO AZEVEDO
(1857-1913) Alterna romances naturalistas, de
vigor crítico e estofo cientificista, com
q Vida melodramas românticos, publicados
em folhetins pela imprensa e que
Filho de vice-cônsul português
foram, durante algum tempo, o ga-
em São Luís, transfere-se para o Rio
nha-pão do autor.
de Janeiro após ter atacado a con-
servadora sociedade maranhense
com a publicação de O Mulato. No
Rio, juntou-se ao irmão, o famoso co-
mediógrafo Artur Azevedo. Foi jorna-
lista e escreveu romances, contos,
operetas e revistas teatrais. Era
também bom desenhista, hábil na
Aluísio Azevedo arte da caricatura. Esse seu talento,
aliás, tem relação com a força plás-
1. NATURALISMO NO BRASIL tica de suas descrições. Tentou so-
breviver de sua profissão de escritor Courbet, Os Britadores de Pedras – Óleo
Caracterizando-se como um Rea- e, para isso, teve de aceitar encomen- sobre tela – 1849 – coleção particular,
lismo mais extremado, o Naturalismo das de editores, que lhe pediam ro- Milão, Itália.
tem como elemento fundamental o mances românticos ao gosto do pú-
determinismo cientificista, que diver- blico, em completo contraste com seus q Romance social
ge do determinismo sociopolítico, tí- ideais literários. Aos 38 anos aban- Nos livros mais bem realizados,
pico do Realismo. No final do século donou a carreira literária, ingres- Aluísio Azevedo revela extraordinário
XIX, junto ao avanço da ciência sur- sando na diplomacia. poder de dar vida aos agrupamentos
ge uma nova visão de mundo, diver- humanos, às habitações coletivas,
q Os folhetins romanescos onde os protagonistas vão, social e
sa da idealização romântica: Ver-
dade, Razão e Ciência são agora os Decorrem da atividade de Aluísio moralmente, se degradando, por for-
ideais. Observação e análise são Azevedo como escritor profissional; ça da opressão social e econômica e
seus métodos. Produzir uma arte do- têm escasso valor literário e represen- dos impulsos irreprimíveis da sexuali-
tam meras concessões ao gosto do dade, das taras e dos vícios.
cumental é seu objetivo. O autor na-
turalista constrói enredo, trama e per- leitor da época. Escritos sem muito
cuidado, para publicação na impren- q Visão rigorosamente
sonagens com a intenção de com-
sa diária, o próprio autor reconhecia a determinista
provar certas teorias, nas quais
fragilidade desses trabalhos. Para o autor, o Homem e a socie-
acredita, sobretudo aquelas das
Essas obras são: Uma Lágrima dade estavam submetidos às leis
ciências biológicas: Evolucionismo, inexoráveis da raça (instinto, heredi-
de Mulher, Condessa Vésper, Girân-
Genética, Patologia. A nova visão tariedade), do meio (geográfico, so-
dola de Amores, Filomena Borges e
teórica repercute na prática política cial) e do momento (circunstâncias
A Mortalha de Alzira.
de vários autores, por meio da qual históricas).
se manifestam as preocupações so- q Os romances
cialistas, atividades abolicionistas e realistas-naturalistas q Influências de Eça
a tendência anticlerical. Constituem o segmento apreciá- de Queirós e Émile Zola
Os principais autores naturalistas vel da obra de Aluísio Azevedo, Utilizou a técnica do tipo, defor-
brasileiros foram Aluísio Azevedo, ainda que seja um conjunto bastante mando, pelo exagero, os traços,
Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha, Do- heterogêneo, sem resíduos românti- criando verdadeiras caricaturas. Não
mingos Olímpio e Inglês de Sousa. cos, com documentação realista, conseguiu criar personagens que
Todos seguiram o mestre francês Émile experimentação naturalista etc. O pudessem transcender as condições
Zola, o mais importante escritor des- Mulato, Casa de Pensão, O Coruja, O sociais que as geraram. As persona-
se movimento. O Naturalismo, no Brasil, Homem, O Cortiço e O Livro de uma gens são psicologicamente superfi-
tem início em 1881 (assim como o Sogra são as obras dessa vertente. ciais e subsistem apenas em função
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de contextos predeterminados. Não vida e morte de um cortiço, meio pelo que aspira à nobreza. Do outro, a
há drama moral; os protagonistas qual seu dono, o português João “gentalha”, caracterizada como um
são vistos “de fora”, e a tragédia em Romão, pretende enriquecer. Ao la- conjunto de animais, movidos pelo
que as tramas desembocam decorre do, há um sobrado, que simboliza um instinto e pela fome:
apenas do fatalismo das doutrinas nível social mais elevado e cujo E naquela terra encharcada e fu-
deterministas. proprietário é também um português, megante, naquela umidade quente e
Não há o refinamento estilístico de o comendador Miranda. Os portu- lodosa, começou a minhocar, a fervi-
Machado de Assis, nem a potência gueses conseguem ascensão econô- lhar, a crescer um mundo, uma coisa
verbal de Raul Pompeia, mas os diá- mica e social rápidas, que obtêm por viva, uma geração que parecia brotar
logos se salvam pela vivacidade, pela meio da exploração do brasileiro, re- espontânea, ali mesmo, daquele
frase sempre incisiva. Há visível ten- presentado coletivamente pelo povo lameiro e multiplicar-se como larvas
dência lusitanizante, o que se explica do cortiço. É nesse espaço social no esterco.
pela origem luso-maranhense do autor. que as leis ambientais interferem no (...)
indivíduo e determinam seu compor- As corridas até a venda reprodu-
q O Mulato (1881) tamento. O cortiço e a negra Berto- ziam-se num verminar de formigueiro
Obra de crítica ao preconceito leza, amásia de João Romão, só lhe assanhado.
racial e à Igreja. O mulato Raimundo, interessam enquanto lhe são úteis. A redução das criaturas ao nível
educado na Europa, retorna a São Quando João Romão se casa com animal (zoomorfismo) é caracterís-
Luís para conhecer suas origens. Zulmira, a filha do comendador, e tica do Naturalismo e revela a in-
Apaixona-se por sua prima Ana atinge a posição social desejada, fluência das teorias da Biologia do
Rosa, mas a família lhes impede o nem Bertoleza, que o ajudara a subir século XIX (darwinismo, lamarquis-
casamento. Pretendem fugir, mas na vida, nem o cortiço, com o qual mo) e do determinismo (raça,
Raimundo é perseguido e morto a enriquecera, são mais necessários: o meio, momento):
mando do padre Diogo, que represen- cortiço sofre um incêndio e passa por ...depois de correr meia légua,
ta a degradação do clero. Ana Rosa remodelação, e Bertoleza, rejeitada e puxando uma carga superior às suas
acaba se casando com o assassino, denunciada à polícia (era uma escra- forças, caiu morto na rua, ao lado da
com quem viverá de modo feliz. va foragida), suicida-se.
carroça, estrompado como uma besta.
(...)
q Casa de Pensão (1884) Leandra... a ‘Machona’, portugue-
4. CARACTERÍSTICAS
Narrativa intermediária entre o sa feroz, berradoura, pulsos cabelu-
DE O CORTIÇO
romance de personagem (O Mulato) dos e grossos, anca de animal do
e o romance de espaço ou de cole- campo.
tividade (O Cortiço). Inspirado em um q Romance social (...)
caso verídico, a Questão Capistrano, Desistindo de montar um enredo Rita Baiana... uma cadela no cio.
crime que sensibilizou o Rio de em função de pessoas, [Aluísio] ate-
Janeiro entre 1876 e 1877, expressa ve-se à sequência de descrições q A força do sexo
uma visão determinista. Amâncio muito precisas onde cenas coletivas
O sexo é, em O Cortiço, força
Vasconcelos, personagem central, e tipos psicologicamente primários
mais degradante que a ambição e a
tem suas ações e comportamento fazem, no conjunto, do cortiço a per-
cobiça. A supervalorização do sexo,
determinados pela formação (a sonagem mais convincente do nosso típica do determinismo biológico e do
educação severa, a superproteção romance naturalista. (Alfredo Bosi, Naturalismo, conduz Aluísio a buscar
materna, a sífilis contraída da ama- História Concisa da Literatura Bra- quase todas as formas de patologia
de-leite). Ele, um jovem e rico mara- sileira) sexual: desde o “acanalhamento”
nhense, chega ao Rio de Janeiro Todas as existências se entrela- das relações matrimoniais até o adul-
para estudar Medicina. Boêmio e çam e repercutem umas nas outras. tério, prostituição, lesbianismo etc.
extravagante, hospeda-se na pensão O cortiço é o núcleo gerador de tudo
de João Coqueiro, que trama casá-lo
e, feito à imagem de seu proprietário,
com sua irmã, Amélia, para apossar- q A situação da mulher
se da fortuna de Amâncio. Com a cresce, desenvolve-se e se trans-
As mulheres são reduzidas a três
recusa do rapaz, Coqueiro o denun- forma com João Romão. condições: a primeira, de objeto,
cia falsamente por violência sexual usadas e aviltadas pelo homem:
contra a irmã, é derrotado na justiça q A crítica ao Bertoleza e Piedade; a segunda,
e, inconformado, mata Amâncio. capitalismo selvagem de objeto e sujeito, simultaneamente:
O tema é a ambição e a explora- Rita Baiana; a terceira, de sujeito
q O Cortiço (1890) ção do homem pelo próprio homem. — são as que independem do ho-
Ambientado no Rio de Janeiro, De um lado, João Romão, que mem, prostituindo-se: Leonie e
este romance narra o nascimento, aspira à riqueza, e Miranda, já rico, Pombinha.
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MÓDULO 32 Raul Pompeia


1. RAUL POMPEIA como microcosmo da sociedade. – elementos impressionis-
(1863-1895) “Vais encontrar o mundo” é a pri- tas: evidenciam-se no trabalho da
meira sentença do livro. memória como fio condutor. O pas-
Narrado em primeira pessoa por sado é recriado por meio de “man-
Sérgio, um homem que revê seu pas- chas” de recordação — daí a exis-
sado e conta passagens de sua vida tência de um certo esfumaçamento
de menino, o romance estrutura-se da realidade, pois o internato é
por meio de “manchas de recorda- reconstituído por meio das impres-
ção”, ou seja, de uma sucessão de sões, mais subjetivas que objetivas.
episódios, cujo fio condutor é a me- A técnica impressionista que
mória do personagem-narrador. A Pompeia utiliza consiste em destacar
evocação do passado faz que a se- antecipadamente do objeto que
quência cronológica de fatos (o tem- descreve um ou mais traços e seu
po objetivo) seja entrecortada por efeito no observador. Há quem, por
associações e semelhanças sub- isso, rotule O Ateneu de romance
conscientes (o tempo subjetivo, a impressionista:
duração interior). Esse procedimento Transformara-se em anfiteatro
evidencia certa ruptura do romance uma das grandes salas da frente do
com os modos realista e naturalista edifício, exatamente a que servia de
de mera observação objetiva da vida. capela; paredes estucadas de sun-
Raul Pompeia tuosos relevos, e o teto aprofundado
B) Há uma superposição de
diversos estilos, o que torna proble- em largo medalhão, de magistral
q Vida
mática a vinculação de O Ateneu a pintura, onde uma aberta de céu azul
Nascido em Angra dos Reis (RJ), despenhava aos cachos deliciosos
em 1863, Raul Pompeia estudou uma determinada corrente estética.
Assim, podemos identificar anjinhos, ostentando atrevimentos
Direito e ocupou cargos públicos. róseos de carne, agitando os minús-
Militou no movimento abolicionista e – elementos expressionis-
culos pés e, as mãozinhas, desatan-
no republicano e colaborou na Gaze- tas: a linguagem do livro aproxima-se
do fitas de gaza no ar.
ta de Notícias, de José do Patrocínio. da técnica expressionista, que consis-
– elementos naturalistas:
Envolveu-se em diversas polêmicas te na deformação grotesca e mórbida
decorrem da concepção instintiva e
e num duelo com Olavo Bilac. Suici- do que se descreve. Apresenta enor-
animalesca das personagens, cujo
dou-se na noite de Natal de 1895, me poder para a caricatura (distor-
comportamento é determinado pela
aos 32 anos. ção ou ênfase dos elementos domi-
sexualidade, condição social etc. Há
nantes de um objeto ou de uma pes-
q Obra um certo gosto “naturalista” pelas
soa) e grandes recursos de imagens
A) Prosa “perversões”. É o que ocorre nas
visuais e sonoras. A frase transmite
– Uma Tragédia no Amazonas descrições de Ângela e na tensão do
uma forte carga emocional. O estilo é
(romance) homossexualismo que existe nas
nervoso, ágil. A redução das perso- relações de Sérgio com Sanches,
– Microscópicos (contos) nagens a caricaturas parece prove-
– As Joias da Coroa (romance) Bento Alves e Egbert:
niente da intenção de deformar, de Ângela tinha cerca de vinte anos;
– O Ateneu (romance) exagerar, como se Raul Pompeia
– Agonia (romance inacabado e parecia mais velha pelo desenvolvi-
estivesse se “vingando” de tudo e de mento das proporções. Grande, car-
inédito) todos:
B) Poesia nuda, sanguínea e fogosa, era um
Os companheiros de classe desses exemplares excessivos do
– Canções sem Metro (poemas eram cerca de vinte; uma variedade
em prosa) sexo que parecem conformados ex-
de tipos que divertia. O Gualtério, pressamente para esposas da mul-
miúdo, redondo de costas, cabelos tidão — protestos revolucionários
q O Ateneu: Crônica de revoltos, motilidade brusca e caretas contra o monopólio do tálamo.
Saudades de símio palhaço dos outros, como Mas é um naturalismo dissiden-
A) O romance O Ateneu, Crônica dizia o professor. O Nascimento, o bi- te, que nada tem a ver com o aprio-
de Saudades (1888) focaliza a vida canca, alongado por um modelo ge- rismo ou com o esquematismo
em um internato, apresentando pe- ral de pelicano, nariz esbelto, curvo e característicos dessa corrente. O
netrante análise social e psicológica largo como uma foice; (...) o Negrão, doutor Cláudio, conferencista que
das personagens: Aristarco, o diretor de ventas acesas, lábios inquietos, algumas vezes pontifica no internato,
(que personifica o poder), professo- fisionomia agreste de cabra, canhoto e que exterioriza algumas ideias
res, funcionários e alunos, e a escola e anguloso... artísticas do próprio Raul Pompeia,
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define a arte como o processo sub- de decifrar o sistema de ideias que extremo gozo em que pode ficar a vida porque
jetivo da “evolução secular do ins- se poderia depreender. fora uma conclusão triunfal. Notas graves,
uma, uma; pausas de silêncio e treva em que
tinto da espécie”. 1.a) Fala sobre a cultura brasi- o instrumento sucumbe e logo um dia claro de
Seria possível rastrear, em O leira, em que os desejos republica- renascença, que ilumina o mundo como o
Ateneu, aproximações também com nos de Pompeia se mostram, momento fantástico do relâmpago, que a
o Parnasianismo, com o Simbolismo investigando o “pântano das escuridão novamente abate...
Há reminiscências sonoras que ficam per-
e, até, antecipações modernistas. almas” da vida emocional, sob a pétuas, como um eco do passado. Recorda-me,
C) O comportamento sexual é o “tirania mole de um tirano de às vezes, o piano, ressurge-me aquela data.
traço mais valorizado na personali- sebo”. Do fundo repouso caído de convalescente,
dade dos adolescentes do internato, 2.a) Fala sobre a arte, entendida serenidade extenuada em que nos deixa a
febre, infantilizados no enfraquecimento como
divididos em “machos” e “fêmeas”, pré-freudianamente como “educa- a recomeçar a vida, inermes contra a
em dominadores e dominados. Ob- ção do instinto sexual”, e ante- sensação por um requinte mórbido da
serve o que diz o narrador em rela- cipando também Nietzsche como sensibilidade — eu aspirava a música como a
ção ao seu colega Bento Alves: “expressão dionisíaca”: embriaguez dulcíssima de um perfume
funesto; a música envolvia-me num contágio
Estimei-o femininamente, porque Cruel, obscena, egoísta, imoral, in- de vibração, como se houvesse nervos no ar.
era grande, forte, bravo; porque me dômita, eternamente selvagem, a arte As notas distantes cresciam-me n’alma em
podia valer, porque me respeitava, é a superioridade humana acima dos ressonância enorme de cisterna; eu sofria,
quase tímido, como se não tivesse âni- preceitos que se combatem, acima como das palpitações fortes do coração quan-
do o sentimento exacerba-se — a
mo de ser amigo. Para me fitar espera- da ciência que se corrige: “embria-
sensualidade dissolvente dos sons.
va que eu tirasse dele os meus olhos. guez como a orgia e como o êxtase”. Lasso, sobre os lençóis, em conforto ideal
D) Raul Pompeia projeta no inter- 3.a) Fala sobre as relações entre de túmulo, que a vontade morrera, eu deixava
nato toda a problemática do mundo a escola e a sociedade: martirizar-me o encanto. A imaginação de
asas crescidas fugia solta.
adulto. O Ateneu é uma redução, em (...) Não é o internato que faz a sociedade; (...)
escala, da visão que o autor tinha da o internato a reflete. A corrupção que ali viceja
sociedade como um todo. O móvel vai de fora. (...) (Raul Pompeia, O Ateneu, cap. XII)
(...)
das ações de Aristarco era o dinhei- A educação não faz as almas; exercita-as.
ro, e os alunos eram tratados pelo Vocabulário e Notas
(Raul Pompeia, O Ateneu, cap. XI)
diretor conforme o segmento social a
1 – Gottschalk: Louis Moreau Gottschalk
que pertenciam seus pais. Música estranha, na hora cálida. Devia ser (1829-1869), pianista e compositor nascido
Raul Pompeia não deixa ao arbí- Gottschalk1. Aquele esforço agonizante dos em Nova Orleans (EUA) e falecido no Rio de
trio dos futuros intérpretes o trabalho sons, lentos, pungidos, angústia deliciosa de Janeiro.

MÓDULO 33 Parnasianismo
1. ORIGENS romana (Monte Parnaso = região da 2. ANTECEDENTES
Fócida, na Grécia, que a mitologia BRASILEIROS
O Parnasianismo remete-nos contemplava como a morada dos
ao mesmo contexto histórico-cultural Em 1878, desfere-se pelas pági-
deuses e poetas, ali isolados do
do Realismo e do Naturalismo e nas do Diário do Rio de Janeiro a
mundo para dedicarem-se exclusiva- “Batalha do Parnaso”, polêmica,
compartilha, com esses dois movi-
mente à arte). Isso sugere a apro- em versos agressivos (e de má quali-
mentos, de alguns ideais e de algu-
ximação às fontes e aos ideais dade), entre os defensores da
mas atitudes: a negação do sub-
clássicos da arte (o Belo, o Bem, “IDEIA NOVA” e os epígonos do
jetivismo, a postura antirro-
a Verdade, a Perfeição, o Equilíbrio, a Romantismo.
mântica e a luta contra “o uso
Disciplina e o rigor formal, a obe- Influenciados pela Questão Coim-
profissional e imoderado das
diência às regras e aos modelos, a brã e pelas obras dos poetas rea-
lágrimas”. listas portugueses Teófilo Braga
arte como imitação da natureza — a
O movimento parnasiano surgiu (Visão dos Tempos) e Antero de
mimese aristotélica, a Razão, o
na França em 1866, com a edição da Quental (Odes Modernas), os arau-
antologia Le Parnasse Contem- antropocentrismo). São frequentes as
tos da “IDEIA NOVA” combatiam
porain. Abrigando poetas de tendên- alegorias fundadas na mitologia e na
os “Abreus e Varelas”, opondo-se ao
cias diversas, como Théophile história da Grécia e de Roma: “O sentimentalismo piegas e à frouxidão
Gautier, Leconte de Lisle, Charles Sonho de Marco Antônio”, “A Sesta dos versos dos últimos românticos, e
Baudelaire, Heredia, Banville, havia de Nero”, “O Triunfo de Afrodite”, “O propunham algumas atitudes:
em comum a oposição ao sentimen- Incêndio de Roma”, “A Tentação de • a poesia participante,
talismo romântico. Xenócrates”, “O Julgamento de Fri- que pregasse a justiça, a república
neia”, “Delenda Cartago”, todos de fraternal, o progresso científico e
A denominação Parnasianismo
Olavo Bilac, “O Vaso Grego” e “A Vol- material, atacando, algumas vezes
remete-nos à antiguidade greco-
ta da Galera”, de Alberto de Oliveira. de forma desabrida, as instituições; é
64 –
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o caso de Lúcio de Mendonça, Vocabulário especialmente o soneto (quase


Martins Júnior e Sílvio Romero. 1 – Beneditino: abnegado como um monge abandonado pelos românticos), além
beneditino.
• a poesia “realista”, com da sextina, da balada e do rondó.
abandono dos eufemismos relativos q A impassibilidade – O emprego de enjambements
ao amor por uma descrição mais dire- A contenção lírica como meio de quebrar a monotonia
ta do corpo e dos desejos, e ainda a Para desidentificar-se da anti- rítmica (enjambement — palavra fran-
poesia realista urbana e agreste; se- quíssima síntese entre eu e mundo, cesa que se pronuncia ãjãbemã — cor-
guem nessa direção: Carvalho Júnior, introduzindo um hiato entre essas responde ao prolongamento sintático
Bernardino Lopes e Teófilo Dias. duas instâncias do real, o narrador e semântico de um verso no verso
Cabe observar que os sonhos de parnasiano (o eu lírico) procura trans- seguinte, com supressão da pausa
justiça e a república fraternal já ha- formar a poesia em puro trabalho, característica do final do verso):
viam encontrado em Castro Alves, artefato, construção.
Daí a aproximação com os ideais E, de súbito, paramos na estrada
no último romantismo, uma expressão Da vida, longos anos, presa à minha
muito mais talentosa, convincente e das artes plásticas — o poeta- A tua mão, a vista deslumbrada
eloquente. ourives, o poeta-escultor, o Tive, da luz que seu olhar continha.
Costuma-se considerar as Fanfar- poeta-arquiteto, o poeta-pintor; (Olavo Bilac, “Nel Mezzo del Camin”)
ras, de Teófilo Dias, como o primeiro o poeta que modela pacientemente
livro parnasiano, em seu sentido sua obra, sem confundir-se com ela. q A poesia descritiva,
próprio. O Parnasianismo tal como Invejo o ourives quando escrevo:
plástica e visual
hoje o concebemos só se definiria com Imito o amor Os parnasianos pretendem apre-
Alberto de Oliveira, Raimundo Com que ele, em ouro, o alto relevo ender descritivamente o real, por meio
Faz de uma flor. de impressões sensoriais nítidas, apo-
Correia e Olavo Bilac, que cons-
(...) iando-se em imagens visuais, que
tituíram a Trindade Parnasiana e Torce, aprimora, alteia1, lima
realizaram suas obras sob os prin- A frase; e, enfim,
se convertem em verdadeiros
cípios da “arte pela arte”, da im- No verso de ouro engasta 2 a rima, cromos, tal a intensidade das
passibilidade e da perfeição Como um rubim. cores e do brilho.
formal, ainda que tivessem, todos Concentram-se na descrição de
Quero que a estrofe cristalina,
eles, estreado com versos românticos. Dobrada ao jeito fenômenos da natureza (o anoi-
Do ourives, saia da oficina tecer, a primavera, as árvores); na
3. CARACTERÍSTICAS Sem um defeito. fixação de cenas históricas e
(...)
mitológicas (“O Incêndio de
q A arte pela arte – (Olavo Bilac, “Profissão de Fé”) Roma”, “O Triunfo de Afrodite”); na
O esteticismo contemplação de objetos de
Vocabulário e Notas
Sintetizada na forma latina ars arte, exóticos e requintados (“O
1 – Altear: elevar.
Vaso Grego”, “O Leque”, “A Estátua”),
gratia artis (arte pela arte), a poesia 2 – Engastar: encravar, embutir.
privilegiando, também, a beleza
parnasiana propõe que a beleza
q Perfeição formal física da mulher.
formal justifica a existência do
poema, e que a arte não deve ter ou- Centrados no puro fazer poético,
tros compromissos senão com o os parnasianos instauram o mate- q O mito da
rialismo da forma. A palavra é tra- objetualidade e o Kitsch
belo, com a perfeição formal.
balhada como matéria-prima, que deve O gosto pelo exótico, pelo
Negando a poesia realista, filosó-
ser lapidada, burilada, cinzelada. diferente, o prazer da raridade visa
fico-científica e socialista de seus
A poesia deve ser fruto do esfor- especialmente a satisfazer “o bom
precursores, os parnasianos impõem
ço intelectual, da elaboração. Por isso, gosto” burguês, sua ânsia pelo raro,
uma atitude de distanciamento
os parnasianos, exímios conhecedo- pelo prestigioso, pela negação da
da vida, de afastamento do
res da língua, são “poetas de di- vulgaridade (sem esquecer que um
cotidiano, de alienação dos
cionário”, obcecados pela cor- - dos aspectos mais repelentes da
problemas do mundo, de des-
reção gramatical, pela pureza vulgaridade é o esforço medido e
prezo pela plebe e pelas aspi-
da linguagem, pela vernaculi- planejado para fugir dela).
rações populares e de recusa
dade, pela seleção vocabular. Buscando o raro e o requintado, o
de temas vulgares.
Outro aspecto desse formalismo parnasiano cai, muitas vezes, na
Assim, os parnasianos se fecham
é a valorização de alguns procedi- superficialidade, na obsessão do
em suas “torres-de-marfim”, en-
mentos, tais como adorno, esquecido da essência.
tregues ao puro fazer poético:
• o culto das rimas ricas, É nesse sentido que se alinham
Longe do estéril turbilhão da rua, raras e preciosas; al gumas objeções à atitude parna-
Beneditino1 escreve! No aconchego • a preferência pelos versos siana:
Do claustro, na paciência e no sossego, alexandrinos (12 sílabas métricas) • privilegiando a organização
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! léxica e gramatical do discurso poé-
e a metrificação rigorosa;
(Bilac, “A um Poeta”) • o gosto pelas formas fixas, tico, os parnasianos se esquecem de
– 65
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que a grande poesia consiste “na xou, além da obra poética que vere- penha em um maior comedimento,
linguagem carregada de signi- mos, crônicas, novelas, poesias in- quer do ímpeto romântico, quer do
ficação no mais alto grau fantis, conferências literárias e um convencionalismo parnasiano, valo-
possível” (Ezra Pound). Por isso os tratado de versificação. rizando o aspecto reflexivo e filo-
modernistas, entendendo que, na Estreou em 1888 com Poesias, sófico e as ce nas da natureza,
grande poesia, cada palavra livro saudado com entusiasmo por vazado em linguagem simples e
deve vibrar como um novo Alberto de Oliveira e Raimundo Cor- acessível, já distante do artificialis-
significado, atacaram duramente o reia, que formariam, com Bilac, a mo dos livros anteriores.
parnasianismo, no que ele tinha de “Trindade Parnasiana”. Em Tarde, Bilac procura, nos
ornamental e estereotipado; As Poesias, além de uma introdu- poemas descritivos, captar a tonali-
• diz-se que um artista pratica o ção em verso, chamada “Profissão de dade do momento fugaz, valorizan-
Kitsch quando ele mistura formas e Fé” — espécie de manifesto parnasia- do a sugestão e a notação impres-
truques para impressionar o aprecia- no —, continham três partes distintas: sionista:
dor, sugerindo, por meio de efeitos • Panóplias: poemas descritivos,
obedecendo rigorosamente aos câno- CANTILENA
previamente estudados, conotações
prestigiosas, ostentando falsa rique- nes parnasianos, aproveitando suges- Quando as estrelas surgem na tarde, surge
tões da antiguidade greco-romana, [a esperança...
za ou cultura. Toda alma triste no seu desgosto sonha um
O Kitsch está na base da cha- com referências que tendem à super-
[Messias:
mada indústria cultural, por meio da ficialidade e ao puramente ornamental. Quem sabe? o acaso, na sorte esquiva,
reprodução em série de obras de arte • Via-Láctea: trinta e cinco so- [traz a mudança
e objetos “raros” para deleite da clas- netos, tematizando o lirismo amoroso E enche de mundos as existências que
platônico, com o aproveitamento de [eram vazias!
se média neurotizada pelo status —
sugestões românticas e clássicas. Quando as estrelas brilham mais vivas,
(móveis Luís XV; porcelana inglesa
Obra de inegável êxito junto ao leitor, [brilha a esperança...
do século XVIII; escultura oriental da
resvala o Kitsch, reeditando, em Os olhos fulgem; loucas, ensaiam as asas
Dinastia Ming; quadros de grandes frias:
tom menor, a lírica de Camões e
mestres e pequenos pintores, Rem- Tantos amores há pela terra, que a mão
Bocage. O título Via-Láctea alude a [alcança!
brandt e Di Cavalcanti, lado a lado;
uma constante na poesia de Bilac: E há tantos astros, com outras vidas, para
peças do artesanato marajoara, as estrelas (“Ora (direis) ouvir [outros dias!
nordestino etc., tudo adquirido no estrelas! Certo / Perdeste o senso!”).
supermercado da esquina). • Sarças de Fogo: poemas eróti- Mas, de asas fracas, baixando os olhos, o
O Parnasianismo tem muito disso: [sonho cansa;
cos, centrados na beleza física da No céu e na alma, cerram-se as brumas,
provocar efeitos, valorizando o que é mulher e no amor carnal, reduzido a [gelam as luzes:
logro e ostentação, sob a máscara da um jogo bem-arranjado de palavras, Quando as estrelas tremem de frio, treme a
beleza e do prestígio. Nenhum dos nos- buscando mais o efeito que a genuí- [esperança...
sos parnasianos foi helenista, mas qua- na sensualidade. É um erotismo de- Tempo, o delírio da mocidade não
se todos recorreram a evoluções este- clamatório, que descamba, muitas ve- [reproduzes!
reotipadas da Antiga Grécia (galerias, zes, para algo próximo à pornografia. Dorme o passado: quantas saudades e
mármores, vasos, pártenons), trans- É o caso de “Tentação de Xenócra- [quantas cruzes!
formadas em verdadeiros fetiches. Quando as estrelas morrem na aurora,
tes”, “Satânia”, “O Julgamento de [morre a esperança...
4. AUTORES Frineia”, “Alvorada do Amor” e outras.
Em 1902, as Poesias foram acres- (Olavo Bilac)

q Olavo Bilac (1865-1918) cidas de três outros livros: Alma In- q Alberto de Oliveira
Olavo Brás Martins dos Guimarães quieta e Viagens, marcados por um (1859-1937)
Bilac, já no próprio nome um alexan- veemente temperamento romântico, Foi o mais ortodoxo dos nossos
drino perfeito, cursou Medicina e controlado pela disciplina formal parnasianos e o que seguiu com
Direito, sem concluir nenhum dos cur- aprendida com os parnasianos fran- maior rigor as propostas da escola:
sos. Viveu como jornalista, funcioná- ceses (Gautier, Leconte de Lisle e objetivismo, impassibilidade,
rio público, boêmio e poeta de largo Heredia), além do poema épico-
preocupação esteticista, rigor
prestígio no seu tempo. Foi eleito em patriótico “O Caçador de Esmeral-
formal e tecnicismo. Coerente
1913, pela revista Fon-Fon, o Prín- das”, escrito em sextilhas e alexan-
com as propostas parnasianas, afas-
cipe dos Poetas Brasileiros. drinos, evocando a figura de Fernão
tou-se do sentimentalismo e da pie-
Ativista nas campanhas abolicio- Dias Pais, apoiado na tradição
guice, realizando uma poesia des-
nista, republicana, civilista, pelo ser- ufanista e motivado pelo civismo,
critiva, plástica, visual, apoiada nos
viço militar obrigatório, pela vacina que Bilac praticou na frequente
exaltação da pátria, de seus símbo- modelos clássicos renascentistas e
obrigatória, pela reurbanização do
los e heróis. arcádicos.
Rio de Janeiro, pela entrada do Brasil
na Primeira Grande Guerra; autor da • Em 1919, aparece o livro pós- Obras
letra do Hino à Bandeira, Bilac dei- tumo Tarde, em que o poeta se em-
– Canções Românticas
– Meridionais
66 –
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– Sonetos e Poemas mulher, recorrendo a formas e moti- q Vicente de Carvalho


– Versos e Rimas vos que se aproximam de Casimiro (1886-1924)
– Por Amor de uma Lágrima de Abreu e dos românticos menores. Assumiu uma postura indepen-
– O Livro de Ema Sinfonias marca a adesão do dente em relação às tendências for-
– Alma em Flor poeta ao Parnasianismo, reunindo malistas do Parnasianismo, manten-
VASO GREGO seus melhores e mais conhecidos do o veio romântico e sentimental que
poemas: “As Pombas”, “Mal Secreto”. marcou sua estreia, nos livros Arden-
Esta de áureos relevos, trabalhada
tias e Relicário. Absorveu também a
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada, MAL SECRETO fluidez, a musicalidade, a melancolia
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia. e a emotividade do Simbolismo.
Se a cólera que espuma, a dor que mora Em Poemas e Canções e Rosa,
Era o poeta de Teos que a suspendia N’alma e destrói cada ilusão que nasce, Rosa de Amor, firma-se como um
Então, e, ora repleta ora esvazada, Tudo o que punge, tudo o que devora
grande lírico da natureza, fundindo o
A taça amiga aos dedos seus tinia, O coração, no rosto se estampasse;
Toda de roxas pétalas colmada.
sensorial e o emotivo, em uma lingua-
Se se pudesse o espírito que chora gem nova e pessoal, marcada pela
Depois... Mais o lavor da taça admira, Ver através da máscara da face, plasticidade, pela musicalidade e
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas Quanta gente, talvez, que inveja agora pelas ressonâncias psicológicas.
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce, Nos causa, então piedade nos causasse!
q Francisca Júlia
Ignota voz, qual se da antiga lira Quanta gente que ri, talvez, consigo
Fosse a encantada música das cordas, Guarda um atroz, recôndito inimigo, (1874-1920)
Qual se essa voz de Anacreonte fosse. Como invisível chaga cancerosa! Mármores, sua obra mais expres-
siva, submete-se rigorosamente aos
q Raimundo Correia
Quanta gente que ri talvez existe, preceitos parnasianos: esteticismo,
Cuja ventura única consiste contenção lírica, perfeccionismo. A
(1859-1911) Em parecer aos outros venturosa!
poetisa paulistana, muito considera-
Em Primeiros Sonhos, livro de es-
da em sua época pelos mestres
treia (1879), que reúne a poesia de Outras obras parnasianos, configurou, ao lado de
adolescência, revela a aproximação – Versos e Versões Alberto de Oliveira, a vertente mais
com o Romantismo, na idealização da – Aleluias ortodoxa da escola.

MÓDULO 34 Simbolismo: Características, Autores e Obras

1. CONCEITO E ÂMBITO A oposição ao racionalismo, às q Decadentismo e


pretensões cientificistas e ao progres- Simbolismo
q A reação antimaterialista, sismo da sociedade industrial tem O termo decadentismo foi aplica-
antipositivista e como precursores alguns filósofos — do às primeiras manifestações da lite-
antirrealista como Schopenhauer e Kierkegaard ratura simbolista, que ocorreram em
A ciência e a técnica permitiram — e alguns escritores e poetas “es- Paris, em torno dos anos 1880-90. A
ao homem do fim do século XIX um tranhos”, como o americano Edgar designação perdeu a conotação pejo-
extraordinário conforto material (tele- Allan Poe. Charles Baudelaire, gran- rativa inicial, que lhe foi atribuída
fone, motor a explosão, microfone, fo- de poeta que se afasta dos padrões pelos opositores da nova literatura, e
nógrafo, raios X, cinematógrafo, telé- passou a designar um conjunto de
do Parnasianismo de seu tempo, é
grafo, lâmpada incandescente), pro- elementos típicos como: gosto por
um dos pais da nova poética, de que
vocando enorme euforia. O espírito signos do refinamento e da ele-
serão expoentes Stéphane Mallarmé,
científico, o materialismo, o positivis- gância intelectual de certas épocas
mo, o determinismo transformaram- Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. O tidas como “decadentes” (o helenis-
se numa verdadeira religião. desenvolvimento da ciência, em fins mo de Alexandria, o fim do Império
Contudo, alguns intelectuais, dis- do século XIX e início do século XX, Romano); a predileção por experiên-
tanciados dessa euforia, começaram orientou-se para caminhos seme- cias raras, sutis, artificiosas, “proi-
a expressar a necessidade de supe- lhantes aos trilhados por aqueles bidas”; a recuperação de um ideal
rar a visão racionalista e mecanicista grandes pensadores e poetas. Assim, esgotado de beleza; a evocação de
do universo, colocando questões a física relativista de Einstein colocou um Oriente misterioso e sensual; o
que transcendem a possibilidade de em questão alguns postulados bási- desprezo pelas ideias humanitárias e
comprovação objetiva, na busca de cos da ciência tradicional, enquanto socialísticas; a recusa do positivismo
um modo suprarracional de conheci- Freud inaugurou o estudo do incons- burguês; a exaltação do irracional e
mento, que pudesse penetrar as ca- ciente e abalou crenças fundamen- o interesse no esotérico, no oculto, na
madas profundas do “eu” e traduzir tais a respeito da lógica do compor- ascese mística ou, no outro extremo,
os “mistérios” da vida. tamento humano. no inferno do submundo da prostituição

– 67
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e da marginalidade. Um exemplo sais para o plano do consciente a fim que se expressam por meio de si-
desse clima decadentista na literatura de comunicá-las a outrem. Era neces- nestesia, um tipo de metáfora que
de língua portuguesa se encontra na sário inventar uma linguagem nova, consiste na transferência (ou “cruza-
narrativa A Confissão de Lúcio, de fundada numa gramática e numa mento”) de percepção de um senti-
Mário de Sá-Carneiro. Também Fer- sintaxe psicológica, utilizando arcaís- do para outro, ou seja, a fusão, num só
nando Pessoa, contemporâneo e ami- mos, termos exóticos e litúrgicos, re- ato de percepção, de dois sentidos ou
go de Sá-Carneiro, inicia a obra de correndo a neologismos, a inespera- mais. É o que ocorre em “ruído
seu heterônimo Álvaro de Campos das combinações vocabulares e a áspero” (audição e tato); “música do-
com um grande poema de explícito recursos gráficos (maiúsculas alegori- ce” (audição e gustação); “som colo-
teor decadentista, “Opiário”, confis- zantes, uso de cores na impressão rido” (audição e visão).
são de um viciado em ópio que viaja dos poemas).
por um Oriente fantástico (“um Orien- Para tentar traduzir as mensa- d) A música antes de tudo –
te ao oriente do Oriente”). Coinciden- gens cifradas do “eu profundo”, das as aliterações e assonâncias.
temente, aquele que é talvez o maior partes nebulosas do ser, os simbo- Para os simbolistas, a música
poeta simbolista da literatura de listas apelaram para a evocação, ocupa o primeiro lugar entre todas as
língua portuguesa, Camilo Pessanha, para a sugestão, empregando uma artes porque, liberta de toda referên-
foi viciado em ópio e viveu no Oriente linguagem indireta que apenas
cia específica aos diversos objetos da
(China). sugerisse os conteúdos emotivos e
vontade, poderia exprimi-la em sua
O nome simbolismo, que veio a sentimentais, sem narrá-los ou des-
essência.
substituir decadentismo, foi proposto crevê-los. A metáfora e o símbolo
É o que propõe Verlaine.
por Jean Moréas, em manifesto pu- ganharão, a partir daí, nova estrutura
blicado em 1886 em defesa da nova e fisionomia, buscando as múltiplas
ARTE POÉTICA
escola. relações entre a essência do “eu
profundo”, a palavra e o objeto. Antes de tudo, a Música. Preza
Portanto o Ímpar. Só cabe usar
q As propostas do Simbolismo c) A teoria das correspon- O que é mais vago e solúvel no ar,
• Características dências – a sinestesia. Sem nada em si que pousa ou que pesa.
a) O Simbolismo pode ser consi- Propunha Baudelaire: “tudo, for-
ma, movimento, número, cor, perfume, Pesar palavras será preciso,
derado um prolongamento ou uma Mas com algum desdém pela pinça:
radicalização do Romantismo: retoma no [mundo] espiritual, como no Nada melhor do que a canção cinza
o subjetivismo, o individua- natural, é significativo, recíproco, Onde o Indeciso se une ao Preciso.
lismo, o espiritualismo, o sen- conversível, correspondente”.
Uns belos olhos atrás do véu,
tido conflituoso “eu x mundo”, e CORRESPONDÊNCIAS O lusco-fusco no meio-dia,
leva às últimas consequências a A turba azul de estrelas que estria1
concepção de mundo inaugurada com A natureza é um templo onde vivos pilares O outono agônico2 pelo céu!
Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas
as doutrinas romântico-liberais.
Fazem o homem passar através de florestas Pois a Nuance é que leva a palma,
Mas, contrariamente aos românti- De símbolos que o veem com olhos familiares. Nada de Cor, somente a nuance!
cos, os simbolistas entendiam que a Nuance, só, que nos afiance3
poesia não é somente emoção, Como os ecos além confundem seus rumores O sonho ao sonho e a flauta na alma!
mas a tomada de consciência Na mais profunda e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade, Foge do Chiste4, a Farpa mesquinha,
dessa emoção; que a atitude Harmonizam-se os sons, os perfumes e as Frase de espírito, Riso alvar5,
poética não é unicamente afe- [cores. Que o olho do Azul faz lacrimejar,
tiva, mas ao mesmo tempo afe- Alho plebeu de baixa cozinha!
tiva e cognitiva. Por outras pala- Há perfumes frescos como carnes de criança,
Doces como os oboés, verdes como as A eloquência? Torce-lhe o pescoço!
vras: a poesia carrega em si uma E convém empregar de uma vez
[campinas,
certa maneira de conhecer. E outros, corrompidos, mas ricos e triunfantes, A rima com certa sensatez
b) O mergulho no “eu pro- Ou vamos todos parar no fosso!
fundo”, no inconsciente, a in- Que possuem a efusão das coisas infinitas
Como o sândalo1, o almíscar2, o benjoim3 e Quem nos dirá dos males da rima!
tuição, a sugestão. Que surdo absurdo ou que negro louco
[o incenso,
Buscando as esferas inconscien- Forjou em joia este toco oco
Que cantam o êxtase do espírito e dos
tes, o “eu profundo”, os simbolistas [sentidos. Que soa falso e vil sob a lima?
iniciam a exploração do mundo inte- (Charles Baudelaire,
rior, rompendo os níveis do razoável, Música ainda, e eternamente!
trad. de Jamil A. Haddad)
Que teu verso seja o voo alto
do lógico e atingindo os estratos Vocabulário e Notas Que se desprende da alma no salto
mentais anteriores à fala e à lógica. 1 – Sândalo, 2 – Almíscar, Para outros céus e para outra mente.
Mais do que tocar os desvãos do 3 – Benjoim: substâncias aromáticas.
inconsciente, pretendiam senti-los, Que teu verso seja a aventura
Esparsa ao árdego6 ar da manhã
examiná-los. A teoria das correspondên-
Que enchem de aroma o timo7 e a hortelã...
O problema mais difícil era o de cias propõe um processo cósmico E todo o resto é literatura.
como transportar as vivências abis- de aproximação entre as realidades (Verlaine, trad. de Augusto de Campos)

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Vocabulário e Notas ras”, “cabalístico”, “quimérico”, “tan- vidade romântica e parnasiana, sua
1 – Estriar: riscar. tálico”, “hialino”, “ebúrneo”, “cinamo- poesia espanta pela intensidade e
2 – Agônico: aflito.
3 – Afiançar: garantir. mos”, “quintessências” etc. pelas inovações. Apoiado nas corres-
4 – Chiste: gracejo. Esta musicalidade do Simbolismo pondências sinestésicas (sons /
5 – Alvar: grosseiro. apoia-se na valorização do su- cores / imagens / sentimento), propõe
6 – Árdego: impetuoso. gestivo e na diminuição do sig-
7 – Timo: tomilho.
uma instrumentação verbal, uma
nificado lógico das palavras: à poesia nem descritiva nem narrativa,
Visando à sugestão, à nuance,
medida que não entendemos o signifi- mas sugestiva; “nomear um objeto é
ao indeciso dos estados da al-
cado de uma frase, tendemos a prestar suprimir três quartos do prazer do
ma, ao vago do coração, ao ne-
mais atenção a seu aspecto sonoro. poema, que é feito da felicidade de
buloso, ao quimérico, ao místi-
co, ao inexprimível, ao trans- adivinhar pouco a pouco; sugeri-lo,
cendente, os simbolistas querem e) A alquimia do verbo – o eis o sonho, (...) pois deve haver
tocar o ouvido, sem feri-lo, por meio de ilogismo – o hermetismo. sempre enigma em poesia, e é o
procedimentos sonoros, tais como O verso simbolista é obscuro, objetivo da literatura — e não há outro
d1) a rima aproximativa, nem hermético, distanciando-se do vulgar — evocar os objetos”.
rica nem agressiva. e do profano. Construído por sucessi- f) Espiritualismo, misticismo,
d2) as aliterações: (sequência vas implicações de sentidos de sons, de subjetivismo intenso, ocultis-
de fonemas consonantais idênticos ritmos, vale pelas sugestões, e não mo.
ou de mesma área de articulação, por suas descrições ou explicações. A Ânsia de superação, de fuga do
dentro do mesmo verso). função do poema não é significar ou terreno, comunhão com os Astros,
dizer, mas existir por si mesmo, como o Espírito, o Alto, a Alma, o
E as cantilenas de serenos sons amenos Infinito, a Essência, o Desco-
fogem fluidas fluindo à fina flor dos fenos. objeto ideal, perfeito, oposto à
(Eugênio de Castro) nhecido. Fixação pela Idade Mé-
impureza do mundo.
dia e por vocabulário litúrgico de am-
Vozes veladas veludosas vozes biência eclesiástica (antífona,
Volúpias dos violões, vozes veladas. e1) Rimbaud, antecipando ca- missal, ladainha, hinos, breviá-
(Cruz e Sousa) minhos que os modernistas retomaram, rio, turíbulos, aras, incenso).
propunha a palavra poética acessível
d3) as assonâncias (sequên- a todas as significações; a fixação do g) As maiúsculas alegori-
cia dos mesmos fonemas vocálicos inexprimível; a alquimia do verbo, zantes.
nas sílabas tônicas de palavras su- buscando a Beleza por meio da Os simbolistas empregavam, sis-
cessivas ou próximas).
vertigem, do delírio, da aluci- tematicamente, substantivos comuns
Ó formas Alvas, brAncas, formas clAras nação sensorial, daí a alucinação escritos com inicial maiúscula, no inte-
(Cruz e Sousa) e o mistério da palavra. rior do verso, para realçá-los semanti-
camente, aumentando a sua expressi-
d4) as onomatopeias (com- “...ser vidente por meio de um vidade:
binação ou repetição de palavras, cu- longo, imenso e racional desregra-
jos sons, numa espécie de harmonia Indefiníveis músicas supremas,
mento de todos os sentidos; buscar a Harmonia da Cor e do Perfume...
imitativa, transmitem ideias si, esgotar em si todos os venenos, a Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
aproximadas ou exatas do objeto ou fim de só reter a quintessência.” Réquiem do sol que a Dor da luz resume
ação a que se refere o texto).
(Cruz e Sousa)
A catedral ebúrnea do meu sonho
e2) Cabe ressaltar que os simbolis-
Aparece na paz do céu risonho tas tinham verdadeira fixação pela no- h) É frequente o uso de reticên-
Toda branca de sol, tação cromática, especialmente pela cias, sugerindo a vaguidão, o indefi-
cor branca e suas variáveis se- nível, o inefável, bem como do co-
E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus” mânticas: cisne, lírio, linho, neve, né- nectivo bíblico e no início do verso.
voa, nívea, alvo; ou por objetos trans-
d5) as palavras raras e mu- lúcidos (astros, sol, luz, lua). Em Cruz e i) Pontos de contato com o
sicais, escolhidas pela sonoridade: Sousa há verdadeira obsessão pela Parnasianismo:
arcaísmos, neologismos, termos litúr- cor branca, que traduzia os ideais de – preocupação formal, culto da
gicos, combinações vocabulares ines- vaguidão, do mistério, da languidez, da rima, preferência pelo soneto
peradas, numa verdadeira verboma- espiritualidade, da pureza, do etéreo, (não sistematicamente);
nia: “absconso”, “adamantino”, “cíto- do oculto, do transcendente etc. – distanciamento da vida, des-
las”, “crótalos”, “lactescentes”, “oaris- e3) Stéphane Mallarmé repre- compromisso com as ques-
tos”, “cornamusas”, “balaústres”, senta o ponto mais radical que atingi- tões mundanas (os poetas das
“mádidas”, “dormências”, “clepsidra”, ram as experiências simbolistas. “torres de marfim”, os “nefeli-
“litanias”, “antífona”, “turíbulos”, “a- batas”).
Abandonando a retórica e a discursi-
– 69
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j) Antecipações da moder- marco inaugural da nova estética — Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
nidade: Oaristos, de Eugênio de Castro, de Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!
– ruptura com o descritivo e 1890.
linear;
– monólogo interior, captação do q q Camilo Pessanha
Antônio Nobre (1867-1900)
fluxo de consciência; Autor de Primeiros Versos, Despe- (1867-1926)
– desarticulação sintática e se- didas e Só, representa a vertente Filho natural de um estudante e
mântica; simbolista de raízes neorromânticas. uma moça do povo, nasceu em Coim-
– sondagem infinitesimal da Esse retorno ao Romantismo bra, onde cursou Direito. Formado,
memória. evidencia-se não só na recuperação segue para a China, onde se orien-
da tradição literária, na influência de talizou e se viciou em ópio. Viveu como
2. SIMBOLISMO PORTUGUÊS Garrett, como no tom acentuada- funcionário público no Oriente,
mente subjetivista, marcado pela publicando esporadicamente nos jor-
q O contexto histórico saudade e pela tristeza. nais de província alguns poemas.
Não são nítidas as relações entre Suas poesias comunicam ao leitor Numa visita a Portugal, em 1915,
a arte simbolista e a vida política e intensa depressão e profundo ditou a João de Castro Osório as com-
social portuguesa, e as ligações que pessimismo. O temperamento de posições que viriam a ser coletadas no
se estabelecem nesse nível não artista tuberculoso, descrente de tudo volume Clepsidra, aparecido em 1920.
esclarecem absolutamente os proble- e de todos, desalentado, dava às suas Consumido pelo ópio, morre em Macau.
mas da poesia simbolista. poesias um estranho sabor de
A Proclamação da República amargura e infelicidade. O “sosis- Obra
parece ter definido certas tendências mo” (expressão que deriva do título Clepsidra – 1920
pré-simbolistas, numa atmosfera do livro Só) criou uma legião de imi-
neorromântica, que correspon- China – Coleção de artigos sobre
tadores idólatras e tem ressonância, a cultura chinesa, reunidos em 1944.
deriam a duas posições ideológicas: a no Brasil, na poesia de Manuel Ban-
monárquica e a republicana. À Foi o poeta mais autentica-
deira e Ribeiro Couto, entre outros.
primeira, monárquica, corresponderia mente simbolista de Portugal,
Antônio Nobre afastou-se do pre-
o neogarrettismo (ou nacionalis- e um grande inovador da poética de
ciosismo vocabular de seus contem-
mo, integralismo), representado seu país, cuja influência se estende
porâneos, utilizando o registro colo-
por Alberto de Oliveira e Afonso Lopes até os modernistas, como Fernando
quial da linguagem, inspirado na
Vieira. À segunda, republicana, estaria Pessoa. Afastou-se do discursivismo
dicção popular, no decadentismo
ligado o saudosismo de Teixeira francês (Jules Laforgue) e na lírica neorromântico dos poetas do seu
de Pascoaes, representando o romântica de Garrett. tempo (Antônio Nobre, Augusto Gil,
misticismo panteísta que já Afonso Lopes Vieira) e inovou a escri-
A caracterização de ambientes
impregnara a Geração de 1970 ta poética, incorporando proce-
provincianos, as recordações da in-
(Guerra Junqueiro, entre outros). Essa dimentos próximos aos do deca-
fância, a atmosfera crepuscular, a nos-
vertente saudosista serviu de apro- dentismo de Verlaine, em especial
talgia, o pessimismo, a evasão do pre-
ximação entre o neorromantismo, no que se refere à aproximação
sente e a projeção na sua infância dos
o simbolismo e o modernismo da entre a poesia e a música.
mitos pátrios são ainda aspectos
revista Orpheu, o orfismo.
dessa aproximação de Antônio Nobre
A afirmação mais radical do este- • Uma poética da
ao Romantismo.
ticismo simbolista repelia, contudo, as
desagregação
correntes saudosista, naciona-
A percepção de mundo em Camilo
lista ou regionalista, encami- TEXTO
Pessanha é fragmentária, aparente-
nhando-se para a arte “pura”, sem
mente desarticulada, expressa por meio
qualquer compromisso, a não ser com SONETO
sua própria elaboração. Essa é a de sensações que o poeta considera
situação de Eugênio de Castro,
Ó Virgens que passais, ao Sol-poente, sem sentido. A desagregação formal
Pelas estradas ermas, a cantar!
poeta muito mais relacionado com as parece corresponder à desagregação
Eu quero ouvir uma canção ardente,
experiências de outras partes do Que me transporte ao meu perdido Lar. do próprio poeta opiômano, hipersen-
mundo, notadamente de Paris, do que sível e inadaptado.
com a realidade portuguesa. A Cantai-me, nessa voz onipotente, Lírico da desesperança, da
O Sol que tomba aureolando o Mar, dor e da ilusão, seu pessimismo
influência francesa foi fundamental A fartura da seara reluzente,
para a divulgação das novas expe- O vinho, a Graça, a formosura, o luar!
tem laivos do decadentismo francês e
riências rítmicas e estilísticas, por meio do budismo que conheceu em Macau.
de duas revistas editadas em Cantai! cantai as límpidas cantigas! É constante a sensação de estranheza
Coimbra, em 1889, Insubmissos e Das ruínas do meu Lar desenterrai diante do mundo, da alucinação,
Boêmia Nova, e da obra que serve de Todas aquelas ilusões antigas expressas numa linguagem poderosa,
70 –
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sugestiva, tecida com metáforas Vocabulário e Notas II


insólitas, símbolos, sinestesias 1 – Lânguido: abatido, sem forças. Encontraste-me um dia no caminho
e intensa musicali- dade 2 – Inerme: indefeso. Em procura de quê, nem eu o sei
(alterações, assonâncias etc.). — Bom dia, companheiro — te saudei,
Aproximou-se do rigor formal de TEXTO II Que a jornada é maior indo sozinho.
Mallarmé, sem a determinação
intelectual do poeta francês. A CAMINHO É longe, é muito longe, há muito
I [espinho!
intelectualização dos poemas de
Paraste a repousar, eu descansei...
Camilo Pessanha é marcada pelo Tenho sonhos cruéis; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro. Na venda em que pousaste, onde
pessimismo em relação ao mundo,
Vou a medo na aresta do futuro, [pousei,
que lhe parecia em degenerescência. Bebemos cada um do mesmo vinho.
A adesão do poeta à estética de- Embebido em saudades do presente...
cadentista-simbolista não era simples É no monte escabroso2, solitário.
modismo — era existencial. Saudades desta dor que em vão
[ procuro Corta os pés como a rocha dum
Do peito afugentar bem rudemente, [calvário
Devendo, ao desmaiar sobre o poente, E queima como a areia!... Foi no
TEXTO I Cobrir-me o coração dum véu escuro!... [entanto

Porque a dor, esta falta d’harmonia, Que choramos a dor de cada um...
INSCRIÇÃO
Toda a luz desgrenhada1 que alumia E o vinho em que choraste era comum:
Eu vi a luz em um país perdido. As almas doidamente, o céu d’agora, Tivemos que beber do mesmo pranto.
A minha alma é lânguida1 e inerme2.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! Sem ela o coração é quase nada: Vocabulário e Notas
No chão sumir-se, como faz um Um sol onde expirasse a madrugada, 1 – Desgrenhado: desordenado.
[verme... Porque é só madrugada quando chora. 2 – Escabroso: escarpado.

MÓDULO 35 Simbolismo no Brasil I


1. SIMBOLISMO NO BRASIL lismo e Pré-Modernismo são quase a fundação da Academia Brasileira
sempre discutíveis, dada a simulta- de Letras, e que não deixou margem
q Limites cronológicos neidade em que esses movimentos a que se reconhecesse o valor e
• Início: 1893 se desenvolvem. alcance do movimento simbolista.
Publicação de Missal (poemas O primeiro núcleo simbolista no “O Simbolismo Brasileiro, apesar
em prosa) e Broquéis (poesia), de Brasil formou-se no jornal carioca Fo- de ter produzido um Cruz e Sousa e
Cruz e Sousa. lha Popular, por volta de 1890-1891, um Alphonsus de Guimaraens, foi su-
reunindo Bernardino Lopes, Emi- focado (...) e, só hoje recebe a
• Término: 1902 liano Perneta e Oscar Rosas, devida consideração, negligenciado
Em sentido amplo, os limites do liderados por Cruz e Sousa, que, a como era sob o regime artificialmente
Simbolismo se estendem até a Se- propósito do ambiente intelectual prolongado do Parnasianismo.
mana de Arte Moderna, em 1922, e, daquela época, diria: (...) O Modernismo, Simbolismo
em sentido estrito, até 1902, quando “Era uma politicazinha engenho- inconsciente a meu ver, possibilitou a
se reconhece a publicação de Os sa de medíocres, de tacanhos, de transformação do Simbolismo priva-
Sertões, de Euclides da Cunha, e de perfeitos imbecilizados ou cínicos, do em poesia pública.”
Canaã, de Graça Aranha, como mar- que faziam da Arte um jogo capcio- (Otto Maria Carpeaux)
cos iniciais de um novo período lite- so, maneiroso, para arranjar relações
rário, o Pré-Modernismo, cujo ad- e prestígio no meio, de jeito a não Apelidados de nefelibatas (ou se-
vento não significou a interrupção do ofender, a não fazer corar o diletan- ja, “habitantes das nuvens”), os sim-
Simbolismo. tismo das suas ideias (...)”. bolistas eram, pejorativamente, iden-
No Brasil, os movimentos artísti- No Brasil, o Simbolismo foi “su- tificados pelos parnasianos como so-
cos finisseculares (fins do século XIX focado” pelo prestígio que, entre nós, nhadores, que se valiam de uma lin-
e início do século XX) são muito mais gozou o Parnasianismo, cujos poe- guagem de conotação imponderável,
simultâneos que sucessivos, o que tas, de mais fácil leitura e dóceis ao puramente sugestiva, estratosférica.
torna problemáticos os já em si pre- regime, gozavam de inequívoca pre- Além de Cruz e Sousa e Al-
cários critérios de periodização. For- ferência da elite “culta” dos salões phonsus de Guimaraens, pode
çoso é admitir que os limites cronoló- literários e do poder público. O Par- ser estudado também Augusto
gicos do Realismo, Naturalismo, Par- nasianismo era a poesia “oficial”, dos Anjos, que não foi propria-
nasianismo, Impressionismo, Simbo- que condicionou, pelo seu prestígio, mente simbolista, mas assimilou
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grande influência dessa estética. degradadas, como a doença, a lou- oprimido, vil e desprezível. A única
Augusto dos Anjos será estudado no cura, a miséria e o preconceito de cor. solução seria a fuga, a separação, a
Pré-Modernismo (no livro de Litera- transcendentalização, a ascensão
tura, porém, este autor é estudado no • Resíduos Parnasianos
para outro mundo, espiritual, puro,
capítulo dedicado ao Simbolismo). Na predileção pelo soneto, pelas
etéreo, branco. Da tensão “eu” versus
rimas ricas, pela chave de ouro, pelo
“mundo” decorre o emparedamento,
vocabulário raro, especialmente em
2. CRUZ E SOUSA (1861-1898) a sensação aguda de que a existên-
Broquéis (broquel era um tipo de es-
cia é uma prisão. O próprio poeta
cudo espartano, bem ao gosto par-
q Vida autodefinia-se como o “grande triste”.
nasiano de reviver objetos raros e an-
Negro retinto, filho de escravos tigos). Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
alforriados, Cruz e Sousa foi edu- • Formação Filosófica e De luares, de neves, de neblinas!...
cado na cidade natal, Desterro, atual Científica, Realista e Naturalista Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Florianópolis, Santa Catarina, como No emprego de termos científi- Incensos dos turíbulos das aras...
(“Longe de Tudo”)
criança branca, graças ao tutor, um cos e na visão pessimista, combi-
marechal que o protegeu até a ado- nada com as imprecisões e musicali- Vocabulário
lescência. dades vagamente espiritualistas do 1 – Sidérea: celeste.
Ponto de companhia teatral, pu- Simbolismo e com um individualismo • É comum identificarem-se em
blica seus primeiros versos na impren- neorromântico, na transfiguração de sua trajetória espiritual estes marcos
sa catarinense, e, em 1885, com Vir- seus impulsos pessoais. bem definidos:
gílio Várzea, Tropos e Fantasias, al- • Influência de Baudelaire 1 – a revolta contra a condição
ternando páginas sentimentais e poe- A quem deve o domínio do poe- humana, especialmente os negros,
sias contra a escravidão, à maneira ma em prosa, certo satanismo, o sen- os humilhados, os miseráveis (a dor
do condoreirismo de Castro Alves. so dos contrastes e das correspon- de ser homem);
Impedido de assumir o cargo de dências (sinestesias), além do gosto 2 – a busca da transcendência,
promotor da cidade de Laguna, por pela forma lapidar. aceitação da dor (a dor e a glória de
causa do preconceito, muda-se para • O culto da noite, o pendor ser espírito).
o Rio de Janeiro, onde forma o pri- pela poesia filosófica e a tensão
meiro grupo simbolista brasileiro, meditativa o aproximam de Antero • A Obsessão do Branco
com Bernardino Lopes e Oscar Ro- de Quental. Roger Bastide, crítico e admira-
sas, colaborando também com a Fo- • O professor Antonio Candido dor incondicional de Cruz e Sousa,
lha Popular. ressalta, como traço fundamental, a localizou em sua obra a aparição, por
Casa-se com uma jovem negra, potência verbal de Cruz e Sousa, 169 vezes, de imagens apoiadas na
Gavita, de quem teve três filhos. Vi- aproximando-o de Raul Pompeia e cor branca e em palavras associa-
vendo aperturas econômicas, mina- Coelho Neto, e que terá como desdo- das à área semântica do branco, do
do pela tuberculose, abalado com a bramento radical a poesia de Augus- brilho, da transcendência (“lírio”, “li-
loucura da esposa, morre em Sítio, to dos Anjos. nho”, “neve”, “névoa”, “nuvem”, “lumi-
estação climática, em Minas Gerais, Para essa potência verbal noso”, “brilhante”, “marfim”, “espu-
aos 36 anos de idade. contribuem o verbalismo requintado ma”, “opaco”, “pérola”, entre outros
e oratório, o senso exaltado de me- exemplos).
q Obras lodia da palavra e o poder de criar Procurou-se uma explicação psi-
Missal (poemas em prosa) imagens de grande beleza que reves- cológica para essa recorrência à cor
Broquéis (poesias) tem a concepção trágica da branca: seria uma forma compen-
Evocações (poemas em prosa) vida e a busca da transcen- satória à negritude, que o poeta teria
Faróis (poesias) dência. se recusado a assumir; um instru-
Últimos Sonetos (poesias recolhi- • Imbuído de alto fervor quanto mento de “clarificação”, de ascensão
das por Nestor Vítor, amigo e admira- à missão do poeta, é, a um só tempo, social.
dor do poeta, obra publicada em 1905) poeta expressivo e construtivo, Essa interpretação tem sido refu-
q
harmonizando seus impulsos pes- tada. Ocorre que a cor branca, além
Características
• Não convém ler a poesia de soais e a consciência estética dos de simbolizar, na liturgia religiosa, a
Cruz e Sousa do ponto de vista da procedimentos estilísticos adequa- pureza, a espiritualidade, é, de velha
biografia sentimental. Ocorre que, ain- dos à expressão. É esse equilíbrio data, símbolo da ânsia de totalidade,
da que sua visão trágica da exis- que faz de Cruz e Sousa, segundo de transcendentalização, de supera-
tência tenha íntima relação com a Roger Bastide, um dos três maiores ção da dor pela elevação espiritual,
sua vida, não há alusões diretas à nomes do Simbolismo mundial. atitudes que o poeta assumiu com
autobiografia e à confissão: a trans- • A cosmovisão de Cruz e Sou- fervor. Como místico excepcional, faz
figuração das experiências ma- sa lembra o Barroco: o mundo da Dor motivo para a superação es-
nifesta-se em seus textos nas alusões terreno é um grande cárcere de dor e piritual, para a grandeza moral, para
a realidades sociais degradantes e infortúnio; o homem, um ser a purificação e o êxtase.
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ANTÍFONA TÉDIO

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras Vala comum de corpos que apodrecem,
De luares, de neves, de neblinas!... Esverdeada gangrena
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Cobrindo vastidões que fosforescem
Incensos dos turíbulos das aras... Sobre a esfera terrena.
(Cruz e Sousa) (...)

FLORES DA LUA Mudas epilepsias, mudas, mudas,


Mudas epilepsias,
Brancuras imortais da Lua Nova, Masturbações mentais, fundas, agudas,
Frios de nostalgia e sonolência... Negras nevrostenias1.
Sonhos brancos da Lua e viva essência
Dos fantasmas noctívagos1 da Cova. Flores sangrentas do soturno vício
Que as almas queima e morde...
(Cruz e Sousa)
Música estranha de letal suplício,
Vago, mórbido acorde...
Vocabulário
1 – Noctívago: que vagueia de noite. (...)
(Cruz e Sousa) Cruz e Sousa
SIDERAÇÕES Vocabulário q Apreciações críticas
1 – Nevrostenia: irritação dos nervos. Transcrevemos, a seguir, algu-
Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo, mas apreciações feitas pela crítica a
Galgando azuis e siderais noivados • “Vê como a dor te trans- respeito da obra de Cruz e Sousa:
De nuvens brancas a amplidão vestindo... cendentaliza” – A maturidade “Três principais direções tomou a
(Cruz e Sousa) dos Últimos Sonetos sua inspiração: a sondagem do mundo
Se nos primeiros livros o sensualis- interior, donde arrancou a tragédia de
• O Emparedamento – mo forte, o desejo carnal, é diretamen- todas as suas revoltas, de todos os
A Dor e a Revolta te estetizado (sem sublimação), com seus delírios (vejam-se, a título de
Em Faróis e Evocações, o esteti- os Últimos Sonetos é que o poeta ob- exemplo, ‘Só’, ‘Emparedado’), mas
cismo dos primeiros livros transfor- tém em maior grau a espiritualização também onde encontrou raios de fé,
ma-se num lirismo trágico, tétrico, sublimatória da experiência dos sen- de esperança e de caridade (‘Renas-
mórbido. tidos. O eu lírico forceja por libertar-se cimento’, ‘Assim Seja’); a visão da
Basta um inventário nos títulos da carne. A caridade e a piedade existência no que esta oferece de es-
insinuam-se como o caminho de sal- petáculo trágico de dores, de misé-
para termos uma ideia do mundo que
vação e conforto. Liberto dos apeti- rias, de injustiças, de vícios, de insa-
povoa estes poemas: “Tristeza do
tes sensuais e sociais, o poeta se des- nidade (‘Crianças Negras’, ‘Vida
Infinito”, “Sem Esperança”, “Caveira”,
poja, se humilha rendido, pondo-se Obscura’, ‘Meu Filho’, ‘Acrobata da
“A Flor do Diabo”, “Música da Morte”, nu diante do Mistério, cujo recesso Dor’, ‘Lésbia’, ‘Tuberculosa’), desgra-
“A Ironia dos Vermes”, “Condenado à almeja conhecer integralmente. çadas sinas humanas que só a espe-
Morte”, “Dor Negra”, “Anjos Rebela- Nessa etapa, a palavra e a subs- rança da libertação do espírito pode
dos”, “No Inferno”, “Talvez à Morte?”, tância poética, o tecido expressivo, consolar (‘Triunfo Supremo’); final-
“Abrindo Féretros”, “O Emparedado”, fundem-se numa só entidade, reali- mente o sentido muito íntimo e inten-
“Tédio”. zando o ideal simbolista de explorar samente lírico da realidade circun-
Segundo um crítico, “do ponto até o seu limite último o conteúdo se- dante (‘Violões que Choram’, ‘Triste’).
de vista da aceitação social, a bio- mântico e musical das palavras. Possuído de inspiração por vezes
grafia do preto Cruz e Sousa, poeta delirante, de capacidade invulgar de
‘maldito’, é o inverso da do mulato SORRISO INTERIOR expressão, sobretudo para os ele-
Machado de Assis, que teve a sua mentos plásticos dos seus delírios já
carreira de escritor glorificada pelo O ser que é ser e que jamais vacila próximos do surrealismo, deu-nos uma
Nas guerras imortais entra sem susto,
poder cultural (...). Leva consigo esse brasão augusto poesia que tem, a par de densidade
Considerando-se o ‘emparedado Do grande amor, da grande fé tranquila. e intensidade dramática, uma imagé-
de uma raça’, Cruz e Sousa registrou tica simbolista estranha e algumas
Os abismos carnais da triste argila vezes preciosa e esotérica, o que sem
em Evocações ‘a batalha formidável Ele os vence sem ânsias e sem custo...
de um temperamento fatalizado pelo Fica sereno, num sorriso justo, dúvida contribuiu para que viesse a
sangue’. Enquanto tudo em derredor oscila. ser poeta apenas de uma aristocra-
Daí a aproximação com Baude- cia intelectual, se bem que seja, in-
laire, com a poesia enraizada no san- Nessa mesma linha, você deve contestavelmente, um poeta autênti-
gue e na carne, a mesma que Au- ler os sonetos “Cárcere das Almas”, co, dos maiores em língua portugue-
“Assim Seja!”, “Alma das Almas”, sa.” (Antônio Soares Amora, História
gusto dos Anjos irá retomar pouco
transcritos no livro 4, cap. 3, pp. 90-1. da Literatura Brasileira, pp. 124-5)
depois.”
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“Pondo de parte os poemas ini- gir as camadas do Absoluto e desco- Os miseráveis, os rotos
ciais publicados ainda em Santa Ca- brir o ‘mistério de todas as coisas’.” são as flores dos esgotos.
tarina, e que não passam de simples (Naief Sáfady, Dicionário de Literatura) São espectros implacáveis
aprendizagem, assim como os volu- “Em que consiste a singularida- os rotos, os miseráveis
mes de prosa do poeta, conside- de da poesia de Cruz e Sousa? ...
remos apenas os volumes dos poe- Andrade Murici, respeitável estu- São os grandes visionários
mas dados a lume no Rio, alguns pos- dioso do Simbolismo brasileiro, se dos abismos tumultuários
tumamente: Broquéis, Faróis, Últimos empenhou em destruir ou ao menos ...
Bandeiras rotas, sem nome
Sonetos, grosso modo. Em Broquéis atenuar o mito do poeta negro fe- das barricadas da fome.
é, substancialmente, a dor de ser chado em sua alienada torre literária,
negro que se exprime; em Faróis, a surdo a qualquer reclamo racial e E a litania continua, em versos
dor de ser homem, o que já repre- aos grandes problemas (a Abolição) acoplados, como um cortejo de Breu-
senta, com relação a Broquéis, um que ocorrem ao seu redor e como- ghel, como uma marcha da fome de
ponto muito mais alto na escalada; em vem todo o país; ou no máximo inte- um filme expressionista. Procedimen-
Últimos Sonetos, a dor, mas também a ressado neles somente em primeira tos expressionistas podem-se colher
alegria e a glória de ser espírito, de pessoa, para fugir individualmente por toda parte. Baste a autobiográfica
comungar com o eterno e he- da sua própria condição de negro: ‘Canção Negra’:
roicamente sobrevoar os abismos e com o álibi do ódio
as sombras da pobre terrenalidade. Ó boca em tromba retorcida
Claro que se trata de simples esque- Ó meu ódio... cuspindo injúrias para o Céu
matização, para efeitos didáticos.” Meu ódio santo e puro, benfazejo, aberta e pútrida ferida
orgulhoso com os seres sem Desejo, em tudo pondo igual labéu,
(Tasso da Silveira, Cruz e Sousa, p. 7)
sem Bondade, sem Fé...
“Dois aspectos são constantes Ódio são, ódio bom! sê meu escudo... imagem barroca, selada com o dístico
na obra de Cruz e Sousa: a tendência
formal (o grosso de suas composi- ou com a agulha do desejo sempre bendita seja a negra boca
ções são sonetos) e a constante da que tão malditas coisas diz!
apontada para um ‘branco’ que en-
atitude mística, formada numa filoso- che os seus versos de gelos, de ‘nu-
fia da vida que se representa pelo Tanto em Broquéis como em Fa-
vens brancas’, de cândidas luas, fan- róis se prolonga ainda o gosto parna-
esquema: vida material — restrição tasmas de ‘brancuras vaporosas’, de
do espírito (emparedamento); morte siano pelo soneto (fechado sempre
‘formas claras de luares, de neves, com magistral ‘chave de ouro’), pela
— libertação do espírito. Essa atitude
de neblinas’, de ‘brancas opulências, rima rigorosa (quase irônica às ve-
passa por três fases, que coincidem
brumais brancuras, fúlgidas brancu- zes), as quadras clássicas de decas-
com a cronologia de seus escritos:
ras, alvuras castas, virginais alvuras, sílabos alternados; mas os conteú-
1.a – em que a temática se prende à
latescências das raras latescências’. dos e a sensibilidade são sem
dolorosa contingência material do
Aquele mito, apoiado como é sobre dúvida diferentes. Não descreve,
Homem; animam-na preocupações
uma honesta estatística lexical, natu- mas sugere: com o som sobretudo.
puramente estéticas, que se refletem
em atitudes escassamente humani- ralmente resiste. Mas, para corrigir a Rimas em fim de verso e rimas inter-
zadas. A ela pertence Broquéis, com interpretação sociológica para a qual nas (das quais em seguida nascerá o
o poema ‘Antífona’, verdadeira profis- ‘o Simbolismo produzia exatamente o milagre desta prosa simbolista),
são de fé simbolista (melopeia, poe- tipo de arte e de literatura que na- aliterações, assonâncias, reminis-
sia do inconsciente, tédio, ânsia); 2.a quele momento mais convinha aos cências litúrgicas e hínicas:
– tentativa de carrear para a poesia manejos da contrarrevolução’ (Astro-
uma experiência humana, menos in- jildo Pereira), temos a seu lado, tími- Filho meu, de nome escrito
da, a realidade de um homem negro da minh’alma no Infinito.
telectualizada, entretanto negativista
e pessimista, muito semelhante à de crescido literariamente à sombra das
Escrito a estrelas e sangue
Raimundo Correia, destacando-se a ‘Vozes d’África’ e do Navio Negreiro no farol da lua langue...
ânsia de descobrir o absoluto (nirva- de Castro Alves, diretor de um jornal-
na), a essência das coisas; 3.a – em zinho ilustrado de título racialmente Das tuas asas serenas
provocativo (O Moleque, Desterro – faz manto para estas penas.
que aparece a sublimação da vivên-
cia humana, agora integralmente 1885) e autor de sonetos, poemas e Dá-me a esmola de um carinho
transferida para o campo da poesia, prosas abolicionistas (‘25 de Março’, como a luz de um claro vinho.
e seguida de uma doação, onde os ‘Escravocratas’, ‘Dilema’, ‘Auréola
anseios cedem lugar à pregação do Equatorial’, ‘Na Senzala’, ‘Dor Ne- Com tua mão pequenina
amor, numa mensagem de fé suprar- gra’). Poucos textos de protesto tur- caminhos em flor me ensina.
...
racional, de um cristianismo incons- vam contudo a nitidez de Broquéis Faz brotar nevados lírios
ciente, valorizando, especialmente, a ou arranham o polimento de Faróis: a das cruzes dos meus martírios.
libertação do espírito, por meio da ‘Litania dos Pobres’ (em que Alfredo
morte, de sua contingência material Bosi sente traços de Blok, suponho Dá-me um sol de estranho brilho,
perecível, para que a Alma possa atin- Flor das lágrimas, meu filho.
que do Blok dos Doze):
74 –
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(...) Ao fechado, autossuficiente As sonoras Por toda a parte escrito em fogo eterno
universo do parnasiano, à estátua, ao ondulações e brumas do Mistério Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!”
...
mármore, mas também à Distinção (Luciana Stegagno Picchio, La
Agora fundos, no ondular da poeira
civil e ao sorriso, o simbolista Cruz e Letteratura Brasiliana, pp. 328-32)
...
Sousa contrapõe o seu universo si- Ondula, ondeia, curioso e belo
nuoso, instável, inquietante, misterio- ...
so, alucinante. Brumas, névoas, mar- De ondulações fantásticas, brumosa
fins, pratas, crânios, lua, o beijo da ...
múmia, ‘Lésbia nervosa, fascinante e Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante
doente’. Mas também ‘o Cristo de ...
E o teu perfil oscila, treme, ondula,
bronze do Pecado, ... o Cristo de
(...)
bronze das luxúrias’; o Mistério, a pelos abismos eternais circula,
Morte, o Sonho, o Infinito, o Luar, a
Formosura, a treva, o Infer no, o
e chamas que rompem em
Tédio,
fachos o limbo branco cinza
Tédio que pões nas almas olvidadas argênteo do cosmo:
ondulações de abismo...
Não sei se é sonho ou realidade todo
e ondas, ondas, ondas:
esse acordar de chamas e de lodo
Ondulação da vaporosa Iua Cruz e Sousa (direita) e os amigos Virgílio Várzea
... até o grito desesperado: (centro) e Horácio de Carvalho.

MÓDULO 36 Simbolismo no Brasil II


1. ALPHONSUS DE Cursou Direito em São Paulo e, q O Amor e a Morte
GUIMARAENS (1870-1921) formado, exerceu a magistratura em Alphonsus de Guimaraens foi um
Mariana, Minas Gerais, isolado da poeta monotemático. Quase tudo
q O Solitário de Mariana – agitação dos grandes centros, com que escreveu gravita em torno do
O Trovador Enfermiço – catorze filhos, que sustentou a duras amor e da morte, da morte da
O Poeta Lunar penas. Burocrata, boêmio, levando amada (a prima Constança) ou da
Afonso Henriques da Costa Gui- uma vida pacata, “entre a rotina e a Virgem Maria, com quem esse ca-
marães era o nome real do poeta. quimera”, realizou uma poesia sem tólico mariano e devoto termina por
Perdeu, aos 18 anos, uma prima desníveis — das mais puras que a identificar a amada perdida.
— Constança — de quem se ena- nossa lírica conheceu. O tom lírico predominante é o
morara, e cuja presença é constante ele gíaco, perpassado pela tris-
em sua lírica. q Obras teza das cidades antigas de Minas,
• Poesia das quais o verso plangente de
Kiriale (publicado somente em Alphon sus nunca destoou, com
1902) suas igrejas, catedrais, procissões,
Setenário das Dores de Nossa réquiens, fins de tarde, flores roxas.
Senhora (1899) Quando o fantasma da amada
Câmara Ardente (1899) morta assola o poeta, a morte se lhe
Dona Mística (1899) repropõe como a presença do corpo
Pauvre Lire (1921) morto, como o luto circunstante — os
Pastoral aos Crentes do Amor e círios, o cantochão, o esquife, o
da Morte (1923)* féretro, os panos roxos, o réquiem, o
Escada de Jacó (1938)* sepultamento no campo santo, as
Pulvis (1938)* orações fúnebres. Kiriale é um dobre
de finados, até pelos títulos dos poe-
• Prosa mas: “Luar sobre a Cruz da Tua Co-
Os Mendigos (1920) va”, “À Meia-Noite”, “Ocaso – Im-
pressões de Véspera de Finados”,
• Tradução “Spectrum”, “Ossea Mea”.
Nova Primavera (de Heine) O platonismo místico conduz ao
(1938)* desalento do amor que não se cum-
priu e que jamais se cumprirá, salvo
Alphonsus de Guimaraens * publicações póstumas. além-túmulo ou na esfera transcendente.
– 75
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Daí o elogio da morte que se saltos obsedantes dos três ‘inimigos A CATEDRAL
materializa numa simbologia funerária. da alma’: diabo, carne e mundo.”
Entre brumas 1, ao longe, surge a aurora.
A obsessão da morte não tem (Alfredo Bosi) O hialino2 orvalho aos poucos se evapora,
em Alphonsus o caráter negativo de agoniza o arrebol3.
horror, de fobia. Ela é desejada, an- Como lírico religioso, es- A catedral ebúrnea4 do meu sonho
siada, porque encarna a possibilida- sencialmente mariano, coloca-se co- aparece, na paz do céu risonho,
toda branca de sol.
de de aproximação da amada e/ou mo um emotivo da religiosida-
do Absoluto, representado por Deus, de, simples e devoto. Esse veio ele- E o sino canta em lúgubres5 responsos6:
oferecendo-lhe o tão procurado apa- gíaco irá ramificar, no Modernismo, “Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus!”
ziguamento e a superação da vida, em certas páginas de Manuel Ban-
vista como miséria, pó, infâmia, lama deira, Ribeiro Couto, Henriqueta O astro glorioso7 segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila8 em cada
e podridão. Observe os fragmentos: Lisboa e, especialmente, em Cecília refulgente raio de luz.
Meireles. A catedral ebúrnea do meu sonho,
(...) onde os meus olhos tão cansados ponho,
Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas recebe as bênçãos de Jesus.
Foi-lhe a vida um eterno mês de maio,
Cheio de rezas brancas a Maria, Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Que ela vivera como num desmaio. Cujas veias azuis parecem feitas E o sino clama em lúgubres responsos:
Da mesma essência astral dos óleos bentos: “Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus!”
Tão branca assim! Fizera-se de cera...
Sorriu-lhe Deus, e ela, que lhe sorria, Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas (...)
Virgem voltou como do céu descera. A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas O céu é todo trevas: o vento uiva.
(“Pulchra ut Luna” — expressão
Em hinos sobre as torres dos conventos Do relâmpago a cabeleira ruiva
latina que pode ser traduzida por
vem açoitar9 o rosto meu.
“bela como a lua”.)
(Setenário das Dores de Nossa Senhora) E a catedral ebúrnea do meu sonho
afunda-se no caos do céu medonho
(...)
q como um astro que já morreu.
Trabalhou com a mesma quali-
A lua, que lhe foi mãe carinhosa, dade as redondilhas medievais
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la E o sino geme em lúgubres responsos:
Entre lírios e pétalas de rosa. e as formas e gêneros arcaicos da “Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus!”
medida velha, bem como os de- (Alphonsus de Guimaraens,
Os meus sonhos de amor serão defuntos... cassílabos, em sonetos de grande in Pastoral dos Crentes do Amor e da Morte)
E os arcanjos dirão no azul, ao vê-la, expressividade.
Pensando em mim: — “Por que não vieram Vocabulário
[juntos?” 1 – Bruma: nevoeiro.
ISMÁLIA
(“Hão de Chorar por Ela os Cinamomos”) 2 – Hialino: transparente como o vidro.
Quando Ismália enlouqueceu, 3 – Arrebol: vermelhidão ao nascer do Sol.
Pôs-se na torre a sonhar… 4 – Ebúrneo: de marfim.
q Viu uma lua no céu, 5 – Lúgubre: triste, fúnebre.
A poesia mística –
Viu outra lua no mar. 6 – Responso: conjunto de versículos pronun-
A lírica mariana ciados ou cantados alternadamente.
Foi o maior poeta místico da Lite- No sonho em que se perdeu, 7 – Astro glorioso: o Sol.
ratura Brasileira, não apenas pela Banhou-se toda em luar… 8 – Cintilar: brilhar.
parte diretamente referente à liturgia Queria subir ao céu, 9 – Açoitar: chicotear.
católica e à exaltação da Virgem, mas Queria descer ao mar…
q Apreciações críticas
também pela atmosfera de sonho e
E, no desvario1 seu, Antônio Soares Amora, em sua
mistério, pela tonalidade medieval, Na torre pôs-se a cantar…
pelo tom de ternura e melancolia. História da Literatura Brasileira (pp.
Estava perto do céu,
“O fato de ter transformado a reli- 125-6), assim se refere a Alphonsus
Estava longe do mar…
gião numa experiência profunda lhe de Guimaraens:
possibilitou não só adotar a moda E como um anjo pendeu “Embora poeta de alta estirpe, não
simbolista da poesia litúrgica, mas As asas para voar… conseguiu, em vida, fazer sentir toda
Queria a lua do céu, a significação literária da sua obra.
vivê-la interiormente, tornando-se o Queria a lua do mar…
único a exprimir uma religiosidade Modernamente vem-lhe fazendo, a
que não parece receita da escola.” As asas que Deus lhe deu
crítica, a justiça que merece. Simbo-
Ruflaram2 de par em par… lista desde as primeiras horas do
(Antonio Candido) Sua alma subiu ao céu, movimento, definiu, entre 1899/1902,
Seu corpo desceu ao mar… com Setenário das Dores de Nossa
“No poeta mineiro, passadista e Senhora, Câmara Ardente, Dona Mís-
decadente, há um homem preso às (Pastoral dos Crentes do Amor e da Morte)
tica e Kiriale, os caminhos da sua
franjas de uma religiosidade espan- Vocabulário inspiração dentro do movimento ge-
tada, cujo fim último é evocar o fan- 1 – Desvario: loucura. ral de renovação da poesia brasileira:
tasma da morte para reprimir os as- 2 – Ruflar: agitar-se. 1) lirismo amoroso de caráter espiri-
76 –
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tualista, ou mais precisamente, platô- na mocidade está presente dando castelã morta:
nico; o que significou, no seu caso, o um tom de amargurada tristeza. O
A suave castelã das horas mortas
regresso ao idealismo amoroso de vocabulário utilizado casa-se bem a
Assoma à torre do castelo. As portas,
Petrarca, de Camões, e de todos os essa sensibilidade e são frequentes Que o rubro ocaso em onda ensanguentara,
medievais e clássicos do amor espiri- as referências a flores roxas, a vio- Brilham do luar à Luz celeste e clara,
tualizado, o que, entretanto, não o letas, a virgens mortas, a fins de tar-
impediu de ser original, e comovida- de. Tinha também o gosto de criar ou ainda:
mente sincero. Nesta atitude perante vocábulos, tão em voga entre os Quando as folhas caírem e tu fores
a Mulher e o Amor, ditada por in- simbolistas, ao mesmo tempo que a Procurar minha luz no campo-santo,
fluências muito sugestivas do Sim- influência de língua arcaica, o que o Hás de encontrá-la, meu amor, num canto,
bolismo europeu, mas também con- fez arcaizar o próprio nome. A redon- Circundada de flores.
dizente com o seu caráter e o seu dilha foi um dos metros que preferiu,
temperamento, pôde construir uma e o soneto decassílabo o que mais (...) É fato que há na poesia de
obra cheia de belezas, rica de emo- utilizou, dando-lhe, entretanto, uma Alphonsus de Guimaraens um as-
ção e muito significativa na história característica própria, um módulo to- pecto lúdico, de travesti intelectualís-
da nossa literatura (Kiriale, Dona Mís- do pessoal. Verlaine e Mallarmé fo- tico (o medievalista, o petrarquista, o
tica, Pastoral aos Crentes do Amor e ram seus mestres, do primeiro tra- enamorado da menina morta e, tal-
da Morte); 2) lirismo religioso, im- duzindo belamente alguns poemas, vez, o poeta simbolista: um Alphon-
pregnado de intenso sentimento mís- ao segundo dedicando um dos seus sus lutuoso que sorri de si mesmo
tico, comovido, docemente encan- sonetos em francês, em que confessa nos versos franceses, autodenomi-
tado ante todas as belezas concebi- o que lhe deve. Poesia pouco descri- nando-se, com transparente calem-
das pelo Cristianismo: as doçuras da tiva, que consegue muito mais sugerir bour, ‘Vicomte de Grandeuil’), que
vida piedosa e penitente; as inefá- do que dizer, a música tem, nela, não foi ainda suficientemente estu-
veis delícias da vida celeste; o grande importância: os versos de A. dado. Tendentes a construir um cli-
profundo e arrebatador sentido do de G. são finamente melodiosos. Para ché existencial, esquecemos por ve-
simbolismo hierático, litúrgico e alcançar isso, inovou ele os metros zes que, como queria Fernando Pes-
mortuário; a poesia que envolve to- consagrados, alterando e deslo- soa ‘o poeta é um fingidor’, e despre-
das as manifestações de Fé, e de cando acentos, conferindo-lhes o tom zamos certos aspectos de Alphon-
culto aos mortos; o profundo signifi- musical que, juntamente com o voca- sus que aparentemente contrastam
cado da vida de Nossa Senhora, bulário tão peculiar, criam a nota que com a sua máscara oficial: o repu-
plena de Virtudes, ‘Mater Dolorosa’ é dele e só dele na poesia brasileira.” blicano, o poeta juvenil não ainda
(Setenário das Dores de Nossa “Poesia de amor e poesia místi- ‘castigado’:
Senhora, Dona Mística, Escada de co-religiosa da qual participa, como
Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Jacó); 3) evasão da vida, da humana evocação, uma paisagem de meias- dos teus beijos febris receber sobre a boca...
dor, fuga para o mundo encantado tintas, enfumaçada de luz crepuscu-
da fantasia, onde, e só onde, conse- lar (não por acaso o Penumbrismo o autor de versos satânicos que são
guiu realizar-se, ou como um brasileiro terá raízes também na poe- o reverso da medalha angélica e fu-
‘cavaleiro’ da mística e amatória sia de Alphonsus) ou banhado de nérea, e também o Alphonsus que se
cavalaria medieval, ou como um luar. A mulher amada aparece sobre compraz em escrever — sem todavia
‘trovador’ vagabundo, de cantigas de o leito de morte com a marmórea rigi- assiná-los — versos facetos em jor-
amor, ou, num extremo de desmateri- dez, a inexorável juventude de uma naizinhos das cidades mortas que o
alização, como espírito puro a pas- estátua sepulcral: hospedaram: Mariana, Conceição do
sear e a viver num éden de supremas Serro.” (L. S. Picchio, La Letteratura
Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
belezas, de suprema felicidade (A Brasiliana, pp. 336-9)
de tons marfíneos, de ossatura rica,
Escada de Jacó, Pulvis).” pairando no ar, num gesto brando e leve,
que parece ordenar, mas que suplica ...
Fernando Góes fez a seguinte Acrescente-se à lista de L. S.
caracterização da poesia de Alphon- ou Picchio mais um aspecto da obra de
sus de Guimaraens (in Pequeno Di- Alphonsus de Guimaraens que a crí-
Hirta e branca... Repousa a sua áurea cabeça tica tem descurado: a reflexão meta-
cionário de Literatura Brasileira, s.v.): Numa almofada de cetim bordada em lírios.
“A poesia de A. de G. é uma poe- Ei-la morta afinal como quem adormeça linguística, a poesia que tematiza o
sia de tons velados, poesia de Aqui para sofrer Além novos martírios. próprio fazer poético, utilizando-se
música de câmara, que o ambiente de um símbolo que remete à ave cé-
em que viveu marcou profundamente, De mãos postas, num sonho ausente, a som- lebre de Edgar Allan Poe: trata-se de
[bra espessa
com as procissões, as igrejas, a vida um poema estranho e único na obra
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
devota, os sinos tocando de manhã à Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa do Solitário de Mariana, “A Cabeça
noite. Poesia elegíaca, em que a Da Idade Média, morta em sagrados delírios, de Corvo” (poema que se encontra
lembrança da noiva que ele perdeu ou, com insistência sobre o tema da transcrito na p. 96 do livro 3).
– 77
TEORIA_CONV_C3_DANIEL 29/04/11 19:38 Página 25

FRENTE 2 Literatura

MÓDULO 37 Pré-Modernismo I
1. CONCEITO E ÂMBITO rastreado em Euclides da Cunha, operariado e pelo subproletariado,
Lima Barreto, Monteiro Lobato e novos atores que, ainda timidamente,
O Pré-Modernismo não confi- Graça Aranha. se projetam na cena política.
gura um estilo literário ou uma O período pré-modernista convi- Entre os fatos históricos que mar-
escola, com um programa definido, veu com diversas correntes do século cam o período, destacamos: a Revolu-
com propostas estéticas específicas. XIX, que já se iam esgotando quando ção de Canudos, o fenômeno do
Não é como o Romantismo, Realismo, da “explosão” modernista de 1922. cangaço e do fanatismo religioso, no
Simbolismo etc. Trata-se de um Daí o caráter de estagnação, de Nordeste; a Revolta da Chibata, a
período cronológico marcado imobilismo que impregnou a literatura revolta contra a vacina obrigatória, no
pelo sincretismo (= fusão, mistura) oficial das academias e salões literá- Rio de Janeiro; a Guerra do Contes-
de diversas tendências, identificado rios, que assistiram (= ampararam) os tado, em Santa Catarina; as greves
primeiramente por Tristão de Ataíde últimos suspiros do Parnasianismo operárias dos imigrantes do Brás e da
(Alceu de Amoroso Lima), que cu- (Alberto de Oliveira, Raimundo Mooca, em São Paulo (1917).
nhou a expressão Pré-Moder nismo Correia, Bilac, Vicente de Carvalho
para designar um conjunto de autores ainda escreviam); do Neoparnasia- 3. EUCLIDES DA CUNHA
que, entre 1902 (Os Sertões, de nismo (Amadeu Amaral e Martins (1866-1909)
Euclides da Cunha, e Canaã, de Gra- Fontes); da prosa tradicionalista
ça Aranha) e 1922 (Semana de Arte de feitio clássico (Rui Barbosa e "Misto de celta, de tapuia
Moderna), representam a aliança ou Joaquim Nabuco); do regionalismo e grego", como se autodefinia, Eu-
transição entre as correntes do fim realista-naturalista (Simões clides da Cunha foi militar (expulso
do século XIX e antecipações da Lopes Neto, Valdomiro Silveira, do Exército), engenheiro, jornalista,
modernidade. Afonso Arinos) e até neoclássicos professor, acadêmico e grande es-
Assim, as chamadas correntes e neorromânticos encontraram critor.
pré-modernistas marcam-se por uma espaço para suas tardias manifesta- Acompanhou, como correspon-
antinomia: o moderno versus o an- ções. dente do jornal A Província de São
timoderno, a renovação versus o Em síntese, quanto à linguagem e Paulo (hoje O Estado), as operações
conservadorismo, aliando (= sin- ao estilo, os pré-modernistas expres- do Exército contra os rebeldes de
cretizando) tendências diversas. sam-se como realistas, naturalis- Canudos, permanecendo no Sertão da
• O aspecto conservador, an- tas, impressionistas, simbolis- Bahia de agosto a outubro de 1897.
timoderno, pode ser localizado na tas, assimilando em graus diferentes Em 1898 e 1901, escreveu, pri-
sobrevivência da mentalidade as características desses estilos. meiro em Descalvado, depois em São
positivista e determinista dos realistas Quanto aos temas, ao conteúdo, é José do Rio Pardo, Os Sertões, cuja
(naturalistas) e parnasianos, e no que se aproximam dos modernos, publicação, em 1902, alcançou reper-
estilo, no código, na linguagem, que, pelo compromisso com a realidade cussão nacional.
com poucas ousadias, perma- brasileira: o sertão da Bahia (Eu- Além de Os Sertões, deixou ou-
neceram fiéis aos modelos realistas clides da Cunha); o subúrbio ca- tros livros sobre problemas brasileiros:
(Machado, Aluísio, Eça, Zola, Flau- rioca (Lima Barreto); o Vale do Contrastes e Confrontos, À Margem
bert, Balzac). Vale observar que o Paraíba paulista (Monteiro Loba- da História, Peru versus Bolívia, Re-
Modernismo de 1922 representou, so- to); a adaptação do imigrante ao latório sobre o Alto Purus.
bretudo, uma ruptura em termos de trópico (Graça Aranha).
linguagem, do código, e, nesse sen- ❑ Características
tido, os pré-modernistas foram, em 2. O CONTEXTO HISTÓRICO • O cientista e o artista
diferentes medidas, antimodernos. Primeiro grande pensador social
• O aspecto antecipador da As primeiras décadas do século brasileiro, Euclides da Cunha harmo-
modernidade localiza-se mais em XX têm como marca a contradição niza o rigor científico, a erudi-
nível do conteúdo, na problema- entre a postura tradicionalista da oli- ção, a formação positivista e
tização da realidade brasileira, na garquia rural e a inquietação dos se- determinista, a exatidão do ma-
crítica às instituições arcaicas, no tores urbanos, esta última matizada de temático e engenheiro, com a
regionalismo crítico e vigoroso e no diversas tendências assimiladas da paixão pela palavra e a potên-
espírito inconformista e rebelde que, América do Norte e da Europa, pelo cia verbal, provando que a arte e a
de diversas maneiras, pode ser imigrante, pela classe média, pelo ciência não se opõem.

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• Crítica Reflete a preguiça invencível, a da realidade brasileira contemporâ-


Sua obra Os Ser tões analisa e atonia9 muscular perene10, em tudo: nea e, por outro lado, a história de um
procura compreender o fenômeno do na palavra remorada11, no gesto con- homem que se realizou pelo amor e
fanatismo religioso no sertão, espe- trafeito, no andar desaprumado, na pela satisfação de seus ideais.
cialmente o caso Canudos. Apresenta cadência langorosa12 das modi- nhas,
visão determinista: A Terra, O Homem, na tendência constante à imobilidade 5. LIMA BARRETO
A Luta (meio, raça, momento). e à quietude. (1881-1922)
Primeira denúncia vigorosa que Entretanto, toda esta aparência
se faz na cultura brasileira contra a de cansaço ilude.
miséria e o abandono em que vive o (Euclides da Cunha, Os Sertões)
sertanejo.
Vocabulário
1 – Desempeno: elegância. 2 – Hércules: figura
TEXTO mitológica, símbolo de força física. Quasímodo:
o corcunda de Notre-Dame, símbolo de feiura.
3 – Fealdade: feiura. 4 – Aprumo: elegância,
(fragmento)
altivez. 5 – Displicência: tédio, apatia. 6 – So-
O sertanejo é, antes de tudo, um frear: refrear. 7 – Espenda: parte da sela sobre
a qual assenta a coxa. 8 – Celeremente: rapi-
forte. Não tem o raquitismo exaustivo
damente. 9 – Atonia: fraqueza. 10 – Perene:
dos mestiços neurastênicos do litoral. eterno. 11 – Remorado: demorado. 12 – Lan-
A sua aparência, entretanto, ao goroso: lânguido, lento, arrastado.
primeiro lance de vista, revela o con-
trário. Falta-lhe a plástica impecável, o 4. GRAÇA ARANHA
desempeno1, a estrutura corretíssima (1868-1931)
das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, ❑ Dados biográficos Lima Barreto.
torto. Hércules-Quasímodo2, reflete no – Nasceu em São Luís do Mara-
aspecto a fealdade3 típica dos fracos. nhão; ❑ Obras
O andar sem firmeza, sem aprumo4, – foi discípulo de Tobias Barreto; Recordações do Escrivão Isaías
quase gingante e sinuoso, aparenta a – participou da Semana de Arte Caminha (romance) – 1909
translação de membros desarticula- Moderna; Triste Fim de Policarpo Quaresma
dos. Agrava-o a postura normalmen- – faleceu no Rio de Janeiro. (romance) – 1911 (em folhetins) e
te abatida, num manifestar de displi- 1915 (em livro)
cência5 que lhe dá um caráter de hu- ❑ Obras Numa e Ninfa (romance da vida
mildade deprimente. A pé, quando Canaã (romance) contemporânea) – 1915
parado, recosta-se invariavelmente ao Malasarte (drama folclórico em Vida e Morte de M. J. Gonzaga
primeiro umbral ou parede que encon- três atos) de Sá (romance) – 1919
tra; a cavalo, se sofreia6 o animal para Estética da Vida (obra filosófica) Histórias e Sonhos (contos) – 1956
trocar duas palavras com um conhe- Viagem Maravilhosa (romance) Cemitério dos Vivos (incompleto)
cido, cai logo sobre um dos estribos, “Espírito Moderno” (conferência) – 1956
descansando sobre a espenda7 da “A Emoção Estética na Arte Mo- Clara dos Anjos (romance) – 1948
sela. Caminhando, mesmo a passo derna” (conferência)
rápido, não traça trajetória retilínea e ❑ Apreciação crítica
firme. Avança celeremente8, num ❑ Apreciação crítica Recordações do Escrivão Isaías
bambolear característico, de que Canaã, romance ao qual deveu Caminha, romance em primeira pes-
parecem ser o traço geométrico os sua celebridade, é construído a partir soa, autobiográfico, retrata a vida de
meandros das trilhas sertanejas. E se da observação de uma pequena um grande jornal da época. Sátira a
na marcha estaca pelo motivo mais comunidade de imigrantes alemães figurões da imprensa e das letras.
vulgar, para enrolar um cigarro, bater (Milkau e Lentz), no Espírito Santo, Extravasamento de suas decepções
o isqueiro, ou travar ligeira conversa evidenciando o contraste entre o ale- e revoltas.
com um amigo, cai logo — cai é o mão, fruto de uma civilização euro- Romance em terceira pessoa,
termo — de cócoras, atravessando peia adiantada, e o miserável homem Triste Fim de Policarpo Quaresma
largo tempo numa posição de equi- rural e provinciano brasileiro. mostra com clareza o ridículo e paté-
líbrio instável, em que todo o seu cor- Malasarte, drama característico tico de um nacionalismo fanatizante e
po fica suspenso pelos dedos simbolista, representa o conflito do anacrônico. O maior sonho de Policar-
grandes dos pés, sentado sobre os indivíduo, dividido entre o desejo vio- po é “o tupi como língua oficial no
calcanhares, com uma simplicidade lento dos prazeres e as forças da mo- Brasil”.
a um tempo ridícula e adorável. ral (Malasarte, Dionísia e Eduardo). Clara dos Anjos, romance auto-
É o homem permanentemente fa- Viagem Maravilhosa procurou, biográfico, é a triste ruína de um ho-
tigado. por um lado, oferecer uma visão total mem que se entrega à embriaguez.
26 –
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num uníssono sustentado. Suspen- com uma enorme saúva agarrada


TEXTO
deram um instante a música. O major com toda a fúria à sua pele magra.
apurou o ouvido; o ruído continuava. Descobriu a origem da bulha. Eram
(fragmento) Que era? Eram uns estalos tênues; formigas que, por um buraco no
parecia que quebravam gravetos, assoalho, lhe tinham invadido a des-
A casa estava em silêncio; do la- que deixavam outros cair ao chão... pensa e carregavam as suas reservas
do de fora, não havia a mínima bu- Os sapos recomeçaram; o regente de milho e feijão, cujos recipientes
lha1. Os sapos tinham suspendido um deu uma martelada e logo vieram os tinham sido deixados abertos por
instante a sua orquestra noturna. baixos e os tenores. Demoraram mui- inadvertência3. O chão estava negro,
Quaresma lia; e lembrava-se que to; Quaresma pôde ler umas cinco e, carregadas com os grãos, elas, em
Darwin escutava com prazer esse páginas. Os batráquios2 pararam; a pelotões cerrados, mergulhavam no
concerto dos charcos. Tudo na nossa bulha continuava. O major levantou- solo em busca da sua cidade subter-
terra é extraordinário! pensou. Da se, agarrou o castiçal e foi à depen- rânea.
despensa, que ficava junto a seu dência da casa donde partia o ruído, (Lima Barreto,
aposento, vinha um ruído estranho. assim mesmo como estava, em ca- Triste Fim de Policarpo Quaresma)
Apurou o ouvido e prestou atenção. misa de dormir.
Os sapos recomeçaram o seu hino. Abriu a porta; nada viu. Ia pro- Vocabulário
Havia vozes baixas, outras mais altas curar nos cantos, quando sentiu uma 1 – Bulha: barulho.
e estridentes; uma se seguia à outra, ferroada no peito do pé. Quase gritou. 2 – Batráquio: sapo.
num dado instante todas se juntaram Abaixou a vela para ver melhor e deu 3 – Inadvertência: descuido.

MÓDULO 38 Pré-Modernismo II
1. MONTEIRO LOBATO ❑ Apreciação crítica cócoras enquanto o Brasil esperava
(1882-1948) “A sua obra é variada: contos, por ele”, na famosa figura de Jeca
crônicas e artigos, ensaios quase Tatu; depois se desculpou, falando
❑ Vida das difíceis condições da vida do cam-
panfletários, e literatura infantil. Des-
Nasceu na chácara do Visconde ponês. Atacou publicamente o Mo-
taca-se aqui o sentido da obra do
de Tremembé, seu avô materno, hoje dernismo, no artigo “Paranoia ou
contista de feitio regionalista. Ela está
conhecida como Chácara do Pica- Mistificação?”, de 1917, escrito a pro-
presa à experiência no interior, com-
Pau Amarelo. Formou-se em Direito pósito de uma exposição de Anita
preendido sobretudo nos limites da
em São Paulo, tendo participado in- Malfatti. A principal característica de
região que se denominaria das ‘cida-
tensamente de atividades políticas es- sua linguagem é a oralidade.
des mortas’, onde brilhou o fausto das
tudantis. Fundou a Companhia
grandes fazendas de café do século
Editora Nacional; incentivou as cam-
passado [XIX]. Constitui-se assim de TEXTO
panhas do petróleo e do ferro, fun-
flagrantes bem apanhados do homem
dando, em 1931, a Cia. Petróleo do UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA
e da paisagem, embora tomados nos
Brasil. Foi preso por escrever carta ao
seus aspectos exteriores, para nos
ditador Getúlio Vargas sobre o proble- Chamava-se João Teodoro, só. O
comunicar a sugestão de marasmo e
ma do petróleo brasileiro. Mudou-se mais pacato e modesto dos homens.
indolência reinantes. E não disfarça
para a Argentina, regressando no ano Honestíssimo, com um defeito ape-
inteiramente o propósito de denúncia
seguinte, 1947. nas: não dar o mínimo valor a si pró-
de uma situação de indiferença,
❑ Obras deplorável. Por exemplo, Urupês e prio. Para João Teodoro, a coisa de
Urupês (doze histórias tiradas do Cidades Mortas, os dois primeiros menos importância no mundo era
sertão paulista) – 1918 livros que deram consagração e João Teodoro.
Ideias de Jeca Tatu – 1918 popularidade ao A.” Nunca fora nada na vida, nem ad-
Cidades Mortas – 1919 mitia a hipótese de vir a ser alguma
Negrinha (contos) – 1920 (Antonio Candido e J. A. Castello, coisa. E por muito tempo não quis
O Macaco que se Fez Homem – Presença da Literatura Brasileira II, nem sequer o que todos ali queriam:
1923 pp. 348-9) mudar-se para terra melhor.
A Barca de Gleyre (correspon- Mas João Teodoro acompanhava
dência com Godofredo Rangel) – 1944 A principal faceta de sua produ- com aperto de coração o depere-
ção literária são os contos, de cunho cimento1 visível de sua Itaoca.
• Literatura Infantil regionalista, que enfocam o homem e — Isto já foi muito melhor, dizia
Reinações de Narizinho a paisagem da região que se denomi- consigo. Já teve três médicos bem
Viagem ao Céu naria “das ‘cidades mortas’”, isto é, o bons, agora só um e bem ruinzote. Já
O Picapau Amarelo decadente Vale do Paraíba. Criticou teve seis advogados e hoje mal dá
Emília no País da Gramática etc. a indolência do caboclo, “sempre de serviço para um rábula2 ordinário
– 27
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como o Tenório. Nem circo de cavali- 2. AUGUSTO DOS ANJOS ❑ “Não sou capaz de amar
nhos bate mais por aqui. A gente que (1884-1914) mulher alguma!”
presta se muda. Fica o restolho3. De- “Se algum dia o prazer vier
cididamente, a minha Itaoca está-se ❑ Vida procurar-me, dize a este
acabando... Paraibano, desde a infância enfer- monstro que fugi de casa!”
João Teodoro entrou a incubar4 a miço e nervoso, é, a rigor, um poeta O asco do prazer é expresso de
ideia de também mudar-se, mas para inclassificável. Sua obra é constituída maneira contundente; a relação entre
isso necessitava dum fato qualquer de um único livro — Eu (1912) —, os sexos é apenas “a matilha espan-
que o convencesse de maneira abso- que, reeditado em 1919, passou a tada dos instintos”, ou, “parodiando
luta de que Itaoca não tinha mesmo chamar-se Eu e Outras Poesias. saraus cínicos, / bilhões de centros-
conserto ou arranjo possível. Transformado em catecismo dos somas apolínicos / na câmara promís-
— É isso, deliberou lá por dentro. pessimistas e em bíblia dos azarados cua do vitellus”.
Quando eu verificar que tudo está e malditos, o livro Eu é de uma insti- Reduzindo o amor humano à ce-
perdido, que Itaoca não vale mais na- gante popularidade, resistente a to- ga e torpe luta de células, cujo fim
da de nada, então arrumo a trouxa e dos os modismos, impermeável às não é senão criar um projeto de ca-
boto-me fora daqui. retaliações da crítica e aos vermes do dáver, o poeta aspira, como Cruz e
Um dia aconteceu a grande novi- tempo. Foi o poeta mais original de Sousa, à imortalidade gélida, mas lu-
dade: a nomeação de João Teodoro nossa literatura, no período que vai minosa, de outros mundos onde não
para delegado. Nosso homem rece- de Cruz e Sousa aos modernistas. lateje a vida-instinto, a vida-carne, a
beu a notícia como se fosse uma ca- vida-corrupção.
cetada no crânio. Delegado, ele! Ele ❑ “Eu, filho do carbono e do
que não era nada, nunca fora nada, amoníaco” As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
não queria ser nada, não se julgava As leituras precoces de Darwin, Viver na luz dos astros imortais,
capaz de nada... Haeckel, Lamarck, Schopenhauer e Abraçado com todas as estrelas!
Ser delegado numa cidadezinha outros, feitas na biblioteca de seu pai, (Augusto dos Anjos, “Queixas Noturnas”)
daquelas é coisa seriíssima. Não há fundamentaram a postura existencial
cargo mais importante. É o homem que do poeta, a adesão ao Evolucionismo ❑ “As palavras se desintegram
prende os outros, que solta, que man- de Darwin e Spencer e a angústia fun- na minha boca como
da dar sovas, que vai à capital falar da, letal, ante a fatalidade que arrasta cogumelos mofados.”
com o governo. Uma coisa colossal toda a carne para a decomposição. (von Hofmannsthal)
ser delegado — e estava ele, João Fundem-se a visão cósmica e o deses- Augusto dos Anjos vale-se muitas
Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!... pero radical, produzindo uma poesia vezes de técnicas expressionistas
João Teodoro caiu em meditação violenta e nova em língua portugue- na montagem de seus textos. O
profunda. Passou a noite em claro, sa. Combinou inovações arrojadas expressionismo, corrente estética
pensando e arrumando as malas. Pe- com elementos provindos do Parna- situada nos limiares do Modernismo,
la madrugada botou-as num burro, sianismo e do Simbolismo. representou uma reação contra o
montou no seu cavalinho magro e impressionismo, contra o gosto pela
A IDEIA
partiu. nuance, contra o refinamento e
Antes de deixar a cidade foi visto De onde ela vem?! De que matéria bruta sutileza na captação do momento.
por um amigo madrugador. Vem essa luz que sobre as nebulosas A imagem é intencionalmente de-
— Que é isso, João? Para onde Cai de incógnitas criptas misteriosas formada e agrupada de maneira des-
se atira tão cedo, assim de armas e Como as estalactites duma gruta?! concertante, por meio da transfigu-
bagagens? ração da realidade. Em lugar da
Vem da psicogenética e alta luta
— Vou-me embora; respondeu o delicadeza e da suavidade, a imagem
Do feixe de moléculas nervosas,
retirante. Verifiquei que Itaoca chegou Que, em desintegrações maravilhosas,
é deformada, por meio de um dese-
mesmo ao fim. Delibera, e depois, quer e executa! nho violento, que acentua e barbariza
— Mas, como? Agora que você a forma, aproximando-se, às vezes,
está delegado? Vem do encéfalo1 absconso2 que a cons- do grotesco e da caricatura.
— Justamente por isso. Terra em [tringe, Daí o “mau gosto”, o “apoético”
que João Teodoro chega a delegado, Chega em seguida às cordas da laringe, que, em Augusto dos Anjos, são con-
eu não moro. Adeus. Tísica, tênue, mínima, raquítica... vertidos em poesia. O jargão científico
E sumiu. e o termo técnico, tradicionalmente pro-
Quebra a força centrípeta que a amarra, saicos, não devem ser abstraídos de
(Monteiro Lobato, Cidades Mortas) Mas, de repente, e quase morta, esbarra um contexto que os exige e os justifica.
No molambo3 da língua paralítica!
Fazia-se mister uma simbiose de ter-
Vocabulário (Augusto dos Anjos)
1 – Deperecimento: definhamento.
mos que definissem toda a estrutura
2 – Rábula: advogado de limitada cultura. Vocabulário da vida (vocabulário físico, químico e
3 – Restolho: resto, sobra. 1 – Encéfalo: cérebro. 2 –Absconso: recôndito, biológico) e termos que exprimissem
4 – Incubar: planejar. oculto. 3 – Molambo: trapo. o asco e o horror ante a existência.
28 –
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Apoiando-se na hipérbole, no pa- Acostuma-te à lama que te espera! Dissolva-se, portanto, minha vida
radoxo e na exploração de efeitos so- O Homem, que, nesta terra miserável, Igualmente a uma célula caída
noros, Augusto dos Anjos funde a Mora entre feras, sente inevitável Na aberração de um óvulo infecundo;
Necessidade de também ser fera.
inflexão simbolista e a retórica cientifi-
Mas o agregado abstrato das saudades
cista, criando uma dicção singular, que
Toma um fósforo, acende teu cigarro! Fique batendo nas perpétuas grades
projeta a hipersensibilidade e a visão O beijo amigo é a véspera do escarro, Do último verso que eu fizer no mundo!
trágica e mórbida da existência. A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Observe, nos versos a seguir, o (Augusto dos Anjos)
jogo de aliterações e efeitos sonoros: Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga, Vocabulário
“Tísica, tênue, mínima, raquítica...”,
Escarra nessa boca que te beija! 1 – Diatomácea: micro-organismo que tem ca-
“Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento”, “Cinzas,
pacidade de sintetizar substâncias orgâni-
caixas cranianas, cartilagens” , “De
(Augusto dos Anjos) cas a partir de substâncias inorgânicas.
aberratórias abstrações abstrusas”, “Bruto, de
2 – Criptógama: espécie vegetal que não se
errante rio, alto e hórrido, o urro / reboava”, “À
reproduz por meio de flores: as algas, os
híspida aresta sáxea áspera e abrupta.” BUDISMO MODERNO
musgos, os liquens e as samambaias.
3 – Esbroar: reduzir(-se) a pequenos fragmen-
TEXTOS Tome, Dr., esta tesoura, e… corte tos, a pó.
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
VERSOS ÍNTIMOS Todo o meu coração, depois da morte?!

Vês! Ninguém assistiu ao formidável Ah! um urubu pousou na minha sorte!


Enterro de tua última quimera. Também, das diatomáceas1 da lagoa
Somente a Ingratidão — esta pantera — A criptógama2 cápsula se esbroa3
Foi tua companheira inseparável! Ao contato de bronca destra forte!

MÓDULO 39 Fernando Pessoa I e Mário de Sá-Carneiro


1. A ERA DA MÁQUINA um terço da população mundial ❑ Os “ismos” europeus
permanece subdesenvolvida, mor- Expressionismo: estilo artísti-
(...) rendo de peste ou de fome antes dos co no qual a comunicação direta do
Eia! eia! eia! trinta anos, à margem desse im- sentimento e da emoção é objetivo
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria! pressionante progresso material, nu- fundamental. As obras expressionis-
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica ma situação sórdida, miserável e tas, para refletir desespero, ansieda-
[do Inconsciente! degradante. de, tormento e exaltação, distorcem
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Em 1914, a crise, latente desde o as imagens do mundo real, por meio
Eia todo o passado dentro do presente! final do século XIX, explode selvagem de colorido subjetivo, contraste inten-
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! e brutal. É a Primeira Guerra Mundial, so, linhas fortes, alteração de formas.
Eia! eia! eia! que deixará 1 400 000 vítimas. Em O expressionismo é associado à arte
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica meio a esse desconcerto, ocorre a alemã e dos países do norte da Euro-
[cosmopolita! Revolução Russa de 1917, que des- pa no final do século XIX e no século
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô! perta esperanças em todo o mundo, XX: Van Gogh, Munch, Ensor, Kan-
Nem sei que existo para dentro. Giro, e surge o homem novo que levaria a dinsky, na pintura; Murnau, Fritz
[rodeio, engenho-me. boa palavra e melhores condições de Lang, Pabst, no cinema; Schönberg,
Engatam-me em todos os comboios. vida à humanidade. Alban Berg, na música; Strindberg,
Içam-me em todos os cais. Após a guerra, vem um período Brecht, na literatura.
Giro dentro das hélices de todos os navios. de descompressão, os anos loucos,
Eia! eia-hô eia! que atravessarão a crise de 1929, Futurismo: movimento artístico
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade! sendo violentamente interrompidos criado na Itália em 1909 pelo poeta
por um novo apocalipse. O genocídio, Filippo Tommaso Marinetti. Reagindo
(Álvaro de Campos, “Ode Triunfal” ) a tortura, as deportações em massa violentamente contra a tradição, exal-
da Segunda Guerra Mundial manifes- tava os aspectos dinâmicos da vida
No início do século XX, o mundo tam, em plena civilização, o absurdo e contemporânea: velocidade e meca-
vive o otimismo da Belle Époque: o horror da barbárie. nização. Os poetas e pintores tenta-
uma minoria abastada festeja, satis- É nesta atmosfera de euforia e de- vam flagrar o movimento e a simul-
feita e deslumbrada, as descobertas sencanto que devemos armar o es- taneidade dos objetos: aqueles, por
e invenções que se sucedem num rit- pírito para acompanhar a sucessão meio de pontuação, sintaxe, forma e
mo frenético e que tornam a vida mais de ismos, característica da arte do significados novos; estes, pela repe-
confortável. Em contrapartida, quase início do século XX. tição das formas, ausência de
– 29
TEORIA_CONV_C3_DANIEL 29/04/11 19:38 Página 30

divisão entre objetos e espaço, e canálise, procurava incluir na criação mento, como descargas de vivências
ênfase em linhas de força. Os futuris- artística os meios de elaboração do profundas, delírios emocionais, vio-
tas foram os primeiros a utilizar ruídos inconsciente, superar a realidade tal lentando nosso impulso natural de
na música e, crítica e humoristica- como ela é percebida cotidiana- buscar as coisas fáceis, sobretudo
mente, criaram até um “teatro sin- mente. Na literatura, criaram o pro- nos domínios da expressão através
tético futurista”, com peças cujos atos cesso “da escrita automática”, utili- da língua.
duravam menos de cinco minutos. zando-se da livre associação de
palavras. Na pintura, representavam ❑ A integração poética da
Cubismo: nome da teoria do imagens do inconsciente e do sonho. civilização material
grupo de pintores liderados por Bra- Além de André Breton, são surrealis- “À sociedade nova, aqui e alhu-
que e Picasso em Paris, a partir de tas os escritores Paul Éluard, Antonin res, correspondia, necessariamente,
1906. Influenciados por esculturas Artaud e Louis Aragon. Salvador Dalí literatura nova — eis o que não se
primitivas e por Cézanne, criaram um notabilizou-se na pintura e Luis cansaram de repetir, desde o primei-
tipo de pintura que eliminou a pers- Buñuel, no cinema. ro instante, todos os teóricos e ar-
pectiva, multiplicando os pontos de Num mundo em que os setores do tistas; (...)
vista num mesmo quadro. Escolhen- conhecimento — ciências, artes, filo- Como é natural, estes tomaram
do objetos familiares, facilmente re- sofia — são interdependentes, um tra- consciência muito mais cedo que os
conhecíveis, os cubistas os pinta- ço fundamental é comum a todas demais do que significavam os pro-
vam, não como os viam, mas como essas esferas: a instabilidade. A Arte gressos técnicos e científicos do co-
os entendiam estruturalmente: reor- se “desrealiza”, torna-se abstrata ou meço do século [XX]; eles
ganizavam os constituintes formais não figurativa, abandona a reprodu- perceberam desde logo que a própria
desses objetos em composições ção imitativa dos seres e objetos re- natureza e a própria qualidade do
geométricas, representando simulta- ais, para, em vez disso, criar seus espírito humano iam se modificar ao
neamente seus vários aspectos. Al- próprios objetos. impacto da máquina; esta última não
guns textos de Oswald de Andrade A Arte Moderna assume posição representava apenas um acréscimo à
foram influenciados pelo cubismo. de constante ruptura, assimilando em vida cotidiana, mas um fator catalítico
seu próprio organismo a fragmenta- de alcance imprevisível.”
ção de uma época marcada pela des-
continuidade e pelo caos inventivo e (MARTINS, Wilson. A Literatura
demolidor. Brasileira. “O Modernismo”.
Na Física, surgem as descobertas São Paulo: Cultrix. Vol. VI. p.13.)
de Max Planck (Teoria dos Quanta,
1900: a energia radiante tem, como a O rápido desenvolvimento tecno-
matéria, estrutura descontínua) e de lógico, que marca os albores do sécu-
Albert Einstein (Teoria da Relativida- lo XX, traz, ao lado da modificação que
de, 1905: a duração do tempo não é a provoca na moda, variações no gosto
mesma para dois observadores que estético e uma ânsia pela novidade;
se deslocam um em relação ao outro). torna-se necessário enfatizar a cren-
Na Filosofia e Psiquiatria, desen- ça de que o novo é sempre melhor. A
volvem-se as pesquisas de Henri técnica traz consigo o dinamismo
Georges Braque (1882-1963). Instrumen- Bergson e Sigmund Freud, respecti- também nas atitudes diante da vida.
tos musicais. Óleo sobre tela (50x61cm). vamente. Bergson, em Matéria e Me-
Coleção particular. mória (1907), afirma que a intuição é ❑ O verso livre
o único meio de conhecimento da O verso livre não implica ausên-
Dadaísmo ou Dadá: movimen- duração dos fenômenos e da vida. cia de ritmo, mas a criação do “ritmo
to antiburguês de arte e literatura que Freud, na Introdução à Psicanálise a cada momento”. Sabemos que, em
se espalhou pela Europa após a (1916/1917), promove a investigação português, a técnica do verso depre-
Primeira Guerra. Rejeitava os valores psicológica no tratamento das neuro- ende, tradicionalmente, esquemas
morais e estéticos tradicionais, le- ses, por meio da procura de tendên- que vão de duas a doze sílabas, com
vando essa rejeição ao absurdo, mas cias reprimidas no inconsciente do acentos regularmente distribuídos. Já
abrindo caminho para novos modos e indivíduo e do seu retorno consciente o que caracteriza o verso livre é,
meios de expressão. Surgiu em Zuri- pela análise. sobretudo, uma mudança de atitude:
que, em 1916, e reuniu artistas como sua unidade de medida deixa de ser
Tristan Tzara, Francis Picabia, Marcel 2. A POESIA MODERNA a sílaba e passa a basear-se na com-
Duchamp. binação das entoações e das pausas.
Surrealismo: originou-se em A poesia moderna rompe a sinta- O ritmo decorre, pois, da sucessão
Paris, em 1924, sob a liderança de xe, o encadeamento lógico; é elíptica, dos grupos de força valorizados pela
André Breton, e teve muito em comum alusiva, não tem limitações norma- entoação, pela maior ou menor
com o Dadá. Tendo apoio da Psi- tivas, e o ritmo é criado a cada mo- rapidez da enunciação.
30 –
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Exemplos – A temática passa dos assuntos ❑ Fernando Pessoa


“O Sr. tem uma escavação no universais para os particulares, indivi- (1888-1935)
[pulmão esquerdo e o pulmão direito duais e específicos. • Vida
[infiltrado.” – O princípio de seleção do ma- Nasceu em Lisboa. Em 1893,
terial expande-se, para incluir todos tornou-se órfão de pai. A mãe casou-
(Manuel Bandeira)
os motivos e assuntos. se novamente e a família viajou para a
– A caracterização das persona- África do Sul. Fez o curso primário e
Preso à minha classe e a algumas
gens varia; aumenta o interesse pelos secundário em Durban, alcançando
[roupas,
estados mentais, pela vida profunda prêmio de redação em inglês. Em
vou de branco pela rua cinzenta.
do “eu”, em detrimento das ações 1905, voltou para Lisboa. Matriculou-
Melancolias, mercadorias esprei-
exteriores. se na faculdade de Letras e foi cor-
[tam-me.
– Por outro lado, a maneira de respondente comercial em línguas
Devo seguir até o enjoo?
apresentação é diferente: a análise e estrangeiras, função que exerceu até
Posso, sem armas, revoltar-me?
a construção dos caracteres se fazem a morte. Em 1912, colaborou com a
(Carlos Drummond de Andrade) por acumulação, em rápidos instan- Águia, como crítico. Em 1915, liderou
tes significativos, ou pela apresenta- o grupo da revista Orpheu. O se-
A nova técnica aparece pela ção da própria consciência em ope- gundo número da revista é de 1916,
primeira vez, de forma ainda tímida, ração, isto é, do fluxo de consciência e o terceiro não chegou a sair, pois
com Arthur Rimbaud, em junho de (stream of consciousness). O autor Mário de Sá-Carneiro, que a finan-
1886, mas é com Walt Whitman que o não faz o retrato da personagem: es- ciava, suicidou-se.
verso livre começa a vencer. ta vive, e o leitor a conhece e julga. Fernando Pessoa iniciou então a
– A literatura torna-se cada vez publicação de parte de sua obra em
❑ Outras constantes da poe- mais subjetiva, interiorizada e abstra- revistas: Centauro, Atena, Contempo-
sia moderna ta, construída de experiências men- rânea, Presença. Em 1934, candida-
– A dessacralização da obra de tais, da vida do espírito. tou-se a um prêmio de poesia com
arte, com o predomínio da concepção – A sugestão e a associação, a Mensagem, único livro, em português,
lúdica sobre a concepção mágica. expressão indireta, passam a ser os publicado em vida, alcançando o se-
– A presença do humor, com o meios de se veicular a experiência. gundo lugar. Com Mensagem, Fer-
poema-piada, como forma de aprofun- nando Pessoa fez uma épica mo-
damento da percepção do homem e derna, a partir de sugestões camo-
3. MODERNISMO
do mundo. nianas, mas vendo todo o século
EM PORTUGAL
– Cosmopolitismo do processo quinhentista por uma perspectiva
literário, que se traduz na intercomuni- crítica.
cação entre os artistas. O Modernismo português teve
– Antiacademicismo, anticonven- início em 1915, com a publicação da
cionalismo, abolição da distinção en- revista Orpheu, da qual participaram
tre temas “poéticos”, “antipoéticos” e Fernando Pessoa, Mário de Sá-Car-
“apoéticos”. neiro, Santa Rita Pintor, Cortes-Rodri-
– “Imagens crescentemente mo- gues, Alfredo Guisado, Ronald de
deladas em linguagem cotidiana.” Carvalho e Eduardo Guimarães. Pre-
– Ausência de inversões, de tendiam causar escândalo para de-
apóstrofes bombásticas. molir heranças literárias dogmati- Fernando
– Ausência e/ou revitalização de zadas e eram unidos pelo inconfor- Pessoa
rimas convencionais. mismo e pelo desejo de renovar a quando
– Sequência de imagens basea- Literatura Portuguesa. Causaram es- jovem.
das na livre associação, abandonan- cândalo, foram combatidos, e a revis-
do-se a lógica de causa e efeito. ta foi logo extinta. Contudo, con- • Obras
– “Ênfase no habitual, e não no seguiram levar para Portugal influxos Mensagem (1934) é a única obra
cósmico.” da nova arte (futurismo, um cubismo em português publicada em vida.
– Interesse maior pelo incons- decadentista etc.). Tem linguagem extremamente elabo-
ciente. rada, num estilo semelhante, como se
– Interesse pelo homem comum. Em 1927, a criação de uma nova verá, ao do heterônimo Ricardo Reis.
Na prosa modernista, observam- revista — Presença — deu novo ânimo Mensagem, ao contrário de Os
se os seguintes traços marcantes: ao Modernismo português. Seus fun- Lusíadas, de que é releitura, celebra,
– O autor ausenta-se da narrativa. dadores, José Régio, Branquinho da não grandezas, mas fantásticas irrea-
– A ação e o enredo perdem im- Fonseca e João Gaspar Simões, além lidades e loucuras de heróis da lenda
portância em favor das emoções, es- de valorizarem criticamente a geração e da história do país, como Ulisses,
tados mentais e reações das perso- de Orpheu, continuavam a luta contra Viriato, D. Sebastião, Vieira etc.
nagens. o academicismo. Mensagem constitui-se de 44 poemas,
– 31
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dispostos em três partes: “Brasão”, Cada uma dessas “máscaras” ou A modernidade de Fernando Pes-
“Mar Português” e “O Encoberto”. heterônimos constitui uma atitude, soa principia pela negação do sen-
Tratam, respectivamente, das figuras uma experiência assumida por Fer- timento puro como conteúdo poético
históricas e lendárias que permitiram nando Pessoa, e desemboca em um (“Tudo o que em mim sente está
a ascensão de Portugal, do apogeu jogo infinito de linguagens/seres, re- pensando”). A essência de sua lin-
de Portugal com as navegações e do velador de uma poderosa consciên- guagem nova reside na constante re-
declínio português. cia crítica do fenômeno poético e de versão do sentimento em pensa-
uma densa posição metalinguística. mento, na constante alquimia do sen-
• Outras Obras As “máscaras” assumidas pelo poeta tido em outra coisa que o excede.
– Poemas de Alberto Caeiro dialogam entre si, correspondem-se e
– Odes de Ricardo Reis indicam as contradições existentes ❑ Fernando Pessoa,
– Poesias de Álvaro de Campos entre elas. ele-mesmo
– Poesias de Fernando Pessoa Multiplicando-se em vários poetas Fernando Pessoa ortônimo, ou
– Poemas Dramáticos – O Mari- — Alberto Caeiro, Ricardo Reis seja, ele-mesmo, diverge muito de
nheiro e Álvaro de Campos —, seus Caeiro e Reis, porque não inculca
– Quadras ao Gosto Popular heterônimos, além da poesia que uma norma de comportamento; nele
– Poemas Ingleses – Poemas realiza sob seu próprio nome, Fer- há quase apenas a expressão
Franceses – Poemas Traduzidos nando Pessoa propõe um jogo infinito musical e sutil do frio, do tédio
– Poesias Inéditas da linguagem, oscilando entre o sentir e dos anseios da alma, de es-
e o pensar, entre o ser e o não ser, tados quase inefáveis em que
Em prosa (textos recolhidos, es- entre o rosto e a máscara. se vislumbra por instantes
tabelecidos e organizados por vários “Tudo o que em mim sente “uma coisa linda”, nostalgia
autores): está pensando”, diz de si o poeta, dum bem perdido que não se
– O Livro do Desassossego, por propondo uma chave para penetrar- sabe qual foi, oscilações qua-
Bernardo Soares mos no labirinto em que ele nos en- se imperceptíveis duma inte-
– Páginas Íntimas e de Auto- reda através da multiplicidade de lin- ligência extremamente sensí-
Interpretação guagem e de cosmovisões: Caeiro é vel, e até vivências tão profun-
– Páginas de Estética e de Teo- um mestre bucólico, Reis é um neo- das que não vêm “à flor das
ria e Crítica Literária clássico estoico, Campos é um futu- frases e dos dias”, mas se insi-
– Textos Filosóficos rista neurótico e angustiado e Fernando nuam pela eufonia dos versos,
– Sobre Portugal – Introdução ao Pessoa, ele-mesmo, parece ser o pelas reticências, numa lingua-
Problema Nacional heterônimo de algum outro ser/poeta, gem finíssima.
– Da República instalado entre um heterônimo e outro, Fernando Pessoa, ele-mesmo, re-
– Ultimatum e Páginas de Socio- nos intervalos, nos interstícios, sim- toma motivos e formas da lírica por-
logia Política ples “ficção do interlúdio”. tuguesa, desde a Idade Média. É onde
– Cartas de Amor A explosão dos heterônimos aspi- mais se projeta o nacionalista
– Textos de Crítica e Intervenção rava ao universal como esperança de místico, o sebastianista racional
unidade: que o poeta se dizia, especialmente no
• Considerações poema esotérico Mensagem, réplica
Realiza uma poética densamente Sentir tudo de todas as maneiras, / não sistemática de Os Lusíadas.
experimental, que, partindo das for- Viver tudo de todos os lados, / Ser a
mas líricas tradicionais, ultrapassa-as mesma coisa de todos os modos TEXTOS
de forma criativa, evoluindo através possíveis ao mesmo tempo, / Realizar
de diversas etapas: o saudosismo em si toda a humanidade de todos os I
esotérico, o paulismo, o futu- momentos / Num só momento difuso,
rismo, o interseccionismo e o profuso, completo e longínquo. POBRE VELHA MÚSICA!
sensacionismo. (Álvaro de Campos, Pobre velha música!
O poeta desdobra-se em várias “Passagem das Horas”) Não sei por que agrado
“máscaras”. Uma delas, Fernando Enche-se de lágrimas
Pessoa, ele-mesmo, constrói a poe- Mas essa esperança de unidade Meu olhar parado.
sia ortonímica, assinada pelo pró- desemboca no esfacelamento. A so-
Recordo outro ouvir-te.
prio Fernando Pessoa. As outras ma dos heterônimos, que tinham no- Não sei se te ouvi
“máscaras” constituem os heterô- me, biografia, profissão e traços Nessa minha infância
nimos do poeta, dentre os quais se característicos, deveria produzir o Que me lembra em ti.
destacam: Alberto Caeiro, Ricardo Todo. Mas entre um sujeito e outro
Reis e Álvaro de Campos, além de ou- desponta o Outro, o Neutro, o Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
tros, menos desenvolvidos: Bernardo Fluido. É o Negativo “ele-mesmo” E eu era feliz? Não sei:
Soares, Alexandre Search, Antônio quem triunfa, recobrindo a afirmação Fui-o outrora agora.
Mora, G. Pacheco e Vicente Guedes. e negando-a, uma e outra. (Fernando Pessoa)

32 –
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II ❑ Mário de Sá-Carneiro TEXTOS


D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL (1890-1916)
Originário da alta burguesia, mar-
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
cou-se por uma personalidade extre- I
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza; mamente sensível, desequilibrada.
Por isso onde o areal está Inadaptado e egocêntrico, sua DISPERSÃO
Ficou meu ser que houve, não o que há. racionalidade e lucidez serão respon-
Perdi-me dentro de mim
sáveis por uma autoanálise trágica,
Minha loucura, outros que me a tomem Porque eu era labirinto,
Com o que nela ia. pelo sentido de aniquilamento que, E hoje, quando me sinto,
Sem a loucura que é o homem agravado pela crise financeira da É com saudades de mim.
Mais que a besta sadia, família, o levarão ao suicídio, com a-
Cadáver adiado que procria? penas 26 anos. Passei pela minha vida
(Fernando Pessoa, Mensagem)
Um astro doido a sonhar
Na ânsia de ultrapassar,
III • Obras
Nem dei pela minha vida...
ULISSES Poesia
– Dispersão; Para mim é sempre ontem,
O mito é o nada que é tudo.
– Indícios de Oiro. Não tenho amanhã nem hoje:
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo — O tempo que aos outros foge
O corpo morto de Deus, Prosa Cai sobre mim feito ontem.
Vivo e desnudo.
– Princípio;
(Mário de Sá-Carneiro)
Este, que aqui aportou, – A Confissão de Lúcio;
Foi por não ser existindo. – Céu em Fogo;
Sem existir nos bastou. – Cartas a Fernando Pessoa. II
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
• Apreciação crítica QUASE
Assim a lenda se escorre “O motivo central de sua obra é o
A entrar na realidade, da crise de personalidade, a inade- Um pouco mais de sol — eu era brasa,
E a fecundá-la decorre. quação do que sente ao que dese- Um pouco mais de azul — eu era além.
Em baixo, a vida, metade Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
De nada, morre.
jaria sentir.
Se ao menos eu permanecesse aquém…
(Fernando Pessoa, Mensagem) Essa crise mascara-se nalguns
poemas pela expressão frenética de Assombro ou paz? Eu vão... Tudo esvaído
IV
uma pretensa plenitude sensorial de Num baixo mar enganador de espuma;
AUTOPSICOGRAFIA quem sabe ‘viajar outros sentimentos’ E o grande sonho despertado em bruma,
O poeta é um fingidor.
(...) em que as categorias lógicas dei- O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Finge tão completamente xam de impor-se, em que tudo psico-
Que chega a fingir que é dor logicamente se perverte ou subverte. Quase o amor, quase o triunfo e a chama;
A dor que deveras sente. As novelas traem mais a formação de- Quase o princípio e o fim — quase a
cadentista e em parte saudosista de [expansão...
E os que leem o que escreve Mas na minh’alma tudo se derrama…
Na dor lida sentem bem,
sua estética, empenhada em perse-
Entanto nada foi só ilusão!
Não as duas que ele teve, guir o mistério metafísico, a confusão
Mas só a que eles não têm. dos sentidos, a coincidência mórbida De tudo houve um começo... e tudo errou...
das coisas humanas mais díspares.” — Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão, Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Esse comboio de corda (SARAIVA, A. J.; LOPES, Ó. Asa que se elançou mas não voou...
Que se chama o coração. História da Literatura Portuguesa.
(Fernando Pessoa) Porto: Ed. do Porto.) (Mário de Sá-Carneiro)

MÓDULO 40 Fernando Pessoa II


Pessoa situou em 1889 a data do formalmente. Trata-se de um homem judaica, não espiritualizada da vida e
nascimento de Alberto Caeiro. Ele é, simples, criado no campo e nele do mundo. Caeiro nos ensina que o
portanto, um pouco mais novo que o vivendo, alheio à alta sofisticação mundo não é um enigma, um mistério
próprio Pessoa, mas é o seu mestre, cultural que marca os poetas que o que devemos tentar desvendar, nem
como é o mestre dos demais hete- tomam por mestre. E de que Caeiro é o que vemos tem um sentido oculto
rônimos. Isso é paradoxal, porque mestre? Fernando Pessoa nos res- por trás das aparências:
Caeiro é, dentre eles, o menos culto e ponde: é mestre de paganismo, quer
sua poesia é a menos elaborada dizer, de uma visão não cristã, não
– 33
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O que nós vemos das coisas são as coisas Se quiserem que eu tenha um misticismo, meus pensamentos / e os meus
Por que veríamos nós uma coisa se hou- [está bem, tenho-o. pensamentos são todos sensações”.
[vesse outra? Sou místico, mas só com o corpo.
Por que é que ver e ouvir seria iludir-nos A minha alma é simples e não pensa.
Sua poesia, contudo, é mais de
Se ver e ouvir são ver e ouvir? pensamentos que de sensações.
O essencial é saber ver. O meu misticismo é não querer saber. O caráter paradoxal da teoria de
Saber ver sem estar a pensar, É viver e não pensar nisso. Caeiro se manifesta também no plano
Saber ver quando se vê, estilístico: seus poemas evitam tudo o
E nem pensar quando se vê Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Nem ver quando se pensa. Vivo no cimo dum outeiro1
que se costuma tomar por poesia.
Numa casa caiada e sozinha, Seus versos parecem prosa, pois são
Mas isso (tristes de nós que trazemos a E essa é a minha definição. uma forma ritmicamente frouxa de ver-
[alma vestida!), so livre, cujo andamento dá a impres-
Isso exige um estudo profundo, Vocabulário são de naturalidade, de esponta-
Uma aprendizagem de desaprender 1 – Outeiro: colina, morro.
E uma sequestração na liberdade
neidade sem qualquer premeditação
[daquele convento artística (o que é, na verdade, um
Também em relação à poesia
De que os poetas dizem que as estrelas efeito artístico dessa poesia). Seu
[são as freiras eternas Caeiro é polêmico, porque suas ideias
vocabulário é restrito e as mesmas
E as flores as penitentes convictas de um geram uma poesia “antipoética”, que
palavras e expressões se repetem
[só dia1, nega a transcendência:
Mas onde afinal as estrelas não são senão
com pequeno intervalo, sem nenhum
[estrelas O luar através dos altos ramos,
esforço aparente de evitar o que é
Nem as flores senão flores, Dizem os poetas todos que ele é mais tradicionalmente considerado “pobre-
Sendo por isso que lhes chamamos Que o luar através dos altos ramos. za de estilo”. Também do ponto de
[estrelas e flores. vista estritamente linguístico e gra-
Mas para mim, que não sei o que penso, matical, a escrita de Caeiro é menos
Nota O que o luar através dos altos ramos
1 – Observar a crítica a algumas imagens con- É, além de ser
culta e menos rigorosa que a de seus
vencionais da poesia de fundo romântico, espi- O luar através dos altos ramos, “discípulos”.
ritualizada, que Caeiro rejeita. É não ser mais Com tudo isso, a pequena obra
Que o luar através dos altos ramos. singular e singela de Alberto Caeiro
Assim, nossa dificuldade em alcança, com recursos de simplici-
captar o mundo tal como ele é deve- dade extrema, momentos de verda-
se ao nosso vício de interpor o pen- deira mágica poética, nos quais a
samento entre nós e as coisas. Nós sensação é realmente vívida e não
somos como que doentes de pensa- apenas pretexto para a discussão de
mento. Em vez de nos relacionarmos ideias. É o caso do poema seguinte,
com os objetos em sua singularida- que pode ser tomado, de fato, como a
de, que é a sua realidade, nós gene- expressão de um momento de
ralizamos, e destruímos com isso a iluminação zen-budista:
realidade das coisas. Diz Caeiro:
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
Compreendi que as coisas são reais e todas Alberto Caeiro. E vai-se, sempre muito leve.
[diferentes umas das outras; Pormenor do E eu não sei o que penso
Compreendi isto com os olhos, nunca com o
[pensamento. mural de Nem procuro sabê-lo.
Compreender isto com o pensamento seria Almada
[achá-las todas iguais. Negreiros, na TEXTOS
Faculdade de O GUARDADOR DE REBANHOS
Já se viu em Caeiro semelhança Letras da (1910/1911 – fragmentos)
com o zen-budismo, especialmente em Universidade
Há metafísica bastante em não pensar em
sua insistência no não pensamento de Lisboa
[nada.
como condição da experiência exis- (1958).
tencial verdadeira. Caeiro defende um O que penso eu do Mundo?
pensamento contra o pensamento, Os poemas de Caeiro, que falam Sei lá o que penso do Mundo!
uma filosofia antifilosófica (“Com da concretude do mundo, da realidade Se eu adoecesse pensaria nisso.
filosofia não há árvores, há ideias única das sensações, são na verdade
Que ideia tenho eu das coisas?
apenas” ) e nega qualquer forma de poemas abstratos, quase inteiramente
Que opinião tenho sobre as causas e os
espiritualismo ou de transcendência, carentes de imagens do mundo, por-
[efeitos?
ou seja, nega a ideia de qualquer rea- que o que o poeta faz é defender uma Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
lidade além daquela que constitui teoria – uma curiosa teoria que con- E sobre a criação do Mundo?
nossa experiência concreta e imedia- dena todas as teorias. Seu livro cha- Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os
ta das coisas, com as quais nosso ma-se O Guardador de Rebanhos, [olhos
corpo se relaciona: mas, como ele diz, “o rebanho é os E não pensar. É correr as cortinas

34 –
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Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O único sentido íntimo das coisas E amo-o sem pensar nele,
O mistério das coisas? Sei lá o que é É elas não terem sentido íntimo nenhum. E penso-o vendo e ouvindo,
[mistério! Não acredito em Deus porque nunca o vi. E ando com ele a toda a hora.
O único mistério é haver quem pense no Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
[mistério. Sem dúvida que viria falar comigo VI
Quem está ao sol e fecha os olhos E entraria pela minha porta dentro
Começa a não saber o que é o Sol Dizendo-me, Aqui estou! Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
E a pensar muitas coisas cheias de calor. Porque Deus quis que o não
Mas abre os olhos e vê o Sol (Isto é talvez ridículo aos ouvidos [conhecêssemos,
E já não pode pensar em nada, De quem, por não saber o que é olhar para Por isso se nos não mostrou...
Porque a luz do Sol vale mais que os [as coisas, Sejamos simples e calmos,
[pensamentos Não compreende quem fala delas Como os regatos e as árvores,
De todos os filósofos e de todos os poetas. Com o modo de falar que reparar para elas E Deus amar-nos-á fazendo de nós
A luz do Sol não sabe o que faz [ensina.) Belos como as árvores e os regatos,
E por isso não erra e é comum e boa. E dar-nos-á verdor na sua primavera,
Mas se Deus é as flores e as árvores E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
Metafísica? Que metafísica têm aquelas E os montes e sol e o luar,
[árvores? Então acredito nele,
A de serem verdes e copadas e de terem Então acredito nele a toda a hora, XXXVI
[ramos E a minha vida é toda uma oração e uma
E há poetas que são artistas
E a de dar fruto na sua hora, o que não [missa,
E trabalham nos seus versos
[nos faz pensar, E uma comunhão com os olhos e pelos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
A nós, que não sabemos dar por elas. [ouvidos.
Que triste não saber florir!
Mas que melhor metafísica que a delas, Mas se Deus é as árvores e as flores
Ter que pôr verso sobre verso, como quem
Que é a de não saber para que vivem E os montes e o luar e o sol,
Nem saber que o não sabem? [constrói um muro
Para que lhe chamo eu Deus?
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol
“Constituição íntima das coisas...” Quando a única casa artística é a Terra toda
[e luar;
“Sentido íntimo do Universo...” Que varia e está sempre bem e é sempre
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer [a mesma.
Sol e luar e flores e árvores e montes,
[nada. Se ele me aparece como sendo árvores e Penso nisto, não como quem pensa, mas
É incrível que se possa pensar em coisas [montes [como quem respira,
[dessas. E luar e sol e flores, E olho para as flores e sorrio...
É como pensar em razões e fins É que ele quer que eu o conheça Não sei se elas me compreendem
Quando o começo da manhã está raiando, Como árvores e montes e flores e luar e sol. Nem se eu as compreendo a elas,
[e pelos lados das árvores E por isso eu obedeço-lhe, Mas sei que a verdade está nelas e em mim
Um vago ouro lustroso vai perdendo a (Que mais sei eu de Deus que Deus de si E na nossa comum divindade
[escuridão. [próprio?). De nos deixarmos ir e viver pela Terra
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, E levar ao colo pelas Estações contentes
Pensar no sentido íntimo das coisas Como quem abre os olhos e vê, E deixar que o vento cante para
É acrescentado, como pensar na saúde E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e [adormecermos
Ou levar um copo à água das fontes. [montes, E não termos sonhos no nosso sono.

MÓDULO 41 Fernando Pessoa III

1. OUTROS HETERÔNIMOS também tomado ao latim. Sua poesia maneira antiga, com grande rigor de
DE FERNANDO PESSOA aborda os temas clássicos da brevi- construção, com estrofes que alter-
dade da vida, da necessidade de go- nam versos longos e breves, de métri-
❑ Ricardo Reis zar o presente, que é a única realidade ca perfeita e sem rimas.
Ricardo Reis é cultor dos clássi- acessível diante da fatalidade da
cos gregos e latinos. Seu paganismo morte que sempre nos aguarda. Esta
TEXTOS
deriva da lição dos escritores da Anti- atitude hedonista (voltada para o
guidade, mas revela também influên- prazer), ou epicurista (decorrente da
I
cia de Alberto Caeiro, no amor pela filosofia de Epicuro), é associada a
vida rústica e no apego à Natureza. uma postura estoica, que propõe a Para ser grande, sê inteiro: nada
Sua poesia, porém, distancia-se mui- austeridade na fruição dos prazeres, Teu exagera ou exclui.
to da de Caeiro por ser cultíssima, pois seremos tanto mais felizes quanto Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
marcada por sintaxe latinizante (gran- menores forem nossas necessidades. No mínimo que fazes.
des inversões, enorme liberdade na Ricardo Reis tem no poeta latino Assim em cada lago a Lua toda
ordem das palavras, regências desu- Horácio (século I a.C.) seu modelo Brilha, porque alta vive.
literário, e seus poemas são odes à (Ricardo Reis)
sadas) e vocabulário raro, por vezes
– 35
TEORIA_CONV_C3_DANIEL 29/04/11 19:38 Página 36

II Nem cuidados, porque se os tivesse o rio


[sempre correria,
TEXTOS
Tanto quanto vivemos, vive a hora
E sempre iria ter ao mar.
Em que vivemos, igualmente morta
(...) (fragmentos)
Quando passa conosco,
Que passamos com ela. (Ricardo Reis)
LISBON REVISITED
(Ricardo Reis)
(1923)
❑ Álvaro de Campos
V
É em Álvaro de Campos, Não: não quero nada.
Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero. nascido em 1890, que encontramos Já disse que não quero nada.
Em ti como nos outros creio deuses mais a inquietação metafísica de Pessoa
[velhos Não me venham com conclusões!
e seu lado “moderno”, caracteriza- A única conclusão é morrer.
Só te tenho por não mais nem menos do pela vontade de conquista, pelo
Do que eles, mas mais novo apenas.
amor à civi lização e ao pro - Não me tragam estéticas!
gresso (e ao mesmo tempo cons- Não me falem em moral!
Odeio-os sim, e a esses com calma Tirem-me daqui a metafísica!
ciên cia desse mundo) e por uma
[aborreço, Não me apregoem sistemas completos,
Que te querem acima dos outros teus
linguagem de tom irreverente. Essa [não me enfileirem conquistas
[iguais deuses. “moder nidade” tem ligações claras Das ciências (das ciências, Deus meu,
Quero-te onde tu ‘stás, nem mais alto com o cosmopolita Cesário Verde, [das ciências!) —
Nem mais baixo que eles, tu apenas. com Walt Whit man e com o Das ciências, das artes, da civilização
[moderna!
Futuris mo. Sen tindo e inte lec -
Deus triste, preciso talvez porque nenhum tualizando suas sensações (sentir e Que mal fiz eu aos deuses todos?
[havia pensar), Campos percebe a impos- Se têm a verdade, guardem-na!
Como tu, um a mais no Panteão e no culto, si bilidade de não pensar, observa
Nada mais, nem mais alto nem mais puro criticamente o mundo e a si próprio, Sou um técnico, mas tenho técnica só
Porque para tudo havia deuses, menos tu. [dentro da técnica.
angustiando-se diante do tempo Fora disso sou doido, com todo o direito a
Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a
inexo rável e do ab surdo da vida. [sê-lo.
[vida
“Poeta sensaci o nista e por Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
É múltipla e todos os dias são diferentes
[dos outros,
vezes escandaloso” (qualificati-
vos da carta de Pessoa a A. Casais Não me macem1, por amor de Deus!
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós. Monteiro), Cam pos é o pri meiro a Queriam-me casado, fútil, cotidiano e
fazer um retrato de si e a referir cir- [tributável?
(Ricardo Reis) cunstâncias biográficas, o que refor- Queriam-me o contrário disto, o contrário
ça a simulação que daria ao próprio [de qualquer coisa?
VI Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, todos,
Fernando Pessoa estímulos para se
[a vontade.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. manter na pele do heterô ni mo. Assim, como sou, tenham paciência!
Sossegadamente fitemos o seu curso e Descreve-se de “monóculo e casaco Vão para o diabo sem mim,
[aprendamos exageradamente cintado”, “franzino Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Que a vida passa, e não estamos de mãos e civilizado”, “pobre engenheiro Para que havemos de ir juntos?
[enlaçadas. preso a sucessibilíssimas vitórias”.
(Enlacemos as mãos.) Não me peguem no braço!
Escreve, febril, “à dolorosa luz Não gosto que me peguem no braço.
das grandes lâmpadas elétricas da [Quero ser sozinho.
Depois pensemos, crianças adultas, que fábrica”, ou no “cubículo”, ouvindo “o Já disse que sou sozinho!
[a vida tic-tac estalado das máquinas de es- Ah, que maçada quererem que eu seja da
Passa e não fica, nada deixa e nunca [companhia!
crever”.
[regressa, É o outro radical, moderno, en- Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Vai para um mar muito longe, para ao pé do
genheiro, paradoxal, sadomasoquis- Eterna verdade vazia e perfeita!
[Fado, Ó macio Tejo ancestral e mudo,
ta, inconciliado, “neurótico”.
Mais longe que os deuses. Pequena verdade onde o céu se reflete!
Vale-se de uma prosa disposta
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de
Desenlacemos as mãos, porque não vale a em forma poética, com versos [hoje!
[pena cansarmo-nos, frequentemente desencadeados e Nada me dais, nada me tirais, nada sois
Quer gozemos, quer não gozemos, assimétricos, além de caracteres [que eu me sinta.
[passamos como o rio. tipográficos, sobrecarga de sinais de
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu
Mais vale saber passar silenciosamente pontuação e outras “anomalias” discur-
[nunca tardo...
E sem desassossegos grandes. sivas. E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio
Entre seus poemas mais conhe- [quero estar sozinho!
Sem amores, nem ódios, nem paixões que cidos, citam-se: “Tabacaria”, “Lisbon
[levantam a voz, (Álvaro de Campos)
Revisited”, “Saudação a Walt Whitman”,
Nem invejas que dão movimento demais
“Opiário”, “Ode Triunfal”, “Ode Marí- Vocabulário
[aos olhos,
tima” e “Poema em Linha Reta”. 1 – Maçar: chatear.
36 –
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TABACARIA Estou hoje perplexo, como quem pensou POEMA EM LINHA RETA
[e achou e esqueceu.
Não sou nada. Estou hoje dividido entre a lealdade que Nunca conheci quem tivesse levado
Nunca serei nada. [devo [porrada.
Não posso querer ser nada. À Tabacaria do outro lado da rua, como
Todos os meus conhecidos têm sido cam-
À parte isso, tenho em mim todos os [coisa real por fora,
[peões em tudo.
[sonhos do mundo. E à sensação de que tudo é sonho, como
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,
[coisa real por dentro.
[tantas vezes vil,
Janelas do meu quarto,
(...) Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Do meu quarto de um dos milhões do
[mundo que ninguém sabe quem é Indesculpavelmente sujo,
Fiz de mim o que não soube, Eu, que tantas vezes não tenho tido
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
E o que podia fazer de mim não o fiz. [paciência para tomar banho,
Dais para o mistério de uma rua cruzada
O dominó que vesti era errado.
[constantemente de gente, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo,
Conheceram-me logo por quem não era e
[absurdo,
[não desmenti, e perdi-me.
Para uma rua inacessível a todos os pensa- Que tenho enrolado os pés publicamente
Quando quis tirar a máscara,
[mentos, [nos tapetes das etiquetas,
Estava pegada à cara.
Real, impossivelmente real, certa, desconhe- Que tenho sido grotesco, mesquinho,
Quando a tirei e me vi ao espelho,
[cidamente certa, [submisso e arrogante,
Já tinha envelhecido.
Com o mistério das coisas por baixo das Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó
[pedras e dos seres, Que quando não tenho calado, tenho
[que não tinha tirado.
Com a morte a pôr umidade nas paredes
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário [sido mais ridículo ainda;
[e cabelos brancos nos homens.
Como um cão tolerado pela gerência Eu, que tenho sido cômico às criadas de
Com o Destino a conduzir a carroça de
Por ser inofensivo [hotel,
[tudo pela estrada de nada.
E vou escrever esta história para provar Eu, que tenho sentido o piscar de olhos
[que sou sublime. [dos moços de fretes,
Estou hoje vencido, como se soubesse a
Essência musical dos meus versos inúteis, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras,
[verdade
Quem me dera encontrar-te como coisa [pedido emprestado sem pagar;
Estou hoje lúcido, como se estivesse para
[que eu fizesse, Eu, que, quando a hora do soco surgiu,
[morrer.
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria
E não tivesse mais irmandade com as [me tenho agachado
[de defronte,
[coisas Para fora da possibilidade do soco;
Calcando aos pés a consciência de estar
Senão uma despedida, tornando-se esta Eu, que tenho sofrido a angústia das
[existindo,
[casa e este lado da rua [pequenas coisas ridículas,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
A fileira de carruagens de um comboio, e Eu verifico que não tenho par nisto tudo
Ou um capacho que os ciganos roubaram
[uma partida apitada [neste mundo.
[e não valia nada.
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um (...) (...)
[ranger de ossos na ida. (Álvaro de Campos) (Álvaro de Campos)

MÓDULO 42 A Semana de Arte Moderna


1. ANTECEDENTES os prejuízos. A grande paralisação de seguintes eventos:
operários, em 1907, a Revolta dos 18
Nos primeiros anos do século XX, do Forte de Copacabana, o Tenen- • 1912: Oswald de Andrade vol-
iniciou-se em São Paulo o processo tismo, em 1922, somados aos ecos ta da Europa e começa a divulgar o
de industrialização do País. Produzi- da Primeira Guerra Mundial (1914-18), Futurismo, de Marinetti, e a técnica do
ram-se, além de manufaturados, con- evidenciavam o esgotamento da verso livre. Já no ano anterior fundara,
tingentes de trabalhadores operários: estrutura de poder no primeiro quarto com Emílio de Meneses, o jornal
homens, mulheres e crianças, que, do século XX no Brasil. humorístico O Pirralho, em que Juó
submetidos às condições mais avil- Junto com a estrutura sociopolíti- Bananere (Alexandre Marcondes
tantes de trabalho, ocupavam as filei- ca, esgotara-se também a arte que Machado) parodiava, no português
ras das linhas de produção. Enquanto ela sustentava, de modo que, conco- dos ítalo-paulistanos, poemas céle-
isso, a decadente elite do café, já mitantemente àqueles acontecimen- bres do Romantismo e do Parnasia-
deficitária, ostentava um alto padrão tos, os próprios artistas denunciavam nismo.
de vida, sustentado pela política dos a crise da cultura e da arte brasileiras No seguinte poema, Juó Bana-
governadores, que, para evitar a que- e a necessidade de sua transfor- nere satiriza o famoso soneto XII de
da do preço do produto, compravam mação. Assim, antes mesmo da Via-Láctea, de Olavo Bilac (“Ora,
os excedentes, socializando apenas Semana de 22, são notáveis os direis, ouvir estrelas…”):

– 37
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UVI STRELLA pos”, que seria recitado na segunda 2. A SEMANA DE


noite da Semana de Arte Moderna. ARTE MODERNA
Che scuitá strella, né meia strella!
– Moisés e Juca Mulato, de
Vucê stá maluco! e io ti diró intanto,
Chi pra iscuitalas moltas veiz livanto,
Menotti del Picchia. Patrocinada pela elite letrada dos
I vô dá una spiada na gianella. – Nós, de Guilherme de Almeida, quatrocentões paulistanos, a Semana
ainda parnasiano e decadentista. “foi, ao mesmo tempo, o ponto de
I passo as notte acunversáno c’oella, – A Frauta de Pã, de Cassiano encontro das diversas tendências mo-
Inguanto che as otra lá d’un canto Ricardo, com sonetos parnasianos. dernas que desde a Primeira Guerra
Sto mi spiano. I o sol come un briglianto se vinham firmando em São Paulo e
Nasce. Oglio p’ru çeu — Cadê strella?!
Outros eventos no Rio, e a plataforma que permitiu a
Direis intó: — Ó migno inlustre amigo! consolidação de grupos, a publica-
O chi é chi as strellas ti dizia • Na música erudita, Villa-Lobos ção de livros, revistas e manifestos,
Quanto illas viéro acunversá contigo? compõe o balé Amazonas, incluindo numa palavra, o seu desdobrar-se em
elementos do folclore brasileiro, in- viva realidade cultural”. (BOSI,
E io ti diró: — Studi pra intendela, fluenciado por Stravinsky; na música Alfredo. História Concisa da Literatura
Pois só chi giá studô Astrolomia,
popular, é pela primeira vez gravado Brasileira. São Paulo: Cultrix, 3.a ed.,
É capaiz de intendê istas strella.
(Juó Bananere, La Divina Increnca)
em disco um samba, Pelo Telefone, 1987. p. 385). Ocorreu em três noites,
de Donga. 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no
“O satírico aparece em estágios • Exposição de 53 quadros de Teatro Municipal de São Paulo.
complexos e saturados de vida urba- Anita Malfatti (1917), que provocou a Na primeira noite, Graça Aranha,
na; momentos em que a consciência dura crítica “Paranoia ou Mistifica- que, como membro da Academia
do homem culto já se rela com as ção?”, de Monteiro Lobato, em O Es- Brasileira de Letras, conferia ao
contradições entre o cotidiano real e tado de S. Paulo (20/12/1917). evento um ar de respeitabilidade, pro-
os valores que o enleiam. E a paródia, Segue-se trecho da crítica: fere a conferência “A Emoção Estética
‘canto paralelo’, só se faz possível da Arte Moderna”, ilustrada com poe-
quando uma formação literária e um “… Estas considerações são pro- mas declamados por Guilherme de
gosto, outrora sólidos, entram em vocadas pela exposição da Sra. Mal- Almeida e Ronald de Carvalho, acom-
crise, isto é, sobrevivem apesar do fatti, onde se notam acentuadíssimas panhados por Ernâni Braga ao piano,
cotidiano, sobrevivem como disfarce, tendências para uma atitude estética executando, de Eric Satie, a paródia
como véu ideológico.” forçada no sentido das extravagân- da Marcha Fúnebre de Chopin.
(Alfredo Bosi) cias de Picasso e companhia. Essa Na segunda noite, há a conferên-
artista possui talento vigoroso, fora do cia de Menotti del Picchia, ilustrada
• 1913: Lasar Segall realiza a pri- comum. Poucas vezes, através de com vários textos, entre os quais “Os
meira exposição de pintura moderna uma obra torcida para má direção, se Sapos”, de Manuel Bandeira, vaiados
em São Paulo. Expõe quadros expres- notam tantas e tão preciosas qualida- todos pelo público. Segue-se um
sionistas e é totalmente ignorado. des latentes (…)” trecho da conferência:
• 1914: Anita Malfatti faz sua pri- “Queremos lua, ar, ventiladores,
meira exposição de pintura não aca- Nos anos seguintes, houve o sur- aeroplanos, reivindicações obreiras,
dêmica. Uma série de artigos sobre o gimento de Victor Brecheret, a publica- idealismos, motores, chaminés de
Futurismo sai em O Estado de S. ção de Carnaval, de Manuel Bandeira, fábricas, sangue, velocidade, sonho
Paulo. a exposição de Di Cavalcanti, a publi- na nossa arte. E que o rufo do automó-
• 1915: Fundação da revista cação dos artigos “Mestres do Passa- vel, nos trilhos de dois versos, espan-
Orpheu, que introduz o Modernismo do”, em que Mário de Andrade ana- te da poesia o último deus homérico,
em Portugal. Ronald de Carvalho, que lisa e critica, duramente, a poesia par- que ficou, anacronicamente, a dormir
participaria da Semana, e Luís de nasiana. e a sonhar, na era do jazz band e do
Montalvor organizam no Rio o pri- cinema, com a frauta dos pastores da
meiro número da revista. Arcádia e dos seios de Helena!”
• 1917: Publicação de livros de Mário de Andrade, sob vaias, lê
estreia de futuros participantes da poemas que constituiriam o livro A Es-
Semana: crava que não é Isaura. Renato de Al-
– Há uma Gota de Sangue em meida critica o Parnasianismo e
Cada Poema, de Mário de Andrade, Villa-Lobos entra no palco de chinelos
protesto pacifista contra a Primeira (pois teria um calo no pé) e guarda-
Guerra Mundial. chuva, indignando o público.
– Cinza das Horas, de Manuel A terceira noite tem apenas pro-
Bandeira, “queixume de um doente de- grama musical e Villa-Lobos rege
senganado”, segundo o próprio autor. composições conhecidas do reduzido
No seu livro seguinte, Carnaval (1919), público, que aplaudiu, sem escân-
apareceria o poema satírico “Os Sa- Victor Brecheret, Pietá, madeira – 40x50cm. dalos.
38 –
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❑ A revista Klaxon, Mensário de Ar- propunham a exaltação da terra, do


te Moderna, durou de maio de 1922 a homem, do folclore e dos heróis
fevereiro de 1923. Reunindo os nacionais. Aproximavam-se do Inte-
modernistas da fase heroica, não gralismo, doutrina que defendia um
sobreviveu à divisão entre a corrente regime político totalitário, corpora-
dinamista, adepta do futurismo, da tivista e nacionalista. Os manifestos
técnica, da velocidade, da experi- dessa corrente estão em Curupira e o
mentação de uma linguagem nova, e Carão, de Plínio, Menotti e Cassiano,
a primitivista, chegada ao expressio- e no Nhengaçu Verde-Amarelo. Mar-
nismo e à exploração do folclore bra- tim Cererê, de Cassiano Ricardo, é a
sileiro. Dividida entre a ânsia de melhor realização poética dos
modernização do Brasil e a convicção ideais dessa vertente.
de que nossas raízes indígenas e ne- Tarsila do Amaral, Antropofagia, 1929.
gras precisavam de tratamento esté- Nhengaçu Verde-Amarelo
tico adequado, a revista, incon- (fragmentos) Manifesto Antropófago
gruente na aparência, é o fundamento (fragmentos)
de obras como Macunaíma, Pau- “A descida dos tupis do planalto
Brasil, Cobra Norato, Martim Cererê, central no rumo do Atlântico foi uma Só a antropofagia nos une. So-
Revista de Antropofagia, Memórias fatalidade histórica pré-cabralina, que cialmente. Economicamente. Filoso-
Sentimentais de João Miramar etc. preparou o ambiente para as en- ficamente.
tradas no sertão pelos aventureiros

brancos desbravadores do oceano
(…). Única lei do mundo. Expressão
Os tupis desceram para serem ab- mascarada de todos os individualis-
sorvidos, para se diluírem no sangue mos, de todos os coletivismos. De to-
da gente nova. Para viver subjetiva- das as religiões. De todos os tratados
mente e transformar numa prodigiosa de paz.
força a bondade brasileira e o seu

grande sentimento de humanidade.
Seu totem não é carnívoro: Anta. Tupi or not tupi, that’s the question.
É este animal que abre caminhos, e (…)
aí parece estar indicada a predestina- Já tínhamos o comunismo. Já tí-
ção da gente tupi. (…).” nhamos a língua surrealista. A idade
de ouro. (…)
❑ Corrente primitivista: grupos “Pau-
Brasil” (1924) e “Antropofagia” (1928). (…)
Tiveram a liderança marcante de
Oswald de Andrade e a participação Somos concretistas. As ideias to-
de Tarsila do Amaral, Raul Bopp, mam conta, reagem, queimam gente
Antônio de Alcântara Machado (só na nas praças públicas. Suprimamos as
Capa do primeiro número da revista Klaxon. “Antropofagia”) e de Mário de Andra- ideias e as outras paralisias. Pelos
de, na fase de Macunaíma e Clã do roteiros. Acreditar nos sinais, acre-
❑ A revista Estética, dirigida por Jabuti. Os ideais da corrente foram ditar nos instrumentos e nas estrelas.
Sérgio Buarque de Holanda e Pruden- expressos no Manifesto Antropófago,
te de Morais Neto, foi lançada em publicado no primeiro número da Re- (…)
1924 e teve três números fartos de vista de Antropofagia, em 1928. Essa Contra a realidade social, vestida e
material teórico. Nessa revista, a dis- revista foi publicada em duas “denti- opressora, cadastrada por Freud —
puta era entre “arte interessada” e ções”: de maio de 1928 a janeiro de a realidade sem complexos, sem lou-
“arte autônoma”. 1929, mensalmente, e de março a cura, sem prostituições e sem peniten-
agosto de 1929, semanalmente. ciárias do matriarcado de Pindorama.
3. AS CORRENTES
MODERNISTAS Pretendendo “reintegrar o homem
na livre expansão dos seus instintos vi- Oswald de Andrade.
❑ Corrente nacionalista: grupos tais”, essa corrente propunha, não uma Em Piratininga.
“Verde-Amarelo” (1924), “Anta” (1929) aceitação passiva do legado europeu Ano 374 da Deglutição do Bispo
e “Bandeira” (1936). Reuniram-se à cultura brasileira, mas a devoração Sardinha.
principalmente em torno de Menotti crítica desse legado e sua trans-
del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio formação em algo novo, com identida- (Revista de Antropofagia, Ano I,
Salgado. Tinham visão ufanista e de própria e alcance universal. n.o 1, maio de 1928)

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Textos da “fase heroica” Observações


do Modernismo “Os Sapos”, poema declamado
OS SAPOS por Ronald de Carvalho na segunda
noite da Semana de Arte Moderna,
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
em 15 de fevereiro de 1922, satiriza a
Aos pulos, os sapos. preocupação parnasiana com as
A luz os deslumbra. rimas, com a métrica, com o vocabu-
Em ronco que aterra,
lário precioso. Aproxima-se, parodis-
Berra o sapo-boi: ticamente, do poema “Profissão de
— “Meu pai foi à guerra!” Fé”, de Olavo Bilac:
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”
Invejo o ourives quando escrevo
O sapo-tanoeiro, Imito o amor
Parnasiano aguado, Com que ele, em ouro, o alto relevo
Diz: — “Meu cancioneiro Faz de uma flor.
É bem martelado.
O sapo-tanoeiro (v. 9) é uma alu-
Vede como primo são a Bilac (tanoeiro é o artesão que,
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
com martelo, enverga a madeira, pa-
Os termos cognatos. ra a construção ou barricas). O sapo-
cururu simboliza a poesia autêntica,
O meu verso é bom despida de artificialismo.
Frumento sem joio.
Oswald de Andrade, em tela de Tarsila do Nos versos 23 e 24 — “Reduzi sem
Faço rimas com
Amaral. Consoantes de apoio. danos / A fôrmas a forma” —, há um
trocadilho, ironizando o fato de que a
Vai por cinquenta anos
❑ Definição e características rigidez das regras parnasianas era tão
Que lhes dei a norma:
da linguagem modernista Reduzi sem danos forte que reduzia a forma (ó) em forma
A fôrmas a forma. (ô), ou seja, reduzia a forma da poesia
• Rejeição das normas e a um molde, modelo obrigatório.
Clame a saparia
estéticas consagradas Em críticas céticas: POÉTICA
– antiacademismo, anticonfor- Não há mais poesia,
mismo; Mas há artes poéticas…” Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Urra o sapo-boi: Do lirismo funcionário público com livro de
– perseguição incessante de três [ponto expediente protocolo e
— “Meu pai foi rei” — “Foi!”
princípios: [manifestações de apreço ao sr. diretor.
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”
1. direito à pesquisa estética; Estou farto do lirismo que para e vai averiguar
Brada em um assomo [no dicionário o cunho vernáculo
O sapo-tanoeiro: [de um vocábulo
2. atualização da inteligência artísti- — “A grande arte é como
ca brasileira; Lavor de joalheiro. Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os
3. estabilização de uma consciência Ou bem de estatuário. [barbarismos universais
Tudo quanto é belo, Todas as construções sobretudo as sintaxes
criadora nacional. [de exceção
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.” Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
• Inovações na linguagem
Outros, sapos-pipas Estou farto do lirismo namorador
poética Político
(Um mal em si cabe),
– novos ritmos: versos livres, no- Falam pelas tripas: Raquítico
vo fraseado; Sifilítico
— “Sei!” — “Não sabe!” — “Sabe!”
De todo lirismo que capitula ao que quer
Longe dessa grita, [que seja fora de si mesmo.
– aproximação entre poesia e
prosa; Lá onde mais densa
De resto não é lirismo
A noite infinita Será contabilidade tabela de cossenos
– nova concepção do mundo e Verte a sombra imensa; [secretário do amante exemplar com
do homem (civilização moderna, o co- Lá, fugido ao mundo,
[cem modelos de cartas e as diferentes
[maneiras de agradar às mulheres etc.
tidiano, o nacional, o subconsciente) – Sem glória, sem fé,
surgimento de novos temas; No perau profundo Quero antes o lirismo dos loucos
E solitário, é O lirismo dos bêbados
– irreverência, humorismo — o O lirismo difícil e pungente dos bêbados
Que soluças tu, O lirismo dos clowns de Shakespeare
“poema-piada”;
Transido de frio,
Sapo-cururu — Não quero mais saber do lirismo que
– síntese, simultaneísmo, ima- [não é libertação.
Da beira do rio…
gens vívidas, fusão de elementos di-
versos, expressão elíptica. (Manuel Bandeira, Carnaval, 1919) (Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930)

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MÓDULO 43 Primeiro Tempo Modernista: Mário de Andrade I


1. MÁRIO DE ANDRADE • Ensaio A outra vertente é folclórica, fincada
(SÃO PAULO, 1893-1945) A Escrava que não é Isaura (1925) nas lendas brasileiras, inspirada em
O Aleijadinho e Álvares de Aze- nossa formação cultural. Essa poesia
❑ Vida vedo (1935) aparece sobretudo em Clã do Jabuti
“Sou trezentos, sou trezentos-e- A Música e a Canção Populares no (1927).
cinquenta, / mas um dia afinal toparei Brasil (1936) Mas a partir de 1930, a poesia de
comigo...” O Baile das Quatro Artes (1943) Mário de Andrade vai mostrando evo-
Fez o curso secundário no Ginásio Aspectos da Literatura Brasileira lução e maturidade. Em Remate de
Nossa Senhora do Carmo e diplomou- (1943) Males (1930), ele já abandona muitos
se no Conservatório Dramático e O Empalhador de Passarinhos maneirismos e modismos futuristas
Musical, onde viria a ser professor de (1944) para criar uma poesia que consegue
História da Música. Tendo sido um dos O Banquete (1978) fundir o pessoal e o coletivo.
responsáveis pela Semana de Arte
❑ Prosa
Moderna, animou as principais revistas • Crônica
A prosa literária de Mário de An-
do movimento na sua fase de afirmação Os Filhos da Candinha (1943)
drade apresenta também duas tendên-
polêmica: Klaxon, Estética, Terra Roxa
cias:
e Outras Terras. Soube conjugar uma vi- • Musicologia e Folclore
da de intensa criação literária com o Ensaio sobre a Música Brasileira • A prosa mítica e
estudo apaixonado da música, das (1928) folclórica de Macunaíma
artes plásticas e do folclore brasileiro. Compêndio de História da Música Macunaíma é uma revolução na
De 1934 a 1937 dirigiu o Departamento (1929) linguagem da narrativa. Mário de An-
de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Modinhas e Lundus Imperiais (1930) drade une tom oral a um vocabulário re-
fundou a Discoteca Pública, promoveu Música, Doce Música (1933) gional inédito na prosa de ficção.
o Primeiro Congresso de Língua Nacio- Namoros com a Medicina (1939) Macunaíma é “o herói sem nenhum ca-
nal Cantada e dinamizou a excelente Música do Brasil (1941) ráter”, é o índio nascido no Amazonas,
Revista do Arquivo Municipal. Danças Dramáticas do Brasil (3 que vem para São Paulo buscar sua
De 1938 a 1940 lecionou Estética vols., 1959) “muiraquitã” (pedrinha mágica, em
na Universidade do Distrito Federal. Música e Feitiçaria no Brasil (1963) forma de jacaré), roubada por um
Voltando a São Paulo, passou a traba- gigante de dupla identidade: por um
lhar no Serviço do Patrimônio Histórico. • História da Arte lado é índio antropófago (o gigante
Faleceu na sua cidade aos cinquenta e Padre Jesuíno do Monte Carmelo Piaimã), por outro é de origem italiana
um anos de idade. (1946) e um grande número de opús- e mora em São Paulo (Venceslau
culos, folhetos etc., reunidos em vo- Pietra). Macunaíma consegue vencê-lo
❑ Obras lumes nas Obras Completas. e recuperar a pedra. De volta à sua terra
• Poesia natal, não encontra mais sua tribo, que
• Correspondência fora destruída. Fica sozinho na floresta,
Há uma Gota de Sangue em Cada
Em parte inédita. Há centenas de sempre triste por ter perdido a mulher
Poema (1917)
cartas escritas para inúmeros amigos, que amava, Ci, mãe do mato,
Pauliceia Desvairada (1922)
artistas, intelectuais etc. Destacam-se rainha das Icamiabas (tribo amazônica).
Losango Cáqui (1926) Macunaíma passa o tempo contando
as para Manuel Bandeira, Drummond,
Clã do Jabuti (1927) suas histórias (e mentindo muito) a um
Murilo Mendes, Sérgio Milliet, Paulo
Remate de Males (1930) Duarte. papagaio, seu único companheiro na
Poesias (1941) solidão e narrador presumível do livro.
Lira Paulistana (1946) 2. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS Morto pelo abraço destruidor de Yara
O Carro da Miséria (1946) (espécie de sereia dos índios), sobe ao
Poesias Completas (1955) ❑ Poesia céu, transformado numa estrela da Ursa
A poesia de Mário de Andrade Maior. Trata-se de uma fábula múltipla,
• Conto segue dois caminhos, muito ligados ao ou rapsódia, porque reúne várias lendas
tipo de assunto que abordam. Quando brasileiras, tendo no centro a lenda de
Primeiro Andar (1926)
fala de São Paulo, o poeta incorpora Macunaíma, que Mário de Andrade ex-
Belazarte (1934)
várias técnicas da poesia futurista euro- traiu de um livro sobre os mitos
Contos Novos (1947)
peia, porque a cidade, precisamente a indígenas do norte do Amazonas. A
metrópole, foi o eixo principal de toda a narrativa reúne superstições, frases
• Romance arte moderna. É o que Mário de Andrade feitas, provérbios e modismos de
Amar, Verbo Intransitivo (1927) realiza principalmente em Pauliceia linguagem, tudo sistematizado e
Macunaíma (1928) – Rapsódia Desvairada (1922). intencionalmente entretecido.
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• A prosa pessoal urbana grita. Penso depois: não só para corrigir, como II
A prosa urbana de Mário de An- para justificar o que escrevi. Daí a razão deste
Prefácio Interessantíssimo. (…)
drade recolhe vários falares paulista-
(…) Então Macunaíma percebeu que não era
nos do dia-a-dia, seja a fala mais assombração nada, era mas o monstro Oibê
Escrever a arte moderna não significa
polida, como aparece nos Contos No- minhocão temível. Criou coragem pegou no
jamais para mim representar a vida atual no
vos (1947), seja a oralidade dos bair- que tem de exterior: automóveis, cinema,
brinco da orelha esquerda que era a máquina
ros de imigrantes italianos, como revólver e deu um tiro na assombração. Porém
asfalto. Si estas palavras frequentam-me o livro Oibê não fez caso e veio vindo. O herói tornou
Belazar te (1934). No primeiro, Mário não é porque pense com elas escrever mo- a ter medo. Pulou na rede agarrou a gaiola e
descarrega muita dose de psicolo- derno, mas porque, sendo meu livro moderno, escafedeu pela janela, jogando baratas no
gismo, que culmina no célebre conto elas têm nele razão de ser. caminho todo. Oibê correu atrás. Mas era só
“Peru de Natal”, o mais conhecido dos (…) de brincadeira que ele queria comer o herói.
contos de Mário. Apoiando-se em Macunaíma desembestara agreste fora mas
Chove? isso ia que ia acochado pelo minhocão. Então
Freud (Totem e Tabu), desmistifica as
Sorri uma garoa cor de cinza, botou o furabolo na goela, fez cosquinha e
relações familiares. lançou a farinha engolida. A farinha virou num
muito triste, como um tristemente longo...
Em Belazarte, com muita graça e areão e enquanto o monstro pelejava pra atra-
A casa Kosmos não tem impermeáveis
compadecimento cristão, Mário fala da vessar aquele mundo de areia escorregando,
[em liquidação...
gente pobre e oprimida das classes Macunaíma fugia. Tomou pela direita, desceu
Mas neste largo do Arouche o morro do Estrondo que soa de sete em sete
médias de São Paulo. posso abrir o meu guarda-chuva para- anos seguiu por uns caponetes e depois de
Em Amar, Verbo Intransitivo, Mário [doxal, cortar um travessão encapelado fez o Sergipe
de Andrade dá tratamento literário a este lírico plátano de rendas mar... de ponta a ponta e parou ofegante num agar-
processos psicanalíticos freudianos, rado muito pedregoso. Na frente havia uma
como fixações, recalques e sublima- Ali em frente... — Mário, põe a máscara! lapa grande furada por uma furna com um
— Tens razão, minha Loucura, tens razão. altarzinho dentro. Na boca da socava um frade.
ções. Neste romance, narra-se a história
O rei de Tule jogou a taça ao mar... Macunaíma perguntou pro frade:
de uma jovem alemã, Fräulein, cha- — Como se chama o nome de você?
Os homens passam encharcados...
mada por uma família de burgueses O frade pôs no herói uns olhos frios e
Os reflexos dos vultos curtos
paulistanos para iniciar Carlos, filho secundou com pachorra:
mancham o petit-pavé...
mais velho, na vida sexual. — Eu sou Mendonça Mar pintor.
As rolas da Normal Desgostoso da injustiça dos homens faz três
esvoaçam entre os dedos da garoa... séculos que afastei-me deles metendo cara no
(E si pusesse um verso de Crisfal sertão. Descobri esta gruta ergui com minhas
TEXTOS
No De Profundis?...) mãos este altar do Bom Jesus da Lapa e vivo
De repente aqui perdoando gente mudado em frei Fran-
(fragmentos) um raio de Sol arisco cisco da Soledade.
I risca o chuvisco ao meio. — Está bom, Macunaíma falou. E partiu na
chispada.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo (Mário de Andrade, (…)
sem pensar tudo o que meu inconsciente me Pauliceia Desvairada) (Mário de Andrade, Macunaíma, cap. XV)

MÓDULO 44 Mário de Andrade II: Macunaíma e Oswald de Andrade I


1. MACUNAÍMA – ti fi cava cada trecho cantado de um anedotas da história brasileira com os
ANÁLISE DA OBRA poema épico. Em música, segundo o costumes do Nordeste etc.
dicionário Aurélio, é uma “fantasia ins-
Em 1928, Mário de Andrade publi- trumental que utiliza melodias tiradas ❑ Tempo e espaço
cou sua obra-prima, a “rapsódia” Macu- dos cantos tradicionais ou populares”. Criando uma narrativa fantástica e
naíma. Escrita em poucos dias em São também rapsódias os velhos ro- picaresca, há subversão do tempo e do
dezembro de 1926, a obra foi revisada mances versificados e musicados, as espaço geográfico, que não obede-
três vezes antes de ser editada. Para canções de gesta de Rolando, a Encan- cem às regras de verossimilhança, de
escrevê-la, o autor passou vários anos tada Branca-Flor e, nos dias atuais, as tal forma que o “herói sem nenhum
pesquisando a mitologia indígena, o fol- gestas dos cangaceiros, entoadas nas caráter” pode, num mesmo capítulo,
clore nacional, os costumes e a lin- feiras do Nordeste pelos cantadores. estar em São Paulo, encontrar o minho-
guagem dos brasileiros. Numa tentativa O livro segue o mesmo processo de cão Oibê, assombração, e fugir dele
de mapear o Brasil, registrando sua composição ou construção da rapsódia, correndo por Sergipe, Campinas, Bahia,
história, seus costumes, seus falares, os justapondo vários trechos que ganham deparando-se em todo esse percurso
ritmos das canções e das danças unidade no conjunto da obra. Assim, com personagens reais e lendárias.
populares, o livro, num clima surrealista tomando como fio condutor a persona- Assim, as sucessivas traquinagens
e mítico, acumula um exagero de len- gem Macunaíma, o autor faz uma de Macunaíma são vividas num espaço
das, superstições, frases feitas, provér- colagem de diversos fragmentos, mistu- mágico, próprio da atmosfera fantástica
bios e modismos de linguagem. rando as lendas dos índios com a vida e maravilhosa em que se desenvolve a
Rapsódia, na antiga Grécia, iden- urbana das cidades do Sudeste, as narrativa.
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❑ Linguagem ganhar vintém. E também espertava Sou livre-docente de literatura na


A linguagem também é construída quando a família ia tomar banho no rio, Faculdade de Filosofia da Universi-
pelo processo de colagem, pela combi- todos juntos e nus. (...) dade de São Paulo.
nação de vocábulos e torneios sintáticos Quando era pra dormir trepava no (Oswald de Andrade, de um artigo
colhidos dos mais variados falares do macuru pequeninho sempre se esque- publicado pelo
Brasil. Com isso, o autor criou um estilo cendo de mijar. Como a rede da mãe Diário de Notícias, em 1950.)
muito pessoal e expressivo, capaz de estava por debaixo do berço, o herói
transmitir lirismo, humor, deboche, mijava quente na velha, espantando os O mal foi ter eu medido o meu
comicidade, revelando maturidade lite- mosquitos bem. Então adormecia avanço sobre o cabresto metrificado e
rária e domínio estilístico. sonhando palavras feias, imoralidades nacionalista de duas remotas alimárias
estrambólicas e dava patadas no ar. — Bilac e Coelho Neto. O erro foi ter
❑ Foco narrativo (...) corrido na mesma pista inexistente. (...)
O foco narrativo predominante é o (Mário de Andrade, Macunaíma, cap. I) A situação “revolucionária” desta
de terceira pessoa, mas Mário de bosta mental sul-americana apresenta-
Andrade inova ao utilizar uma técnica ❑ Um estilo de paródia va-se assim: o contrário do burguês não
cinematográfica de cortes bruscos no Retoma, satiricamente, a linguagem era o proletário — era o boêmio! As
discurso do narrador para dar lugar à empolada e pedante dos parnasianos e massas, ignoradas no território e, como
fala das personagens. dos cultores de Rui Barbosa e Coelho hoje, sob a completa devassidão eco-
Neto. É o que se vê na “Carta pras nômica dos políticos e dos ricos. Os
Icamiabas”, que o herói escreve no intelectuais brincando de roda.
2. ESTILOS DE NARRAÇÃO capítulo IX, focalizando a duplicidade (Oswald de Andrade,
no uso de nossa língua. prefácio de Serafim Ponte Grande)
A narrativa de Macunaíma apoia-se
na ideia de que tudo vira tudo e na (...) Mas cair-nos-iam as faces, si O mais radical dos modernistas de
capacidade de compor e recompor ocultáramos no silêncio uma curio- 22 teve sua vida marcada por uma cria-
configurações a partir de conteúdos sidade original deste povo. Ora sabe- tiva vontade de transgredir, por um fe-
díspares, esvaziados de suas primitivas reis que a sua riqueza de expressão cundo anarquismo, fazendo de Oswald
funções. Daí a técnica caleidoscó- intelectual é tão prodigiosa, que falam uma personagem em perpétua revolta,
pica, por meio da qual as ideias e numa língua e escrevem noutra. (...) guiado por uma infinita curiosidade:
imagens se projetam arbitrariamente, Nas conversas, utilizam-se os pau- “Encaixo tudo, somo, incorporo”.
inclusive nos modos de contar, nos listanos dum linguajar bárbaro e multifá- Das memórias da infância, uma das
estilos narrativos. rio, crasso de feição e impuro na mais marcantes foi a descoberta do
Alfredo Bosi destaca três estilos de vernaculidade, mas que não deixa de circo, que plasmou a visão circense do
narrar: ter o seu sabor e força nas apóstrofes, mundo, a carnavalização da vida, tão
e também nas vozes do brincar. Destas marcantes na ironia, no humor e nas
❑ Um estilo de lenda, e daquelas nos inteiramos, solícito; e paródias de Oswald, que se dizia “um
épico-lírico, solene nos será grata empresa vô-las ensi- palhaço da burguesia”.
No fundo do mato-virgem nasceu narmos aí chegado. Mas si de tal Aos 22 anos parte para a Europa,
Macunaíma, herói de nossa gente. Era desprezível língua se utilizam na incorporando em sua bagagem, no re-
preto retinto e filho do medo da noite. conversação os naturais desta terra, gresso, os “ismos” da vanguarda do
Houve um momento em que o silêncio logo que tomam da pena, se despojam velho mundo: as lembranças de Landa
foi tão grande escutando o murmurejo do de tanta asperidade, e surge o Homem Kosbach, dançarina, “flor de carne
Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu Latino de Lineu, exprimindo-se numa musculosa e doirada”, e Kamiá, ex-
uma criança feia. Essa criança é que outra linguagem, mui próxima da rainha dos estudantes de Montmartre,
chamaram de Macunaíma. vergiliana, no dizer dum panegirista, que lhe dá o primeiro filho, Nonê
(Mário de Andrade, Macunaíma, cap. I) meigo idioma, que, com imperecível (síntese de “nosso nenê”).
galhardia, se intitula: língua de Camões! Conhece também lsadora Duncan,
❑ Um estilo de crônica, (Mário de Andrade, Macunaíma, cap. IX) de quem foi muito amigo e com quem
cômico, despachado, solto escandalizou a sociedade da época.
Já na meninice fez coisas de sa- 3. OSWALD DE ANDRADE Dessas relações, a mais intensa se-
rapantar. De primeiro passou mais de (São Paulo, 1890-1954) rá com Deise, apelidada “Miss Ciclone”,
seis anos não falando. Si o incitavam a moça de uma garçonnière da Rua
falar, exclamava: ❑ Vida Líbero Badaró, com quem Oswald
Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, ca- passa a viver em 1917. Deise morre
— Ai! que preguiça!... sei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, tragicamente de um aborto malsuce-
e não dizia mais nada. Ficava no casei... já disse que sou conjugal, gre- dido, e Oswald casa-se com ela in
canto da maloca, trepado no jirau de mial e ordeiro. O que não me impediu extremis, no leito do hospital em que
paxiúba, espiando o trabalho dos ou- de ter brigado diversas vezes à por- estava internada.
tros e principalmente os dois manos tuguesa e tomado parte em algumas As marcas dessa relação vão rea-
que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê batalhas campais. Nem ter sido preso parecer no primeiro romance, Os Con-
na força de homem. O diver timento 13 vezes. Tive também grandes fugas denados. Em seu livro de memórias,
dele era decepar cabeça de saúva. por motivos políticos. Tenho três filhos Oswald fala dessa fase:
Vivia deitado mas si punha os olhos em e três netos e sou casado, em últimas “Sinto-me só, perdido numa imensa
dinheiro, Macunaíma dandava pra núpcias com Maria Antonieta d’Alkimin. noite de orfandade.
– 43
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A amada que me deu a vida partiu etílico-gastronômico-culturais. Em Paris, do-se ao Partido Comunista e fundando
sem me dizer adeus. Oswald lança seu primeiro livro de poe- o jornal O Homem do Povo, pasquim
A francesa que trouxe de Paris veio sias, Pau-Brasil, ilustrado por Tarsila. humorístico-panfletário, que foi empas-
buscar o dinheiro para outro homem. Com a crise internacional em 1929, telado por estudantes da Faculdade de
Landa, que foi o primeiro sonho vi- Oswald vai à falência, dependurando- Direito do Largo São Francisco. Serafim
vo que me ofuscou, tornou-se a estátua se nos reis da vela, apelido dos agiotas Ponte Grande é o romance que projeta
de sal da lenda bíblica. Olhou para o da zona bancária do centro velho de essa fase de radicalidade criativa e
passado. São Paulo. Perde tudo, transforma-se ideológica.
lsadora Duncan estrondou como num “vira-latas do Modernismo”, mas Fiel à sua proposta de “monogamia
raio e passou. A que encontrei, enfim, adquire uma vigorosa experiência das sucessiva”, Oswald casa-se, em 1936,
para ser toda minha, meu ciúme matou... misérias do mundo das finanças, com a poetisa Julieta Bárbara e, em
Estou só e a vida vai custar a reflorir. matéria-prima que vai transpor em O 1942, com Maria Antonieta d’Alkimin,
Estou só.” Rei da Vela. sua relação mais estável, documentada
Mais tarde, já no auge do movi- No início dos anos de 1930, passa nos poemas de Cântico dos Cânticos,
mento modernista (1926), casa-se com a viver com Patrícia Galvão (Pagu), ati- para Flauta e Violão e no livro de
Tarsila do Amaral, formando o elegan- víssima mulher que foi finalmente resga- memórias.
tíssimo casal Tarsiwald, fundador do tada para a memória nacional por Nas décadas de 1940 e 1950,
Movimento Antropófago. Entra em con- Augusto de Campos, em trabalho pu- Oswald dedica-se à vida acadêmica,
tato com alguns artistas europeus, co- blicado no ano de 1982. inclinando-se para a problemática es-
mo Blaise Cendrars e Leger. Neste Com Pagu, Oswald realiza uma gui- piritual e para os temas essenciais da
período promove concorridas reuniões nada ideológica para a esquerda, filian- vida.

MÓDULO 45 Oswald de Andrade II


❑ Obras O Rei da Vela (1937) “Oswald de Andrade foi um dos
• Romance A Morta (1937) mais vivos ensaístas e panfletários de
Os Condenados, I – Alma; II – A O Rei Floquinhos (infantil, 1953) nossa literatura, com uma rara capa-
Estrela de Absinto; III – A Escada cidade de tornar sugestiva a ideia, pela
• Memórias violência corrosiva das afirmações, o
Vermelha (1941; reedição, num
Um Homem sem Profissão (1954) humorismo e o fulgor dos tropos. Na
único volume, de A Trilogia do Exílio
• Crônicas obra propriamente criadora, mostrou a
ou Romances do Exílio, escritos
Telefonemas (edição póstuma) importância das experiências semân-
entre 1922 e 1934)
Memórias Sentimentais de João Mi- ticas e o relevo que a palavra adquire,
❑ Considerações gerais quando manipulada com o duplo apoio
ramar (1924)
a) Oswald chega a vivenciar uma de imagem surpreendente e da sintaxe
Serafim Ponte Grande (1933) São Paulo ainda provinciana, desper-
Marco Zero, I – A Revolução Me- descamada. Deste modo, quebrou as
tando para o seu processo de industria- barreiras entre poesia e prosa, para
lancólica (1943) lização. Ele está no meio de duas
Marco Zero, lI – Chão (1945) atingir a uma espécie de fonte comum
forças: a do patriarcalismo agrário, já de linguagem artística. Pode-se dizer
• Poesia passada, e a do início da tecnologia ur- que a sua importância histórica de reno-
Pau-Brasil (1925) bana. “Nossos pais vinham do patriar- vador e agitador (no mais alto sentido)
Primeiro Caderno do Aluno de Poe- cado rural, nós inaugurávamos a era da foi decisiva para a formação da nossa
sia Oswald de Andrade (1927) indústria”, ele afirma com lucidez na literatura contemporânea.”
Poesias Reunidas (edição póstuma) mirada retrospectiva de sua vida. c) O Prof. Alfredo Bosi identifica, na
Assim, os meios de comunicação obra de Oswald, três níveis:
• Manifestos, Teses e de massa — como o cinema, o rádio, a I – O mais inferior: a prosa de Os
Ensaios linguagem da propaganda — são rapi- Condenados, A Estrela de Absinto e A
Manifesto da Poesia Pau-Brasil damente assimilados pelo poeta. “Pos- Escada Vermelha, novelas meio munda-
(1924) tes da Light”, em Poesia Pau-Brasil, é nas, meio psicológicas, nas quais há
Manifesto Antropófago (1928) um exemplo de poema cujo estilo vem sempre um artista atribulado pelas
Ponta de Lança (1945) contaminado pela síntese vertiginosa exigências de sua personalidade.
A Arcádia e a Inconfidência (1945) causada pela nova paisagem urbana; lI – O trânsito para a experiência do
A Crise da Filosofia Messiânica suas principais personagens são a romance “informal” de Memórias Sen-
(1950) multidão, os novos meios de transporte, timentais de João Miramar, seu ponto
A Marcha das Utopias (póstuma, o fonógrafo, o cinema etc. Exemplo vivo alto, e de Serafim Ponte Grande. Ambas
1966) desta fascinação pelo moderno é o as obras correm paralelamente às poé-
famoso Cadillac verde que Oswald ticas do Pau-Brasil e da Antropofagia,
• Teatro
possuía nessa época. no sentido de satirizar o Brasil.
O Homem e o Cavalo (1934)
b) Do Prof. Antonio Candido:
44 –
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III – A “nova revolução formal”: o te- Topamos aves NOTURNO


legrafismo das rupturas sintáticas, o E houvemos vista de terra
simultaneísmo, as ordens do subcons- (Oswald de Andrade, Lá fora o luar continua
“História do Brasil”) E o trem divide o Brasil
ciente, os neologismos. A composição
Como um meridiano
do romance é revolucionária: capítulos-
OS SELVAGENS (Oswald de Andrade,
instantes; capítulos-relâmpagos; capí- “São Martinho”)
tulos-sensações (capítulos-flash). Mostraram-lhes uma galinha
Oswald, leitor dos futuristas e afe- Quase haviam medo dela DITIRAMBO
tado pela técnica do cinema — a co- E não queriam pôr a mão
lagem rápida de signos, os processos E depois a tomaram como espantados Meu amor me ensinou a ser simples
diretos “sem comparações de apoio”, (Oswald de Andrade, Como um largo de igreja
“as palavras em liberdade” —, vai além “História do Brasil”) Onde não há nem um sino
do verso livre. Desarticulação total da AS MENINAS DA GARE Nem um lápis
Nem uma sensualidade
frase — o que produzirá também um
modo novo de dispor o texto, uma nova Eram três ou quatro moças bem moças (Oswald de Andrade, “rp 1”)
espacialização do material literário. [e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas Temos aqui dois exemplos da for-
E suas vergonhas tão altas e tão ça expressiva que Oswald retira de sua
❑ Pau-Brasil linguagem elíptica, alusiva, conden-
[saradinhas
Composto em Paris, Oswald cria Que de nós as muito bem olharmos sada. O “Noturno” evidencia a técnica
neste livro aquilo que ele chamaria de Não tínhamos nenhuma vergonha cubista, prevalecendo as for mas
poesia de exportação. (Oswald de Andrade, geométricas: o círculo da lua e as re-
O projeto visava a um desligamen- “História do Brasil”) tas do trem e do meridiano. O título é
to dos modelos poéticos importados, ambíguo, remetendo-nos tanto a um
pondo fim à grandiloquência e à serie- Oswald recria, poeticamente, a tipo de composição musical romântica
dade. Composto de poemas-pílulas, Carta de Caminha a D. Manuel. Veja em (os noturnos de Chopin) quanto à
mistura a linguagem antiga dos cronis- “As Meninas da Gare” a justaposição do designação de um trem noturno.
tas e jesuítas da época do descobri- histórico ao moderno: as indígenas a
mento do Brasil com o falar coloquial de que Pero Vaz se refere são vistas como ESCOLA BERLITES
seu tempo; reinventa composições as meninas da gare (gare: palavra
francesa que significa “estação”). Todos os alunos têm a cara ávida
consagradas do Romantismo em paró-
Mas a professora sufragete
dias irônicas. Maltrata as pobres datilógrafas bonitas
E detesta
VÍCIO NA FALA
TEXTOS The spring
Para dizerem milho dizem mio Der Frühling
ESCAPULÁRIO Para melhor dizem mió La primavera scapigliata
Para pior pió Há uma porção de livros pra ser comprados
No Pão de Açúcar Para telha dizem teia A gente fica meio esperando
De Cada Dia Para telhado dizem teiado As campainhas avisam
Dai-nos Senhor E vão fazendo telhados As portas se fecham
A Poesia É formoso o pavão?
(Oswald de Andrade,
De Cada Dia De que cor é o Senhor Seixas?
“História do Brasil”)
Senhor Lázaro traga-me tinta
(Oswald de Andrade,
Qual é a primeira letra do alfabeto?
Ah!
“Por Ocasião da Descoberta do Brasil”) PRONOMINAIS
(Oswald de Andrade, “Postes da Light”)
Dê-me um cigarro
Note como Oswald de Andrade pa- Diz a gramática RECLAME
rodia a linguagem religiosa, substituin- Do professor e do aluno
do o termo “pão”, do Pai-Nosso, por E do mulato sabido Fala a graciosa atriz
“Pão de Açúcar” e “Poesia”. Com isto, Mas o bom negro e o bom branco Margarida Perna Grossa
o poeta subverte a ordem litúrgica para Da Nação Brasileira Linda cor — que admirável loção
introduzir o elemento brasileiro e refletir Dizem todos os dias Considero lindacor o complemento
Deixa disso camarada Da toalete feminina da mulher
sobre o caráter da poesia. São traços
Me dá um cigarro Pelo seu perfume agradável
modernos do poema o seu humor, seu E como tônico do cabelo garçone
caráter sintético, assim como a ausên- (Oswald de Andrade,
“Postes da Light”)
Se entendam todas com Seu Fagundes
cia total de pontuação. Único depositário
Nos E. U. do Brasil
Nos dois poemas se manifesta a (Oswald de Andrade, “Postes da Light”)
A DESCOBERTA proposta de reduzir a distância entre a
linguagem falada e a escrita, renegando Nestes dois poemas, dois aspectos
Seguimos nosso caminho por este mar o passadismo acadêmico e abolindo “cosmopolitas” de São Paulo: a escola
[de longo “as alfândegas culturais”, como diria de línguas (“berlites”) e a sociedade de
Até a oitava da Páscoa Oswald. consumo (“reclame”).

– 45
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MÓDULO 46 Manuel Bandeira


1. MANUEL BANDEIRA (Recife, ❑ Considerações gerais TEXTOS
1886 – Rio de Janeiro, 1968) “A poesia de Manuel Bandeira ca-
racteriza-se pela amplitude do âm-
❑ Vida bito, testemunho de uma variedade
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Feitos os estudos primários na cida- Vou-me embora pra Pasárgada
criadora que vem do Parnasianismo
de natal, em 1896 muda-se com a famí- Lá sou amigo do rei
crepuscular até as experiências concre-
lia para o Rio de Janeiro, onde se Lá tenho a mulher que eu quero
matricula no Colégio Pedro II. Termina- tistas, do soneto às formas mais au- Na cama que escolherei
do o curso secundário, vai para São dazes de expressão. Doutro lado, Vou-me embora pra Pasárgada
Paulo estudar engenharia, mas adoece conservou e adaptou ao espírito mo-
Vou-me embora pra Pasárgada
gravemente e abandona o projeto de derno os ritmos e formas mais regula- Aqui eu não sou feliz
ser arquiteto (1904). Inicia-se, então, res, de tal maneira que nenhum outro Lá a existência é uma aventura
uma demorada peregrinação em busca contemporâneo revela tão acentuada- De tal modo inconsequente
de melhoras, o que finalmente o leva a Que Joana a Louca de Espanha
mente a herança do mais puro lirismo
Clavadel, na Suíça (1913). Com a Rainha e falsa demente
português, transfundido na mais autên- Vem a ser contraparente
deflagração da Primeira Grande Guer- tica pesqui sa da nossa sensibilidade. Da nora que nunca tive
ra, regressa ao Brasil e, em 1917,
Sob este aspecto, a sua obra lembra a
publica seu primeiro livro: A Cinza das E como farei ginástica
de Gonçalves Dias. Andarei de bicicleta
Horas. Integrado no movimento reno-
vador de 1922, continua a escrever e Em toda ela, com timbre inconfun- Montarei em burro bravo
dível, corre a nota da ternura ardente Subirei no pau-de-sebo
publicar poesia, enquanto colabora
da paixão pela vida, que vem desde os Tomarei banhos de mar
com a imprensa. Em 1935, é nomeado
E quando estiver cansado
inspetor do ensino secundário, três anos versos da mocidade até os de hoje, Deito na beira do rio
mais tarde, professor de Literatura no como força humanizadora. Graças a Mando chamar a mãe-d’água
Colégio Pedro II e, em 1943, é nomeado isso, a confidência e a notação exterior Pra me contar histórias
professor de Filosofia, cargo em que se se unem numa expressão poética ao Que no tempo de eu menino
aposentou em 1956. Pertenceu à Rosa vinha me contar
mesmo tempo familiar e requintada,
Academia Brasileira de Letras e faleceu Vou-me embora pra Pasárgada
pitoresca e essencial, unificando o que
no Rio de Janeiro em 13 de outubro de (...)
há de melhor no lirismo intimista e no
1968.
Estrela da vida inteira.
registro do espetáculo da vida. Daí E quando eu estiver mais triste
uma simplicidade que em muitos Mas triste de não ter jeito
Da vida que poderia
Quando de noite me der
Ter sido e não foi. Poesia, modernistas parece afetada, mas que
Vontade de me matar
Minha vida verdadeira. nele é a própria marca da inspiração.” — Lá sou amigo do rei —
São frequentes, em sua poesia, os Terei a mulher que eu quero
❑ Obras
seguintes temas: a morte, a recordação Na cama que escolherei
• Poesia
Vou-me embora pra Pasárgada.
A Cinza das Horas (1917) da infância, o cotidiano simples, a
(Manuel Bandeira, Libertinagem )
Carnaval (1919) melancolia, o erotismo. Como poeta da
O Ritmo Dissoluto (1924) morte, é dos maiores de nossa língua. DESENCANTO
Libertinagem (1930) O mais célebre de seus poemas de
Estrela da Manhã (1936) recordação da infância é “Evocação do Eu faço versos como quem chora
Lira dos Cinquent’Anos (1940) De desalento... de desencanto...
Recife”. Talvez sua mais famosa com- Fecha o meu livro, se por agora
Belo, Belo (1948) posição seja “Vou-me embora pra Não tens motivo nenhum de pranto.
Mafuá do Malungo (1948)
Pasárgada”, na qual constrói uma uto-
Opus 10 (1952) Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
pia como compensação emocional.
Estrela da Tarde (1958) Tristeza esparsa... remorso vão...
Sua linguagem poética caracteriza- Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Estrela da Vida Inteira (1966)
se pela musicalidade, que sempre se Cai, gota a gota, do coração.
• Prosa conserva próxima do coloquial. É um
Itinerário de Pasárgada (1954) E nestes versos de angústia rouca
exemplar artesão da forma poética, tanto
Andorinha, Andorinha (1966) Assim dos lábios a vida corre,
das formas tradicionais da poesia, quanto Deixando um acre sabor na boca.
(textos inéditos, selecionados por
da forma moderna do verso livre e da
Carlos Drummond de Andrade) — Eu faço versos como quem morre.
composição, não obediente a padrões
Também escreveu crítica literária, estabelecidos. (Antonio Candido) (Manuel Bandeira, A Cinza das Horas)
crônicas etc.
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PNEUMOTÓRAX — Então, doutor, não é possível tentar o TERESA


[pneumotórax3?
A primeira vez que vi Teresa
Febre, hemoptise1, dispneia2 e suores noturnos. — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
Achei que ela tinha pernas estúpidas
A vida inteira que podia ter sido e que não foi. [argentino.
Achei também que a cara parecia uma perna
Tosse, tosse, tosse.
(Manuel Bandeira, Quando vi Teresa de novo
Mandou chamar o médico: Libertinagem ) Achei que os olhos eram muito mais velhos que
— Diga trinta e três. [o resto do corpo
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três... (Os olhos nasceram e ficaram dez anos
Vocabulário
— Respire. [esperando que o resto do corpo nascesse)
1 – Hemoptise: expectoração de sangue prove-
niente dos pulmões. Da terceira vez não vi mais nada
.............................................................................
Os céus se misturaram com a terra
2 – Dispneia: dificuldade de respirar.
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a
— O senhor tem uma escavação no pulmão 3 – Pneumotórax: forma de tratamento da tu- [face das águas.
[esquerdo e o pulmão berculose.
[direito infiltrado. (Manuel Bandeira,
Libertinagem )

Segunda Geração Modernista (Poesia):


MÓDULO 47
Carlos Drummond de Andrade I
1. CONCEITO E ÂMBITO — a aliança do tenentismo liberal e linguístico, em termos de normas de
da política getuliana com as oligarquias, linguagem.
O segundo tempo modernista mar- provocando a radicalização política dos Há, na poesia, três direções básicas:
ca, simultaneamente, a consolidação segmentos da inteligência nacional, • a poesia de tensões ideoló-
de algumas propostas da “fase heroica” marginalizados no processo; daí as gicas: Carlos Drummond de Andrade;
ou “de demolição” (1922-1930) e certo aproximações de Rachel de Queirós, • a poesia de preocupação
recuo quanto às propostas mais Jorge Amado, Graciliano Ramos e religiosa e filosófica (o grupo
radicais da “Semana” e dos seus outros ao Partido Comunista, no qual “Festa”, de tendência espiritua-
desdobramentos. Propõe-se, passada militaram; lista): Cecília Meireles, Tasso da
a fase de ruptura, um moder nismo — a Segunda Guerra Mundial Silveira, Augusto Frederico Schmidt,
moderado, com o abandono, por (1939-1945) fecha o período, projetan- Jorge de Lima e Vinícius de Moraes;
exemplo, do radicalismo experimen- do no país a tensão externa. • a poesia de dimensão sur-
talista de Oswald e a retomada de ❑ Plano estético realista: Murilo Mendes.
certas linhas do passado (o Simbolismo No plano estético, destacam-se:
na corrente espiritualista, as formas — o predomínio de um “projeto ❑ Prosa
clássicas, a tradição lírica portuguesa e ideológico” sobre um “projeto es- Na prosa, são identificáveis duas
brasileira etc.). tético”; direções:
— a consolidação das conquistas • o realismo regionalista, que
de 1922, mas com o recuo quanto às se configura nos romances do ciclo
❑ O contexto histórico
propostas mais radicais da “fase nordestino, marcado pelo propósito
O período de 1930-1945 foi marca-
heroica”; de análise e denúncia dos problemas
do, entre outros, pelos seguintes even-
— o cessar da oposição ao Moder- sociais do Nordeste (José Américo
tos:
nismo; de Almeida, Rachel de Queirós,
— os efeitos da crise econômica
— o desejo de denúncia da realida- Graciliano Ramos, José Lins do
ocorrida em 1929 com o crack da Bolsa
de social e espiritual do Brasil. Rego e Jorge Amado), concreti-
de Nova York;
— a radicalização política: Direita zando uma literatura empenhada, partic-
(nazismo, fascismo, integralismo) e ❑ Poesia ipante, presa aos moldes do
Esquerda (comunismo); Na poesia são identificáveis estas neorrealismo e do neonaturalismo;
— as esperanças com a Revolução constantes: • o romance intimista ou psi-
de 1930, logo frustradas pelo Estado — estabilização das conquistas no- cológico, voltado para a crise
Novo e pela Ditadura Vargas; vas; essencial da burguesia urbana e para a
— o rompimento da dominação in- — ampliação da temática; sondagem profunda do “eu” (Cyro dos
conteste das oligarquias regionais e a — caminho para o universal; Anjos, Cornélio Pena, Érico
ascensão da nova burguesia industrial; — equilíbrio no uso do material Veríssimo — primeira fase).
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2. CARLOS DRUMMOND DE Passeios na Ilha (ensaios e crô- Alguns anos vivi em Itabira.
ANDRADE (Itabira, MG, 1902 nicas, 1952) Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
– Rio de Janeiro, 1987) Fala, Amendoeira (1957)
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
A Bolsa e a Vida (crônicas e poe- Oitenta por cento de ferro nas almas.
❑ Vida mas, 1962) E esse alheamento do que na vida é
• Descendente de fazendeiros e Cadeira de Balanço (crônicas e [porosidade e comunicação.
mineradores da cidade mineira de poemas, 1970)
Itabira (jazidas de ferro). A vontade de amar, que me paralisa o
O Poder Ultrajovem e mais 79 Tex- [trabalho,
• Expulso de um colégio de pa- tos em Prosa e Verso (1972) vem de Itabira, de suas noites brancas,
dres; estudou Farmácia em Belo Hori- Os Dias Lindos (1977) [sem mulheres e sem horizontes.
zonte. 70 Historinhas (1978) E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
• Contato com o Modernismo é doce herança itabirana.
Boca de Luar (1984)
paulista; fundação de A Revista (1925), (...)
O Observador no Escritório (1985)
primeiro periódico de literatura moder-
Moça Deitada na Grama (1987)
na em Minas. — Drummond manteve estreitos la-
O Avesso das Coisas (1987)
• Funcionário público no Rio de ços de amizade com o grupo dos mo-
Janeiro. dernistas de 1922 (Mário, Oswald e
❑ Apreciação Bandeira). Sob inspiração dos ideais da
• Autor de crônicas jornalísticas
— Nos primeiros livros são constan- Semana de 22, funda, em 1925, A
bastante populares.
tes a ironia, a atitude mineira- Revista, ponta de lança do Modernismo
mente desconfiada de refletir, o
❑ Obra em Minas Gerais. Em 1928, publica o
pessimismo, a autonegação, as arquifamoso “No Meio do Caminho”, na
• Poesia
reminiscências da infância itabi- Revista de Antropofagia.
Alguma Poesia (1930)
rana. Drummond parece buscar a si — A partir de Sentimento do
Brejo das Almas (1934)
mesmo, posicionando-se como espec- Mundo e especialmente em A Rosa
Sentimento do Mundo (1940)
tador de um mundo que não aceita e do Povo, a poesia de Drummond
Poesias (1942)
que tenta descrever e encontrar. centra-se na dimensão social, no
A Rosa do Povo (1945)
Poesia até Agora (1948) cotidiano, na denúncia da estupidez,
— No “Poema de Sete Faces”, que da incompreensão; na luta contra o
Claro Enigma (1951)
abre o primeiro livro, Alguma Poesia medo (“que esteriliza os abraços”) e
Viola de Bolso (1952)
(1930), a confissão do poeta que se contra a consciência da impos-
Fazendeiro do Ar & Poesia até
Agora (1953) sente gauche (= sem jeito, inadaptado) sibilidade da luta (“eu tenho apenas
Viola de Bolso Novamente En- e a ironia, sob a forma intencional de duas mãos / e o sentimento do mundo”).
cordoada (1955) um antilirismo: — Em “Mãos Dadas”, o compromis-
Quando nasci, um anjo torto
Poemas (1959) so com o homem, a solidariedade:
desses que vivem na sombra
A Vida Passada a Limpo (1959) disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
Lição de Coisas (1962) Não serei o poeta de um mundo caduco.
(...) Também não cantarei o mundo futuro.
Versiprosa (1967)
(...)
Boitempo (1968) (...)
Meu Deus, por que me abandonaste
Menino Antigo (1973) se sabias que eu não era Deus O tempo é a minha matéria, o tempo
As Impurezas do Branco (1973) se sabias que eu era fraco. [presente, os homens presentes,
Discurso da Primavera & Algumas Mundo mundo vasto mundo, a vida presente.
Sombras (1978) se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução. — A poesia social de Drummond faz
A Paixão Medida (1980)
Mundo mundo vasto mundo,
Corpo (1984) desabrochar o “sentimento do mun-
mais vasto é meu coração.
Amar se Aprende Amando (1985) do”, marcado pela consciência da
Tempo Vida Poesia (1986) (...) solidão, da impotência do homem di-
Poesia Errante (1988) — Na “Confidência do Itabirano”, a ante de um mundo frio e mecânico que
O Amor Natural (1992) infância e a vida, modelando a prover- o reduz a objeto. “Os Mortos de Sobre-
Farewell (1996) bial “secura” do poeta, o alheamen- casaca”, “Congresso Internacional do
to, o poeta que se sente de ferro, que Medo”, “A Noite Dissolve os Homens”,
• Prosa se diz ilha, mas que esconde sob essa “Mundo Grande”, “O Lutador”, “Mão
Confissões de Minas (ensaios e aparente indiferença uma indisfarçável Suja”, “A Morte do Leiteiro”, “A Flor e a
crônicas, 1944) solidariedade, um profundo senso do Náusea” e “José” incluem-se nessa
Contos de Aprendiz (1951) humano e do social: vertente.
48 –
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— Em Claro Enigma (1951) pas- calização de processos estruturais que a foice o fascículo
sa a predominar a escavação do real, já estavam presentes desde Alguma a lex o judex
o maiô o avô
mediante um processo de interroga- Poesia, na opção pelo prosaico, pelo irô-
a ave o mocotó
ções e negações que acaba revelando nico, pelo antirretórico, pelo antilirismo o só o sambaqui
o vazio à espreita do homem. O mundo intencional e que predispunham, pela
define-se como “um vácuo atormenta- recusa e pela contenção, ao poema- (...)
do” (existencialismo niilista). A objeto, típico da Geração de 1950.
— A procura da poesia, a poe-
abolição de toda crença e o apagar-se O processo básico é a linguagem
sia metalinguística, que se pensa
de toda esperança trazem consigo o nominal – (“fazer as coisas e as
e se interroga, a metapoesia são cons-
autofechamento do espírito. palavras – nomes de coisas – boiar
tantes no poeta:
Essa negatividade, a abolição de nesse vácuo sem bordas a que a
Não faças versos sobre acontecimentos
toda crença, o apagar-se de toda es- interrogação reduziu os reinos do ser”), (...)
perança traduzem-se pela expressão por meio da desintegração da palavra. Penetra surdamente no reino das
de dor, do vazio, da angústia, da cons- Drummond, contudo, não aderiu a [palavras.
ciência da queda que aprisiona todo ser nenhuma receita poética das vanguar- (“Procura da Poesia”)
vivo, daí o autofechamento: das do Concretismo, Poema-Processo, Meu verso é minha consolação.
(...) Poesia-Práxis etc. Meu verso é minha cachaça.
A ruptura com a sintaxe, a rima final (...)
É sempre nos meus pulos o limite.
ou interna, a assonância, a aliteração e
É sempre nos meus lábios a estampilha. Meu verso me agrada sempre...
o eco, a repetição compulsória do som-
É sempre no meu não aquele trauma.
coisa, aproximam, contudo, Drummond (“Explicação”)
Sempre no meu amor a noite rompe. das operações técnicas das vanguar-
Sempre dentro de mim meu inimigo. das de 1950/60:
E sempre no meu sempre a mesma
[ausência. ISSO É AQUILO Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
(“O Enterrado Vivo”)
O fácil o fóssil Rimarei com a palavra carne
o míssil o físsil ou qualquer outra, que todas me convêm.
— Lição de Coisas marca a opção a arte o infarte (...)
concreto-formalista do poeta. Essa poe- o ocre o canopo
sia objetual de Drummond é uma radi- a urna o farniente (“Consideração do Poema”)

MÓDULO 48 Carlos Drummond de Andrade II


1. TEMÁTICA DRUMMONDIANA que há também entre seus poemas célebre exemplo deste tema (ver frag-
alguns – bem poucos, é verdade – cuja mentos do poema na aula anterior, no
Na Antologia Poética que publicou temática não corresponde a nenhum de item “Apreciação”). As inquietações do
em 1962, Carlos Drummond de Andrade tais temas. Ainda assim, o quadro indivíduo drummondiano envolvem, por
classificou tematicamente sua poesia, discernido pelo poeta oferece uma visão exemplo, preocupação com a velhice,
distribuindo os seus poemas por nove abrangente das preocupações que como em “Dentaduras Duplas”:
compartimentos, considerados “pontos frequentaram a sua obra ao longo de
de partida ou matéria de poesia”. A seguir, todo o seu desenvolvimento. Dentaduras duplas!

enumeramos e comentamos brevemente Inda não sou bem velho

esses nove núcleos temáticos da poesia para merecer-vos...


Há que contentar-me
drummondiana, colocando ao lado de ❑ 1. O indivíduo:
com uma ponte móvel
cada um, entre aspas, o título da seção “um eu todo retorcido”
e esparsas coroas.
correspondente da Antologia. O indivíduo, na poesia de
(Coroas sem reino,
O próprio poeta adverte sobre a Drummond, é complicado, torturado,
os reinos protéticos
existência de poemas seus que pode- fragmentado. O “Poema de Sete Faces”,
de onde proviestes
riam ser associados a mais de um dos primeiro texto do primeiro livro de
quando produzirão
temas seguintes. Pode-se acrescentar Drummond (Alguma Poesia, 1930), é um a tripla dentadura,

– 49
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dentadura múltipla, parte de suas emoções e de seu ima- Todos os cemitérios se parecem,
a serra mecânica, ginário. Os antepassados e a relação e não pousas em nenhum deles, mas
sempre desejada, [onde a dúvida
com eles constituem um problema
jamais possuída, apalpa o mármore da verdade, a descobrir
inquietante, que põe em questão os
que acabará a fenda necessária;
fundamentos de nossa existência, como onde o diabo joga dama com o destino,
com o tédio da boca,
a boca que beija,
se constata no poema “Convívio”: estás sempre aí, bruxo alusivo e
[zombeteiro,
a boca romântica?...)
Cada dia que passa incorporo mais esta que resolves em mim tantos enigmas.

(...) [verdade, de que eles não


(...)
A morte e o sentido (ou falta de [vivem senão em nós

sentido) da existência, a consciência e por isso vivem tão pouco; tão


❑ 5. O choque social:
[intervalado; tão débil.
culpada, a busca de sabedoria são
(...)
“na praça de convites”
outros dos temas que frequentam os
Aqui os poemas se voltam para o
poemas do indivíduo na poesia de espaço social, onde o indivíduo se ex-
(...)
Drummond. põe ao apelo dos outros e vive os dra-
Ou talvez existamos somente neles, que mas coletivos. Os grandes poemas de
❑ 2. A terra natal : [são omissos, e nossa existência, temática político-social de Drummond
“uma província: esta” apenas uma forma impura de silêncio,
abordam os horrores da guerra, da
[que preferiram.
A profunda, dura, triste relação com opressão, da injustiça, da violência.
o lugar de origem, que o indivíduo aban- Durante os anos marcados pela
dona, mas que não o abandona, carac- ❑ 4. Amigos:
Segunda Guerra Mundial e, no Brasil,
teriza o tema da “terra natal”. Um dos “cantar de amigos”
pela ditadura de Getúlio Vargas (época
mais célebres poemas sobre o assunto O título atribuído pelo poeta à seção
em que Drummond aderiu, brevemente,
é “Confidência do Itabirano” (ver frag- de sua Antologia Poética dedicada aos
ao credo socialista), o poeta produziu
mento do texto na aula anterior). Mas o amigos joga com os “cantares” ou
alguns de seus mais inflamados poemas
tema pode ser tratado também de “cantigas de amigo” medievais. São
“participantes”, como “Elegia 1938”
forma bem humorada e crítica, como homenagens a figuras admiradas,
(também referente ao tema do indi-
em “Cidadezinha Qualquer”: próximas ou distantes, como Machado
víduo), que termina assim:
de Assis, Charles Chaplin, Mário de
Casas entre bananeiras Andrade ou Manuel Bandeira, em poe- Coração orgulhoso, tens pressa de
mulheres entre laranjeiras mas às vezes de grande penetração [confessar tua derrota
pomar amor cantar. crítica. O poema dedicado a Machado e adiar para outro século a felicidade
de Assis, “A um Bruxo, com Amor”, con- [coletiva.
Um homem vai devagar. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego
tém as seguintes iluminações:
Um cachorro vai devagar. [e a injusta distribuição
Um burro vai devagar. porque não podes, sozinho, dinamitar a
(...)
[ilha de Manhattan.
Devagar... as janelas olham.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
Eta vida besta, meu Deus. como para uma simples quebra da
[monotonia universal ❑ 6. O conhecimento
e tens no rosto antigo
❑ 3. A família: amoroso: “amar-amaro”
uma expressão a que não acho nome certo
“a família que me dei” Amaro é “amargo”. A paronomásia
(das sensações do mundo a mais sutil):
Sem qualquer sentimentalismo – (trocadilho) que descreve este tema
volúpia do aborrecimento?
bem ao contrário – o indivíduo interroga, ou, grande lascivo, do nada? exprime um elemento básico da con-
sem alegria, a misteriosa realidade da cepção drummondiana do amor. Numa
família, que existe nele, em seu corpo, é (...) visão nada romântica ou sentimental, o

50 –
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amor é entendido como uma forma pri- Diferentes são as grandes “artes poé- ❑ 8. Exercícios lúdicos:
vilegiada e incontornável de exploração ticas” de Drummond, como “Procura da “uma, duas argolinhas”
da existência e, portanto, de conhe- Poesia”:
cimento – conhecimento de si e do Aqui temos os jogos com as pala-
outro. Mas se trata de algo “amargo” Não faças versos sobre acontecimentos.
vras – atividade aparentemente infantil,
Não há criação nem morte perante a poesia.
porque impõe sofrimento, sendo uma mas poética em sua essência, e respon-
Diante dela, a vida é um sol estático,
sede insaciável, um desejo impossível sável por alguns dos mais espantosos e
não aquece nem ilumina.
de satisfazer, uma necessidade que não As afinidades, os aniversários, os complexos poemas de Drummond,
encontra correspondência: [incidentes pessoais não contam. como “Áporo” ou “Isso é Aquilo”. As
Não faças poesia com o corpo,
Que pode uma criatura senão, “brincadeiras” podem ter, por exemplo,
esse excelente, completo e confortável
entre criaturas, amar? sentido crítico, de criticism of life, como
[corpo, tão infenso à efusão lírica.
amar e esquecer,
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de no divertido e malicioso quadro da artifi-
amar e malamar,
[dor no escuro cialidade da vida moderna, em “Os
amar, desamar, amar?
são indiferentes.
sempre, e até de olhos vidrados, amar? Materiais da Vida”:
Nem me reveles teus sentimentos,
(...)
que se prevalecem do equívoco e tentam
[a longa viagem. Drls? Faço meu amor em vidrotil
Este o nosso destino: amor sem conta,
O que pensas e sentes, isso ainda não é nossos coitos são de modernfold
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
[poesia. até que a lança de interflex
doação ilimitada a uma completa
[ingratidão, vipax nos separe
(...)
e na concha vazia do amor a procura em clavilux
Penetra surdamente no reino das palavras.
[medrosa, camabel camabel o vale ecoa
Lá estão os poemas que esperam ser
paciente, de mais e mais amor. sobre o vazio de ondalit
[escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero, a noite asfáltica
Amar a nossa falta mesma de amor, e na plkx
há calma e frescura na superfície intata.
[secura nossa
Ei-los sós e mudos, em estado de
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a
[dicionário.
[sede infinita.
(...) ❑ 9. Uma visão, ou tentativa de,
(“Amar”)
da existência: “tentativa de
❑ 7. A própria poesia: Chega mais perto e contempla as palavras.
exploração e de interpretação
“poesia contemplada” Cada uma
do estar-no-mundo”
Trata-se das “artes poéticas” de tem mil faces secretas sob a face neutra
Drummond: poemas sobre o quê e o e te pergunta, sem interesse pela resposta,
Trata-se de poemas em torno de
como da poesia. Podem ser poemas de pobre ou terrível, que lhe deres:
questões e conjecturas sobre a exis-
circunstância, singelos como “Poesia”: Trouxeste a chave?
(...) tência, o “estar-aqui”, sobre o que há “no
Gastei uma hora pensando um verso
meio do caminho”:
que a pena não quer escrever. Trata-se de uma “arte poética” por-
No entanto ele está cá dentro que é um poema que contém uma con- No meio do caminho tinha uma pedra
inquieto, vivo. tinha uma pedra no meio do caminho
cepção do que seja a poesia e de como
Ele está cá dentro
tinha uma pedra
e não quer sair. ela deva ser feita. A concepção expressa
no meio do caminho tinha uma pedra.
(...) neste texto é bastante diferente da que Nunca me esquecerei desse
antes apareceu no poema “Poesia”, pois [acontecimento
Esse poema trata da incapacidade
aqui a ideia é de que o poema é um na vida de minhas retinas tão fatigadas.
de expressão (a poesia intuída que não
Nunca me esquecerei que no meio do
chega às palavras), que revela uma objeto de palavras e, portanto, que a
[caminho
ideia “romântica” de poesia (como algo poesia se faz com palavras, não sendo
tinha uma pedra
que existe na alma do poeta, para a qual algo que possa existir “dentro” do poeta, tinha uma pedra no meio do caminho
ele pode “não encontrar palavras”). independentemente das palavras. no meio do caminho tinha uma pedra.

– 51
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FRENTE 2 Literatura

MÓDULO 49 Jorge de Lima, Murilo Mendes e Cecília Meireles


1. JORGE DE LIMA (União, AL, onírica, surreal, tudo transfundido na tinto, os círculos do inferno e do paraíso,
1895 – Rio de Janeiro, 1953) própria afetividade e vazado numa Orfeu, a Musa amada (Beatriz, Inês),
linguagem múltipla e poderosa. Dante Alighieri e Camões.
❑ Vida • A partir de Tempo e Eternidade Propõe uma espécie de teodisseia
Estudou Humanidades em Maceió (1935), que escreveu com Murilo (= odisseia para Deus), centrada na
e Medicina em Salvador e no Rio de Mendes, e em A Túnica Inconsútil (1938) busca, pelo homem, de uma plenitude
Janeiro. Interessou-se pelas artes plás- e Anunciação e Encontro de Mira-Celi, sensível e espiritual. Ressalta a comple-
ticas, foi professor de Literatura na incorpora à sua temática a poesia xidade do estilo, vazado num imenso
Universidade do Brasil e ingressou na mística e católica, além de novos leque de metros, ritmos e estrofações e
política como deputado estadual. Em processos construtivos. em formas de difícil elaboração: oitavas
1925, entrou em contato com o Mo- Apoiado nos arquétipos bíblicos, clássicas, tercetos, sextinas etc.
dernismo, divulgando-o no Nordeste, na simbologia das escrituras, Observe, no fragmento, a alusão
com os livros Poemas (1927) e Novos associa esses elementos barrocos parodística a Os Lusíadas (Inês de
Poemas (1929). à visão surrealista e alucinató- Castro), os decassílabos, a oitava-rima:
Em 1930, mudou-se para o Rio de ria, o que resulta em uma poesia de
Janeiro, onde exerceu a profissão de grande complexidade de for ma e CANTO SEGUNDO
médico. Seu consultório tornou-se um conteúdo. As sugestões bíblicas e as SUBSOLO E SUPERSOLO
XIX
ponto de encontro de artistas e intelec- idealizações surrealistas alimentam
tuais. Em 1935, converteu-se ao cato- uma poesia densa e figurativa, na qual Estavas linda Inês posta em repouso
licismo. Além de poeta, foi pintor, é constante a simbologia marinha mas aparentemente bela Inês;
fotógrafo, ensaísta, biógrafo, historiador (peixes, algas, flores aquáticas, medu- pois de teus olhos lindos já não ouso
fitar o torvelinho que não vês,
e prosador. sas), associada a sugestões de assas- o suceder dos rostos cobiçoso
sinatos, afogamentos, extermínios, passando sem descanso sob a tez;
❑ Obras e características numa visão apocalíptica de que eram tudo memórias fugidias,
máscaras sotopostas que não vias.
• Estreia em 1914 com XIV Ale- condenação do mundo e banimento
xandrinos, livro ainda preso aos moldes total. (...)
parnasianos e simbolistas, lavra- • Em Livro de Sonetos (1949) e In-
do em versos longos e constituído de venção de Orfeu (1952), a noção es- ❑ Poesia nordestina
sonetos, entre os quais o conhecido tetizante da poesia (vista como ofício de De Poemas Negros (poesia nordes-
tina folclórica, afro-pernambucana e
“O Acendedor de Lampiões”. O livro tratar com palavras) opera uma barro-
memorialista), destacamos os fragmen-
seguinte, O Mundo do Menino Impos- quização da vertente surrealista,
tos de:
sível, retoma essa linha. que se manifesta pelo emprego das BANGUÊ1
• Em Poemas Negros, nota-se a formas fixas (soneto, oitava-rima, sexti-
influência dos grupos regionalistas nas), modulando a atmosfera aluci- Cadê você meu país do Nordeste
que eu não vi nessa Usina Central Leão de
nordestinos (Gilber to Freyre, José natória e surreal.
[minha terra?
Lins do Rego, Rachel de Queirós). Ah! Usina, você engoliu os banguezinhos do
Realiza uma poesia apoiada nas recor- ❑ Invenção de Orfeu (1952) [país das Alagoas!
dações da infância, de “menino de Você é grande, Usina Leão!
Você é forte, Usina Leão!
engenho”, e nas sugestões do Invenção de Orfeu realiza uma es-
As suas turbinas têm o diabo no corpo!
folclore africano. Nos Poemas Ne- tranha e bizarra paródia de Os Lusí-
(...)
gros se descortinam as múltiplas di- adas, jogando com alguns motivos
reções que o poeta irá trilhar: a poesia recorrentes: a viagem, o descobrimento Vocabulário
social, o catolicismo militante, a poesia da ilha, a profundeza da vida e do ins- 1 – Banguê: engenho.

– 41
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ESSA NEGRA FULÔ Vêm quinhentos mil escravos no bojo das suas origens brasileiras e, estritamen-
[guerras: te, mineiras.”
Ora, se deu que chegou a metade morreu nos campos de batalha.
(isso já faz muito tempo) Dividamos o mundo entre as máquinas:
no banguê dum meu avô (BOSI, Alfredo. História Concisa da
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das
uma negra bonitinha
[fábricas,
Literatura Brasileira. São Paulo:
chamada negra Fulô. Cultrix, 1994. p. 446.)
a metade morreu na escuridão, sem ar.
Essa negra Fulô! Não dividamos o mundo.
Essa negra Fulô! Dividamos Cristo: ❑ Obras
todos ressuscitarão iguais. Considerado um poeta “difícil”, pela
Ó Fulô! Ó Fulô! liberdade criadora, pela multiplicidade
(Era a fala da Sinhá) De A Túnica Inconsútil, é o poema de temas que versou e pela densidade
“O Grande Circo Místico”, saga da dinas- que impregna sua visão de mundo, é
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos, tia circense dos Knieps, que inspirou o autor, entre outros, dos livros: História
vem ajudar a tirar musical homônimo de Chico Buarque, do Brasil (1932), Tempo e Eter nidade
a minha roupa, Fulô! Edu Lobo e Naum Alves de Sousa. (em parceria com Jorge de Lima, 1935),
Essa negra Fulô! A Poesia em Pânico (1938), O Visionário
2. MURILO MENDES (Juiz de (1941), As Metamorfoses (1944), Mun-
Essa negrinha Fulô do Enigma (1945), Poesia Liberdade
ficou logo pra mucama,
Fora, MG, 1901 – Estoril,
(1947), Janela do Caos, Contemplação
para vigiar a Sinhá Portugal, 1975)
pra engomar pro Sinhô!
de Ouro Preto (1954), além de Transís-
tor, A Idade do Serrote (prosa, 1969) e
❑ Vida
(...) de vários inéditos.
“Estudou na sua cidade e em Nite-
❑ Poesia mística rói, começou o curso de Direito, mas
❑ Evolução e características
De Tempo e Eternidade, A Túnica logo o interrompeu. Foi sempre um
• Iniciou-se realizando uma poesia
Inconsútil e Anunciação e Encontro de homem inquieto passando por ati-
influenciada pelo espírito de “demo-
Mira-Celi (poesia mística, surreal, apo- vidades díspares: auxiliar de guarda-
lição” dos modernistas de 1922
calíptica), destacamos: livros, prático de dentista, telegrafista
(Mário e Oswald), por meio de paródias
POEMA DO CRISTÃO aprendiz e, em melhores dias, notário e
de textos consagrados e de denúncia
Inspetor Federal de Ensino. Não menos
da colonização física e cultural do
Porque o sangue de Cristo rica de experiência foi a sua vida
Brasil. Na “Canção do Exílio”, observe a
jorrou sobre os meus olhos, espiritual e literária: tendo estreado em
a minha visão é universal
proximidade com a atitude irreverente
revistas do Modernismo, Terra Roxa e
e tem dimensões que ninguém sabe. dos movimentos Pau-Brasil e Antropofá-
Outras Terras e Antropofagia,
Os milênios passados e os futuros gico:
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
conheceu de perto a poética pri-
mitivista e surrealista que as animava; Minha terra tem macieiras da Califórnia
porque sou uno com todas as criaturas,
onde cantam gaturamos1 de Veneza.
com todos os seres, com todas as coisas em 1934, converteu-se ao catolicismo,
Os poetas da minha terra
que eu decomponho e absorvo com os sentidos partilhando com o pintor Ismael Nery o
são pretos que vivem em torres de ametista,
e compreendo com a inteligência fervor por uma arte que transmitisse os sargentos do exército são monistas2,
transfigurada em Cristo.
conteúdos religiosos em códigos [cubistas,
(...)
radicalmente novos. (...) A par tir de os filósofos são polacos vendendo a prestações.
1953 viveu quase exclusivamente na A gente não pode dormir
A DIVISÃO DE CRISTO com os oradores e os pernilongos.
Europa e, desde 57, em Roma, onde
(...)
Dividamos o Mundo em duas partes iguais: ensinou Literatura Brasileira. Em todos
uma para portugueses, outra para espanhóis. esses anos, M. Mendes revelou-se um Vocabulário
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das dos nossos escritores mais afins à van- 1 – Gaturamo: designação comum a várias
[naus: espécies de aves.
guarda ar tística europeia, o que, no
a metade morreu na viagem do oceano. 2 – Monista: que crê na doutrina monista,
entanto, não o apartou das imagens e
segundo a qual tudo pode ser reduzido à
Dividamos o Mundo entre as pátrias.
dos sentimentos que o prendiam às unidade.

42 –
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• Em Tempo e Eternidade, busca, dar precedência à imagem sobre a Onde o homem e a mulher são um,
convertido ao catolicismo, “res- mensagem, ao plástico sobre o discur- Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas1,
taurar a poesia em Cristo”, inte- sivo”. Um exemplo dessa vertente é o
E onde se fundem verbo e ação.
grando, com Jorge de Lima, Ismael poema que integra o ciclo “A Lua de
Nery, Otávio de Faria, Tasso da Ouro Preto”: Vocabulário
Silveira, Augusto Frederico 1 – Charrua: instrumento usado no cultivo do solo.
Schmidt, a corrente dos poetas cató- Lua, luar,

licos, marcados pela influência dos au- Não confundamos: O PROFETA


Estou mandando
tores franceses (Péguy, Claudel,
A Lua luar. A Virgem deverá gerar o Filho
Bernanos, Maritain) e pela atuação Que é seu Pai desde toda a eternidade.
Luar é verbo,
de Jackson de Figueiredo e Alceu de Quase não é A sombra de Deus se alastrará pelas eras
Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Substantivo. [futuras.
pensadores católicos que aglutinaram (...) O homem caminhará guiado por uma estrela
E tu és cíclica, [de fogo.
em torno de si esse “renascimento” da
Única, onírica, Haverá música para o pobre e açoites para o
visão mística e do catolicismo militante.
Envolverônica, [rico.
• De sua vertente surrealista, des- Os poetas celebrarão suas relações com o
Musa lunar.
tacamos: [Eterno.
(...) Muitos mecânicos sentirão nostalgia do Egito.
O PASTOR PIANISTA A serpente de asas será desterrada na lua.
Lua humanada, A última mulher será igual a Eva.
Soltaram os pianos na planície deserta Violantelua, E o Julgador, arrastando na sua marcha as
Onde as sombras dos pássaros vêm beber. Lua mafalda [constelações,
Eu sou o pastor pianista, Lua adelaide Reverterá todas as coisas ao seu princípio.
Vejo ao longe com alegria meus pianos Lua exilanda
Recortarem os vultos monumentais (...) 3. CECÍLIA MEIRELES
Contra a lua. (Rio de Janeiro, 1901-1964)
Acompanhado pelas rosas migradoras METADE PÁSSARO
Apascento1 os pianos que gritam
❑ Vida
E transmitem o antigo clamor do homem A mulher do fim do mundo “Passou a infância no Rio junto à
Que reclamando a contemplação Dá de comer às roseiras,
Sonha e provoca a harmonia, avó materna, açoriana. Formando-se
Dá de beber às estátuas,
Trabalha mesmo à força, Dá de sonhar aos poetas.
professora primária, dedicou-se por
E pelo vento nas folhagens, longos anos ao magistério (...). No
Pelos planetas, pelo andar das mulheres, A mulher do fim do mundo início da sua carreira literária, aproxi-
Pelo amor e seus contrastes, Chama a luz com um assobio, mou-se do grupo de Festa, dirigido
Comunica-se com os deuses. Faz a virgem virar pedra,
por Tasso da Silveira. Anos depois,
Cura a tempestade,
Vocabulário
preferiria trilhar caminhos pessoais,
Desvia o curso dos sonhos,
1 – Apascentar: pastorear. Escreve cartas ao rio, mais modernos. Ensinou Literatura
Me puxa do sono eterno Brasileira nas Universidades do Dis-
• Depois de 1950, em livros como Para os seus braços que cantam. trito Federal (1936-38) e do Texas
Tempo Espanhol (1959) e Convergên- (1940). Viajou longamente pelos paí-
A MARCHA DA HISTÓRIA
cia (1970), sua poesia tende à obje- ses de sua predileção, México, Índia
tividade e ao descarnamento da escrita, Eu me encontrei no marco do horizonte e sobretudo Portugal, onde viu reco-
aproximando-se da poesia experi- Onde as nuvens falam, nhecido o seu mérito antes mesmo
mental da época (o concretismo). É elo- Onde os sonhos têm mãos e pés de consagrar-se no Brasil como uma
quente o seguinte depoimento de João E o mar é seduzido pelas sereias. das maiores vozes poéticas da lín-
Cabral de Melo Neto: “a poesia de gua portuguesa contemporânea.”
Eu me encontrei onde o real é fábula,
Murilo me foi sempre maestra, pela Onde o sol recebe a luz da lua,
plasticidade e novidade da imagem. Onde a música é pão de todo dia (Alfredo Bosi, História Concisa
Sobretudo foi ela quem me ensinou a E a criança aconselha-se com as flores, da Literatura Brasileira)
– 43
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❑ Obras a aproximação a Alphonsus de • Expressa uma visão própria do


• Espectros (1919), Nunca Mais Guimaraens). É uma poesia de “de- mundo, por meio de um intenso cro-
e Poema dos Poemas (1923), Baladas sencanto e renúncia, nostalgia do matismo, de associações sensoriais (o
para El-Rei (1925), livros mais Além e mística ansiedade”. A fuga, visual-auditivo = sinestesia), da
marcados por ressonâncias parnasia- a fluidez, a melancolia, a sereni- musicalidade, do misticismo líri-
nas e simbolistas. dade, os tons fumarentos de ne- co, do culto da beleza imaterial e da
• Viagem (1939), premiado pela bulosidade impregnam toda a sua preferência pela abstração.
Academia Brasileira de Letras, marca obra, marcada pelo sentido da • Vale-se, de preferência, do verso
a consagração da poeta e a sua ade- transitoriedade, oscilando entre curto, de ritmo leve e ligeiro, que a-
são à modernidade, sem o radicalis- o efêmero e o eterno, segundo companha a fluência das impressões
mo experimentalista dos modernistas afirma a própria escritora: “Nasci vagas, esbatidas. A musicalidade de
da geração de 1922, numa poesia que aqui mesmo no Rio de Janeiro, três sua poesia apoia-se em ritmos naturais
harmoniza, com dicção moderna, os meses depois da morte de meu pai, (redondilhas), marcados por estribilhos,
velhos clássicos, passando pelos ro- e perdi minha mãe antes dos três que acentuam o caráter cantante.
mânticos, pelos parnasianos e espe- anos. Essas e outras mortes o cor- Essa aliança entre a poesia e a música
cialmente pelos simbolistas, do que ridas na família acarretaram muitos já se expressa no título de várias com-
resulta a variedade de técnicas e contratempos materiais, mas, ao posições, como “Música”, “Serenata”,
temas e a universalidade. Vaga mesmo tempo, me deram, desde “A Última Cantiga”, “Canção”, “Can-
Música (1942), Mar Absoluto (1945) e pequena, uma tal intimidade com a tiguinha”, “Som”, “Guitarra”, “Noturno”,
Retrato Natural (1949) são desdobra- Morte que docemente aprendi essas “Pausa”, “Valsa”, “Realejo”, “Cantar”,
mentos dessa proposta. relações entre o Efêmero e o Eterno. “Cantiga”, “Marcha”, “Assovio” (“Não
• Doze Noturnos da Holanda, (...) A noção ou sentimento da Tenho Inveja às Cigarras: Também Vou
Romanceiro da Inconfidência, Metal transitoriedade de tudo é o fun- Morrer de Cantar”).
Rosicler, Poemas Escritos na Índia, damento mesmo da minha perso-
Solombra, Ou Isto ou Aquilo são nalidade”. TEXTO I
alguns dos títulos que publicou entre
1952 e 1965. (MEIRELES, Cecília.
• Deixou ainda: prosa de fic- MOTIVO
Literatura Comentada . São Paulo:
ção — Olhinhos de Gato; prosa Abril Educação, 1982. p. 6.)
Eu canto porque o instante existe
poética — Giroflê, Giroflá; crônica,
e a minha vida está completa.
teatro e poesia infanto-juvenil • Há três constantes fundamen- Não sou alegre nem sou triste:
— Ou Isto ou Aquilo. tais: o oceano, o espaço e a soli- sou poeta.
dão. Trabalhando elementos móveis
❑ Características e etéreos, povoados de fantasias — Irmão das coisas fugidias1,
• É a representante mais carac- não sinto gozo nem tormento.
forma, som e cor —, a poeta projeta a
Atravesso noites e dias
terística da vertente espiritualis- desintegração de si mesma ou busca no vento.
ta ou intimista do Moder nismo. seu próprio reconhecimento.
Cecília parte de um certo distancia- • A rigor, não pertenceu a Se desmorono ou se edifico,
mento do real imediato e dirige os nenhuma corrente literária, se permaneço ou me desfaço,
processos imagéticos para a som- mas sua poesia de cunho universa- — não sei, não sei. Não sei se fico
bra, o indefinido, o sentimento ou passo.
lista e espiritualista identifica-se com
da ausência e do nada. Nas pa- a ver tente dos “poetas católicos”
Sei que canto. E a canção é tudo.
lavras da própria Cecília: “a poesia é (Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Tem sangue eterno a asa ritmada.
grito, mas transfigurado”. A transfigu- Augusto Frederico Schmidt e o E um dia sei que estarei mudo:
ração faz-se no plano da expressão. Grupo Festa, do Rio de Janeiro), — mais nada.
• É herdeira do Simbo lis - opondo-se ao nacionalismo (Viagem)
mo, retomando aspectos temáticos verde-amarelista ou antropofágico da Vocabulário
e for mais dos simbolistas (é sensível 1 – Fugidias: que fogem.
Geração de 1922.
44 –
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De lá se avista o mundo inteiro: Na abertura, no final e entre as


TEXTO II tudo parece perto, no ar.
partes, há poemas intercalados, que
É lá que eu quero morar:
a autora chama de “falas”. Também
RETRATO
no último andar. entre cada parte e, por vezes, no inte-
Eu não tinha este rosto de hoje, (Ou Isto ou Aquilo) rior delas, há outros poemas, desig-
assim calmo, assim triste, assim magro nados como “cenários”.
nem estes olhos tão vazios, ❑ Romanceiro da
nem o lábio amargo. Inconfidência • Romanceiro da
No Romanceiro da Inconfidência, Inconfidência
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas; publicado em 1953, Cecília Meireles
eu não tinha este coração cria uma poesia social a partir de um FALA INICIAL
que nem se mostra. fato histórico, pesquisado minuciosa-
mente. A Inconfidência Mineira é evo- Não posso mover meus passos
Eu não dei por esta mudança,
cada com suas lendas e tradições, por esse atroz1 labirinto
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
com seus enforcados, suicidas e des- de esquecimento e cegueira

a minha face? terrados, na atmosfera misteriosa dos em que amores e ódios vão:
(Viagem) cenários mineiros do século XVIII. — pois sinto bater os sinos,
Para esta obra, Cecília empregou percebo o roçar das rezas,
diversos tipos de versos, tetrassíla- vejo o arrepio da morte,
TEXTO III
bos, redondilhos menores e maiores, à voz da condenação;

hexassílabos, octossílabos, decassí- — avisto a negra masmorra2


1.o MOTIVO DA ROSA e a sombra do carcereiro
labos, tudo em variado arranjo estró-
que transita sobre angústias,
fico, que resulta em uma narrativa ágil
Vejo-te em seda e nácar1, com chaves no coração;
e tão de orvalho trêmula, e matizada. Essa diversidade permite,
— descubro as altas madeiras
que penso ver, efêmera, ao mesmo tempo, que a autora con-
do excessivo cadafalso3
toda a Beleza em lágrimas fira sua própria subjetividade, seu
e, por muros e janelas,
por ser bela e ser frágil. próprio lirismo, aos fatos que narra, o pasmo da multidão.
realizando uma homenagem, muitas
Meus olhos te ofereço:
espelho para a face vezes intertextual, à poesia e aos poe- Batem patas de cavalo.
que terás, no meu verso, tas inconfidentes de Minas. Suam soldados imóveis.
quando, depois que passes, O poema divide-se em “roman- Na frente dos oratórios,
jamais ninguém te esqueça. ces”, aqui entendidos como os poe- que vale mais a oração?
mas épico-líricos da tradição Vale a voz do Brigadeiro
Então, da seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
medieval, e desenvolve-se em cinco sobre o povo e sobre a tropa,

serás eterna. E efêmero partes: louvando a augusta Rainha,


o rosto meu, nas lágrimas I) a descrição do ambiente em que — já louca e fora do trono —
do teu orvalho... E frágil. se vai dar a ação (do romance I na sua proclamação.
(Mar Absoluto) ao XIX); Ó meio-dia confuso,
Vocabulário II) o desenvolvimento da trama e a ó vinte-e-um de abril sinistro,
1 – Nácar: tom rosado ou carmim (vermelho) que intrigas de ouro e de sonho
descoberta dos planos (do ro-
houve em tua formação?
mance XX ao XLVII);
TEXTO IV Quem ordena, julga e pune?
III) a morte de Cláudio Manuel da
Quem é culpado e inocente?
Costa e de Tiradentes (do roman-
Na mesma cova do tempo
O ÚLTIMO ANDAR ce XLVIII ao LXIV);
Cai o castigo e o perdão.
IV) o destino de Tomás Antônio Gon- Morre a tinta das sentenças
No último andar é mais bonito: zaga e Alvarenga Peixoto (do ro- e o sangue dos enforcados...
do último andar se vê o mar.
mance LXV ao LXXX); — liras, espadas e cruzes
É lá que eu quero morar.
V) a presença, no Brasil, da rainha pura cinza agora são.
O último andar é muito longe: D. Maria, responsável pela Na mesma cova, as palavras,
custa-se muito a chegar. confirmação das penas dos o secreto pensamento,
Mas é lá que eu quero morar:
inconfidentes (do romance LXXXI as coroas e os machados,

(...) ao LXXXV). mentira e verdade estão.

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Aqui, além, pelo mundo, quando, dos perigos de hoje, que calculais mundo e vida
ossos, nomes, letras, poeira... outros nascerem, mais altos. em contos, doblas, cruzados,
Onde, os rostos? onde, as almas? Que a sede de ouro é sem cura, que traçais vastas rubricas
Nem os herdeiros recordam e, por ela subjugados, e sinais entrelaçados,
rastro nenhum pelo chão. os homens matam-se e morrem, com altas penas esguias
ficam mortos, mas não fartos. embebidas em pecados!
(...)
(Ai, Ouro Preto, Ouro Preto, Ó personagens solenes
Vocabulário e assim foste revelado!) que arrastais os apelidos
1 – Atroz: cruel. como pavões auriverdes
2 – Masmorra: cela de cadeia. (Romanceiro da Inconfidência) seus rutilantes vestidos,
3 – Cadafalso: forca. — todo esse poder que tendes
Vocabulário confunde os vossos sentidos:
• Da Primeira Parte 1 – Desgrenhado: desordenado, confuso. a glória, que amais, é desses
2 – Desbarato: ruína. que por vós são perseguidos.
ROMANCE I
OU • Da Segunda Parte Levantai-vos dessas mesas,
DA REVELAÇÃO DO OURO saí das vossas molduras,
ROMANCE XXIV vede que masmorras negras,
OU que fortalezas seguras,
Nos sertões americanos,
DA BANDEIRA DA INCONFIDÊNCIA que duro peso de algemas,
anda um povo desgrenhado1:
gritam pássaros em fuga que profundas sepulturas
Através de grossas portas, nascidas de vossas penas,
sobre fugitivos riachos;
sentem-se luzes acesas, de vossas assinaturas!
desenrolam-se os novelos
— e há indagações minuciosas
das cobras, sarapintados;
dentro das casas fronteiras: Considerai no mistério
espreitam, de olhos luzentes,
olhos colados aos vidros, dos humanos desatinos
os satíricos macacos.
mulheres e homens à espreita,
Súbito, brilha um chão de ouro: e no polo sempre incerto
caras disformes de insônia,
corre-se — é luz sobre um charco. dos homens e dos destinos!
vigiando as ações alheias.
Por sentenças, por decretos
(...)
(...) pareceríeis divinos:
e hoje sois, no tempo eterno,
Atrás de portas fechadas,
E, atrás deles, filhos, netos, como ilustres assassinos.
à luz de velas acesas,
seguindo os antepassados, entre sigilo e espionagem,
vêm deixar a sua vida, acontece a Inconfidência. Ó soberbos titulares
caindo nos mesmos laços, (...) tão desdenhosos e altivos!
perdidos na mesma sede, Por fictícia austeridade,
teimosos, desesperados, vãs razões, falsos motivos,
por minas de prata e de ouro DOS ILUSTRES ASSASSINOS inutilmente matastes:
curtindo destino ingrato, — vossos mortos são mais vivos;
emaranhando seus nomes Ó grandes oportunistas, e, sobre vós, de longe abrem
para a glória e o desbarato2, sobre o papel debruçados, grandes olhos pensativos.

MÓDULO 50 Vinícius de Moraes

1. VINÍCIUS DE MORAES Unidos, na Espanha, no Uruguai e na ❑ Obras


(Rio de Janeiro, 1913-1981) França, mas sem nunca perder o con- • Poesia
tato com a vida literária e artística do O Caminho para a Distância (1933)
❑ Vida Rio de Janeiro. No final da década de Forma e Exegese (1935)
Formou-se em Letras e em Direi- 1950, passou a compor letras para Ariana, a Mulher (1936)
to. Foi censor e crítico cinematográfi- canções populares, consagrando-se Novos Poemas (1938)
co e estudou Literatura Inglesa em como um dos fundadores do movi- Cinco Elegias (1943)
Oxford. Em 1943, ingressou na carrei- mento musical conhecido por Bossa Poemas, Sonetos e Baladas (1946)
ra diplomática, servindo nos Estados Nova. Pátria Minha (1949)

46 –
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Livro de Sonetos (1956) • Além de ser um lírico excepcio- Pensem nas meninas
O Mergulhador (1965) nal, Vinícius versou também sobre a Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
A Arca de Noé (infantil, 1970) temática social (“O Operário em Rotas alteradas
• Teatro Construção”, “A Rosa de Hiroshima”, “A Pensem nas feridas
Orfeu da Conceição (tragédia ca- Bomba”), sobre o cotidiano; fez Como rosas cálidas
rioca em três atos, escrita em ver- poesia infantil (A Arca de Noé), além Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
sos, 1954) dos poemas que o cancioneiro popular
Da rosa de Hiroshima
Pobre Menina Rica (comédia mu- consagrou: “Serenata do Adeus”, A rosa hereditária
sicada, 1962) “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, A rosa radioativa
• Prosa “Se Todos Fossem Iguais a Você” etc. Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
O Amor dos Homens (crônicas,
A antirrosa atômica
1960) Sem cor sem perfume
TEXTOS
Para Viver um Grande Amor (crô- Sem rosa sem nada
nicas, 1962)
Para uma Menina com uma Flor SONETO DE SEPARAÇÃO O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

(crônicas, 1966) De repente do riso fez-se o pranto (...)


Silencioso e branco como a bruma
❑ Evolução e E das bocas unidas fez-se a espuma E um grande silêncio fez-se
características E das mãos espalmadas fez-se o espanto. Dentro do seu coração
• Os primeiros livros, até Cinco Um silêncio de martírios
De repente da calma fez-se o vento Um silêncio de prisão.
Elegias, marcam-se pela aproxima-
Que dos olhos desfez a última chama Um silêncio povoado
ção com a poesia católica francesa, E da paixão fez-se o pressentimento De pedidos de perdão
com o simbolismo místico e, E do momento imóvel fez-se o drama. Um silêncio apavorado
como em Augusto Frederico Schmidt, Com o medo em solidão.
De repente, não mais que de repente Um silêncio de torturas
pelo uso do versículo bíblico, pelo Fez-se de triste o que se fez amante E gritos de maldição
gosto do poema longo, de tom grave E de sozinho o que se fez contente. Um silêncio de fraturas
e exaltado, cheio de ressonâncias. A se arrastarem no chão.
• A partir de Cinco Elegias, a Fez-se do amigo próximo o distante E o operário ouviu a voz
Fez-se da vida uma aventura errante De todos os seus irmãos
adesão à modernidade é prenuncia- De repente, não mais que de repente.
Os seus irmãos que morreram
da pela contenção formal, pela
Por outros que viverão.
liberdade temática e de ex- (Oceano Atlântico, a bordo do
Uma esperança sincera
Highland Patriot, a caminho da Inglaterra,
pressão, pela incorporação poé- Cresceu no seu coração
09.1938)
tica do cotidiano e da expe- E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
riência direta da vida, que subs- SONETO DO MAIOR AMOR
De um homem pobre e esquecido
tituem a busca do transcendente, do Razão porém que fizera
Maior amor nem mais estranho existe
sublime, e a tendência mística e me- Em operário construído
Que o meu, que não sossega a coisa amada
tafísica da primeira fase. E quando a sente alegre, fica triste O operário em construção.
• Poemas, Sonetos e Baladas E se a vê descontente, dá risada.
POÉTICA
(1946) é considerado o livro mais ex-
E que só fica em paz se lhe resiste
pressivo de sua obra, impregnado de O amado coração, e que se agrada De manhã escureço
ternura, de humor, de ironia, numa Mais da eterna aventura em que persiste De dia tardo
poesia de grande comunicabilidade, Que de uma vida mal-aventurada. De tarde anoiteço
De noite ardo.
em que convivem a linguagem
Louco amor meu, que quando toca, fere
clássica, nos sonetos de feição E quando fere, vibra, mas prefere A oeste a morte
camoniana (Sonetos: “da Separa- Ferir a fenecer — e vive a esmo. Contra quem vivo
ção”, “da Fidelidade”, “do Amor Total” Do sul cativo
Fiel à sua lei de cada instante O este é meu norte.
etc.); os versos curtos incisivos
Desassombrado, doido, delirante
e a intensidade da visão lí- Numa paixão de tudo e de si mesmo. Outros que contem
rica/realista do amor, que retoma (Oxford, 1938) Passo por passo:
elementos trovadorescos e român- Eu morro ontem
A ROSA DE HIROSHIMA
ticos, acrescidos da concepção do
Nasço amanhã
amor como experiência-limite (o amor Pensem nas crianças Ando onde há espaço:
louco dos surrealistas). Mudas telepáticas — Meu tempo é quando.

– 47
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MÓDULO 51 Regionalismo

O CICLO NORDESTINO – O ❑ A Bagaceira expressões nominais de extrema


REALISMO REGIONALISTA Conta a saga dos retirantes Va- especificação da cor local modulam
lentim Pereira, sua filha Soledade e um expressionismo descritivo vigoro-
seu afilhado Pirunga, que, tangidos so e uma expressão musical cuja
Ainda no primeiro tempo moder-
pela seca, abandonam a zona do ser- força e aspereza remetem o leitor à
nista, enquanto no Sul as querelas lite-
tão e vão para a região dos engenhos, melopeia (= propriedade musical —
rárias cindiam os modernistas (nacio-
no brejo, onde são acolhidos pelo En- som, ritmo — que orienta o significado
nalismo x primitivismo, revolução
genho de Marzagão, de propriedade das palavras) de Euclides da Cunha.
estética x revolução social, futurismo,
de Dagoberto Marçau e seu filho Há alguma discrepância entre o
cubismo, dadaísmo, surrealismo), no
Lúcio. A ação decorre entre dois registro da fala dos sertanejos (diale-
Nordeste, Gilberto Freyre, José Lins
períodos da seca, o de 1898 e o de tal, folclórica) e a linguagem do escri-
do Rego e José Américo de Almeida
1915, centrando-se na violência e na tor e dos seus narradores (culta e
organizavam, em 1926, o Congres-
opressão. sentenciosa). É indispensável o esfor-
so Regionalista do Recife, cuja
A Bagaceira concretiza os propó- ço do escritor (nem sempre bem-
proposta era a de uma literatura com-
sitos do Primeiro Congresso de sucedido) de não se afastar em
prometida com a problemática nor-
Regionalistas do Recife (1926). demasia da linguagem das persona-
destina (o latifúndio; a seca; as
Quanto à linguagem, aproxima-se da gens. (A adequação da fala do nar-
instituições arcaicas = sobrevi-
prosa elíptica, incisiva e epigramática rador à das personagens é um dos
vências coloniais; a explora-
de Oswald de Andrade. Realiza problemas compositivos centrais de
ção da mão de obra; a violên-
cortes frequentes na narrativa, dando todo o regionalismo brasileiro.)
cia social = jaguncismo, canga-
ceirismo, misticismo fanatizan- igual importância ao humano e ao
te; a família patriarcal e as social. Nesse sentido, afastou-se do 2. JORGE AMADO
consequências de sua desa- caráter de depoimento e da ho- (Itabuna, BA, 1912 –
gregação; a corrupção e o co- rizontalidade próprios dos autores Salvador, BA, 2001)
ronelismo; os contrastes nordestinos que o precederam.
sociais — o ser tanejo e o ho- Tem intenção de crítica social,
descambando, às vezes, para o ❑ Obra
mem da Zona da Mata, as casas-
grandes e as senzalas). panfletário, para o enfático demagó-
gico. O título do romance alude ao • Romance
Propunha-se uma literatura empe-
local onde, no engenho, se juntam os O País do Carnaval (1931)
nhada e realista na denúncia dos en-
bagaços de cana. Figuradamente, Cacau (1933)
traves culturais. Nessa proposta,
incluem-se: José Américo de Almei- aproxima o bagaço da cana à con- Suor (1934)
da, José Lins do Rego, Graciliano dição miserável do sertanejo. Jubiabá (1935)
Ramos, Rachel de Queirós e Jorge O romance procura confrontar, Mar Morto (1936)
Amado. em termos de relações humanas e de Capitães da Areia (1937)
contrastes sociais, o homem do Terras do sem Fim (1943)
sertão e o homem do brejo (dos São Jorge de Ilhéus (1944)
1. JOSÉ AMÉRICO DE engenhos). Aproximando o serta-
ALMEIDA (Areia, PB, 1887 Seara Vermelha (1946)
nejo e o brejeiro, na paisagem Gabriela, Cravo e Canela (1958)
– João Pessoa, PB,1980) nordestina, o autor condiciona os ele-
Os Subterrâneos da Liberdade (3
mentos dramáticos aos ciclos perió-
vols.: Os Ásperos Tempos, Agonia
Autor de A Bagaceira, 1928, mar- dicos da seca, os quais delimitam a
da Noite e A Luz e o Túnel – 1967)
co inicial do romance nordestino própria existência do sertanejo.
Dona Flor e seus Dois Maridos
modernista, deixou também O Quanto ao estilo, ao lado de res-
Boqueirão e Coiteiros. sonâncias naturalistas, há aproxima- (1967)
Sua obra tematiza o retirante ções com o Modernismo de 1922, Tenda dos Milagres (1970)
da seca e lança sementes do sem o radicalismo experimentalista. A Teresa Batista Cansada de Guerra
ciclo da cana-de-açúcar, funda- frase enxuta, os períodos curtos (1973)
do por José Lins do Rego. coordenados ou justapostos e as Tieta do Agreste (1977)

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Farda, Fardão, Camisola de Dor- – afrescos da região do • Literatura infantil


mir (1979) cacau, evidenciando as lutas entre O Menino Mágico (1969)
Tocaia Grande (1984) coronéis e exportadores (Terras do Cafute & Pena-de-Prata (1986)
O Sumiço da Santa (1988) sem Fim, São Jorge de Ilhéus); Andira (1992)
A Descoberta da América pelos “Cenas Brasileiras” – Para Gostar
Turcos (1994) – crônicas amaneiradas de de Ler 17
O Compadre de Ogum (1995) costumes provincianos (Gabrie-
la, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus ❑ Apreciação
• Novela Dois Maridos, Teresa Batista Cansada “Os quatro romances editados em
Os Velhos Marinheiros (1961) de Guerra, Tenda dos Milagres e Tieta livro exprimem intensa preocupação
Os Pastores da Noite (1964) do Agreste). social. Mas a romancista se apoia na
análise psicológica dos personagens,
Escreveu ainda biografias, memó- Jorge Amado apoia-se na nar- sobretudo na natureza do homem
rias e um Guia Turístico da Bahia. rativa oral, na técnica do contador nordestino, sob a pressão das forças
Os romances de Jorge Amado de casos, aproximando-se da estrutu- atávicas e a aceitação fatalista do
são habitualmente divididos em dois ra do folhetim romântico, pela profu- destino, como é o caso dos dois
grupos: são de peripécias, intrigas, inciden- primeiros — O Quinze e João Miguel.
tes, anedotas, aventuras, nem sempre (…) Estes romances apresentam uma
1) os de tema social, roman-
costurados dentro do razoável ou do nova tomada de posição na temática
ces proletários, voltados para a
verossímil. do romance nordestino — da seca, do
denúncia da exploração do latifúndio
coronelismo e dos impulsos pas-
do cacau, para a crítica à burguesia
3. RACHEL DE QUEIRÓS sionais — em que o psicológico se
hipócrita e reacionária e para os he-
(Fortaleza, CE, 1910 – harmoniza com o social.”
róis e líderes populares, que, roman-
Rio de Janeiro, 2003)
ticamente, se elevam de marinheiros,
(in CANDIDO, A. e CASTELLO, J. A.
camponeses, vagabundos, boêmios
❑ Obra Presença da Literatura Brasileira,
a líderes de grande consciência
• Romance vol. III – Modernismo. São Paulo:
social e política;
O Quinze (1930) DIFEL, 1983. pp. 236-7.)

2) os de tema lírico, ou as João Miguel (1932)


crônicas de costumes, que, a Caminho de Pedras (1937) O Quinze (1930), romance publi-
partir de Gabriela, Cravo e Canela, As Três Marias (1939) cado quando Rachel de Queirós tinha
trazem um aprimoramento das técni- apenas 19 anos, tem parte da ação
O Galo de Ouro (1985), folhetim
cas narrativas e o predomínio do pla- decorrida em Fortaleza e parte no
no jornal O Cruzeiro (1950)
no lírico, anedótico ou picaresco sertão cearense. Apresenta simul-
Obra Reunida (1989)
sobre o “realismo socialista” dos ro- taneamente a história de três famílias
mances engajados da primeira fase.
Memorial de Maria Moura (1992) que habitam fazendas do sertão: a da
Usualmente, distinguem-se em avó de Conceição, jovem professora,
sua obra: • Teatro a de Vicente, primo dela, e de Chico
– romances proletários, ins- Lampião (1953) Bento, vaqueiro da terceira fazenda.
pirados na vida baiana, rural e citadi- A Beata Maria do Egito (1958) Despedido do trabalho e despojado
na (Cacau, Suor, País do Carnaval); Teatro (1995) de tudo, Chico parte com sua família
A Sereia Voadora (inédita) para outras terras. A narrativa focaliza
– depoimentos líricos, com sua trágica condição de retirante, ao
O Padrezinho Santo (inédita)
predominância do elemento senti- mesmo tempo em que descreve a
mental, sobre rixas e amores de mari- vida de Conceição e da avó na
• Crônica
nheiros (Jubiabá, Mar Morto, Capital, para onde Chico agora se
A Donzela e a Moura Torta (1948) dirige, fugindo da seca. Enquanto
Capitães da Areia);
Cem Crônicas Escolhidas (1958) isso, o narrador acompanha a luta de
– escritos de pregação par- O Brasileiro Perplexo – Histórias Vicente, que permaneceu no sertão,
tidária (O Cavaleiro da Esperança, e Crônicas (1963) lutando obstinadamente contra aque-
O Mundo da Paz); etc. la natureza hostil.
– 49
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MÓDULO 52 José Lins do Rego

1. JOSÉ LINS DO REGO Pureza (1937) imagino meus romances, tomo sempre
(Engenho Corredor, PB, Riacho Doce (1939) como modo de orientação o dizer as
1901 – Rio de Janeiro, 1957) – Desligados desses ciclos: coisas como elas surgem na
Água-Mãe (1941) memória, com o jeito e as maneiras
❑ Vida Eurídice (1947) simples dos cegos poetas (…) gosto
“Passou a infância no engenho do que me chamem de telúrico e muito
avô materno. Fez os estudos secun- • Memórias me alegra que descubram em todas
dários em ltabaiana e na Paraíba (atual Meus Verdes Anos (1956). Elabo- as minhas atividades literárias forças
João Pessoa) e Direito no Recife. Aqui rada como uma narrativa memorialis- que dizem de puro instinto.”
se aproxima de intelectuais que ta, a obra tem por base as
seriam os responsáveis pelo clima recordações da infância do autor no • Menino de Engenho, narrado
modernista-regionalista do Nordeste: Engenho Santa Rosa, a figura mítica na primeira pessoa, por Carlos
José Américo de Almeida, Olívio de seu avô, coronel Zé Paulino, as Melo, focaliza a infância do narrador,
Montenegro e, sobretudo, Gilberto histórias contadas pelas escravas e dos 4 aos 12 anos, detendo-se na
Freyre, de quem receberia estímulo amas-de-leite, compondo um amplo vida do engenho, na paisagem, nos
para dedicar-se à arte de raízes lo- painel do mundo rural do Nordeste, escravos, nos tipos regionais (os
cais. Poucos anos depois liga-se, em mais especificamente da região cana- bandidos, os cangaceiros) e nas rela-
Maceió, a Jorge de Lima e a Graci- vieira da Paraíba e de Pernambuco. ções do menino com o universo da
liano Ramos. Transferiu-se, em 1935, O ciclo da cana-de-açúcar, cana-de-açúcar.
para o Rio de Janeiro, onde participou formado por Menino de Engenho,
A figura central é o coronel Zé
ativamente da vida literária, defenden- Doidinho, Banguê, Usina e Fogo Morto,
Paulino, avô de Carlos Melo, típico
do com vigor polêmico o tipo do é, segundo o autor, a história de uma
patriarca dos engenhos.
escritor voltado para a região de onde decadência e de uma ascensão: a
• Doidinho, narrado também
proveio.” decadência do engenho e a ascensão
pela personagem Carlos Melo,
(Alfredo Bosi) da usina. Como afirma o crítico Otto
focaliza a sua experiência num colé-
Maria Carpeaux, “o grande valor literá-
gio interno, de onde foge, voltando
❑ Obra rio da obra de José Lins do Rego resi-
para o Engenho Santa Rosa.
• Romance de nisto: o seu assunto e o seu estilo
I – Ciclo da cana-de-açúcar correspondem à decadência do pa-
• Banguê, narrado ainda por
Menino de Engenho (1932) triarcalismo no Nordeste do Brasil, com
Carlos Melo, que, formado em
Doidinho (1933) as suas inúmeras tragédias e misérias
Direito, dez anos após deixar o
Banguê (1934) humanas e uns raros raios de graça e
Santa Rosa, retorna ao engenho,
Usina (1936) de humor”.
onde, melancolicamente, rememora
Fogo Morto (1943) O escritor inspirou-se nos can-
a infância e assiste à decadência do
tadores de feira, os quais apontou
coronel Zé Paulino e do Engenho,
II – Ciclo do cangaço, misti- como fontes de sua arte narrativa.
ameaçado pela Usina São Félix.
cismo e seca Daí a linguagem de forte e poética
Pedra Bonita (1938) oralidade e a grande carga afetiva, • Usina: na primeira parte, retoma
Cangaceiros (1953) que a revivescência dos verdes anos a história do Moleque Ricardo, a partir
provoca. É um escritor espontâneo e de sua prisão como grevista e de seu
III – Obras independentes intuitivo. regresso ao engenho. Na segunda
– Com implicação nos dois ciclos “Os cegos cantadores, amados e parte, enfoca a decadência do Santa
indicados: ouvidos pelo povo, porque tinham o Rosa, que se transforma na Usina
O Moleque Ricardo (1934) que contar. Dizia-lhes então: quando Bom Jesus, por fim incorporada à

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Usina São Félix. Uma enchente justiça e igualdade, defendendo os Ele, chefe político do Pilar, não teria inveja do

do Paraíba destrói a antiga humildes contra os poderosos da Dr. Heráclito de ltabaiana. Todos pagariam
impostos. Por que José Paulino não queria pa-
propriedade do engenho Santa Rosa, terra; é, por isso, ridicularizado. É a
gar impostos? Ele próprio iria com os fiscais
simbolizando o fim do ciclo. Os pro- única personagem que se mantém
cobrar os dízimos no Santa Rosa. Queria ver o
blemas sociais decorrentes da “revo- firme até o fim, já que o mestre Zé ricaço espernear. Ah! Dava gritos.
lução industrial” são o centro da Amaro se suicida e o coronel Lula, — Tem que pagar, primo José Paulino,
narrativa, agora em terceira pessoa. doente, fica entrevado. tem que pagar, sou eu o Prefeito Vitorino que
Cada uma das três personagens estou aqui para cumprir a lei. Tem que pagar!
E gritou na sala com toda a força.
❑ Fogo Morto “representa ou sintetiza uma classe
Apareceu a velha Adriana, assustada.
Fogo Morto é considerado a da população. José Amaro, o seleiro,
— O que há, Vitorino?
obra-prima de José Lins do Rego. Es- simboliza o trabalhador, o mundo do E quando viu que não havia ninguém na
pécie de síntese de toda a sua obra trabalho. E vibra com o cangaço (…). sala:
ficcional, o romance retoma a ascen- Lula é a nobreza arruinada, a deca- — Estavas sonhando?
são e queda de um engenho, agora dente aristocracia rural. Mergulha no — Que sonhando, que coisa nenhuma.

o Santa Fé, por meio de três persona- passado e num certo misticismo, isto Vai para a tua cozinha e me deixa na sala. (…)
Levantou-se outra vez e saiu para a fren-
gens cujos destinos se entrecruzam é, na sua interioridade. (…) E Vitorino
te da casa. (…)
na decadência da economia cana- é o opositor, o quixotesco, o tagarela,
— Entra para dentro, Vitorino, está muito
vieira nordestina. O romance des- mistura de povo e nobreza, admirável frio. A friagem da lua te faz mal.
dobra-se em três partes: de coragem e generosidade militan- Ele não respondeu. No outro dia sairia
Na primeira parte — “O Mestre te”. (Antonio Carlos Villaça) pelo mundo para trabalhar pelo povo. (…)
José Amaro” — surge a figura do Quando entrasse na casa da Câmara sacu-
diriam flores em cima dele. Dariam vivas,
velho seleiro, José Amaro, homem
TEXTO gritando pelo chefe que tomava a direção do
frustrado que mora com a mulher e
município. Mandaria abrir as portas da cadeia.
a filha em terras do Engenho Santa III PARTE Todos ficariam contentes com o seu triunfo. (…)
Fé. O dono do Santa Fé, Lula de CAPITÃO VITORINO Ah, com ele não havia grandes mandando em
Holanda, ordena que José Amaro pequenos. Ele de cima quebraria a goga1 dos
abandone o engenho. O romance A velha deixou o quarto e saiu para o fundo parentes que pensavam que a vila fosse

retrata, pois, as brigas com o senhor da casa. Vitorino fechou os olhos, mas estava bagaceira de engenho.
muito bem acordado com os pensamentos — Vitorino, vem dormir.
de engenho e as desilusões do
voltados para a vida dos outros. Ele muito tinha — Já vou.
seleiro com sua profissão, com a
que fazer ainda. Ele tinha o Pilar para tomar E, escorado no portal da casa de taipa,
vida familiar e com sua filha solteira. de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino
conta, ele tinha o seu eleitorado, os seus adver-
A segunda parte — “O Engenho sários. Tudo isso precisava de seus cuidados, da era dono do mundo que via, da terra que a lua
de Seu Lula” — trata da história do força do seu braço, de seu tino. (…) A sua velha branqueava, do povo que precisava de sua
Engenho Santa Fé, que prosperou Adriana quisera abandoná-lo para correr atrás do proteção.
— Tem cuidado com o sereno.
com seu primeiro dono, capitão filho. Desistiu para ficar ali com uma pobre. Podia
ter ido. Ele, Vitorino Carneiro da Cunha, não — Cala esta boca, vaca velha. Já ouvi.
Tomás Cabral de Melo, mas decaiu
precisava de ninguém para viver. Se lhe Depois, com as portas fechadas, estirado
nas mãos do genro Luís César de na rede, com o corpo doído, continuou a fazer
tomassem a casa onde morava, armaria a sua
Holanda Chacon, seu Lula, casado e a desfazer as coisas, a comprar, a levantar, a
rede por debaixo dum pé de pau. Não temia a
com D. Amélia. desgraça, não queria a riqueza. (…) Um dia to- destruir com as mãos trêmulas, com o seu
A terceira parte — “O Capitão maria conta do município. coração puro.

Vitorino” — enfoca a figura do compa- (…) A vila do Pilar teria calçamento, (Fogo Morto)

cemitério novo, jardim, tudo que ltabaiana tinha Vocabulário


dre de José Amaro, espécie de herói
1 – Goga: fanfarronice, farra.
com o novo Prefeito. (…) Aí levantou-se. (...)
que vive lutando e brigando por

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MÓDULO 53 Graciliano Ramos I


1. GRACILIANO RAMOS • Obra memorialística os outros, nem a si mesmo.
(Quebrângulo, AL, Infância (1945) • Não há predomínio do regiona-
1892 – Rio de Janeiro, 1953) Memórias do Cárcere (1953) lismo, da paisagem. Esses as-
Viagem (Checoslováquia–URSS – pectos só interessam na medida
❑ Vida em que interagem com o ele-
1954)
“Fez estudos secundários em mento humano.
Maceió, mas não cursou nenhuma Linhas Tortas (Crônicas, 1962)
• Os traços mais característicos do
faculdade. Em 1910 estabeleceu-se Viventes das Alagoas (Quadros e estilo de Graciliano Ramos são a
em Palmeira dos Índios, onde o pai costumes do Nordeste – 1962) economia vocabular, a palavra
vivia de comércio. Após uma breve • Literatura infantil incisiva, que “corta como faca”;
estada no Rio de Janeiro, como revi- Histórias de Alexandre (1944) o uso restrito do adjetivo e a sin-
sor do Correio da Manhã e de A Tarde Dois Dedos (1945) taxe clássica que o aproxima de
(1914), regressou a Palmeira dos Histórias Incompletas (1946) Machado de Assis e o distan-
Índios. Passa a fazer jornalismo e cia do “à vontade” dos modernis-
política, exercendo a prefeitura da ❑ Características tas, quanto ao aspecto gramatical.
cidadezinha entre 1928 e 1930. Aí • Pode-se dividir a obra de Gra- • Graciliano situa-se no polo opos-
também redige, a partir de 1925, seu ciliano Ramos em três séries: to do populismo dos autores
primeiro romance, Caetés. De 30 a 36 – a série dos romances escri- que exploram a vitalidade do
viveu quase todo o tempo em Maceió, tos em 1.a pessoa — Caetés, homem simples na busca do
onde dirigiu a Imprensa Oficial do São Bernardo, Angústia — que pitoresco e do melodramático.
Estado. Data desse período a sua constituem uma progressiva Sua opção é pelo despojamento,
amizade com escritores que forma- análise psicológica da alma pelo tenso e profundo. Sua mo-
vam a vanguarda da literatura nor- humana; dernidade pouco deve aos mo-
destina: José Lins do Rego, Rachel de – a série das narrativas es- dernistas e às modas literárias,
Queirós, Jorge Amado, Waldemar critas em 3.a pessoa — perante as quais foi visto como
Cavalcanti; é também a época em Vidas Secas, os contos de inatual e conservador.
que redige São Bernardo e Vidas Insônia — em que o autor se
Secas. Em março de 1936 é preso fixa nas condições de existên- ❑ Obras centrais
como subversivo. Embora sem pro- cia das personagens; • Caetés
vas de acusação, levam-no a – a série das obras autobio- Narrado em primeira pessoa, por
diversos presídios, sujeitam-no a mais gráficas — lnfância, Memórias João Valério, a ação desenvolve-se
de um vexame e só o liberam em do Cárcere — nas quais o em Palmeira dos Índios. João
janeiro do ano seguinte: as Memórias autor expressa a sua subjetivi- Valério, a personagem principal,
do Cárcere serão o depoimento exato dade, dispensando a fantasia. introvertida e fantasiosa, apaixona-se
dessa experiência. (…) Em 1945 in- por Luísa, mulher de Adrião, dono
gressou no Partido Comunista Brasi- “Isto permite supor que houve nele da firma comercial onde trabalha. O
leiro. Em 1951, foi eleito presidente da uma rotação de atitude literária, tendo caso amoroso é denunciado por uma
Associação Brasileira de Escritores; a necessidade de inventar cedido o carta anônima, levando o marido traído
no ano seguinte viajou para a Rússia e passo, em certo momento, à neces- ao suicídio.
os países socialistas, relatando o que sidade de depor. E o mais interes- Arrependido, e arrefecidos os
viu em Viagem. Graciliano faleceu no sante é que a transição não se sentimentos, João Valério afasta-se de
Rio aos sessenta anos de idade.” apresenta como ruptura, mas como Luísa, continuando, porém, como
(Alfredo Bosi) consequência natural, sendo que nos sócio da firma.
❑ Obras dois planos a sua arte conseguiu O título do livro, Caetés, é a apro-
transmitir visões igualmente válidas ximação que faz o autor com o
• Romance
da vida e do mundo.” selvagem caeté, que devorou o
Caetés (1933)
(Antonio Candido) bispo Sardinha (1602-1656), numa
São Bernardo (1934)
correspondência simbólica com a
Angústia (1936) antropofagia social de João Valério,
• O realismo de Graciliano Ramos
Vidas Secas (1938) tem sempre caráter crítico. O que “devora” Adrião, o rival.
• Conto “herói” é sempre problemá- João Valério é, ao mesmo tempo,
Insônia (1947) tico e não aceita o mundo, nem homem e selvagem:

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“Não ser selvagem! Que sou eu O narrador construção da Fazenda São Bernar-
senão um selvagem, ligeiramente poli- O livro é narrado em primeira do, o narrador se desnuda em seu
do, com uma tênue camada de verniz pessoa pelo protagonista Paulo caráter incompreensivo e destrutivo:
por fora? Quatrocentos anos de civili- Honório, que, movido por uma impo- “Conheci que Madalena era boa
zação, outras raças, outros costumes. sição psicológica, busca uma jus- em demasia, mas não conheci tudo
E eu disse que não sabia o que se tificativa para o desmoronamento da duma vez. Ela se revelou pouco a pou-
passava na alma de um caeté! Pro- vida e de seu fracassado casamento co, e nunca se revelou inteiramente.
vavelmente o que se passa na minha com Madalena. A culpa foi minha, ou antes, a culpa
com algumas diferenças.” A narração, o diálogo (que não sur- foi desta vida agreste, que me deu
ge como conversa, mas como duelo) e uma alma agreste.”
• Angústia o monólogo interior fundem-se na
Tecnicamente, o romance mais unidade dos 36 capítulos da obra. O estilo
complexo de Graciliano Ramos. Em seu primeiro romance, Caetés, “Sendo um romance de senti-
O livro é a história de um frus- Graciliano Ramos seguiu os ditames mentos fortes, São Bernardo é tam-
trado, Luís da Silva, homem tímido da estética naturalista, situando a per- bém um romance forte como estrutura
e solitário que vive entre dois mundos sonagem em seu contexto social. Ago- psicológica e literária.
com os quais não se identifica. ra, em São Bernardo, todo o contexto Dois movimentos o integram: um,
Produto de uma sociedade rural em social é submetido ao drama íntimo a violência do protagonista contra
decadência, Luís da Silva alimenta do protagonista Paulo Honório. homens e coisas; outro, a violência
um nojo impotente dos outros e de si A técnica da narrativa em primei- contra ele próprio. Da primeira, resul-
mesmo. Apaixona-se por uma vizi- ra pessoa faz com que todos os fatos, ta S. Bernardo-fazenda, que se incor-
nha, Marina, pede-a em casamento personagens e coisas sejam apre- pora ao seu próprio ser, como atributo
e lhe entrega as parcas economias sentados de acordo com a visão pes- penosamente elaborado; da segunda,
para um enxoval hipotético. Surge soal do narrador. resulta S. Bernardo-livro-de-recor-
Julião Tavares, que tem tudo o dações, que assinala a desintegração
que falta a Luís: ousadia, dinheiro e O enredo da sua pujança. De ambos, nasce a
posição social, euforia e uma tran- “É a história de um enjeitado, derrota, o traçado da incapacidade
quila inconsciência. A fútil Marina se Paulo Honório, dotado de vontade in- afetiva.
deixa seduzir sem dificuldades, e teiriça e da ambição de se tornar fa- O próprio estilo, graças à secura e
Luís, amargurado, vai nutrindo os zendeiro. Depois de uma vida de lutas violência dos períodos curtos, em que
impulsos de assassino que o levam, e brutalidade, atinge o alvo, as- a expressão densa e cortante é peno-
de fato, a estrangular o rival. senhoreando-se da propriedade onde samente obtida, parece indicar essa
Em certo sentido, a morte de fora trabalhador de enxada, e que dá passagem da vontade de construir à
Julião Tavares representa para Luís nome ao livro. Aos quarenta e cinco vontade de analisar, resultando um
da Silva a desforra que tira contra anos casa com uma mulher boa e livro direto e sem subterfúgio, hones-
todos, mas que em seguida perde o pura, mas, como está habituado às to ao modo de um caderno de notas.
aparente significado de vitória. relações de domínio e vê em tudo, Caso elucidativo é o da paisa-
quase obsessivamente, a resistência gem. Não há em São Bernardo uma
• São Bernardo da presa ao apresador, não percebe a única descrição, no sentido romântico
Publicado em 1934, São Bernardo dignidade da esposa nem a essência e naturalista, em que o escritor
representa a maturidade literária de de seu próprio sentimento. Tiraniza-a procura fazer efeito, encaixando no
Graciliano Ramos. sob a forma de um ciúme agressivo e texto, periodicamente, visões ou
Sobre esta obra, escreveu Anto- degradante. Madalena se suicida, arrolamentos da natureza e das
nio Candido: cansada de lutar, deixando-o só e, coisas. No entanto, surgem a cada
“Acompanhando a natureza do tarde demais, clarividente. Corroído passo a terra vermelha, em lama ou
personagem, tudo em São Bernardo pelo sentimento de frustração, sente poeira; o verde das plantas; o relevo,
é seco, bruto e cortante. Talvez não a inutilidade da sua vida, orientada as estações; as obras do trabalho
haja em nossa literatura outro livro tão exclusivamente para coisas exterio- humano: e tudo forma enquadramen-
reduzido ao essencial, capaz de expri- res, e procura se equilibrar escreven- to constante, discretamente referido,
mir tanta coisa em resumo tão estrei- do a narrativa da tragédia conjugal.” incorporando o ambiente ao ritmo psi-
to. Por isso é inesgotável o seu fascínio, cológico da narrativa. Esse livro breve
pois poucos darão, quanto ele, seme- (Antonio Candido, Tese e Antítese) e severo deixa no leitor impressões
lhante ideia de perfeição de ajuste admiráveis.”
ideal entre os elementos que com- No livro, ao mesmo tempo em que
põem um romance.” (Tese e Antítese) faz o balanço de uma vida dedicada à (Antonio Candido, Ficção e Confissão)

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MÓDULO 54 Graciliano Ramos II

1. VIDAS SECAS: Vejamos agora como se distri- uns dias mastigando raiz de imbu e
SÍNTESE DO ROMANCE buem os principais acidentes dentro sementes de mucunã. Viera a trovoa-
de cada capítulo: da. E, com ela, o fazendeiro, que o
Vidas Secas é a história de uma expulsara. Fabiano fizera-se desen-
família de retirantes, que, paradoxal- Mudança tendido e oferecera os seus prés-
mente, não chega a constituir propria- timos, resmungando, coçando os
mente uma história. A dura andança, Este primeiro capítulo já supõe cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que
sob a implacabilidade da seca, de toda uma narrativa anterior, sobre a tinha era ficar. E o patrão aceitara-o,
certa forma justifica a inutilidade da qual paira o silêncio, e cujas carac- entregara-lhe as marcas de ferro.
comunicação entre os membros da terísticas podemos adivinhar: “Os in- Agora Fabiano era vaqueiro, e
família, o fato de os meninos não felizes tinham caminhado o dia ninguém o tiraria dali. Aparecera como
apresentarem nome, as dificuldades inteiro, estavam cansados e famin- um bicho, entocara-se como um bicho,
linguísticas de Fabiano, a inquietação tos”. Vinham tocados pela seca. mas criara raízes, estava plantado.
constante. E também justifica o Chegam ao pátio de uma fazenda Contente, dizia a si mesmo: ‘Você é um
sacrifício do papagaio, que tinha abandonada. Fabiano arruma uma fo- bicho, Fabiano’.” Sua vida era com os
acompanhado a família, e que veio a gueira. Baleia traz nos dentes um brutos, sua linguagem era deficiente:
transformar-se em alimento pro- preá. “Levantaram-se todos gritando. “Admirava as palavras compridas e
videncial. Como se não bastassem O menino mais velho esfregou as pál- difíceis da gente da cidade, tentava
tais infortúnios, Fabiano vem a ser pebras, afastando pedaços de reproduzir algumas, em vão, mas sabia
preso pelo soldado amarelo, símbolo sonho. Sinha Vitória beijava o focinho que elas eram inúteis e talvez perigo-
do autoritarismo local. Ao contrário de de Baleia, e como o focinho estava sas”. Lembrava-se sempre de seu
Fabiano, que se mostra matuto em ensanguentado, lambia o sangue e Tomás da bolandeira. Aquele, sim, é
tudo, Sinha Vitória apresenta sinais de tirava proveito do beijo.” Fabiano que falava bem. Seu Tomás “lia
ter vindo de um meio social menos enche-se de alegria com a promessa demais”.
duro. Baleia, a cachorra, consegue de chuvas no poente. Já se anuncia O patrão mostra autoridade. Fabia-
sentir e reagir com inteligência neste capítulo a compreensível ru-
no obedece, pois se preocupa com o
superior à média dos animais. Sua deza de Fabiano com os filhos,
futuro, com a educação dos filhos.
“humanização” progressiva acompa- resultado da incomunicabilidade.
Note-se como a presença do pa-
nha a também progressiva “animali- Podemos dizer que este primeiro
trão obedece a um movimento circu-
zação” dos membros da família. capítulo apresenta as “regras gerais
lar. Ele já despedira Fabiano antes.
Fabiano teve de sacrificar a cachorra, do jogo”, ou seja, o conjunto de
Reencontra Fabiano e, a pedido deste,
por suspeitar que ela estivesse pade- princípios e situações que não se vão
deixa-o ficar. Depois, despede-o de
cendo de raiva. Embora se revolte mudar substancialmente. É desse
novo. A família então é que deve
contra as contas do patrão, Fabiano tabuleiro inicial que se podem
retomar o círculo da andança.
tem de aceitá-las, para não perder o escolher algumas peças para dar-lhes
emprego. Seu reencontro com o sol- desenvolvimento particular em cada
dado amarelo, depois, em plena caa- um dos capítulos seguintes. Dos tre- Cadeia
tinga, faz-lhe reconhecer sua própria ze capítulos do livro, apenas três
superioridade. Acaba perdoando, en- fogem um pouco a esse esquema e Na feira da cidade, Fabiano é
sinando ao soldado o caminho de trazem à cena alguma coisa ines- convidado por um soldado amarelo
volta. Mas a temida seca enfim está perada: “Cadeia”, “Festa” e “O Sol- para jogar trinta e um. Perde, e sai. O
chegando. As árvores se enchem de dado Amarelo”. Não nos deve admirar soldado o insulta por ter saído sem se
aves de arribação. Fabiano recomeça o fato de que esses três capítulos são despedir. Fabiano é levado para a
a analisar sua vida. Quem lhe dá os que estabelecem uma mínima cadeia e apanha.
ânimo é Sinha Vitória. Os retirantes relação da família com a periferia da Obviamente o soldado não prende
deixam a casa da fazenda, e retomam sociedade, e denunciam, por isso Fabiano por uma antipatia pessoal, que
o caminho de sempre. No pensamento mesmo, uma crise da comunicação e o vaqueiro lhe inspirasse. Prende-o,
de Fabiano brilha uma certa esperan- da receptibilidade. porque, afinal, ele deve exercer a auto-
ça, materializada pelas promessas de ridade com alguém. Para o soldado
chegar ao sul do país. Mas a pers- Fabiano amarelo, Fabiano é apenas um tipo, o
pectiva que vem do narrador é a da tipo social contra quem ele pode
contínua andança, sem definição e “Apossara-se da casa porque exercer sua discriminação e seu
sem destino certo. não tinha onde cair morto, passara autoritarismo.
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Sinha Vitória simpatia.” às barracas de jogo, mas sinha Vitória


Ao contrário de seu irmão, o me- desaprova. Bebe em demasia, fica
Sinha Vitória dá um pontapé em nino mais velho já começa a apre- valente. Mas acaba pegando no sono
Baleia. Fabiano criticara seus sapa- sentar sinais de mais efetiva (e mais na calçada. Fabiano sonha com
tos de verniz, caros e inúteis. Ela quer dolorosa) imitação paterna. O desejo muitos soldados amarelos que lhe
já há mais de um ano uma cama de de saber o que significava inferno e pisavam os pés e ameaçavam com
lastro de couro, igual à cama do seu a lição recebida da mãe já facões terríveis. Este capítulo procura
Tomás da bolandeira. Vêm-lhe as constituem, por si sós, maneiras de exprimir o sentimento de inferioridade
recordações da viagem, a morte do evidenciar como a linguagem não da família. Mas não fica nisso. Porque
papagaio. Tem medo da seca. Mas a tem boa acolhida no contexto dos a obediência forçada é muitas vezes
presença do marido a deixa segura. retirantes. Isso também explicaria pulverizada pela revolta repentina.
A figura de seu Tomás da bolan- um pouco as dificuldades linguís- Isso, aliás, é típico do comportamento
deira funciona como um modelo, um ticas de Fabiano, que não parecem sertanejo, pelo menos no que está
paradigma de gente culta, que a famí- de origem patológica, mas resultam testemunhado pela ficção regionalis-
lia pôde conhecer. É importante veri- de inadaptação cultural. E, por outro ta. Há um sentimento de dignidade
ficar como Graciliano, atento talvez à lado, no plano da construção da humana, que mais cedo ou mais tarde
lição machadiana, faz a mulher ocu- obra, o desejo de saber o que é se vem a manifestar.
par um plano psicologicamente dis- inferno não passa de uma discreta
tinto do plano masculino. Dizem (mas intensa) ironia, pois todos Baleia
alguns antropólogos que a mulher estavam, afinal, submetidos ao infer-
tem uma relação mais íntima com a no do sol. Baleia não estava bem. Fabiano
natureza do que o homem. Entre- calcula que era raiva (hidrofobia) e
tanto, Graciliano parece inverter esse Inverno resolve matar o animal. Sinha Vitória
princípio, pois Sinha Vitória está mais tem de conter os meninos. Desconfia-
próxima da cultura do que Fabiano. A família se reúne ao pé do fogo. da, Baleia tenta esconder-se. Ferida
Portanto, sua “animalização” é menor. Fabiano inventa uma história, mas a na perna, Baleia foge, mas não con-
família não entende, nem ele a sabe segue alcançar os juazeiros. Baleia
O Menino mais Novo exprimir direito. Todos temem a violên- não conseguia entender o que estava
cia ameaçadora da chuva. Também acontecendo. “Baleia queria dormir.
Quer ser igual ao pai, e por isso temem a seca, que virá depois. Acordaria feliz, num mundo cheio de
deseja realizar algo notável, para Esta imagem da família reunida, preás. E lamberia as mãos de Fabia-
desper tar a admiração do irmão e da a ouvir uma história contada pelo pai, no, um Fabiano enorme.”
cachorra. Queria amansar uma égua pode, de certa forma, parecer-nos ex- Pode-se dizer que o realismo con-
e montá-la, como o pai fizera. Tenta cessiva. Porque nós, leitores, coloca- tínuo de Graciliano Ramos encontra
montar no bode, e cai, sob risadas do dos num plano existencialmente em Baleia seu ponto de inversão. De
irmão e a desaprovação de Baleia. superior ao das personagens, estra- fato, o carinho, a ternura com que o
Aqui também notamos uma nhamos que elas ainda tenham tem- narrador se transfere para dentro do
resistência à brutalização, pois o po para se preocupar com algo animal, a sabedoria com que soube
menino continua com seus sonhos de supérfluo, tanto mais que a situação preparar a cena patética, o clímax de
menino, tal como sua mãe, que delas era de completa apertura. Mas humanização do bichinho antes da
continua a sonhar com uma cama de este modo de ler seria incorreto, por- morte, tudo isto nos mostra repentina-
lastro de couro. que as situações de angústia prolon- mente um Graciliano muito próximo
gada conhecem também um movi- dos modos sublimes da literatura
O Menino mais Velho mento de vaivém, entre a angústia e a narrativa, o que contrasta com a pai-
distração. Graciliano conhecia muito sagem constante do livro. Digamos
Sente imensa curiosidade pela bem este fenômeno. que esse é um momento de poesia
palavra inferno. Não obtendo expli- trágica de Vidas Secas.
cação do pai, recorre à mãe, que Festa
fala em espetos quentes e fogueiras. Contas
Ao perguntar à mãe se ela tinha visto Festa de natal na cidade. As rou-
tudo isso, Sinha Vitória lhe dá um pas da família ficaram apertadas. Os O patrão rouba Fabiano nas contas.
cocorote. Indignado, o menino se meninos estranham tudo em volta. Os bezerros e cabritos que lhe cabiam,
esconde. Fica abraçado com a ca- “Comparando-se aos tipos da cida- como paga pelo trabalho, Fabiano os
chorrinha. Seu ideal é ter um amigo. de, Fabiano reconhecia-se inferior.” tem de vender ao patrão. Fabiano
“Todos o abandonavam, a cadelinha Depois da missa, convida a mulher e reclama, pois as contas do patrão não
era o único vivente que lhe mostrava os filhos para os cavalinhos. Quer ir conferem com as feitas por sinha Vitória.
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O patrão lhe aconselha a procurar possuem e salga a carne. Sinha Vitória reflexo, acaba apontando uma socie-
serviço noutra fazenda. Fabiano se fala de seus sonhos ao marido. Este dade dividida entre grandes proprie-
desculpa. Fabiano depois recorda a se enche de esperança. “E andavam tários rurais e seus trabalhadores, que
injustiça que sofreu de um fiscal da para o sul, metidos naquele sonho. representam apenas disponibilidade
prefeitura por ter tentado vender um Uma cidade grande, cheia de pes- eventual de força de trabalho.
porco. “O pai vivera assim, o avô tam- soas fortes. Os meninos em escolas, Do ponto de vista do narrador, que
bém. E para trás não existia família. aprendendo coisas difíceis e neces- se manifesta em terceira pessoa e é
Cortar mandacaru, ensebar látegos — sárias. Eles dois velhinhos, acaban- onisciente, a discrição tática é sensível.
aquilo estava no sangue. Conformava- do-se como uns cachorros, inúteis, Graciliano certamente achou que a
se, não pretendia mais nada.” acabando-se como Baleia. Que iriam pintura dos quadros bastava para dar
fazer? Retardaram-se temerosos. Che- o perfil ideológico do romance. Não
O Soldado Amarelo gariam a uma terra desconhecida e obstante a miséria e o quadro de ironia
civilizada, ficariam presos nela. E o ser- social, as pinturas de Graciliano alcan-
E eis que Fabiano encontra na tão continuaria a mandar gente para
çam o nível de rara execução artística,
caatinga o soldado amarelo que o lá. O sertão mandaria para a cidade
demonstrada não só no desenho con-
levara para a cadeia. O soldado, aco- homens fortes, brutos, como Fabiano,
ciso e na frase enxuta, mas no modo
vardado, fica à mercê de Fabiano, que sinha Vitória e os dois meninos.”
de organização dos episódios.
vacila em sua intenção de vingança, e Este final, se não representa nem
Repare-se que os capítulos lembram
acaba ensinando ao soldado o cami- de longe um “final feliz”, é, pelo me-
verdadeiras tomadas fílmicas. São
nho do retorno. nos, uma porta aberta para sair-se do
cenas colocadas umas ao lado das
Este é um dos momentos de contínuo giro circular. É um final im-
grande ironia, pois o soldado aí apa- outras, com pouca continuidade
portantíssimo para a solução do
rece naquilo que ele é pessoal e narrativa, embora apresentadas em
romance, pois introduz uma pequena
socialmente, não mais naquilo que a constante movimentação. Daí que a
abertura para a utopia das grandes
instituição o fazia parecer ser. E ele é, maioria dos capítulos possa ser lida
metrópoles, e reproduz, com verossi-
enfim, e sob vários aspectos, inferior a como contos autônomos. E, de fato, a
milhança, aquilo que de fato acontece
Fabiano. Existe uma proporção entre intenção primeira de Graciliano Ramos
na cena brasileira.
ambos. Fabiano é tanto mais forte foi a de escrever um conto. Sua secura
quanto mais próximo da caatinga. O não vinha de um projeto de concisão
2. A ESTRUTURA
soldado é tanto mais forte quanto abertamente defendido, como foi o pro-
DO ROMANCE
mais acobertado pelas instituições. A jeto de modernidade apresentado por
força de Fabiano vem dele próprio; o Um dos elementos mais aguarda- Oswald de Andrade ou Mário de An-
poder do soldado, o autoritarismo que dos, num romance regionalista, é o drade. A secura de Graciliano Ramos
exerce sobre os outros, ao contrário, enredo, a intriga, ou seja, a forma que tinha principalmente duas fontes. Uma
não vem dele, mas da organização a no romance assume a sociedade. Já era o caráter do homem, um caráter
que pertence. se vê que Vidas Secas não pôde con- coeso e determinado, que o fazia sen-
tar com uma intriga sólida, complexa. tir como despudor todo excesso
O Mundo Coberto de Penas verbal, sobretudo se fosse romântico,
Enfim, a obra Vidas Secas não tem
uma história, no sentido romancístico expansivo. A outra fonte era a própria
A seca está voltando. É o que necessidade de harmonizar a lin-
do termo, pois, para que haja uma
anunciam as aves de arribação. Sinha guagem ao panorama seco e inóspito
história substancial, é necessário que
Vitória adverte: as aves estão que estava descrevendo. No fundo,
a sociedade se manifeste. Ora, as rela-
tomando a água que mantém vivos os isso revela necessidade de adequação
ções sociais, em Vidas Secas, são
outros animais. Fabiano se admira da imitativa — adequação entre a
apenas vislumbradas de longe, ou
inteligência de sua mulher, e procura realidade representada e o estilo de
matar várias aves com a espingarda. sinalizadas em circunstâncias muito
rápidas e muito fortuitas. A família é representação —, fundamental para o
Servirão de alimento. Fabiano não
projetada para o âmbito agressivo da neorrealismo regionalista.
consegue esquecer Baleia. Era
natureza. Portanto, a fisionomia he- A prosa de Graciliano Ramos cor-
preciso sair dali. Novamente se vai
roica da família se vai formar na luta responde a um esforço de análise dos
precipitar a andança.
contra a hostilidade natural, na orga- dramas sociais. E Graciliano foi, em
nização mínima do instinto de sobre- sua geração, a chamada geração
Fuga
vivência. A sociedade reaparece aqui regionalista dos anos 30, aquele que
ou ali, mas tensa e vigilante, como os melhor soube casar a denúncia com a
Preparam a viagem, partem de ma-
drugada. Fabiano mata o bezerro que guardas de uma fronteira. Isso, por elaboração artística.

56 –
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MÓDULO 55 Guimarães Rosa I


1. A LITERATURA A partir das descobertas trazidas Observação: Corpo de Baile, a
DO PÓS-GUERRA pela Linguística — a palavra cria a partir da 3.a edição, tripartiu-se em
realidade —, define-se melhor o fenô- volumes autônomos.
• O período do pós-guerra vai prio- meno “ficção”. O romance deixa de • Manuelzão e Miguilim (“Campo
rizar a prosa de ficção em vez da ser uma simples representação da Geral” e “Uma Estória de Lélio e
poesia. Tal fato se explica por ser
realidade para ter valor em si. Lina”);
o gênero narrativo o mais ade-
É nessa linha da pesquisa da lin- • No Urubuquaquá, no Pinhém (“O
quado à expansão da necessida-
guagem, de reinvenção do código lin- Recado do Morro”, “Cara de
de de comunicação direta e o
guístico, que se situam as duas prin- Bronze” e “A Estória de Lélio e Li-
lugar mais amplo para a apresen-
cipais figuras da ficção pós-45: João na”);
tação do homem em todas as
Guimarães Rosa e Clarice Lispector. • Noites do Sertão (“Lão-Dalalão” e
suas dimensões.
Além da preocupação com a lin- “Buriti”).
• As perspectivas abertas pelo ro-
guagem, há outros pontos que aproxi-
mance neonaturalista norte-ame-
mam Guimarães Rosa e Clarice ❑ O regionalismo universa-
ricano e pelo neo-realismo italiano
Lispector: a busca de universalização lista — “o sertão é o mundo”
prosseguem, dando-se mais impor-
do romance nacional, por meio da • Extraindo sua matéria do sertão
tância à realidade social do que à
individual. sondagem do mundo interior de per- mineiro – espaço marginal à civili-
Nos anos 50, o romance, que se sonagens. zação moderna –, onde o gado
funde no experimentalismo, rom- Contudo, em Guimarães Rosa há campeia, Guimarães Rosa toma o
pendo com a tradição do gênero, ainda a preocupação em manter o en- sertão como uma forma de apren-
reaparece no Nouveau Roman redo e o suspense. Já Clarice Lispec- dizado sobre a vida, não apenas
francês, aprofundando as inova- tor abandona totalmente a noção de do sertanejo, mas do homem. Os
ções trazidas por escritores como trama romanesca para mergulhar na grandes temas da literatura uni-
James Joyce e Virginia Woolf. própria consciência das persona- versal são projetados no sertão: o
• Desaparecem os limites entre ro- gens, relatando, “de dentro”, suas bem e o mal, Deus e o Diabo, a
mance, conto e novela, e a ficção operações mentais ou registrando a vida e a morte, o amor e o ódio.
torna-se mais complexa e frag- incomunicabilidade do ser humano, • O gado, fonte de subsistência do
mentada, modificando, ou mesmo preso a um cotidiano monótono e sertanejo, integra a obra como
fazendo desaparecer, os elemen- sufocante. componente poético da narrativa,
tos tradicionais, como narrador, e a natureza, além de cenário, é
personagem, tempo, espaço. Em 3. GUIMARÃES ROSA um elemento ativo, participante,
alguns romances, tenta-se mes- (Cordisburgo, MG, diretamente ligada aos destinos
mo anular esses elementos. 1908 – Rio de Janeiro, 1967) do homem. A flora, a fauna e a
Despreza-se o enredo, problema- paisagem são recriadas mítica e
tiza-se a personagem, fragmenta-se poeticamente, oferecendo mate-
o tempo. ❑ Vida rial para a reinvenção da lingua-
Médico, diplomata, só obteve re- gem, por meio de comparações,
2. A FICÇÃO conhecimento geral como escritor a imagens, metáforas, metonímias
BRASILEIRA PÓS-1945 partir de 1956, quando publicou Gran- e pela exploração intensiva dos
de Sertão: Veredas e Corpo de Baile. recursos poéticos: ritmo, rima, ali-
❑ O romance experimental Admitido solenemente à Acade- terações, cortes e deslocamentos
A Geração de 45 vai abrir cami- mia Brasileira de Letras, faleceu três
nho para novas representações de de sintaxe, vocabulário insólito,
dias após sua posse. É quase unani- erudito e arcaico, neologismos,
realidade, que se fazem a partir de memente reconhecido, no Brasil, co-
três tendências distintas: tudo isso modulado pela cadên-
mo a maior expressão de nossa cia da fala do sertanejo:
• a permanência realista do teste- ficção no século XX.
munho humano; ❑ Obras O senhor tolere, isto é o sertão.
• a atração pelo transreal, numa
Sagarana (1946) Uns querem que não seja: que situa-
tentativa de justificar a condição
Corpo de Baile (1956) do sertão é por os campos-gerais a
humana por sua projeção no mun-
Grande Sertão: Veredas (1956) fora a dentro, eles dizem, fim de ru-
do mítico da arte;
Primeiras Estórias (1962) mo, terras altas, demais do Urucuia.
• a redescoberta da linguagem, co-
Tutameia — Terceiras Estórias Toleima. Para os do Corinto e do Cur-
mo elemento de comunicação e
(1967) velo, então, o aqui não é dito sertão?
como elemento que instaura o
Estas Estórias (1969) Ah, que tem maior! Lugar sertão se
real.
Ave, Palavra (1970) divulga: é onde os pastos carecem
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de fechos; onde um pode torar dez, elipses, cortes e deslocamentos riência de vida a um interlocutor (um
quinze léguas, sem topar com casa sintáticos, vocabulário insólito (ar- doutor da cidade, de visita no sertão),
de morador; onde criminoso vive seu caísmos e neologismos), associa- que jamais tem a palavra e cuja fala é
cristo-jesus, arredado do arrocho de ções raras, metáforas, anáforas, apenas sugerida.
autoridade (...). metonímias, fusão de estilos etc. As histórias vão sendo emenda-
Esses gerais são sem tamanho. das, articulando-se com a preocupa-
Enfim, cada um o que quer aprova, o Por meio de elementos mitopoéti- ção do narrador em discutir a
senhor sabe: pão ou pães, é questão cos, Rosa trabalha as dimensões existência ou não do diabo, do que
de opiniães... O sertão está em toda a pré-conscientes do homem, entre o depende a salvação de sua alma.
parte. real e o surreal, nutrindo-se de velhas Ocorre que, em sua juventude,
(Grande Sertão: Veredas) tradições, como as que inspiravam, para vencer seu grande inimigo, Her-
nas canções de gesta e novelas de mógenes, Riobaldo parece ter feito
❑ A reinvenção da linguagem cavalaria dos guerreiros medievais, o um pacto com o diabo. Embora em
• O que se altera na ficção brasi- convívio entre o sagrado e o demo- muitos momentos isso pareça eviden-
leira com a produção de Guima- níaco. te, a existência ou não do pacto fica
rães Rosa é o modo de lidar com Em suas narrativas, a prosa apro- por conta das interpretações do leitor.
a palavra, a maneira de conside- xima-se da poesia, como se pode A problemática demoníaca rela-
rar a linguagem. notar no seguinte trecho, que mime- ciona-se com o amor proibido de
• A tendência regionalista acaba tiza, pela exploração da musicalidade, Riobaldo por seu amigo Reinaldo,
assumindo a característica de ex- o movimento de uma boiada: apelidado Diadorim. Ao final da aven-
periência estética universal, com- tura, a morte do amigo revela a
preendendo a fusão entre o real e “As ancas balançam, e as vagas Riobaldo que Diadorim era, na ver-
o mágico, de forma a radicalizar de dorsos, das vacas e touros, baten- dade, a moça Maria Deodorina, dis-
os processos mentais e verbais do com as caudas, mugindo no meio, farçada em homem — o que leva o
inerentes ao contexto fornecedor na massa embolada, com atritos de personagem-narrador a uma constan-
de matéria-prima. O folclórico, o couros, estralos de guampas, estron- te indagação sobre a “mistura” entre o
pitoresco e o documental cedem dos e baques, e o berro queixoso do certo e o errado, o ser e a aparência,
lugar a uma maneira nova de gado junqueira, de chifres imensos, a vida e a ficção, e que se traduz na
repensar as dimensões da cul- com muita tristeza, saudade dos frase repetida por todo o romance:
tura, flagrada em suas articula- campos, querência dos pastos de lá “Viver é muito perigoso”.
ções no mundo da linguagem. do sertão...
• Além da capacidade criadora do ❑ “Campo Geral” é a história da
“Um boi preto, um boi pintado,
autor, a linguagem rosiana funda- infância de Miguilim, em quem alguns
cada um tem sua cor.
se no profundo domínio do por- críticos identificam elementos da pró-
Cada coração um jeito
tuguês arcaico e contemporâ- pria vida de Guimarães Rosa. Embora
de mostrar o seu amor.”
neo, no conhecimento de outras a novela seja escrita em terceira
línguas e nos caderninhos que Boi bem bravo, bate baixo, bota pessoa, toda a narrativa é feita a partir
acompanhavam Rosa em suas baba, boi berrando... Dança doido, da visão do menino: o mundo infantil é
andanças pelo sertão, onde ano- dá de duro, dá de dentro, dá direito... o primeiro plano de toda a ação e,
tava a maneira de falar do povo Vai, vem, volta, vem na vara, vai não dessa maneira, os outros eventos,
brasileiro, utilizada, não como re- volta, vai varando...” como o drama dos adultos e a difícil
gistro de superfície, mas como (in Sagarana, “O Burrinho Pedrês”) vida no sertão, são filtrados pelo
expressão verbal que se aproxi- lirismo do olhar da criança.
ma da metáfora poética dos gran- ❑ Grande Sertão: Veredas O tema central da novela é a ideia
des escritores universais. É o único romance escrito por de travessia, tema recorrente na obra
• As experiências semânticas de Rosa, publicado no mesmo ano que de Guimarães Rosa, e que aqui se
Rosa apoiam-se num profundo Corpo de Baile (1956). Obra-prima, tra- traduz na passagem do tempo (da
conhecimento da musicalidade duzida para muitas línguas, é uma nar- infância para a vida adulta) e na
da fala sertaneja, numa melopeia rativa em que experiências de vida e mudança do espaço (do sertão para
cheia de cadências populares e de texto se fundem numa obra fasci- a cidade).
medievais. nante, permanentemente desafiadora. Publicada em 1956, a novela
• Erudita e popular, a linguagem de O romance se constrói como uma “Campo Geral” abria o livro Corpo de
Rosa funde narrativa e lírica, por longa narrativa oral, espécie de mo- Baile, que tem como última narrativa
meio de recursos poéticos: células nólogo infinito, posto em forma de a novela “Buriti”, na qual se narra a
rítmicas, aliterações, onomatopeias, diálogo. Riobaldo, um velho fazen- volta de Miguel (o Miguilim adulto),
rimas internas, ousadias mórficas, deiro, ex-jagunço, conta sua expe- formado em Veterinária, ao sertão.

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não brigarem, nunca mais...” “— Pai volta. santos, para ficar gostando dos paren-
TEXTO
Tio Terêz volta não”, “— Como é que você tes?” “— Quando a gente crescer, a gente
sabe, Dito?” “— Sei não. Eu sei. Miguilim, gosta de todos.” “Mas, Dito, quando eu
Miguilim e Dito dormiam no mesmo
você gosta de tio Terêz, mas eu não gosto. crescer, vai ter algum menino pequeno,
catre, perto da caminha de Tomezinho.
É pecado?” “— É, mas eu não sei. Eu assim como eu, que não vai gostar de
Drelina e Chica dormiam no quarto de Pai
também não gosto de Vovó Izidra. Dela, mim, e eu não vou poder saber?”
e Mãe.
faz tempo que eu não gosto. Você acha
“— Dito, eu fiz promessa, para Pai e Tio
que a gente devia de fazer promessa aos (“Campo Geral”)
Terêz voltarem quando passar a chuva, e

MÓDULO 56 Guimarães Rosa II


1. SAGARANA fio, que sintetiza os elementos cen- remelentos, cor de bismuto, com pál-
trais da obra — Minas Gerais, sertão, pebras rosadas, quase sempre oclu-
Em sua primeira versão, os con- bois, vaqueiros e jagunços, o bem e sas, em constante semissono; e na
tos de Sagarana foram escritos em o mal: linha, fatigada e respeitável — uma
1937 e submetidos a um concurso “Lá em cima daquela serra, horizontal perfeita, do começo da
literário (o Prêmio Graça Aranha, passa boi, passa boiada, testa à raiz da cauda em pêndulo
instituído pela Editora José Olympio) passa gente ruim e boa, amplo, para cá, para lá, tangendo as
em que não obtiveram premiação, passa a minha namorada.” moscas.
apesar de Graciliano Ramos, membro Na mocidade, muitas coisas lhe
do júri, ter advogado para o livro de Sagarana compõe-se de nove haviam acontecido. Fora comprado,
Guimarães Rosa (sob o pseudônimo contos: dado, trocado e revendido, vezes, por
1. “O Burrinho Pedrês” bons e maus preços. Em cima dele
de Viator) o primeiro lugar (ficou em
2. “A Volta do Marido Pródigo” morrera um tropeiro do Indaiá, balea-
segundo). Viator, em latim, significa
3. “Sarapalha” do pelas costas. Trouxera, um dia, do
“viandante”, pseudônimo que cabe
4. “Duelo” pasto — coisa muito rara para essa
com justeza ao homem que foi um
5. “Minha Gente” raça de cobras — uma jararacuçu,
viajante (tomada a palavra em sentido
6. “São Marcos” pendurada do focinho, como linda
próprio e figurado) do sertão e do
7. “Corpo Fechado” tromba negra com diagonais amare-
mundo.
8. “Conversa de Bois” las, da qual não morreu porque a lua
Guimarães Rosa deixou o livro
9. “A Hora e Vez de Augusto era boa e o benzedor acudiu pronto.
inédito e o foi depurando (“enxugan- Vinha-lhe de padrinho jogador de tru-
Matraga”
do”) até 1945, ano em que promoveu que a última intitulação, de baralho de
nele as profundas alterações da
❑ O Burrinho Pedrês manilha; mas, vida a fora, por anos e
versão que veio à luz em 1946 (defi- “Peça não profana, mas sugerida anos, outras tivera, sempre involunta-
nitiva), reduzindo-o das 500 páginas por um acontecimento real, passado riamente: Brinquinho, primeiro, ao ser
originais para cerca de 300. em minha terra, há muitos anos: o brinquedo de meninos; Rolete, em se-
O título do livro, Sagarana, reme- afogamento de um grupo de vaquei- guida, pois fora gordo, na adolescên-
te-nos a um dos processos de inven- ros, num córrego cheio.” cia; mais tarde, Chico-Chato, porque
ção de palavras mais característicos o sétimo dono, que tinha essa alcu-
(Guimarães Rosa)
de Rosa — o hibridismo. Saga é ra- nha, se esquecera, ao negociá-lo, de
dical de origem germânica e significa ensinar ao novo comprador o nome
• Fragmento
“canto heroico”, “lenda”; rana vem de do animal e, na região, em tais casos,
Era um burrinho pedrês, miúdo e
língua indígena e quer dizer “à ma- assim sucedia; e, ainda, Capricho,
resignado, vindo de Passa-Tempo,
neira de” ou “espécie de”. Conceição do Serro, ou não sei onde visto que o novo proprietário pensava
As histórias desembocam sempre no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, que Chico-Chato não fosse apelido
numa alegoria, e o desenrolar dos fa- e já fora tão bom, como outro não decente.
tos prende-se a um sentido ou “mo- existiu e nem pode haver igual. (...)
ral”, à maneira das fábulas. As Agora, porém, estava idoso, mui-
epígrafes que encabeçam cada conto to idoso. Tanto, que nem seria preciso • Resumo
condensam sugestivamente a narrati- abaixar-lhe a maxila teimosa, para es- Sete-de-Ouros, um burrinho já
va e são tomadas da tradição mineira, piar os cantos dos dentes. Era decré- idoso, é escolhido para servir de
dos provérbios e cantigas do sertão. pito mesmo a distância: no algodão montaria num transporte de gado. Um
O livro principia por uma epígra- bruto do pelo — sementinhas escuras dos vaqueiros, Silvino, está com ódio
fe, extraída de uma quadra de desa- em rama rala e encardida; nos olhos de Badu, que anda namorando a
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moça de quem Silvino gosta. Corre o — Bem. Já sabe, não é? Só ga- ❑ Sarapalha
boato, entre os vaqueiros, de que nha meio dia. “Desta, da história desta história,
Silvino pretende vingar-se do rival. De E seu Marra saca o lápis e a ca- pouco me lembro. No livro, será ela,
fato, Silvino atiça um touro e o faz derneta, molha a ponta do dedo na talvez, a de que menos gosto.”
investir contra Badu, que, porém, língua, molha a ponta do lápis tam-
consegue dominar o animal. Os
bém e toma nota, com a seriedade de (Guimarães Rosa)
quem assinasse uma sentença.
vaqueiros continuam murmurando que
(Lá além, Generoso cotuca Ter-
Silvino vai matar Badu. A caminho de • Fragmento
cino:
volta, Badu, bêbado, é o último a sair — Mulatinho descarado! Vai em Tapera de arraial. Ali, na beira do
do bar e tem de montar no burro. festa, dorme que-horas e, quando rio Pará, deixaram largado um povoa-
Anoitece e Silvino revela a seu irmão chega, ainda é todo enfeitado e do inteiro: casas, sobradinho, capela;
o plano de morte. Contudo, na tra- salamistrão!...) três vendinhas, o chalé e o cemitério;
vessia do Córrego da Fome, que pela — Que é que eu hei de fazer, seu e a rua, sozinha e comprida, que
cheia se transformara em rio perigoso, Marrinha... Amanheci com uma ne- agora nem mais é uma estrada, de
vaqueiros e cavalos se afogam. vralgia... Fiquei com cisma de apa- tanto que o mato a entupiu.
Salvam-se apenas Badu e Francolim, nhar friagem... Ao redor, bons pastos, boa gente,
um montado no burrinho e outro pen- — Hum... terra boa para o arroz. E o lugar já
durado a seu rabo. — Mas o senhor vai ver como eu esteve nos mapas, muito antes da
toco o meu serviço e ainda faço este
Sete-de-Ouros, burro velho e de- malária chegar.
povo trabalhar...
sacreditado, personifica a cautela, a Ela veio de longe, do São Fran-
prudência e a muito mineira noção de (...) cisco. Um dia, tomou caminho, entrou
que não vale a pena lutar contra a Lalino passa a mão, ajeitando a na boca aberta do Pará e pegou a
correnteza, se o que se pretende é a pastinha, e puxar mais para fora o subir. Cada ano avançava um punha-
travessia. lencinho do bolso. do de léguas, mais perto, mais perto,
pertinho, fazendo medo no povo,
❑ A Volta do Marido Pródigo • Resumo
porque era sezão da brava — da “tre-
“A menos ‘pensada’ das novelas Neste conto, cujo sobretítulo é
medeira que não desamontava” —
do Sagarana, a única que foi pensada “Traços Biográficos de Lalino
matando muita gente.
velozmente, na ponta do lápis. Tam- Salãthiel”, Lalino, um mulato muito
vivo, ajudante numa construção de — Talvez que até aqui ela não
bém, quase não foi manipulada, em chegue... Deus há de...
estrada, não gosta do trabalho.
1945.” Mas chegou; nem dilatou para vir.
Abandona sua mulher e o meio rural
(Guimarães Rosa) E foi um ano de tristezas.
para procurar na capital a felicidade
com que sonha: bonitas mulheres à (...)
• Fragmento vontade, iguais às que vira em revis-
Agora seu Marra fecha a cara: tas. Depois de algum tempo, cansa- • Resumo
Lalino Salãthiel vem bamboleando, se e fica com saudades: volta. Mas Primo Ribeiro e primo Argemiro,
sorridente. Blusa cáqui, com bolsi- sua mulher, Maria Rita, agora vive ambos sofrendo de malária, são os
nhos, lenço vermelho no pescoço, com outro. Lalino quer ganhar de únicos habitantes do vau da Sarapa-
chapelão, polainas e, no peito, um volta a consideração do povo e a lha, lugar dizimado pela epidemia e
distintivo, não se sabe bem de que. mulher. Oferece-se uma oportunida-
abandonado pelos demais morado-
Tira o chapelão: cabelos pretíssimos, de: cooperar como cabo eleitoral do
res. Sujeitos a periódicos ataques de
com as ondas refulgindo de brilhan- Major, com vistas a ganhar as elei-
febre, cada vez mais sérios, esperam
tina borora. ções próximas. Graças a uma série
a morte. Saudosamente, evocam a
Os colegas põem muito escárnio de artimanhas que, no primeiro mo-
lembrança da bela Luísa, mulher de
mento, parecem ser desastrosas para
nos sorrisos, mas Lalino dá o aspecto primo Ribeiro, a qual, ao manifestar-se
a política do Major, mas que na ver-
de quem estivesse recebendo uma a malária, tinha-o abandonado por
dade são intrigas muito hábeis contra
ovação (...) causa de outro. Argemiro, que deseja
o adversário político, Lalino garante o
Lalino nunca foi soldado, mas sucesso eleitoral do patrão. Recon- morrer de consciência tranquila, con-
sabe unir forte os calcanhares, ao cilia-se com Maria Rita, que nunca o fessa ao primo que a sua mudança
defrontar seu Marra. E assesta os deixara de amar. A narrativa apro- para a casa de Ribeiro foi motivada
olhinhos gateados nos olhos severos xima-se das novelas picarescas e é pela atração que sentia por Luísa.
do chefe. um retrato bem-humorado das oscila- Ribeiro reage amargamente e se mos-
— Bom dia, seu Marrinha! Como ções interesseiras das convicções tra implacável: manda Argemiro embo-
passou de ontem? políticas do interior. ra na hora em que começa a agonia.
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MÓDULO 57 Guimarães Rosa III

❑ Duelo • Resumo sombra da aroeirinha é ficar com o


“(...) a história foi meditada e ‘vi- O capiau (regionalismo mineiro corpo empipocado de coceira verme-
vida’ durante um mês, para ser escrita que significa “caipira”) Turíbio Todo lha; que, quando um cavalo começa
em uma semana, aproximadamente. testemunha a traição de sua mulher a parecer mais comprido, é que o
Contudo, também quase não sofreu com o ex-militar Cassiano Gomes, e arreio está saindo para trás, com o
retoques em 1945.” faz planos de vingança. Todavia, a respectivo cavaleiro; e, assim, longe
(Guimarães Rosa) bala destinada a matar Cassiano (de outras coisas. Mas muitas mais outras
costas) não acerta o adúltero, mas eu ainda tinha que aprender.
sim seu irmão, inocente. Cassiano Por aí, logo ao descer do trem, no
• Fragmento põe-se a perseguir Turíbio para vingar arraial, vi que me esquecera de prever
Turíbio Todo, nascido à beira do o assassínio do irmão. Turíbio refugia-se e incluir o encontro com Santana. E
Borrachudo, era seleiro de profissão, no sertão, acossado por Cassiano. tinha a obrigação de haver previsto, já
tinha pelos compridos nas narinas e Durante meses se trava uma luta que Santana — que era também
chorava sem fazer caretas; palavra aferrada, em que cada um é ao inspetor escolar, itinerante, com uma
por palavra: papudo, vagabundo, vin- mesmo tempo perseguidor e perse- lista de dez ou doze municípios a
gativo e mau. Mas, no começo desta guido. Algumas vezes os duelistas se percorrer — era o meu sempre-encon-
estória, ele estava com a razão. desencontram por um fio. Cassiano trável, o meu “até-as-pedras-se-encon-
(...) cai gravemente doente, mas, antes de tram” — espécie esta de pessoa que
morrer, ajuda com generosidade a um todos em sua vida têm.
Assim, pois: de qualquer manei- capiau que vive na miséria, chamado — Vai para a fazenda? Vou aos
ra, nesta história, pelo menos no co- Vinte-e-Um. Turíbio, ao saber da Tucanos. Vamos juntos, então.
meço — e o começo é tudo — Turíbio morte do adversário, fica contente e Santana jamais se espanta. Dez
Todo estava com a razão. põe-se a caminho de volta para sua anos de separação ter-lhe-iam pa-
Tinha sido para ele um dia de mulher. Vinte-e-Um, porém, o identifi- recido a mesma coisa que dez dias.
nhaca: saíra cedo para pescar, e faltara- ca e mata, cumprindo assim a vin- Não tem grandes expansões nem
lhe à beira do córrego o fumo-de-rolo, gança que prometera a Cassiano. abraços. Tem apenas duas bossas
tendo, em coice e queda, de sofrer frontais poderosas, olhos bons,
com os mosquitos; dera uma topada ❑ Minha Gente queixo forte e riso bom em boca má.
num toco, danificando os artelhos do “Por causa de uma gripe, foi es- E, no mais, para ele a vida é viva e
pé direito; perdera o anzol grande, crita molemente, com uma pachorra e com ele amasiada.
engastalhado na coivara; e, voltando um descansado de espírito, que o (...)
para casa, vinha desconsolado, autor não poderia ter, ao escrever as
trazendo apenas dois timburés no demais.” • Resumo
cambão. Claro que tudo isso, (Guimarães Rosa) O conto serve de pretexto para
sobrevindo assim em série, estava a a documentação dos costumes e
exigir desgraça maior, que não faltou. • Fragmento dos infortúnios da vida da roça.
Mas, por essa altura, Turíbio Todo Quando vim, nessa viagem, ficar Estrutura-se como uma espécie de
teria direito de queixar-se tão só da uns tempos na fazenda do meu tio paródia, meio sentimental e meio irônica,
sua falta de saber-viver, porque Emílio, não era a primeira vez. Já das histórias de amor com final feliz.
avisara à mulher que não viria dormir sabia que das moitas de beira de O protagonista-narrador, um mo-
em casa, tencionando chegar até ao estrada trafegam para a roupa da ço, está de visita à fazenda do tio, em-
pesqueiro das Quatorze-Cruzes e gente umas bolas de centenas de penhado em ganhar as eleições
pernoitar em casa do primo Lucrécio, carrapatinhos, de dispersão rápida, locais. O moço se apaixona por Maria
no Deca-mão. Mudara de ideia, sem picadas milmalditas e difícil catação; Irma, sua prima, e lhe faz uma decla-
contra-aviso à esposa; bem feito!: que a fruta mal madura da cagaiteira, ração, à qual ela não corresponde.
veio encontrá-la em pleno (com per- comida com sol quente, tonteia como Um dia, ela recebe a visita de Ramiro,
dão da palavra, mas é verídica a cachaça; que não valia a pena pedir noivo de outra moça, segundo ela diz,
narrativa) em pleno adultério, no mais e nem querer tomar beijos às primas; e o moço fica com ciúmes. Para atrair
doce, dado e descuidoso dos idílios que uma cilha bem apertada poupa o amor de Maria Irma, ele finge
fraudulentos. dissabor na caminhada; que parar à namorar uma moça da fazenda

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vizinha. Porém, o plano falha — tendo -feira da Paixão, que garantia invulne- nhecido fazendo quadrinhas popula-
como efeito secundário, não rabilidade a picadas de ofídios: mes- res e ele, José, usando nomes de reis
calculado, a vitória do tio nas eleições mo de uma cascavel em jejum, babilônicos como poemas.
— e o moço deixa a fazenda. Na visita pisada na ladeira da antecauda, ou
seguinte, Maria Irma apresenta-lhe de uma jararaca-papuda, a correr ❑ Corpo Fechado
Armanda. É amor à primeira vista; ele mato em caça urgente. Dou de sério “Talvez seja a minha predileta.
se casa com a moça, e Maria Irma, que não mandara confeccionar com Manuel Fulô foi o personagem que
por sua vez, se casa com Ramiro o papelucho o escapulário em baeta mais conviveu ‘humanamente’ comigo,
Gouveia, “dos Gouveias de Brejaúba, e cheguei a desconfiar de que ele
vermelha, porque isso seria humilhan-
no Todo-Fim-É-Bom”. pudesse ter uma qualquer espécie de
te; usava-o dobrado, na carteira. Sem
existência. Assim, viveu ele para mim
ele, porém, não me aventuraria jamais
❑ São Marcos umas 3 ou 4 histórias, que não aprovei-
sob os cipós ou entre as moitas. E só
“Demorada para escrever, pois tei no papel, porque não tinham valor
exigia grandes esforços de memória, hoje é que realizo que eu era assim o de parábolas, não ‘transcendiam’.”
para a reconstituição de paisagens já pior-de-todos, mesmo do que o
(Guimarães Rosa)
muito afundadas. Foi a peça mais Saturnino Pingapinga, capiau que —
trabalhada do livro.” a história é antiga — errou de porta,
dormiu com uma mulher que não era • Fragmento
(Guimarães Rosa)
a sua e se curou de um mal-de-en- José Boi caiu de um barranco de
vinte metros; ficou com a cabeleira
gasgo, trazendo a receita médica no
• Fragmento enterrada no chão e quebrou o pes-
bolso, só porque não tinha dinheiro
Naquele tempo eu morava no coço. Mas, meio minuto antes,
para mandar aviar.
Calango-Frito e não acreditava em estava completamente bêbado e
Mas, feiticeiros, não. também no apogeu da carreira: era o
feiticeiros.
(...) “espanta-praças”, porque tinha
E o contrassenso mais avultava,
porque, já então — e excluída quanta escaramuçado, uma vez, um cabo e
• Resumo dois soldados, que não puderam
coisa-e-sousa de nós todos lá, e outras
Por ter ridicularizado o negro reagir, por serem apenas três. —
cismas corriqueiras tais: sal derramado; João Mangolô, José (Izé), médico Você o conheceu, Manuel Fulô?
padre viajando com a gente no trem; novo, recém-chegado no Calango- — Mas muito!... Bom homem...
não falar em raio: quando muito, e se o Frito, o protagonista, torna-se alvo de Muito amigo meu. Só que ele andava
tempo está bom, “faísca”; nem dizer uma bruxaria. Mangolô constrói um sempre coçando a cabeça, e eu
lepra; só o “mal”; passo de entrada com boneco-miniatura do inimigo, colo- tenho um medo danado de piolho...
o pé esquerdo; ave do pescoço cando-lhe uma venda em seus olhos, — Podia ser sinal de indecisão...
pelado; risada renga de suindara; o que faz José ficar cego, perdendo- — Eu acompanhei até o enterro.
cachorro, bode e galo, pretos; e, no se no meio do mato. Para conseguir Nunca vi defunto tão esticado de
principal, mulher feiosa, encontro sobre achar o caminho de volta, mesmo comprido... Caixão especial no ta-
todos fatídico; — porque, já então, sem enxergar, ele reza a perigosa manho: acho que levou mais de peça
como ia dizendo, eu poderia confessar, oração de São Marcos. e meia de galão...
num recenseio aproximado: doze tabus Com o poder dado pela oração, — E quem tomou o lugar dele?
de não uso próprio; oito regrinhas orto- José, mesmo cego, encontra a casa — Lugar? O sujeito não tinha
doxas preventivas; vinte péssimos de João Mangolô, ataca-o e o obriga cobre nem pra um bom animal de
presságios; dezesseis casos de batida a desfazer a feitiçaria. A cegueira de sela... O que ganhava ia na pinga...
José (Izé) é o pretexto para que o Mão aberta...
obrigatória na madeira; dez outros
autor faça anotar outros sentidos, — Mas, quem ficou sendo o va-
exigindo a figa digital napolitana, mas
outras potencialidades do ser, que lentão, depois que ele morreu?
da legítima, ocultando bem a cabeça
são, a seu modo, “a hora e vez” do — Ah, isso teve muitos: o Desi-
do polegar; e cinco ou seis indicações
narrador, a sua “travessia” no mundo dério...
de ritual mais complicado; total: setenta do mistério e do encantamento. — Cuéra?
e dois — noves fora, nada. Uma outra história, dentro desta, — Cabaça... Só que era bruto
Além do falado, trazia comigo constitui um pequeno episódio no como ele só, e os outros tinham medo
uma fórmula gráfica; treze consoan- qual José fala de um bambual onde dele. Cavalo coiceiro... Comigo nunca
tes alternadas com treze pontos, ele e um desconhecido (Quem-Será) se engraçou!
traslado feito em meia-noite de sexta- travam um duelo poético; o desco- — Como acabou?

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— Acabou em casa de grades. consegue emprestada sua antiga — Ora, ora!... Esses é que são os
Foi romper aleluia na cidade, e os mulinha Beija-Fulô, para ostentar, à mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até
soldados abotoaram o filho da mãe cavaleiro, sua nova condição de posso contar um caso acontecido
dele... Não voltou aqui, nunca mais. valentão de Laginha. que se deu.
(...) — Só se eu tiver licença de re-
— Agora, o valentão é o Targino... ❑ Conversa de Bois
contar diferente, enfeitado e acres-
— Nem fala, seu doutor. Esse é “Aqui, houve fenômeno interes-
centando ponto e pouco...
ruim mesmo inteirado... Não respeita sante, o único caso, neste livro, de
(...)
nem a honra das famílias! É um mediunismo puro. Eu planejara escre-
ver um conto de carro-de-bois com o
flagelo...
carro, os bois, o guia e o carreiro. • Resumo
(...)
Penosamente, urdi o enredo, e, um O narrador da novela ouviu a tra-
sábado, fui dormir, contente, disposto gédia, que vai contar ao leitor, de
• Resumo
a pôr em caderno, no domingo, a his- Manuel Timborna, que a ouviu da
O narrador, médico em Laginha,
tória (n. 1). Mas, no domingo, caiu-me irara Risoleta, testemunha do acon-
vilarejo do interior, é convidado por
do ou no crânio, prontinha, espécie tecido.
Manuel Fulô para ser padrinho de
de Minerva, outra história (n.° 2) — Pelo sertão anda um carro de
casamento. Manuel detesta qualquer também com carro, bois, carreiro e
tipo de trabalho e, enquanto bebem bois: na frente, Tiãozinho, o menino
guia — totalmente diferente da da
cerveja, divertem-se, ele contando e o guia; logo atrás as quatro juntas, com
véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo,
doutor ouvindo as histórias e os casos: oito bois que puxam a carroça: Bus-
e me esqueci da anterior. Em 1945,
do rato que tinha em casa enjaulado e capé e Namorado, Capitão e Braba-
sofreu grandes retoques, mas nada
que estava, por artimanha sua, gato, Dançador e Brilhante, Realejo e
recebeu da versão pré-histórica, que
criando amizade a um gato rajado; fora definitivamente sacrificada.” Canindé; em cima do carro vai Age-
dos valentões do lugar — José Boi, nor Soronho, que maltrata Tiãozinho e
Desidério, Miligido, Dêjo (Adejalma) e (Guimarães Rosa) intenta tornar-se amante da mãe dele.
Targino, o mais recente, e que teve a Carregam uma carga de rapadura e,
insolência de reunir seu bando e • Fragmento sobre ela, mal-acomodado e sacole-
comer carne com cachaça em frente Que já houve um tempo em que jando, o caixão com um defunto, o pai
da igreja, numa Sexta-Feira da Paixão; eles conversavam, entre si e com os de Tiãozinho, ex-guia dos bois do
dos ciganos que ele, Manuel Fulô, homens, é certo e indiscutível, pois Agenor Soronho.
teria trapaceado na venda de cavalos; que bem comprovado nos livros das Os maus-tratos de Agenor para
de sua rivalidade com Antonico das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, com o menino guia vão aumentando,
Pedras-Águas, o feiticeiro. Manuel agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e até que os bois passam a intervir:
possui uma mula, Beija-Fulô, e em toda a parte, poderão os bichos põem-se a conversar entre si e dão-
Antonico é dono de uma bela sela falar e serem entendidos, por você, se conta da maldade de Agenor e do
mexicana; cada um dos dois gostaria por mim, por todo o mundo, por sofrimento de Tiãozinho. No final, ele
de adquirir o bem do outro. qualquer um filho de Deus?! e os bois, aproveitando-se do fato de
Aparece então Targino, o valentão — Falam, sim senhor, falam!... — Agenor estar dormindo perto da roda
do lugar, e anuncia, cinicamente, que afirma o Manuel Timborna, das Portei-
do carro, atropelam-no, matando-o.
vai passar a noite, antes do casa- rinhas, — filho do Timborna velho,
Retomando, sob outro prisma, o
mento, com a noiva de Manuel Fulô. pegador de passarinhos, e pai dessa
conto inicial “O Burrinho Pedrês”, este
Ele fica desesperado; ninguém pode infinidade de Timborninhas barrigu-
“Conversa de Bois” é uma alegoria
ajudá-lo, pois Targino domina o luga- dos, que arrastam calças compridas
sobre a justiça dos animais e a cruel-
rejo. Aparece então o feiticeiro Anto- e simulam todos o mesmo tamanho, a
dade dos homens.
nico das Pedras-Águas e propõe um mesma idade e o mesmo bom-pa-
trato a Manuel Fulô: “vai fechar-lhe o recer; — Manuel Timborna, que, em
❑ A Hora e Vez de
corpo”; mas exige em pagamento a vez de caçar serviço para fazer, vive
Augusto Matraga
mula Beija-Fulô, maior orgulho e falando invenções só lá dele mesmo,
“História mais séria, de certo
paixão de Manuel. O trato é aceito. coisas que as outras pessoas não
modo síntese e chave de todas as
De corpo fechado, Manuel Fulô sabem e nem querem escutar.
outras (...). Quanto à forma, repre-
enfrenta o bandido Targino e, para — Pode que seja, Timborna. Isso
senta para mim vitória íntima, pois,
espanto de todos, mata-o com uma não é de hoje: ... “Visa sub obscurum
desde o começo do livro, o seu estilo
faquinha do tamanho de um canivete. noctis pecudesque locutae. Infan-
era o que eu procurava descobrir.”
O casamento com a das Dor realiza-se dum!...” Mas, e os bois? Os bois
sem problemas e de vez em quando também?... (Guimarães Rosa)

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• Fragmento Mas, nisso, puxaram para trás a contudo, encontrado por um casal de
Matraga não é Matraga, não é nada. outra — a Angélica preta se rindo, negros velhos, a mãe Quitéria e o pai
Matraga é Esteves. Augusto Esteves, senvergonha e dengosa — que se Serapião, que tratam de Nhô
filho do Coronel Afonsão Esteves, das soverteu na montoeira, de braço em Augusto, que sara, mas fica com
Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou braço, de rolo em rolo, pegada, ma- sequelas deformantes.
Nhô Augusto — o homem — nessa nuseada, beliscada e cacarejante: Começa então uma nova vida, no
noitinha de novena, num leilão de — Virgem Maria Puríssima! Ui, povoado do Trombador, para onde
atrás de igreja, no arraial da Virgem pessoal! levou os pretos, seus protetores.
Nossa Senhora das Dores do Córrego E só então o Tião leiloeiro achou Regenera-se e, esperando obter o
do Murici.(...) coragem para se impor: céu, leva uma vida de trabalho duro,
Procissão entrou, reza acabou. E — Respeito, gente, que o leilão é penitência e reza. Arrependido de
o leilão andou depressa e se extin- de santo!... suas maldades, ajuda a todos e reza
guiu, sem graça, porque a gente — Bau-bau! (...) com devoção: quer ir para o céu,
direita foi saindo embora, quase toda “nem que seja a porrete”, e sonha
de uma vez. • Resumo com um “Deus valentão”.
Mas o leiloeiro ficara na barraca, Narrado na terceira pessoa, o Passados seis anos, tem notícias
comendo amêndoas de cartucho e conto enfatiza duas constantes da de sua ex-família, através do Tião da
pigarreando de rouco, bloqueado por vida do sertão: a violência e o misti- Thereza: a esposa, Dona Dionóra,
uma multidão encachaçada de fim de cismo, na interminável luta do bem e vive feliz com Ovídio, e vai casar-se
festa. do mal. com ele; Mimita, sua filha, foi enga-
E, na primeira fila, apertadas con- Augusto Esteves, filho do nada por um cometa (espécie de
tra o balcãozinho, bem iluminadas Coronel Afonsão Esteves, das caixeiro-viajante) e caiu na perdição.
pelas candeias de meia-laranja, as Pindaíbas e do Saco-da-Embira, Matraga sente saudades, sofre, mas
duas mulheres-àtoa estavam achan- conhecido como Nhô Augusto e resigna-se.
do em tudo um espírito enor me, também como Augusto Matraga, é o Certo dia, aparece o Joãozinho
porque eram só duas e pois muito maior valentão do lugar, briga com Bem-Bem, jagunço de larga fama,
disputadas, todo-o-mundo com elas todo mundo e maltrata por pura acompanhado de seus capangas,
querendo ficar. perversidade. Debochado, tira as Flosino Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo,
(...) mulheres e namoradas dos outros. Zeferino, Juruminho e Epifânio.
— Quem vai arrematar a Sarie- Não se preocupa com sua mulher, Matraga hospeda-os com grande
ma? Anda, Tião! Bota a Sariema no Dona Dionóra, nem com sua filha, dedicação e admira as armas e o
leilão!... Mimita, nem com sua fazenda, que bando de Joãozinho Bem-Bem. Mas
— Bota no leilão! Bota no leilão... começa a se arruinar. recusa-se a acompanhar o bando,
(...) Já em descrédito econômico e mesmo convidado pelo chefe, e não
E, aí, de repente, houve um des- político, sobrevém o castigo: sua mu- aceita qualquer ajuda dos jagunços.
locamento de gentes, e nhô Augusto, lher, Dona Dionóra, foge com Ovídio Quer mesmo ir para o céu.
alteado, peito largo, vestido de luto, Moura levando a filhinha, e seus Totalmente recuperado, Matraga
pisando pé dos outros e com os bate-paus (capangas), malpagos, despede-se dos velhinhos e parte,
braços em tenso, angulando os coto- põem-se a serviço do seu pior sem destino, num jumento. Chega ao
velos; varou a frente da massa, se inimigo; o Major Consilva Quim Reca- Arraial do Rala-Coco, onde reencon-
encarou com a Sariema e pôs-lhe o deiro foi quem levou a notícia da tra Joãozinho Bem-Bem e seu bando,
dedo no queixo. Depois, com voz de defecção dos capangas. Nhô prestes a executar uma cruel vingan-
meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: Augusto resolve ter com eles, antes ça contra a família de um assassino
— Cinquenta mil-réis!... de matar Dionóra e Ovídio, mas no que fugira. Augusto Matraga
Ficou de mãos na cintura, sem caminho é atacado, numa tocaia, por intervém em nome da justiça, opõe-
dar rosto ao povo, mas pausando seus inimigos, que o espancam e o se ao chefe do bando, liquida diver-
para os aplausos. marcam com ferro de gado em sos capangas, tomado de verdadeiro
— Nhô Augusto! Nhô Augusto! brasa. Quase inconsciente, no mo- furor. Bate-se em duelo singular com
E insistiu fala mais forte: mento em que vai ser assassinado, Joãozinho Bem-Bem. Ambos morrem
— Cinquenta mil-réis, já disse! reúne as últimas forças e se atira no –; Joãozinho primeiro. Nessa hora,
Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe despenhadeiro do rancho do Bar- Augusto Matraga é identificado por
duas — dou-lhe três!... ranco. Tomam-no por morto. É, seus antigos conhecidos.

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MÓDULO 58 Clarice Lispector

1. CLARICE LISPECTOR • Crônica “Uma vida completa pode acabar


(UCRÂNIA, 1925 – De Corpo Inteiro (1975) numa identificação tão absoluta com
Rio de Janeiro, 1977) Visão do Esplendor (1975) o não-eu que não haverá mais um eu
para morrer” (Bernard Berenson, cita-
❑ Vida • Literatura infantil do em epígrafe por Clarice em A
“Recém-nascida, veio para o O Mistério do Coelho Pensante Paixão segundo G.H.).
Brasil com os pais, que se estabele- (1967)
ceram no Recife. Em 1934 a família A Mulher que Matou os Peixes • A obra toda de Clarice é um
transferiu-se para o Rio de Janeiro (1969) romance de educação senti-
onde Clarice fez o curso ginasial e os A Vida Íntima de Laura (1974) mental. Até a Paixão segundo G.H.,
preparatórios. Adolescente, lê Gracili- Quase de Verdade (1978) Clarice faz a prospecção do mundo
ano, Herman Hesse, Julien Green. Em interior, como quem macera a afeti-
1943, aluna da Faculdade de Direito, vidade e afia a atenção, para colher
• Editadas postumamente amostras, numa tentativa de absorver
escreve o seu primeiro romance,
Perto do Coração Selvagem, que é Para não Esquecer (1978) o mundo. A partir desse romance não
recusado pela editora José Olympio. Um Sopro de Vida (1978) há mais os recursos habituais do
Publica-o no ano seguinte, pela A Bela e a Fera (1979) romance psicológico. Não há etapas
editora A Noite e recebe o Prêmio A Descoberta do Mundo (1984) de um drama. Cada pensamento
Graça Aranha. Ainda em 1944 vai envolve todo o drama: logo, não há
com o marido para Nápoles onde tra- ❑ Características gerais um começo definido no tempo, nem
balha num hospital da Força Expe- • Já no romance Perto do Cora- um epílogo. Há um contínuo denso na
dicionária Brasileira. Voltando para o ção Selvagem há aproximação com experiência existencial e o reconhe-
Brasil, escreve O Lustre, que sai em cimento de uma verdade que despoja
os ficcionistas de “vanguarda” da
1946. Depois de longas estadas na o eu das ilusões cotidianas e o entre-
época: James Joyce, Vir ginia
Suíça (Berna) e nos Estados Unidos, ga a um novo sentido da realidade:
Woolf e William Faulkner, pelo
a escritora fixa-se no Rio, onde viveu uso intensivo da metáfora insó-
até a morte.” lita, entrega ao fluxo da cons- “Perdi alguma coisa que me era
ciência e ruptura com o enredo essencial, que já não me é mais. Não
(Alfredo Bosi, História Concisa da factual, atitudes que preservará até me é necessária, assim como se eu
Literatura Brasileira) tivesse perdido uma terceira perna
a última obra.
que até então me impossibilitava de
❑ Obras • Caracteriza-se pela exacerba-
andar, mas que fazia de mim um tripé
• Romance estável”.
ção do momento interior, de tal modo
Perto do Coração Selvagem (A Paixão segundo G.H.)
intensa que, a certa altura de seu
(1944)
itinerário, a própria subjetividade
O Lustre (1946) A palavra neutra de Clarice
entra em crise. O espírito, perdido no
A Cidade Sitiada (1949) Lispector articula essa experiência
labirinto da memória e da autoanálise,
A Maçã no Escuro (1961) metafísica radical, valendo-se do ver-
reclama um novo equilíbrio, trans-
A Paixão segundo G.H. (1961) bo “ser” e de construções sintáticas
cendendo do plano do psicológico anômalas que obrigam o leitor a re-
Uma Aprendizagem ou O Livro
para o metafísico. A própria narrado- pensar as relações convencionais
dos Prazeres (1969)
ra revela a consciência desse salto, praticadas pela sua própria lingua-
Água Viva (1973)
quando diz: gem:
A Hora da Estrela (1977)

“Além do mais a ‘psicologia’ nun- “Eu estava agora tão maior que
• Conto
Alguns Contos (1952) ca me interessou. O olhar psicológico não me via mais. Tão grande como
Laços de Família (1960) me impacientava e me impacienta, é uma paisagem ao longe (...) como
A Legião Estrangeira (1964) um instrumento que só transpassa. poderei dizer senão timidamente
Felicidade Clandestina (1971) Acho que desde a adolescência eu assim: a vida se me é. A vida se me é,
A Imitação da Rosa (1973) havia saído do estágio do psicoló- e eu não entendo o que digo. Então
A Via-Crúcis do Corpo (1974) gico” (A Paixão segundo G.H.). adoro”.
Onde Estivestes de Noite (1974) Ou ainda: (A Paixão segundo G.H.)
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❑ Laços de Família mais feliz —, G. H. deve passar pela Trabalhando como datilógrafa em um
São 13 contos centrados, temati- experiência de provar o gosto do in- pequeno escritório, só não é despedi-
camente, no processo de aprisiona- seto. Através da “provação” (que é a da pelo patrão por piedade, não obs-
mento dos indivíduos pelos “laços de sua náusea física e existencial), G.H. tante ser ameaçada constantemente.
família”, pela vida doméstica e seu estaria fazendo uma reviravolta em A única relação de Macabéa com o
cotidiano. As formas de vida conven- seu mundo condicionado e asséptico, mundo era por meio do rádio-relógio,
cionais e estereotipadas vão repetin- alienado e imune. que lhe dizia as horas precisamente e
do-se de geração em geração, lhe dava informações que ela deco-
submetendo as consciências e as dificava vagamente.
• A náusea, aqui tomada como
vontades. A dissecação da classe Nessa situação de marginalidade,
forma emocional violenta da
média carioca resulta numa visão de- Macabéa conhece Olímpico de
angústia, é o momento que ante-
sencantada e descrente dos liames Jesus, nordestino como ela, mas com
cede a revelação, a epifania, e
familiares, dos “laços” de convenção pretensões de ascensão na vida. Os
resulta da dolorosa sensação da
e interesse que minam a precária dois passam a se encontrar e o rela-
fragilidade da condição humana.
união familiar. cionamento parece mais com o de
A paixão de G.H. pode ser bibli-
“Amor”, “Uma Galinha” e “Feliz dois animais do que com o de dois
camente interpretada como sofrimen-
Aniversário” são três contos dos mais seres humanos: o diálogo é precário,
to, aludindo à Paixão de Cristo,
conhecidos do livro. a ignorância diante do mundo é
narrada por Mateus, Marcos, Lucas e
❑ A Paixão segundo G.H. João.
sufocante. São dois párias que estão
É um mergulho no interior da per- juntos: ela, virgem, sonhadora, espe-
É comum a aproximação da obra
sonagem-narradora, e não há propria- rançosa nessa única e nova relação;
de Clarice à corrente filosófica exis-
mente história. G.H. busca, em si ele, ignorante, violento e com vontade
tencialista especialmente do exis-
mesma, pela introspecção radical, de ser alguém na vida.
tencialismo literário-filosófico de
sua identidade e as razões de viver, Glória, a colega de escritório de
Jean-Paul Sartre (1905-1981).
sentir e amar. A obra nem começa Macabéa, aparece e lhe rouba o pre-
• Segundo Afonso Romano de
nem termina: ela continua. tenso namorado. Olímpico vê em
Sant’Ana, os romances e contos de
A narradora e personagem do ro- Glória, a “carioca da gema”, a pos-
Clarice percorrem estas quatro eta-
mance está em seu apartamento sibilidade da tão sonhada ascensão
pas:
tomando café, como faz todos os social.
1) a personagem é disposta nu-
dias. Dirige-se ao quarto da emprega- Por fim, Macabéa, por indicação
ma determinada situação coti-
da, que acabara de deixar o em- da amiga Glória, procura uma carto-
diana;
prego. Lá vê subitamente uma barata mante, que, segundo a amiga, era
2) prepara-se um evento que é
saindo de um armário. Esse evento muito competente. A cartomante Car-
pressentido discretamente;
provoca-lhe uma náusea impressio- lota, depois de descrever a situação
3) ocorre o evento, que lhe “ilumi-
nante, mas, ao mesmo tempo, é mo- de quase indigência social em que
na” a vida;
tivador de uma longa e difícil Macabéa vivia, prevê-lhe um futuro
4) ocorre o desfecho, onde se
avaliação de sua própria existência, feliz: ao sair da consulta, ela encon-
considera a situação da vida da
traria um bonito homem, rico, prova-
sempre resguardada, sempre muito personagem, após o evento.
velmente estrangeiro, que lhe modifi-
acomodada. A visão da barata é o
caria a vida.
seu momento da iluminação, após ❑ A Hora da Estrela
De fato, as predições da carto-
o qual já não é a mesma, já não é a O enredo de A Hora da Estrela,
mante realizaram-se. Deslumbrada
criatura alienada que tomava café como o próprio narrador insiste, é
com seu futuro, Macabéa deixa a
distraidamente em seu apartamento. pobre e sem interesse. Na verdade,
casa da vidente em estado de êxtase,
Nesse momento, deflagra-se na esse tom de ironia e desprezo pela
e, ao atravessar a rua, é atropelada
narradora a consciência da solidão história de Macabéa só faz evidenciar
pelo “Mercedes amarelo”. Sozinha,
(tanto dela, quanto da barata). O nojo a situação dramática de exclusão
como sempre, ela é observada por
pelo inseto a desafia assustadora- social da personagem.
algumas pessoas e experimenta o
mente: é preciso que ela se aproxime Macabéa é a migrante nordesti-
único gosto de ser objeto da atenção
da barata, toque na barata e até (seria na, sem família, semialfabetizada, que
de alguém. Agonizando, em posição
possível?) prove o sabor da barata. divide o quarto em um cortiço na rua
fetal, vertendo sangue, Macabéa des-
Para regressar ao seu estado de um do Acre, perto do porto do Rio de
fruta de seu mais brilhante momento
ser primitivo selvagem — e por isso Janeiro. Ela dorme mal, é desleixada.
na vida, a sua hora da estrela.

66 –
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MÓDULO 59 João Cabral de Melo Neto


1. JOÃO CABRAL DE MELO a “Fábula de Anfion” e “Antiode” poemas comunicam-se por si mes-
NETO (Recife, PE, (1947) mos, presos a um rigoroso esquema-
1920 – Rio de Janeiro, 1999) O Cão sem Plumas (1950) tismo, e fundados em palavras com
Duas Águas (os anteriores e mais) sentido denotativo, palavras concretas,
❑ Vida Morte e Vida Severina, Paisagem tecidas em fios de tramas complicadas
João Cabral de Melo Neto passou com Figuras e Uma Faca só Lâ- e surpreendentes, como um tear, como
a infância em São Lourenço da Mata, mina (1956) “máquina do poema”.
interior de Pernambuco, em contato Quaderna (1960)
com os engenhos de açúcar, os Dois Parlamentos (1960) • Uma poética
canaviais e a literatura de cordel, que Terceira Feira (1961) (incluindo antirromântica
costumava ler para os empregados “Serial”) As imagens da realidade em João
dos engenhos da família. Aos dez A Educação pela Pedra (1966) Cabral são reduzidas à sua essência.
anos, muda-se para Recife, cursando Poesias Completas (1940-1965- São imagens descarnadas, que
o primário e o secundário no colégio 1968) deixam visíveis os seus “esqueletos”,
dos irmãos maristas. Trabalhou como Museu de Tudo (1975) isto é, as suas linhas estruturais bá-
auxiliar de escritório, vendedor de A Escola das Facas (1980) sicas. O poeta não está preocupado
apólices de seguro e foi campeão Auto do Frade (1984) com sua expressão individual; pre-
juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube. Agrestes (1985) tende, ao contrário, tornar o poema
Em 1945, vivendo no Rio de Janeiro, Crime na Calle Relator (1987) independente dessa visão individual.
ingressa na carreira diplomática, ser- Sevilha Andando (1990) O poema deve funcionar como forma
vindo em países da América do Sul, de comunicação por sua própria força
Europa e África. Em 1952, acusado interior, sem interferência do poeta.
Associado de início à Geração de
de subversão pelo Ministério das O trabalho poético de João Ca-
45, João Cabral trilhou, na verdade,
Relações Exteriores, é posto em “dis- bral, de fato, rompe com o mito da ins-
um caminho inteiramente próprio. Sua
ponibilidade inativa”, pelo então presi- piração do escritor, associado
obra, como ele mesmo sugeriu,
dente Getúlio Vargas, só retomando tradicionalmente à criação do poema.
divide-se em duas águas: de um la-
suas funções em 1954. Estreou na A poesia não está no sentimento do
do, a poesia-construção, voltada
literatura com o livro Pedra do Sono, poeta ou mesmo na beleza dos fatos
sobre si mesma, tematizando com fre-
mas é com O Engenheiro (1945) que a que se refere, mas na organização
quência a própria poesia; de outro, a
sua poesia toma um rumo definitivo, do texto, no rigor de sua construção.
poesia-participação, voltada para
marcado por uma postura
problemas sociais.
antirromântica, que privilegia o cere- • Uma educação pela pedra
bralismo, a precisão e a clareza, mais “Há em João Cabral uma verda-
❑ Características
do que a intuição ou inspiração: “Eu deira ‘didática da pedra’ como
• A arquitetura do poema
procuro uma poesia que fosse como processo teórico e prático de apreen-
Constitui, com Drummond e
uma cafeína. Uma poesia que fosse são da realidade. Essa ‘educação’
Murilo Mendes (poetas com os quais
um excitante, um estimulante, e não consiste num processo de ‘imi-
mantém afinidades, especialmente
um calmante. De forma que é daí que tação’ de objetos, pelo qual é pos-
nos primeiros livros), o grupo mais sível tratar da realidade através do
vem toda a minha imagística
denso e expressivo da moderna poe- poema, isto é, através de uma forma,
valorizando o áspero. (...) Eu não
sia da língua portuguesa. de uma linguagem que para sua
escrevo com algodão (...) Eu prefiro
Absorvendo a perspectiva da estruturação não despreza, antes
escrever com pedras.” (João Cabral,
pintura cubista de Picasso, deforma a acentua, a existência do objeto.”
Revista 34 Letras). Em 1969, é eleito
realidade aparente, para destacar as li- (João Alexandre Barbosa)
para a Academia Brasileira de Letras
nhas estruturais básicas. É comum in-
e, nos anos 90, é agraciado com o
vocar-se a influência do visualismo A pedra nos remete à aridez
“Neustadt International Prize”, que o
surrealista de Murilo Mendes. Talvez humana e geográfica do Nordeste, e
qualifica para o Nobel de Literatura.
seja melhor falarmos em confluência de é símbolo constante na obra do autor,
❑ Obras ideias, em comunhão em torno do ideal fazendo confluir a temática social (lin-
Pedra do Sono (1942) de construção rigorosa do poema. guagem objeto) com a reflexão sobre
O Engenheiro (1945) João Cabral é um poeta de pou- o fazer poético no próprio texto
Psicologia da Composição, com cas palavras e poucos assuntos. Seus artístico (metalinguagem).
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Sua reflexão poética, ao mesmo sificaram o antilirismo de O Engenhei- (A visita espera na sala;
tempo social e histórica, volta-se para ro e a investigação sobre a natureza a notícia, no telefone;
a espessura da paisagem humana do e eficácia da poesia. a morte cresce na hora;
Nordeste e de Sevilha, na Espanha, D) O Cão sem Plumas, O Rio e a primavera, além da janela.)
onde viveu muito tempo como diplo- Morte e Vida Severina compõem um
mata. ciclo voltado para a realidade nor-
Mulher sentada. Tranquila
destina e denúncia da miséria.
na sala, como se voasse.
• Uma poesia prosaica
Sua poesia não é melódica, mas
rítmica. João Cabral começou a TEXTOS (O Engenheiro)

escrever em verso livre, mas, a partir


de O Cão sem Plumas, adotou a I IV
métrica tradicional, dando preferência AUTOCRÍTICA
ao verso de oito e nove sílabas (octas- FUTEBOL BRASILEIRO
sílabo e eneassílabo) e à rima toante, Só duas coisas conseguiram EVOCADO NA EUROPA
cuja sonoridade, estranha à língua (des)feri-lo até a poesia:
portuguesa, aproxima a sua poesia o Pernambuco de onde veio A bola não é a inimiga
do ritmo da prosa: e o aonde foi, a Andaluzia. como o touro, numa corrida;
Você aqui reencontrará Um, o vacinou do falar rico
e embora seja um utensílio
as mesmas coisas e loisas e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
caseiro e que se usa sem risco,
que me fazem escrever desafio demente: em verso
não é o utensílio impessoal,
tanto e de tão poucas coisas: dar a ver Sertão e Sevilha.
sempre manso, de gesto usual:
o não verso de oito sílabas
é um utensílio semivivo,
(em linha vizinha à prosa) (A Escola das Facas)
de reações próprias como bicho,
que raro tem oito sílabas,
pois metrifica à sua volta; II
e que, como bicho, é mister
a perdida rima toante MENINO DE ENGENHO (mais que bicho, como mulher)
que apaga o verso e não soa, usar com malícia e atenção
que o faz andar pé no chão A cana cortada é uma foice. dando aos pés astúcias de mão.
pelos aceiros da prosa. Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice (Museu de Tudo)
(“A Augusto de Campos” (fragmento),
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Agrestes)
V
Menino, o gume de uma cana
❑ Obras comentadas cortou-me ao quase de cegar-me,
A) Pedra do Sono, livro inaugural, ADEMIR DA GUIA
e uma cicatriz, que não guardo,
oscila entre a técnica imagística do soube dentro de mim guardar-se.
surrealismo e o intelectualismo, o Ademir impõe com seu jogo
gosto da palavra em si, à maneira de A cicatriz não tenho mais; o ritmo do chumbo (e o peso),
Mallarmé. Há aproximações com a o inoculado, tenho ainda; da lesma, da câmara lenta,
poética de 1922, com a de Murilo nunca soube é se o inoculado do homem dentro do pesadelo.
Mendes (surrealismo construtivista) e (então) é vírus ou vacina.
com a de Drummond (estilística da
Ritmo líquido se infiltrando
repetição).
(A Escola das Facas) no adversário, grosso, de dentro,
B) O Engenheiro fixa um projeto
impondo-lhe o que ele deseja,
geométrico de construção do poema,
sob inspiração das artes plásticas III mandando nele, apodrecendo-o.
(Picasso, Miró, Juan Gris, Mondrian).
Há três constantes: a limpidez da A MULHER SENTADA Ritmo morno, de andar na areia,
linguagem, a disposição gráfica das de água doente de alagados,
estrofes e a poesia sobre poesia Mulher. Mulher e pombos. entorpecendo e então atando
(metapoesia). Mulher entre sonhos. o mais irrequieto adversário.
C) Psicologia da Composição, Fá- Nuvens nos seus olhos?
bula de Anfion e “Antiode” inten- Nuvens sobre seus cabelos. (Museu de Tudo)

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VI mento, o da “vida”, o autor não colo- — Isso aqui de nada adianta,


ca a euforia da ressurreição da vida pouco existe o que lavrar;
TECENDO A MANHÃ dos autos tradicionais: ao contrário, o mas diga-me, retirante,
otimismo que aí ocorre é de confiança que mais fazia por lá?
1
no homem, em sua capacidade de — Também lá na minha terra
Um galo sozinho não tece uma manhã:
resolver os problemas sociais.
ele precisará sempre de outros galos. de terra mesmo pouco há;
Severino transforma-se em adje-
De um que apanhe esse grito que ele mas até a calva da pedra
tivo, referindo-se à vida severina, à
e o lance a outro; de um outro galo sinto-me capaz de arar.
condição severina, à miséria.
que apanhe o grito que um galo antes — Também de pouco adianta,
O retirante vem do sertão para o
e o lance a outro; e de outros galos nem pedra há aqui que amassar;
litoral, tendo como guia a trilha do rio
que com muitos outros galos se cruzem
Capibaribe. Quando atinge Recife, diga-me ainda, compadre,
os fios de sol de seus gritos de galo,
depois de encontrar muitas mortes que mais fazia por lá?
para que a manhã, desde uma teia tênue,
pelo caminho, desengana-se com o (...)
se vá tecendo, entre todos os galos.
sonho da cidade grande e do mar. — Agora se me permite
2 Resolve então “saltar fora da
minha vez de perguntar:
E se encorpando em tela, entre todos, ponte e da vida”, atirando-se no rio
como a senhora, comadre,
se erguendo tenda, onde entrem todos, Capibaribe. Enquanto se prepara
pode manter o seu lar?
se entretendendo para todos, no toldo para morrer e conversa com seu José,
uma mulher anuncia que o filho deste — Vou explicar rapidamente,
(a manhã) que plana livre de armação.
“saltou dentro da vida” logo compreenderá:
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. (=nasceu). como aqui a morte é tanta,
Severino assiste ao auto de Natal, vivo de a morte ajudar.
(A Educação pela Pedra) encenação comemorativa do nasci- — E ainda se me permite
mento. Seu José, Mestre Carpina, de- que lhe volte a perguntar:
2. MORTE E VIDA SEVERINA move Severino da resolução de
é aqui uma profissão
“saltar fora da ponte e da vida”.
trabalho tão singular?
Com o poema dramático Morte e
— É, sim, uma profissão,
Vida Severina (Auto de Natal Pernam-
bucano), a poesia de João Cabral e a melhor de quantas há:
TEXTO
projetou-se nacionalmente, obtendo sou de toda a região
enorme popularidade. Em 1966, o es- rezadora titular.
petáculo, musicado por Chico Buar- Fragmento — E ainda se me permite
que de Holanda, percorreu várias mais outra vez indagar:
capitais brasileiras e europeias, ga- DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE é boa essa profissão
nhando inúmeros prêmios. em que a comadre ora está?
DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE
QUEM SE SABERÁ — De um raio de muitas léguas
❑ O enredo
vem gente aqui me chamar;
A linha narrativa de Morte e Vida
— Muito bom dia, senhora, a verdade é que não pude
Severina segue dois movimentos que
aparecem no título: “morte” e “vi- que nessa janela está; queixar-me ainda de azar.
da”. No primeiro, temos o trajeto de sabe dizer se é possível — E se pela última vez
Severino, personagem-protagonista, algum trabalho encontrar? me permite perguntar:
para Recife, em face da opressão — Trabalho aqui nunca falta não existe outro trabalho
econômico-social. O retirante nordes- a quem sabe trabalhar; para mim neste lugar?
tino caminha em direção ao mar e — Como aqui a morte é tanta,
o que fazia o compadre
atravessa regiões típicas da paisa- só é possível trabalhar
na sua terra de lá?
gem nordestina: o sertão, o agreste, a
— Pois fui sempre lavrador, nessas profissões que fazem
zona da mata, a cidade litorânea.
lavrador de terra má; da morte ofício ou bazar.
Severino tem a força coletiva de uma
personagem típica: representa o reti- não há espécie de terra (...)
rante nordestino. No segundo movi- que eu não possa cultivar. (Morte e Vida Severina)

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MÓDULO 60 Concretismo

1. A POESIA CONCRETA estrutura poética complexa em que o gem próxima do modelo discursivo e
branco da página tem função signifi- suas formas mantêm relações com
Por volta de 1950, surgiu em São cativa, estrutural: o sentido e o ritmo objetos exteriores ao poema. É a fase
Paulo um grupo de jovens poetas que do poema têm relação com a distri- chamada orgânica.
se mostravam empenhados em buição das palavras no espaço e com Numa segunda fase, que se
experiências que levassem avante o a variação dos corpos tipográficos inicia por volta de 1956, na altura da
espírito revolucionário dos modernis- (isto é, a forma das letras impressas). impor tante Exposição Nacional de
tas de 22, espírito este abandonado Pode-se dizer que a poesia con- Arte Concreta, os poemas apresen-
pelas tendências restauradoras surgi- creta se anunciou pela primeira vez tam uma estrutura mais rigorosa-
das com a “Geração de 45”. Esses na série de poemas chamada poeta- mente abstrata, chamada
poetas eram Décio Pignatari (1927), menos (1953), de Augusto de Cam- geométrica, na qual a organização
Haroldo de Campos (1929-2003) e pos. Os poemas de poetamenos, das palavras é controlada com maior
Augusto de Campos (1931). Influen- seguindo sugestões colhidas na rigor. O poema seguinte, “tensão”, de
ciados por realizações da literatura estrutura da música arrojadamente 1956, ainda de Augusto de Campos,
internacional do século XX (a poesia inovadora de Anton Webern (1883- é um dos primeiros exemplos dessa
de Ezra Pound e E.E. Cummings, a 1945), são como partituras espaciais “fase geométrica”:
prosa de James Joyce) e interes- coloridas: o uso de diferentes cores com can
sados no desenvolvimento que se (há poemas em que se usam até 6 som tem
notava em outras artes (sobretudo as cores) marca a diferença de vozes
tendências construtivistas na música que se cruzam e se imbricam, como
con ten tam
e nas artes plásticas), deram às suas numa peça musical moderna. O poe-
ma seguinte, “eis os amantes”, foi ori- tém são bem
experiências um sentido de vanguar-
da que os levou à formulação de uma ginalmente impresso em duas cores
nova forma de poesia: a poesia complementares (laranja e azul), cor- tom sem
concreta, na qual não se utiliza mais respondentes a duas vozes (mascu- bem som
o verso (a linha como unidade de lina e feminina) que se aglutinam e se
ritmo e sentido), mas sim palavras separam, em busca de uma equiva- Sobre esse texto, escreveu Harol-
distribuídas pelo branco da página lência física com a união dos amantes do de Campos que “sua estrutura
através de relações de som, forma “sem parentes senão os corpos”: gráfica é baseada em dois quadrados
(das letras, da escrita) e sentido. A virtuais, em cujo ponto de intersecção
eis
isso se chamou estrutura verbivo- está colocada, privilegiadamente, a
covisual: “verbal” pela presença da os palavra tensão. As palavras ou gru-
palavra como significação; “vocal” amantes sem parentes pos de palavras do poema têm, como
pela valorização estruturalmente rigo- senão norma, 6 letras dispostas em blocos
rosa do som da palavra; “visual” pela de 3. Esses trigramas, agrupados aos
os corpos
importância que ganha a forma visual pares, produzem uma sonoridade
irmãum gemeoutrem
das letras contra o branco do papel. monótona, quase-chinesa, em corres-
Essa valorização do branco da cimaeu baixela pondência com a regularidade formal
página através da distribuição rítmica ecoraçambos da estrutura gráfica. Nos dois extre-
das palavras no espaço é inaugura- duplamplinfantuno(s)empre mos encontramos as palavras com
da, modernamente, pelo grande semen(t)emventre
som e sem som. Entre tais polos dialé-
mestre da poesia simbolista francesa, ticos (som e silêncio) e a tensão cen-
estesse aquelele
Stéphane Mallarmé, poeta a quem os tral, articula-se a área semântica do
concretistas atribuem enorme impor- inhumenoutro poema, que pode ser lido a partir de
tância. De fato, Mallarmé, em seu qualquer palavra ou grupo de pala-
poema “Um Lance de Dados”, de Numa primeira fase, os poemas vras. ‘Poesia concreta: tensão de pa-
1897, construiu pela primeira vez uma concretos ainda apresentam lingua- lavras-coisas no espaço-tempo’.”

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❑ O Grupo Noigandres foi o primeiro movimento


Augusto de Campos, seu irmão literário de trânsito internacional
Haroldo de Campos e Décio Pignata- nascido no Brasil. Por outro
ri, na fase da poesia concreta, forma- lado, a importância que a
ram o Grupo Noigandres, ao qual poesia concreta vem tendo
vieram a se juntar dois outros poetas para os mais criativos poetas
importantes no movimento: José Lino brasileiros de hoje é ainda viva
Grünewald e Ronaldo Azeredo. e decisiva.
Outros poetas jovens foram influen- As realizações poéticas de
ciados pelo movimento ou a ele se Augusto de Campos, Décio
ligaram, como foi o caso de Ferreira Pignatari e Haroldo de Campos
Gullar, que posterior mente aban- não se detiveram na poesia
donou a poesia concreta e se ligou concreta, mas dela
ao movimento popularesco de poesia caminharam para experiências
de participação social que se desen- sempre ousadas, seja de
volveu na década de 1960. Poetas da invenção de novas linguagens,
geração antiga também foram seja de reatamento com a
influenciados pelas inovações da tradição do discurso poético,
poesia concreta, como foi o caso de através de poemas originais ou Foto do poeta e ensaísta Haroldo de Campos.
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de traduções de grandes
de Andrade e Murilo Mendes, entre obras da poesia do Ocidente e do poesia do Brasil, e não apenas de
outros. A repercussão internacional Oriente, escritas nas mais diversas nossa época. Grandes cultores do
do movimento foi bastante grande, línguas e sempre transpostas criati- verso na fase inicial, “pré-concreta”,
tanto nos Estados Unidos quanto na vamente para o por tuguês. Hoje, a de suas obras conseguem ainda tirar
Europa e na Ásia (Japão). Por isso, obra desses três poetas é parte do verso efeitos surpreendentes e
pode-se dizer que a poesia concreta central do que há de mais vivo na renovadores.

Fotos das capas de Viva Vaia, de Augusto de Campos, Educação dos Cinco Sentidos, de Haroldo de Campos e Poesia Pois é
Poesia, de Décio Pignatari.

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