MALEVAL, Maria Do Amparo. Poesia Medieval No Brasil. 2002

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MALEVAL, Maria do Amparo. Poesia medieval no Brasil.

Rio de
Janeiro: gora da Ilha. 2002. p. 13-18.

1.

Do Trovadorismo medieval galaico-portugus

Iniciaremos lembrando que por Trovadorismo nomeada, na Idade


Mdia central, a produo dos fidalgos trovadores, regida por normas rgidas
coligidas nas Artes de trovar, em tudo diversa do que hoje se entende por
trova, composio de cunho popular, de versos curtos, geralmente
redondilhos. Essa produo medieva, feita para ser musicada e cantada, ou at
danada, denominou-se cans nos territrios localizados ao sul da hoje Frana
e cantigas na Pennsula Ibrica. Dela divergiam tambm, em fins da Idade
Mdia, por volta do sculo XV, as trovas e cantigas que foram
documentadas nos cancioneiros ibricos tardo- medievos, como o Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende, publicado em Portugal em 1516. Tais
composies apareciam ao lado dos vilancetes, cantigas de vilo (de origem
no fidalga), embora tambm praticados por nobres, por ser a escrita uma
prerrogativa das classes altas.
O termo trovar derivou do provenal trobar, compor versos,
correspondendo ao francs trouver, ao italiano trovare, ao catalo trobar. Sua
origem procede, ao que tudo indica, do latim vulgar tropare, deduzido de
contropare, com a acepo de falar figuradamente, fazer comparaes,
derivado, por sua vez, do greco-latino trorus, figura de retrica, donde
inventar e, da, falar (MACHADO, 1989, v. 5, p. 346).
A escola trovadoresca ibrica foi certamente favorecida pelas
peregrinaes a Santiago de Compostela, que tiveram o seu apogeu no sculo
XII, proporcionando interaes culturais vrias. Delas participaram muitos dos
poderosos da poca, inclusive Guilherme IX da Aquitnia, primeiro trovador
em langue doc. Do final deste sculo XII datariam os primeiros poemas
escritos em galaico-portugus que se conhece, terminando a sua
documentao por volta de 1350, com a morte do conde de Barcelos D.
Pedro, filho bastardo de D. Dinis.
Mas infelizmente s muito posteriormente seria feita a recolha da maior
parte da produo trovadoresca, nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca
Nacional de Lisboa (antigo Colocci-Brancuti) este, o mais completo de
todos, contendo, embora incompleta, uma Arte de trovar. Ambos so cpias
italianas do incio do sculo XVI, feitas por iniciativa de Angelo Colocci. Da
poca do Trovadorismo so apenas os cdices das Cantigas de Santa Maria

alfonsinas, ricamente iluminados e com pautas musicais, como j lembramos, e


o Cancioneiro da Ajuda, do sculo XIII, contendo este apenas cantigas de
amor, anteriores a D. Dinis, e algumas miniaturas. As notaes musicais, no que
concerne msica profana, somente se encontram praticamente intactas no
Pergaminho Vindel, em seis das sete cantigas de amigo de Martim Codax.
Apenas recentemente, em 1990, foram descobertas sete fragmentadas e mal
conservadas cantigas de amor de D. Dinis com as pautas musicais, por Harvey
Sharrer, na Torre do Tombo de Lisboa.
Compostas pelos nobres trovadores, ou pelos jograis que, junto com
os menestris, as apresentavam em feiras, romarias, cortes senhoriais
diversas, etc., tinham como gneros predominantes as cantigas de amor, as
de amigo e as de escrnio e maldizer, alm de outros gneros ou subgneros
menos explorados e das cantigas de louvor e milagres da Virgem, estas
reunidas em seu Cancioneiro especfico.

1.1.

Cantigas de amor

Nas cantigas de amor, masculinas, o trovador expressa via de regra a sua


renncia ou sua dor, a sua coita, provocada pela sintomatologia amorosa e
pela indiferena, pela falta de merc da dama, da senhor inalcanvel; desta
louva as virtudes e a beleza sem par, mas sem particularizar-lhe o fsico:
sabemos que jovem, esbelta (delgada) e clara (alva), sendo que o
trovador Johan Garcia de Guilhade acrescentaria a esses dados o dos olhos
verdes, inaugurando uma longa tradio que at os nossos dias perdura.
Algumas poucas vezes, os trovadores expressaro a sua alegria (a joi
provenal) por amar, e outras muitas o tema da morte por amor. Nelas se
fazem ntidas as influncias do Trovadorismo occitano ou provenal, como
ficou mais conhecido, praticado no sul da hoje Frana.
Aps o apogeu alcanado no sculo XII, a poesia em langue doc
sofreria a perseguio da Igreja, que poca combatia a heresia sob todas as
suas formas, notadamente a dos ctaros ou albigenses; da o culto dame sans
merci da cans ter sido canalizado para o culto Virgem, me de Jesus. Mas o
amor profano continuaria a ser cantado na cantiga de amor galaico-portuguesa
que, embora com matizes ibricos, alguns deles decorrentes do contgio com
a poesia feminina autctone, propugnava a vassalagem amorosa, o amor
como um servio militar, segundo as regras da finamors, que hoje conhecemos
sob a denominao de amor corts.
A maestria dos provenais serviu de paradigma para os compositores

ibricos, que muitas vezes conseguiram furtar-se ao uso do refro, tpico da


poesia popular, no-palaciana. As marcas occitanas se fazem presentes em
muitos recursos, definidos na Arte de trovar, como a fiinda (remate da cantiga,
de um a quatro versos), o dobre (repetio paralela de uma palavra na estrofe), o
mordobre (repetio de vocbulos atravs de formas derivadas) e a palavra
perduda (verso que no rima com outros na estrofe). Se menos variadas do
que as provenais, essas tcnicas ganham, por outro lado, em poder de
concentrao, como ressalta Yara Fratescchi Vieira (VIEIRA, 1992, p. 54).

1.2.

Cantigas de amigo

As cantigas de amigo se filiam aos cnticos femininos de extrao


autctone, muito embora escritos, ainda que documentando a tradio, tambm
pelos mesmos autores dos demais gneros, e apresentando por vezes uma clara
influncia da cantiga de amor. Nelas, as jovens solteiras, alvas, delgadas, todas
igualmente belas, exprimiam anseios amorosos, o desejo de encontrar ou
reencontrar o namorado, amigo chamado, a saudade provocada pela sua
ausncia; tinham por interlocutores a me ou as irms ou o prprio amigo ou
algum elemento da natureza ou da religio, etc.. Exercendo um papel ativo no
processo de seduo, no se limitavam, principalmente nas paralelsticas, a
serem objeto do respeitoso culto prestado mulher incorprea das cantigas de
amor. Antes, dirigiam-se s fontes e ermidas, onde, nos seus adros, ou sob as
avelaneiras frolidas, bailavam para atrair os jovens com a sua beleza e
desenvoltura.
Em estudos anteriores (MALEVAL, 1999, p. 47-61, 97-98) j
destacramos a antiguidade desses cantos de mulher, os quais, se no foram os
nicos praticados na Europa medieval, apresentam caractersticas que os
distinguem dos demais dentre elas, e principalmente, as imagens atravs
das quais se insinua um sensualismo desconhecedor das noes de pecado ou
culpa trazidas pela Igreja crist. Assim, as ondas do mar so no apenas
orculos consultados pela jovem desejosa de novas do amigo ausente, mas
elementos evocadores/incitadores da libido ou locais do banho de amor
preparador do encontro amoroso; a fonte deixa de ser exclusivamente lugar
que propicia o abastecimento de gua domstico, onde cntaros so enchidos,
ou onde as roupas so lavadas, para se transformar em ponto de namoro e
smbolo da sexualidade e fecundidade femininas, buscada pelo amante sedento,
por sua vez representado na imagem do cervo nas cantigas de Pero Meogo
(AZEVEDO FILHO, 1995). Esta imagem do cervo tpica do paganismo

hispnico e, acrescentamos, relacionada com o culto ao deus com chifres de


veado, o Cernuno dos celtas; fora, tambm, representada na Bblia como
termo comparante do enamorado.
Enfim, afora esta e outras imagens evocadoras de uma sensualidade que
persistira a par da ao coercitiva da Igreja, por ser necessria reproduo e
manuteno do grupo, constantemente ameaado por peste, fomes e guerras,
tambm a msica e os aspectos formais dessas cantigas do provas da sua
ancianidade. Assim, no so estranhos sua composio o cltico all e as
tcnicas do paralelismo, facilitadoras da memorizao como o leixa-pren e o
refro , bem como outras formas de repetio, literal ou de palavras, estrutural
ou sinttica e rtmica, e mental ou semntica, isto , de significao ou
conceito. A estrutura paralelstica dos dsticos (geralmente seis a oito
estrofes, que se reduzem metade, se levada em conta a unidade de sentido
de cada par) seguidos de refro, sua pouca variao interestrfica aproximam
a poesia das formas ritualsticas da magia.
Portanto, a natureza, a magia, a religio e a sexualidade se congregam
nesses cnticos, tambm chamados, de acordo com os locais ou circunstncias
que representam, cantigas de fonte, de romaria, marinhas, barcarolas,
bailadas....; e apontam as suas origens imemoriais. Esses antigos cantos de
mulher foram, de resto, condenados pela Igreja em vrios documentos
eclesisticos, j que considerados de carter licencioso.
Justamente na sua especificidade simblica, as cantigas de amigo
diferem essencialmente das carjas morabes, que muitos julgavam as suas
ancestrais. As carjas eram pequenas composies de carter popular em lngua
romance arabizada, usadas como remate de poemas (muuaxahas) por poetas
hispano-rabes ou hispano-judeus dos sculos XI a XIII. Tambm eram
cnticos amorosos expressos em voz de mulher; mas, alm de apresentarem
situaes e emoes mais variadas que as da cantiga de amigo, a sua
ambientao urbana, e no rural. Scudieri-Ruggieri (1962, p. 7-33) defende
a ancianidade dos cantos de mulher galaicos, que teriam sido levados para a
Andaluzia por escravos galegos. J Yara Frateschi Vieira opta por supor como
provvel a existncia na Pennsula Ibrica de uma poesia feminina prtrovadoresca; esta ter-se-ia diversificado segundo os contextos socioculturais:
em cantigas de amigo no Noroeste, em cantigas morabes, na Espanha
muulmana. Ressalta ainda a especialista o carter reelaborado de muitas
cantigas de amigo, feitas por poetas aristocrticos, ainda que baseados na
tradio popular (VIEIRA, 1992, p. 48-49).

1.3.

Cantigas de escrnio e maldizer

As cantigas de escarnho e maldizer, tambm compostas pelos mesmos


autores dos demais gneros, atacavam, direta (as de maldizer) ou indiretamente
(as de escarnho, principalmente atravs da aequivocatio, do duplo sentido),
pessoas, tipos sociais e instituies, muitas vezes sob forma de teno (desafio
ou debate potico). Algumas poucas se aproximavam do sirvents provenal,
gnero nobre utilizado para a crtica social, moral ou poltica. Mas a maioria
apresenta um modo bastante rude ou burlesco de caricaturizar ou atacar.
Serviam-lhes de alvo, por exemplo, os cavaleiros covardes e desleais, as
prostitutas, os que se dedicavam a cantar/servir mulheres indignas de culto
pela sua posio social, como as amas de meninos (uma vez que as regras do
amor corts determinavam que a mulher teria de ser hierarquicamente superior
ao homem para ser por ele servida). Atravs de grande variedade de temas e
formas e de uma riqueza lexical admirvel, no raro descendo
obscenidade, denunciam o reverso do mundo corts e cavaleiresco,
relacionando-se com a cultura cmica popular (BAKHTIN, VIEIRA,
1987), mesmo que filtrada pelas convenes aristocrticas (VIEIRA,
1992, p. 54).

1.4.

Cantigas de Santa Maria

As Cantigas de Santa Maria foram documentadas em quatro


pergaminhos de finais do sculo XIII, desiguais quanto ao nmero de
composies. So 420 cantigas (ou 427, se considerarmos tambm as cantigas
de festas no exclusivamente marianas), com- postas por narrativas de milagres e
louvores Virgem, estes aparecendo de dez a dez cantigas. A coletnea
antecedida por cantiga biogrfica de Alfonso X, apresentado como o cantor
devoto de Maria, e cantiga-prlogo em que este se assume como seu
trobador, atividade qual imprescindvel entendimento e gosto.
Tornado cantor exclusivamente da Virgem, por ela abandonando o trobar por
qualquer outra dona, mostra-se confiante na sua merc, no galardo que ela d
aos que ama. Na Pition, cantiga que s no aparece na edio mais
suntuosa, embora in- completa, a modo de eplogo retomado o objetivo
do(s) compositor(es): a recompensa celestial.
Os loores apresentam uma rica variedade de formulas mtricas, e os
miragres seguem o esquema do zejel ou do virelai. Via de regra, a narrao
dos milagres, feita de forma breve e respeitosa, conservadora em relao s

fontes, especialmente as latinas, muito embora por vezes rivalizem com os


miragres de Santiago, por exemplo.
A autoria das cantigas vem gerando especulaes que ora tendem para o
reconhecimento de Alfonso X apenas como autor das cantigas autobiogrficas,
ora para a aceitao do seu papel funda-mental, seno na composio integral das
cantigas, na seleo do tema, no modo de o tratar e na reviso do texto. De
qualquer forma, foi o Rei Sbio responsvel pela maior coletnea medieval de
poesias dedicadas Virgem, mesmo que nela tivessem colaborado numerosos
poetas que lhe frequentavam a corte, como tal- vez Airas Nunez, que aparece
mencionado em uma nota marginal do cdice. Alfonso X, inclusive, aparece no
apenas como sujeito em textos lricos, mas como personagem em poemas
narrativos, relacionando alguns milagres sua pessoa, a familiares e
cortesos. Por fim, visando sua salvao, destina a recolha exortativa
do culto mariano igreja em que ser sepultado, atravs de testamento
(1284). Atravs das suas notaes musicais e das suas miniaturas, o
Cancioneiro Mariano um dos documentos mais completos do contexto
sociocultural da poca urea do trovadorismo ibrico, expresso em
galego-portugus.

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